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REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA-GERAL DA ASSEMBLEIA NACIONAL E DA CÂMARA CORPORATIVA
DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 103
ANO DE 1971 18 DE JUNHO
ASSEMBLEIA NACIONAL
X LEGISLATURA
(SESSÃO EXTRAORDINÁRIA)
SESSÃO N.º 103, EM 17 DE JUNHO
Presidente: Exmo. Sr. Carlos Monteiro do Amaral Netto
Secretários: Exmos. Srs.
João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira
Amílcar da Gosta Pereira Mesquita
SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 15 horas e 40 minutos.
Antes da ordem do dia. - Deu-se conta do expediente.
Foi presente à Assembleia, para cumprimento do disposto no § 3.º do artigo 109.º da Constituição, o Decreto-Lei n.º 258/71.
Foram entregues ao Sr. Deputado Agostinho Cardoso os elementos por ele requeridos na sessão de 17 de Fevereiro último.
Foi autorizado o Sr. Deputado Ferreira Forte a comparecer no Tribunal Judicial da Comarca do Fundão para efeito de intervenção em vistoria para que foi nomeado perito.
O Sr. Deputado Olímpio Pereira exprimiu repulsa pelo atentado de que recentemente foi vitima o presidente da Câmara Municipal da Moita do Ribatejo.
Ordem do dia. - Continuou a discussão na generalidade da proposta e dos projectos de lei de alterações à Constituição Política, tendo usado da palavra os Sr s. Deputados Themudo Barata, Mota Amaral, Ricardo Horta, Pinto Machado e Almeida Garrett.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 19 horas.
O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.
Eram 15 horas e 30 minutos.
Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:
Agostinho Gabriel de Jesus Cardoso.
Albano Vaz Pinto Alves.
Alberto Eduardo Nogueira Lobo de Alarcão e Silva.
Alberto Marciano Gorjão Franco Nogueira.
Alberto Maria Ribeiro de Meireles.
João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira
Amílcar da Costa Pereira Mesquita
Alexandre José Linhares Furtado.
Álvaro Filipe Barreto de Lara.
Amílcar da Gosta Pereira Mesquita.
Amílcar Pereira de Magalhães.
António Bebiano Correia Henriques Carreira.
António Fausto Moura Guedes Correia Magalhães Montenegro.
António da Fonseca Leal de Oliveira.
Artur Augusto de Oliveira Pimentel.
António de Sousa Vadre Castelino e Alvim.
Augusto Salazar Leite. Bento Benolied Levy.
Carlos Monteiro do Amaral Netto.
D. Custódia Lopes.
Delfim Linhares de Andrade.
Delfino José Rodrigues Ribeiro.
Duarte Pinto de Carvalho Freitas do Amaral.
Eleutério Gomes de Aguiar.
Fernando Artur de Oliveira Baptista da Silva.
Fernando Augusto Santos e Castro.
Fernando Dias de Carvalho Conceição.
Fernando do Nascimento de Malafaia Novais.
Fernando de Sá Viana Rebelo.
Filipe José Freire Thermudo Barata.
Francisco António da Silva.
Francisco Correia das Neves.
Francisco João Caetano de Sousa Brás Gomes.
Francisco José Pereira Pinto Balsemão.
Francisco Manuel Lumbrales de Sá Carneiro.
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Francisco Manuel de Meneses Falcão.
Francisco de Mancada do Casal-Ribeiro de Carvalho.
Francisco de Nápoles Ferraz de Almeida e Sousa.
Gabriel da Costa Gonçalves.
Gustavo Neto Miranda.
Henrique José Nogueira Rodrigues.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Humberto Cardoso de Carvalho.
João Bosco Soares Mota Amaral.
João Duarte de Oliveira.
João José Ferreira Forte.
João Lopes da Cruz.
João Manuel Alves.
João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira.
Joaquim Jorge Magalhães Saraiva da Mota.
Joaquim José Nunes de Oliveira.
Joaquim de Pinho Brandão.
Jorge Augusto Correia.
José Coelho de Almeida Cotta.
José Coelho Jordão.
José da Costa Oliveira.
José Gabriel Mendonça Correia da Cunha.
José João Gonçalves de Proença.
José Maria de Castro Salazar.
José dos Santos Bessa.
José Vicente Cordeiro Malato Beliz.
Júlio Alberto da Costa Evangelista.
Manuel de Jesus Silva Mendes.
Manuel Marques da Silva Soares.
Manuel Monteiro Ribeiro Veloso.
Manuel Valente Sanches.
D. Maria Raquel Ribeiro.
Miguel Pádua Rodrigues Bastos.
Olímpio da Conceição Pereira.
Pedro Baessa.
Prabacor Rau.
Rafael Ávila de Azevedo.
Rafael Valadão dos Santos.
Ramiro Ferreira Marques de Queirós.
Raul da Silva e Cunha Araújo.
Ricardo Horta Júnior.
Rogério Noel Peres Claro.
Rui de Moura Ramos.
Teófilo Lopes Frazão.
Vasco Maria de Pereira Pinto Costa Ramos.
O Sr. Presidente: - Estão presentes 78 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.
Eram 15 horas e 40 minutos.
Antes da ordem do dia
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados: Caberia pôr hoje em reclamação o Diário das Sessões, n.º 101, mas, em virtude da especial extensão do sen texto, deixo essas reclamações para amanhã.
Deu-se conta do seguinte
Expediente
Telegramas
De. S. E. o Sr. D. Manuel Gonçalves Cerejeira, agradecendo as palavras do Sr. Presidente acerca do seu próximo abandono das funções de patriarca de Lisboa.
Do Sr. Presidente da Câmara Municipal de Quelimane, de apoio à política do Governo, culminando na proposta de lei de alterações à Constituição Política.
O Sr. Presidente: - Enviado pela Presidência do Conselho, encontra-se na Mesa, para cumprimento do disposto no § 3.º do artigo 109.º da Constituição, o Diário do Governo, 1.ª série, n.º 140, datado de 16 do corrente, que insere o Decreto-Lei n.º 258/71, que determina que o regime prescrito no Decreto-Lei n.º 116/71 (aplicação do disposto na reforma de vencimentos quanto à distribuição dos escriturários-dactilógrafos por duas classes, bem como das telefonistas) passa a ser aplicável aos serviços centrais do Ministério do Interior, bem como aos serviços dos governos civis e administrações dos bairros de Lisboa e do Porto.
Estão na Mesa, fornecidos pelo Instituto Nacional de Estatística, através da Presidência do Conselho, os elementos destinados a satisfazer o requerimento apresentado pelo Sr. Deputado Agostinho Cardoso na sessão de 17 de Fevereiro último. Vão ser-lhe entregues.
Está também na Mesa. um ofício do Tribunal Judicial da Comarca do Fundão a pedir autorização para o Sr. Deputado João José Ferreira Forte comparecer naquele Tribunal no dia 1 do próximo mês de Julho, pelas 10 horas, para efeitos de intervenção em vistoria para que foi nomeado perito.
O Sr. Deputado informa-me que não vê inconveniente para a sua acção parlamentar em que lhe seja concedida autorização para comparecer naquele Tribunal. Consulto, pois, a Assembleia, nos termos regimentais, sobre se concede autorização ao Sr. Deputado Ferreira Forte para comparecer no Tribunal Judicial da Comarca do Fundão, conforme é solicitado.
Consultada a Assembleia, foi concedida autorização.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Olímpio Pereira.
O Sr. Olímpio Pereira: - Sr. Presidente e Srs. Deputados: Têm VV. Ex.ªs conhecimento ide que em 5 do corrente foi enviada uma encomenda postal contendo um engenho explosivo, dirigida ao presidente da Camará Municipal do concelho da Moita do Ribatejo, que ao explodir feriu ligeiramente não só o destinatário, como o vice-presidente e o administrador da Baixa da Banheira, que com ele trabalhavam.
Este acto inqualificável, de puro terrorismo, perpetrado contra alguém que se tem dedicado, durante os últimos anos, de alma e coração ao progresso do seu concelho e a promoção social dos seus munícipes, teve ontem à noite, junto do edifício dos Paços do Concelho da Moita, a sua pública condenação.
Ali se reuniram milhares de verdadeiros portugueses, e, não só do concelho e do distrito de Setúbal, como do País inteiro, manifestaram a mais veemente repulsa e condenação do acto de terrorismo praticado e o apoio incontestável ao presidente da Câmara e ao Governo da Nação.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Daqui desta bancada, como representante do distrito de Setúbal no mais alto órgão de soberania da Nação, reitero ao presidente da Câmara da Moita do Ribatejo, Sr. Vítor Brito de Sousa, a minha repulsa pelo acto contra ele perpetrado e a minha inteira concordância com a linha de rumo que sempre tem. seguido na defesa dos supremos interesses do seu concelho e da sua população, pedindo ao Governo que tome enérgicas providências para eliminação destes actos.
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Aliás, as palavras do Sr. Presidente do Conselho assim o fazem supor: «Não há lugar para derrotismos nem cabe tolerância para terroristas.
Tenho dito.
Vozes: - Muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sor. Presidente: - Não está mais nenhum Sr. Deputado inscrito para usar da palavra no período de antes da ordem do dia.
Vamos, em consequência, passar à
Ordem do dia
para continuação do debate na generalidade da proposta e dos projectos de lei de alterações à Constituição Política. Tem a palavra o Sr. Deputado Themudo Barata.
O Sr. Themudo Barata: - Sr. Presidente: As palavras que irei proferir não pretendem ter outro mérito que mão seja o de constituírem um depoimento simples e franco - e que creio também sereno e desapaixonado - acerca de alguns problemas postos à nossa consideração e a nossa consciência pela presente revisão constitucional.
Em primeiro lugar, penso não oferecer dúvidas o facto - bem acentuado, aliás, pelo Sr. Presidente do Conselho - de se tratar apenas de actualizar a Constituição de 1933, pois «rever não é substituir», e que não seira este, portanto, o ensejo para mudar - nem para querer que se mudem - os grandes princípios políticos nela consagrados; mas, ao mesmo tempo, penso também não oferecer quaisquer dúvidas o facto de atravessarmos um período excepcionalmente difícil da vida nacional, em que tão importante como a fidelidade aos princípios é a audácia e a coragem na acção, para que - usando terminologia tão ao gosto desta época - consigamos rapidamente preparar este país, que tanto parece ter ainda do século XIX, para que dentro de trinta anos saiba e» possa viver no mundo do ano 2000. Este inundo - não tenhamos ilusões - far-se-á connosco ou sem nós. Oxalá saibamos, pois, preparar-nos não sómente para «estar» nele como estranhos ou como estava o Velho do Restelo na partida das naus das descobertas, mas para «fazer parte» dele, para saber e poder viver as novas dimensões e as novas perspectivas do mundo maior que a nossos olhos está nascendo.
Vejamos, assim, primeiramente, quais são os princípios essenciais a que a revisão constitucional deverá manter-se fiel.
Servindo-se de palavras que não são minhas, pois são os próprios termos então usados pelo Dr. Oliveira Salazar, os três ou quatro princípios que quiseram consagrar-se na nossa lei fundamental, ao constitucionalizar a revolução de 28 de Maio de 1926, podem resumir-se deste modo:
Governo forte, limitado pelo direito e pela justiça; Organização corporativa da sociedade portuguesa; Unidade nacional;
Subordinação de todos os interesses individuais ao bem comum.
Por consequência, visto que a proposta do Governo (e o mesmo se poderá dizer dos projectos) não recusa a sua adesão a estes princípios; tendo em conta, por outro lado, que, a respeitar-se a unidade nacional e a organização corporativa, eles comportam uma enorme diversidade de soluções possíveis, poderia com alguma lógica terminar aqui as minhas considerações, dando a minha aprovação na generalidade, ressalvando embora o pormenor dos textos.
Todavia, o meu intento não é unicamente o de justificar um simples voto de aprovação na generalidade dos diplomas em causa, mas o de dar a minha modesta colaboração para um debate em que se apreciem, e porventura se esclareçam, os principais problemas levantados nesta revisão da nossa lei constitucional.
Julgo, antes de mais, digno de referir-se e de acentuar-se quanto tem de significativo que a esta Assembleia estejam presentes estes três textos tão diferentes, com soluções diversas em tantos dos seus pontos, e sobretudo bem distintos pelas tendências de espírito que revelam.
Ao contrário daqueles que encarem com preocupação ou vejam com mágoa o facto de se manifestarem tendências tão diferenciadas no seio desta Câmara, penso que este conjunto de textos serve até para caracterizar salutarmente o estilo de vida política a que aderimos: vida que para ser sólida tem de assentar na coesão indefectível no que seja essencial, mas que para ter vigor, para ter harmonia, para poder perdurar, tem de enriquecer-se com a variedade de opiniões e tem de basear-se sobretudo no profundo e sincero respeito pelo pensar alheio, pois este é, no plano individual, o timbre da verdadeira superioridade de espírito e, no plano colectivo, é seguramente a forma mais elevada que o homem civilizado pode encontrar para mostrar que verdadeiramente o é.
Vozes: - Muito bem!
O Orador: - Ter manifestado expressamente o desejo que se prossiga e se acentue este rumo, ter mantido nos seus três anos de Governo este firme propósito, creio haver sido, da parte do Sr. Presidente do Conselho, não apenas uma consequência própria da sua qualidade de pensador e de intelectual (eminente, mas também uma posição meditada e esclarecida de quem sabe que o radicar desses salutares hábitos de convívio político será um idos maiores serviços que pode ser prestado ao País.
Os projectos n.ºs 6/X e 7/X aparecem, assim, ao meu espírito, como úteis complementos da proposta governamental, podendo juntar-se a ela e enriquecê-la sem que haja de alterar-se a sua contextura ou de distorcer-se o seu rumo. Não percebi nunca, por isso, qual a vantagem que haveria em rejeitá-los, nem, muito menos, qual a razão para o fazer, mesmo após ter lido com toda a atenção os pareceres da Câmara Corporativa.
Acrescentarei muito breves considerações sobre cada um destes projectos.
O projecto n.º 6/X vem marcado pelo generoso idealismo dos seus autores e por conceitos actualizados e abertos acerca da nova sociedade a edificar. Há nele a preocupação bem acentuada de respeitar a liberdade e a dignidade humana e de acelerar as transformações económicas e sociais, de modo a alcançarem-se rapidamente novas e mais adequadas formas de convivência social e política. Há, em suma, o salutar anseio de que se construa prontamente uma sociedade nova, mais justa e mais progressiva, digna do que se pensa deverá ser o homem novo.
De bom grado manifesto a minha adesão aos seus ideais e aos seus anseios, e só não aceito integralmente as suas conclusões por pensar que, mesmo nos países agora mais avançados - como verificava amargamente um grande pensador peninsular - , o que é civilizado é o Mundo, mas o seu habitante ainda não o é.
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Foi, aliás, esta excessiva confiança na inata bondade e clarividência dos homens que fez soçobrar a magnanimidade das intenções dos doutrinadores da nossa
República, como já antes fizera perderem-se em lutas políticas de um reduzido escol de intelectuais os sonhos do liberalismo, não porque alguém não houvesse logo avisadamente lembrado que em dois grandes escolhos se perde a liberdade: na tibieza com que se defende ou na demasia com que dela se goza.
Creio que com muita razão o historiador contemporâneo Arnold Toynbee chama à prudência aqueles que sonham com bruscas transformações sociais, lembrando que uma das fraquezas incómodas e dolorosas do ser humano é a brecha que existe dentro de nós entre as camadas consciente e inconsciente da nossa personalidade ou, como ele dizia, haver sido, através dos séculos, a cabeça sempre mais rápida a mover-se do que o coração.
Ao apreciar na generalidade este projecto não penso se são muitos ou poucos os preceitos cuja aceitação me parece agora oportuna; penso, sobretudo, em que as ideias generosas, abertas e esclarecidas que o informam têm de estar presentes neste debate, pois elas serão, sem qualquer dúvida, cada vez mais importantes para a construção do nosso futuro.
O projecto n.º 7/X traz como nota dominante o seu artigo 1.º, consagrando a invocação do nome de Deus na nossa Constituição. Esta matéria ofusca naturalmente todo o seu restante conteúdo. Pessoalmente não tenho qualquer objecção a fazer à proposta, até porque entendo que uma noção não é apenas um aglomerado de indivíduos, mas um corpo organizado, que, como tal, tem também a sua vida, tem também a sua alma. Assim, poderá e deverá render, a seu modo, culto ao Criador.
Simplesmente, poderá perguntar-se se será conveniente, ou se será mesmo razoável, que em textos como estes, que se destinam essencialmente a regular as relações de convivência entre os homens, a estabelecer, segundo a velha linguagem, os direitos do cidadão e os deveres do súbdito, cada um de nós busque imprimir os seus conceitos filosóficos ou religiosos, para além do que seja indispensável à compreensão e à formulação objectiva dos seus preceitos.
A seguir-se tal critério, por que não levá-lo também a textos de menor alcance, que regulam a vida de comunidades menores dentro da Nação e que, por serem mais pequenas ou de natureza mais humilde, não estão excluídas do dever ou do privilégio de prestar culto ao Criador? Poderão dar-se diversas respostas a estas perguntas. Para defender a tese dos proponentes poderia reproduzir uma argumentação como a usada pelo Presidente Sukarno, da Indonésia, ao discursar perante a Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1960. Dizia ele:
A minha nação inclui os que professam religiões muito diferentes: há maometanos, há cristãos, há budistas e há homens sem religião. Contudo, 80 por cento dos nossos 92 milhões de almas, a nação indonésia, são de sequazes do islamismo. Como consequência disto, e em reconhecimento da unificada diversidade da nossa nação, nós situamos a crença em Deus no frontispício da nossa filosofia de vida. Mesmo aqueles que não têm um deus, na sua ingénita tolerância, reconhecem que a crença no Todo-Poderoso é uma característica da sua nação, e deste modo aceitam este primeiro princípio.
Contudo, o pensamento cristão actual parece raciocinar da outra forma, inclinado como está em acentuar o respeito e a independência das coisas de Deus, evitando que se confundam com as de César.
Talvez por isso o lúcido espírito que foi o cardeal Mercier fez inserir, já há muitas décadas, no Código Social de Malines, esta prudente e desassombrada advertência:
O que se chama, frequentemente, o reinado social de Cristo não consiste na inscrição de Seu nome sagrado à frente da Constituição ide um país ou na colocação da imagem do Sagrado Coração na bandeira nacional. Estes actos exteriores, excelentes em si mesmos e desejáveis, são, hoje em dia, sobretudo, mais uma resultante que uma causa, e o mundo não mudaria só porque a mão forte de um homem viesse realizar autoritariamente esses grandes actos.
O verdadeiro reinado social de Cristo existe quando a sua lei santa, de justiça e de amor, penetra todos os organismos sociais.
O trabalho, o bom trabalho, consiste justamente, em nossos dias, em fazê-la penetrar neles pelos meios mais dignos e também mais adaptados ao estado dos espíritos, à sua fraqueza e às suas possibilidades.
Os autores desta proposta - aos quais desejo naturalmente associar a nobilíssima figura de Leonardo Coimbra - tiveram o inquestionável mérito de uma iniciativa que entendo como um apelo veemente à nossa sociedade, dominada pela economia e pela técnica, a dizer que o homem não é apenas o ser que produz e que consome ou uma peça na engrenagem do Estado, mas que existem nele valores mais altos e que é, afinal, para os preservar ou para os servir que as constituições devem ser feitas.
Assim, embora pensando que a proposta não ofenderia ninguém, creio todavia que a mais ajustada forma de aprová-la será através de adequada redacção dos artigos referentes à liberdade religiosa, como de resto entendeu também a comissão.
Nesta solução encontro uma dupla vantagem: referia-se o nome de Deus, com a dignidade apropriada, nesse capítulo consagrado à liberdade religiosa e
tornava-se mais nítida, para crentes e não crentes, a imagem daquele Ser Supremo que não é só o que recebe o culto de uns, pois é também em nome dele que deve respeitar-se a liberdade de todos.
A proposta do Governo é apresentada com a expressa declaração de ter por base a ideia fundamental de que a estrutura política da Constituição de 1933 deve ser mantida e, na realidade, quer na letra, quer na interpretação dos seus objectivos à luz das declarações do Sr. Presidente do Conselho, ela continua a conformar-se com os mesmos princípios basilares:
Continua a existir um Governo forte, ao qual se não restringiu autoridade e que reiteradamente tem declarado que não abdicará de exercê-la;
Continua a proclamar-se e a fazer-se progredir a organização corporativa da sociedade portuguesa;
Continua a afirmar-se nos textos e a defender-se pelas armas a unidade nacional;
Continua a impor-se a regra da subordinação dos interesses individuais ao bem comum e a acentuá-la até ao escolher a designação do Estado Social para caracterizar um programa de Governo.
Parece, por conseguinte, poder concluir-se que a proposta se não afasta dos postulados políticos postos à consideração do eleitorado quando plebiscitou a Constituição de 1933. Portanto, mesmo para aqueles que porventura
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discordem do teor das alterações, penso não ser legítimo argumentar contra elas dizendo que ultrapassam o âmbito de uma revisão constitucional.
As modificações mais extensas- e mais profundas referem-se, como é sabido e logo acentuou também o Sr. Presidente do Conselho, aos preceitos (relativos ao ultramar. Esta circunstância e a representação que aqui me trouxe dispensam outras justificações para que saliente este aspecto e aprecie a proposta sob essa perspectiva.
Talvez simplificadamente se possa dizer que o futuro do nosso país está condicionado à solução que conseguirmos dar a três grandes problemas, que constituem outros tantos desafios à nossa coragem e à nossa capacidade. Todos eles são simultâneos e mutuamente se Condicionam, e todos serão decisivos para o futuro da Nação Portuguesa.
O primeiro será a tarefa, já de si hercúlea para um país que ainda é pobre, de promover aceleradamente o seu próprio desenvolvimento. A nossa tarefa é, porém, mais dura ainda por estarmos envolvidos numa guerra que mobiliza homens e recursos, tornando mais difícil e mais áspero o caminho a percorrer para proporcionar às populações os desejáveis níveis de prosperidade e de bem-estar - tão estreitamente ligados à paz interna, ao progresso nos domínios do espírito e à convivência "dos homens em sociedades mais livres- e para lograr que a Nação disponha a tempo do potencial que lhe permita impulsionar e desenvolver todos os seus territórios.
O segundo grande problema é o do convívio com um inundo em activa fase de ajustamento, em que a ciência e a técnica exercem um império crescente e inexorável, tornando cada vez mais poderosas as forças reunificadoras que promovem a aglutinação dos homens em espaços económicos, culturais e políticos de novas e acrescidas dimensões.
Será ainda utópico, é certo, pensar-se num mundo em que as actuais nações se reduzem a ser como que simples distritos de um estado mundial, em que a tecnologia, com o seu poderio e as suas férreas leis, consiga massificar totalmente a espécie humana, levando de vencida as diferenciações que a geografia e milénios de vida estabeleceram entre os homens, desenraizando velhos costumes, unificando as línguas e nivelando os interesses. As nações não se formaram por simples caprichos; correspondem a fundas realidades humanas, e estas, enquanto existirem, prevalecerão sempre sobre os sonhos, mesmo os mais generosos.
Não há "dúvida, porém, de que nos dias de hoje essas realidades buscam novas formas de equilíbrio entre as forças que unem e que separam a Humanidade: e uma das coisas que parece bem manifesta é que as forças divisórias dos velhos nacionalismos tendem a afrouxar, pois os homens sentem que têm de encontrar formas mais amplas e mais abertas para conviver.
O terceiro grande problema - e é para nós o mais aliciante - .consiste na criação da nossa própria dimensão interna, ou seja no estreitamento e fortalecimento dos laços económicos e humanos entre as diversas parcelas do espaço português, de modo que constituam uma unidade não só no domínio dos sentimentos ou dos ideais, mas igualmente no dos interesses, forjando um corpo suficientemente robusto e solidário, com uma alma comum, que possa viver coeso e que possa também conviver neste novo mundo em formação.
Ora, pensemos um pouco com a ajuda de alguns números.
No ano 2000, que já não dista de nós mais do que o tempo necessário para que os adolescentes de hoje notem que já possuem alguns cabelos brancos, tomando como base estudos realizados pelas Nações Unidas para obter uma estimativa da população mundial no fim do século, o espaço português deverá comportar cerca de 50 milhões de habitantes, assim repartidos:
Milhões
Metrópole e ilhas adjacentes ........ 12
Angola .................. 15
Moçambique ............... 20
Restantes províncias ............ 2,5
Portanto, com estas ou com taxas de crescimento mais modestas, que levassem Angola e Moçambique apenas à ordem dos 10 a 12 milhões, poder-se-á, porém, desde já concluir:
No ano 2000 a metrópole não terá mais do que um quarto da população do espaço português, estando, por conseguinte, em África o centro de gravidade da Nação;
Mesmo com as mais elevadas das curas mencionadas, Angola e Moçambique serão ainda, ao findar este século, territórios tentadoramente vazios, cuja riqueza, cujo espaço, cuja posição estratégica, constituirão certamente motivo de forte cobiça para as grandes potências. Daqui se conclui também quanto tem de insensato pensar-se que mesmo qualquer das maiores ou mais populosas parcelas do todo nacional possa, efectivamente, a curto prazo, constituir, por si só, uma unidade autónoma no plano político, possa, pelo caminho da desagregação, ser mais feliz, por através dele se tornar mais próspera e mais senhora dos seus destinos.
Parece, assim, bem evidente quanto se requer de prudência e de lucidez para criar estruturas ao mesmo tempo sólidas e ágeis, adaptáveis a uma nação como esta, com populações e territórios tão dispersos e com problemas tão diferenciados.
Penso poderem resumir-se nos seguintes pontos os princípios fundamentais que todos - ou quase todos - reconhecemos deverem nortear a política em relação ao ultramar:
Unidade nacional, que pressupõe a soberania una e indivisível do Estado e o direito de todos os portugueses servirem e trabalharem em qualquer fracção do território;
Respeito dos condicionalismos locais, que levou, como leva ainda, à especialização nas leis e à diversidade ,nos usos e costumes;
Intervenção, com iguais direitos e a igual título, de todos os portugueses na vida política do País;
Participação crescente dos próprios habitantes nos respectivos órgãos de Governo.
Compreende-se, assim, facilmente que em problema tão complexo cada um de nós, se o estudasse por si só, pudesse chegar- a soluções diversas, quer pelo acento >a pôr em cada um destes princípios essenciais, quer pelo modo de os combinar, quer até simplesmente pelo arranjo e pela redacção das disposições.
Quando me coube fazer desta tribuna a evocação da figura e da obra de Salazar, pressentindo já que as paixões iriam possivelmente tentar sobrepor-se à razão e à serenidade ao longo deste debate público que já se avizinhava, pareceu-me oportuno reproduzir algumas palavras suas, tão criteriosas e tão prudentes, que creio merecem repetirem-se:
"A unidade da Nação na pluralidade dos seus territórios" implica a unidade de direcção política com a colaboração de todos, mas não tem nada a ver com
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certos problemas que apenas respeitam à organização administrativa e a maior ou menor descentralização e autonomia, problema acerca do qual "via muitas pessoas manifestarem-se altamente interessadas".
Para ele - dizia ainda - não se tratava de problema de princípio, mas sobretudo de possibilidades.
Apreciemos, pois, sucintamente a proposta do Governo em face dos pontos atrás enunciados. Não oferece dúvidas a preocupação de pôr especial acento em dois deles: a unidade nacional e a maior e mais ampla participação dos habitantes no governo dos respectivos territórios. O primeiro aspecto é repetidamente afirmado ao longo do texto e creio ser ponto indiscutível para todos nós. Quanto às mais largas competências conferidas aos órgãos locais e à maior intervenção das populações na sua composição para participar miais activamente na ponderação e resolução dos seus próprios problemas, julgo ser também evidente que a proposta segue um caminho que, na sua essência, presentemente não creio pudesse ser outro. Esta participação tem o mérito de conjugar ideias e vontades e tem também a vantagem de melhor fazer compreender aos povos os sacrifícios e dificuldades que lhes caiba suportar ou haja que vencer.
A proposta não traz grandes alterações de substância quanto à intervenção das populações ultramarinas na vida política do País: eleva apenas o número dos Deputados. Será, pois, de esperar que a sua repartição pelos círculos ultramarinos lhe dê adequada representação nesta Assembleia e, ao fazê-lo, sem esquecer evidentemente a fundamental importância e projecção de Angola e de Moçambique, não esqueça também as pequenas províncias. Algumas delas são hoje toda a presença física da Nação em continentes inteiros e .através de algumas delas se integram no corpo desta nação multirracial raças que são mundos.
Acerca do respeito devido às realidades locais - o multirracialismo nas leis e na vida - apenas direi breves palavras, pois penso ter ocasião de fazê-lo mais amplamente no exame na especialidade. Creio que a Constituição deverá dar abertamente guarida às nossas tão velhas e tão sãs tradições de respeito pelos valores culturais das populações, pelos seus usos, costumes, práticas e religiões, numa linha política que o Sr. Presidente do Conselho, aliás, acentuou igualmente no seu discurso de apresentação da proposta.
Não se trata de condescender paternalmente: trata-se de uma posição bem diversa, que é a de respeitar os diferentes estilos de vida e as diferentes escalas de valores humanos, com os seus diferentes modos de usar as coisas, de trabalhar e de se exprimir, de formar costumes e de criar as suas instituições peculiares, de praticar a religião e de à sua maneira cultivar as artes e criar beleza.
Concluo aqui a apreciação da proposta. Apenas me falta acrescentar uma palavra mais.
Disse há muitos anos o Prof. Marcelo Caetano, dirigindo-se a altos responsáveis ultramarinos, que "quantas vezes a coragem de se expor às balas que tem de ceder à coragem de conquistar aquela fria serenidade que permite dignamente não agravar perigos colectivos nem comprometer possibilidades futuras da Nação".
Ao meditar nestas palavras e nestes problemas, não me foi difícil reconhecer quanto tem de oportuno este pensamento e quanto é ajustado este apelo, e não me foi difícil reconhecer também - sem com isso tirar o devido valor aos textos, especialmente aos textos constitucionais- que nestas matérias transcendentes, que tocam o cerne da vida dos povos e que vão, por isso, bem para
além da letra das leis, o que mais importa é que a Nação, verdadeiramente, queira seguir unida e firme o seu caminho. E neste ponto essencial creio não poder haver lugar a dúvidas.
Afirma-o e reitera-o o Chefe do Governo com a força e prestígio da sua autoridade; proclama-o também o Chefe do Estado, figura respeitabilíssima do mais alto símbolo vivo da unidade da soberania da Nação; manifesta-o exuberantemente todo um povo que, apesar das suas dificuldades, se recusa a deixar-se contagiar pela subversão ou pelo derrotismo - e atesta-o, acima de tudo, quando tenaz e heroicamente vem empenhando o melhor da sua juventude numa luta que, se não fosse nacional, há muito já não poderia persistir.
Assim pensa e assim sente a Nação.
E nós, nesta Assembleia, não desmereceremos dela se, ao longo deste debate, houvermos contribuído para que seja mais forte e mais esclarecida a fé no seu futuro e mais sólida a união entre todos os portugueses à volta dos supremos responsáveis pelos seus destinos.
Este o meu propósito, que haverá sido provavelmente o único mérito deste meu modestíssimo contributo.
Vozes: - Muito bem
O orador foi cumprimentado.
O Sr. Mota Amaral: -Sr. Presidente: Prevê expressamente a Constituição que nos rege a (possibilidade de ser revista, em período normal, de dez em dez anos, antecipável de cinco anos mediante certas condições.
Sabiamente procedeu neste ponto o nosso legislador constitucional. Com efeito, se ao estatuto político fundamental da Nação importa garantir a indispensável permanência de que decorre segurança para a vida colectiva, também .não se lhe hão-de negar as vias adequadas à necessária adaptação a circunstancias inovas, determinante de maior justiça e bem-estar.
Aliás, quase todas as (constituições modernas estatuem sabre os termos e o processo da sua revisão. Passado o entusiasmo jusracionalista dos constituintes da Revolução Francesa, que pretenderam deduzir da razão natural as formas políticas perfeitas, universais e imutáveis, generalizou-se a convicção ida "historicidade das soluções constitucionais. E que também elas estão submetidas à dialéctica da permanência e da adaptação, que se encontra no cerne do fenómeno político e reflecte afinal a própria situação do homem, ser num mundo em permanente devir.
Pelo expediente das revisões periódicas assegura-se a sobrevivência dos textos constitucionais, sucessivamente emendados, e a do peculiar estilo ide ordenamento político e social que lhe está subjacente, também correspondentemente corrigido. Mas isto desde que tais revisões satisfaçam, Ide forma inequívoca, as reais necessidades que em calda ocasião se manifestam. O acumular de tensões desagregadas são fruto da intransigente permanência de uma dada situação política e que a repressão, longe de destruir, exacerba, conduz, cedo ou tarde, à superação das suas deficiências, se não mesmo dela própria, por via revolucionária. A história, nossa e alheia, recolhe diversos exemplos, até de sinal (político contrário, que permitiriam ilustrar esta observação.
Vem tudo isto, Sr. Presidente, para sublinhar a transcendência da (tarefa que neste momento incumbe à Assembleia Nacional. Está a Constituição Política de 1933 em processo de revisão. Pesa, (portanto, sobre os membros desta Câmara a grave responsabilidade de decidir quais as (modificações a fazer, os (preceitos a revogar, as novas disposições a introduzir neste diploma de importância primacial.
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Responsabilidade grave, responsabilidade histórica - tantos e tais são os desafios com que Portugal e os Portugueses hoje em dia se defrontam, não poucos deles postulando opções de natureza política, que se projectam no ordenamento jurídico-constitucional. Responsabilidade à qual cada um de nós, Deputados da Nação, procura corresponder, dando o melhor do seu esforço, em função das suas convicções pessoais e da sua interpretação dos interesses do País, actuais e futuros - em ambiente de são pluralismo, de respeito mútuo, de diálogo aberto1 e construtivo.
Mas carecerá realmente a nossa Constituição de ser revista? E, no caso afirmativo, será este o .momento apropriado para o fazer? Por mim, respondo resolutamente que sim a ambas estas interrogações.
Tal como os homens, as constituições tombem envelhecem. Elas instituem um ânodo de organização da sociedade política que resulta das convicções dominantes no momento da sua elaboração e procura atender a um determinado circunstancialismo do corpo social. Ora, essas convicções alteram-se apreciavelmente com o tempo; e o mesmo também faz sentir a sua acção implacável sobre a situação e as necessidades da sociedade. Parece até que esta função, simultaneamente destruidora e criadora, do tempo se tornou mais palpável no mundo em que vivemos, em permanente e acelerada mutação, quase no fim do terceiro quartel do século xx.
O legislador constituinte ide 1933 tinha perante si um país de características marcadamente agrárias, estável, politicamente portanto conservador, traumatizado por décadas de instabilidade e insuficiência governativa. Por seu turno, predominavam nessa época, numa ou noutra das suas formulações - comunismo e fascismo -, concepções de origem hegeliana quanto às relações do indivíduo com a sociedade, subordinando aquele integralmente à realização de fins colectivos. Descria-se também do parlamentarismo, com as suas instituições anexas, que era acusado de lançar as nações na desordem e permitir o avanço do adversário comunista. Procurava-se superar, no plano económico, os exageros do liberalismo individualista.
Deste quadro social e ideológico e da situação de equilíbrio de forças políticas que veio a resultar da ditadura consequente ao pronunciamento militar de 28 de Maio de 1926 nasceu ,a Constituição de 1933 e o regime por ela instituído: autoritário, antidemocrático, antiparlamentar, corporativo.
Quanto ao ultramar, o Estado Novo dedicou-lhe a primeira das suas leis constitucionais: o Acto Colonial de 1980. Numa era em que quase todos os Estados europeus, de uma forma ou de outra, tinham ou sonharam ter extensas colónias em África e na Ásia, estruturou este diploma o Império Colonial Português.
Julgo não serem precisos,. Sr. Presidente, raciocínios complicados e (exposições exaustivas para comprovar a inadequação deste conteúdo jurídico-constitucional ao estado de coisas existente hoje no nosso país " no Mundo. Inadequação que mais se acentua ao considerarmos que se trata agora 4e legislar para um futuro de dez anos, cujas coordenadas haveremos de perscrutar atentamente. E facto que a nossa Constituição, ao longo dos seus quase quarenta anos de vigência, tem sido revista várias vezes. Mas estas sucessivas revisões, para além de terem operado a integração, em 1951, do Acto Colonial - devidamente expurgado de alguns conceitos julgados chocantes para o ambiente internacional de então - no texto da lei fundamental, apenas visaram acentuar o autoritarismo u que me referi e garantir o regime contra a eventualidade de um "golpe de Estado constitucional".
A pouco e pouco o Governo foi conseguindo ampliar as suas faculdades legislativas, em detrimento da Assembleia Nacional, até se consagrar, em 1945, como órgão legislativo normal; a esta última ficou a caber o papel de órgão legislativo de excepção, sem contar com umas vagas funções de sugestão e crítica, que melhor a configuram como um conselho de governo. Quanto à defesa do Regime, veio a culminar, em 1959, com a abolição do sufrágio directo para a eleição do Chefe do Estado.
Parece-me conveniente esclarecer, desde já, Sr. Presidente, para tranquilidade de alguns espíritos mais propensos a alarmes, que não advogo uma revisão de alto a baixo da Constituição de 1933, o que equivaleria a uma tentativa, ou pelo menos a uma proposta, de uma outra espécie de "golpe de Estado constitucional. Não, não se trata agora de fazer uma nova Constituição, mas apenas de corrigir e melhorar aquela que já temos.
Porque a Constituição de 1933 não faltam soluções políticas felizes que importa certamente conservar. No número delas se encontra a concepção básica do Governo, como órgão da soberania independente da Assembleia Nacional, que responde à dificuldade, até aqui, entre nós, comprovada, de impedir a proliferação partidária e, consequentemente, a instabilidade governativa. Também é de reter, correlativamente, o sistema de exclusiva responsabilidade do Governo perante o Presidente da República, que historicamente se filia na praxe efectiva do constitucionalismo monárquico. E o mesmo direi ainda da dissociação das funções do Chefe do Estado e do Chefe do Governo, este último responsável directo "pela condução política do País, aquele investido de um verdadeiro poder moderador, indispensável, como de experiência sabemos, em momentos de crise - o presidencialismo de chanceler, afinal, que o nosso legislador constituinte foi buscar à Constituição alemã de Weimar, de 1919, mas que não em noção em absoluto desconhecida da Carta Constitucional.
Por outro lado, há aspectos da Constituição que o que interessa é, antes de mais, vivificar e ampliar, como acontece com alguns pontos do programa contido na parte i. Finalmente, temas há que não vale a pena pôr em causa por agora: é o que se passa com o sistema corporativo, do qual se está a procurar tirar partido, fazendo-o funcionar em moldes renovados.
Dentro das coordenadas básicas da Constituição de 1933, temos, porém, Sr. Presidente, de abordar corajosamente matérias de importância vital. A presente revisão há-de ser ampla, será até com certeza a mais ampla das que Até aqui foram feitas, porque os ajustamentos a efectuar nas nossas instituições políticas, por imperativo do condicionalismo presente, são na verdade significativos.
Está com os olhos fitos em nós, constituintes de 1971, um país em circunstâncias bem diferentes das do começo da década de 30.
Acumulam-se factores de transformação social: a industrialização, os movimentos migratórios internos e a emigração vão quebrando, progressivamente, as estruturas tradicionais, que favoreciam atitudes conservadoras. A melhoria do nível cultural e o predomínio dos meios de comunicação maciça predispõem para a participação. Por toda a parte se reconhecem e difundem as consequências da eminente dignidade da pessoa humana, donde decorrem prementes aspirações de justiça social, que correctamente se entende como instrumento de libertação.
Entre a juventude lavram velhas e novas utopias, sintoma mais do que seguro de profunda insatisfação. No ultramar, com evidente relevo para Angola e Moçambique, há sociedades novas, pletóricas de dinamismo e de possibilidades, em pleno surto de desenvolvimento. Nos territórios metropolitanos manifesta-se imperiosa a aspi-
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ração do desenvolvimento, de uma mudança para melhor, no plano económico e no social, aguçada pela proximidade e pela atracção dos países evoluídos do Centro da Europa e da América do Norte.
Haverá acaso quem consiga ignorar os fermentos que fundamente (penetram e agitam a sociedade portuguesa de hoje? Não será a via das reformas prudentes, que não quer dizer tímidas, trilhada também no campo político e jurídico-constitucional, que permitirá salvaguardar as mais lídimas qualidades nacionais, face às possíveis convulsões do nascimento de um mundo novo a que assistimos?
Quanto a mim, não cabe um momento de hesitação: é preciso rever o texto constitucional. E vou mesmo mais longe: é este o momento oportuno para proceder a tal revisão.
Com efeito, as modificações do quadro social do País a que acabo de fazer alusão para justificar a revisão constitucional não surgiram de um dia para o outro, antes se foram processando ao longo das quatro décadas que a Constituição tem quase cumpridas, e anais aceleradamente de 1960 para cá. Mas o momento para pôr em questão soluções tidas por assentes e atender aos anseios de mudança que entre nós Sem rejeitar em absoluto e sistematicamente o passado recente, impõe-se a quem hoje governa a ingente tarefa de modernizar métodos de actuação e ensaiar audaciosamente novos caminhos para a resolução dos problemas nacionais. Foi indubitavelmente com este intuito que o Chefe do Governo solicitou, ao assumir as suas funções, um "crédito de confiança"; e foi nessa base que o País o concedeu, como se pôde comprovar nas eleições legislativas que a todos nos trouxeram a esta Casa. Está, pois, em causa o compromisso que perante & Nação assumiram os que aderiram e aceitaram colaborar com Marcelo Caetano; jogam-se aqui as melhores esperanças de Portugal. Temos, portanto, Sr. Presidente, de proceder a reformas em todos os âmbitos, sem esquecer o estritamente político. Por mim diria mesmo que este é até um dos pontos por onde há que principiar, pois julgo que nada se pode fazer para bem das sociedades sem o apoio decidido dos seus membros, livremente manifestado através dos mecanismos institucionais apropriados. Se o longo período de estabilidade por que passou o País sob o governo de Salazar teve benefícios, também não se pode pretender desconhecer os custos que implicou. E o menor deles não foi com certeza & generalizada apatia, a indiferença dos cidadãos perante a vida pública, a incapacidade, ao menos aparente, para realizarem por si só os seus interesses e tomarem posições perante os da Nação. Ora, nada há mais perigoso do que um estado de coisas deste género, quando, como agora, o Mundo é novamente varrido pelas vagas de um radicalismo agressivo, propugnado por minorias activistas. Daí que constitua, a meu ver, necessidade imperiosa politizar o País, no sentido mais nobre que .esta expressão comporta. É imprescindível atrair os cidadãos para as questões políticas, e para isso há que lhes garantir o esclarecimento carecido e as adequadas vias de participação. Por outro lado, como o País não precisa, nem quer, envolver-se uma vez mais numa experiência de poder pessoal, temos de procurar garantir a genuinidade da institucionalização dos órgãos da soberania. E nesta linha de participação e institucionalização que entendo dever levar-se a cabo a revisão constitucional. Sr. Presidente: Perante a magnitude dos trabalhos que o País neste momento enfrenta, perante o desafio que para nós representam o desenvolvimento de territórios espalhados por vários continentes e a promoção de populações de tantas raças, perante o apelo da integração europeia, perante as operações militares que desde há dez anos mobilizam o melhor dos nossos recursos e energias - face a tudo isto, entendo que é de primeira prioridade assegurar a participação de todos os cidadãos, cada um de acordo com as suas circunstâncias próprias, nas opções a fazer e nas tarefas colectivas a realizar. E porque confio antes de mais no homem, no cidadão, para a solução dos problemas do País, não se estranhará que coloque em primeiro lugar, ao tratar da reforma da Constituição, o tema das liberdades e garantias individuais. Não se pode dizer que haja verdadeiramente ordem na vida colectiva se não estiver salvaguardada em termos estritos a situação dos cidadãos perante o Poder. A primeira realidade política é o homem. E, embora a pessoa humana seja um ser necessariamente social, sujeito de relações, e portanto de direitos e deveres, com os vários corpos sociais, perante o poder político ela surge como um valor em si, possuidora de fins próprios que devem ser respeitados. Já a Revolução Francesa, no seguimento directo dos movimentos que levaram à independência e formação dos Estados Unidos, proclamou, na sua forma moderna, os Da declaração de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos portugueses contida no artigo 8.º da Constituição que entre nós vigora - herdeira do tom liberal de anteriores declarações de direitos, designadamente da contida no artigo 3.º da Constituição republicana de 1911 - não se pode dizer com justiça que apresente muitas lacunas. Alguma coisa há, no entanto, a acrescentar, como seja o direito de emigrar, o direito à informação livre e verídica e a garantia de defesa face à aplicação de medidas de segurança e de recurso contencioso dos actos da Administração lesivos dos direitos dos particulares. Mais importante é, porém, a supressão de certas restrições contidas no nosso texto constitucional, que praticamente privam de conteúdo efectivo a margem de liberdade e segurança de que os cidadãos hão-de dispor em matérias de tão transcendente importância como a expressão de pensamento, a reunião e associação, a inviolabilidade de domicílio e o sigilo da correspondência. E a experiência até aqui havida quanto a estas matérias e quanto a certos institutos do processo criminal, designadamente a prisão preventiva, que se traduz na desvirtuação das garantias da liberdade individual, aconselha vivamente a que se vá um pouco mais longe na regulamentação dessas garantias no próprio texto constitucional. Assim se fará participar da especial dignidade e da força injuntiva deste o reforço que, em meu entender, convém dar-lhes. E facto, e a ele já fiz até alusão, que não falta, neste conturbado momento histórico que atravessamos, quem esteja disposto a servir-se da liberdade para a destruir. Na esteira das doutrinas de Hegel, os totalitarismos de diversa orientação procuram erradicar o que consideram
direitos dos cidadãos. E que não se tratava de exigência declamatória da ideologia individualista que a embebia demonstra-o o revigoramento que a temática dos direitos humanos experimenta nos nossos dias. As violências que têm ocorrido e ainda hoje ocorrem nas regiões do Mundo onde os direitos dos particulares estão em absoluto supeditados aos interesses de uma entidade colectiva, seja ela a classe ou a Nação, impõem o reconhecimento e garantia de uma esfera de liberdade da pessoa que traduza a sua eminente dignidade e delimite a acção do Poder.
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meras "liberdades formais", em nome da libertação do proletariado ou da realização dos fins transcendentes da Nação.
A defesa das liberdades cívicas é, pois, tarefa de interesse vital e poderá eventualmente exigir o condicionamento temporário de algumas delas, sobretudo quando, como agora, parece não haver qualquer restrição na escolha dos meios por parte daqueles que, em derradeira análise, as combatem. Julgo, porém, preferível recorrer a medidas de excepção quando as circunstâncias o imponham, em vez de admitir em princípio um quadro severo de restrições ao exercício daquelas liberdades.
O Sr. Correia da Cunha: -Muito bem l
O Orador: - Esta última solução é, sem dúvida, a de mais fácil adopção e aparentemente a mais segura, mas pode conduzir a excessos que em assunto tão delicado são sempre perniciosos. A responsabilidade que o Governo toma perante a opinião pública ao assumir poderes excepcionais assegura que só se recorrerá a tal expediente perante necessidades inelutáveis.
Não basta, porém, Sr. Presidente., garantir os direitos e liberdades dos cidadãos para que se obtenha num país vida política em termos normais.
O reconhecimento das consequências da dignidade da pessoa humana r, o campo das relações com o poder político é, sem dúvida, um pressuposto desse objectivo. A sociedade reúne homens livres, cujas liberdades reciprocamente se limitam e são limitadas pelo bem comum, prosseguindo fins que são de todos. Ais inevitáveis e até salutares divergências de pontos de visita sobre matérias de interesse comum patenteiam-se mediante o exercício dessas liberdades: de informação, de expressão de pensamento, de associação.
Mas é preciso dar um passo mais e talhar no ordenamento jurídico-constitucional os adequados instrumentos de participação. Quanto a este ponto, reputo fundamental o processo de designação do Chefe do Estado.
No sistema da Constituição de 1933, ao Presidente da República cabe uma gama muito extensa de poderes. Em especial, é a ele que compete nomear e demitir livremente o Presidente do Conselho, que só perante ele responde pela política geral do. Governo, e também dissolver a Assembleia Nacional, quando assim o exigirem os superiores interesses da Nação.
Surge assim o Presidente da República como árbitro supremo e supremo garante do interesse nacional. A sua função não é de mera representação protocolar, ainda que alguma vez se possa ter orientado neste sentido a nossa praxe constitucional.
Ao escolher o Chefe do Governo, o Presidente da República faz uma opção sobre o modo como será conduzido politicamente o País; e como o Governo não depende dos votos da Assembleia Nacional, mantendo-lhe a sua confiança, ele assume perante a Nação a responsabilidade por essa política. Dissolvendo a Assembleia Nacional, pode sobrepor a sua orientação à que ela, mandatária directa do eleitorado, manifestar - embora sem que daí resulte consequência diferente de novamente se convidar o eleitorado a pronunciar-se em eleições gerais.
O efectivo equilíbrio dos órgãos da soberania - visto o problema numa perspectiva de desejável institucionalização - não se consegue, a meu ver, sem que o mandato do Presidente da República e o da Assembleia tenham a mesma origem: o sufrágio directo da Nação. Só assim será compreensível e aceitável o importante papel que a Constituição reconhece ao Chefe do Estado.
A lógica do sistema presidencialista, que entre os seus traços inclui este, tão destacado, da independência do Executivo perante o Legislativo - para usar uma terminologia conhecida, embora talvez hoje já não muito exacta - postula, em regime republicano, a eleição de ambos por sufrágio universal. O reforço da autoridade do Chefe do Estado é ainda mais necessário quando, como acontece entre nós, se lhe reconhecem faculdades de dissolução da câmara legislativa.
E nem se diga que o Presidente da República é já hoje em dia eleito pela Nação, representada por um colégio eleitoral, cuja composição se inspira numa visão orgânica da sociedade política, mais perfeita até do que a de cariz individualista. Não vou aqui argumentar em termos abstractos; limito-me a apontar o que me parece realidade inequívoca: a introdução do sufrágio indirecto, em 1959, desligou o País, e desinteressou-o, da eleição do Chefe do Estado - e julgo que não se ganhou nada com isso.
Há quem afirme que a eleição por sufrágio directo vem a apoucar a figura do candidato que finalmente triunfa, por submeter a uma discussão pública os seus méritos e deméritos para o cargo. Por outro lado, as campanhas eleitorais constituiriam razão de perturbação da ordem, seriam quase um incentivo à subversão ...
Não compreendo por que havemos de ser neste particular mais susceptíveis do que os outros povos cujos chefes de Estado também se elegem no meio de acesa contestação e nem por isso são considerados menos dignos para representar a própria unidade idas respectivas nações; nem julgo que sejamos nós. Portugueses, de todo carecidos de civismo, capazes de enxovalhar, irremissivelmente, quem quer que seja que se apresente ao veredicto das urnas.
O Sr. Correia da Cunha: - Muito bem!
O Orador: - Quanto às campanhas eleitorais, constituem, a meu ver, ocasião magnífica de um exame de consciência colectivo, de debate dos grandes {problemas nacionais, que
O sufrágio universal para a eleição do Chefe do Estado é, por mais que se diga contra ele, a melhor forma que até hoje se descobriu para assegurar a participação dos cidadãos na determinação das grandes linhas de rumo da sociedade política - e neste ponto estou em boa companhia, pois não foi diferente a opinião expendida no parecer da Câmara Corporativa sobre a revisão constitucional de 1961, de que foi relator o Sr. Prof. Doutor Marcelo Caetano. O relevo das funções em causa propicia a reflexão colectiva e a discussão das questões de mais vital interesse do País. Aderindo a um ou outro programa, preferindo uma ou outra (personalidade, cada cidadão toma o lugar que lhe compete ,como membro activo da colectividade.
Nos sistemas parlamentares ainda se pode dizer que esse debate e essa opção mais propriamente se haveriam de levar a cabo ao eleger a assembleia política, cuja composição determina a do governo. Num sistema, porém, de características nitidamente presidencialistas, como é o nosso, se se pretende dar, como parece desejável, base de legitimidade democrática ao Governo, órgão de soberania predominante, que .procede da autoridade do Chefe do Estado, forçoso é, a meu ver, aceitar a eleição deste por sufrágio directo.
Mas a participação dos cidadãos na vida política do País realiza-se também, e já hoje em dia, mediante a periódica eleição da Assembleia Nacional. Julgo que neste capítulo, Sr. Presidente, a finalidade a alcançar, no plano
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Jurídico-constitucional, que é o que agora nos ocupa, será a de dar maior autenticidade e interesse a tal participação, reforçando a competência deste órgão da soberania e garantindo-lhe actuação mais eficaz.
No seu texto primitivo, a Constituição de 1933, negando embora à Assembleia Nacional algumas importantíssimas atribuições, nomeadamente a aprovação do orçamento e, de acordo com a solução presidencialista adoptada, a efectivação da responsabilidade política do Governo, reconhecia-lhe posição de predomínio em matéria legislativa, ainda que restrita à aprovação das bases gerais dos regimes jurídicos. Ao Governo competia executar as leis elaboradas pela Assembleia Nacional, só podendo substituir-se-lhe, mediante decretos-leis, por virtude de autorização legislativa ou em casos de urgência e necessidade pública. Nesta última hipótese, os decretos-leis deveriam ser submetidos, numa das primeiras cinco sessões seguintes, à ratificação da Assembleia Nacional.
A história desta Câmara, durante o longo consulado de Salazar, é bem a do seu progressivo apagamento. Primeiramente na prática, depois na própria letra do texto constitucional, o Governo transformou-se no órgão legislativo normal; restringiu-se a iniciativa legislativa dos Deputados; limitaram-se os casos de ratificação dos decretos-leis. Nem sequer a reserva de lei estabelecida no artigo 93.º da Constituição foi sistematicamente respeitada, vindo o Governo a dispor, com flagrante inconstitucionalidade orgânica, em matérias tão importantes como a organização dos tribunais.
Julgo dever sublinhar que algumas das alterações ao estatuto desta Assembleia tiveram origem no seu próprio seio.
E vamos lá que não se chegou tão longe como pretenderam alguns Deputados mais zelosos das prerrogativas do Governo do que das da Assembleia Nacional, que propuseram, logo em 1935, a supressão pura e simples da iniciativa legislativa parlamentar ...
A própria Câmara negou-se a aprovar, em 1945, a alteração, sugerida pelo Governo, no sentido de se restringir a inconstitucionalidade aos projectos que fossem causa directa de um aumento imediato de despesas, provocando este .comentário a um dos mais ilustres constitucionalistas de língua portuguesa: "Não deve ser .muito frequente, na história parlamentar do mundo inteiro uma assembleia rejeitar a proposta governamental que, de certo modo, ampliava os seus poderes" (Prof. Marcelo Caetano, Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, 5.º edição, Coimbra, 1967, p. 541, nota 3).
Sem função, o órgão morre. Se na I Legislatura a Assembleia Nacional discutiu e votou, entro propostas e projectos de lei, 122 diplomas, e na II ainda o apreciável número de 50, nas primeiras três sessões da IX Legislatura a sua produção legislativa cifrava-se em 9 diplomas, dos quais 7 (resultantes de propostas e 2 de projectos de lei. E que a deficiência não se encontrava nesta Câmara demonstra-o o facto de na quarta sessão legislativa da anterior legislatura se ter igualado o número de diplomas apreciados nas outras três.
Não se trata agora, Sr. Presidente, de restaurar o princípio da atribuição exclusiva à assembleia política da função de legislar. Postulado da teoria clássica da separação dos poderes do Estado, que Montesquieu foi beber em Locke e que os patriarcas do constitucionalismo norte-
americano actualizaram, por forma a um tempo feliz e eficaz, no seu sistema de "freios e contrapesos", são as próprias realidades do mundo de hoje que se encarregam de o pôr em causa.
A amplitude da intervenção do Estado na vida económica e social, a tecnicidade de muitos problemas, que não obstante exigem enquadramento legislativo, a própria morosidade dos processos de trabalho parlamentares, por mais que sejam simplificados - mais do que aconselham, impõem o reconhecimento de faculdades legislativas ao Governo. O fenómeno é hoje em dia, pode dizer-se, universal: manifesta-se na Inglaterra com as orders in council, em França com as ordonnance, na U. B. S. S. com os decretos do Praesidium do Soviete Supremo, e até mesmo nos Estados Unidos mediante a prática da skeleton legislation; e, pelas razões que o determinam, creio ser tal fenómeno irreversível.
Mas o facto de o Governo ter competência legislativa não implica que à Assembleia se negue o exclusivo de certas matérias, de acordo, aliás, com técnica já entre nós consagrada, nem tão-pouco que se lhe impeça de questionar as opções tomadas pelo Governo, mediante o instituto da ratificação dos decretos-leis.
A meu ver, o dispositivo do artigo 93.º da Constituição vigente deve ser integrado, passando a abranger-se na reserva de lei a criação de impostos, determinadas matérias de direito e de processo criminal, em especial II definição das penas e das medidas de segurança, e alguns aspectos relacionados com os órgãos de nível constitucional. Quanto à ratificação dos decretos-leis, deverá ser reconhecida como princípio geral, embora em termos diversos, consoante se trate de diplomas publicados durante ou fora do funcionamento da Assembleia, termos esses que julgo preferível expor e justificar na especialidade.
Mas não se há-de parar aqui, Sr. Presidente, na consagração de faculdades de eficaz intervenção desta Câmara na definição e execução da política por que o País se regerá, em homenagem ao seu carácter representativo e à comprovada necessidade de partilhar o Poder.
Entendo que a Assembleia Nacional deve ver ampliada a sua competência em matéria financeira, de modo a fixar ela o montante máximo que poderá atingir cada um dos capítulos do orçamento das despesas, tanto ordinárias como extraordinárias; análogo é o meu modo de ver quanto à aprovação dos planos de fomento e dos tratados internacionais.
Não é este o momento próprio para me alongar na explanação das alterações que proponho. Mas não resisto a ponderar que, em assuntos com a relevância política dos que acabo de referir, um mínimo apenas de respeito pelos princípios democráticos é já suficiente para reconhecer a necessidade irremovível de interferência da Assembleia que representa a Nação.
Com tarefas e responsabilidades acrescidas, a Assembleia Nacional terá de renovar o seu estilo de funcionamento. Julgo, a este propósito, ser de introduzir no texto constitucional a partição das sessões legislativas, ampliadas na sua duração, por dois períodos, bem como a reforma do regime de funcionamento das comissões e ainda a previsão de um processo legislativo de urgência.
Parece-me que é nesta linha de dignificação e eficiência, construtivamente, portanto, que importa encarar a crise que as assembleias políticas atravessam, entre nós como em todo o mundo. Com século e meio, que este ano se completa, de existência em Portugal, a instituição parlamentar legitimamente espera, daqueles que hoje a incarnam, que lhe sejam proporcionados os meios para sobreviver e viver Por mais que a denigram os seus adversários, a verdade é que não se inventou ainda instrumento mais útil do que as assembleias representativas, desde que funcionem com autenticidade e o devido doseamento, para conter o Poder nos seus limites próprios e assegurar, na medida do que é humanamente possível, o bom governo dos povos.
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E quanto ao ultramar, Sr. Presidente, não haverá também opções a tomar, neste momento em que se aborda frontalmente o problema da revisão da nossa lei constitucional? Respondo com outra pergunta: se na metrópole a alteração dos condicionalismos sócio-políticos impõem correcções de vulto na Constituição vigente, como pôr sequer em dúvida esta necessidade relativamente ao ultramar, em especial Angola e Moçambique, onde na última década se tem assistido a um progresso, que voz especialmente autorizada já qualificou de frenético?
Falta-me conhecimento directo para longamente poder falar sobre o ultramar. Entendo, porém, que a lógica da participação, que já afirmei dever ser a principal ideia-força da revisão constitucional em curso, exige para os territórios ultramarinos crescente autonomia que vá a par do seu progressivo desenvolvimento. Os problemas da África portuguesa são, antes de mais, dos portugueses que lá se encontram, fazendo brotar riqueza daquelas terras, alguns há já muitas gerações: é preciso garantir-lhes, no quadro jurídico-constitucional, a autonomia, não só administrativa, mas também política, de legislação e de governo, que lhes permita proceder rectamente de acordo com as suas necessidades e aspirações.
Vozes: - Muito bem !
O Orador: - De resto, já hoje a Constituição, ao dispor que a autonomia das províncias será a compatível com "o seu estado de desenvolvimento e os recursos próprios", reconhece implicitamente o princípio da expansão dessa autonomia segundo vá exigindo o crescimento económico e social dos territórios.
A política que o Sr. Prof. Doutor Marcelo Caetano propôs ao País é a este respeito inequívoca. Recordo palavras por ele proferidas, falando pela rádio e pela televisão, em 17 de Junho de 1969:
Anunciei nos discursos que fiz em África os pontos fundamentais da nossa política: consolidação das sociedades multirraciais que cultivamos e das quais está ausente toda e qualquer discriminação de cor, raça ou religião; autonomia progressiva do governo das províncias, de acordo, segundo a Constituição, com o respectivo estado de desenvolvimento e os seus recursos próprios; participação crescente das populações nas estruturas políticas e administrativas; fomento dos territórios com ampla abertura à iniciativa, à técnica, ao capital de todos os poises, sob a única condição de se proporem valorizar a terra e a gente, e não explorá-las.
Sobre este programa se pronunciou a Nação, na metrópole e no ultramar, por ocasião das eleições de Outubro de 1969. Que dúvidas podem agora surgir? Que haveremos de aguardar para lhe dar realização?
Sr. Presidente: Expus ao longo das considerações que antecederam, que só lamento não ter conseguido tornar mais claras e breves, o meu modo de ver sobre a conveniência e a oportunidade da revisão constitucional, as suas grandes linhas orientadoras, as matérias de primacial interesse político que deverá alcançar.
Estas opiniões estão plasmadas, antes de mais, no projecto de lei n.º 6/X, de cuja autoria me honro, em colaboração com o meu ilustre colega Sr. Deputado Sá Carneiro, e que subscrevi juntamente com vários outros Srs. Deputados. Mas a mesma ordem de preocupações, com uma ou outra divergência mais saliente, não é alheia à proposta de lei n.º 14/X, onde, por forma tão lúcida e corajosa, se aborda a questão ultramarina em termos que merecem a minha total adesão. E também consigno a sua existência
em pontos do projecto de lei n.º 7/X, apresentado pelo Sr. Deputado Duarte do Amaral e outros Srs. Deputados. Tanto me basta para dar à proposta e a ambos os projectos de lei em discussão a minha aprovação na generalidade.
Vozes: - Muito bem l
O orador foi cumprimentado.
O Sr. Ricardo Horta: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Segundo as normas reguladoras do trabalho da Assembleia, a discussão na generalidade da proposta do Governo sobre a revisão constitucional deve incidir sobre a oportunidade do texto submetido à nossa apreciação, a sua conveniência e a estrutura fundamental dos seus princípios.
São estes os temas sobre que recairá a minha análise sumária e breve, pois não desejo ultrapassar o plano em que devo confinar-me, nem transcender os limites que entendo dever impor às minhas considerações.
Os aspectos que enunciei foram largamente versados na comissão eventual a que tive a honra de pertencer e a cujo trabalho exaustivo, valioso e útil devo render o testemunho da minha homenagem.
Quanto à oportunidade da proposta de lei, suponho que ela se apresenta com evidência insusceptível de contestação.
A última revisão constitucional teve lugar em 1950; isto significa que, depois dela, decorreu um longo período, em que. as instituições sofreram a erosão do tempo, deixando de corresponder às novas necessidades e exigindo, por consequência, um esforço de actualização e de aperfeiçoamento.
Ninguém pensa em alterar a essência profunda da Constituição de 1933, cujos grandes princípios permanecem válidos e que importa preservar na linha da continuidade que inspira a acção do Governo, e que radica profundamente na consciência nacional.
O próprio relatório da proposta o afirma, ao delimitar o âmbito da iniciativa governamental e ao salientar o objectivo a atingir, que não é o de uma mutação radical, mas sómente o de renovar estruturas esclerosadas, rejuvenescer princípios envelhecidos, atender à evolução dos tempos e satisfazer exigências que naturalmente foram surgindo.
Não se trata, pois, de uma reforma no sentido revolucionário da palavra, mas sim de uma revisão na sua acepção restrita, isto é, limitada na sua incidência e no plano confinado onde se exerce. A revisão, aliás, decorre da própria Constituição, é imposta pelos seus preceitos e corresponde ao imperativo do exame periódico dos seus princípios, com o objectivo de os manter ou modificar, em consonância com as rápidas mutações da vida moderna, e a que se não eximem a contextura do Estado e as normas fundamentais que presidem à sua vida.
Creio não ser necessário reforçar as considerações precedentes para demonstrar de modo nítido e inequívoco a oportunidade da proposta de lei, aliás apresentada à Assembleia numa conjuntura grave da vida nacional, em que importa salvaguardar o que é irrenunciável, mas também caminhar sem hesitações no trilho das renovações necessárias e das melhorias estruturais e formais, que as circunstâncias reclamam como exigência imperiosa.
Cabe-me tratar agora dos dois outros aspectos do debate parlamentar: o da conveniência da proposta e o da sua economia, encarados em termos gerais. Não ocultarei as dúvidas que se me ofereceram, as preocupações que me dominaram, as incertezas que tive de vencer.
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Mas a tramitação da proposta permitiu-me, porém, o período de reflexão que me era indispensável para ponderar o texto governamental, no conjunto das suas disposições e nas implicações mais ou menos graves que delas derivam, não só em relação ao futuro do País e ao funcionamento das suas instituições políticas, mas ainda, também, relativamente à sua missão histórica e ao papel que lhe deve caber desempenhar na vida do mundo. Julgo poder condensar as orientações dominantes da proposta neste tríptico essencial:
Ampliação das liberdades e garantias individuais; Reforço dos poderes da Assembleia Nacional; Novos preceitos em relação ao ultramar.
No primeiro aspecto a proposta assenta numa base fundamental:
A eminente dignidade do homem com as inerentes liberdades inseparáveis do seu destino e dos valores transcendentes de que é portador.
Inscreve-se no artigo 8.º o dever de o Estado assegurar o bem-estar social e de garantir a todos os cidadãos o nível de vida de acordo com a dignidade humana; e ainda os n.01 8 a 11 do mesmo artigo regulam, em sentido liberal, a prisão preventiva, a não retroactividade das sanções penais, a instrução contraditória, e institui a inadmissibilidade das penas ou medidas de segurança privativas ou restritivas da Uberdade pessoal, desde que tenham carácter perpétuo, duração ilimitada ou forem adoptadas por períodos indefinidamente prorrogáveis.
Mas a definição dos direitos individuais e das suas garantias tem limites que importa considerar, e entre eles estão a liberdade dos outros e as exigências de interesse colectivo. A liberdade sem autoridade conduz à anarquia, mas a autoridade que desconhece os direitos humanos é igualmente condenável, por conter em si os germes do despotismo, incompatível com a nossa visão da vida e a nossa concepção do mundo.
Vozes: - Muito bem !
O Orador: - A ordem, a harmonia, o progresso social, repousam no equilíbrio entre dois princípios, e estes são, segundo creio, fundamentos basilares da proposta.
Mas o Governo não se orientou apenas no caminho da concessão de liberdades acrescidas e das largas definições de princípios; comporta-se com autenticidade e assegura-lhes concretização efectiva. Demonstram-no as propostas de lei da imprensa e de consagração das liberdades religiosas, ambas pendentes da apreciação da Assembleia e que vão constituir objecto dos seus trabalhos na reunião extraordinária para que foi convocada e que, presentemente, se encontra em curso. Concluirei a minha apreciação desta parte da proposta afirmando que a liberdade não pode confundir-se com a licença; que os direitos fundamentais não excluem a disciplina colectiva, e que, em caso algum., pode cercear-se a luta da sociedade pela sua sobrevivência. Esquecê-lo é conceder título de legitimidade à subversão, às empresas de desmoralização, ao desregramento da violência, ao desmando da indisciplina e da desordem.
As sociedades que se não defendem demitem-se, capitulam, entregam-se às renúncias do abandono e terminam nas confusões do caos.
Mas a proposta inspira-se também no intuito de fortalecer os poderes da Assembleia e ampliar a sua esfera de competência como órgão dia soberania e ainda como colaboradora privilegiada do Governo na realização do bem comum e na efectivação do interesse nacional. Dentro desta orientação evitou-se, sem dúvida, o risco do restabelecimento do sistema parlamentar que durante mais de um século regeu o País e o conduziu à desordem administrativa, ao marasmo económico, ao descalabro financeiro, à instabilidade dos governos, à diminuição da autoridade do Estado, ao desprestígio externo, à paralisia das instituições e à instabilidade da sua acção.
As lições de história são, a este respeito, persuasivas, e a experiência faculta-nos ensinamentos que importa ter presentes.
O Sr. Casal Ribeiro: - Muito bem!
O Orador: - O equilíbrio dos órgãos de soberania, a delimitação da sua competência recíproca, a independência de todos eles, a coordenação da sua actividade na execução solidária e construtiva das grandes tarefas colectivas, eis algumas das características da proposta, indubitavelmente dignas de adesão e de aplauso.
Dentro desta linha de pensamento se insere a enumeração das matérias que têm de constituir necessariamente objecto da lei, e representam, por isso, prerrogativa que pertence à Assembleia de modo exclusivo. Citarei especialmente a criação de impostos, que têm de ser votados ou ratificados por ela, de acordo com as suas atribuições tradicionais e com as raízes históricas da instituição.
Mas a parte mais relevante da proposta de lei em debate diz respeito ao ultramar e reveste-se, por isso, da maior transcendência e do mais profundo significado nacional.
Já se definiu o momento crucial que estamos vivendo como de renovação na continuidade, ou seja da permanência no essencial, sem prejuízo das actualizações que se imponham, ou dos aperfeiçoamentos que se tornem aconselháveis. As ideias não cristalizam em formas imutáveis e a evolução constitui lei da vida, quer dos indivíduos, quer das sociedades. Ajustar as instituições às exigências das circunstâncias, adaptá-las às realidades concretas, procurar novos caminhos, novos conceitos, representa orientação útil e rumo criterioso, desde que se salvaguarde o que é permanente e válido e que, por isso mesmo, representa património intangível e valor que não pode ser alienado.
Como militar e português, educado no culto da sua Pátria, na ideia da sua unidade, na consciência dos vínculos indissolúveis que ligam as suas parcelas e as congregaram ao longo dos séculos na solidariedade de um destino comum, não poderia aceitar qualquer solução contrária à formação do meu espírito, às ideias que me orientam ou aos princípios que professo e de que não posso abdicar.
Conheço, por imperativo da minha profissão, as províncias portuguesas de África e a opulência das suas riquezas, a vastidão das suas potencialidades, o nível do seu desenvolvimento, o grau da sua integração racial, as promessas do seu futuro; conheço os sentimentos profundos das populações de além-mar, o seu orgulho nacional, a sua vontade indomável de permanecerem portugueses e de participarem deste conjunto uno e disperso, mas animado do mesmo espírito, impregnado de valores idênticos e cônscio da contribuição valiosa que pode dar à causa do Ocidente e ao universalismo da civilização e da cultura. Mas, sobretudo, foi-me permitido apreciar de perto e directamente a abnegação heróica das nossas forças armadas, a sua inabalável determinação, o sacrifício da nossa juventude, o tributo de sangue que está pagando generosa e perdulàriamente, em holocausto à Pátria e pela sua integridade.
Ora, a proposta, quer no seu texto formal, quer no seu espírito inspirador, corresponde ao sentimento colectivo
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da Nação, aos ideais do Exército, aos princípios que devotadamente serve a sua mocidade.
Nela se consigna a unidade nacional, a solidariedade das suas parcelas, os vínculos espirituais que as ligam, a sua comunidade de vida e de destino.
Admite-se, é certo, a descentralização política e administrativa, exercida através de órgãos electivos e de governo próprio, e nem outra solução seria aceitável para combater o centralismo estatista e a paralisia do burocratismo. A administração de várias áreas geográficas, com o seu potencial demográfico, os seus problemas próprios, as suas necessidades específicas das suais instantes exigências não se compadeceria com a sua subordinação total à metrópole, que nem sempre poderia actuar com prontidão e adoptar com pleno conhecimento de causa as soluções rápidas e eficazes impostas pelos condicionalismos locais. A autonomia, em vários domínios da ordem interna, é, assim, um corolário lógico inelutável da própria natureza das coisas e da estrutura da Nação Portuguesa como a Historia a forjou e os séculos a modelaram.
A própria categoria de estados, que pode ser atribuída às províncias ultramarinas, equivale ao reconhecimento da sua personalidade na unidade do "todo" e radica na tradição nacional, de que constituem expressão, entre outros, os nomes prestigiosos de Júlio Vilhena e Norton de Matos, cujo ardente patriotismo mão sofre controvérsias, nem admite contestação. Ë, de resto, uma simples designação honorífica, destinada a prestigiar as províncias dentro do conjunto a que pertencem e que só poderá ser conferido quando o progresso do seu meio social e a complexidade da sua administração justificarem essa qualificação.
Mas consagrando estes princípios, mantém-se, direi mesmo, reforça-se o carácter unitário do Estado Português, conferindo-se-lhe a representação diplomática da comunidade nacional, a defesa da sua integridade, a legislação sobre assuntos de interesse comum, a designação de "governadores" para cada província, a superintendência da administração em todo o espaço português, a fiscalização da gestão financeira, a integração económica nacional, a protecção das populações ultramarinas, o combate às forças centrífugas que venham a manifestar-se e que ponham em causa os interesses superiores do Estado, as normas constitucionais ou a proeminência do Governo Central. Não negarei o que há de inovador na proposta. Recusar-me-ei, porém, a considerá-la como rotura da linha da continuidade, ou como uma inflexão das coordenadas essenciais da política ultramarina. Portugal continua a ser uno e indivisível, fiel às grandes linhas da sua trajectória histórica e procurando realizar a sua missão na unidade, na cooperação e na solidariedade.
Eis, em síntese, as razões por que dou a minha aprovação na generalidade à proposta, na plena consciência das responsabilidades que assumo, mas na certeza também de que não atraiçoo o meu pensamento, não altero a essência dos meus princípios, nem sou infiel às minhas responsabilidades.
E por último quero afirmar que a política em que a proposta se integra tem sido claramente definida pelo Sr. Presidente do Conselho e expressa pelo vigor como é conduzida a acção diplomática do País e a defesa inquebrantável do território nacional.
Termino manifestando a minha confiança no Governo e exprimo a minha fé nos destinos da Nação.
Vozes: - Muito bem!
O orador foi cumprimentado.
O Sr. Pinto Machado: - Sr. Presidente: Na impossibilidade de considerar, nos limites do tempo regimental, todas as matérias sobre que desejo pronunciar-me, tratarei agora apenas da que, na sequência do meu pensamento, tal como o ordenei, surge em primeiro lugar: o regime da eleição do Presidente da República que o projecto de lei n.º 6/X -Ide que sou um dos signatários - propõe que regresse ao sufrágio directo dos cidadãos eleitores.
Nação é .comunidade humano-cultural transtemporal, personalizada e dinâmica: projectasse para aquém e para além do presente, no suceder de gerações depositárias e fautoras de uma cultura que exprime e plasma um modo de ser e de estar na história, isto é, de se relacionar com a natureza, com os homens e com Deus. Nação é, pois,. um povo marchando e construindo no tempo. E quando esse povo - em vista à afirmação plena da sua personalidade própria, à manifestação livre da sua capacidade criadora, à realização autêntica das suas aspirações legítimas e à satisfação integral das suas necessidades sofridas - avoca o poder político e por autoridade própria o .exerce no território em que habita, surge um Estado. O povo é, .portanto, o fundamento, o sujeito e o fim do Estado.
Portugal é a nação dos Portugueses: dos idos - que a foram modelando; dos vivos - que a actualizam, e dos que hão-de vir, e que, nestes e por estes, como que já estão. Mas o tempo de os mortos agirem passou já, e o tempo dos vindouros não chegou ainda. São os portugueses de agora que encarnam a Nação, são eles a sua substância viva e operante, são eles o seu pensar, o seu querer, a sua voz e o seu braço. Sem eles, a Nação não seria: teria sido. Eles constituem-na (artigo 3.º da Constituição), eles detêm a soberania que nédia reside (artigo 71.º) e que nenhuma instituição, grupo ou indivíduo pode chamar a si e exercer como pertença própria.
A soberania da Nação Portuguesa tem por órgãos o Chefe do Estado, a Assembleia Nacional, o Governo e os tribunais (artigo 71.º), cujo poder lhes foi constituído pela Nação, que na lei fundamental marca as respectivas atribuições e limitações.
O Chefe do Estado é o Presidente da República eleito pela Nação (artigo 72.º) e só .perante ela responsável pelos actos do seu magistério superior (artigo 78.º). A esta plena independência em relação a todos os outros órgãos de soberania associam-se vastas atribuições de poder político, designadamente: nomear e exonerar o Presidente do Conselho (artigo 81.º, n.º 1.º) por decisão livre (artigo 107.º, § 1.º) sem necessidade de referenda (artigo 82.º, § único, n.º 1.º), nomear e exonerar todos os membros do Governo (artigo 81.º, n.º 1.º), sob proposta do Presidente do Conselho (artigo 107.º, § 1.º), convocar e presidir ao Conselho de Ministros quando o entendia (artigo 111.º), nomear os membros vitalícios do Conselho de Estado (artigo 83.º, n.º 6.º), dar à Assembleia Nacional poderes constituintes (antigo 81.º, n.º 4.º) e submeter a plebiscito nacional as alterações da Constituição que se refiram à função legislativa ou seus órgãos (artigo 81.º, n.º 4.º), convocá-la extraordinàriamente para deliberar sobre assuntos determinados e adiar as suas sessões (artigo 81.º, n.º 5.º) e dissolvê-la (artigo 81.º, n.º 6.º), determinar que a Assembleia Nacional a eleger assuma poderes constituintes e reveja a Constituição em pontos especiais indicados no respectivo decreto (artigo 177.º, n.º 1.º), dirigir a política externa do Estado (artigo 81.º, n.º 7.º), promulgar e fazer publicar as leis e resoluções da Assembleia Nacional, com voto suspensivo (artigo 98.º e seu § único), assim como os decretos-leis e regulamentares, e assinar todos os decretos individuais sob pena de inexistência (artigo 81.º, n.º 9.º), o que impõe a sua intervenção na nomeação, transfe-
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rência, exoneração, reforma, aposentação, demissão ou reintegração do presidente do Supremo Tribunal de Justiça e do procurador-geral dia República - membros inatos do Conselho de Estado (artigo 83.º, n..08 4.º e 5.º) - e ainda dos agentes diplomáticos e consulares e dos governadores dias províncias ultramarinas (antigo 109.º, § 6.º).
A competência ido Presidente dia República ultrapassa com largueza, portanto, a estritamente devida ao exercício de um poder moderador, limitado a assegurar e garantir o funcionamento normal e harmónico dos outros órgãos de soberania, em cuja actividade não deveria nem poderia interferir. De facto, .bastai atontar ma directa e essencial subordinação de Governo ao Presidente da República (artigos 81.º, n,.0 1.º, 82.º, § único, n.º 1.º, 107.º, § 1.º, 108.º, 111.º e 113.º) e ao poder legislativo daquele "em restrições (artigo 109.º, n.º 2.º), para se reconhecer que se está perante um regime ultrapresidencialista, do que decorre que a eleição do Chefe do Estado é acto por excelência da soberania nacional, facto a ter em conta na escolha do respectivo sistema.
Ato 1951, a Constituição havia já sido modificada por seis leis, nenhuma das quais alterara o artigo 7S.º Na proposta de lei n.º 111, apresentada em 19 de Janeiro daquele ano1, o Governo pretendeu retirar do texto constitucional, a modalidade de eleição do Presidente da República - por sufrágio directo dos cidadãos eleitores, segundo aquele artigo -, o que significava que, a ser aprovada a emenda, o sistema de eleição do Chefe do Estado passaria a ser regulada por lei ordinária, da iniciativa da Assembleia Nacional ou do Governo.
O parecer n.º 13/V da Câmara Corporativa não foi favorável a tal eliminação, .por considerar tratar-se de matéria constitucional, e defendeu "a forma de sufrágio que se encontra consagrada já na Constituição e cujo funcionamento afinal não se pode dizer que haja demonstrado deficiências no espírito cívico do País". O primeiro dos argumentos aduzidos a favor da eleição presidencial por sufrágio universal e directo é o de que, "dada a posição proeminente do Chefe do Estado na Constituição, é essa a única forma de a tornar efectiva e de a assentar sobre uma .base sólida de legitimidade". Reconhece-se também que, "apesar de todos os seus defeitos, o sufrágio universal é ainda, nos regimes republicanos, a melhor forma que até hoje se descobriu de assegurar a intervenção popular na determinação do rumo do Estado" e que "as campanhas eleitorais, com ,os inconvenientes inegáveis que possam apresentar, constituem uma ocasião magnífica de exame da "consciência nacional e para despertar a consciência política da Nação, possivelmente adormecida nos intervalos por um método de governo que dá maior predomínio à administração e onde prepondera a burocracia". A Assembleia Nacional perfilhou esta doutrina, pelo que se manteve a fórmula do artigo 72.º da Constituição.
Decorridos oito anos, o Governo apresentou a Assembleia Nacional a proposto de lei de revisão constitucional n.º 18s, que no seu artigo 4.º consigna que o Presidente da República é "eleito por um colégio eleitoral constituído pelos membros em exercício efectivo da Assembleia Nacional e da Câmara Corporativa e pelos representantes municipais de cada distrito da metrópole e das províncias ultramarinas ou de pada província ultramarina não dividida em! distritos".
1 Diário das Sessões, n.º 70, de 19 de Janeiro de 1951, pp. 286 e segs.
2 Diário das Sessões, n.º 74, de 24 de Fevereiro de 1951, pp. 388 e segs.
3 Diário das Sessões, n.º 86, de 20 de Março de 1959, pp. 375 e segs.
A Câmara Corporativa, pelo seu parecer n.º IO/VII *, foi favorável a esta alteração, propondo pequenas modificações, duas das quais significativas: onde o Governo diz: "eleito por um colégio eleitoral", a Câmara propõe: "eleito pela Nação, por intermédio de um colégio eleitoral"; e onde o Governo consigna: "a eleição far-se-á por escrutínio secreto", a Câmara sugere: "a eleição far-se-á, sem prévio debate, por escrutínio secreto".
A Assembleia Nacional aprovou o novo regime ide eleição presidencial proposto pelo Governo, com as alterações sugeridas pela Câmara Corporativa e, por proposta da Comissão do Ultramar, incluiu no colégio eleitoral representantes dos conselhos legislativos e dos conselhos de governo das províncias ultramarinas de governo-geral e de governo simples, respectivamente.
Que poderosos argumentos de direito constitucional ou que decisivas vantagens políticas determinaram tão espectacular viragem?
A Câmara Corporativa começou a analisar a questão do ponto de vista do nosso direito constitucional. Diz:
A Nação Portuguesa aparecerá, nesta concepção (a concepção corporativa consagrada na Constituição), a participar na eleição do Chefe do Estado através dos seus (Deputados ao Parlamento, designados por sufrágio territorial e individualista, através dos procuradores das corporações económicas, morais e culturais e, finalmente, através dos representantes dos municípios de aquém e de além-mar. Aliam-se, neste modo de eleição, a representação territorial individualista e a representação orgânico-corporativa, na intenção de reproduzir a vontade da Nação, cujos elementos estruturais são, não apenas os indivíduos, mas também as instituições ou entes sociais em que eles vivem integrados e cujos interesses e sentimentos não se identificam necessariamente com a massa dos eleitores no quadro territorial.
Se esta solução decorre, tão lógica e imperiosamente, das bases da Constituição, por que só foi descoberta ou adoptada vinte e seis anos após o plebiscito de 1933?
A Câmara Corporativa explica: "Em 1933 perfilhou-se, sobre tal questão, o sistema que, nas circunstâncias sociais e políticas da época, melhor poderia concorrer para outorgar ao Chefe do Estado as qualificações julgadas indispensáveis na forma de organização estadual que se adoptou: perfilhou-se o sistema da eleição directa pela Nação, erigida em colégio eleitoral." Entre as circunstâncias que levaram a aceitar provisoriamente uma modalidade que não . encaixava perfeitamente na estrutura básica da Constituição, destacava-se a de não estar ainda montada a Nação orgânica, o que necessariamente fazia que "não fosse viável, logo de início, pensar noutra solução, mais em harmonia com a concepção corporativa, para o problema da escolha do Presidente da República". Ora, segundo a Câmara, era o momento de substituir o provisório pelo definitivo, dado que "a organização corporativa [...], após uma paragem e certos desvios mais ou menos justificados pela imposição das circunstâncias adversas da 2.º Grande Guerra, retomou nos últimos anos a sua marcha e recuperou o seu inicial vigor, tendo sido recentemente coroada com a criação das .primeiras corporações" e dado ainda "o revigoramento das instituições de ordem administrativa, imoral e espiritual". Em face destes sinais, considerou que tinha chegado a plenitude dos tempos para o corporati-
4 Diário das Sessões, n.º 98. de 15 de Abril de 1959, pp. 460 e segs.
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vismo em Portugal, que era "a altura de se tirarem da concepção institucionalista, na forma e com o espirito em que está consagrada em Portugal ("institucionalismo integral, corporativismo que faz do indivíduo, ao lado das corporações, um elemento estrutural da comunidade nacional"), algumas das suas principais inferências, uma das quais diz justamente respeito à eleição do Chefe do Estado.
Peço desculpa a Assembleia da extensão das citações, mas considerei que seria útil, no sentido de se compreender, que na linha da doutrina defendida pela Câmara Corporativa em 1959 a nova modalidade de eleição do Presidente da República é parte integrante da estrutura fundamental da Constituição. A seguinte afirmação do seu parecer é totalmente esclarecedora a tal respeito:
Sucede [...] que o sistema de eleição consagrado na proposta do Governo se tem de considerar substancialmente associado à concepção corporativa do Estado, na forma em que esta se encontra perfilhada na Constituição, e naturalmente requerido pelo grau de desenvolvimento já atingido pela organização corporativa da Nação.
Se o sufrágio orgânico-individualista para a eleição do Chefe do Estado decorresse necessariamente das próprias bases da Constituição, por que não foi ele sequer sugerido no parecer de 1951? E, .sobretudo, como se compreende a defesa aí feita do sufrágio universal é directo?
E - reportando-me agora ao parecer da Câmara Corporativa 5 sobre o projecto n.º 6/X actualmente em discussão - porque não considera inconstitucional o regresso ao sistema anterior que nele se propõe, como seria de admitir, dado que continua a defender-se a doutrina expressa no parecer de 1959 ["A Câmara não vai (...) repetir aqui, neste momento, a argumentação que, em favor do sistema de designação hoje consagrado, expôs no seu parecer n.º 10/VII"]? Mais: por que perfilha - o que mantendo as razões daquela posição, não me parece lógico - o ponto de vista do Sr. Presidente do Conselho, expresso no seu discurso proferido perante esta Assembleia em 2 de Dezembro último - de que "será discutível a forma de eleição do Chefe do Estado"? Mais ainda: por que considera -o que também não se me afigura coerente - que "tudo, em substância, começa por depender das atribuições, simplesmente políticas ou políticas e administrativas, que se pretenda conferir ao Presidente da República"? E por que se declara:
Contando-se o nosso regime constitucional entre os de presidencialismo bicéfalo ou diárquico, encontramo-nos justamente perante o problema de saber qual desses dois sistemas de eleição (o actual e o anterior) corresponde melhor à ideia que na Constituição se faz do Chefe do Estado?
Há problema, afinal: problema que tem de ser considerado de frente.
Reflectir sobre se faz ou não parte da essência da doutrina corporativa na sua concepção portuguesa que as sociedades (primárias -em que, naturalmente ou por forca de lei, se inserem os cidadãos - tomem parte no poder político do Estado, é tarefa que cabe aos seus filósofos. Saber se tal decorre necessariamente dos preceitos constitucionais que nos regem, é questão muito diferente e para considerar aqui agora.
5 Diário Hás Sessões, n.º 88, 4.º suplemento, de 81 de Março de 1971.
O título I da parte I da Constituição trata da "Nação Portuguesa". Exceptuando o § único do artigo 1.º ("A Nação não renuncia aos direitos que tenha ou possa vir a ter sobre qualquer outro território"), é no antigo 3.º que pela primeira vez surge a palavra "Nação": "Constituem a Nação Portuguesa todos os cidadãos portugueses residentes dentro ou fora do seu território." Não se indicam quaisquer outros elementos constitutivos da comunidade nacional.
No artigo 5.º caracteriza-se o Estado Português como "República unitária corporativa": é, portanto, a forma política "República" que é corporativa, e não a comunidade "Nação". Tal regime corporativo implica a "interferência de todos os elementos estruturais da Nação na vida administrativa e na feitura das leis", conforme consigna o mesmo artigo. A ,lei fundamental consagra, pois, duas realidades distintas: os cidadãos, que no seu conjunto constituem a Nação (antigo 3.º), e os elementos estruturais (antigo -5.º) em que eles se organizam socialmente.
Trata-se portanto, de categorias distintas de ser: se me é permitido valer da filosofia tomista, diria que os cidadãos são a "substância" da Nação, visito que existem em si mesmos, enquanto que os elementos estruturais são "acidentes", na medida era que existem na "substância" nacional sem que façam parte dela, sem que ela deixe de ser o que é se os perder. Ora afigura-se-me que nem sempre se estabelece - pelo menos com clareza - esta distinção fundamental, que contudo, na Constituição se exprime.
A utilização das designações "Nação inorgânica" (os cidadãos) e "Nação orgânica" (os elementos estruturais) predispõe à confusão. Não se trata de dois seres distintos, de cuja associação resulta um terceiro: a Nação propriamente dita. E muito menos se trata de que a "Nação inorgânica" seja como que mataria indiferenciada e inerte que uma norma organizadora - qual princípio formal da escolástica - modela em ser vivo.
No primeiro caso, a Nação seria integração de dois seres, sem fusão substancial, e, no segundo, só a "Nação orgânica" seria autenticamente Nação. A seguinte passagem - aliás já citada - do parecer de -1959 da Câmara Corporativa exprime claramente o conceito dualista (inorgânico-organicista) do ser "Nação": "... Nação, cujos elementos estruturais são, não apenas os indivíduos, mas também as instituições ou entes sociais em que eles vivem integrados e cujos interesses e sentimentos não se identificam necessariamente com os interesses e sentimentos da massa dos eleitores no campo territorial."
Creio ter demonstrado que os artigos 3.º e 5.º da Constituição não consentem este conceito dualista de nação, pelo que não me parece legítimo defender que o colégio eleitor do Presidente da República, por exprimir essa dualidade, a representa mais autenticamente e está mais de harmonia com a concepção corporativa da nossa lei fundamental.
A Constituição define como domínios da interferência dos elementos estruturais da Nação - "família", "organismos corporativos" e "autarquias locais" (títulos m, IV e V da parte i) - nas funções do Estado a "vida administrativa" e a "feitura das leis" (artigo 5.º). Contudo, a intervenção administrativa não excede o âmbito local - juntas de freguesia, câmaras municipais, juntas distritais (artigos 19.º, 20.º e 21.º) - e a participação na feitura das leis opera-se por intermédio da Câmara Corporativa (artigo 102.º), de atribuições exclusivamente consultivas (artigos 103.º e 105.º). Como se vê, a organização corporativa da comunidade política que a Cons-
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tituição preceitua não se projecta nem na administração geral, nem nos órgãos de soberania.
Fazendo o ponto: com excepção do consignado, desde a Lei n.º 2100, de 29 de Agosto de 1959, no artigo 72.º, nada se encontra na Constituição que exija como necessário ou sugira como conveniente que os elementos estruturais da Nação devam intervir na eleição do Presidente da República.
O parecer de 1959 da Câmara Corporativa socorre-se também do direito constitucional comparado para apoiar a solução então proposta pelo Governo para a eleição presidencial.
Após caracterizar cada um dos quatro tipos de sistemas de eleição do Chefe do Estado nos regimes republicanos, o parecer procura relacioná-los com as diferentes posições que a um Presidente da República podem ser atribuídas na organização estadual.
Do texto do parecer não é fácil aplicar tal análise correlativa ao caso português, na medida em que não se define claramente o pensamento da Câmara no que concerne à posição que, objectivamente, ocupa o Chefe do Estado no nosso estatuto político fundamental: se por um lado se diz que "o Chefe do Estado há-de ser [...], além de um chefe da Nação, uma entidade indiscutida e indiscutível, grandeza neutral, moderadora e partidária- aquela espécie de pouvoir neutre de que [...] falava Benjamin Constant", por outro lado invoca-se a declaração do Prof. Oliveira S ai az ar de que se quis atribuir ao Chefe do Estado "todos os poderes e garantias necessários para se poder afirmar que é ele quem traça com toda a independência, à vida do Estado, as grandes directrizes".
Seja, porém, qual for o pensamento da Câmara Corporativa neste domínio, a verdade é que reconhece que a autoridade do Chefe do Estado tem de assentar na vontade da Nação. Apenas pensa -ao contrário do que pensava em 1951- que o sufrágio universal e directo não é forma válida dessa vontade se exprimir e proclama -já dissemos com que fundamento- que o colégio proposto pelo Governo elege "em termos de maior autenticidade". Assim, o Chefe do Estado, em vez de diminuído, sairia engrandecido desse sistema de eleição.
Por ter já exposto à Assembleia o meu entendimento sobre a posição do Chefe do Estado o conceito de Nação e de República corporativa consignados na nossa lei fundamental , dispenso-me ide os repetir para rebater esta posição da Câmara Corporativa. Apenas noto que, em reforço do seu ponto de vista de, por esse mundo í ora, "estar hoje muito longe de se admitir sem discrepância que o sufrágio universal e directo seja o único processo de apurar a vontade real da Nação" e de se reclamar "um sufrágio dualista, um sufrágio universal e um sufrágio social", o parecer invoca a Constituição Francesa de 1958, segundo a qual o Chefe do Estado é escolhido "por um colégio eleitoral constituído pelos membros do Parlamento (Assembleia Nacional e Senado), pelos membros dos conselhos gerais (isto é, dos órgãos deliberativos dos departamentos) e pelos membros das assembleias dos territórios ultramarinos, bem como por representantes eleitos dos conselhos municipais (órgãos deliberativos das comunas)" e ainda por "representantes eleitos dos conselhos das colectividades administrativas dos territórios ultramarinos [...] e representantes dos Estados membros da comunidade". Por que se valoriza o caso da França? "Interessa-nos particularmente o caso francês, mais que o alemão e italiano, dado que nas actuais leis fundamentais de Bona e Roma não há, como na francesa, sinais manifestos de desafeição pelo parlamentarismo, os quais, pelo contrário, são patentes na Constituição Francesa de 1958". E apresenta-se o paralelo: a proposta do Governo utiliza "para o efeito exactamente o sistema que em França, salvas todas as diferenças, foi considerado especialmente apto para a escolha de um Chefe do Estado de poderes reforçados, de poderes impressionantes".
Ora nem o paralelo pode estabelecer-se - pois não existe -, nem a achega é pertinente, por contra-demonstrativa. De facto, não pode aparentar-se o restritíssimo colégio eleitoral português com o amplíssimo colégio eleitoral francês: menos de 500 ver sus cerca de 80 000 membros. E não pode invocar-se - a favor de uma solução que elimina o sufrágio universal e o substitui por um sufrágio limitadíssimo - o exemplo de um país que eliminou um sufrágio limitadíssimo por, praticamente, um sufrágio universal indirecto. Trata-se, pois, de movimentos sufragistas de sentidos opostos: redutor, cá, ampliador, lá. Em Portugal, entendeu-se que a autoridade do Chefe do Estado ficaria mais legitimada contraindo drasticamente o número de eleitores. Na França de De Gaulle, também desiludida do parlamentarismo e desejosa de um Estado forte personalizado no Presidente da República, alargou-se consideravelmente o colégio eleitoral. E após referendo popular de 26 de Outubro de 1962, o Chefe do Estado passou a ser eleito por sufrágio universal directo: mas, claro, isto não podia a Câmara Corporativa adivinhar em 1959, nem seria de esperar invocasse em 1971 ...
Portanto, contrariamente ao que declarou, em tal data, a nossa Câmara consultiva, o direito Constitucional comparado confirma o que a mesma Câmara havia defendido em 1951: "Apesar de todos os seus defeitos, o sufrágio universal é ainda, nos regimes republicanos, a melhor forma que até hoje se descobriu de assegurar a intervenção popular na determinação do rumo do Estado."
A Câmara Corporativa, para quem o Presidente da República parece ser essencialmente "uma entidade indiscutível e indiscutida, grandeza neutral, moderadora e apartidária", "o homem da confiança do povo" e símbolo da unidade nacional, considera que "a eleição presidencial não pode servir de ocasião para um debate de concepções- sobre a vida política, para um veemente embate ideológico de facções" e que "o sistema da eleição do Presidente da República directamente pela Nação não fora concebido pela Constituição como destinado a dar ensejo [...] a que se submetesse à deliberação da Nação o mérito relativo de dois ou mais programas políticos globais: foi concebido, antes, para que, o mais possível sem debate, dada a dignidade da função presidencial, que dele poderia naturalmente sair afectada, se plebiscitasse o homem, que continuasse a dar efectivação ao programa fixado na própria Constituição". A eleição presidencial não deveria, pois, resultar de uma campanha eleitoral com debate, mas sim consistir na consagração apoteótica de um homem, "aclamado una você, ungido pela Nação". Ao ler estas passagens, logo me acudiu à mente, com intensidade e luminosidade da evidência, a única conclusão possível: o Chefe do Estado não deveria ser o Presidente da República, mas o Rei?
O Sr. Casal Ribeiro: - Apoiado!
O Orador: - É certo que o Presidente da República, como Chefe do Estado, personifica a Nação soberana, é expressão e garantia da unidade nacional e da sua independência. Como tal, está acima das ideologias e das opiniões sectoriais. Mas ele também concentra os poderes executivo e legislativo, já que o Governo é da sua exclusiva- confiança (artigo 112.º) e nomeia e exonera livremente o Presidente do Conselho (artigo 107.º, § 1.º), que perante ele responde pela política geral do Governo (ar-
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tigo 108.º). Ë, pois, íntima a solidariedade entre o Governo e o Presidente da República e a política realizada por aquele é necessariamente aprovada - se não inspirada - por este.
Tanto basta para ser inaceitável o conceito apresentado pela Câmara Corporativa sobre a eleição presidencial. Se o Chefe do Estado fosse apenas o titular de um poder moderador, com única autoridade para prevenir e resolver os conflitos entre os outros poderes, então não haveria, de facto, lugar para debate político a preceder a eleição presidencial: tratava-se apeai as de escolher o homem cujas qualidades assegurassem ser capaz de cumprir tal função com sabedoria, firmeza e independência. E como discutir publicamente pessoas - em seus méritos e deméritos - não só viola o foro íntimo - que não é coisa de rua- como ainda pode afectar a aceitação nacional do eleito e proscrever os vencidos, conveniente seria a eleição por colégio restrito -de composição parlamentar e extraparlamentar -, sem debate prévio.
Admitir, porém, este sistema eleitoral quando o Presidente da República é o mais alto responsável da política do Governo, seria defender que não cabe à Nação apreciar tal política, que não tem o direito de dizer o que nela lhe agrada e o que lhe desagrada, que não lhe compete declarar o que quer e o que não quer. Seria reconhecer que a Nação apenas tem de decidir-se, ou pelo que esta, ou por uma coisa diferente que não sabe o que é: num como noutro caso, assinar um cheque em branco.
Exigir civismo e civilidade, verberar excessos, preveni-los e puni-los, é louvável, desejável e indispensável; amordaçar a Nação soberana é reprovável, intolerável, inadmissível num Estado de direito.
Portanto, também no que concerne à campanha eleitoral, não estou com a Câmara Corporativa ao reprovar, em 1959, a eleição do Presidente da República por sufrágio universal e directo.
Procurei demonstrar que o sistema vigente de eleição presidencial não decorre necessariamente, nem da estrutura fundamental da Constituição, nem do direito constitucional comparado. Reconheço, contudo, que tal não basta para o reprovar; há que estudá-lo em si mesmo e nas suas relações com o interesse nacional.
Desde logo, há duas perguntas fundamentais que exigem resposta clara: Quem elege? Por que elege?
Da análise do artigo 72.º, o que imediatamente chama a atenção é a representação fortemente minoritária da "Nação inorgânica". De facto, o número máximo de Deputados eleitores é de 130 (artigo 85.º) e a Câmara Corporativa, por si só, concorre com mais de 200 eleitores. Há ainda que acrescentar os representantes municipais e os dos conselhos legislativos e de governo das províncias ultramarinas, cujo número é fixado por lei ordinária, o que significa - pelo Governo.
Mas não é apenas quanto ao número dos seus membros que o colégio eleitoral depende do Governo: também quanto à forma de designação dos representantes dos municípios e dos concelhos do ultramar.
Tal dependência resulta ainda do facto de número significativo de procuradores à Câmara Corporativa serem de nomeação governamental: a) todos os da secção XII (Interesses de ordem administrativa"), os quais, segundo o Decreto-Lei n.º 43 178, de 23 de Setembro de 1960, podem atingir um terço do total; b) todos os das autarquias locais (presidentes e vice-presidentes de câmaras municipais); todos os das secções que não possam constituir-se.
A composição numérica e qualitativa do colégio eleitoral está, pois, fortemente dependente do Governo e, através dele, do Presidente da República.
Encaremos agora a organicidade do colégio eleitoral.
Não vou levantar o problema da fonte de que retiram a representatividade os Procuradores à Câmara Corporativa. Detenho-me num ponto mais singular: o da não representação das famílias no colégio eleitoral.
Em todos os tempos, sociedades e regimes políticos, a família foi, é c será a célula base da organização e da vida sociais, o elemento estrutural verdadeiramente essencial de qualquer sociedade, o único que, por direito natural, é sujeito de direitos inalienáveis e das garantias indispensáveis à prossecução dos seus fins próprios e u sua legítima intervenção na sociedade civil e política, que desses fins decorre.
O valor ímpar da família é claramente reconhecido no artigo 12.º da Constituição: por isso, e dada a concepção corporativa do Estado, espanta sobremaneira que os seus direitos políticos se limitem à eleição das juntas de freguesia. A família, enquanto tal, não está representada na Câmara Corporativa.
A organicidade do colégio a quem compete eleger o Chefe do Estado está, pois, amputada do seu elemento fundamental.
E eis que vem a segunda pergunta: Quem vota, por que vota?
Para que um voto singular seja realmente orgânico, tem de exprimir uma vontade colectiva. Por exemplo: para ser orgânico o voto do procurador que representa o sindicato nacional X, esse voto teria de traduzir o querer da maioria dos respectivos associados, Ora tal não é possível, pois não há campanha eleitoral. Dir-se-á que os membros da Câmara Corporativa são Procuradores com plenos poderes que lhes conferem a faculdade de, por si, decidirem em tudo o que convém aos seus representados. Não fazendo questão deste conceito de procuradoria, o que não consigo compreender é como o voto de um indivíduo traduz uma vontade colectiva a que não foi dada possibilidade de se manifestar. De facto, tal voto é individualista, e não orgânico.
E porque se decide o eleitor "orgânico", ao votar? Pelo interesse sectorial que representa e lhe confere o direito de votar? Pelas belas-artes? Pêlos desportos? Pela lavoura? Por certo ramo de comércio? Por determinada actividade industrial? Pela pesca e conservas? Pêlos transportes? Pelo turismo? Pela imprensa? Pelo teatro? Pêlos bancos? Pelo seu município? Pela sua província? Ou, plenamente consciente de que se trata de eleger o mais alto responsável pelos destinos da Pátria, vota em função do interesse nacional - como em recta intenção o interpreta-, vota como cidadão português, tout cairt? E se o eleitor "orgânico" vota assim, onde está a organicidade - dele e do voto?
Decorre desta análise, que:
1) O colégio eleitoral consignado no artigo 72.º da
Constituição só teoricamente é orgânico-individualista - na prática, é efectivamente individualista;
2) A Nação não se reconhece representada nesse colégio, pois só os Deputados foram eleitos por sufrágio universal e directo, tendo o Governo intervindo, directa ou indirectamente, na nomeação de muitos dos eleitores;
. 3). Por tal motivo, o sistema é altamente inconveniente, já que, como aqui foi dito em 1959 pelo Deputado José Saraiva, "não basta que se diga que é a Nação que elege o Chefe do Estado; também é necessário que a Nação sinta que o Chefe .do Estado é eleito por ela".
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Outra razão poderosa reforça a minha convicção quanto à inconveniência do sistema vigente da eleição (presidencial. Oito das doze secções da Câmara Corporativa correspondem a interesses de ordem económica (trinta e oito subsecções em cinquenta e uma) e representantes desses interesses concorrem na eleição das câmaras municipais. Ora, se valorizarmos, em todas as suas possíveis consequências, a tendência crescente e ultimamente revigorada da concentração em poucas mãos das instituições de crédito e dos meios de produção estreitamente ligados, teremos de reconhecer que assumem hoje particular relevância as seguintes palavras pronunciadas nesta Assembleia, em 1951, pelo Deputado Cerqueira Gomes, também em debate de revisão constitucional e a propósito da eleição do Chefe do Estado:
Mesmo que uma verdadeira representação orgânica fosse possível, mesmo que os interesses vivos da Nação pudessem genuinamente exprimir-se, nunca por meio deles poderiam designar-se convenientemente os órgãos soberanos do Estado. O sufrágio orgânico é bom no seu lugar, para a escolha dos que hão-de reger legitimamente a actividade própria dos grupos e para. os representar devidamente junto do Poder. Organizar corporativamente a Nação é organizar egoísmo, torná-los mais fortes!
Sr. Presidente: Eis expostos, como soube e pude, os dados desta questão - que tenho como fundamental - da eleição do Presidente da República. Exposição naturalmente condicionada pelo tempo e pela minha formação moldada noutros domínios, que não estes.
Procurei estudar o assunto com seriedade para poder decidir-me com objectividade, e o juízo que se me impõe é o da necessidade de regresso à eleição presidencial por sufrágio universal e directo.
E, a terminar, queria recordar - e não seria necessário, pois todos o temos presente - que nunca o povo português traiu a Nação. Se percorrermos, a traços largos, a nossa história, encontramo-lo com o Mestre de Avis, com o Prior do Grato, com D. João IV ...
O Sr. Agostinho Cardoso: - Esteve, sem votar!
O Sr. Casal Ribeiro: - E esteve também com a Nação no 28 de Maio!
O Orador: - E é a "Nação inorgânica", o povo português que verte o seu sangue no ultramar em defesa da integridade nacional.
Tenho dito.
Vozes: -Muito bem l
O orador foi cumprimentado.
O Sr. Almeida Garrett: -"Sr. Presidente: Subo a esta tribuna consciente das responsabilidades que sobre todos nós impendem ao intervir, de um modo ou outro, na modelação da lei fundamental do País. Responsabilidades que começam por encontrar a sua dimensão mais significativa no mandato que a Nação nos confiou no acto eleitoral por que se constituiu esta Câmara.
A validade política desse mandato impõe-nos, hoje como em Outubro de 1969, o respeito dos valores e princípios que informaram a sua concessão; e, porque os aceitámos ao propor-nos ao sufrágio e por eles obtivemos de .modo inequívoco a confiança da Nação, como seus Deputados não nos basta um respeito platónico, subtil
ou menos afadigado, exige-se-nos uma defesa prosseguida sem desfalecimentos nem desvios.
Para tal, necessário se torna estar duplamente atento: atento ao que significam os dados fundamentais do problema da institucionalização sócio-política para a marcha do nosso viver colectivo, segundo os reais e profundos sentimentos e anseios da consciência nacional; e atentos à nossa própria consciência, na serenidade indispensável de quem tem a obrigação de, por ela, colher, para além de si, as raízes e os ditames dias suas atitudes, sem se deixar aturdir por um ou outro assomo, natural mas indesejável, de um mero pessoalismo, que corresse atrás da tentação de construir à sua semelhança o mundo de ideias e de vontades que forjam e exprimem o verdadeiro querer colectivo da Nação.
Sr. Presidente e Srs. Deputados: Estamos a debater o problema da revisão constitucional. E para que nos entendamos claramente sobre os termos do debate, importa, antes de mais, apurar algumas questões prévias.
Comecemos pelo alcance da revisão.
Não são estes o momento nem d local apropriados para nos determos no delicado problema dos poderes de revisão; mas, porque se trata de tema fundamental sobre que já ouvimos vozes diversas e entendimentos desencontrados, penso que devemos atentar na dimensão válida da nossa tarefa no presente debate, dimensão que resulta, mais directamente do que poderia julgar-se, do próprio sentido da Constituição a rever perante o quadro sócio-político em que tem de actuar.
Pois que é, no fundo, uma Constituição? Mais que o sentido evidente e tradicional, de expressão as mais das vezes escrita, de uma organização racional dos poderes públicos - uma Constituição é a tradução de determinadas concepções fundamentais sobre a própria colectividade e a sua vida; há-de retratar aquela e ordenar esta, primeiro que tudo em obediência aos próprios fundamentos da solidariedade agregativa que lhe está na base, da comunhão de fins e de valores que molda o grupo como uma autêntica nação, que, sem negar os indivíduos e a sua personalidade, transcende o que neles há de parcial e efémero para contemplar, também o geral e duradouro. Uma constituição é, assim, antes de mais, a expressão de uma ordem, no sentido que o termo correntemente reveste nas ciências sociais: a tradução, estabilizada e estruturada, de um certo arranjo das relações que definem a própria vida do grupo, na medida em que este assuma dimensão validamente colectiva, isto é, na medida em que supere a simples junção de elementos individuais, com os seus interesses, as suas posições relativas ou de classes, os seus processos e as orientações que daí exclusivamente decorrem.
Compreende-se, assim, que esta ordem constitucional, sejam quais forem as vias técnicas por que venha a exprimir-se, para ser válida, tenha de responder às exigências que lhe são impostas pelos valores B fins, pelos ideais e concepções, pelo património cultural e histórico em que assenta a própria definição do grupo nacional: emergente dos termos e factores que o precipitam como realidade autónoma, aquela ordem só tem sentido inteligível enquanto o exprime adequadamente no campo da institucionalização sócio-política.
E assim em todo e qualquer grupo, em toda e qualquer sociedade. Quando nos debruçamos sobre uma sociedade concreta, situada no espaço e no tempo, sempre haveremos de isolá-la coimo um centro específico de conexões e de imputações: de conexões entre indivíduos e grupos menores, conexões que se formalizam e se tornam progressivamente independentes dos conteúdos concretos ou históricos das relações interindividuais que nos seus
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moldes se vazam recorrentemente; e também de imputações relevantes e essenciais, pois, à medida que aquelas inter-relações vão definindo grupos cada vez mais vastos ou afastados do puro domínio individual, surge uma vocação ide grupo, uma comunidade d" valores e finalidades que corresponde a uma verdadeira comunidade de destino, a uma linha de rumo autenticamente colectiva: esta comunidade torna-se sujeito e objecto das actuações específicas requeridas pela realização dos valores e fins que estão na base da sua existência, isto é, torna-se centro de imputações políticas.
Sabe-se como a ideia de estrutura política corresponde à integração sistemática dos princípios que regulam aquelas conexões especiais, definidoras de uma determinada fase história num âmbito social concreto; estrutura que, como já alguém sagazmente "notou, reflecte em .toda a sua grandeza o carácter pluridimensional da sociedade política. Simplesmente, tal integração sistemática opera-se tendo em conta os imputações essenciais há pouco referidas, ordena-se mediante o arranjo adequado das instituições reguladoras do viver colectivo - numa palavra, à estrutura política corresponde um regime político, definido pelo conjunto ide fins e forças políticas que inspiram e realizam o complexo normativo de que a sociedade necessita para sobreviver e progredir. A ordeira Constitucional encontrai aqui, na organização da sociedade como Estado, a expressão jurídico-politica de uma realidade sociológica.
Assim se compreende que, embora sobrepondo-se à realidade histórica de organização em que assentam, estrutura e (regime políticos não .possam perder de vista essa realidade subjacente, sob pena de invalidade funcional: adequação dos .princípios que regem os ordenações às formas concretas da convivência política que caracteriza o grupo; correspondência dos fins e forças políticas definidoras do regime aos valores e ideais à volta dos quais o grupo se agrega e se organiza - "sita correspondência e aquela adequação constituem exigências elementares de uma ordem constitucional válida.
E, pelo que toca ao regime, o facto, por evidente, não deixa, no entanto, de ser extremamente significativo. Pois de há muito se pensa que no conceito de regime não se contempla apenas o modo do exercício do poder, mas, também e indissociavelmente, a ideologia político-social que o anima. Assim, ao como dos processos constitucionais, juntar-se-ia o porquê justificativo da acção das forcas políticas: e um e outro transcenderiam o mero quadro jurídico-constitucional formal, exprimindo a organização do Estado numa construção porventura artificiosa ou falha de realismo, para tomar em consideração a razão de ser e o complexo de finalidades por que se orienta a organização política concreta.
Como autorizadamente se ensina, "em relação com os princípios político-sociais que determinam aquela razão de ser e essas finalidades, as instituições de governo não são mais do que processos neutros que transplantam aqueles princípios para a realidade, convertendo-os de potência em acto. Numa palavra: as formas constitucionais não operam, no vazio da razão abstracta, e constituem, em vez disso, métodos de assegurar o triunfo de certos fins, são modeladas por determinados desígnios".
Be ver uma constituição é, por isso, mais do que procurar a alteração de esquemas institucionais por si mesmos, averiguar a sua validade funcional perante o quadro sócio-político expresso nas estruturas e no regime que traduzem a ordem constitucional presente.
Rever uma constituição é tarefa que se desenvolve no plano da adequação institucional aos valores colectivos, fins e objectivos nacionais; é tarefa que se desenvolve no plano do ordenamento da vida colectiva em ordem à efectivação daqueles valores e fins.
Que sentido tem, então, nesse plano pragmático, a estabilidade do regime político em face da fenomenologia social essencialmente dinâmica? Que limites advirão do próprio conceito de ordem constitucional ao exercício do poder de revisão? Do que foi dito decorre que a estabilidade de um regime não se afere, exclusiva ou fundamentalmente, pela simples permanência formal das instituições que o acompanham, mas pelo modo como, nessa moldura institucional, se adequa a organização jurídico-politica da sociedade aos valores e fins que ela prossegue e quer realizar. Sendo assim, a estabilidade de um regime exige permanente esforço de adaptação às exigências impostas pela constante evolução das condições sociais em geral, frente aos objectivos essenciais visados pela Nação.
Em resposta à permanência dos valores, ideais, fins e concepções que definem a própria realidade nacional, um regime é algo de essencialmente dinâmico, cuja estabilidade nada terá a temer do dinamismo vital que a sociedade exiba enquanto responder ao desafio da vida com o entusiasmo da vida e não se condenar a opor utopicamente ao apelo da evolução colectiva a renúncia do ancilosamento injustificado e suicida.
Se, por um lado, este é o sentido que assume, no plano proposto, a estabilidade de um regime político em face da fenomenologia social essencialmente dinâmica, por outro lado, se bem penso, o próprio conceito de ordem sócio-política delimita o campo do exercício do chamado "poder de revisão".
Na verdade, ele há-de exercer-se sempre e apenas para manter a adequação das formas e arranjos institucionais aos elementos teleológicos e ideológicos que definem a própria realidade nacional e se plasmam no regime político por que a Nação se estrutura. Aquela adequação dá os parâmetros do poder de revisão, cujos limites respondem, assim, à permanência dos valores e fins essenciais da Nação.
Tomar o poder de revisão como um autêntico poder constituinte, no sentido da capacidade e legitimidade de criar um novo ordenamento global da vida colectiva, supõe, como premissa irrecusável, a aceitação do princípio do desacordo fundamental entre a essência do regime político, as suas traves mestras e os fundamentos ético-políticos em que o grupo nacional assenta.
Esta a questão; e não vale a pena pensar-se em a ladear, por mais hábil que seja a escolha das veredas, por mais sibilino que seja o formalismo de pensamento em que a tese da vacuidade do poder revisionista se envolva.
Comecemos, então, por esta questão prévia da nossa revisão constitucional.
Processou-se ela no quadro do regime instaurado e desenvolvido a partir da Constituição de 1933. Regime de cujas características se podem isolar, como fundamentais, a concepção orgânica da Nação, a sujeição de fórmulas totalitárias na estruturação estadual da vida colectiva, a defesa de uma concepção antipartidária no arranjo das forças políticas.
A primeira característica diz respeito à própria ideia de comunidade que é a Nação; ideia que se opõe, como é sabido, à concepção atomística de todas as sociedades, mesmo da sociedade nacional, tão em moda desde o último quartel do século XVIII, sob a influência da herança iluminista e dos enriquecimentos que os primeiros lustres do século XIX lhe haviam de proporcionar, levando-a à célebre formulação de Bentham. Sabe-se como tal concepção tem de assentar, logicamente, nos parâmetros clássicos do comportamento individual, definidores do próprio quadro colectivo; isto é: como tal concepção atomiza a pró-
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pria ideia de grupo, de sociedade, pensa-a constituída por e redutível a um simples somatório de indivíduos, cuja associação se funda essencialmente em orientações individuais que pela via do grupo poderiam ser melhor prosseguidas. O carácter colectivo da associação está todo imbuído de valorações individuais; e a estas acaba por ir pedir-se, no fundo, o padrão por que se agrupam instituições e processos.
Compreende-se, assim, que o chamado liberalismo - enquanto técnica da ordenação dos poderes políticos, processo de governo, arranjo de constituições - que o chamado liberalismo tivesse sido, antes de mais, o afloramento histórico de um modo de encarar a sociedade e a sua vida.
Deslumbrados com a visão mecânico-causal da sociedade que, entronizado o racionalismo setecentista, assimilava todos os objectos do conhecimento nas mesmas possibilidades de explicação científica, com métodos semelhantes e teorizações equiparáveis - os criadores do regime liberal não fizeram mais do que responder, no inundo da ordenação política, aos apelos a que tinham acudido no campo das concepções explicativas lógico-formais.
Por isso Cabral de Moncada pôde dizer, com a autoridade indiscutível do seu saber e da sua independência, que o liberalismo foi o que foi porque transmutou uma categoria de pensamento explicativo - a visão mecânico-causal da sociedade - numa categoria de pensamento ético-político. a (realização do bem comum pela efectivação da maior forma possível de simples interesses individuais, expressa na fórmula clássica da maior felicidade do maior número através da máquina política do Estado liberal.
Quando se aceita, ainda hoje, que o monopólio da verdadeira representatividade de um grupo nacional é detido, com feroz exclusivismo, pelas fórmulas tradicionais expressas ma experiência liberal-individualista, estou em crer que, frequentemente, se esquecem os liames fundamentais e necessários entre aquele exclusivismo de representação e as concepções atomísticas da sociedade.
Esquecimento que poderia ainda ser desculpável se, como geralmente não é o caso, daquelas concepções atomísticas se tirassem todas as consequências, nomeadamente no campo dos programas de acção governativa e da responsabilidade do Estado pela marcha do viver colectivo.
Estas responsabilidades, crescentes de dia a dia, não significam tão-somente aumento de complexidade da vida social; significam, também e sobretudo, o plano específico em que se desenrola essa vida social, os elementos que fazem da sociedade uma realidade autónoma, ponto de encontro e de realização do complexo de orientações colectivas dos indivíduos membros do respectivo grupo.
Perante este significado, este reconhecimento de valores e fins que os indivíduos partilham colectivamente, comunitàriamente, supra-individualmente - perante tudo isto que é das concepções atomísticas da sociedade nacional e das decorrentes exigências dos esquemas liberais na organização dos poderes políticos e estruturação constitucional do País? Que é do monopólio clássico da representatividade da Nação pelo voto directo dos cidadãos eleitores?
Não me preocupo com a resposta e passo à segunda das características isoladas no regime político da nossa Constituição.
Todos conhecemos a tentação de confundir as concepções orgânicas, correspondentes ao reconhecimento de uma teleologia da nação, com os figurinos totalitários. Tentação que pode revestir a inocência da ignorância, ou o gosto pelas explicações fáceis, ou a inclinação a aproveitar as fendas abertas por uma propaganda sistemática. Seja como for, sempre a tentação do engano. Pois, na concepção totalitária, independentemente do modo por que se arranjem as estruturas e instituições políticas, os fins últimos do grupo são sempre coincidentes com os do Estado e absorvidos por ele, que vê invertida, por hipertrofia e a seu favor a sua posição instrumental relativamente u nação e à dimensão colectiva dos cidadãos. Deste modo, o pessoalismo teleológico das concepções orgânicas (nomeadamente na feição corporativa da nossa ordem constitucional) opõe-se por definição e essência ao estadismo absorvente do Estado totalitário.
Há que não confundir, para não se cair no risco de ter de se proclamar que o liberalismo (seja qual for a sua forma e a sua certidão de idade) tem o monopólio do autêntico respeito pela pessoa humana.
Com o que, de certo modo, caímos na terceira das características apontadas à nossa ordem constitucional: ;i rejeição das concepções partidárias no arranjo e expressão das forças políticas.
Ë por de mais conhecida a evolução histórica dos partidos políticos, nomeadamente na Europa. Apesar disso, convirá recordar que, começando por ser simples meios de expressão da opinião política, ao serviço dos cidadãos, cuja personalidade individual respeitavam, os clássicos partidos de opinião sofreram a sua crise de crescimento. Cresceram e modificaram-se, e modificaram-se alterando completamente o sentido inicial da estrutura política em que participavam.
Na verdade, perante a expansão da massa eleitoral e a correspondente tendência ao seu próprio crescimento, os partidos de opinião foram-se transformando em partidos de massas, que, importando para o plano político a fenomenologia da massificação social, acabam por se dirigir a homens que, de um modo ou outro, perderam a sua independência. Por isso Burdeau pôde dizer que o partido não se fez para que cada um encontre nele um" expressão da sua autonomia.
Os cidadãos só podem fazer-se ou/vir aforares dos partidos, cujo dogmatismo devem aceitar; podem, no entanto, escolher entre os partidos existentes para oferecer o >seu voto, mas não podem actuar eficazmente sobre o seu conteúdo doutrinal. E conclui: como a opinião real do País se encontra reduzida ao silêncio, o poder passa da Nação para os próprios partidos.
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O Orador: - E "precisamente isto o que rejeita a nossa ordem constitucional, por coerência com as suas demais concepções fundamentais, por respeito para com os profundos e reais interesses e valores da Nação, por prudente relembrar do activo e passivo da experiência portuguesa de ordenação da vida política em bases partidárias.
Pois bem: se não me equivoquei no isolamento das três características dominantes da nossa ordem constitucional, logo se vê que elas constituem marcos inultrapassáveis dos nossos poderes de revisão. Na verdade, quando em Outubro de 1969 nos apresentámos ao sufrágio, o eleitorado sabia, porque foi amplamente informado a esse propósito, que a Câmara a eleger tinha poderes para proceder à revisão constitucional.
Os princípios fundamentais que informam a ordem constitucional caracterizada participavam, com o devido relevo, dos nossos programas eleitorais e, nessa medida, foram pública .e amplamente debatidos.
Daqui decorre o plano doutrinal e político em que o mandato recebido se situa.
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Como poderíamos, agora, esquecer tudo isso, sorrir olimpicamente sobre o eleitorado, que nas urnas disse o que queria de modo inequívoco, .e buscar nos eventuais tesouros da nossa bagagem soluções que aos alfarrábios ultrapassados dessem pelo menos a aparência de encadernações de vanguarda e progressismo?
Bem se compreende, por isso, que a proposta de revisão se .enquadrasse nos marcos definidores da nossa ordem constitucional.
Como apreciá-la e discuti-la?
A revisão actual, que não pode deixar de considerar-se oportuna, determinou trabalho exaustivo da comissão eventual; era, aliás, o que podia prever-se, dado o maior fôlego e extensão daquela revisão relativamente a todas as anteriores, pese embora aos que, arrebatados na sua euforia reformista, teimam em considerá-la, de "via reduzida". Trabalho exaustivo requerido, além disso, pela preocupação honesta de, na busca das melhores soluções, envolver todos os textos na discussão, a partir de uma, decisão de V. Ex.ª, Sr. Presidente, que teve correspondência processual na comissão eventual, ao afastar-se esta, deliberadamente, de uma votação que. poderia, com comodidade, levar à rejeição dos projectas.
Como membro da comissão eventual, não lamento tal sacrifício, mas pesa-me, pela comissão em si, ao cabo dessa análise, ver invertido o sinal da apreciação. Será que só amadureceremos politicamente quando, peio efectivo aproveitamento das possibilidades procesisua-is1, deixarmos de querer obter o benefício da discussão com vista às conclusões mais válidas e nos descartarmos, assim, da apreciação injusta de que se quis evitá-la?
Suponho ter deixado esboçado, com suficiente clareza., o meu pensamento sobre a ordem constitucional presente na revisão, para que não possam ser alimentadas dúvidas sobre a correspondência e adequação daquela ordem aos profundos anseios e valores por que se estrutura e orienta a nossa comunidade nacional.
Alguns pontos há, no entanto, que requerem um pouco mais de atenção: O primeiro diz respeito à forma de eleição do Chefe do Estado, problema Intimamente relacionado, aliás, com alguma da exposição realizada.
Foi já apresentada à Câmara justificação para não ser alterado o sistema de eleição do Chefe do Estado, justificação que, numa perspectiva desapaixonada e objectiva, realista e consciente de que a oportunidade também é um valor em política - e não dos menores - teremos de considerar satisfatória.
Não adianta que nos enredemos em. mensurar o grau de pureza do corporativismo português, que, aliás, ninguém apresenta como integral; não adianta querer demonstrar que os sistemas encontram a sua perfeição mais na adequação às realidades do que no decalque dos figurinos de tratado com que se alimenta a lógica abstracta de políticos românticos.
Talvez nada disso adiante; mas não poderá ser esquecido que todos corremos o risco de ver sair, de um enredo de conceitos, mágica e indemonstradamente, a conclusão de que o corporativismo anula o cidadão como elemento político, quando se reconhece o facto de aos cidadãos- ser atribuída, na concepção corporativa, projecção política como membros de sociedades válidas e relevantes: família, município, corporação. Será que possamos considerar politicamente anulado o indivíduo porque só pode afirmar-se "na vida política e só terá voto, na medida em que faça parte de uma sociedade familiar, municipal, profissional, cultural ou religiosa"? Insisto na pergunta: Será que a fonte da legitimidade do poder reside apenas
nos cidadãos1 desenraizados, dos laços que natural e inexoravelmente os levam a associar-se?
Não nos enredemos em palavras. O sistema de eleição do Chefe do Estado rumou, em 1959, para a fórmula orgânica que era corolário do esquema constitucional vigente desde 1933. Mais do que a perfeição ou o esgotamento do princípio na organização do sufrágio, o que se torna claro é que o sistema tendeu coerentemente para dar expressão política ao corporativismo na organização do Estado.
E não é a simples circunstância de a Câmara Corporativa possuir meros poderes consultivos que exclui a legitimidade de se invocarem os princípios do corporativismo político para justificar o actual modo de eleição do Presidente da República.
Pois se, de acordo com a Constituição Política, o sistema é presidencialista ou pessoal e não parlamentar, e o órgão supremo é o Chefe do Estado, e não as assembleias, a pedra de toque para, aferir do carácter corporativo do regime há-de ser a forma de designação daquele e não o processo de eleição destas ou os poderes que a cada uma delas se atribuem em certo momento.
Um outro dos pontos a precisar, na lógica do que atrás ficou dito, é o problema fundamental das liberdades individuais.
Nesta matéria, comecemos por não nos deixar tentar por esquemas demasiado simples e só aparentemente claros, que nos reduzem a. opção não se sabe bem se à escolha entre um regime totalitário e um liberal, se à escolha entre um totalitarismo do Estado e um totalitarismo da sociedade.
Que, sobretudo depois da crise do capitalismo liberal subsequente à 1.ª Grande Guerra, por toda a, parte Estado e sociedade se aproximaram, é indiscutível. O gozo natural das liberdades individuais levou a- exploração, à desagregação social; o exercício da liberdade conduziu à sua própria destruição.
O Estado passou a intervir no curso do processo colectivo, umas vezes para o dirigir inteiramente, outras vezes para tentar corrigir os seus vícios. Ao mesmo tempo, as grandes forças sociais que se .geraram no exercício e na autodestruição da liberdade querem tomar o Estado como instrumento dos seus objectivos. E isto mesmo onde se adoptou declaradamente o modelo totalitário: não vemos, na União Soviética e nos países satélites, uma nova burguesia transformar o que se queria que fosse o socialismo igualitário num simples capitalismo de classe ou de posições?
Em face deste panorama, sem dúvida verdadeiro, surpreende que se queira ver na simples reafirmação das liberdades do indivíduo a panaceia de todos os males.
Em história, as mesmas causas produzem os mesmos efeitos. Foi a liberdade ilimitada que se destruiu a si própria, e será ela que se voltará a negar.
Que é o totalitarismo da sociedade tecnocrática e de consumo se não a lógica consequência do exercício da liberdade sem freios, pela qual os poderes se tornam cada vez mais fortes e os que o não são se deixam por ela "livremente dominar"? Que é o totalitarismo do Estado se não o resultado excessivo da reacção colectiva contra os abusos da liberdade que minavam os próprios fundamentos da vida comum?
Se se quer salvaguardar a liberdade e a autenticidade do homem realizado, o que tem de procurar-se é um ponto de equilíbrio onde o poder do Estado não sufoque as naturais formas de expressão social dos indivíduos e dos grupos, mas onde a sua autoridade seja suficientemente forte para defender a liberdade de si própria e a liberdade de todos e de cada um.
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2088 DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 103
É isso que precisamente visa o Estado social, em cuja construção todos estamos empenhados, e que corresponde, com a exactidão das coisas humanas, aos anseios e interesses da sociedade nacional dos nossos dias, embaraçada em capciosas opções e verdadeiramente ameaçada nos seus fundamentos valorativos e nas possibilidades da sua efectivação.
Estado social não é, nem nunca foi, estado socialista ou totalitário. Estado social é sim aquele que, respeitando as liberdades individuais, as limita para que se tornem efectivas e intervém na vida colectiva a fim de assegurar que tais liberdades sejam de todos e não só de alguns e postula uma igualdade que, da simples igualdade formal dos sistemas liberais se transforme em autêntica igualdade substancial.
Estado social, como afirmou a nossa maior autoridade na matéria, "é um poder político que insere nos seus fins essenciais o progresso moral, cultural e material da colectividade, numa ascensão equilibrada e harmoniosa que, pela valorização dos indivíduos, e pela repartição justa das riquezas, dignifique o trabalho".
Já o acentuámos: na concepção personalista que informa a nossa ordem jurídica, o homem é fim das instituições e por elas servido, havendo sem dúvida limites intransponíveis no respeito pela dignidade da pessoa humana, que se reflectem no reconhecimento de direitos e garantias fundamentais. Por isso, e ainda bem, nunca deixam os indivíduos de se impressionar com o quadro pintado a negras cores, do amordaçamento da personalidade no estado totalitário.
Mas é já difícil reconduzir a esse quadro, com logicismo simplista e impugnável apreciação factual, sociedades baseadas, como a nossa o está, naquela concepção personalista e cristã.
Não será forçar a lógica o querer relacionar com o direito ao trabalho pretensas limitações drásticas da actividade sindical? E não existirá um desvio factual em ver a negação daquele direito num desumano impedimento da emigração,? Valeria a pena, a este e outros propósitos, ver como neles "e envolveu pelo menos muito exagero, com risco de criar um grande equívoco à volta de tudo. E, assim, ver também como, de degrau em .degrau, se levam os problemas à zona da pura abstracção em que se criam mitos com. um gáudio intelectual que pode ser grandioso, mas que em utilidade efectiva para o progresso social não consegue deixar de ser magro.
Mas passo ao ponto seguinte.
O Sr. Sá Carneiro: -V. Ex.ª dá-me licença? O Orador: - Faça favor.
O Sr. Sá Carneiro: - Tenho ouvido o que V. Ex.ª disse com o maior gosto e muita atenção e tenho realmente sido levado uma ou outra vez a tentar interrompê-lo para pedir um ou outro esclarecimento, mas tenho-me abstido, porque naquela altura precisamente em que V. Ex.ª parece que vai dar resposta às perguntas, deixa-as em suspenso e passa adiante (risos), e só por isso não intervi mais vezes.
Directamente com respeito ao direito ao trabalho, de que ontem aqui falei, precisamente nos termos que V. Ex.ª reproduz, afirma que poderá haver alguma confusão na relação estabelecida entre liberdade "indicai e direito ao trabalho, entre limitação ao direito à emigração e direito ao trabalho. Eu não vejo bem como, confesso, e era esse esclarecimento que gostava de pedir, lembrando que, inclusivamente a Câmara Corporativa, pela primeira vez, creio eu, no seu parecer reconhece expressamente que os direitos de greve e de lock-out são autênticos direitos que entre nós são negados, denegados - na expressão da Câmara Corporativa -, por virtude de nos situarmos numa economia em desenvolvimento.
Lembrando, designadamente, esse passo do parecer, eu pergunto realmente se não há íntima relação entre a liberdade fundamental do direito ao trabalho e a liberdade instrumental que, quanto à emigração, é simultaneamente instrumental em .relação ao direito ao trabalho e em relação ao próprio direito à vida. Quanto à liberdade sindical, é evidentemente instrumental em relação ao direito ao trabalho.
Era esse .esclarecimento que gostava de pedir. Então essas liberdades não são instrumentais em relação ao direito ao trabalho e a sua denegação não implica que este é coarctado na medida em que, não fornecendo os meios, estamos a coarctar os fins, a denegá-los?
O Orador: - Agradeço a V. Ex.ª toda a atenção com que me ouviu, deferência que não estranho, dada a circunstância de representarmos o mesmo círculo e de sermos ambos, desde o início, construtores e defensores de um são pluralismo político. Suponho que a presença de V. Ex.ª nesta Casa dispensaria, mesmo, estas explicações.
Relativamente à pergunta de V. Ex.ª, eu devo pôr o problema nos precisos termos em que o enunciei. O que eu disse, ao referir a minha dúvida (dúvida, e não afirmação) de se não seria forçar a lógica o querer relacionar aqueles factos e as afirmações pretensamente decorrentes deles, foi que me parecia existir uma certa vaguidade, um certo carácter vago na ligação entre a afirmação realizada e a situação de facto. E acentuava, fundamentalmente - começarei por isso, se mo permite -, o problema da emigração.
Os números dizem que emigraram legalmente, nos últimos cinco anos, isto é, de 1966 a 1970, 428 846 indivíduos, enquanto de 1961 a 1965 apenas tinham emigrado 261 285 e de 1956 e 1960 162 179. Quer dizer: no campo da emigração, da emigração legal, o que se encontra é o crescimento espectacular no número de pessoas emigradas. E, a menos que haja outros números, outras (indicações que porventura existam, mas que eu não possuo, sinto-me um bocadinho perplexo, perguntando a mim mesmo como é que esta evolução das correntes migratórias se pode ligar precisamente a uma atitude de desumana limitação, em .sentido inverso à da situação de facto de que tentei dar ideia através destes números.
O Sr. Sá Carneiro: - Eu não falei em números, falei em legislação. A minha dúvida é essa. O que me impressionava era a disciplina jurídica da emigração, não os números da emigração legal.
Foi nesse sentido que falei na desumana disciplina - de a emigração coarctar desumanamente a emigração.
O Orador: - Mas mesmo assim os números aumentaram.
O Sr. Sá Carneiro: - Não, olhe que não, e os clandestinos possivelmente serão muitos mais.
O Orador: - São com certeza.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Almeida Garrett, V. Ex.ª está a aproximar-se muito do limite regimental dos 45 minutos. Depende da generosidade de V. Ex.ª dar o seu tempo a outrem, é claro.
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Mas gostaria de saber se V. Ex.ª deseja utilizar da faculdade regimental de uma prorrogação que, como sabe, não pode ser muito ampla.
O Orador:-Submeto-me; forçado a cumprir voluntariamente o Regimento, quero terminar com uma afirmação de confiança, com uma afirmação de fé.
Situando-se no quadro de uma ordem, que espelha a vontade inequívoca da Nação, una e indivisível, projectada no futuro pela sua irrecusável vocação histórica, a proposta de revisão contempla, com respeito actuante, as coordenadas fundamentais da nossa individualidade nacional. Respeito actuante, pois, ao mesmo tempo que proclama os permanentes princípios da unidade nacional com todas as suas implicações, afeiçoa-lhe as vias e técnicas aconselhadas a aumentar a eficiente realização dos seus valores, penhor seguro da sua perenidade neste mundo complexo em que vivemos. As disposições propostas sobre o ultramar português revestem esse significado, este significado de unidade indiscutida, pelo que são, a meu ver, de aplaudir.
Eis, o mais sucintamente que pude, as razões por que, Sr. Presidente, dou o meu voto na generalidade à proposta governamental sobre a revisão da Constituição.
Vozes: -Muito bem!
O orador foi cumprimentado.
O Sr. Presidente: -Srs. Deputados: Vou encerrar a sessão.
Quero aproveitar para pedir a colaboração dos Srs. Deputados inscritos para este debate no .sentido de se prepararem de modo a podermos concluir o mesmo debate no decurso da próxima semana.
Amanhã haverá sessão à hora regimental, tendo como ordem do dia a continuação da discussão na generalidade da proposta e dos projectos de lei de alterações à Constituição Política.
Está encerrada a sessão.
Eram 19 horas.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão:
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior. António Júlio dos Santos Almeida. António Lopes Quadrado.
Armando Júlio de Roboredo e Silva. Augusto Domingues Correia. Francisco Esteves. Gaspar de Carvalho. Henrique Veiga de Macedo. João António Teixeira Canedo.
João Duarte Liebermeister Mendes de Vasconcelos Guimarães.
João Pedro Miller Pinto de Lemos Guerra. João Ruiz de Almeida Garrett. Joaquim Carvalho Macedo Correia. Joaquim Germano Pinto Machado Correia da Silva. José Dias de Araújo .Correia. José de Mira Nunes Mexia. José da Silva. Júlio Dias das Neves. Lopo de Carvalho Cancella de Abreu. D. Luzia Neves Pernão Pereira Beija. Manuel Artur Cotta Agostinho Dias. Manuel Elias Trigo Pereira. Manuel José Archer Homem de Mello. Manuel Martins da Cruz. Maximiliano Isidoro Pio Fernandes. Bui Pontífice Sousa. D. Sinclética Soares dos Santos Torres. Tomas Duarte da Câmara Oliveira Dias. Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
António Pereira de Meireles da Rocha Lacerda.
Armando Valfredo Pires.
Camilo António de Almeida Gama Lemos de Mendonça.
Carlos Eugênio Magro Ivo.
Deodato Chaves de Magalhães Sousa.
Fernando Diavid Laima.
João Paulo Dupuich Pinto Castelo Branco.
José Guilherme de Melo e Castro.
José Vicente Pizarro Xavier Montalvão Machado.
Luís António de Oliveira Ramos.
Lufo Maria Teixeira Pinto.
Manuel Homem Albuquerque Ferreira.
Manuel Joaquim Montanha Pinto.
Teodoro de Sousa Pedro.
Victor Manuel Pires de Aguiar e Silva.
O Redactor, José Pinto.
IMPRENSA NACIONAL
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