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REPÚBLICA PORTUGUESA
SECRETARIA-GERAL DA ASSEMBLEIA NACIONAL E DA CÂMARA CORPORATIVA
DIÁRIO DAS SESSÕES
N.° 144 ANO DE 1971 11 DE DEZEMBRO
ASSEMBLEIA NACIONAL
X LEGISLATURA
SESSÃO N.° 144, EM 10 DE DEZEMBRO
Presidente: Ex.mo Sr. Carlos Monteiro do Amaral Netto
Secretários: Ex.mos Srs.
João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira
Amílcar da Costa Pereira Mesquita
SUMARIO: — O Sr. Presidente declarou aberta a sessão ás 16 horas.
Antes da ordem do dia. — Leu-se o expediente.
O Sr. Presidente informou haver sido recebida, remetida pela Presidência do Conselho, uma nota informativa do Sr. Ministro da Saúde e Assistência, endereçada aos Srs. Deputados, a quem foi distribuída, e que será publicada no Diário das Sessões.
Usaram da palavra os Srs. Deputados Cunha Araújo, para um requerimento; Sousa Pedro, sobre problemas de interesse para o arquipélago dos Açores; Barreto de Lara, acerca da política ultramarina, e Alberto de Alarcão, para se referir à oficialização do curso de Arquitectura Paisagística.
Ordem do dia. — Continuação da discussão na generalidade da proposta de lei de autorização das receitas e despesas para 1972.
Usaram da palavra os Srs. Deputados Themudo Barata, Eleutério de Aguiar, Lopes Quadrado e Oliveira Dias.
O Sr. Presidente encerrou a sessão ás 18 horas e 15 minutos.
O Sr. Presidente: — Vai proceder-se à chamada.
Eram 15 horas e 45 minutos.
Fez-se a chamada, à qual responderam os seguinte» Srs. Deputados:
Agostinho Gabriel de Jesus Cardoso.
Albano Vaz Pinto Alves.
Alberto Eduardo Nogueira Lobo de Alarcão e Silva.
Alberto Maria Ribeiro de Meireles.
Álvaro Filipe Barreto de Lara.
Amílcar da Costa Pereira Mesquita.
António Fausto Moura Guedes Correia Magalhães Montenegro.
António da Fonseca Leal de Oliveira.
António Júlio dos Santos Almeida.
António Lopes Quadrado.
António Pereira de Meireles da Rocha Lacerda.
António de Sousa Vadre Castelino e Alvim.
Armando Júlio de Roboredo e Silva.
Augusto Salazar Leite.
Bento Benoliel Levy.
Carlos Eugénio Magro Ivo
Carlos Monteiro do Amaral Netto
Delfino José Rodrigues Ribeiro.
Eleutério Gomes de Aguiar.
Fernando Dias de Carvalho Conceição.
Fernando do Nascimento de Malafaia Novais.
Filipe José Freire Themudo Barata.
Francisco António da Silva.
Francisco Correia das Neves.
Francisco Esteves Gaspar de Carvalho.
Francisco João Caetano de Sousa Brás Gomes.
Francisco Manuel de Meneses Falcão.
Francisco de Moncada do Casal-Ribeiro de Carvalho.
Gabriel da Costa Gonçalves.
Humberto Cardoso de Carvalho.
João Bosco Soares Mota Amaral.
João Duarte Liebermeister Mendes de Vasconcelos Guimarães.
João Duarte de Oliveira.
João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira.
João Paulo Dupuich Pinto Castelo Branco.
João Pedro Miller Pinto de Lemos Guerra.
Joaquim Germano Pinto Machado Correia da Silva.
José Coelho de Almeida Cotta.
José Dias de Araújo Correia.
José Maria de Castro Salazar.
José Vicente Cordeiro Malato Beliz.
Manuel Artur Cotta Agostinho Dias.
Manuel de Jesus Silva Mendes.
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Manuel Martins da Cruz.
Manuel Monteiro Ribeiro Velos).
D. Maria Raquel Ribeiro.
Pedro Baessa.
Prabacor Rau.
Rafael Ávila de Azevedo.
Raul da Silva e Cunha Araújo. Rogério Noel Peres Claro.
Rui Pontífice Sousa.
D. Sinclética Soares dos Santos Torres.
Teodoro de Sousa Pedro.
Teófilo Lopes Frazão.
Tomás Duarte da Câmara Oliveira Dias.
Vasco Maria de Pereira Pinto Costa Ramos.
O Sr. Presidente: — Estão presentes 57 Srs. Deputados, número suficiente para a
Assembleia funcionar em período de antes da ordem do dia.
Eram 16 horas.
Antes da ordem do dia
Deu-se conta do seguinte
Expediente
Exposição de Maria Helena Machado Pinto.
Exposição do Sindicato Nacional dos Profissionais de Escritório do Distrito do Porto.
O Sr. Presidente: — Enviada pela Presidência do Conselho está na Mesa uma nota informativa do Sr. Ministro, da Saúde e Assistência, endereçada aos Srs. Deputados, a quem vai ser distribuída, e que vai ser publicada no Diário das Sessões.
Tem a palavra para um requerimento o Sr. Deputado Cunha Araújo.
O Sr. Cunha Araújo: — Sr. Presidente: Pedi a palavra para enviar para a Mesa o seguinte
Requerimento
Ao abrigo das disposições regimentais, requeiro que, pelo Ministério da Justiça, me seja dada informação sobre se se encontra em preparação alguma reforma substancial do nosso Código de Processo Penal, de há muito reconhecida como necessária e urgente, ou, para já, a promulgação da legislação sua complementar, tendente a tornar efectivas as inovações resultantes da recente revisão Constitucional, nomeadamente no respeitante à matéria dos direitos, liberdades e garantias individuais. E também se está em curso, para promulgação imediata — independentemente de uma reforma geral que não pode deixar de fazer-se do respectivo Código —, a preparação de algumas normas de direito pernil substantivo que, por um lado, sejam sequência lógica das já referidas inovações constitucionais e, pelo outro, considerem uma necessária melhoria do nosso sistema de execução das penas.
Justificando, nos termos e para os efeitos da alínea d) do artigo 11.º do Regimento desta Assembleia Nacional.
O requerimento visa satisfazer um anseio e expectativa latentes nos meios judiciários e, simultaneamente, elucidar a opinião pública interessada, mormente face à proposta de lei n.º 17/X que acaba de nos ser remetida para consideração e cujo preâmbulo nos previne contra os objectivos restritos que imediatamente procura, apenas de uma «integração do processo criminal no espírito de algumas das mais relevantes alterações introduzidas na Constituição Política» vigente, mercê da manifesta tendência renovadora desta Assembleia, que urge traduzir em termos de utilidade prática no que concerne ao direito criminal substantivo e adjectivo a pedirem revisão e actualização coerente.
O Sr. Sousa Pedro: — Sr. Presidente: Ao usar da palavra pela primeira vez nesta sessão legislativa depois da visita oficial ao distrito de Ponta Delgada dos Srs. Ministros do Interior e da Educação Nacional, desejo, antes de mais, dirigir a SS. Ex.as uma palavra de saudação, seguindo, aliás, uma praxe que entrou nos hábitos desta Casa e que cumpro com gosto.
O Sr. Ministro do Interior visitou o distrito em fins do passado mês de Agosto, e, embora tivesse ido, como disse, «sobretudo para ver, para ouvir, para conhecer», deixou-nos, contudo, a certeza de que o distrito pode cantar com o seu alto valimento na defesa e concretização das suas justas aspirações e anseios.
Agradecendo a compreensiva atenção com que S. Ex.ª soube e quis escutar-nos, o distrito aceita com regozijo a oferta espontânea, feita pelo Ministro, dos seus bons ofícios, e desde já nela põe boa parte das suas melhores esperanças.
O Sr. Ministro da Educação Nacional, acompanhado pelo Sr. Subsecretário de Estado da Juventude e Desportos, esteve nos Açores, em visita oficial, nos primeiros dias do pretérito mês de Novembro.
Por toda a parte onde passou, o Ministro da Educação recebeu provas iniludíveis do apreço em que todos temos a sua extraordinária obra de educador e estadista.
À sua clarividente e pronta capacidade de decidir ficaram os Açorianos a dever desde logo a concretização de diversas realizações e benefícios, por que aspiravam há muito, constantes dos despachos que assinou in loco em 2, 3 e 4 de Novembro. E se não deixou tudo feito e muito há ainda a esperar — nomeadamente a instalação em Ponta Delgada de uma escola normal superior e do ensino politécnico —, ficou-nos a certeza de que talvez mais cedo do que se possa prever o Ministro voltará aos Açores e nessa altura outras soluções hão-de surgir para problemas que não puderam agora ser resolvidos. Pela matéria a que já deu despacho e pelas decisões que, acreditamos, cedo virá a tomar, o distrito de Ponta Delgada está grato ao Ministro da Educação — e honro-me de em seu nome poder exprimir aqui esse agradecimento.
Sr. Presidente: No momento cm’ que está a ser discutida nesta Câmara a proposta de lei de autorização de receitas e despesas para 1972, e a poucos dias da esperançosa notícia da transferência para o Estado dos encargos com o ensino básico nas ilhas adjacentes, parece--me oportuno formular algumas breves considerações acerca da situação aflitiva em que se encontram as juntas gerais dos distritos açorianos.
A medida que o Governo acaba de adoptar vem melhorar bastante este panorama de aflição. E de toda a justiça, portanto, que aproveite esta oportunidade para dirigir ao Governo, e em especial ao Sr. Presidente do Conselho, uma palavra de sincero louvor e reconhecimento pela aprovação do decreto-lei que desde já liberta as juntas gerais de uma parte substancial das despesas obrigatórias com os serviços do Estado a seu cargo.
Depois da Lei n.º 5/70 é este o primeiro passo realmente eficaz, à luz da problemática insular, da política
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de correcção de desequilíbrios regionais que o Governo tem vindo a prosseguir com louvável pertinácia.
Entrou-se francamente no caminho certo da actualização do Estatuto dos Distritos Autónomos das Ilhas Adjacentes, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 31095, de 31 de Dezembro de 1940, mas desde há muito, por circunstâncias várias, bastante inadequado, como instrumento legal de valorização dos arquipélagos dos Açores e da Madeira.
Não é descabido neste momento chamar a atenção para o papel que as juntas gerais, segundo a letra do Estatuto, desempenham na vida administrativa dos distritos insulares. Melhor se poderá fazer ideia, assim, das repercussões de importância vital das suas disponibilidades financeiras.
Depois de estabelecer no artigo 3.º que «cada distrito das ilhas adjacentes constitui uma pessoa moral de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira», esclarece o Estatuto que «o órgão da administração distrital autónoma é a Junta Geral».
As atribuições e competência da Junta Geral envolvem, por isso, sectores vastas e fundamentais da vida do distrito; confiaram-se-lhe, na prática, actividades que no continente são exercidas pelo Governo Central através dos órgãos administrativos postos na sua dependência. E é assim que, pela letra do artigo 15.º do Estatuto, as juntas gerais têm atribuições de administração dos bens distritais; de fomento agrário, florestal e pecuário; de coordenação económica; de obras públicas, fiscalização industrial e viação; de saúde; de assistência; de educação e cultura, e de polícia.
É evidente que para fazer face a tão vasto elenco de compromissos se atribuíram às juntas determinados rendimentos e valores que constituem a sua receita própria, ao mesmo tempo que se definiram as respectivas despesas obrigatórias. De entre estas constam, segundo o texto do artigo 86.º do Estatuto, «as resultantes da instalação e manutenção dos serviços do Estado postos a seu cargo, nomeadamente o Governo Civil, os estabelecimentos de ensino liceal e técnico, as escolas do magistério primário, a delegação do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência, o Tribunal do Trabalho, a Biblioteca Pública de Ponta Delgada e o Arquivo Distrital do Funchal, bem como dos vencimentos do respectivo pessoal e do pessoal do ensino primário».
Aconteceu, porém, que a evolução das receitas e despesas ordinárias das juntas gerais dos Açores veio a processar-se de tal modo que o Estatuto dos Distritos Autónomos, embora mantendo a letra do texto original, está hoje completamente desvirtuado no espírito com que o Legislador o informou. De órgãos de fomento por excelência, estão as juntas transformadas quase em simples repartições de pagadoria dos serviços do Estado a seu cargo . . . São de facto as verbas despendidas com estes serviços, sobretudo com os vencimentos do respectivo pessoal, aquelas que mais pesada e progressivamente vêm onerando os orçamentos das juntas, deixando-as semi-paralisadas nas suas actividades de fomento. Em bera o Estado tenha concedido ás juntas nos últimos anos subsídios que as compensem dos encargos crescentes com os vencimentos do pessoal, a verdade é que pela sua insuficiência, além de outros motivos, estes subsídios têm funcionado como simples e precários balões de oxigénio a prolongar uma agonia que tem vindo progressivamente a agravar-se.
Junta Geral do Distrito Autónomo de Ponta Delgada
(Milhares de escudos)
[ver quadro na imagem]
Ano
Receita ordinária e própria, excluindo subsidies do Estado
Encargos com serviços do Estado
Subsídios do Estado
Excluindo vencimentos do pessoal
Vencimentos do pessoal
Montante
Percentagem em relação aos encargos
Montante
Percentagem da receita
Montante
Percentagem da receita
Em presença deste quadro, desde há muito tempo que os responsáveis pela administração e governo das ilhas, tanto como os seus Deputados, a imprensa e o público em geral vêm alertando o Governo e pedindo providências que não só evitem a deterioração total das finanças distritais, mas que de facto reabilitem as juntas de modo que voltem a ser, segundo a intenção do legislador que as criou, verdadeiros órgãos de fomento e progresso das ilhas adjacentes — e não ilhas subjacentes como alguém com ironia as apelidou, em tempos passados, por razões que agora, infelizmente, voltam a repetir-se.
São sobretudo as verbas despendidas com o pessoal afecto ao ensino as que absorvem maior percentagem da receita ordinária das juntas gerais, contando mesmo com os subsídios de compensação concedidos pelo Estado.
Junta Geral do Distrito Autónomo de Ponta Delgada
(Milhares de escudos)
[ver quadro na imagem]
Ano
Receita ordinária, incluindo o subsídio de compensação
Vencimentos do pessoal do ensino
Montante
Percentagem da receita e subsídio
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Em 1970 essa percentagem foi de 50,5 por cento e, no ano que decorre, prevê-se que, atinja os 55,15 por cento! Se retirarmos os subsídios concedidos pelo Estado, estes valores percentuais serão ainda mais altos, como é evidente. Isto tem de se levar em linha de conta nas providências que, em definitivo, vierem a ser tomadas para corrigir a actual situação financeira da junta.
O diploma agora aprovado em Conselho de Ministros aliviará as juntas de parte significativa das despesas com o ensino: os vencimentos do professorado primário e do ciclo preparatório. Mas continuam à sua conta o liceu, a escola industrial e a do magistério primário.
É pena que não se tivesse aproveitado este momento para resolver, em definitivo, o problema do ensino nas ilhas adjacentes, que sendo, como é, serviço da máxima responsabilidade de Estado, a este devia inteiramente competir. De resto, a verba correspondente aos vencimentos do pessoal dos liceus e escolas técnicas, no conjunto dos distritos insulares, não deve ir além de um centésimo do orçamento do Ministério da Educação Nacional.
Esperamos que, num futuro próximo, venha a resolver-se a anomalia, pouco razoável mesmo do ponto de vista administrativo — a de estarem as responsabilidades do ensino divididas, nas ilhas, entre o Ministério da Educação Nacional, por um lado, è as juntas gerais, por outro.
Como era de esperar, ao mesmo tempo que, de ano para ano, se foi avolumando a percentagem da receita da junta geral absorvida pelos vencimentos do pessoal de ensino, veio decrescendo, correspondentemente, a percentagem destinada aos serviços especiais da junta — os do fomento da agricultura e da pecuária; o das obras públicas, que tem à sua responsabilidade a construção, reparação e conservação das estradas nacionais; os serviços de saúde.
Ora, são exactamente esses serviços especiais da junta geral aqueles que constituem as grandes alavancas do fomento económico e social do distrito, a curto e médio prazos. A dotação orçamental desses serviços tem sido nos últimos decénios a seguinte: 31,7 por cento da receita ordinária, em 1940; 30,1 por cento, em 1950; 29 por cento, em 1960; e 28,3 por cento, em 1970.
O simples enunciado destes números basta para justificar a insistência com que se vem pedindo ao Governo a actualização do estatuto dos distritos insulares.
A medida aprovada em Conselho de Ministros, que transfere para o Estado os encargos com o ensino básico, vem ao encontro das múltiplas diligências que, neste sentido, têm sido feitas. É o melhor augúrio de que a actualização do estatuto está em marcha.
Mas certamente que o Governo terá de ir mais longe; se assim não fosse, ficaríamos todos, ele e nós, a meio do caminho. De resto, a Junta Geral de Tonta Delgada, ao pedir ao Governo a transferência urgente para o Estado dos encargos com o ensino básico — ensino primário e ciclo preparatório — não deixou de acentuar que tal medida seria, simplesmente, uma «solução provisória e de emergência» para as suas gravíssimas dificuldades actuais.
Se, deixando a Junta Geral, lançarmos uma rápida vista de olhos sobre a panorâmica das câmaras municipais, as perspectivas dos respectivos orçamentos e planos de actividade não são mais animadoras.
No último decénio, para só a esse nos referirmos, o crescimento das receitas ordinárias das câmaras foi muito reduzido, com a agravante de os pequenos aumentos da receita terem sido pràticamente neutralizados pelo agravamento, de -ano para ano, «das despesas obrigatórias.
A actualização dos vencimentos do pessoal, os novos encargos da assistência médica, a subida galopante dos custos dos materiais têm, literalmente, asfixiado os orçamentos dos municípios. Acresce que, nas ilhas adjacentes, a Lei n.º 5/70, que liberalizou a circulação de mercadorias, impôs às câmaras determinada redução de receitas que os subsídios compensatórios, posteriormente atribuídos, não corrigiram.
Por todos estes motivos, dadas as minguadas disponibilidades orçamentais de que dispõem, as câmaras não têm podido ir além de um mínimo de realizações, pouco adequado às necessidades crescentes dos munícipes que têm de servir. Por maior espírito de aceitação que se tenha, custa muito a admitir — cito só este caso — que, à beira do último quartel do século XX, haja no País uma cidade capital de distrito, por sinal o único de 1.ª ordem dos três distritos açorianos, onde, muitas das ruas ainda não estão calcetadas nem revestidas a betuminoso e onde são racionados o abastecimento de água no Verão e a energia eléctrica no Inverno . . .
E, no entanto — e esta é uma incógnita que intriga muitos espíritos —, quando nos debruçamos sobre o movimento da conta corrente do tesouro público com os distritos da metrópole, verifica-se que os distritos insulares, com excepção da Horta, têm vindo a apresentar saldos credores sucessivamente crescentes. No último relatório do Banco de Portugal, que funciona como Caixa Geral do Tesouro no continente e ilhas adjacentes, em 1970, além dos distritos insulares, com a excepção referida, só os distritos do continente mais industrializados e evoluídos têm saldos credores: Porto, Setúbal, Aveiro, Leiria e Faro. Todos os outros acusam saldos negativos.
Há, com certeza, correcções a fazer. E nas ilhas adjacentes, se ainda é válido o regime autonómico que o estatuto vigente consagra, é preciso entender essa autonomia como «processo de facilitar a administração e a vida económica dos arquipélagos e não o seu travão», segundo a palavra autorizada do Sr. Presidente do Conselho. Na mensagem que dirigiu aos Açorianos, em Março de 1970, o Chefe do Governo acrescentou: «Para que haja descentralização é preciso existirem recursos financeiros e gente capaz de os gerir.» «A gente tem, felizmente. aparecido — disse — e, quanto aos recursos, é preciso encontrá-los ou adequá-los ás tarefas a realizar.»
Assim falou o estadista, que é também professor eminente. Resta-nos formular o voto sincero de que assim se faça.
Vozes: — Muito bem!
O orador foi cumprimentado.
O Sr. Barreto de Lara: — Sr. Presidente, Srs. Deputados: Antes de iniciar as minhas considerações, quero aqui deixar bem marcado o meu júbilo pelo sucesso político que para a Nação constitui o encontro dos Presidentes dos Estados Unidos da América e da França, em terras de Portugal.
O Sr. Dias das Neves: — Muito bem!
O Orador: — Sucesso político a que não é de forma alguma alheia a figura de estadista, com evidente e marcante prestígio internacional, de Marcelo Caetano e que constitui motivo de orgulho e também de esperança de todos os portugueses.
Que do acontecimento colha a Nação benefícios além do prestígio, é o que mais se pode desejar neste momento.
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E conhecida como é a cativante personalidade do Chefe do Governo, a que se alia uma excepcional craveira intelectual, razão têm os Portugueses para esperar bons resultados.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Ao angustiante problema dos pagamentos interterritoriais, causa e motivo das mais variadas perturbações de ordem económica, com as inevitáveis repercussões na ordem social e que se arrasta penosamente há longos anos, sem alteração sensível para além da constante tendência para o seu agravamento, procurou o Governo atalhar decididamente com os dispositivos que se consubstanciam no Decreto-Lei n.º 478/71, de 6 de Novembro.
O sistema até então vigente, desde 1963, e de cuja alteração ona se cuidou, não resultara, e daí que os deficits galgassem de forma notável, ultrapassando a imaginação mais fantasista. E não pelo sistema em si mesmo, pois este norteara-se, efectivamente, por uma idealística construção de unidade económica sob o dominador político de total integração no objectivo final a alcançar, do livre trânsito de bens, pessoas e capitais entre todas as parcelas, «integrantes da Nação Portuguesa».
Simplesmente, de par e passo que assim se estruturara o sistema, haveria que tomar então, efectiva e realmente, as medidas que logo foram também preconizadas e estabelecidas e que o acompanhassem, fortificando-o de sorte que se não quedasse isolado, sòzinho, e entregue a si próprio, ao sabor das variantes tão díspares mas não imprevisíveis da economia. Medidas essas que não foram tomadas, acentue-se bem.
Para além disso, e agravando o isolamento, caminhou-se demasiado depressa, talvez na ânsia de sobrepor aos resultados efectivos os resultados políticos, por excessivas liberalizações dispensáveis, e afastaram-se as medidas que nuns casos dificultavam e noutros impossibilitavam até certas importações pelas parcelas menos desenvolvidas, sobretudo de produtos não essenciais. Por isso não se culpe o sistema em si mesmo, repito. O sistema tinha as suas virtudes, principalmente a sua recta intenção. E mais: era funcional e prático. E talvez até fosse o mais consentâneo ao espírito de uma Nação una.
Culpem-se sim, antes do mais, além das deficiências que já apontei, muitas outras cuja enunciação e tipificação deixarei aos técnicos e aos especialistas. E exactamente por isso nem me atreverei, ainda que genèricamente, a bordejá-las.
A verdade é que, de uma forma ou de outra., por esta ou aquela razão, o sistema não resultou como se previra ou desejara e daí o agravamento da situação e o prenúncio do seu crescimento.
Signifique-se que o propósito não é a defesa do sistema Antes e sim, e ainda que perfunctòriamente, porque interessa fazê-lo, relembrar o passado, a que se quis atalhar, tal como existia no sentido do homem comum.
Repito: não sei se o sistema estava certo ou errado. Era um sistema. E é ainda como homem comum que me atrevo a opinar que se se entendera ser, pela forma consubstanciada no Decreto n.º 478, a melhor via ou até a única via à correcção das imperfeições ainda que generosas do sistema passado, pudera fazer-se, então balizando-o cautelosamente', ora pelo impedimento da emissão de boletins para importação de mercadorias, sem que prèviamente estivesse assegurada a respectiva cobertura, ora limitando e disciplinando rigorosamente a saída de invisíveis, ora tornando de rigor a exportação de capitais privados, ora fixando-se ordem de prioridades cuja definição, e isso seria 'decisivo, teria palavra de primazia
definitiva exactamente a parcela do território importador das mercadorias e exportador dos invisíveis e dos capitais.
Não seria, pois, preciso, se bem me parece, afastar o sistema. Mas antes curar de adaptá-lo ao realismo da situação presente e à luz da degradação existente, corrigindo-o, amoldando-o onde e como se tornasse necessário, de forma a traduzir com realidade o remédio á endemia. Seria ao menos, segundo me parece, o caminho menos confuso e de mais fácil acomodação e aplicação.
Mas adiante. A verdade é que o sistema não resultara, arrastando consigo o agravamento dos deficits. E reconhecendo-o, o Governo vinha já tomando variadas e sucessivas medidas para enfrentar a situação. E até bem recentemente, no ano transacto, de entre as quais convirá ressaltar a atribuição de prioridades à cobertura de transferências e invisíveis correntes e de Capitais que o justificassem, o alargamento aos prazos de protecção relativa a restrições quantitativas acompanhada de nova contingentação de várias mercadorias, etc. Dessas medidas, e muitas foram na verdade, a revelar bem as preocupações do Governo, não puderam, todavia, conhecer-se realmente os efeitos, dada a escassez de tempo decorrente.
Mas certo' que o dinâmico Governo da Nação, como sempre atento ás realidades, entendeu ser agora momento oportuno para enfrentar o problema de face e tenta quanto possível atalhar a uma tão perniciosa situação causadora de enorme perturbação social.
Não quero, porém, e por ora, fazer uma apreciação pormenorizada do novo diploma, nem sequer equacionar se se foi pelo melhor caminho ou se se encontrou a solução ideal. As medidas estão tomadas. E, pois, facto consumado. Deixarei assim que o tempo evidencie se resultou e como resultou. E cá estarei na altura própria, e quando próprio o ache, a fazer o meu pronunciamento. Quero, porém, agora tão-só debruçar-me sobre dois ou três pontos susceptíveis de torneamento, e exactamente com esse objectivo o faço. Pontos que reputo da mais transcendente importância e na expectativa de que as minhas considerações tenham validade bastante para merecerem aproveitamento, e exactamente por isso deles me ocuparei. Antes, porém, quero aqui deixar o meu aplauso para o dispositivo que se contém no artigo 20.º do citado decreto-lei, onde se estabelece que o «Ministro do Ultramar promoverá a oportuna revisão dos regimes cambiais excepcionais de modo a submeter os respectivos beneficiários ao regime cambial comum». Todos os louvores são poucos à coragem com que o Governo se atreveu a enfrentar tão melindrosa situação, pois não pode deixar de supor-se que o dispositivo contemple certas e notórias empresas, exactamente as que, beneficiando desses regimes de excepção, tanto têm prejudicado as balanças de pagamentos das províncias do ultramar e tanto têm por isso contribuído para que os deficits galopem, e tão-só o benefício próprio.
O Sr. Pontífice Sousa: — V. Ex.ª dá-me licença?
O Orador: — Com certeza.
O Sr. Pontífice Sousa: — Sr. Deputado Barreto de Lara, tenho estado a ouvir com muito interesse as considerações de V. Ex.a, interesse que deriva de se tratar de um problema do ultramar, ao qual todos nós, Deputados, somos muito sensíveis, e, também, porque tive recentemente oportunidade de fazer uma viagem a Angola, a convite das suas associações económicas. E foi possível, durante quase três semanas, aperceber-me de problemas que, aqui na metrópole, me escapavam, sobretudo pela intensidade com que esses problemas são vividos pela população de Angola.
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O assunto que V. Ex.ª acaba de abordar, referente à eliminação de privilégios de algumas empresas relativamente à inserção das respectivas cambiais no fundo da província, foi um assunto que eu senti que seria uma das maiores aspirações das pessoas responsáveis pela administração de Angola.
Creio que o apoio que V. Ex.ª dá ás medidas preconizadas no recente decreto-lei poderá ter o apoio decidido de todas as pessoas que vivem em Angola, mas também o apoio decidido de alguns Deputados, entre os quais eu tenho a honra de me encontrar, manifestando desde já a V. Ex.ª que sinto que esse problema deverá ser resolvido no mais curto prazo de tempo possível. Porquanto, se é necessário que se façam sacrifícios, eles devem ser repartidos com justiça por todos os portugueses, e não poderá, de forma alguma, deixar-se de lado algumas empresas que têm tido privilégios, que dispõem de fundos cambiais que são realmente necessários para o equilíbrio cambial da província e para o seu desenvolvimento.
Sobre um outro ponto, que V. Ex.ª referiu um pouco mais atrás, relativo ás restrições decretadas, salvo erro, em Novembro deste ano — restrições essas que tinham sido também feitas em Novembro do ano passado —, eu só queria dar também a V. Ex.ª um apontamento de um pormenor que conheço.
O Governo promulgou, salvo erro, um decreto-lei proibindo ou limitando a importação de algumas mercadorias da província e dando um espaço de poucos dias para que esse decreto-lei vigorasse plenamente.
Pretendia informar que não considero este o melhor meio de resolver estes problemas, porquanto havia exportações de industriais e comerciantes portugueses, mas sobretudo de industriais, que tinham sido encomendadas pelas províncias havia largos meses, o que ocasionou que ficassem mercadorias em poder da indústria metropolitana que não têm venda noutros mercados conhecidos, ou noutros mercados possíveis, a curto prazo, o que ocasionou investimentos e prejuízos de largos milhares de contos, prejuízos esses que poderiam ser evitados se as medidas tivessem sido anunciadas com mais antecipação.
O Orador: — Muito obrigado, Sr. Deputado, pela ilustração com que V. Ex.ª quis trazer às minhas considerações, sobretudo dada a sua qualificação profissional, altamente reconhecida neste país. E estou inteiramente de acordo, sobretudo quanto às restrições e ao diminuto prazo em que foram estabelecidas. É sempre situação delicada tocar em situações criadas à luz de direitos adquiridos. E se o desequilíbrio da balança cambial de Angola e a situação daí derivante me preocupa, incomoda-me muito mais que se não tutelem os direitos de quem, investindo os seus capitais, o fez à sombra da lei que lho consentia.
Eu sei que o Governo atalhou aos prejuízos mais gritantes e posso assegurar, por conhecimento pessoal, que várias situações foram resolvidas a contento dos interessados. Conheço alguns casos, que não vale a pena aqui mencionar, a quem, apesar desses dispositivos, o Governo teve o cuidado de não prejudicar, autorizando que as mercadorias fossem realmente exportadas.
O Sr. Pontífice de Sousa: — Mas foram só alguns. Posso dizer a V. Ex.a que muitos interessados continuam com prejuízos de largos milhares de contos por isso não ter sido resolvido com mais oportunidade.
O Sr. Camilo de Mendonça: — V. Ex.a dá-me licença?
O Orador: — Faça favor.
O Sr. Camilo de Mendonça: — Eu estou a ouvir com o maior interesse as considerações de V. Ex.ª
É doloroso chegar-se a uma situação em que tenham de estabelecer-se restrições, mas quando o interesse público as impõe não há outro remédio.
Há uma coisa que constitui motivo emocional e político e até económico e financeiro, que é a tal liberdade de algumas empresais disporem de divisas.
Há uma coisa que eu não entendo bem: tal facto resulta de contratos que, bem ou mal, foram celebrados e porventura então com pouca possibilidade de serem diferentes . . .
O Orador: — Eu lá para a frente já falarei a V. Ex.a nesses contratos. Mas adiantar-me-ei já perguntando a V. Ex.a até que ponto se pode sacrificar toda a Nação a privilégios concedidos há largos anos e quando Deus quer sob corrosivas condicionalismos, isto salvo o devido respeito por quem as celebrou.
O Sr. Camilo de Mendonça: — Se me dá licença, eu retomo as minhas considerações. Como dizia, tal facto resulta de contratos em que só um forte interesse público justifica interferir. Quando existir tal interesse, não há que hesitar, mesmo havendo contrato, embora com o cuidado de não lançar a desconfiança sobre nós.
Mas o mesmo rigor se põe, com igual direito, quando se trata de exportações ou importações. Não compreendo que pareça bem, em termos de justiça de actuação administrativa, interferir em contratos e se rejeite quando se trata de restringir importações. O problema no seu aspecto moral é igual.
O Orador: — O problema é totalmente diferente, Sr. Deputado. V. Ex.a lançou aqui uma confusão tremenda.
Uma coisa é o indivíduo que produziu, investiu e gastou em certa perspectiva e tem o produto pronto para ser exportado, não o podendo fazer porque o condicionalismo preexistente foi abruptamente alterado. Vamos a um caso concreto: uma empresa de litografia, por exemplo, que conheço de perto, tinha impressas embalagens pana cigarros de certas e determinadas marcas para exportar sob antiga encomenda para uma fábrica de Angola. E, pelo tal condicionalismo posterior à encomenda e à sua execução, ficou impedida de o fazer, não podendo vendê-las absolutamente a ninguém, a não ser à empresa que as encomendara. Que fazer então às embalagens? Deitá-las fora, então, com prejuízo total para a economia da Nação? Pois tratava-se de produto que só podia ser consumido pelo detentor da marca, e, impedida a posterior exportação, tinham de ir para o caixote do lixo. E é muito diferente esta situação da de uma empresa que está regaladamente alcandorada nos seus regimes especiais e com os seus lautos conselhos de administração sentados em Lisboa nos seus luxuosos escritórios e acalentadores aquecimentos, enquanto as cambiais se têm esvaído por largas dezenas de anos, com grave prejuízo paira a província de Angola. E a isso exactamente que o Governo agora pretende pôr cobro, e até se for necessário, entendo eu à luz da sagrada razão social, se não puderem ser revistos os contratos, então que se nacionalizem as empresas.
O Sr. Mota Amaral: — Muito bem.
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O Orador: — Nós estamos em guerra, como a todo o momento se diz, quando há que impor sacrifícios. Pois então vamos para a frente com medidas firmes e corajosas, exigindo de todos, mas de todos, os sacrifícios compatíveis com as posições de cada um.
O Sr. Camilo de Mendonça: — Eu comecei por dizer a V. Ex.a que conheço muito bem o conteúdo emocional e político da questão e até o económico e o financeiro e devo dizer que já com muito avanço ... o abordei nesta Câmara.
O que queria apenas significar é que quando o Estado tem de intervir, por altas razões de interesse público, é tão legítimo fazê-lo nesse campo como noutro! Em segundo lugar, já agora, acrescentarei às minhas considerações mais outra: é a de verificar, o que é doloroso para mim, que se chegue a esta situação por duas ordens de razões. Uma, é que os capitais da metrópole não se dirigem para o ultramar, nem para Angola, nem a Moçambique.
O Orador: — Não é tanto assim, actualmente, Sr. Deputado.
O Sr. Camilo de Mendonça: — Perdão, na medida em que se dirigissem maciçamente, o problema de falta do desequilíbrio não se poria. Põe-se, sim, na medida em que não se dirigem. Há grande número de pequenas economias, feitas lá para serem transferidas para cá, constituindo um peso na balança de trocas, sob o ponto de vista cambial. E, portanto, se os capitais nacionais se dirigissem, como seria desejável, maciçamente para o ultramar, naturalmente esse problema estaria, por uma parte, ultrapassado. Mas há um outro motivo, igualmente importante, que é este: o desenvolvimento das províncias deveria orientar-se menos pelo critério de obras públicas do que pelo do fomento económico. São os dois aspectos que reputo essencialmente graves. As restrições de hoje são uma consequência de não se ter enfrentado a situação a tempo e há longos anos, do ponto de vista dos interesses particulares, que haveriam de ser compreendidos no interesse geral e do ponto de vista da política, que deveria ser pautada pelo desenvolvimento económico das províncias ultramarinas, em ordem a que as economias se tornassem complementares, superando esta angústia. As restrições são uma consequência da crise a que se chegou por falta da actuação conveniente da política adequada.
O Orador: — Perfeitamente de acordo.
O Sr. Camilo de Mendonça: — E sempre que há restrições, há interesses feridos, que são igualmente respeitáveis — mas todos.
Quando o interesse público o exige, temos o direito de atingir uns e outros.
O Orador: — Por essa via, perfeitamente de acordo.
O Sr. Pontífice Sousa: — V. Ex.a dá-me licença?
O Orador: — Faça favor.
O Sr. Pontífice Sousa: — Sr. Deputado: Pretendia usar da palavra apenas por um minuto mais, porquanto algumas considerações do Sr. Deputado Camilo de Mendonça se referiam, particularmente, ao meu aparte.
O Sr. Camilo de Mendonça: — Não, não só . . .
O Sr. Pontífice de Sousa: — E sobre esse assunto, especialmente focado pelo Sr. Engenheiro Camilo de Mendonça, quero voltar a dizer aquilo que afirmei há pouco. Entendo que essas medidas deveriam ser tomadas com um pouco mais de oportunidade, isto é, com um pouco mais de antecipação.
O Sr. Camilo de Mendonça: — As crises surgem quando surgem, não se escolhem . . .
O Sr. Pontífice de Sousa: — Quanto à comparação que V. Ex.a fez, relativamente aos contratos firmados oportunamente entre o Governo e algumas companhias, eu queria também informar V. Ex.a de que há sete ou oito anos, salvo erro, foi publicado um decreto (cujo número não me recordo) que previa que as divisas dessas companhias fossem integradas no fundo cambial das províncias; enquanto o tal decreto, a que recentemente se referiu o Sr. Deputado Barreto de Lara, permite ao Governo tomar essas medidas «se quiser».
Mas o decreto anterior, publicado anos atrás, previa que o Governo tomasse essas medidas. E eu pergunto a V. Ex.a se, esses anos, não é prazo suficiente para as empresas se prepararem para uma situação que foi prevista por esse diploma, portanto com conhecimento público, enquanto as medidas mais recentes não forem tomadas com qualquer espécie de antecipação significativa.
O Orador: — Muito obrigado, Srs. Deputados, por terem tornado tão vivo este diálogo, já que as minhas intervenções são sempre mornas e pacíficas.
Vozes: — Não apoiado!
O Orador: — Já era tempo efectivamente de se enfrentar a situação face a face e de se lhe pôr cobro, pois aos contratos a nível «da Nação» com empresas privadas impõe o primado da sagrada razão social, a que só se deve cega obediência quando se não sobreponham aos interesses de todos os interesses só de alguns. Se o tempo vai para dificuldades, a todos sem discriminação hão-de tocar sacrifícios, e não só a alguns.
Dirijo, pois, daqui uma respeitosa e sincera saudação ao Governo pela atitude realista, e para servir todos, que se antevê contemplada no dispositivo que vimos apreciando. Apenas e a este respeito uma observação desejo fazer: é que onde se diz Ministro do Ultramar, deverá dizer-se, antes, à sombra acolhedora, da nova Constituição Política, «Governo».
Outros dispositivos, porém, dissera já merecem-me algumas reservas, que não deixarei aqui de sublinhar, sempre na determinante de cooperar, como homem comum, na causa pública.
Entre essas saliento a que se contém nos artigos 18 0 e 19.º
Com efeito, aquele artigo 18.º só permite aos bancos emissores ultramarinos e aos bancos comerciais autorizados a exercer o comércio de câmbios nas províncias ultramarinas, que tenham abertas em seu nome, contas em estabelecimentos de crédito domiciliados no estrangeiro ou em qualquer outro território nacional e, além dessas entidades, aos residentes nas províncias que a isso estejam expressamente autorizados pela Inspecção de Crédito e Seguros ou do comércio bancário da respectivo província.
E o artigo 19.º logo vem impor que «os residentes nas províncias (e tão-só estes) que sem para isso estarem devidamente autorizados, possuam disponibilidades em moeda estrangeira ou escudos metropolitanos» os vendam ao Fundo Cambial.
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Quer dizer, assim, que se deixa apenas ao sabor do critério da Inspecção de Crédito e Seguros ou do comércio bancário a possibilidade de residentes numa determinada parcela do território nacional poderem manter depósitos em seu nome noutra parcela. Isto é, o que devera ser coisa normal, passa a considerar-se excepcional e subordinada às flutuações de critério daquelas inspecções.
Alas então, pergunta-se, se certa entidade, além das enunciadas no corpo do artigo, tiver sido devidamente autorizada — no passado, entenda-se — a transferir determinada quantia e a tenha em depósito, legalmente, pois, num banco metropolitano, tem de subordinar-se ao critério de tais inspecções e sujeitar-se a que estas, num dia até de má disposição, lhe recusem a permissão passando a ficar então desprovida dos meios que carecia e porque carecia foi autorizada a transferir e obrigada a vendê-los ao fundo cambial? Cheguemo-nos mais concretamente a um caso pleno de actualidade: um Deputado da Nação, por círculo ultramarino que, percebidos os seus subsídios, e partindo da hipótese que haja tempo para merecerem as honras de depósito, está sujeito a ter de pedir autorização às inspecções para os depositar num banco metropolitano? Ou então para fugir à implicância do artigo 19.º tem de andar com o dinheiro na algibeira, ou utilizar um dos milhentos subterfúgios para ladear a questão? Ou então sujeitar-se até a uma recusa da Inspecção de Crédito e Seguros ou do comércio bancário? Não se pense que estou aqui a defender posições próprias. Pois para quem o não saiba aqui fica o apontamento: os subsídios dos Deputados — já o insinuei, aliás — não chegam a aquecer no bolso.
Pode argumentar-se que semelhante determinação não é nova e que já existia. Mas também a experiência ensinou que há muitas fórmulas, e formas, e maneiras, de tornear o obstáculo.
Ora, se isto assim é, e todos sabemos que é, porque manter então um dispositivo que é, acima de tudo, improfícuo, mas que, além disso, se reveste, por agravamento, de impolítica antipatia?
Outro ponto que feriu a minha atenção é o impedimento que se contém na alínea d) do artigo 26.º
Realmente, neste dispositivo veda-se às instituições de crédito autorizadas a exercer o comércio de câmbios concessão de créditos em moeda local, garantidos por fianças ou avales, a residentes no estrangeiro ou em qualquer outro território nacional, ou caucionados por títulos ou depósitos em moeda estrangeira ou em escudos de outro território nacional, ou, ainda, por quaisquer haveres situados no estrangeiro ou em outro território nacional, salvo autorização expressa do Ministro do Ultramar, sob parecer do administrador do Fundo Cambial.
Ora, o que parece concluir-se de tal dispositivo é que os residentes no estrangeiro ou em qualquer outro território nacional ficam inibidos de fazer operações de crédito em moeda local dentro de território nacional que não seja o da sua residência, desde que chamados a prestar garantias pessoais ou reais.
Ora, isto pode, antes de mais, conduzir, ou melhor, fatalmente conduz, ao retraimento e ao desânimo, por exemplo, dos residentes na metrópole de investirem no ultramar, inibidos como ficam de recorrer ao crédito se o prestamista exigir, como é normal, garantias pessoais ou reais. Com toda a cadeia de inconvenientes daí derivantes e incongruenciais até à política que deverá ser determinante de uma nação, que é pluricontinental, requer para ser una.
O Sr. Presidente: — Sr. Deputado Barreto de Lara, V. Ex.a está no uso da palavra há vinte e cinco minutos.
Peço-lhe o favor de tentar conter-se dentro dos cinco minutos que regimentalmente lhe restam.
O Sr. Barreto de Lara: — Eu contenho-me, eu contenho-me, Sr. Presidente.
Vou mais longe até: parece resultar do dispositivo uma restrição ao direito de cada um poder dispor do que é seu, seja do seu património, seja até do seu próprio nome, pois, podendo prestar garantias reais ou pessoais a contratos que se celebrem na Australásia ou até em qualquer galáxia que Chinas, Russos ou Americanos venham a ocupar, não pode, porém, fazê-lo, mercê de uma capitis diminutio, de incompetência territorial, em terras da Nação para além do território onde tem a sua residência.
E repetindo de novo o comentário onde se diz Ministro do Ultramar deverá dizer-se Governo, significarei que não alcanço o real objectivo deste dispositivo e muito menos o acréscimo de afazeres que se atira para os ombros, já tão sobrecarregados, do Ministro do Ultramar.
Mas objectar-se-á que o Ministro do Ultramar não negará autorização e que se trata de um mero formalismo.
Mas se assim é, obtempera-se, pois, que se a autorização virá a ser dada por sistema, então não valerá a pena a consagração legal da restrição e menos o mundo de dúvidas e inquietações, que pode originar.
Espero, pois, do Governo, em que confio e que nunca hesita em chamar à colocação a colaboração de todos, meditação sobre estes pontos.
Eram estes, principalmente, os pontos que queria hoje focar aqui. Deixarei para uma outra oportunidade outras interrogações, dúvidas e reflexões que entenda dever fazer ao novo sistema. Não quero, porém, deixar de trazer a esta Câmara a angústia que por aí vai por não estar ainda dinamizado e em execução plena o novo sistema, a tal ponto que casos há, e que são de meu conhecimento pessoal, de inúmeras carências, dificuldades e desânimos, se não até de fome.
Peço, pois, aqui ao Governo, cuja atenção à problemática nacional nunca é de mais ressaltar, que se apressem as coisas por forma a possibilitar meios àqueles que deles tanto carecem. E tantos são e tão dramáticos os casos.
O problema vulgarizado sob o epíteto de problemas de transferências é angustiante. Resolva-se como se resolver, ponto é que se resolva depressa.
Aproxima-se a quadra natalícia. A ternura da data não pode deixar de nos tocar a todos. Ouso, pois, esperar que antes dela as coisas já se processem com regular normalidade.
E mais um apontamento final:
Chegou ao meu conhecimento que, mercê das mesmas cautelas cambiais, se encontram suspensas no ultramar as licenças graciosas que, por lei e portanto por direito adquirido, são concedidas aos funcionários ultramarinos. Não tive tempo de averiguar a legitimidade da afirmação que acaba de me chegar.
Mas aceitando-a como fidedigna, já que isso possibilita definir-me sobre o assunto, o certo é que nunca ouvi fosse a quem fosse preconizar a abolição de semelhante regalia como forma até de minorar os deficits cambiais. Uma regalia que se concede não pode tirar-se, sob pena de catastróficas consequências. Pelo menos avento a fatalidade de uma: o descrédito e a desconfiança na entidade patronal.
O que eu vi, isso sim, e também é o que eu penso e é opinião dominante da província de Angola, é que a regalia se deve manter a todo o transe, mas que também se deve dar uma alternativa ao alvedrio do funcionário, na sua troca por outra regalia equivalente, isentando-o,
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porém, da obrigatoriedade de gozar a licença graciosa, sob pena de perder o direito a ela. Sempre na opção do beneficiário.
E o que também penso é que neste desejo já tão vincadamente expressado por mim nesta Câmara, que Portugal conheça Portugal, semelhante regalia se deva até estender, também, aos funcionários públicos da metrópole. E até desta forma comezinha e simplista me parece poder-se conseguir, na rubrica, equilíbrio cambial.
Tenho dito.
Vozes: — Muito bem, muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Alberto de Alarcão: — Na sala de actos do Instituto 'Superior de Agronomia foi recentemente prestada justíssima homenagem ao professor catedrático Francisco Caldeira Cabral, nome primeiro e maior da arquitectura paisagística entre nós e individualidade marcante no concerto mundial, por motivos da recente atribuição do grau de doutor honoris causa pela Universidade Técnica de Hannover.
Não será tanto uma palavra simples de admiração a quem tanto tem prestigiado a escola a que pertence e, por via dela, a Universidade Portuguesa, que aqui pretendo juntar.
Será mais o veemente desejo de que o Ministério da Educação Nacional, nesta hora de reforma do ensino, considere a oportunidade de oficializar o que ainda é, e apenas, curso livre de arquitectura paisagística, dando ensejo ao reconhecimento legal de uma profissão que tanta falta se faz sentir no nosso país, em nossos meios ambientes urbanos e rurais.
Bem-vindo seja, que virá por bem.
O orador foi cumprimentado.
O Sr. Presidente: — Srs. Deputados: O número de VV. Ex.as entrados durante a sessão asseguram-nos de quórum para podermos passar à
Ordem do dia
Continuação da discussão na generalidade da proposta de lei de 'autorização de receitas e despesas para 1972.
Tem a palavra o Sr. Deputado Themudo Barata.
O Sr. Themudo Barata: — 1. A proposta de lei de meios para 1972 é, no seu contexto, semelhante à anterior: inclui ás autorizações tècnicamente necessárias no plano jurídico — concedidas com a latitude habitual — e, para, além disso, inclui apenas as orientações gerais quanto à política a seguir pelo Governo no referente ás matérias do âmbito dos Ministérios das Finanças e da Economia.
Compreende-se que, sendo a proposta subscrita pelo Sr. Ministro das Finanças, haja da sua parte a preocupação e a cautela de não interferir com sectores estranhos às suas responsabilidades directas. Todavia, a manter-se este critério, deverá concluir-se que se, por hipótese, no futuro viesse de novo a separar-se a gestão das pastas das Finanças e da Economia, a orientação geral da política económica deixará, então, pelo mesmo motivo, de ser incluída nesta lei basilar da nossa administração pública.
Todos consideramos, com certeza, que isso constituiria um retrocesso e que esse documento perderia grande parte do seu valor e do seu interesse.
Parece, portanto, legítimo pôr-se a este propósito a questão de saber se a estrutura de um documento desta natureza ou, por outras palavras, se a matéria sobre a qual a Assembleia é chamada constitucionalmente a pronunciar-se deverá variar consoante arranjos circunstanciais da composição do Governo.
No meu modesto entender creio que não, pois considero o Orçamento a peça fundamental em que se materializa a política do Governo.
Parece-me, por conseguinte, que a orientação que vem sendo traçada pelo Sr. Ministro das Finanças é inteiramente salutar e deverá generalizar-se por forma que esta lei venha a conter — e a Assembleia venha, portanto, a poder apreciar — a orientação geral sobre todos os sectores essenciais para a elaboração e consequente execução do Orçamento.
Estou a pensar, sobretudo, num sector do qual aqui me tenho já ocupado algumas vezes — o da Defesa Nacional —, que, por si só, absorve recursos orçamentais equiparáveis ao do conjunto dos restantes Ministérios. Parece, portanto, que não deverão existir quaisquer dúvidas acerca da enorme importância das orientações gerais que sejam adoptadas nesta matéria, não só pelo que toca à eficiência dos respectivos serviços, como também pelo que se refere ao melhor aproveitamento dos recursos da Nação.
Penso que reside aqui um dos problemas fundamentais — se não mesmo o problema mais difícil — da administração pública de um país como o nosso, que se vê obrigado a um enorme esforço de defesa militar e em que os meios humanos e materiais não abundam.
Bem ficariam, pois, nesta lei, não apenas as directivas a que deveria subordinar-se o orçamento de cada um dos Ministérios Militares, como ainda as orientações necessárias para que se estabelecesse cada vez mais estreita colaboração deles entre si e do seu conjunto com os departamentos civis.
A evidência das realidades tem-se imposto no ultramar, onde, mercê da clarividência, do sentido de responsabilidades e do espírito de decisão dos ilustres governadores e comandantes-chefes, se tem ensaiado com êxito modalidades de colaboração com os sectores civis, que seria desejável ampliar e generalizar.
A Assembleia tem dado toda a sua atenção a estes problemas, como ainda sucedeu quando da apreciação das últimas contas gerais do Estado, revelando sempre o maior respeito pela acção das forças -armadas e -a maior preocupação pelos aspectos que interessem à defesa. Talvez pudesse, pois, dar algum contributo para impulsionar e acelerar reformas que encontram o seu maior obstáculo na tremenda força da rotina, na enorme inércia que os próprios serviços apresentam sempre perante tudo o que verdadeiramente os pretenda reformar.
Como disse ainda há pouco o Sr. Presidente do Conselho, no que não ganhamos nada é em ignorar os problemas, em ocultar as realidades, em iludir as soluções.
Parece, portanto, que teriam pleno cabimento nesta lei as linhas mestras das orientações a seguir, por exemplo, nos domínios da defesa, do ensino e da saúde, nos aspectos — é evidente — que mais estreitamente se prendam com matéria orçamental. Assembleia e Governo apareceriam mais infimamente ligados na orientação da política nacional e, no plano prático, creio que poderiam conseguir-se mais rápidos progressos.
2. Porque assim penso, é-me extremamente grato poder salientar a forma tão significativa como o Governo quis acolher a alteração o ano passado introduzida pela Câmara no capítulo em que se define a orientação geral da política económica e financeira.
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Refiro-me à mais estreita coordenação entre o que respeita à defesa e ao fomento, nos termos da proposta que tive a honra de apresentar à Assembleia e que o Sr. Ministro das Finanças, ao perfilhá-la para o novo ano, quis acentuar no seu relatório que ela nascera de iniciativa parlamentar.
Para além do mérito próprio do princípio geral assim reafirmado nesta lei — e oxalá que para ser eficazmente posto em prática —, parece que daqui poderá inferir-se também que o Governo não é afinal tão refractário a aceitar uma activa colaboração da Assembleia como alguns insistem em pensar ou em fazer crer.
A imagem pouco lisonjeira que por vezes se apresenta da proficiência da acção do nosso Parlamento creio provir precisamente, em grande parte, da demasiada timidez do papel político que a Câmara a si própria tem reservado, não podendo assim constituir um efectivo factor de equilíbrio para a tendência, cada dia mais acentuada, dos Governos dos Estados modernos e da sua tecnocracia de se fecharem cada vez mais sobre si próprios, considerando-se como que os únicos detentores das soluções que podem servir o País.
O Sr. Mota Amaral: — Muito bem, muito bem!
O Orador: — Um dos mais ilustres chefes de Estado europeus, ao falar recentemente da missão dos parlamentos, não esquecia este risco, e, condenando, embora, qualquer tentativa de regresso, ao velho parlamentarismo, notava., porém, que o trabalho das assembleias políticas ganhará tanto mais em sentido e em alcance quanto mais os Governos mantenham com elas um contacto permanente e as associem Largamente, à condução da sua política.
Reconhecia a crescente tentação dos Governos dos Estados modernas de A complexidade dos problemas conduz quase fatalmente a cometer a elaboração dos textos a um certo número de funcionários, quase sempre de grande qualidade, frequentemente de um valor excepcional, e os próprios Ministros correm o risco de se tornarem prisioneiros desta competência. Ora, a inclusão do princípio a que aludi situa-se exactamente nesta linha de franca e proveitosa colaboração, mostra que o Governo não deseja ficar prisioneiro nem da competência dos técnicos, nem da inércia da rotina, e anima-me, assim, a prosseguir. 3. Não pretendo, nem por certo seria capaz de esboçar desde já a orientação geral a seguir no que respeita aos orçamentos da Defesa Nacional ou a qualquer dos tês ramos das forças armadas. Referirei, contudo, alguns pontos, para mostrar como são amplos e variados os aspectos a considerar, como se torna urgente resolvê-los e como se torna, assim, necessário estimular reformas profundas e corajosas: a) Criou-se há já vinte e um anos o lugar de Ministro da Defesa Nacional. Pois, ao fim de todo este tempo, apesar de sobre si recaírem as mais altas responsabilidades, de através do seu Departamento se conduzirem as operações em vastos territórios, com efectivos — e com dificuldades também — que são, sem qualquer dúvida, os maiores da nossa história, não se encontraram ainda senão fórmulas muito limitadas de assegurar a sua função coordenadora sobre os três ramos das forças armadas. O Sr. Vasconcelos Guimarães: — Dá-me licença, Sr. Deputado? O Orador: — Faça favor. O Sr. Vasconcelos Guimarães: — Eu quero aproveitar esta oportunidade em que está a referir assunto de tão grande importância para, através das suas palavras, relembrar nesta Câmara e pedir a atenção do Governo para o problema, que tive o prazer de levantar aqui há dois anos, da desigualdade de situação em que se encontra a Força Aérea, quando, na sua orgânica, funciona só com o Secretariado em relação aos outros ramos das forças armadas, que são constituídos por Ministérios. Não pretendo elevar nem diminuir, pretendo uma coisa que me parece justa: que à Força Aérea corresponda um departamento de Estado igual ao que têm a Marinha e o Exército. Muito obrigado pela oportunidade que me deu. O Orador: — Muito obrigado, Sr. Deputado. As suas considerações inserem-se perfeitamente na mesma linha do meu pensamento, e não percebo, também, por que a chefia política dos três ramos das forças armadas não há-de estar equiparada ao mais alto nível. Parece, portanto, que seria já altura de dar passos decididos no sentido de uma reestruturação profunda das nossas forças armadas, coordenando e unificando na maior medida possível, pensando não sómente na economia de meios, mas também em que tudo aquilo que se progrida na unidade de preparação e administração das tropas só virá facilitar o seu emprego operacional conjunto. Além disso, este desdobramento de problemas paralelos ou afins por três Ministérios e pelo departamento da Defesa Nacional tem a sua natural projecção nos comandos subordinados. Se se pensar que só em Angola, Moçambique e Guiné existem numerosos quartéis-generais em funcionamento, logo se conclui quanto se lucraria em acelerar esta coordenação, que viria poupar meios, trabalhos e até contratempos. Creio saber que em breve se irão tomar medidas com vista a passar para a responsabilidade da Defesa Nacional certos problemas gerais de logística. Será sem dúvida motivo de regozijo, e sou o primeiro a compreender as dificuldades existentes, mas o regozijo será bem maior se estas medidas representarem apenas o início de reformas mais profundas. b) Já o ano passado tive oportunidade de expor à Câmara, nas suas grandes linhas, alguns problemas relacionados com as aquisições militares. E sabido o interesse do Governo em conseguir que maior quantidade das aquisições se faça dentro do País e é conhecido também o seu empenho em interessar a indústria nacional nos fornecimentos militares. Ninguém dúvida da sinceridade dos propósitos, mas estou certo que os próprios responsáveis serão os primeiros dos insatisfeitos com os magros resultados que se têm obtido. Ora, enquanto não dispusermos da devida capacidade de fabricação de material de guerra, a nossa defesa nacional continuará enormemente vulnerável. Não creio agora de interesse alongar-me no assunto, e confio que 1972 representará um marco decisivo no caminho da solução deste importante problema. O Sr. Roboredo e Silva: — V. Ex.a dá-me licença? O Orador: — Faça favor.
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O Sr. Roboredo e Silva: — Tenho seguido com o maior interesse e atenção as judiciosas considerações de V. Ex.ª, mas não estou inteiramente de acordo com algumas das suas afirmações, como é natural.
Desejo, no entanto, reforçar e apoiar calorosamente a referência que acaba de fazer à falta de capacidade de fabrico de material de guerra em Portugal.
Tenho tratado várias vezes nesta Casa essa gravíssima carência nacional e ainda recentemente, quando me pronunciei sobre a lei de meios que estamos a apreciar, voltei a focar esse importantíssimo problema, e é-me grato, neste momento, relembrá-lo.
Verifico, todavia, que V. Ex.ª confia em que no próximo ano — 1972 — haverá uma viragem, digamos assim, que solucionará o problema.
Pois darei graças a Deus se assim suceder, mas não posso esquecer que há quase onze anos começou a guerra subversiva no ultramar e no decorrer deste longo tempo é triste, extraordinariamente triste e significativo, dizer que pouco se fez e não se tomaram as providências e as medidas necessárias para resolver esse problema, que nem se me afigura extraordinariamente difícil, uma vez que o material que as nossas necessidades militares exigem nem sequer é demasiado sofisticado.
Em consequência, parece-me, e é isto que eu quero afirmar, que o Governo precisa de tomar todas as providências, remover todos os obstáculos, sejam eles de que natureza forem, porque todos eles eu considero antinacionais, para solucionar este gravíssimo problema do fabrico de material de guerra em Portugal.
Muito obrigado, Sr. Deputado.
O Orador: — Muito obrigado sou eu, Sr. Deputado, pelas palavra» calorosas de V. Ex.ª A sua autoridade e o seu passado reforçam imenso o que eu disse. Talvez a experiência que tive e algumas amargas desilusões pusessem na minha boca palavras de esperança, que é a forma melhor que eu encontrei para traduzir a mágoa de que nem sequer muitas das minhas ideias fossem acolhidas e que muita da mais sincera colaboração que quis dar não tivesse o andamento que devia ter tido.
A minha esperança é, portanto, uma palavra de confiança, sobretudo de que o próximo ano traga a resolução deste problema.
c) Às forças armadas lutam com grande falta de pessoal para os seus quadros permanentes. Este, por seu turno, pensa — e com toda a razão — que lhe deveria ser dado um tratamento que tivesse na devida conta, a sua especial condição de militar. É certo que o problema da falta de atractivo para a carreira das armas não é só nacional. Sentem-no, por exemplo, outros países da Europa, também com largas e gloriosas tradições militares, que usufruem altos padrões de vida e nem sequer estão exigindo das suas forças armadas sacrifícios comparáveis aos que são exigidos presentemente ao nosso pessoal militar.
O problema é mais profundo, é verdade, do que o de simples tratamento material ou de deficiência de selecção ou de instrução.
Onde não existir patriotismo — declarava há poucas semanas perante o seu Parlamento o responsável pela defesa da França — não há defesa nacional. Mas não é só esta carência generalizada de ideal que explica as dificuldades presentes. Há também, penso eu, erros de estrutura e conceitos já ultrapassados a corrigir.
As forças armadas, mesmo nos seus quadros permanentes, continuam, por exemplo, dando tratamento quase igual ao homem investido em funções essencialmente militares, ao oficial ou ao sargento que combate, e àqueles que estão incumbidos de funções de natureza completamente distinta, que bem poderia ser desempenhada por civis e, quantas vezes, até por pessoal feminino.
Creio haver aqui campo para grandes e profundas transformações, procurando delimitar o mais possível os quadros de pessoal essencialmente militar, dando a esse o tratamento especial, que é inteiramente justo e necessário, e procurando, aos mesmo tempo, assimilar ou substituir progressivamente o restante por pessoal civil.
Num estudo recente feito pelas forças armadas alemãs concluía-se ser mais eficaz trazer directamente para as forças armadas o potencial existente nos meios civis, em todos os sectores técnicos e administrativos, tanto em Inabilidade como em conhecimentos, do que considerar os meios civis simples fornece dores de recrutas.
Nesse estudo, os construtores de modelos concebem o exército da década de 80 como uma tropa que nas suas actividades práticas revele os traços de uma empresa industrial, que mantenha constante e forte intercâmbio com os sectores civis da sociedade, um instrumento que seja bastante atractivo para recrutar sem maiores dificuldades o potencial de trabalho de que carece.
Eis outro dos grandes problemas militares que, creio, muito lucraria em ser encarado por prismas bem diversos dos actuais.
4. Termina a proposta com um capítulo consagrado às providências sobre o funcionalismo.
Desejo exprimir o meu maior aplauso às medidas anunciadas e saudar o aparecimento deste capítulo, não só pelo que em si contém, como ainda por ver nele o prenúncio de futuro alargamento do seu âmbito a tudo o que respeite à Reforma Administrativa.
A pensão de sobrevivência constitui ambição justíssima dos servidores do Estado. Nem se torna necessário justificá-la num país que considera a família a célula da sua sociedade.
Poderia, sim, perguntar-se talvez porquê esta medida estava tardando tanto, sobretudo quando nalguns sectores da própria administração pública já se concederam benefícios relativamente amplos nesta matéria. Até por esta razão, por vir corrigir clamorosas desigualdades, a medida anunciada é inteiramente de. aplaudir.
Quem irá, porém, pagá-la: o Tesouro ou o próprio servidor do Estado?
Todos sabemos como são já pesados os encargos orçamentais e tomo essa circunstância limita fortemente ás suas possibilidades para assumir por si só a totalidade dos novos encargos.
Todavia, é também manifestamente incomportável para Os actuais vencimentos do funcionalismo público que a quota correspondente à pensão seja por ele integralmente satisfeita.
Creio que seria ilusório conceder um aumento fictício de vencimentos para cobrir a parte que lhe coubesse, pois no futuro isso poderia ser fàcilmente esquecido e acabar-se-ia, a curto prazo, por remeter totalmente pana o próprio funcionário o preço integral da sua pensão.
O Estado tem toda a vantagem em habituar-se a proceder em relação aos seus servidores por forma que não revele menos generosidade do que aquela que exige às empresas privadas; só assim lhes poderá servir de autorizado exemplo e só assim também irá criando as condições para poder recrutar e manter o pessoal de que carece.
Denso, pois, que neste caso o Estado deverá tomar como encargo seu uma parcela que não seja nunca inferior àquela que ele impõe ou aconselha aos empresários.
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A proposta fala, por último, na revisão do que respeita ás pensões de preço de sangue.
Não estão aqui em causa 'regalias ou favores: é um simples imperativo moral que se cumpre.
O sangue não tem preço, mas o Estado, como representante de todos nós, tem o imperioso dever de tomar consciência da obrigação contraída para com aqueles que se imolaram no mais alto serviço do seu país.
O Governo, ao propor-se encarar de frente este problema, revela ser digno intérprete da consciência nacional.
Confio em que a revisão seja feita com a largueza de espírito adequada à atitude magnânima dos que tudo sacrificaram pela sua pátria.
Resta apenas perguntar se não seria justo que nos encargos daqui resultantes participassem também directamente as províncias ultramarinas, nas quais hajam sobrevindo as ocorrências ou nas quais o militar haja servido.
Julgo, na verdade, que não será razoável fazer recair todo o peso deste encargo sobre o orçamento metropolitano: haverá que reparti-lo também equitativamente pelas províncias. Para além de pura justiça em matéria financeira, creio que desta forma se traduzia melhor a solidariedade que deve existir entre todas as parcelas de uma nação.
Creio até muito oportuno, quando certos espíritos — mesmo no ultramar — parecem demasiado embebidos nos seus problemas económicos e apaixonadamente se embrenham na defesa dos seus interesses, ainda que porventura legítimos, fazer lembrar a glande lição destas vidas que se imolaram ao serviço de uma causa que não é, com certeza, a de meros interesses económicos.
E que, na realidade, o sangue não pode ter esse preço, pois ninguém dá por tão pouco a sua vida — o seu verdadeiro preço poderemos pagá-lo todos nós se soubermos manter-nos firmes, unidos e coesos, de modo que ele não haja sido derramado em vão.
Vozes: — Muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Eleutério de Aguiar: — Sr. Presidente, Srs. Deputados: Por motivos que adiante se descortinarão, é com justificado júbilo que, pela terceira vez consecutiva, nos propomos intervir no debate na generalidade sobre a Lei de Meios, desta feita, para apresentarmos as considerações que nos foram sugeridas pela proposta submetida pelo Governo a esta Assembleia, com vista ao ano de 1972.
Na linha das anteriores, a presente proposta vem informada de princípios gerais de natureza sócio-económica que nos despertam sentimentos de plena adesão, pois traduzem uma salutar preocupação governamental de prosseguir as actuações já em curso, no sentido de se acentuar o processo de desenvolvimento das populações sem afrouxar a luta que vimos travando pela manutenção da integridade do território nacional, constituindo por sinal os dois grandes fundamentos de uma política que nos aliciou e aqui nos trouxe, a exercer um mandato que sempre procuramos honrar e que também temos por indeclinável.
Uma vez mais a proposta de lei de autorização de receitas e despesas foi precedida de oportuno relatório, apresentado em termos claros, pelo que facilmente nos pudemos aperceber da evolução da conjuntura económica e financeira nacional, merecendo-nos inteira concordância a orientação expressa, por motivos que passamos a expor, sem necessidade de nos afastarmos dos termos e da metodologia adoptada, que evidenciam um propósito honesto de expressar a realidade, sem rodeios nem tibiezas.
Dispensámos a melhor atenção aos diferentes capítulos e aceitamos como útil o princípio de analisar a evolução da conjuntura económica internacional no ano em curso, uma vez que cada vez menos é possível a existência de espaços marginais e o nosso país não pode deixar de acusar as vicissitudes que se observam no mundo e em especial na Europa, de que pretendemos ser parte integrante, que não só geográfica.
Facilmente se conclui não ter sido favorável a evolução operada na economia metropolitana, caracterizada por uma alta da despesa global, além de que, afastando-se dos padrões desejados para a aceleração do desenvolvimento, veio a conduzir a reconhecidas pressões sobre o nível de vida dos Portugueses. Neste particular, afirma-se concretamente que por não ter sido satisfatória a evolução do sector primário, acentuou-se o desequilíbrio entre a oferta e a procura de bens essenciais. Apoiamos, por isso, os esforços que o Governo se propõe incentivar com vista à expansão da actividade económica, tendente a contrariar as tensões inflacionárias que se fazem sentir de forma particularmente aguda no já difícil nível de vida da generalidade da população, sendo particularmente relevantes todas as medidas susceptíveis de aumentar a produção de bens e de serviços, de forma a conseguir-se, em futuro mais ou menos próximo, uma relativa estabilização dos preços, em especial no que respeita aos produtos alimentares, onde os desajustamentos são por de mais sensíveis, afectando as classes menos favorecidas, não se podendo esquecer que é flagrantemente baixo o poder de compra da média dos Portugueses, cuja capitação é ainda inferior a 1400$ mensais, mesmo em relação à metrópole.
Porque não se nos afigura aconselhável contrariar a elevação dos salários, pois são inúmeras as situações que têm de ser revistas e sendo inevitável a subida dos preços das matérias-primas e dos equipamentos, impõe-se de facto conjugar todos os esforços no sentido de que a um melhor apetrechamento e racionalização dos processos de fabrico corresponda um efectivo aumento e uma melhoria da qualidade da produção, que assegurem a indispensável rentabilidade dos investimentos, em vez de se consegui-la à custa do agravamento dos preços ao consumidor, o que em realidade vem acontecendo e o próprio Governo declara não ignorar, decidindo-se, nalguns casos, por uma política intervencionista, suportando algumas revisões efectuadas, através do Fundo de Abastecimento, processo que só em teoria resolve problema tão delicado.
Reiteramos, por isso, o nosso aplauso aos propósitos de reestruturação dos circuitos de distribuição e defesa do consumidor e a tudo quanto efectivamente resulte na expansão da actividade económica, com elevação do ritmo de investimentos em empreendimentos produtivos e em infra-estruturas económicas e sociais, que se reconhecem poderão ter incidência mais directa na estabilidade relativa dos preços.
Verifica-se, por outro lado, que a actuação do Estado continuará a assentar especialmente na realização dos investimentos previstos no Plano de Fomento, elevando-se a 7 milhões de contos o montante financiado pelo sector público no ano em curso (continente e ilhas adjacentes), cabendo-lhe a realização dos programas oportunamente fixados em matéria de educação, investigação e formação profissional, habitação e urbanização, saúde e assistência e melhoramentos rurais. Por seu turno, o montante dos investimentos previstos nos mesmos domínios, a cargo do sector público e de outras entidades, totalizaram cerca de 18 milhões de contos, mais 5 milhões do que no ano anterior, concorrendo para esse acréscimo, fundamentalmente, o aumento dos investimentos de carácter social e
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infra-estruturas económicas, confirmando-se, assim, os critérios de actuação antes enunciados.
Por ser o sector que ocupa a maior percentagem da população activa civil (978 000, num total de cerca de 3 000 000, em 1969), apoiamos as medidas previstas pelo Governo, no âmbito da política agrícola, com vista à reestruturação fundiária, promoção do associativismo, fundamental em face da extremamente defeituosa estrutura da maioria das empresas agrícolas, aperfeiçoamento das técnicas 'de produção e de gestão, formação profissional de empresários e de trabalhadores agrícolas, desenvolvimento da mecanização, reconversão cultural e ordenamento do território, além da própria remodelação da estrutura oficial responsável pelo sector da assistência técnica e orientação da produção agrícola, que, no seu conjunto, constituem actuações decisivas para uma dinamização indispensável à satisfação das exigências do consumo interno e ao aumento do poder competitivo dos nossos produtos no mercado internacional.
Reconhecemos, ainda, a maior oportunidade ao esforço que vem sendo despendido com vista à participação da economia portuguesa no movimento de integração do espaço europeu. Para se avaliar da importância dessa actuação governamental, basta referir que, em doze anos de presença na E. F. T. A., a nossa exportação aumentou de 500 por cento, enquanto, no mesmo período, subiu apenas 150 por cento para os países do Mercado Comum. Desnecessário se torna, pois, salientar a relevância das medidas susceptíveis de incrementar as nossas exportações, o que só é possível pela conquista de novos mercados e maior aproveitamento das potencialidades dos actuais, em ordem a diminuir-se o acentuado desequilíbrio da nessa balança comercial, que no primeiro semestre deste ano apresenta já 671,6 milhões de dólares de importações contra 427,3 milhões de dólares de exportações.
Palavras de aplauso são igualmente devidas ás anunciadas providências sobre o funcionalismo, tendentes a melhorar as suas condições económico-sociais, especialmente através da regulamentação do sistema de aposentação e da actualização do abono de família, que permanece inalterável há já catorze anos, não obstante as crescentes exigências da economia familiar, bem como no que se refere à atribuição de pensões de preço de sangue, aproveitando-se este ensejo para se corroborar os termos de uma exposição assinada por numeroso grupo de senhoras, viúvas de militares falecidos em combate, requerendo ao Governo a supressão de uma cláusula, que também temos por anacrónica que «as impede de trabalharem por conta de outrem, sob pena de perderem o direito à pensão de preço de sangue que lhes foi justamente atribuída», conforme lemos no Diário de Lisboa de 2 do corrente. E recorda-se que ainda não se pôs cobro à insofismável discriminação que afecta algumas classes de funcionários insulares, em relação a outras que muito justamente auferem de regalias financeiras, ao abrigo da legislação variada que consta da nossa intervenção de 9 de Dezembro do ano passado.
Sr. Presidente e Srs. Deputados: Ainda a exemplo dos anos anteriores, as nossas últimas considerações incidirão sobre o momentoso problema da educação nacional, que constitui sector prioritário e é decisivo para o processo de desenvolvimento económico. Aliás, a reforma do ensino, que constituía exigência inadiável da actualidade portuguesa envolvendo todo o edifício educativo, desde a base cúpula, prossegue já os caminhos da efectivação, garantindo-lhe maior autenticidade a participação do próprio povo, a quem ela se destina, graças à oportuna decisão governamental de estimular o debate público, sem dúvida difícil, até por falta de habituação, porém o único processo que pode, verdadeiramente, identificar todos os portugueses, como é imperioso aconteça nesta hora crucial em que são tantas e tão gigantescas as tarefas a realizar.
Algumas destas palavras proferimo-las ou registámo-las em sessões realizadas no Funchal, aquando da visita efectuada ao distrito pelo Prof. Veiga Simão. Mas repetimo-las aqui, por nos parecerem sempre oportunas, além do que desejamos reiterar, muito justificadamente, a admiração que nos vem merecendo a actuação daquele esclarecido governante que, sem enjeitar os caminhos do diálogo, antes os utilizando com relativa frequência, vem consolidando com obrais imensamente válidas a política dependente do seu Ministério.
Ninguém desconhece as dificílimas circunstâncias em que se está a travar a batalha da educação, sofrendo-se, como não poderia deixar de ser, as consequências de não se ter planeado e realizado em tempo mais oportuno. A explosão escolar acentuou-se no presente ano lectivo e não é possível construir edifícios e formar professores de modo a acompanhar o ritmo de crescimento da população que busca no estudo a sua valorização. Para se caracterizar melhor o desfasamento verificado, cite-se o exemplo das instalações escolares, reconhecendo-se que é insofismável o incremento do ritmo de construção, nestes últimos tempos. Todavia, mesmo que o ritmo actual fosse duplicado, só em 1977 ficaria concluído o plano de construção previsto para 'execução até 1970. Entretanto, a manter-se o ritmo, o referido plano de construções só ficaria concluído em 1984!
E chegou-se a situação tão dramática, sem ser lícito afirmar, como já foi lugar-comum, que apenas a falta de verba foi responsável pela inércia, uma vez que, por exemplo, a Conta Geral do Estado de 1968 apresentou um saldo de cerca de 324 000 contos, na parte respeitante ao Ministério da Educação Nacional.
Em relação ao' ciclo preparatório, que se integra no ensino básico, construíram-se de raiz apenas 12 escolas, e só recorrendo ao material pré-fabricado foi possível pôr em funcionamento cerca de 200 estabelecimentos oficiais. Nos liceus e escolas técnicas os desdobramentos foram a solução geralmente adoptada, e mesmo assim a superlotação das turmas foi inevitável em muitos casos. Para se completar o quadro, recordemos que em dez anos se construiu uma Universidade, tendo em igual período a frequência no ensino superior aumentado de 60 por cento!
A quem admira, pois, que nesta altura do ano lectivo, em todos os graus de ensino, milhares de alunos continuem em férias? E como assegurar, num ensino que se debate com tamanhas dificuldades, a necessária rentabilidade?
Como evitar tensões no seio de uma estrutura que vê o problema das instalações, só por d factor impeditivo do desenvolvimento educacional, substancialmente agravado pela falta de professores a todos os níveis e de outras condições coadjuvantes da acção escolar, que só agora começam a ser criadas no âmbito da reorganização do próprio Ministério?
Se não é possível haver paz onde não houver ordem administrativa e pedagógica, que temores nos assaltam, ao pensarmos que no ano lectivo transacto cerca de 17 000 crianças ficaram sem escolarização obrigatória, sendo legítimo levantar dúvidas quanto ao aproveitamento das restantes, e que de cada 100 alunos que se matriculam no ensino primário apenas 2 conseguem chegar as cursos superiores?
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Julgamos desnecessárias mais indicações para conscientemente reafirmarmos as nossas esperanças na política que vem sendo lançada pelo Ministério da Educação Nacional, sobre a qual tivemos excelente oportunidade de nos documentarmos na já referida visita do Prof. Veiga Simão ao nosso distrito nos primeiros dias de Novembro findo, que ficou assinalada com um conjunto de medidas de largo alcance, desde a concessão de subsídios para acudir p, situações mais prementes, no valor de 3500 contos, e criação de três escolas preparatórias, à análise de problemas globais relativos a instalações e equipamento didáctico e à formação de pessoal docente, além da inauguração do primeiro pavilhão gimnodesportivo da região.
De salientar as importantes decisões tomadas no âmbito do Instituto de Acção Social Escolar, incluindo a criação da procuradoria dos estudantes das ilhas adjacentes, a exemplo do que já existe para os alunos do ultramar. Relativamente ao ensino pós-secundário, além da oficialização da Academia de Música e Belas-Artes e da realização no Funchal de exames de aptidão ás Universidades, bem como das frequências dos alunos voluntários, evidencia-se a responsabilização das forças vivas locais, com vista à apresentação de um estudo urgente sobre a criação do Instituto Politécnico, correlacionado com o desenvolvimento global do arquipélago.
É evidente que só com estas medidas não se resolveram todos os problemas do ensino no distrito, que acusa uma taxa de analfabetismo superior à média geral da metrópole e cujas carências aumentaram em relação ás que neste mesmo lugar enunciámos nos debates das duas últimas leis de meios, e que agora nos dispensamos de referir, pois foram localmente apresentadas ao Ministro da Educação Nacional. Mas reforçou-se a convicção de que prosseguirá sem tréguas a batalha do ensino, que tem de mobilizar todos os recursos disponíveis, humanos e materiais, envolvendo verbais que se computam em cerca de 25 milhões de contas, «penais para responder ás exigências da explosão escolar, o que só por si traduz o arrojo do desafio lançado à nossa capacidade de realização!
E nesta arrancada empolgante com vista à democratização do ensino, congratulamo-nos com o início muito em breve do auxílio do Estado ao sector particular, que bem o merece, pois muito vem concorrendo, com os seus 1.177 estabelecimentos de vários graus na metrópole e 1399 no ultramar, para que a educação abranja maior número de portugueses, sendo deveras significativo que no passado ano lectivo fosse frequentado, só no ramo liceal, por cerca de 66 500 alunos, contra os 54 000 matriculados em escolas oficiais.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Só mais algumas palavras, ainda de aplauso e reconhecimento. No último Conselho de Ministros foram aprovados o decreto-lei que transfere para o Estado os encargos com o pessoal do ensino primário e do ciclo preparatório nos distritos autónomos das ilhas adjacentes e o que concede autonomia administrativa e pedagógica ás respectivas escolas do magistério primário.
Se a autonomia agora concedida ás referidas escolas se reveste de flagrante interesse, com vista a incrementar a formação de professores, a 'transferência para o Estado dos encargos com o ensino básico pode considerar-se uma das mais importantes medidas até hoje adoptadas pelo Governo Central em relação aos distritos insulares. Só a Junta Geral do Funchal previu para o ano em curso na respectiva rubrica a verba de 64 000 contos, cerca de 30 por cento do total do orçamentado, o que nos dá bem ideia do peso que a escolaridade, tem representado para a administração local, permitindo-se com a substancial redução de encargos agora aprovada um apreciável incremento das acções específicas de fomento que lhe estão cometidas.
Constituindo justas aspirações dos responsáveis insulares, nós próprios também havíamos solicitado para elas a atenção do Governo, nomeadamente no debate da Lei de Meios para 1970. Por isso, é com natural regozijo que prestamos a nossa sincera homenagem ao Governo presidido pelo Prof. Marcelo Caetano, que, alguns meses decorridos sobre a desalfandegação operada com a Lei da Livre Circulação de Mercadorias, reafirma de forma insofismável quanto se interessa pelo desenvolvimento e bem-estar do meio milhão de portugueses que labutam nos arquipélagos dos Açores e da Madeira.
E termino, Sr. Presidente e Srs. Deputados, concedendo o meu voto de aprovação na generalidade à proposta de lei de autorização das receitas e despesas para 1972.
Vozes: — Muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Lopes Quadrado: — Sr. Presidente: Dirijo a V. Ex.ª as minhas respeitosas saudações.
A proposta de lei de autorização das receitas e despesas para o ano de 1972 é um notável documento que honra o Governo que o apresentou e o Sr. 'Ministro das Finanças que o subscreveu.
No desenvolvido e elucidativo relatório que precede a proposta de lei de meios, depois de examinada a situação económica internacional e suas incidências na economia portuguesa, faz-se a análise dos aspectos mais importantes da política económica e financeira metropolitana.
No que respeita à situação económico-financeira internacional, verifica-se a tendência de expansão da actividade económica dos países mais industrializados, fortes pressões inflacionistas, restrições ao livre exercício do comércio e perturbações ocasionadas pela inconvertibilidade do dólar em ouro.
Na economia nacional, apesar de afectada pela tensão inflacionista e pela crise do sistema monetário internacional, é apreciável o ritmo de desenvolvimento económico.
O Governo encara a adopção de providências imediatas para combater a inflação, ao mesmo tempo que estimula o processo de desenvolvimento económico e social, em coordenação com a necessidade de defesa da integridade nacional. E louvável a intenção do Governo em respeitar, rigorosamente, o equilíbrio das contas públicas.
E dada prioridade aos encargos com a defesa nacional, designadamente, da integridade territorial da Nação, com os investimentos públicos previstos no III Plano de Fomento, com o auxílio económico e financeiro ás províncias ultramarinas e, ainda, com outros investimentos de natureza económica, social e cultural.
Está perfeitamente justificada a prioridade que é dada aos encargos com a defesa da integridade nacional.
Perante uma guerra que nos foi imposta nas províncias ultramarinas de Angola, Moçambique e Guiné, torna-se indispensável assegurar às forças armadas os meios necessários para vencerem os inimigos de Portugal e da civilização ocidental.
Assim o exigem a dignidade e a honra nacionais.
Não devem regatear-se recursos para a defesa do sagrado património nacional.
Aproveito esta oportunidade para prestar justa homenagem às nossas forças armadas.
Vozes: — Muito bem!
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O Orador: —- E também orientação do Governo apoiar as iniciativas privadas, directamente reprodutivas. Dou a minha concordância à concessão de benefícios tributários a investimentos produtivos nas regiões menos desenvolvidas, com vista à promoção económica e social das respectivas populações. E o distrito da Guarda, dos mais pobres, bem carece de empreendimentos produtivos que permitam a melhoria das condições de vida das suas populações.
Procurarei, agora, fazer breves considerações acerca da política agrícola e das providências sobre o funcionalismo para o próximo ano.
O Governo, mo domínio da política agrícola, manifesta o propósito de seguir a orientação definida no III Plano de. Fomento, assegurando o indispensável apoio ao desenvolvimento da agricultura.
É louvável o esforço do Governo em inserir o sector agrícola no desenvolvimento económico global, conjugado com a evolução conjuntural e as disponibilidades financeiras.
A proposta de lei de meios enuncia diversas medidas tendentes a estimular a modernização da agricultura, a melhorar a sua produção e os rendimentos resultantes das explorações, a fim de a agricultura ser colocada no mesmo, plano das outras actividades económicas.
Essas medidas serão completadas com outras de política fiscal.
Merece o meu apoio a prevista remodelação dos serviços oficiais de assistência técnica aos agricultores, cujos métodos tradicionais já não correspondem ás exigências de uma política agrária dos nossos dias.
Incumbe aos técnicos a nobre missão de orientar os agricultores para os novos processos de exploração agrícola, tornando-a mais rentável.
Está o Governo empenhado era satisfazer os justos anseios dos agricultores, proporcionando-lhes melhores condições de vida.
No entanto, para se ganhar a batalha da agricultura, é preciso que a orientação e apoio técnico-financeiro do Governo encontrem a indispensável colaboração, participação consciente e elevado esforço de todos os que se dedicam à actividade agrícola.
A complexidade dos problemas agrícolas não deve justificar os atrasos da nossa agricultura, pois tenho a firme convicção de que as dificuldades serão vencidas se todos tiverem inquebrantável fé e coragem para realizai' uma política agrária que sirva o interesse nacional.
Quero aqui deixar uma palavra de muito apreço ao Sr. Engenheiro Vasco Leónidas, Secretário de Estado da Agricultura, pela valiosa obra que está a realizar no sector agrícola.
Dotado de esclarecida inteligência, comprovada competência e invulgar capacidade de trabalho, devotadamente dedica-se à solução dos delicados problemas agrícolas.
Também a proposta da lei de meios para o próximo ano contém algumas providências para melhorar as condições económico-sociais dos funcionários e seus familiares.
Prevê-se a entrada em vigor do estatuto de aposentação dos funcionários e o regime das pensões de sobrevivência.
Com a promulgação do novo estatuto da aposentação reunir-se-á num só diploma toda a legislação dispersa, quer de aplicação geral, quer de aplicação limitada a certas categorias de pessoal, em termos mais favoráveis aos beneficiários.
Desde há muito tempo que a concessão de pensões de sobrevivência é uma legítima aspiração dos funcionários. Muitos funcionários têm vivido em permanente intranquilidade quanto ao futuro dos seus agregados familiares, após o seu falecimento.
Famílias de funcionários, por morte destes, ficavam sem os necessários meios à sua manutenção.
Prevê-se a publicação do novo estatuto do Montepio dos -Servidores do Estado, modificando-se o regime das pensões de sobrevivência.
Proceder-se-á h revisão da legislação respeitante ao abono de família, elevando-se o seu quantitativo.
E, ainda, será revista a legislação relativa à atribuição de pensões de preço de sangue e de pensões por relevantes serviços prestados ao País, melhorando as condições de fruição das pensões.
Pelas providências que vão ser adoptadas vê-se bem a preocupação do Governo, dentro das possibilidades financeiras, em assegurar melhores condições de vida aos seus servidores e familiares.
Procurei ser breve, deixando de me referir a vários aspectos importantes da proposta de lei de meios, mas não quero abusar da generosidade do Sr. Presidente e dos -Srs. Deputados de ouvirem as minhas modestas considerações.
Termino, dando a minha aprovação na generalidade à proposta de autorização das receitas e despesas para o ano de 1972.
Tenho dito.
Vozes: — Muito bem!
O orador foi muito cumprimentado.
O Sr. Oliveira Dias: — Sr. Presidente, Srs. Deputados: A proposta da Lei de Meios para 1972 insere-se numa linha de continuidade relativamente aos dois anos anteriores. Os grandes objectivos da política económica e financeira enunciados pelo Governo continuam os mesmos — expansão da economia, promoção dos investimentos, transformação das estruturas económicas — e permanecem condicionados, no que respeita ás despesas do Estado, pela prioridade atribuída ás despesas com a Defesa Nacional, de elevado montante e fraca reprodutividade. como é sabido.
É dada, porém, nova ênfase à necessidade de lutar contra a inflação, «procurando promover o melhor ajustamento da oferta à procura».
Louvável se afigura todo o esforço que possa ser desenvolvido no combate à inflação, que tanto preocupa no presente o povo português, em especial os econòmicamente mais débeis, mas sem me embrenhar numa apreciação de carácter técnico, formulo dois votos:
Que o melhor ajustamento da oferta à procura seja conseguido sobretudo através da promoção da oferta, sem pôr em causa a necessidade vital do prosseguimento da política de melhores salários, acompanhada de melhor produtividade e da limitação de certos lucros. Isto se efectivamente desejamos deter a emigração, sem violação do direito de emigrar, para que possamos suplantar a fase de «satélites da Europa» passando a ser mesmo Europa;
O segundo voto é no sentido de que a política anti-inflacionista seja acompanhada de efectivas medidas de defesa do consumidor, nomeadamente cuidando da sua conveniente informação em matéria de preços e características dos produtos, desenvolvendo uma política de promoção das cooperativas de consumo e defendendo-o de manobras especulativas de comerciantes sem escrúpulos. Deverão, também, ser promovidas as associações de defesa do consumidor, por toda a parte generalizadas.
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No capítulo da política fiscal, a proposta não traz novidades e, de algum modo, se pode até falar de recuo, na medida em que o Governo renuncia à publicação do código dos impostos sobre o rendimento e à revisão do regime tributário das mais-valias, medidas estas que não chegou a levar a cabo, apesar de autorizado pela Lei de Meios para 1971.
Também não é, ainda, dado andamento ao desiderato anunciado no preâmbulo da Lei de Meios para 1971, da abolição dos adicionais às contribuições e impostos do Estado e do imposto de comércio e indústria, assunto este que bem merecia ser regularizado, numa base nacional, dadas as situações de injustiça relativa que envolve, quer ao nível do contribuinte, quer ao nível de entidades beneficiadas.
No tocante a uma política de investimento, as disposições são semelhantes às dos anos anteriores, com a única inovação de se integrarem neste capítulo as respeitantes à política regional.
Insiste-se na necessidade de acelerar uma política de investimento — quem a contestará? — através de incentivos a empreendimentos privados, participação do Estado em novas unidades ou, mesmo, a criação de empresas públicas.
Ninguém discute, hoje, a legitimidade da fundação das empresas públicas, que se revelem necessárias ao bem comum, ao lado das empresas privadas. Este afã, que deve galvanizar o Estado moderno, de melhorar aceleradamente o teor de vida do seu povo, não pode ficar dependente da capacidade de iniciativa ou da mentalidade dos empresários.
Claro está que os nossos empresários não podem fazer milagres e não podem produzir se não tiverem mercados onde colocar o produto. Ora, considerando, por um lado, as conhecidas limitações do mercado nacional e, por outro, as do mercado internacional, que já se nos fora fechado, por razões de ordem política, para o Terceiro Mundo e, agora, mais problemático se revela com a agonia da E. F. T. A., teremos a verdadeira dimensão das dificuldades — ainda consideravelmente agravadas com as restrições de exportação para o ultramar.
Urge, assim, procurar, de todas as formas, novos mercados e assume transcendência vital a conclusão de um acordo favorável com o Mercado Comum.
Quando se trata de fazer progredir um país, como o nosso, em fase de transição para uma sociedade industrial e onde se verificam, ainda, tantas carências sociais, todas as possibilidades devem ser aproveitadas ao máximo e ao Estado compete assegurar que assim seja, tomando oportunamente as iniciativas necessárias.
E aqui cabe uma palavra de insatisfação no que se refere ao investimento industrial, sendo de formular o voto de que iniciativas como a do empreendimento de Sines se propaguem em cadeia por forma a poder o País dispor, o mais rápida mente possível, das novas indústrias de que carece para o seu acelerado desenvolvimento.
Há que incentivar o ritmo de expansão da nossa economia, constituindo motivo de grave preocupação o decréscimo do produto de «agricultura, silvicultura e pesca», assinalado no parecer da Câmara Corporativa.
Isto sem embargo de continuarmos a pensar que há-de estar na industrialização o fulcro do nosso progresso económico-social. Indispensável, porém, que os outros sectores acompanhem esse esforço, explorando todas as suas disponibilidades, na consciência de que «aquelas que mantêm inexploradas os seus recursos põem em grave risco o bem comum».
No que se refere ao crescimento do produto industrial, a proposta não se afasta da orientação reformista anterior, que esperamos possa, finalmente, passar ao domínio dos factos, com a aprovação, a breve trecho, por esta Assembleia, da nova lei do fomento industrial.
Problemas como o da liberalização do condicionamento industrial, a instalação de parques industriais, a concentração de empresas, sem prejuízo da sã concorrência, a preparação de mão-de-obra, a qualidade da produção, aos quais me tenho já referido neste lugar, devem ser encarados como problemas prioritários, se não queremos, perder «o comboio que nos resta para a Europa tecnocrítica», para usar a expressão recente do Sr. Secretário de Estado do Comércio.
Aludi já à eliminação do capítulo política regional e integração noutro das disposições que lhe dizem respeito. Por mim, julgo inconveniente esta alteração, pois que, ao contrário do que se diz no preâmbulo da proposta, penso que a matéria deve ter autonomia de tratamento, justificando-se, até, que fosse alargada a outros aspectos numa perspectiva mais completa de planeamento regional.
A importância dos problemas do ordenamento do território ficou aqui bem evidenciada no aviso prévio efectivado na passada sessão legislativa.
Ao amputar-se a proposta de um capítulo autónomo sobre política regional, retirou-se relevo à matéria, o que não é compensado pela referência à necessidade de assegurar o melhor ordenamento do território no final do artigo 17.º
De passagem, é de aplaudir o propósito de difusão de melhoramentos rurais em povoações com potencialidades de desenvolvimento, no intuito de corrigir a pulverização de agregados populacionais, que torna antieconómica e até inviável a sua dotação das necessárias infra-estruturas.
O III Plano de Fomento, que cuidou também, de modo autónomo, do planeamento regional, definiu como suas linhas mestras o equilíbrio da rede urbana, a expansão descentralizada da indústria e dos serviços e a progressiva especialização da agricultura regional.
A esta luz, queria referir-me, finalmente, à intenção enunciada na proposta de virem a ser criados centros de tecnologia industrial, orientados essencialmente para a assistência técnica à pequena e média empresa e formação especializada do seu pessoal.
Só merece louvor tal iniciativa, mas para que frutifique em pleno há que localizar estes centros onde se revelarem mais convenientes, ou seja, no seio das actividades que visam promover, e fugindo à tentação de os trazer para Lisboa. Isto se queremos, também, descongestionar os grandes centros urbanos, adoptando a política de regionalização dos centros de investigação já seguida, com êxito, noutros países.
E assim, o Centro Técnico da Indústria de Cerâmica, em fase de estudo adiantado e que se espera seja em breve uma realidade, encontra em Leiria a sua melhor localização, visto estar no centro das principais zonas produtivas, ter elevado número de unidades fabris, encabeçar um distrito onde se verifica uma elevada taxa de crescimento do produto e ser, também, o mais rico em matérias-primas.
Não se diminua, pois, a meritória iniciativa, transformando o Centro em mais um organismo burocrático còmodamente instalado na capital.
Termino, dando o meu voto na generalidade à proposta do Governo, com as reservas apontadas, que espero possam ter algum acolhimento na votação na especialidade.
O orador foi muito cumprimentado.
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O Sr. Presidente: — Srs. Deputados: Vou encerrar a sessão.
O número de oradores inscritos obriga a desdobrar as sessões dos próximos dias 14 e 15, pelo que, desde já, marco sessão para o dia 14, ás 10 horas e 45 minutos, tendo como ordem do dia a continuação da discussão na generalidade da proposta de lei de autorização das receitas e despesas para o ano de 1972.
Repito: sessão do dia 14 desdobrada, com a primeira sessão às 10 horas e 45 minutos.
Peço ia VV. Ex.as os esforços possíveis para comparecerem, a fim de termos número que permita assegurar o funcionamento da Assembleia.
Está encerrada a sessão.
Eram 18 horas e 15 minutos.
Srs. Deputados que entraram durante a sessão:
Camilo António de Almeida Gama Lemos de Mendonça.
Delfim Linhares de Andrade.
Henrique José Nogueira Rodrigues.
Joaquim Jorge Magalhães Saraiva da Mota.
José João Gonçalves de Proença.
Júlio Alberto da Costa Evangelista.
Júlio Dias das Neves.
Luís Maria Teixeira Pinto.
D. Luzia Neves Pernão Pereira Beija.
Miguel Pádua Rodrigues Bastos.
Olímpio da Conceição Pereira.
Ricardo Horta Júnior.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
Srs. Deputados que faltaram à sessão:
Alberto Marciano Gorjão Franco Nogueira.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Alexandre José Linhares Furtado.
Amílcar Pereira de Magalhães.
António Bebiano Correia Henriques Carreira.
Armando Valfredo Pires.
Artur Augusto de Oliveira Pimentel.
Augusto Domingues Correia.
D. Custódia Lopes.
Deodato Chaves de Magalhães Sousa.
Duarte Pinto de Carvalho Freitas do Amaral.
Fernando Artur de Oliveira Baptista da Silva
Fernando Augusto Santos e Castro.
Fernando David Laima.
Fernando de Sá Viana Rebelo.
Francisco José Pereira Pinto Balsemão.
Francisco Manuel Lumbrales de Sá Carneiro.
Francisco de Nápoles Ferraz de Almeida e Sousa.
Gustavo Neto Miranda.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Henrique Veiga de Macedo.
João António Teixeira Canedo.
João José Ferreira Forte.
João Lopes da Cruz.
João Manuel Alves.
João Ruiz de Almeida Garrett.
Joaquim Carvalho Macedo Correia.
Joaquim José Nunes de Oliveira.
Joaquim de Pinho Brandão.
Jorge Augusto Correia.
José Coelho Jordão.
José da Costa Oliveira.
José Gabriel Mendonça Correia da Cunha.
José Guilherme de Melo e Castro.
José de Mira Nunes Mexia.
José dos Santos Bessa.
José da Silva.
José Vicente Pizarro Xavier Montalvão Machado.
Lopo de Carvalho Cancella de Abreu.
Luís António de Oliveira Ramos.
Manuel Elias Trigo Pereira.
Manuel Homem Albuquerque Ferreira.
Manuel Joaquim Montanha Pinto.
Manuel José Archer Homem de Mello.
Manuel Marques da Silva Soares.
Manuel Valente Sanches.
Maximiliano Isidoro Pio Fernandes.
Rafael Valadão dos Santos.
Ramiro Ferreira Marques de Queirós.
Rui de Moura Ramos.
Victor Manuel Pires de Aguiar e Silva.
O Redactor — Luís de Avillez.
Sr. Presidente da Assembleia Nacional:
Excelência:
Nos termos do § 2.° do artigo 37.° do Regimento da Assembleia Nacional, apresento a V. Ex.a a seguinte proposta de alteração 'ao disposto na alínea b) do artigo 10.° da proposta de lei de autorização das receitas e despesas para 1972:
Continuar a reforma dos regimes tributários especiais e da tributação indirecta e, nomeadamente, estudar a aplicação de um novo imposto individual sobre índices exteriores da riqueza.
Saia das Sessões da Assembleia Nacional, 10 de Dezembro de 1971. — O Deputado, Rafael Ávila de Azevedo.
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Nota informativa do Ministro da Saúde e Assistência à Assembleia Nacional
1. Entende o Governo ser seu dever proporcionar aos Srs. Deputados informação documentada e esclarecida com respeito aos problemas e situações cuja apreciação postula a disponibilidade de dados que se não encontrem, por completo, ao seu imediato alcance.
A observância desta, linha de rumo é agora suscitada pela ocorrência de incidentes que nos últimos tempos, em remete de um processo de longa e complexa gestação, vieram trazer o embaraço de sérias perturbações à vida hospitalar.
Ninguém conseguiria ajuizar o problema com o total acerto que se exige da opinião qualificada, se abstraísse de o ponderar à luz do enquadramento na perspectiva global em que se insere e que, em última análise, devidamente o esclarece.
Na verdade, múltiplos condicionalismos — alguns radicados em períodos remotos da história hospitalar e que, por isso mesmo, tendem a ser esquecidos, sobretudo pelos mais jovens, e outros pelo menos de difícil acessibilidade a quem não haja acompanhado, com vigilância crítica, atenta e permanente, o nascimento & a formulação dos acontecimentos — se enredam em confusa teia, que retira significado a qualquer apreciação parcelar das várias avaliações externas do processo.
Importa sobremaneira compreender que a chamada «-crise dos internos» representa apenas um dos aspectos — por agora, o mais aparente — do complexo vasto de uma fundamental «questão hospitalar»; e conviria, também, que se localizasse esta última no contexto global de uma política de saúde e assistência que pretende ser unitária e reflectir-se, assim, nos diferentes sectores da vida nacional, a que respeita, nomeadamente nos vários ramos da administração sanitária.
Medidas deliberadamente adoptadas com visita à modificação, rápida e eficaz, de estruturas e termos de funcionamento de instituições cuja revisão até aqui tem sido insistente mente solicitada não deixariam, por certo, de ser sentidas como possível abalo de algumas situações desde longa data toleradas, mas cuja aceitação haveria de ser posta em causa. Nunca o Governo alimentou ilusões sobre dever esperar reservas, individuais ou de grupos diferenciáveis, ao plano que traçou e às programações que, correspondentemente, sem perda de tempo, começou já a executar. Cumpre-lhe, porém, conjugar os interesses que essas posições traduzem na perspectiva equilibrada de uma harmonia geral que os gradue em consonância com criteriosa hierarquia de valores e da qual, sobretudo, não resulte prejuízo para os interesses colectivos nem alheamento das bases fundamentais que hão-de inspirar a unidade de uma política.
Tem-se a convicção de que a análise informada e esclarecida da recente agitação hospitalar a revela como sintoma de reacções a um conjunto de problemas que nos últimos anos se adensaram e que se prestou a hábil exploração em moldes de acção subversiva, apoiada, para mais, pela transplantação para o plano hospitalar de métodos, procedimentos e agentes já anteriormente ensaiados no campo estudantil e cuja penetração no âmbito da representação profissional tem também sido objecto de repetidas tentativas.
Procurar-se-á, pois, sucessivamente, descrever, em breve síntese, a situação encontrada pela actual equipa governamental no sector da saúde e assistência e enunciar o traçado geral das orientações fundamentais que presidem à sua acção neste momento, para, nessa base de esclarecimento, fornecer, depois, os elementos indispensáveis à análise interpretadora e valorativa dos incidentes na vida hospitalar e das decisões com que prontamente se procurou saneá-la.
2. Só em 1968 se delineou em texto de lei uma organização, com carácter nacional, das carreiras médicas, e apenas no ano imediato foi, pela primeira vez, regulamentado, segundo idêntica perspectiva genérica e em directa relacionação com aquela medida, o internato médico. Anteriormente, existiam embriões de carreiras — no plano da saúde pública, no sector universitário e no domínio hospitalar e funcionavam internatos, mas essas instituições careciam de âmbito nacional, reportando-se, antes, especificamente, a cada uma das estruturas orgânicas ou estabelecimentos em que se aplicavam. Constituíram-se, mesmo, tradições individualizadas, com particular relevo para o internato dos Hospitais Civis e para a carreira de cirurgião destes Hospitais.
Ao longo de muito tempo, consolidou-se um modelo que a prática desenhou para tais instituições e que, pelo menos nas soas linhas gerais, é largamente conhecido.
Saído da Faculdade de Medicina — com uma licenciatura que constituía habilitação legal bastante para o exercício da profissão —, o jovem médico dirigia-se, normalmente, para a clínica livre. Enfrentava dificuldades próprias do lançamento numa actividade liberal, mas podia, em contrapartida, alimentar certas expectativas profissionais e gozava, na maior parte dos casos, do apoio que a sua inserção social lhe facultava. Tem-se ainda, por outro lado, na memória a ambiência que caracterizava então a actividade médica: havia uma clientela que se fixava num médico de família, a quem, de acordo com o grau de evolução da medicina por essa época, se pedia, essencialmente, preparação de clínica geral; só os econòmicamente mais desfavorecidos procuravam o hospital — nascido da caridade e que se olhava com certo medo; não existiam as formas actuais de medicina organizada e, entretanto, os serviços públicos de saúde confinavam as suas autuações no campo estreito da higiene e da antiga epidemiologia. Neste contexto, eram, portanto, minoritários os médicos hospitalares ou que exerciam a profissão por conta de outrem.
Para adquirir prática clínica, o jovem médico podia tentar a admissão no internato. As portas do hospital,
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porém, não se lhe abriam fàcilmente: para o internato geral, havia de passar por um concurso que tinha as suas exigências e, se obtivesse alguma das poucas vagas previstas, quando, no termo, desejasse continuar a preparação por ingresso no internato complementar, havia de submeter-se a novas provas, estas com rigor de selecção ainda maior e dirigidas a um número de lugares que, por seu turno, era também mais reduzido. Para a grande maioria dos que passavam pelos hospitais, a vida hospitalar extinguia-se, pois, no internato geral; quando se ia mais longe, parava no fim do internato complementar. Carreira — se é que se pode considerar-se tê-la havido nesse tempo começava apenas pelo ingresso no quadro permanente. Era-se convidado a apresentar-se a um rigoroso concurso, aliás cheio de contingências de vária ordem, e entoava-se para assistente; a partir daí, a vida profissional hospitalar continuava, por acessos feitos com base num critério de antiguidade.
Rodeava-se de enorme prestígio o exercício de funções no quadro permanente — dentro e fora do hospital. Sabia-se que só muito poucos o alcançavam, de modo que os respectivos títulos conceituavam o médico na opinião pública, compensando-o, no exercício da clínica livre, da escassez de remuneração que lhe correspondia pelo cargo hospitalar. Posição, portanto, destacada, o prestígio da situação e a inacessibilidade que a caracterizava cumularam-se em círculo, tornando-a muito dificilmente franqueável ao médico comum.
Importa, principalmente, reter que, em rigor, só existia carreira a partir do ingresso no quadro permanente; o internato aparecia desligado dessa nova fase; não tinha, pròpriamente, a natureza de um primeiro período de exercício profissional, já no seio de uma carreira integrada que oferecesse perspectivas de normal continuidade. Revestia, sim, o carácter de um simples estágio, aliás em muitos casos limitado à preparação básica do internato geral; por isso mesmo não era considerado função e atribuíam-se-lhe gratificações meramente simbólicas, criadas porventura para que se não deixasse por completo de atender a que, na sua frequência, embora sem se ser ainda profissional, já também se não era apenas estudante.
3. A vida não se compadece com sistemas imobilizados, e o modelo atrás referido iria confrontar-se com novos condicionalismos, de que se salientam as alterações estruturais do exercício da profissão médica, a evolução do recurso ao hospital e as mutações ocorridas no teor da preparação profissional, que passou a reclamar-se para adaptação a estádios cada vez mais avançados da ciência e das técnicas médicas — factores que, entretanto, entre si, mutuamente se influenciam e promovem.
Algum desenvolvimento da actuação de serviços públicos de saúde, a maior procura do hospital e, acima de tudo, a promoção da medicina organizada (com grupos populacionais cada vez mais vastos abrangidos pelos esquemas médico-sociais da Previdência) vieram condicionar as perspectivas da clínica livre e o médico passou a desejar o cargo de hospital como meio de completar o exercício da profissão na Previdência, na assistência, no âmbito da saúde pública ou, em geral, na medicina por conta de outrem. A Universidade começou, entretanto, a ser frequentada por elementos mais largamente provindos de diferentes estratos económico-sociais, aspecto que podia trazer a cada caso particular condicionamentos especiais, que se aditavam a certa rarefacção da clientela, no quadro de dificuldades que se levantavam ao jovem médico. Pode, mesmo, dizer-se que as actividades médicas passaram a desenvolver-se, centralmente, nos serviços públicos, nos hospitais, nos quadros da medicina organizada; e, assim, do mesmo modo que no antigo contexto a óptica por que encarava o exercício médico era a que conduzia à definição de um estatuto para a profissão liberal, hoje a tutela desejada passou a ter de considerar também a segurança de um destino profissional, à luz dos novos enquadramentos.
Entretanto, perdeu-se o medo ao hospital, e daí chegou-se até ao ponto de só nele se encontrarem, para vários casos, recursos instrumentais para conveniente diagnóstico e tratamento. Aumentou, pois, a densidade da população que recorre aos serviços hospitalares — designadamente a partir dos acordos celebrados com a Previdência —, o que tornava evidente a necessidade de alargamento do pessoal hospitalar, em especial dos médicos.
Por fim, a acção médica postula, agora, especialização crescente, que não dispensa uma frequência intensiva do hospital, e mesmo a clínica geral exige uma cuidada preparação hospitalar básica, desenvolvida depois por meio de aperfeiçoamento pós-graduação, obtido em cursos especialmente programados de acordo com o sector para que se oriente a sua aplicação.
Quando sofrem o impacto de factores novos, os sistemas consolidados, durante um período, defendem-se; só depois se lhes adaptam ou aceitam reestruturações adequadas. Assim sucedeu, por diversas formas, quanto às funções médicas hospitalares, do que podem ver-se exemplos nítidos na criação do «internato intermediário» e no estabelecimento da categoria de «graduado» na sua primitiva modalidade.
O internato intermediário era um período cujo ensino não diferia essencialmente do do internato geral, que ele apenas prolongava por mais algum tempo; no entanto, durante este novo internato o interno podia frequentar serviços de especialidades, assim se proporcionando um mínimo de contacto com a especialização àqueles a quem se não abria o internato complementar. Tratava-se, pois, de uma solução de recurso, que mantinha restrições anteriores, adiando a medida fundamental, que seria uma perspectiva renovada da função do internato, em consonância com as realidades da época.
O «graduado», por seu turno, foi introduzido no conjunto das funções hospitalares como figura híbrida: cometiam-se-lhe funções de quadro permanente — semelhantes às do assistente —, mas conferia-se-lhe estatuto de elemento provisório, sem os direitos e privilégios que continuavam reservados para os médicos dos quadros permanentes. A existência, posterior, de graduados vitalícios não anula este ponto de vista, antes o confirma, e aliás constituiu uma solução ocasional aplicada apenas a certo número de «graduados» e, portanto, sem carácter generalizado.
As necessidades de pessoal médico no hospital encontravam, pois, resposta, não em alargamento dos quadros, mas na admissão de elementos considerados excedentários, que,, no entanto, se tornaram cada vez mais imprescindíveis ao funcionamento dos serviços. Pondere-se, ainda, que o interno deixou de ser, para o hospital, um estudante, convertendo-se, muita vez, em factor relevante da vida hospitalar, o que não poderia deixar de ser atendido na definição de qualquer estatuto do internato.
4. De toda esta conjuntura, com que se chega à década de sessenta — simultâneamente de persistência de moldes antigos e de insinuação de elementos novos no sistema que, porém, sobrevivia sem reelaboração —, dá nota o Relatório das Carreiras Médicas, que a Ordem idos Médicos publicou em 1961. As «carreiras» eram, aliás, objecto de um «movimento» — como apropriadamente
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se lhe chamou —, o qual visava precisamente, em resposta aos descritos condicionalismos, trazer à profissão médica, nos seus vários campos de exercício, feição que lhe oferecesse a segurança de um regime legal.
Após algumas vicissitudes, o «movimento das carreiras» veio a receber uma primeira expressão legislativa em diplomas de 1968 e 1969 — o Estatuto Hospitalar (Decreto-Lei n.º 48 357, de 27 de Abril de 1968), o Regulamento Geral dos Hospitais (Decreto n.º 48 338, da mesma data), completados, finalmente, pelo Regulamento do Internato Médico (Portaria n.º 23 903, de 6 de Fevereiro de 1969).
Instituíram-se, então, princípios de carreiras, mas referidas apenas aos hospitais e de que, em especial, interessa a carreira médica, graduada nos termos do artigo 42.° do Decreto n.º 48 358 e regulada por disposições subsequentes do mesmo diploma.
Sem desmerecimento da tentativa, a que se deve apreço, não deixa, contudo, de entender-se que ela se ressentia de algumas limitações, naturais, aliás, pois se tratava de uma primeira intervenção, a nível nacional, na matéria. Assim, verifica-se que a graduação adoptada se circunscreveu pràticamente ao desenho de escalões a que o tempo dera lugar. Por outro lado, as soluções quanto a número de lugares, embora com alargamento — que, segundo vimos, as necessidades de serviço impunham —, continuavam, no entanto, a obedecer à ideia liminar da limitação de vagas; finalmente, apesar de se proceder a um princípio de integração da carreira, a verdade é que o internato se conservava desligado, pela natureza, dos restantes graus, não se lhe conferindo com toda a plenitude o carácter de função hospitalar, programada de acordo com o plano geral da organização sanitária e da política de saúde global do País.
O sistema implicava, porém, alguma inovação na vida hospitalar. Disse-se que trazia para o problema das carneiras a perspectiva própria dos quadros de funcionários dos serviços públicos comuns e pôs-se, frequentemente, em dúvida que fosse de execução viável na ausência de medidas complementares, tomadas no âmbito, mais largo, de uma reforma hospitalar generalizada.
Residirá, porventura, nessas circunstâncias a fonte de certa perturbação nas estruturas e na vida hospitalar, que, desde essa data, se tem agravado. Os hospitais, embora mantendo uma prestimosa tradição de serviços, não conseguiram eliminar vícios antigos, e assistiu-se a cada vez maior ocupação de tempo com discussões travadas sobre assuntos de interesse para a desejada reforma, mas, depois, gradualmente desviados para uma acção muitas vezes divorciada dos reais problemas hospitalares.
Inseriu-se, entretanto, neste processo evolutivo, a influência do alargamento da frequência do internato e da importação, pana dentro dos hospitais, de actividades de tipo estudantil, conforme já se referiu.
Compreende-se que não seria este o clima propício para a execução, para mais em fase inicial, do regime dos diplomas de 1968 e do correspondente princípio de reforma hospitalar. Talvez por este motivo, conjugado com a existência de inúmeras situações especiais, resultado do impacto das novas soluções com realidades anteriores que persistiam, o Governo viu-se na necessidade de adoptar uma medida transitória: em decreto-lei estabeleceu-se que, durante os anos de 1969 e 1970, poderiam ser resolvidos por despacho os casos que carecessem de adaptações do regime legalmente fixado.
No ambiente daí resultante, insusceptível de imediata alteração, muitas situações se criaram sem os devidos pressupostos, e a confusão do sistema profissional nos hospitais acentuou-se.
Não podem, entretanto, improvisar-se, miraculosamente e de jacto, sistemas orgânicos e regimes legais destinados a orientar todo um importante sector da política social. Desde o primeiro momento foi, de resto, nossa convicção firme de que as soluções para o complexo de problemas que havíamos de encarar só poderiam ser validamente encontradas na perspectiva ampla de uma política fundamentada, unitária e integral, de saúde e assistência. Por isso mesmo, logo poucos meses após o início de funções, a equipa responsável pelo sector apresentou os primeiros projectos de reformas basilares. Vieram esses projectos a consubstanciar-se em dois diplomas fundamentais — a reforma orgânica do Ministério da Saúde e Assistência e o diploma sobre carreiras profissionais, de 27 de Setembro de 1971, cujos projectos, estabelecidos inicialmente com base em estudos efectuados sobre experiências anteriores de idênticas medidas, foram refundidos mediante crítica que largamente se suscitou. No caso das carreiras, foram, com efeito, pedidos pareceres a diversos profissionais dos vários sectores abrangidos e considerou-se de modo muito particular o ponto de vista da Ordem dos Médicas, cuja, posição, publicada no respectivo Boletim, n.º 19, de 15 de Novembro de 1970, pp. 481 a 489, foi devidamente ponderada e em boa parte atendida. Quanto à orgânica, por seu turno, deu-se, como parece aceitável, especial atenção às críticas formuladas por serviços, tanto do Ministério como de outros departamentos. Tiveram-se> para além disso, em apreço informações e orientações de ordem internacional no âmbito de contactos a esse propósito estabelecidos com a Organização Mundial de Saúde.
Ainda na perspectiva que consiste em considerar o conjunto dos problemas que afectam a vida hospitalar e que a propósito dos recentes incidentes foram por alguns chamados à colação, importa salientar os aspectos fulcrais do regime posto em vigor por tais diplomas, bem como os exactos termos da actuação que, para lhe conferir expressão concreta, tem procurado desenvolver-se.
5. A reforma orgânica do Ministério e as soluções relativas a carreiras profissionais, que dela não podem ser dissociadas, inspiram-se no objectivo de promoção do bem--estar pela saúde, a que procuram dar concretizações específicas, adoptadas com ponderação suficiente das coordenadas em que vão inscrever-se as actividades de saúde e assistência.
O tema presta-se a muitos e minuciosos desenvolvimentos, mas circunscrevemo-los a alguns pontos de mais directa relevância nesta oportunidade.
O objectivo básico da política de saúde não pode ser concebido com limitações, mas, evidentemente, encontra-se, em cada momento, sujeito a limites concretos na sua efectivação. Quer isto, nomeadamente, dizer que deve, por todos os meios válidos, visar-se sempre a obtenção de níveis de saúde cada vez mais altos, mas que as disponibilidades de cada instante determinam os graus a que é possível aceder. O problema pode, entretanto, ser visto também pelo ângulo inverso: em função dos estádios de desenvolvimento geral, definem-se, para o País, níveis de base — padrões mínimos de saúde, se assim quisermos dizer — que se entende deverem ser assegurados a toda a população.
À luz deste entendimento, esclarecem-se várias das opções da política de saúde e assistência adoptada, de que merecem referência especial: a orientação seguida quanto à iniciativa privada, o método preconizado para os serviços do sector público, o critério de organização geográfico-sanitária do País e o sistema de carreiras definido em
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consonância com as demais soluções do conjunto integrado de medidas.
A promoção de saúde não foi encarada como exclusivo do Estado, a cargo apenas de serviços públicos ou prosseguida segundo a óptica da chamada «socialização da medicina». Entende-se — aliás em respeito da Constituição e das leis votadas na Assembleia Nacional — que a iniciativa privada deve ser desenvolvida e pensa-se que só pelo aproveitamento de todos os concursos válidos, actualmente disponíveis, se estará promovendo a obtenção de níveis sempre acrescidos de saúde. Ao Estado ficam três grandes ordens de atribuições: assegurar a todos os portugueses o nível padrão, cada vez mais elevado, de saúde e apoiar o recurso a todos os outros meios que lhes facultem a obtenção de graus sanitários sempre mais desenvolvidos; garantir a qualidade e o máximo rendimento de todas as instituições de saúde e assistência — quer as dos serviços públicos, ou, de um modo geral, as dependentes do Estado, quer as nascidas de iniciativa privada; e coordenar as respectivas actuações, com vista à prossecução de uma política unitária de saúde e assistência.
O recurso a serviços particulares, incluindo os da clínica livre, é, portanto, amplamente permitido, e, mais do que isso, desejado até, se nele se traduzir o acesso da população a níveis de rendimento que lhe permitam maior consumo médico e mais altos padrões sanitários. Nem mesmo se exclui, aliás, que, em resultado de uma política de desenvolvimento, cultural, social e económico, venha a verificar-se um progressivo acréscimo dos serviços particulares, nomeadamente com recuperação de situações, hoje perdidas, pela clínica livre.
Exemplo patente desta linha de orientação encontra-se no processo que se observa quanto à Assistência na Doença aos Servidores do Estado, em que se faculta aos inscritos a livre escolha de médicos e de estabelecimentos e modalidades de internamento, assegurando-se-lhes a cobertura de um montante padrão dos respectivos encargos. Idêntico sistema está, entretanto, a ser aplicado experimentalmente no domínio da Previdência.
Relativamente aos serviços de iniciativa privada, o Estado desempenha, então, apenas uma actividade interventora, em ordem a exigir-lhes aceitáveis moldes de exercício e a estimulá-los a concorrerem para a realização da política de saúde e assistência. Inequívoca aplicação desta ideia é feita, por exemplo, quanto ás Misericórdias, relativamente' a cujos serviços de saúde e assistência o próprio diploma orgânico manda atender, simultâneamente, a duas ordens de valores: o espírito e missão tradicionais dessas serviços e os aspectos técnicos do seu funcionamento; respeita-se-lhes, assim, a natureza e a liberdade institucionais, enquanto, do mesmo passo, se lhes promovem adequados estímulos de melhoria técnica.
Neste espírito, foi já possível, sem ofensa da autonomia respeitável das instituições, obter adesão à abertura da carreira médica nos respectivos hospitais.
Por fim, a coordenação de actividades e a integração numa política única decorriam já da Lei n.º 2120, que fixou as bases da política de saúde e assistência e, bem assim, da Lei n.º 2115, que estabeleceu as bases da reforma da Previdência. Os princípios a esse respeito enunciados, em fórmulas gerais, por qualquer dos dois diplomas terão, porventura, encontrado agora as vias de efectivação prática, nas modalidades concretas de coordenação e integração determinadas pelo Decreto-Lei n.º 413/71.
Não se esperaria, òbviamente, que todas as integrações necessárias estivessem já neste momento executadas, e a precipitação de medidas desta natureza comprometer-lhes-ia, sem dúvida, irremediavelmente, o êxito. Importa, no entanto, notar que todas se encontram em curso, em fases naturalmente mais ou menos adiantadas, conforme a complexidade dos correspondentes condicionamentos e dos interesses envolvidos pelo processo, que não seria lícito deixar de criteriosamente ponderar.
6. Convém particularizar este ponto no que se refere à articulação dos serviços médico-sociais da Previdência com os dependentes do Ministério da Saúde e Assistência.
Com tal objectivo foi, logo nos primeiros meses de 1970, constituída uma comissão para cuja presidência se convidou — atentas as funções de bastonário da Ordem dos Médicos, que desempenhava, e a qualificação técnica que possuía — o Sr. Prof. Doutor Miller Guerra.
Aliás, e a solicitação sua, o elenco da comissão foi mesmo aumentado com um outro elemento da Ordem, mas em representação específica desta. Apesar disso, tanto um como outro, não chegaram a tomar posse e recusaram-se mais tarde a fazê-lo, privando a comissão e ambos os Ministérios de uma colaboração que se esperava viesse a ser da maior utilidade.
Havia, porém, que superar as sucessivas demoras, já que o funcionamento da comissão não podia ser protelado, sob pena de resultarem indefinidamente adiadas as soluções que se procuravam, e por isso se pediu à Ordem novo representante, a seu tempo designado.
Na perspectiva da instituição de um sistema nacional apto a executar uma política de saúde unitàriamente definida, a comissão decidiu, então, proceder à revisão, em bases inovadoras, dos acordos celebrados entre a Federação de Caixas de Previdência e Abono de Família, por um lado, e a Direcção-Geral dos Hospitais e o Instituto de Assistência Nacional aos Tuberculosos, por outro, bem como preparar a celebração de novos acordos por forma a abranger a utilização generalizada dos serviços dependentes do Ministério da Saúde pelos beneficiários do seguro social. Assim foi possível assinar já o acordo com o Instituto de Assistência Psiquiátrica, enquanto se encontra em preparação instrumento análogo para regulamentar as relações entre os postos clínicos e os centros de saúde.
Uma vez todos concluídos e passada a fase inicial da sua vigência, espera-se que o regime por eles consagrado venha a constar de um único texto, que funcionará como verdadeiro estatuto da cooperação entre as instituições de previdência e os serviços dependentes do Ministério da Saúde e Assistência.
Importa, porém, considerar que o novo acordo celebrado com a Direcção-Geral dos Hospitais, ultrapassando a visão contratualista inspiradora dos textos precedentes, permitiu já pôr de pé todo um sistema institucionalizado de relações entre os serviços dependentes de ambos os departamentos, embora ainda com as imperfeições próprias de um regime que inicia os seus passos.
Por sua vez, a imediata integração dos vários serviços dependentes do Ministério da Saúde, que dá o tom ao método escolhido para promover a mais económica e funcional — e, portanto, a mais produtiva — promoção de níveis acelerados de saúde, exprime-se, a nível concelhio e distrital, pela constituição de centros de saúde. Mais do que um órgão, o centro de saúde é, principalmente, uma via orgânica para a gradual integração de serviços, hoje dispersos na periferia. Houve, ao considerá-lo assim, uma preocupação de realismo. O valor das instituições existentes varia muito, de caso para caso, e a medida da sua autonomia tem de ser, sucessivamente, decidida em função de múltiplas circunstâncias. Nos centros integram-
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-se 03 serviços que não justifiquem independência orgânica; quando, porém, se verifica que esta autonomia constitui a forma mais conveniente para os objectivos de promoção da saúde, ela é respeitada e o centro desempenha, neste caso, um papel de coordenador das actividades de tais serviços com as dos restantes da mesma área.
Sobreleva, a este propósito, o caso dos hospitais Não vamos agora discutir se é ao hospital ou ao centro de saúde que cabe a função de centro promotor de saúde, pois a questão afigura-se resolvida pelos próprios termos em que é colocada. O centro de saúde tem funções polivalentes, definidas de acordo com uma ideia de saúde integral, que envolve a consideração simultânea de aspectos de promoção da saúde, prevenção e tratamento da doença, separados apenas em metodologias sanitárias hoje ultrapassadas. No âmbito das suas atribuições polivalentes, compreendem-se cuidados módicos de base. Mas o centro não desempenha a função hospitalar, que é específica, que a sua estrutura não permitiria e que só ao hospital deve caber. Há, de resto, a intenção de dosem volver as unidades hospitalares, de acordo com as coordenadas já aludidas e segundo um programa de revalorização de instalações e equipamento que está em curso.
As funções sanitárias a exercer na base concelhia serão, essencialmente, de triagem e do tipo correspondente à clínica geral — cuidados médicos de base — e às especialidades correspondentes sobretudo às valências do grupo materno-infantil.
7. Mencionam-se estes pontos, porque inspiraram, em grande parte, critérios adoptados quanto à organização geográfico-sanitária do País e ao sistema de carreiras profissionais.
A necessidade de garantir níveis padrão de saúde refere-se, no entendimento do Governo, a toda a população do País, qualquer que seja a sua inserção social e económica, a sua ocupação profissional ou a sua localização geográfica.
Já declarámos estimar-se que a população possa, por razões sociais e económicas, utilizar prestações de serviços particulares que lhe proporcionem níveis de saúde mais elevados que o padrão garantido pelo Estado. Para os casos em que não ocorra essa possibilidade, porém, compete ao Estado e a instituições dele dependentes organizar serviços que assegurem o nível padrão. Trata-se, aliás, ide uma decorrência directa da garantia do direito à saúde, constitucionalmente contemplado e a que as reformas em curso visam conferir a devida efectivação de acordo com os sucessivos graus de desenvolvimento geral do País.
A execução deste princípio emancipou-se das antigas formas de assistência, tendo os esquemas da Previdência abrangido, progressivamente, grupos populacionais cada vez mais vastos, tendendo a coincidir, como convém, com a totalidade dos portugueses. Esta evolução, conjugada com a necessidade de desenvolver os termos concretos da prestação de serviços médico-sociais, de acordo com o estádio da ciência e das técnicas médicas, aponta flagrantemente para a instituição de um sistema nacional de saúde, pelo qual se promova uma «saúde igual para todos» — para empregar uma expressão que começa a generalizar-se. Nesse enquadramento, as diferenciações profissionais ou as de inserção social não deixam, de resto, de ser atendidas nos aspectos cujo conhecimento coadjuva a prestação adequada de serviços médicos, pois que o método, hoje aplicado, de «medicina compreensiva» envolve essa perspectiva na análise do doente e, em termos mais genéricos, dos destinatários dos programas de saúde.
Ainda de acordo com a mesma ideologia básica, não seriam licitais selecções de que resultasse desfavor para quaisquer regiões ou locais do País. Certamente, existe uma geografia sanitária de que não deve abstrair-se na organização dos serviços. A reforma da saúde observa, portanto, um critério de regionalização e atende, sobremaneira, às realidades locais. O modelo de serviço, que o centro de saúde representa, constitui disso a maior demonstração, pois traduz à evidência propósitos, já referidos, de organizar, em cada local, o tipo complexo de serviços mais recomendável em função das realidades do meio — das instituições nele existentes e das necessidades sanitárias que revele. Mas, precisamente por se haver concebido este, fórmula 'dinâmica e maleável, já não seria admissível dedicá-la apenas a umas regiões geográficas e não a outras.
Nomeadamente, afigurar-se-ia ilícito raciocinar na base do despovoamento de certos espaços do território. Sem dúvida, os aglomerados da orla marítima e os pólos de crescimento têm uma textura populacional muito diferente da das terras fronteiriças, são diversos, num caso e no outro, os condicionalismos culturais, económicos e sociais e, por todos estes motivos, variam também as corres pendentes necessidades sanitárias. Por isso mesmo, não se irá, certamente, desenvolver valências de higiene industrial nas zonas rurais, como não se faz medicina tropical fora do âmbito a que se destina. Mas haverá serviços 'em todos os concelhos — ramificados, aliás, quando for caso disso, até à extrema periferia, por meio de postos de saúde, para freguesias ou grupos de freguesias — e em todos se observarão os mesmos princípios basilares, e se fará aplicação de um mesmo método geral, que a maleabilidade das instituições orgânicas agora criadas permite, da melhor maneira, adaptar a cada ambiente em especial.
8. E é chegada a altura de explicar os reflexos de todas as conclusões anteriores no sistema de carreiras que se estabeleceu. Houve o cuidado de promulgar o respectivo regime legal em simultaneidade com o diploma orgânico, precisamente pelas implicações recíprocas que entre as duas medidas se travam.
As alterações, logo de início analisadas, que se verificaram, durante os últimos decénios, nos termos do exercício da medicina recomendam, como vimos, a definição de um estatuto reportado aos vários sectores em que se desenvolvem as actividades profissionais — a clínica livre, a medicina organizada, a medicina hospitalar, a saúde pública. Para além disso, o médico trabalha, hoje, em equipas plurais: tem junto de si a enfermeira, o auxiliar sanitário, o técnico de serviço social, o técnico de laboratório, o técnico terapeuta, o administrador, e com todos eles mantém relações que condicionam o desempenho da sua missão própria.
O sistema das carreiras profissionais agora em vigor subordinou-se, portanto, a uma dupla ideia: de que a medida devia abarcar todos os ramos profissionais, definindo-lhes conjugadamente os estatutos, de modo a criar uma harmonia de conjunto; e de que, por outro lado, as soluções adoptadas, em especial para o caso da carreira médica, haviam de atender às várias orientações sectoriais possíveis no exercício da profissão. Deixamos, quanto ao primeiro ponto, apenas esta breve referência e ocupar-nos-emos, em particular, do segundo; ambos parecem, no entanto, envolver um avanço sobre o regime anterior, estritamente referido, como vimos, ao sector hospitalar e, aí, apenas a um núcleo de profissionais.
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Acrescente-se, ainda preliminarmente, que não foram previstas carreiras médicas especiais para certos ramos ou especialidades (de que importa mencionar a Previdência e a pneumotisiologia), pois tal medida não faria sentido à luz da orientação geral programada: a articulação dos serviços da Previdência com os de Saúde e Assistência retira, na verdade, razão de ser à criação, que se contemplasse agora, de uma carreira própria para os médicos da Previdência; e a especialidade de pneumotisiologia e de doenças torácicas há-de, lògicamente, ser encarada, como todas as demais especialidades médicas, por referência às carreiras de saúde pública e hospitalar.
Em correspondência com a noção, também já atrás desenvolvida, de que todo o médico carece, hoje, de uma familiarização hospitalar, conferiu-se ao internato uma feição inteiramente nova.
Em primeiro lugar, ele deixou de ser um período de estágio a que, excepcionalmente, se acedia, para se converter na preparação que se considera indispensável a todos os profissionais médicos. Traduziu-se esta orientação na abertura do internato de policlínica a todos os licenciados em Medicina, sem precedência de qualquer concurso e sem limitação de vagas, e, por outro lado, numa amplíssima generalização do internato de especialidades, no qual o número de vagas, determinável por despacho anual, se fez corresponder, neste primeiro ano de aplicação, a cerca de 80 por cento do número de concorrentes. Eram, na verdade, inicialmente 300 os candidatos previstos, e foi nessa base que se fixaram, de princípio, 240 vagas. Como, porém, apareceram mais candidatos — nomeadamente os militares —, o número foi sucessivamente alargado, sempre, porém, na mesma perspectiva de critério de percentagem. Aliás, o número final a que se chegou é compatível com as indicações recebidas sobre a possibilidade de os vários hospitais comportarem o funcionamento do internato.
Perguntar-se-á, talvez, por que se não seguiu, quanto ao internato de especialidades, o mesmo critério de não limitação de vagas que se verifica quanto ao internato geral. A razão é simples. Não foi por capricho que se alteraram as denominações «internato geral e internato complementar» para, respectivamente, «internato de policlínica» e «internato de especialidades». A nova terminologia reflecte a concepção que preside aos internatos: ambos são completos, nenhum tem a função de complementar do outro; a orientação profissional, para que apontam, é que difere, e enquanto o internato de policlínica prepara para o exercício de policlínica, o outro prepara para o exercício de especialidades; o primeiro forma médicos de clínica geral, o segundo médicos especialistas. Ora bem: entendeu-se que o País não precisa só de especialistas, mas também de médicos de clínica geral, e considerou-se, por outro lado, que nem em todos os casos as vocações orientam para o exercício de especialidades.
Não havia, então, razão nenhuma para não limitar vagas no internato de especialidades, e, porque se julga que os serviços de saúde pública — para os quais já em Janeiro de 1972 se abrirá novo concurso para um total de cem vagas —, a medicina organizada e a clínica livre absorverão, nas actuais condições, cerca de 20 por cento dos novos médicos para efeitos de clínica geral, fixou-se a referida percentagem de lugares no internato de especialidades. Claro que os não admitidos no internato de especialidades podem a ele concorrer novamente, se é, apesar disso, forte o seu desejo de exercer uma especialidade; mas parece inteiramente razoável que só se lhes abra a porta à satisfação desse propósito depois de o assegurar àqueles que, além de o manifestarem também, foram considerados pelas provas prestadas como revelando maiores vocações nesse sentido.
Desfaz-se, neste ponto, uma dúvida que já se viu levantar: então os médicos que se destinam aos serviços que asseguram o nível padrão de saúde garantido pelo Estado serão, afinal, os piores, ou maus profissionais? Nada disso. Os serviços pelos quais se assegura o padrão de saúde também dispõem de especialistas: há-os nos hospitais, há-os nos serviços de saúde pública, nomeadamente nos centros de saúde, e há-os também nos serviços médico-sociais da Previdência. Só enquanto exercem funções de triagem básica, de cuidados médicos de base, de promoção geral da saúde e de prevenção geral da doença é que os serviços recorrem ao clínico geral, sendo, aliás, de notar que se organizam cursos de aperfeiçoamento, com vista a garantir a permanente actualização dos correspondentes médicos e a sua especialização nas funções de saúde pública.
Entende-se, entretanto, que mesmo o especialista carece de uma formação básica de policlínica, e aí reside o motivo de só poder cursar-se o internato de especialidades após o de policlínica e, por outro lado, de este se encontrar aberto a todos os médicos.
Reconhecer-se-á que não houve na orientação seguida — designada agora por «democratização do internato» — nenhuma motivação demagógica: as medidas foram, como se explicou, adoptadas à luz de critérios que harmonizam, numa política unitária, as diferentes decisões tomadas no domínio da saúde e assistência.
Dada a variedade de orientações sectoriais por que o médico pode enveredar, teve-se também a intenção de dar ao internato a natureza de primeira fase de carreira médica, que depois prossegue, sem solução de continuidade e com segurança de destino profissional, por um dos vários caminhos que se oferecem: o policlínico pode dirigir-se para a saúde pública, para a medicina organizada, bem como, se o quiser, para a clínica livre, ou continuar no hospital e, qualquer que seja a sua opção, é-lhe conferido um estatuto de graduação equivalente, assegurando-se, nomeadamente, nos serviços, remunerações idênticas quanto aos vários casos; o especialista encontra também as mesmas opções, se, em vez da carreira de saúde pública ou da medicina organizada, ou ainda da clínica livre, prefere a carreira hospitalar, continua no hospital. As várias ramificações asseguram, entretanto, colocação profissional dentro de um processo global que procura atender, simultâneamente, ás propensões e desejos particulares dos vários médicos e aos interesses de cobertura médica do País, nas diferentes regiões e nos diversas sectores e especialidades, desenvolvendo, para isso, os estímulos que se consideram mais apropriados.
Por força desses estímulos foram já colocados 50 médicos em hospitais distritais, como ide resto está a acontecer também com profissionais de enfermagem, ao abrigo de um programa de fixação de pessoal na periferia, com vista à indicada promoção de cobertura sanitária geral do Pais.
Compreender-se-á que não se assegure a todos colocação em Lisboa, no Ponto ou em Coimbra — porque o País não se circunscreve às três cidades —, como que se não garanta a colocação ilimitada de especialistas nas especialidades que pretendem, pois o País não carece só de pediatras, ou só de cirurgiões, mas também de oftalmologistas, de pneumotissiólogos e de profissionais pana todas as especialidades. Claro que cada um é livre de seguir o que deseja, mas ao Estado cumpre programar as distribuições, de modo a estimular as orientações mais conformes com os interesses colectivos.
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Nesta concepção, o internato acaba por ser essencial no conjunto dos serviços hospitalares e, por outro lado, configura-se, verdadeiramente, já como um princípio de carreira mais do que simples fase pós-graduação. Não se excluem, por forma alguma, os objectivos de ensino, e um novo processo de monitorização que permita acompanhar com maior eficiência os internos está em curso, por forma a obter melhores resultados didácticos, embora com efeitos que, por enquanto, não são ainda inteiramente satisfatórios, pois se está em regime experimental. Porém, atendendo àquelas duas circunstâncias, entendeu-se dever remunerar o internato como autêntica função, em vez de se lhe fazerem corresponder apenas subsídios, simbólicos ou não, mas a que, em qualquer caso, faltaria a natureza de vencimentos estabelecidos na base dos padrões fixados à luz do plano geral das carreiras.
Todas estas medidas resultam, em suma, de se considerar indispensável a preparação médica, em correspondência com as exigências dos vários modos de exercício profissional. Por isso mesmo, o sistema das carreiras se, por um lado, oferece a segurança profissional, por outro não pode deixar de pedir a contrapartida de uma efectiva formação e aperfeiçoamento permanente, implícita, aliás, no próprio conceito de «carreira», que os métodos de selecção arbitrária e de acesso por antiguidade deixaram de poder definir.
9. Centra-se aqui o nó dos pretextos invocados para a recente agitação hospitalar, pois que as pretensões primitivamente formuladas envolviam dois pontos principais: não haver limitação de vagas no internato de especialidades e não se exigirem quaisquer provas de apuramento da preparação obtida e de graduação de méritos.
Não sabemos se os internos, jovens e recém-chegados aos hospitais, poderiam aperceber-se, com inteira nitidez, das facilidades imensas e das garantias amplas de ingresso e acesso nas carreiras, numa perspectiva por completo contrária à dos privilégios de grupo que havia antigamente; mas cremos que não poderia, de modo algum, permitir-se a diversão do espírito que anima estas reformas para o de uma aceitação anarquizante da mediocridade e da ausência de trabalho e de esforço de valorização. Só esta atitude pode corresponder ao empenho do Governo em rever as instituições e justificar o encargo financeiro suportado pela Nação para melhoria real do seu nível de saúde, encargo tanto maior quanto é certo que o regime das carreiras foi programado em estreita relação com a reestruturação, de equipamentos e funcional, dos hospitais. Seria, na verdade, errado pretender estabelecer uma ordem de prioridade entre estes dois grupos de medidas, que reciprocamente se interinfluenciam e condicionam.
Não se ignoram com efeito, as carências verificadas quanto a instalações e equipamento hospitalar. Traçou-se, por isso mesmo, um plano que, a longo prazo (até 1985), compreende a criação dos Hospitais da Zona Oriental e da Zona Ocidental de Lisboa, a renovação dos Hospitais da Universidade de Coimbra e o sucessivo reapetrechamento e beneficiação de todas as unidades existentes, sem esquecer os hospitais distritais.
Por outro lado, encaram-se também medidas na perspectiva de médio ou curto prazo. Assim, e a título sómente exemplificativo, para apoio às necessidades de Coimbra, mesmo enquanto se não dispõe da reinstalação dos Hospitais da Universidade, cria-se o Centro Hospitalar de Coimbra; o mencionado Hospital da Zona Ocidental de Lisboa encontra-se já em fase de projecto, após cuidadosa preparação, pelos serviços competentes do programa de acordo com as necessidades respectivas; igualmente está em fase de programação o Hospital da Zona Oriental.
Previa-se, ainda, que fosse possível, no triénio de 1971-1973, reestruturar e reorganizar os serviços dos cinco hospitais centrais mais directamente ligados ao funcionamento do internato médico. As direcções dos hospitais, em reunião conjunta em 25 de Fevereiro de 1970, aprovaram o correspondente plano — a que se dedicou o ano de 1970 — e assentaram na entrega dos elementos de trabalho necessários, até 30 de Abril deste ano, mas o prazo não foi cumprido e houve que prorrogá-lo.
Entretanto, independentemente da execução dós referidos planos a longo, médio ou curto prazo, foram, mesmo postas já em curso ou executadas diversas realizações, de que, a título exemplificativo, se enumeram:
Em Lisboa:
Nos Hospitais Civis: constituiu-se um Sector de Traumatologia (S. Lázaro) inteiramente novo, completado com a utilização das instalações da Perede e do Outão; procedeu-se à adaptação dos serviços de raio X do Hospital de S. José; estão a ser instaladas três modernas consultas externas, com o apoio financeiro da Fundação Calouste Gulbenkian, e outras em fase' de projecto; entraram em funcionamento novos serviços de maternidade (Magalhães Coutinho); entrou em funcionamento o serviço de traumatizados, crânio-encefálicos; encontra-se também completamente reequipado e pronto a entrar em funcionamento um serviço de laboratórios em S. José.
Quanto ao Hospital Escolar de Santa Maria, assegurou-se financiamento numa ordem de grandeza de cerca de 40 000 contos, com vista à instalação de uma unidade de cuidados intensivos, de apoio ao banco, cuja programação se aguarda.
No Porto:
No Hospital Geral de Santo António: foram reorganizadas as consultas externas; criaram-se os serviços de medicina física e reabilitação e os serviços de hemodiálise e reanimação; estão a ser adaptados os serviços de neurologia; instalaram-se os de endocrinologia (quer de internamento, quer laboratoriais) e organizaram-se serviços de retaguarda para convalescentes.
No Hospital Escolar de S. João, por seu turno: criou-se uma unidade de apoio laboratorial aos serviços de urgência; abriu o hospital de dia do serviço de psiquiatria; abriu o bloco operatório de urologia, iniciou o seu funcionamento a unidade de nefrologia (hemodiálise); abriu uma secção de internamento no serviço de sangue para hematologia clínica; está pronta para abrir uma secção de urgência pediátrica; remodelou-se a orgânica do laboratório de análises clínicas e do bloco operatório central.
Em Coimbra:
Nos Hospitais da Universidade encontra-se em fase de realização imediata uma unidade coronária. Entretanto, os serviços de pediatria vão ser instalados, com inteira renovação, no âmbito do Centro Hospitalar de Coimbra. Igualmente foi criado, equipado e posto a funcionar o Centro de Neurocirurgia.
Esta amostra — em que se não referem os hospitais distritais, pois que, todos estão a ser renovados ou reins-
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talados (l) — será, porventura, suficiente para evidenciar os esforços postos na intensiva modificação de estruturas hospitalares, através de medidas concretas.
Acrescentar-se-á, porém, entretanto, que, reconhecendo-se as deficiências que se verificavam quanto à gestão hospitalar, se iniciou um programa devidamente estruturado de preparação de administradores para o sector, concluindo-se, precisamente agora, o primeiro curso e passando, pois, a dispor-se de profissionais desta categoria adequadamente formados.
No que respeita a pessoal de enfermagem e outro pessoal técnico médio e auxiliar em geral, para além da actualização de vencimentos, de acordo com a reforma do Ministério, tem-se intensificado o respectivo ensino, nomeadamente pela criação no corrente ano de cinco escolas de enfermagem, a que se seguirão, dentro em breve, outras em igual número.
O Governo espera, aliás, que até a forma a que recorreu para a normalização da vida hospitalar lhe proporcione também a oportunidade de promover mais actuações no que toca à reorganização dos hospitais e à melhoria dos serviços que neles funcionam.
10. A cronologia dos acontecimentos tem sido apresentada nas notas divulgadas com fonte na própria agitação, em termos demasiadamente simplistas.
Segundo elas, tudo se resumiria na seguinte sequência de factos:
De Fevereiro a Novembro de 1971, teriam os internos feito diligências junto do Ministério para saberem o regime que se lhes aplicaria no fim do período do internato geral;
Em 6 de Novembro, uma portaria, regulamentando as condições de passagem ao grau imediato (internato de especialidades), teria suscitado a sua disconcordância com os termos desse acesso;
Em 15 de Novembro, os internos do 2.” ano, de Lisboa e do Porto, ter-se-iam recusado a participar no teste de saída do internato geral;
Nesse mesmo dia, um despacho do Secretário de Estado da Saúde e Assistência teria demitido os faltosos, proibindo-lhes, simultâneamente, a entrada nos hospitais;
Em 17, os internos do 1.º ano haver-se-iam solidarizado com os do 2.º ano;
Em 19 e 20, os internos do internato complementar e os graduados dos Hospitais Civis e do Hospital de Santa Maria teriam resolvido, também em solidariedade com os faltosos, iniciar um período dito de «abstenção burocrático-administrativa»;
Em 23, o Conselho de Ministros conferia plenos poderes ao Ministro da Saúde e Assistência para regularizar a situação;
Em 26, o Ministro proferia um discurso pela radiotelevisão, que conteria desvios da verdade e expressões atentatórias da dignidade da classe médica;
A 27, os internos do 2.º ano, uma vez que consideravam satisfeitas as suas reivindicações imediatas, teriam decidido requerer, até às 12 horas desse dia, a admissão ao teste de saída e suspender a «abstenção burocrático-administrativa»;
Mas nesse mesmo dia, às 13 horas, elementos militares substituíam os directores dos hospitais centrais.
(1) Beja, já inaugurado; Bragança, a inaugurar em 1972; Funchal, Castelo Branco, Portalegre, Aveiro e Évora, a inaugurar igualmente em prazo curto; em início de construção ou em projecto: Faro, Viana do Castelo, Lamego, Santarém e Chaves.
Nas cronologias da mesma fonte, acrescentam-se, ainda, mais dois passos:
Em 29, o Ministro do Interior proibia uma assembleia geral extraordinária do Conselho Regional do Sul da Ordem dos Médicos;
Nessa mesma data, realizava-se uma sessão de emergência, no Hospital de Santa Maria, que se apresenta como expressão de uma atitude unitária, visto se dizer haverem nela participado, além dos internos, o pessoal técnico médico, os assistentes e os professores auxiliares e extraordinários.
Convir-se-á em que não deixa de ser curiosa esta apresentação dos acontecimentos. Se nada mais se esclarecesse, ficar-se-ia, através dela, com a convicção de que uma negligência do Ministério, na definição de regimes legais das carreiras, e uma falta de conveniente informação, a esse respeito, teriam dado motivo a uma recusa, por parte dos internos, de apresentação às provas finais, atitude a que se haveria respondido com uma severidade absurda, causadora de vítimas, cuja vida profissional, cerceada pelos Poderes Públicos, teria desencadeado um movimento, generalizado e unitário, de solidariedade em todos os escalões da carreira médica hospitalar. O Governo teria, para mais, assumido posições caprichosas e, embora os internos, ameaçados pela prepotência das medidas tomadas, houvessem, afinal, decidido cessar a «abstenção burocrático-administrativa» e apresentar-se a exame, mesmo assim levavam-se por diante as retaliações e proceder-se-ia à «ocupação militar» dos hospitais, continuada por actos gratuitos de impedimento de reuniões no âmbito da representação profissional.
Mesmo, porém, aos mais desprevenidos não deixarão de surgir algumas dúvidas, face a semelhante relato: que exótico interesse empenharia o Ministério — e, com ele, o Governo, primeiro em Conselho de Ministros e, depois, pela pasta da Saúde e Departamento da Defesa — em actuações de que não resultariam senão problemas para a normalidade da administração a ele próprio confiada? Não existirão motivações, mais compreensíveis, para as medidas, passo a passo, adoptadas? E será razoável que de acontecimentos em sucessão contínua se apresente uma cronologia com imensos prazos vazios (por exemplo: de Fevereiro a Novembro, de 6 a 15 de Novembro, de 17 a 19, de 19 a 23, de 23 a 26 — tudo períodos em que algo se deve ter passado, mas nada, se indica)?
A referência cronológica omite, na verdade, inúmeros factos que importa ter presentes e não esclarece correctamente os fundamentos que explicam as medidas a que o Ministério foi forçado. Vejamo-lo, pois, de modo a basear uma apreciação suficientemente circunstanciada da situação.
11. A agitação hospitalar teve a sua primeira manifestação aparente na data inicialmente marcada para a prestação de provas de saída do internato geral — o dia 15 de Novembro.
Antes, porém, durante os vários meses que a precederam, alguns grupos de internos insistiram, junto do Secretário de Estado da Saúde e Assistência, no sentido de serem dispensados de tais provas, bem como das de entrada no internato de especialidades; além disso, desejavam que não fosse objecto de quaisquer limitações o número de vagas no internato de especialidades e que os concorrentes pudessem a seu belo-prazer decidir quais os estabelecimentos hospitalares em que, caso a caso, teriam colocação. Destes contactos é dada notícia nos documentos circulados pelos próprios interessados, nos
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quais, aliás, se refere o conjunto de diligências empreendidas junto das entidades oficiais, durante este período, como também, especìficamente, que já em Julho de 1971 lhes fora dado conhecimento da data e da modalidade do exame de saída.
Semelhantes pretensões não poderiam, lògicamente, ser aceites por absolutamente contrárias às linhas de orientação já apontadas. A dispensa de prestação de provai; impediria, na verdade, o apuramento de preparações efectivas dos que frequentam o internato e convidaria a práticas contrárias à ideia, que se respeita, de promover a formação profissional dos médicos como contrapartida, justa e indispensável, da segurança garantida pelas carreiras, práticas que apenas a título transitório haviam sido consentidas, por despachos cuja validade não seria, evidentemente, razoável manter, agora que se definia um regime para vigorar a título definitivo.
Por seu turno, a fixação de vagas quanto ás especialidades é o único critério que permite atender à circunstância, atrás referida, de o País não carecer apenas de especialistas, mas também de médicos de preparação policlínica que se ocupem dos cuidados médicos de base, nos vários sectores — serviços públicos, medicina organizada, clínica livre — onde se promovem actividades com essa natureza.
Finalmente, só distribuindo os lugares da carreira — da hospitalar como, aliás, das demais — pelos vários estabelecimentos dos diversos pontos do território, se pode promover a procurada cobertura geral de toda a população. A esta razão acresce, entretanto, a de que não vale a pena pretender que o internato funcione em serviços cuja estrutura não está preparada ainda para permitir que a medida conduzisse a amplos resultados. O argumento tem, de resto, sido invocado contra o que se afirma ser o carácter prematuro da entrada em vigor de um novo regime de carreiras. Não adere o Ministério a este ponto de vista, pois entende que uma estruturação era necessária e que as novas orientações hão-de, sem perda de tempo, ser promovidas, embora porventura em regimes experimentais, sucessivamente mais desenvolvidos a caminho do modelo ideal; não poderia, de qualquer modo, compreender-se, que, levando o entendimento ainda mais longe do que o Ministério considera equilibrado e realista, se viesse, por outro lado, advogar a criação, em qualquer estabelecimento, do internato, que, para mais, é um período a que assistem particularidades importantes, dados os seus objectivos de ensino.
Todos estes pontos foram, portanto, esclarecidos aos peticionários, nas audiências que o Sr. Secretário de Estado lhes concedeu. Sempre se lhes disse que deveriam contar com a prova de saída (do tipo «teste de escolha múltipla») e com concurso de ingresso no internato de especialidades (de que constariam provas clínicas). Igualmente, sempre se informou que, embora podendo aguardar-se uma ampla abertura do internato de especialidades, as correspondentes vagas seriam, porém, limitadas segundo critério que se explicou, e que, em 1972, não se encararia esse grau fora dos hospitais centrais.
Cabe, aliás, referir que foram entretanto apresentadas também várias pretensões no mesmo sentido, por parte de internos que haviam prestado serviço militar obrigatório em províncias ultramarinas, os quais, se não houvessem interrompido, por essa razão, o respectivo internato, teriam beneficiado, no ano de normal termo do primeiro período e de ingresso no segundo, de concessões excepcionais, compreendendo dispensa de provas e número ilimitado de vagas, de acordo com o despacho Lavrado nas circunstâncias e pelos motivos já atrás mencionados. No plano do direito estabelecido, era pelo menos discutível o fundamento da reivindicação desses internos no sentido de lhes serem asseguradas condições idênticas às que se lhes aplicariam se não tivessem sido mobilizados, uma vez que não poderiam invocar-se direitos adquiridos, mas apenas meras expectativas; no entanto, atendendo à particularidade do caso, promoveram-se providências bastantes, que vieram a culminar na publicação de adequado diploma, cuja execução satisfaz os pedidos formulados.
Especialmente pela multiplicidade de situações verificadas, o problema exigiu, porém, cuidadosa ponderação, e esse foi um dos factores que levaram a ampla audiência dos interessados na fase que precedem ás decisões completas e definitivas sobre os exames, a acrescer ao natural desejo de pessoalmente conhecer as aspirações e vocações dos candidatos e de avaliar as suas sugestões concretas quanto à fixação de prazos e sua distribuição pelos vários ramos de especialidades.
Assim, pois, o espírito de compreensão do Ministério nunca encontrou outro limite senão o imposto pela imprescindibilidade de respeitar um mínimo de fundamentação e de coerência com os princípios básicos do regime aplicável.
Com a referida participação dos internos, chegou-se, enfim, a uma solução aceitável, só então se marcando a data de 15 de Novembro para a realização das provas de saída do internato geral.
Entretanto, encarava-se a substituição do regulamento do internato, pois que o regime dos Decretos n.os 48 357 e 48 358, em cuja execução havia sido publicado, cedeu o lugar a outro, constante dos Decretos n.os 413/71 e 414/71, de 27 de Setembro. Parecia, nomeadamente, vantajoso publicar normas reguladoras dos exames a efectuar, as quais, de facto, surgiram em portaria de 6 de Novembro.
Em nada, porém, essas normas alteravam o que os internos, conforme se explicou, já conheciam: limitavam-se a aspectos de execução de um regime que, nos aspectos fundamentais, estava fixado nos mencionados diplomas de base e que, para mais, fora esclarecido nas audiências concedidas — quer dizer: não definiam pressupostos do acesso na carreira, mas sómente o modo específico de organização dos exames, nomeadamente quanto à constituição do júri, critérios de classificação e formalidades de processo a observar pela Direcção-Geral dos Hospitais quanto ao correspondente concurso documental.
Não são, assim, líquidos os motivos que pudesse haver para opor reservas essenciais à portaria de 6 de Novembro.
Deve, aliás, informar-se que nada permite considerar que na generalidade os internos hajam decidido faltar a tais provas. Pelo contrário, compareceram; e o exame só não chegou a efectivar-se devido à actuação de alguns elementos, que impediram os examinandos de responder à chamada e de ingressarem na sala de exame. Os factos foram presenciados por diversas testemunhas, a acta do júri refere-se-lhes e, juntamente com ela, os candidatos desde logo fizeram constar uma primeira declaração neste sentido.
De acordo com essas declarações deve, pois, concluir-se que os internos não são, evidentemente, vítimas de actuações ou faltas de critério do Governo, mas sim de obstáculos levantados ao normal processamento da sua vida de internato.
12. Vamos, então, ao discutido despacho, de 15 de Novembro, do Sr. Secretário de Estado. Esclarece-se, desde já, que, a haver qualquer deficiência na forma ou
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nos termos por que, segundo o entendimento dos serviços, a que se dirigiram as orientações, foi promovida a respectiva execução, não deixariam de ser tomadas as convenientes medidas de regularização. O que, porém, importa apurar são, sobretudo, as motivações, a orientação e os objectivos desse despacho, o seu enquadramento no regime legal vigente e os resultados que proporcionou na condução do processo.
Segundo o disposto no n.º 4 do artigo 12.º do Decreto n.º 414/71, de 27 de Setembro — em vigor desde 1 de Outubro —, a falta de comparência ou de aproveitamento no exame final implica perda total de vencimentos mesmo durante o período de repetição do ano a que respeita, excepto quando o facto se deva a doença ou caso de força maior. Ora, se durante o próprio período de repetição de ano (portanto, de exercício de funções) o vencimento não é, naquelas circunstâncias, atribuído, não poderia deixar de entender-se que, por maioria de razão, ele deve deixar de ser pago a partir do próprio dia da falta, isto é: durante um período que, não sendo ainda o de repetição de ano, nem sequer é, portanto, de exercício de funções). Nesta conformidade, os faltosos foram notificados de que lhes não seriam processados vencimentos a partir daquela data. Por outro lado, como a frequência dos serviços hospitalares — incluindo, claro, aqueles onde funciona o internato — só em termos individualizados é permitida a quem neles não preste serviço ao abrigo de vínculo profissional, os internos, naquelas condições, passavam a não poder frequentar os serviços senão mediante e de acordo com autorização caso a caso concedida, o que, igualmente, lhes foi, portanto, comunicado.
Importa, em qualquer caso, sublinhar que esta medida não envolveu termos especiais por se aplicar a internos, visto não diferir da que, em geral, se refere a qualquer médico que não pertença aos quadros dos hospitais.
Todavia, em atenção ainda ao citado preceito legal, porque nele se prevê a excepção do caso de força maior — e tendo-se, como narrámos, conhecimento de que a falta bem poderia resultar apenas de impedimento por terceiros (e, assim, integrar a figura do caso de força maior) fez-se, do mesmo passo, saber que a declaração bastante de tal justificação de falta abriria a porta à realização de exame — para o que se marcaria outra data breve — e teria, além disso, o efeito de levantar a medida de cessação de vencimentos.
O Ministério — que de tudo isto deu também conhecimento público, através dos órgãos de informação— faz ainda saber directamente aos faltosos e pelo seu comunicado de 18 de Novembro, que asseguraria a ordem por forma a ficar garantido que, na nova data prevista para o exame, todos os que desejassem comparecer conseguiriam efectivamente prestar provas. E assim veio, de facto, a suceder, no dia 29 de Novembro, com apresentação pràticamente de todos os requerentes — num acto que confirma o relato dos acontecimentos atrás desenvolvido, reforçado, aliás, pelos diversos requerimentos e por dizeres constantes de outras exposições de internos.
13. Já neste momento, pode, então, concluir-se que em absoluto carece de fundamento uma interpretação propalada, segundo a qual se apresenta um movimento, generalizado, de solidariedade com os internos do 2.º ano; solidariedade com os interesses dos que haviam sido forçados a não realizar o exame parece, sim, ter havido por parte do Ministério; e, entretanto, o que pretende oferecer-se à opinião pública, como movimento espontâneo e geral de solidariedade é apenas, como vamos ver, o resultado penoso de esforços de agregação de grupos dispersos.
Saliente-se, antes de mais, que a solidariedade não surgiu generalizada e espontânea: terá começado, no dia 17, com uma tomada de posição pelos internos do 1.º ano; foi, depois, promovida através de convites que implicaram deslocações de vários elementos, a Coimbra e ao Porto, e, bem assim, com os tradicionais panfletos de convite à participação no movimento; deste modo, a invocada solidariedade dos internos do internato complementar e dos graduados surge a 19 e 20; a imputada a outros escalões aparece referida sómente ao dia 29.
Além disso, a invocada convergência de interesses e identidade de posições não encontra tradução na realidade.
A título exemplificativo, cita-se uma passagem de certa mesa-redonda, cujo resumo foi difundido através do boletim «informação n.º 3» publicado por uma das listas que recentemente se candidatou a eleições na Secção Regional do Sul da Ordem dos Médicos; aí se lê:
«Enquanto tudo descia a zero e os internos eram manobrados pelo Governo» (trata-se de uma referência às audiências concedidas pelo Sr. Secretário de Estado, atrás referidas) «os graduados reuniam-se todos os dias, falavam com o Ministro e até apresentaram um documento. Julgo que pretendiam fazer parte do corpo clínico permanente.» «Nunca fui às reuniões», continua a participante «porque nunca fui convocada; depois convocaram-me para uma, onde propus que se distribuísse o documento pelos interessados. Depois o Governo começou a conhecer melhor os doutores e a perceber que gostavam de fazer fintas» . . .
E prossegue o relato da mesa-redonda, cada vez mais elucidativo: «A este período de baixa pressão correspondeu uma fase de reorganização por pequenos grupos que discutiam os problemas. Entretanto elegeram-se representantes dos internos, que reuniam nos Capuchos. As pessoas dividiam-se, mas constituíam vários grupos. 2? mesmo ridículo — os graduados abordados por internos chegaram a dizer: não temos nada com vocês, fazemos parte do corpo clínico efectivo.»
As técnicas agregadoras encontraram ambiente fácil na profusão e carácter das estruturas associativas que progressivamente inundaram os hospitais. Alguns exemplos: A comissão dos vinte e um representantes dos internos dos vários hospitais civis esteve longo tempo paralisada, porque os interessados não chegaram a efectivar eleições; quando, enfim, ressuscitada, reuniu no Hospital dos Capuchos, verificou-se que a maioria dos que lá estavam não tinham sido eleitos . . . havia, além disso, comissões mistas por hospital; comissões só de graduados nos Hospitais Civis; reuniões de representantes dos internos no Hospital de Santa Maria, mas não funcionando como comissão; uma comissão do 1.º ano do internato de Santa Maria; outra, conjunta, do 1.º ano de Santa Maria e dos Civis. De todas, apenas a comissão conjunta do 1.º ano de Santa Maria e dos Civis ainda apresentou um relatório que o Secretário de Estado prontamente acolheu — e louvou, até —, sobre os termos de funcionamento do internato em regime de tempo completo.
Aliás, a multiplicação de grupos com semelhante natureza, fora do esquema institucionalizado de diálogo, ameaça a participação — que se desejaria organizada e produtiva — dos médicos na política e administração da saúde, nomeadamente no campo hospitalar. Aponte-se que
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logo em Fevereiro de 1970, um mês após a entrada da actual equipa ministerial na pasta, foi tal colaboração solicitada e por ela se 'insistiu. A iniciativa do criação de «comissões de regulamentação hospitalar» viria a ser apodada de «demagógica», na mesa-redonda de que há pouco foram transcritas algumas frases; aí se acrescentava, ainda, que os módicos «enjeitaram» a iniciativa, mas reconhecia-se que «seria de pensar nela».
Pode, pois, concluir-se que, sob a aparência de uma comunidade de interesses, no movimento acaba por descortinar-se a defesa de posições diferentes, quando não mesmo antagónicas.
14. Foi neste contexto que surgiu a decisão de entrar em greve, depois convertida numa modalidade a que se fez corresponder a designação de período de «abstenção burocrático-administrativa». Trata-se, afinal, de uma forma de embaraçar o funcionamento de serviços módicos e administrativos dos hospitais, com excepção apenas para alguns aspectos dos serviços de urgência.
A atitude assume por si mesma proporções de enorme gravidade no âmbito do exercício da medicina hospitalar. Entretanto, não deixa de ferir a atenção que hajam sido elaboradas minuciosas regras, distribuídas em reprodução por ciclostilo, para observância, pelos internos, enquanto se mantivessem na referida «abstenção». O simples facto de terem sido preparadas e os termos em que aparecem (que vão ao ponto de atribuírem duas espécies de número de código aos doentes, consoante já se encontrassem no hospital antes da «abstenção» ou nele dessem entrada depois) evidenciam, sem margem para dúvidas, quanto a «abstenção» foi, não o resultado de uma emocionalidade momentânea, mas um acto premeditado, objecto de elaboração prévia.
O movimento, embora centrado em Lisboa, abrangeu diversas unidades hospitalares. Eram evidentes as consequências que esta atitude repercutia no funcionamento dos serviços, mesmo — acentue-se — nos de urgência, pois não é difícil adivinhar os resultados dos inexperientes moldes adoptados para organização ocasional de serviços hospitalares intensivos.
Perante a anormalidade da situação, o Conselho de Ministres decide, então, conferir, no dia 23, plenos poderes ao Ministro da Saúde e Assistência para regularizar a vida dos hospitais.
Era, na verdade, grande a perturbação ali existente, arrastada dia sobre dia, com repercussões cada vez maiores — a máquina administrativa subvertida, a disciplina alterada, a actividade médica perturbada e, em alguns casos, mesmo doentes directamente afectados. Havendo, por isso, que actuar, ainda assim, não obstante poderem ter sido encaradas soluções que a referida decisão do Conselho de Ministros comportava, tentou-se apaziguar os ânimos e encontrar vias pacíficas de solução, durante os dias 24, 25 e 26.
Justamente no dia 25, em reunião conjunta das direcções hospitalares de Lisboa com o Ministro e o Secretário de Estado, procurou-se eliminar tudo quanto pudesse constituir aparente pretexto para a agitação existente.
As direcções hospitalares, com grande espírito de colaboração, pretendiam agir no sentido de, pela anulação de quaisquer pretextos, tornar mais evidente as verdadeiras razões da agitação — que, aliás, sempre condenaram na forma que revestiu —, para com mais forte poder a ela conseguir pôr cobro. Então se procedeu de novo ao exame de todas as dúvidas, equívocos ou omissões susceptíveis
de proporcionarem motivos à agitação, a fim de que, munidas com tais elementos de clarificação, as direcções pudessem actuar decidida ,e 'efectivamente para imprimir aos acontecimentos o curso que todos desejavam.
De resto, o Ministério distinguia o que se lhe afigurava essencial, na questão, do que pudesse representar simples pormenor. O essencial estava em que não era aceitável, qualquer que fosse o pretexto, a mínima alteração da vida hospitalar, cuja regularidade constitui princípio e valor acima de qualquer discussão.
Por outro lado, não seria concebível que se permitisse a não realização da prova, nos termos e data marcados, tanto mais que se sabia ter o impedimento da efectivação dos exames, na data inicialmente estabelecida, resultado de «boicote» imposto com violência. Tudo o mais era assunto susceptível de ser considerado, caso se verificasse assentar, ao menos, num mínimo de fundamentação válida.
Dispondo de todos os esclarecimentos, ais direcções hospitalares, esperançadas num rápido regresso à normalidade, ficaram de se avistar no dia seguinte (26), pelas 16 horas, com o Ministro, a fim de o inteirarem da evolução que, nessa base, se viesse a processar.
Nesse dia, pouco antes da hora indicada, informaram, porém, que nada podiam acrescentar, já que a situação se não havia modificado, não obstante o esforço apaziguador entretanto desenvolvido. Disse-se-lhes então que, em face da declarada impossibilidade de restabelecimento da normalidade', o (Ministério se via forçado a encarar o modo de recorrer aos poderes concedidos, por forma a reconduzir a vida, hospitalar à conveniente ordem.
Assim, na noite desse mesmo dia, o Ministro, através da RTP, deu conta ao País do que se passava, com o cuidado de justamente restringir os incidentes a uma «minoria activista» dos internos, pondo em relevo os esforços desenvolvidos pelos directores hospitalares e a «acção abnegada do corpo médico», que, na emergência, tomara sobre si o encargo de suprir as deficiências resultantes da greve.
Na manhã de 27, sábado, mantinha-se a anormalidade da vida hospitalar e sabia-se entretanto (pelo «comunicado n.º 5» desse dia) que a disposição afirmada era a de reclamar o adiamento do teste marcado para o dia 29 e de manter a greve de tipo «burocrático-administrativa», se certas pretensões — aliás formuladas em termos de sempre serem consideradas inatendidas — não fossem plenamente satisfeitas.
Por outro lado, dirigentes hospitalares responsáveis continuavam a dar conta da gravidade da situação existente em expressivos documentos, nos quais repudiavam as ocorrências, por contrárias a todos os princípios éticos e deontológicos — «em que os fundamentais direitos dos doentes foram esquecidos» — e diziam da necessidade de se estabelecer a ordem e terminavam por comunicar que entendiam inviável fazê-lo por si mesmos. Tudo isto apontava, pois, a necessidade de agir ràpidamente e com suficiente eficácia, para não consentir maiores agravamentos de uma anormalidade que atingira já proporções a todos os títulos inadmissíveis.
Verificada, assim, inequivocamente, após este largo período, que cobriu a semana de 22 a 27, a impossibilidade de restabelecer a normalidade da vida hospitalar como se impunha, mesmo após todas as diligências efectuadas e esclarecimentos dados, e havendo antes a ameaça de a situação se prolongar, com novo «boicote» do exame e manutenção do estado de greve, o Governo teve, finalmente, de adoptar medidas para assegurar de imediato, o retorno à completa normalidade. Antes, porém, o Minis-
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tro informou pessoalmente os directores de cada um dos hospitais centrais de que essas medidas iriam ser tomadas, lamentando que assim tivesse de acontecer.
Algum tempo depois, a Comissão de Mobilização, presidida pelo presidente Nacional da Cruz Vermelha, começou o exercício das suas funções.
Alega-se que a medida teria sido desnecessária, pois nesse próprio dia se tomara, «em plenário», a decisão de regressar completamente à normalidade. A posição teria chegado, de facto, a ser assumida, embora com grandes ressalvas, numa sessão que, segundo o próprio documento que dela dá notícia, principiaria cerca das 12 horas do dia 27 e da qual saíram, pelo menos, três moções, algumas com discussão preliminar.
15. Antes de concluirmos, desejaríamos ainda ponderar, mais uma vez, que não se encontra na alocução do Ministro do dia 26 uma só palavra desprestigiante da classe médica — a que o seu autor, de resto, por formação, pertence —, antes, pelo contrário, se condena, em nome da honra e dignidade que se lhe impõem, actuações que não poderiam deixar de abalar-lhe o prestígio se ela pronta e veementemente ais não repudiasse.
Temos infelizmente de reconhecer que a secção regional do Sul do organismo a que, de modo muito especial, cumpre promover a dignificação profissional — a Ordem dois Médicos — parece, neste transe e no período que o preparou, ter sido objecto de comportamentos tendentes a desviá-la dois seus fins mais próprios para actividades que não deixarão de merecer reparo.
A demonstrá-lo, julga-se elucidativa a mesa redonda inserta no já aludido Boletim de Informação n.º 3, em que se não encontra a mínima expressão de interesses profissionais, mas onde, em contrapartida, abunda a controvérsia sobre os caminhos mais aptos para promover uma «politização» à volta da causa médica, tendo-se em conta as relações do médico com a população, para dinamizar uma «mobilização», que se declara necessária, das classes trabalhadoras, e onde, a par disso — veja-se! —, se prospectam as vias de inserção do exercício médico na sociedade capitalista, por forma que, se o construtor civil ganha dinheiro, o médico o arrecade também.
Uma das intervenientes na mesa-redonda já referida, após ter sido indicado o número dos já trazidos à causa, exclama: «Interessa-me modificar o sistema político geral; logo, interessa-me movimentar pessoas.»
Outro participante queixa-se assim: «Quais são os interesses da população? Os da classe médica diferem dos interesses da população e o Governo tem sido intérprete dos interesses da população.» E remata: «Podemos não aceitar o Governo a falar em nome da população e esta não o deve aceitar a falar em seu nome. A melhor solução seria a de fazer contactar as vanguardas médicas com outras vanguardas — convidar os próprios doentes a manifestarem-se: pegar no problema por outros sectores — classes trabalhadoras.» E a sessão continua com o relato dos resultados obtidos pela participação de um dos presentes em reuniões intersindicais.
Adiante declara-se que o problema é diferente entre os hospitais civis e os universitários, porque nestes últimos «há os contados com os estudantes».
Em certo passo, fazem-se perguntas e trocam-se impressões sobre o eventual perigo de um justo aumento de remunerações, recentemente estabelecido pelo regime das carreiras, retirar «combatividade» aos jovens médicos; e a esse propósito um dos participantes revela-se nos seguintes termos: «o Governo foi excelente [. . .] veio precipitar uma fase seguinte, mais lançada e sob outras formas. Virão problemas mais graves, sociais e políticos». Segue-se uma manifestação de regozijo, porque, segundo um opinante, «eles» (entenda-se: o Governo) «neste momento estão já a braços com um grande problema — pagam mais e não tiram das estruturas o capital investido». E a política do «quanto pior, melhor», em que se manifesta o propósito de persistir, pois peremptoriamente se declara uma linha de acção: «os médicos terão de estar preparados para saber em que sentido conduzirão a sua luta; põe-se o problema de saber que novas lutas travar».
Prescindindo de muitos outros exemplos, será, no entanto, preferível citar, a este propósito, um dos órgãos da própria ordem — o conselho geral, que, em 1 de Agosto de 1970, publicou um comunicado no qual, após manifestar que a Ordem tem conseguido, nos últimos anos, progressivo avanço nos seus «objectivos de representatividade e de posição na vida social da Nação», escreve:
Os mesmos objectivos foram explorados por um grupo de pressão para produzir um clima de excitação e radicalismo que, apesar da atitude conciliatória do conselho geral, evolucionou para um conflito aberto com a administração pública e com a própria Ordem. Neste contexto, as reivindicações ultrapassam já o âmbito político-social da nossa actividade associativa. Dominando «plenários e assembleias» em que a opinião dos quatro mil membros da secção regional de Lisboa não corrigiu nem apoiou a opinião de uma ou duas centenas, esse grupo conseguiu paralisar a actividade da secção regional respectiva e não fez segredo do seu desejo de que toda a Ordem dos Médicos seguisse o mesmo rumo [. . .] No balanço geral dos acontecimentos, a acção dos grupos minoritários acabou por se revelar estèrilmente contestatária e destrutiva, sem outro resultado que não fosse a agitação permanente como forma de politização socialmente improdutiva e, por fim, a desagregação da vida e da estrutura associativas.
Terá, porventura, sido a ponderação da ocorrência de circunstâncias como as resumidas no transcrito documento da Ordem que motivou o último facto criticado nas cronologias dos acontecimentos apontados: a proibição, pelo Ministério do Interior, da assembleia geral extraordinária do conselho regional do Sul. E, se nem todas as reacções corresponderam ao que seria de esperar, apraz, ao menos, concluir que ainda há, felizmente, quem tenha critério para qualificar o que ali se passa, inteligência para apreender a nudez da verdade sobre mantos de fantasia e bom senso para intuir as razões do Governo no cumprimento dos seus deveres.
Resta apenas elucidar que o regime em que os hospitais se encontram a funcionar presentemente, na sequência das medidas tomadas em 27 de Novembro, reveste a natureza de mobilização civil e é, por outro lado — como se deduz do próprio carácter de emergência referido na lei em que se funda —, meramente transitório.
Todo o pessoal se mantém, com efeito, nos mesmos postos de trabalho que lhe correspondiam antes da mobilização, e as entidades militares — aliás, médicos — dão à organização hospitalar o precioso contributo, que consiste em assegurarem a disciplina e o funcionamento dos serviços sem as perturbações que adviriam de a ela
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se faltar. Firmemente se deseja que o regresso à normalidade, por esta via obtido, permita dispensar o sacrifício que está a ser pedido aos membros da comissão directiva.
De tudo, que poderá concluir-se?
Que o Governo tem uma política de saúde e assistência que procurou formular coerentemente e em cuja execução deseja manter-se fiel aos princípios que adoptou para garantia efectiva do direito à saúde e para progressiva melhoria dos correspondentes serviços; que aceita sempre — e, mais, que isso, pede — a participação activa dos médicos (e, de um modo geral, de todos os que se empenham no sector) na definição de caminhos, bem como a sua colaboração eficiente na realização dos programas em curso; que, porém, repudia sem hesitações quaisquer atitudes que ameacem diminuir a consecução dos visados objectivos de bem-estar pela saúde ou desviar os serviços e estruturas para fins a que se não destinam e cuja utilidade nem sequer se descortina qual pudesse ser, à luz dos reais interesses dos Portugueses.
Imprensa Nacional
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