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REPÚBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA-GERAL DA ASSEMBLEIA NACIONAL E DA CÂMARA CORPORATIVA

DIÁRIO DAS SESSÕES

N.° 234 ANO DE 1973 3 DE MARÇO

ASSEMBLEIA NACIONAL

X LEGISLATURA

SESSÃO N.° 234, EM 2 DE MARÇO

Presidente: Exmo. Sr. Carlos Monteiro do Amaral Netto

Secretários: Exmos. Srs.
João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira
Amílcar da Costa Pereira Mesquita

SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 15 horas e 55 minutos.

Antes da ordem do dia. - Foi aprovado o n.º 232 do Diário das Sessões.
Deu-se conta do expediente.
Para cumprimento do disposto no § 3.º do artigo 109.º da Constituição, foi presente à Assembleia o Decreto-Lei n.° 74/73.
O Sr. Deputado Augusto Correia apresentou um requerimento.
O Sr. Deputado Deodato Magalhães prestou homenagem à memória do Sr. Conselheiro Armando Cândido de Medeiros.
O Sr. Deputado António Lacerda referiu-se a uma reunião efectuada na Casa do Minho, em que se debateram problemas do vinho verde, nomeadamente respeitantes à denominação de origem e seu registo internacional.
O Sr. Deputado Casal-Ribeiro prestou homenagem à memória do Sr. Conselheiro Armando Cândido de Medeiros.
O Sr. Presidente associou-se, a título pessoal, às homenagens prestadas à memória do Sr. Conselheiro Armando Cândido de Medeiros.

Ordem do dia. - Iniciou-se o debate do aviso prévio sobre o toxicomania.
Usaram da palavra os Srs. Deputados Agostinho Cardoso e Roboredo e Silva.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 17 horas e 25 minutos.

O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada.

Eram 15 horas e 45 minutos.

Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes srs. Deputados:

Agostinho Gabriel de Jesus Cardoso.
Albano Vaz Pinto Alves.
Alberto Eduardo Nogueira Lobo de Alarcão e Silva.
Alberto Maria Ribeiro de Meireles.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Amílcar da Costa Pereira Mesquita.
Amílcar Pereira de Magalhães.
António Lopes Quadrado.
António Pereira de Meireles da Rocha Lacerda.
António de Sousa Vadre Castelino e Alvim.
Armando Júlio de Roboredo e Silva.
Artur Augusto de Oliveira Pimentel.
Augusto Domingues Correia.
Augusto Salazar Leite.
Bento Benoliel Levy.
Carlos Monteiro do Amaral Netto.
D. Custódia Lopes.
Delfim Linhares de Andrade.
Delfino José Rodrigues Ribeiro.
Deodato Chaves de Magalhães Sousa.
Duarte Pinto de Carvalho Freitas do Amaral.
Eleutério Gomes de Aguiar.
Fernando Artur de Oliveira Baptista da Silva.
Fernando Dias de Carvalho Conceição.
Fernando de Sá Viana Rebelo.
Francisco António da Silva.
Francisco João Caetano de Sousa Brás Gomes.
Francisco de Moncada do Casal-Ribeiro de Carvalho.
Henrique José Nogueira Rodrigues.
Henrique dos Santos Tenreiro.
Henrique Veiga de Macedo.
Humberto Cardoso de Carvalho.
João António Teixeira Canedo.

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João Bosco Soares Mota Amaral.
João Duarte de Oliveira.
João José Ferreira Forte.
João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira.
João Paulo Dupuich Pinto Castelo Branco.
Joaquim Germano Pinto Machado Correia da Silva.
Joaquim José Nunes de Oliveira.
Joaquim de Pinho Brandão.
José João Gonçalves de Proença.
José Maria de Castro Salazar.
José dos Santos Bessa.
José da Silva.
José Vicente Cordeiro Malato Beliz.
Lopo de Carvalho Cancella de Abreu.
Luís António de Oliveira Ramos.
D. Luzia Neves Pernão Pereira Beija.
Manuel Elias Trigo Pereira.
Manuel de Jesus Silva Mendes.
Manuel Joaquim Montanha Pinto.
Manuel Marques da Silva Soares.
Miguel Pádua Rodrigues Bastos.
Nicolau Martins Nunes.
Olímpio da Conceição Pereira.
Pedro Baessa.
Prabacor Rau.
Rafael Ávila de Azevedo.
Ramiro Ferreira Marques de Queirós
Raul da Silva e Cunha Araújo.
Rui de Moura Ramos.
Teodoro de Sousa Pedro.
Teófilo Lopes Frazão.
Vasco Maria de Pereira Pinto Costa Ramos.
Victor Manuel Pires de Aguiar e Silva.

O Sr. Presidente: - Estão presentes 66 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.

Eram 15 horas e 55 minutos.

Antes da ordem do dia

O Sr. Presidente: - Está em reclamação o n.° 232 do Diário das Sessões.

Pausa.

O Sr. Presidente: - Se nenhum de VV. Exas. tem rectificações a apresentar a este Diário das Sessões, considerá-lo-ei aprovado.

Pausa.

O Sr. Presidente: - Está aprovado. Vai ser lido o expediente.

Deu-se conta do seguinte

Expediente

Telegramas

Vários apoiando as intervenções dos Srs. Deputados Peres Claro e Leal de Oliveira sobre o Torrão e seus problemas, seu regadio e construção da barragem de Barras.
Do Grémo do Comércio do Concelho de Castelo Branco, do Grémio da Lavoura de Castelo Branco e do Sr. Belo apoiando a intervenção do Sr. Deputado Ferreira Forte.

Exposição

Com várias assinaturas manifestando preocupações quanto a uma eventual alteração do regime de rendas de casa em Lisboa e Porto.

O Sr. Presidente: - Para cumprimento do disposto no § 3.° do artigo 109.° da Constituição, está na Mesa, enviado pela Presidência do Conselho, o Diário do Governo, 1.ª série, n.° 51, de 1 do corrente mês, que insere o Decreto-Lei n.° 74/73, que aprova o Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho do Pessoal da Marinha de Comércio.

Pausa.

Tem a palavra para um requerimento o Sr. Deputado Augusto Correia.

O Sr. Augusto Correia: - Sr. Presidente: Pedi a palavra para enviar para a mesa o seguinte

Requerimento

Ao abrigo do Regimento, e com vista a uma possível intervenção sobre a situação dos funcionários das tesourarias da Fazenda Pública, requeiro que, pelo Ministério das Finanças, me seja seja informado:

1.° O número de auxiliares e de propostos que em 1973 receberam remuneração mensal inferior a 1900$;
2.° Relativamente a cada um dos anos de 1970, 1971 e 1972, o número de auxiliares e de propostos que pediram exoneração;
3.° O número de tesoureiros de 3.ª classe admitidos em cada um dos últimos três concursos;
4.° Relativamente a cada um dos anos de 1970, 1971 e 1972, o valor total, por categorias, das percentagens recebidas pelos tesoureiros por venda de valores selados;
5.° O número de tesoureiros que, em cada categoria, receberam em 1972, por percentagem na venda de valores selados, importância inferior à recebida em 1971. Quantos deles receberam a menos importância superior a 10 000$.

O Sr. Deodato Magalhães: - Sr. Presidente: Morreu há poucos dias, nesta cidade de Lisboa, o conselheiro Armando Cândido de Medeiros, que durante largos anos foi Deputado a esta Assembleia.
Eleitos pelo círculo de Ponta Delgada, fomos companheiros nas lides parlamentares durante a última legislatura. Mas não foi esta circunstância, nem a de ter perdido um amigo, que me impelidam a erguer a minha voz nesta Câmara, pois a primeira só por si a nada obriga e a segunda, a perda do amigo, chora-se em silêncio.
Ergo a minha voz, por imperativo de justiça elementar, para prestar homenagem à memória do homem que serviu o País e a terra açoriana onde nascemos.
Sr. Presidente: Há cerca de duas décadas, o então Deputado Armando Cândido efectuou um aviso pré-

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vio nesta Câmara sobre o problema dos excedentes demográficos, mais tarde publicado em livro que dedicou "àqueles jornaleiros da ilha de S. Miguel que sofrem em silêncio a dor de não ter trabalho".
Ao anunciá-lo, na sessão de 30 de Março de 1950, e depois de enunciar os pontos que se propunha desenvolver, disse do propósito em que estava de descrever a vida da "massa rural açoriana, designadamente a de S. Miguel, com um acréscimo anual de 2600 indivíduos, que não saem da ilha e nela vêm acumulando-se há muito, na mais exustiva e dramática luta com a terra".
E a concretizar esta intenção, ao efectivar o aviso prévio, apresentou um estudo exaustivo sobre as condições de vida do trabalhador rural açoriano, tendo a este propósito produzido as seguintes afirmações:
[...] mesmo que a melhorem [a terra], que a aproveitem toda, que lhe excitem a fecundidade com todos os adubos possíveis e todos os ganhos da ciência, de momento não se dá ao povo ansioso e triste um remédio pronto para o seu caso. Um viveiro de muitas bocas, e o pão não se multiplica como se multiplicam as bocas.
A desproporção avança por todos os Açores, mas, por enquanto, só é aflitiva na ilha de S. Miguel [...] [Aqui] semanas houve em que os trabalhadores, depois de calcorrearem, nos seis dias consecutivos, a via dolorosa e ingrata de casa à serra e da serra à casa, doridos e desalentados, só receberam salário correspondente a dois dias de trabalho.

Não dramatizo, emprego as palavras necessárias. De contrário, mentia à Assembleia, mentia ao Governo, mentia aos que sofrem, mentia à minha consciência, mentia a tudo e a todos [...].

E mais adiante, ao encarar as soluções para o grave problema social açoriano de então:

[...] não hesito em colocar em terceiro e último lugar a emigração como último recurso a ser utilizado, já porque, no fundo, sempre constitui uma alienação do sangue, já porque temos de resolver as nossas dificuldades com as nossas facilidades. Como último recurso, explico, na mobilização de meios para resolver o problema dos excedentes demográficos, porque a emigração, em certa medida, terá de ser permanente, em virtude de razões de ordem política, económica e moral.

Ao solicitar ao Governo as providências urgentes que então se impunham, afirmou:
[...] nunca pedimos para as nossas ilhas senão aquilo que é indiscutivelmente necessário e necessariamente justo.
O que é preciso é que a teoria da unidade do continente e ilhas adjacentes não seja uma teoria de valor, seja também e sempre uma realidade viva, efectiva e fecunda.

Sr. Presidente: O problema do trabalhador rural açoriano é hoje bem menos angustiante do que era então. A solução que vem sendo dada aos seus problemas fica a dever-se, em grande parte, ao desassombro e coragem com que Armando Cândido revelou a situação social do arquipélago no aviso prévio que há vinte anos efectuou nesta Casa.
Melhor do que quaisquer palavras da minha lavra, por altura da morte de Armando Cândido, ficam as que ele próprio proferiu há duas décadas, a dar a medida e a natureza da homenagem que lhe quis prestar.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem!

O Sr. António Lacerda: - Sr. Presidente: Não quero deixar sem uma breve palavra de comentário e aplauso a comunicação que ontem, ao fim da tarde, fez, na Casa do Minho, o presidente da Comissão de Viticultura da Região do Vinho Verde, António Costa Leme, acompanhado pelos seus colegas da direcção e ilustres técnicos que o integram, acerca de problemas ligados ao vinho verde, nomeadamente respeitantes à denominação de origem e seu registo internacional. Fica assim escudado, para se defender de abusos graves que venham a ser cometidos, não respeitando o nosso património que muitos séculos de trabalho árduo e difícil ergueram.
E se há, para além de tudo o mais, até do seu real valor, produto a que o homem da terra esteja mais chegado, por tudo o que representa, é certamente o vinho, podemos dizer, como que o símbolo de uma zona ou de uma região, individualizando-a, ligando-a a características determinadas que um produto nobre por excelência evidencia.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Não, certamente, porque o vinho seja mais do que muitos outros produtos que o lavrador cultiva e transacciona, fonte de abundantes receitas, um maná abençoado que cai do céu como dádiva da Divina Providência, sem qualquer esforço de trabalho, mas, sim, porque ligado ao vinho há toda uma tradição, diria um respeito que o coloca em lugar muito especial, com raízes muito profundas nas antigas civilizações, e foi sagrado até pelo próprio cristianismo.
Pelo que é, pelo que representa, pela sua excelência, o vinho merece toda a consideração, que devia existir do produtor ao comerciante a todos os níveis, ao consumidor, até aos próprios Governos, que nem sempre o respeitam como merece.
Mas, conforme disse, só pretendo, como representante de um distrito fazendo integralmente parte da Região Demarcada do Vinho Verde, salientar com um apontamento essa magnífica e elucidativa exposição que ontem ouvi e a que hoje os jornais da manhã dão um merecido relevo. Deixar uma palavra de sincero agradecimento ao Sr. Secretário de Estado da Agricultura pela sua decidida intervenção e apoio. E alertar, ao mesmo tempo, o Governo, pedindo para atentar bem nas consequências promissoras, ou funestas, que a sua acção pode ter na defesa de uma tradicional região produtora.

O Sr. Ferreira Forte: - Apoiado!

O Orador: - No curto período de tempo em que tive a honra de pertencer à direcção da Comissão de

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Viticultura, a que presidiu com inexcedível entusiasmo e competência o nosso ilustre colega Alberto de Meireles, que nela deixou bem marcada a sua vincada personalidade, pude apreciar bem o entusiasmo, a dedicação, o sentido do dever que ali se respira, desde o mais categorizado, responsável ao mais modesto funcionário. E isto em missões por vezes bem difíceis.
Aquela que o seu ilustre presidente actual, agora e em boa hora, conseguiu completar, e que resumidamente aqui trago, foi certamente das mais difíceis, mas também daquelas que mais interesse podem proporcionar ao conjunto dos produtores da região demarcada, para além da sua já longínqua estruturação. Oxalá disso todos se apercebam, nesse sentido trabalhem e a Comissão de Viticultura tenha força e meios para conscientemente, sabendo que é uma alta e transcendente missão que está a cumprir, executar.

O Sr. Alberto Meireles: - Muito bem!

O Orador: - Mas vamos resumidamente aos factos.
A tradicional designação de "vinho verde" que desde tempos imemoriais é dada aos vinhos de Entre Douro e Minho, e que a legislação portuguesa consagrou com a criação, em 1929, da Região Demarcada do Vinho Verde, não estava registada internacionalmente.
Talvez até porque antes de nós havia somente regras morais... Não vale a pena pensar! O facto é que não estava e que o longo e difícil processo de registo só terminou em 8 de Fevereiro. E isto porque na letra do acordo firmado em 31 de Outubro de 1958, em Lisboa, e que consagrou uma série de etapas legislativas para a protecção internacional da propriedade industrial e intelectual e de várias revisões anteriores, se diz textualmente: "Entende-se por denominação de origem, no sentido do presente acordo, a denominação geográfica de um país, região ou localidade, que serve para designar um produto dele originário, cuja qualidade ou caracteres são devidos exclusiva ou essencialmente ao meio geográfico, incluindo os factores naturais e os factores humanos."
Ora, o vinho verde, o vinho de Entre Douro e Minho, o vinho que imediatamente se liga a essa tão bela e verdejante região, não tem, de facto, uma designação explicitamente geográfica. Mas a região de Entre Douro e Minho, ou Noroeste português, ou Região do Vinho Verde, são sinónimos indicativos de uma área geográfica. E começou a árdua caminhada. Já em 1949 o engenheiro agrónomo Amândio Galhano, que à Região do Vinho Verde tem dado generosamente toda a sua brilhante inteligência e saber, apresentou em Paris, na reunião do Office International du Vin, um relatório justificativo da denominação da origem "vinho verde", e que foi recebida com todo o interesse e compreensão.

O Sr. Alberto Meireles: - Muito bem! É de toda a justiça lembrá-lo.

O Orador: - Mas a dificuldade persistia, até que em 1967, a França conseguiu fazer registar o vinho Muscadet como denominação de origem e que também não é propriamente uma área geográfica, mas que só em determinada área geográfica se produz.
Mesmo em tão boa companhia e quando parecia que tudo seria extremamente fácil, pois vinho verde é somente o vinho do Noroeste português, só agora foi conseguida a almejada vitória e registada internacionalmente a denominação de origem.
Não maço mais VV. Exas., e tanto haveria para dizer, até porque, dentro das lutas comerciais, os homens e as nações esquecem tantas vezes os princípios morais e determinam-se por razões imediatas de lucros.
E chegam-nos vozes de que, em face do sucesso que o vinho verde tem em alguns mercados internacionais, outros o querem imitar e aproveitar-se da sua boa fama e qualidade.
Mas, agora, o organismo coordenador da Região Demarcada, o nosso Governo, têm possibilidade de, utilizando instrumento legal, fazer cumprir regras exemplares de são convívio internacional e de relações comerciais entre irmãos, amigos ou desconhecidos.

O Sr. Alberto Meireles: - Muito bem!

O Orador: - O Governo não precisa que lho lembre, porque sabe-o perfeitamente, demonstra-o todos os dias, que são as atitudes claras, firmes, aquelas que concitam o respeito dos outros e geram clima de paz e amizade.
Os cem mil produtores de vinho verde têm, portanto, a certeza de que o Governo, como já foi sobejamente demonstrado pela rápida e esclarecida acção do Sr. Secretário de Estado da Agricultura, saberá actuar firmemente se de algum lado vier atentado contra o vinho verde, que só em Portugal é e pode ser produzido.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Casal-Ribeiro: - Sr. Presidente: Motivos ligados à minha vida profissional obrigaram-me a sair de Lisboa no passado fim de semana e razões estranhas à minha vontade só hoje me permitiram regressar à Assembleia Nacional.
Pedi a palavra a V. Exa., Sr. Presidente, para dolorosamente invocar também a memória de um amigo do coração, um português de raça, um açoriano que vivia para a sua terra com acrisolado amor, um companheiro de actividade política quando o destino me levou à Comissão Executiva da União Nacional - o juiz conselheiro Armando Cândido de Medeiros.
Ainda três dias antes da sua morte almoçara com ele; e a sua energia, o seu amor à Pátria e à terra onde nasceu patenteou-se mais uma vez com a vibração de sempre e a esclarecida inteligência e o entusiasmo que punha em toda a actividade política, intelectual e profissional.
Admirador sem discussão de Salazar, deixou no Centro de Estudos, que dirigiu desde a sua entrada para a Comissão Executiva da União Nacional, mais propriamente na direcção do boletim O Sulco, largamente demonstradas as altas qualidades de nacionalista intransigente e vibrante defensor da ordem e do progresso de Portugal, e do seu arquipélago dos Açores, cujos problemas vivia e sentia como poucos.

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Deputado durante seis legislaturas, nesta Casa deixou expressa a energia com que sempre lutou por pontos de vista doutrinários que hoje, infelizmente, parecem esquecidos ou lamentavelmente abandonados.
Quis o destino levá-lo sem lhe dar tempo que se despedisse dos seus familiares e dos seus amigos, no número dos quais orgulhosamente me contava.
Três dias antes da sua morte, repito, estivera com ele numa roda de amigos comuns e de admiradores seus, que ainda o ouviram, pletórico de energia e de vida, com imagens inconfundíveis e cheias de pitoresco, verberar os inimigos da Pátria que por todo o lado se vão infiltrando!
Ao proferir estas palavras, repassadas de saudade, de mágoa e de admiração, eu presto homenagem a um açoriano ilustre, parlamentar distinto, homem impoluto, em suma: um português daqueles que infelizmente vão desaparecendo, deixando um vácuo no coração de todos nós e, o que é mais grave, nos servidores da Pátria, isentos e firmes.
Muito obrigado, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados: A título puramente pessoal, desejo associar-me à recordação que foi feita do Sr. Dr. Armando Cândido de Medeiros, Deputado em várias legislaturas, durante as quais tive a honra e o prazer de ser seu companheiro. Associo-me com sentimento de justiça às palavras de saudade e de apreço que foram dirigidas à memória de quem deu sempre excelente exemplo de bom cumprimento do mandato de Deputado.

Pausa.

Vamos passar à

Ordem do dia

Debate do aviso prévio sobre a toxicomania. Tem a palavra o Sr. Deputado Agostinho Cardoso.

O Sr. Agostinho Cardoso: - Levantando neste fim de legislatura parlamentar a problemática da "droga" no seu aviso prévio, o Deputado Delfino Teixeira (que há muito estuda este problema e é, salvo erro, o único sócio português do International Institute of Drug Addiction), permite-nos reflectir e fazer o ponto acerca da importância e significado de um dos maiores flagelos que hoje corroem a juventude do mundo ocidental e analisar as suas repercussões e perspectivas no nosso país.
Estamos longe, felizmente, de ser devastados pela droga, como a América do Norte, o Canadá e os países escandinavos, ou de constituirmos importante centro de tráfico clandestino internacional, como a França, com a cidade de Marselha a servir-lhe de capital.
Por isso, estamos a tempo de organizar eficazmente a profilaxia e a nossa defesa contra a invasão de um mal que já começou entre nós.
A excelência dos meios de comunicação e de informação modernos, a hospitalidade turística, que abre largamente os braços e as fronteiras, sugerem fáceis caminhos à "mafia" da droga. Ao ser acossada pelas polícias nacionais e pela Interpol, ela tenta aceitar suas bases e entrepostos nos países não contaminados, onde por isso a segurança possa estar menos pormenorizadamente vigilante, menos apetrechada e menos lançada na repressão.
Tudo isto cria potencialidades de risco para a nossa metrópole.
Corremos importantes riscos com efeito, embora no nosso país a droga pouco represente em relação a outros males, como o alcoolismo.
Consciencializemo-nos disso, tendo presente que aqui, como sempre, a profilaxia será sempre mais eficaz e menos onerosa que o combate, o tratamento e a recuperação sempre difícil de corpos e almas perdidos no inferno dos toxicomanias.
Mas se este aviso prévio é utilíssimo ao País para alertar e prevenir perigos no futuro, prepararmo-nos e organizarmo-nos no presente, activa e minuciosamente, contra eles, não deve servir para despertar na multidão, e sobretudo na juventude, curiosidades doentias e sempre perigosas, e sobretudo nos meios onde o conhecimento e a notícia do mal não tenha chegado, nem haja probabilidades de lá chegar tão cedo.
Não difundamos sem querer a informação daquilo que não queremos se difunda.
É este o erro das exageradas profilaxias que esgrimam precocemente contra moinhos de vento.
Assim, a maior vantagem do aviso prévio em debate será criar no público culto uma consciência genérica do problema e nos dirigentes, a qualquer nível, uma noção exacta do mal e enfrentar e prevenir.
Sem dúvida que é muito antiga a droga no mundo, conhecida primeiro em volta do Mediterrâneo e dali emigrando para o Oriente, sobretudo em seguida aos "Tratados Injustos" e à "Guerra do Ópio" - histórico crime de alguns países colonialistas ocidentais -, aqueles justamente onde hoje ela faz mais estragos.
Há milhares de anos, talvez, que a Canabis era usada em ritos religiosos.
Os Assírios serviam-se do cânhamo como incenso, e no século XII um grupo de sectários muçulmanos utilizava o haxixe para drogar alguns dos seus e levá-los a perpetrar vindictas criminosas.
Precursores dos que, oito séculos depois, no Norte de Angola, embriagados pela "liama" foram atirados em bandos para o massacre criminoso!
No Ocidente, alguns artistas, alguns psicopatas e alguns coloniais regressados entregavam-se, no fim do século passado, aos prazeres da droga. Baudelaire cantaria o Kif no seu Paraíso Artificial, mas as suas divagações literárias cederam lugar à tragédia degradante do heroinómano típico do romance de Guy Champagne - Experiência da Droga -, onde se conta a história de um jornalista apanhado sem querer, por amor de uma mulher, nas malhas da heroína, debatendo-se sem poder fugir do inferno de prazer e sofrimento, onde acabou por submergir-se miseravelmente e de onde não mais voltou.
Mas a situação criada hoje pela droga no mundo ocidental, sobretudo a partir de 1967, está longe de constituir moderado hábito ancestral, como nos países árabes e asiáticos, ou originalidade de raros psicopatas e de raros artistas.
Corresponde a uma espécie de "heresia social", em relação à sociedade do Ocidente, na qual se enxertou, escravizando-a e envolvendo-a como serpente dantesca, a mais demoníaca e poderosa organização inter-

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nacional de todos os tempos: a do tráfico da droga. Nunca houve maior exploração do homem pelo homem.
Tem esta heresia social como características principais, nos países onde está largamente difundida, a sua tendência para grassar e expandir-se entre a adolescência e a juventude, atingindo grupos etários cada vez mais novos.
No plano comunitário, os grupos humanos drogados, com seu proselitismo niilista, sempre aliciando neófitos, a sua contestação passiva, a vadiagem a que se entregam, a sociedade marginal fechada que constituem, com uma vida errante sem motivações - representam no presente um peso morto voltado a um inútil futuro de derrota e de desespero.
O mundo dos drogados pode representar, em parte um vício que se expande, como é o caso do alcoolismo, alojando-se, sobretudo, nos temperamentos psicóticos. Mas é sobretudo uma "doença de civilização", expressão de conflitos com a referida sociedade de consumo e adentro desta, sobretudo com a família.
Há uma personalidade específica do drogado com a sua filosofia, "seu clima", sua pseudo-sociedade, seu contágio perigoso.
Foi o aparecimento e difusão da heroína e do L. S. D., com a sua utilização endovenosa para obter o flasch e a "viagem", que deram gravidade e estilo próprio à toxicomania social moderna e à escravização e degradação orgânica e espiritual a que conduzem.
A heroína é a droga típica, a mais cara, a mais intensamente euforizante, a que cria mais rapidamente habituação psicológica, a que não se pode fugir, a "dependência física" que obriga ao seu consumo permanente, sob pena que sobreviva o terrível síndroma de "privação" quando ela bruscamente falte, e cujo quadro clínico foi ontem descrito pelo Deputado avisante.
Para manter primeiro o seu "paraíso artificial", e depois e apenas para tentar fugir ao angustiante síndroma de carência que referi, quando ela falta ao organismo, o heroinómano tem de injectar-se cada vez mais vezes ao dia e em doses cada vez mais crescentes, até ir parar à prisão, ao manicómio ou ao hospital e, depois, por vezes, ao cemitério.
Para obter o tóxico alimento, ultrapassa todas as barreiras sociais e morais. Depois de perder o emprego e de empobrecer, adoece, torna-se um farrapo humano e corre o risco de septicemias, hepatites e outras doenças que provoca ao injectar-se.
As anfetaminas e o L. S. D. tiveram de começo, no Ocidente, como os estupefacientes, uma utilização terapêutica, que, por prolongar-se demasiado, estava na base da acostumação e dependência de muitos doentes transformados depois em toxicómanos.
Foram considerados como medicamento heróico contra as depressões psíquicas, estimulante intelectual nas horas de fadiga e amplificador da capacidade de produção intelectual nos momentos em que é necessário rendimento excepcional.
Os Alemães empregaram-nos durante a última guerra, e diz-se, sem confirmação, que os Aliados as teriam utilizado em certos grupos militares no desembarque da Normandia.
Porque não dão, como os estupefacientes, os fenómenos de dependência orgânica, de privação e da necessidade imperiosa do aumento crescente de doses, não são bem enquadráveis na definição médica de toxicomanias da O. M. S.
Mas são-nos, sob o ponto de vista social, sobretudo o L. S. D. - o alucinogéneo mais difundido -, pela dependência psicológica a que conduz, pelas doenças psíquicas que engendra, pelo contágio que determina, pelas associações a outros tóxicos que condiciona, e, sobretudo, por ser uma das drogas mais utilizadas em grupo pelos que se entregam ao seu uso e às suas consequências.
A "viagem" feita sempre em grupo, com alguns neófitos e um veterano como condutor da equipa, com luzes poderosas acesas e música estridente, tem qualquer coisa de rito e de mensagem.
Conduz a administração endovenosa, a presença visual de tipo caleidoscópico de ruídos e sons, ao aparecimento de uma superpersonalidade multidimensional, expandindo-se indefinidamente. Paraíso efémero, que dura na sua fase espástica segundos ou minutos, seguidos de depressão, fadiga e perturbações psíquicas. Há poucos meses, um cientista holandês afirmou, em Lisboa, que a tentativa de ultrapassar com os alucinogéneos os limites da consciência humana, penetrando nos âmbitos inconscientes da existência, põe a liberdade e a dignidade humana em perigo.
Em alguns países tem-se defendido a ideia de utilizar o uso moderado e controlado de marijuana e haxixe, os dois derivados do Canabis (cânhamo indiano), as mais antigas drogas usadas e de menos perigoso efeito em relação à heroína e ao L. S. D.
Acentue-se que onde isto foi posto concluiu-se paradoxalmente por acentuar a necessidade de aumentar a sua repressão, pela impossibilidade de controlar o seu uso e as suas doses, com tendência para sempre aumentar, pelas associações a outros tóxicos piores a que dão origem, pela sociedade de drogados marginais que ajudam a criar.
Mas para além do toxicómano, e explorando o seu vício pouco a pouco insaciável e indominável, há o proxenetismo da droga, as redes de tráfico clandestino, os gangs poderosos, com suas trágicas lutas internas em volta de fortunas obtidas sobre a desgraça alheia, suas organizações intercontinentais e seus disfarces rocambolescos para vencer a acção policial.
E esta exploração - proxenetismo, insisto - da saúde, da vida e do futuro de grandes grupos de jovens e adolescentes constitui o pecado maior da droga no mundo ocidental. Leu-se há tempos na imprensa que um juiz americano, ao aplicar a pena de vinte anos de prisão a um traficante responsável pela introdução na Florida de 10 milhões de dólares de heroína, sublinhara que a mortalidade e o sofrimento provocados por tal quantidade de droga seria provavelmente igual à resultante da guerra do Vietname. Não parece esta afirmação muito exagerada, se pensarmos que há cerca de seiscentos mil toxicómanos nos Estados Unidos e que mais de novecentas pessoas morreram só por superdosagem acidental de heroína em 1972.
O tráfico da heroína, exigindo preparação em laboratório clandestino especializado (a partir da morfina e através desta o ópio) e volume apreciável de reagentes, o tráfico da heroína pura, dizia, que será acrescentada depois com outros pós inertes para su-

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cessiva venda, é fácil e ocupa pouco espaço para o seu transporte internacional e intercontinental a partir do centro produtor.
Disseram os jornais que se vêm ocupando largamente do assunto, que urnas contendo cadáveres embalsamados e caixotes com milhares de latas de chocolate, entre as quais se disfarçavam algumas com heroína, eram utilizados para transporte do tóxico de Marselha até à América do Norte ou do Sul. E nessa rede terrível de distribuição, em luta com a repressão policial e com as concorrências internas de grupo, os gangsters começam por servir-se de jovens que iniciam e a quem distribuem gratuitamente as primeiras drogas, até conseguirem que eles atinjam rapidamente a fase do desejo irreprimível e passem a pequenos vendedores, para, com o lucro, comprarem o tóxico de que necessitam.
Vejamos agora algumas características da personalidade do toxicómano e as incidências sociais dos grupos em que se integra.
O toxicónamo social vive à margem da sociedade familiar e comunitária, donde se evadiu, e reúne-se, em pequenos grupos. Acaba por ser um politoxicómano, utilizando sucessiva e simultaneamente várias drogas e reincidindo quase sempre que é desintoxicado por tratamento.
A existência da toxicomania social contemporânea na sociedade ocidental resulta de dois factores: um extrínseco - a possibilidade de obter-se a droga com seus efeitos individuais e de grupo; outro intrínseco, ou melhor, um conjunto de elementos intrínsecos isolados ou associados - predisposição, atitude psico-social espontânea, a contestação contra o ambiente familiar em que se está enquadrado, a desadaptação social e o aliciamento, receio ou complexo de insuficiente realização pessoal em relação ao presente e ao futuro.
Provêm hoje os drogados - pelo menos em França, que é talvez o país mais estudado neste aspecto - de todos os meios sociais e não apenas das classes mais ricas, muitas vezes de famílias recentemente transplantadas para os grandes meios urbanos. São, em regra, celibatários, com ligações instáveis, com horror à fixidez do casamento e com certa percentagem de homossexuais. Traduzem, muitos, um conflito familiar ou reflectem perturbações internas da família.
A falta, o interesse ou o fracasso como educador do pai, que o adolescente procura substituir pelo chefe de grupo, corresponde a percentagem importante dos que fogem para o mundo da droga, aspecto este dos mais graves a valorizar.
No grupo de irmãos, são de preferência os de posição extrema, o mais velho ou o mais novo, que abandonam a família.
Os toxicómanos levam, em regra, uma vida hippy, em pequenos grupos, de constituição variável, e cultivam um certo calão próprio. Recusam a ordem social estabelecida, mas com passividade, sem ideias ou desejo de a modificar. Certo neoconformismo, certo esoterismo e certo snobismo, desprezo e esquecimento da sociedade em que vivem dão a alguns, sobretudo utilizadores dos alucinogéneos, uma posição filosófica mística, relacionada com as ideias de Leary, fundador do movimento "para a expansão do espírito", nos Estados Unidos da América.
Dele, diz Paul Chuchard:
Na origem da voga actual, sabemos que se encontra o apostolado venenoso do psicólogo americano T. Leary, convertido ao hinduísmo, que descobriu os cogumelos alucinogéneos em Cuernavaca (1960) e viu na droga deles extraída o meio de dar, sem esforço e sem ascese, uma mística pseudo-oriental aos jovens americanos. O grande humanista A. Huxley, sem compreender também a diferença que existe entre o universo da droga e o universo da ascese, sustentou tese semelhante pouco antes de morrer. E, assim, aparece uma das características essenciais do movimento hippy, de que eles foram origem, que consiste na confusão total das justas reivindicações sociais e do retorno à natureza com a toxicomania, quer a das drogas, quer a da degradação do erotismo e pelo erotismo, "libertações" que são, de facto, terríveis sujeições, bem piores do que as da sociedade moderna.

As motivações próximas que aliciam o toxicómano vão desde os conflitos profundos e interiores de personalidade até às dificuldades nas relações com os outros.
Correspondem a elementos causais na personalidade do drogado a fuga e a evasão, a curiosidade, a influência de amigos, uma hipótese de marcar virilidade ou superpersonalidade, o desejo de expansão, reflectindo muitas vezes uma personalidade imatura ou uma regressão a essa imaturidade, frustração sexual, com reacção contra ela pela perversão, e a "elação".
O fenómeno social da droga nos países onde ela medra e alastra, que não felizmente no nosso, esse fenómeno, dizia, ultrapassa, ou não, a preguiça de doentes psicopatas ou predispostos, ou a perversão ou a curiosidade de uns tantos aliciados para a vadiagem, e a inutilidade, aliadas a um vício que arrasta em bola de neve uns após outros e que tem a cultivá-lo e a expandi-lo os próprios viciados e a tenebrosa rede de traficância que os explora, os tenta e os enebria num proxenetismo odioso?
Dizem certos sociólogos que sim, que a droga é uma doença da civilização, aspecto sui generis da contestação contra a sociedade em que vivemos, sociedade de consumo, ou, antes, de superprodução, como dizia certo autor.
Encontro em Paul Chuchard, ainda, e dele transcrevo, para encurtar considerações, a definição do sentido que ganha a toxicomania como contestação a essa sociedade:

Para não morrer de ignorância, de miséria e de fome num mundo hostil, estaremos condenados a este trabalho incessante de progresso que nos permitiu conquistar a Lua? Os espíritos amargurados e mesquinhos que recordam o passado não têm razão ao dizer-nos que tudo estava melhor outrora e ao condenar a civilização técnica. Mas não devemos deixar de lhes dar razão na sua crítica daquilo que não vai bem numa sociedade desenvolvida que pode ser justamente qualificada de sociedade das doenças da civilização e do progresso, sociedade do esgotamento nervoso [...]. A toxicomania é uma forma de contestação de uma civilização desumana e desequilibrada, que não resulta de uma análise reflectida e lúcida em

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ordem a alterações úteis, mas que é uma consequência passiva dos efeitos neurosantes dessa falsa civilização. Neurose de fadiga e de angústia, de uma pessoa que sofre as condições desumanas sem compreender a sua nocividade porque não foi ensinada a viver; de uma pessoa mais frágil e vulnerável, que foi apenas instruída em conhecimentos técnicos [...], uma situação de conflitos em que soçobra o equilíbrio e em que a fuga para a droga traz uma falsa solução na impossibilidade de uma reacção de liberdade responsável, impossível para quem não aprendeu a ser livre e responsável pelo contrôle dos seus desejos e fantasias [...].

Se é localizável na família a causa de evasão de uma grande percentagem de jovens para o mundo da droga, tem de se pôr na restauração da família ocidental um dos remédios para o grande mal.
Sr. Presidente: Chego ao fim desta penúltima parte. A toxicomania social, mal de civilização, depende de dois factores: por um lado, a existência de um meio civilizacional que a provoca e a sua explicação como fenómeno humano de grupo; por outro, a existência, persistência e difusão da droga pressionada por uma máquina infernal de traficância, que vai da sua produção ao seu consumo, em expansão crescente.
O primeiro é um problema de fundo, sobre o qual os homens têm de procurar entender-se para lutarem por um mundo novo numa frente comum.
Se aceitamos a deformação que representa a sociedade de consumo, o perigo a que nos conduz ao cultivar o mito demo-individualista do progresso indefinido, e de cujas consequências o fenómeno da poluição é um símbolo e um aviso inquietante, temos de entendermo-nos sobre a reestruturação dessa sociedade e não pretender a sua destruição, com regresso ao caos e ao primitivismo, para de lá partir-se à construção de um mundo feliz.
Tal reestruturação comporta a luta ao longo do tempo pela implantação do equilíbrio no mundo entre os direitos soberanos da comunidade e os da pessoa humana sob o signo de um idealismo que olhe o futuro num sentido transcendental, atitude que lhe permita a expressão e a explicação integral da pessoa humana com a sua dimensão vertical.
Não é por acaso que os hippys clamam por um Cristo marginal como explicação do seu destino e como meta da sua realização, um Cristo como herói a seguir...
A evasão da droga, com sua passividade e o seu niilismo, sem revolta e sem esperança, corresponde a uma crise de idealismo, escuridão onde não brilha o facho que um mestre empunhe para conduzir...
A conversão da sociedade de consumo pressupõe essa dimensão vertical do cristianismo, sem o qual o homem se amputa a si próprio.
É a irradiação desse cristianismo, num sentido horizontal, social e humano, não menos importante que o primeiro, e que promova e estimule o equilíbrio na produção e a sobriedade necessária no consumo, numa distribuição de bens e potencialidades que estabeleça na natural desigualdade que o progresso fomenta, um plafond mínimo para todos os homens de qualquer meio, qualquer país ou qualquer raça.
Utopia?
Caminho por onde o homem deve seguir na sua aventura e no seu sonho, respondo. Caminho diversificado e pluralista, sem dúvida, mas que pode ter largo denominador comum.
Caminho onde o amor seja dom de cada um e nada tenha de ver com a "desnaturação erótica" ou narcísica, onde a coragem e o espírito revolucionário necessários nada tenham com a violência - técnica sistemática da destruição.
Mas a luta contra a toxicomania social envolve actuações imediatas e decisões concretas. A primeira e verdadeiramente axial seria estancar, quanto possível, a produção da droga. A Convenção Internacional de Estupefacientes, de que Portugal faz parte, estabeleceu, em 1961, os volumes permitidos para cada país para fins terapêuticos, mais tarde actualizados por um protocolo adicional. Mas o bloco dos países comunistas asiáticos mantém-se fora da Convenção.
A O. M. S., que se tem interessado nos últimos tempos pela luta contra a droga, a medicina e, sobretudo, a investigação terapêutica têm de lutar por obter e valorizar medicamentos, substituindo os estupefacientes.
O exemplo dos estabelecimentos Sandoz, sustando totalmente a exportação do L. S. D., cuja investigação custara milhões de francos, constitui uma atitude relevante de humanitarismo científico.
Mas a produção para venda clandestina, eis a grande vergonha do século das luzes.
O Deputado avisante lembrou numeradamente os países que produzem e exportam ópio. Dispensar-me-ei de repeti-los. E o L. S. D. é fácil de fabricar sinteticamente.
Assiste-se hoje ao esforço dos "grandes do Mundo" no plano económico a erguer o Mercado Comum, a procurar entender-se na construção da paz e na resolução dos problemas monetários.
Quando se consegue que países civilizados deixem de produzir maciçamente os elementos básicos da droga para envenenar amigos e inimigos?
Importa ganhar consciência internacional deste problema. Assinalemos os esforços internacionais feitos já neste sentido. A O. N. U. criou, a partir de Abril de 1971, um fundo mantido pela contribuição anual americana de 200 000 dólares para reorientar as culturas dos países pobres produtores de ópio. O Líbano substituiu a cultura da papoila pelo tornezol.
No dia 1 de Janeiro de 1971, o primeiro-ministro turco declarou que o seu Governo, subsidiado pelos Estados Unidos, ia comprar toda a produção de ópio e comprometeu-se a interditar a cultura da papoila a partir do Outubro de 1972, a qual rendia a média de 20 milhões de francos, representando, pelo menos, 60 por cento da heroína importada nos Estados Unidos em contrabando proveniente da papoila turca.
O outro aspecto, a repressão policial do tráfico clandestino, está em franco progresso. A Interpol multiplica-se em actuação a nível internacional e na ligação com as polícias nacionais. Uma especialização e uma técnica policial específica vai-se desenvolvendo em cada país. O plano Sépat representou a coordenação destes esforços a nível internacional.
A organização americana Federal Board of Narcotic, com sede em Washington, tem "antenas" em Paris, Banguecoque e México e doze secretariados com vinte e três agentes especiais nos países sensíveis.

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As informações que obtém transmite-as às polícias nacionais e fixa-se sobretudo na descoberta dos centros de abastecimento e revenda de drogas e no desvio de medicamentos para fins ilícitos. Fornece fundos aos serviços de repressão dos diversos países para retribuir os informadores. Mas é ainda enorme a diferença entre o que se apreende e o total que se vende.
Não quero terminar esta intervenção sem trazer-vos acerca da droga o testemunho da Igreja Mater et Magistra. Ao receber recentemente um grupo de pessoas que se ocupem da prevenção antidroga, em Itália, nas escolas das regiões de Lazio e de Campania, Paulo VI depois de lembrar que no âmbito da pesquisa científica já surgiu a hipótese de que algumas drogas possam deixar vestígios dolorosos até nos filhos, fez, entre outras, estas afirmações:

[...] se o fenómeno não for de qualquer modo detido, acabará bem cedo por ter funestas consequências na comunidade humana, quando as novas gerações, fatalmente perturbadas nos seus ideais e nas suas energias, se encontrarem, por sua vez, em lugares de responsabilidade.

Quanto às causas:

Parece que as causas mais verdadeiras se devem procurar no descontentamento e na falta de confiança dos jovens em relação à geração adulta, acusada de se permitir coisas que a eles proíbe (cf. "proibido aos menores") e de promover falsos valores, incoerências de vida, exclusivas preocupações de ganho, tolerância e insensibilidade perante o próprio hedonismo e perante as injustiças para com os outros. Nestas condições de aborrecimento, na impossibilidade de mudarem sozinhos o sistema, talvez depois de terem procurado o diálogo e respostas no âmbito familiar, escolheram a fuga e a evasão de tudo, procuraram grupos em que se pudessem reconhecer a si mesmos e aos quais pudessem pertencer. E é ali que facilmente se encontram com a droga, erigida como símbolo de recusa, usada como factor de compensação e instrumento de camaradagem. Este fenómeno de isolamento é acelerado por uma boa dose de curiosidade e de exibicionismo.
Talvez se tenha errado ao organizar o diálogo entre pais e filhos no período da adolescência. Talvez os pais não tenham sabido oferecer aos filhos a possibilidade de proporem perguntas com franca e serena liberdade, e não lhes tenham apresentado as suas propostas moralmente tonificantes, defendendo-se, algumas vezes, do colóquio moral, como se tivessem sido agredidos.

E referindo-se aos traficantes, acrescenta:

São eles os primeiros responsáveis das centenas de milhares de existências que se encontram irremediavelmente minadas.

Quanto aos jovens vítimas da droga, diz-nos Paulo VI:
Eles, em consequência da droga, estão-se a empobrecer cada vez mais, quanto a ideias e a energias; a sua atitude limita-se a uma crítica hostil e inerte, dirigida contra uma sociedade que, já por si mesma, deveria considerar-se doente; eles encontram-se na impossibilidade de propor alternativas e remédios. Trata-se, portanto, de uma desaprovação sórdida e quase cruel, de que, certamente, a comunidade não pode esperar nada de construtivo.
Nenhum destes jovens drogados, de facto, parece ter podido sair das suas experiências alucinantes fortificado nos ideiais de bem, enriquecido de programas como, por exemplo, contra a miséria e a fome. Nenhum deles partiu para o Terceiro Mundo a fim de se consagrar totalmente àqueles povos necessitados; nunca se encontraram jovens que usam a droga ao lado dos que sofrem de convulsões, dos atrasados físicos ou mentais, dos anciãos, em generosa oferta de assistência e de conforto.
A este propósito, é bastante significativo o confronto com outra categoria de jovens: a dos ricos em ideais espirituais e humanos, os quais, justamente porque desejam corrigir os erros e as injustiças da comunidade, na qual se encontram integrados como partes responsáveis, sentem a necessidade de possuir metas claras, ideais de compreensão e de empenho; a sua crítica é construtiva, feita de propostas e de esforços pessoais. Entre eles, a droga dificilmente consegue introduzir-se.

Sr. Presidente: Uma leve nota sobre o valor e o significado da arte psicadélica, tema curioso que outros poderão desenvolver.
Podem os alucinogénios em si próprios pelo amortecimento da consciência e a excitação patológica da imaginação ser origem de criação artística?
Parece que não. É o artista, e não o produto químico, que fornece a inteligência, a sensibilidade, a imaginação ou o talento. Não é a droga e o seu "miserável milagre" (Michaux) que lhes dá o génio, diz-nos Chuchard.
Quem não for artista pode tomar os alucinogéneos que quiser, porque continua a não sê-lo.
E a experiência não está isenta de todos os perigos que a droga oferece.
Por outro lado, como uma grande percentagem de drogados são psicopatas, haveria que estudar-se o parentesco da arte psicadélica com a arte dos esquizofrénicos e outros doentes mentais.
Chuchard diz-nos ainda que não deixa de haver uma diferença de natureza entre a pseudocriatividade da submissão ao inconsciente, e a verdadeira criatividade do domínio deste inconsciente.
E em Portugal?
Refiro-me exclusivamente à metrópole, por desconhecer as incidências que suponho variáveis de província para província ultramarina.
Na metrópole, felizmente, é limitado ainda o consumo de drogas. Como já disse, estamos a tempo de cuidar da profilaxia desta doença de civilização, sem uma propaganda muito generalizada que estimule a curiosidade. Há que dar meios em quadros de pessoal, de verbas e de actuação à Polícia Judiciária, a quem por lei compete o exclusivo na prevenção e repressão do uso de estupefacientes no nosso país.
Na fase actual, interessa o alargamento da rede policial preventiva, sobretudo aos centros de turismo, portos, aeroportos e locais de divertimento onde, a

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partir de possíveis utentes, se possa desmantelar redes de tráfico, que venham a ser montadas no nosso país.
Admita-se a hipótese de a "mafia" da droga, que cada vez mais se concentra em trusts poderosos, fixar atenção na metrópole portuguesa, já que se acentua a perseguição policial em Marselha e outros centros franceses, e ainda porque a vizinhança do nosso continente quanto ao Mediterrâneo e sobretudo quanto ao Norte de África facilita em parte um desvio do tráfico no sentido do nosso país. E contar-se com os pequenos mas numerosos traficantes ocasionais da droga, que o turismo leva de um lado para o outro.
Tem-se a Polícia Judiciária organizado e preparado para o combate à droga, como recentemente o demonstrou.
São cerca de 137 os casos que foram detectados de consumidores de droga nos últimos dois anos na metrópole, 22 dos quais estrangeiros. 46 por cento referem-se a jovens de 16 a 20 anos. 82 por cento tinham menos de 30 anos.
Detectou-se L. S. D., marijuana e haxixe.
Nenhum caso de heroína.
Na maioria dos casos, os drogados eram psicopatas e a maior parte iniciaram-se na Holanda e de lá vieram grande parte dos produtos utilizados.
O D. A. M. continua a ser o Olimpo da droga...
E os turistas como os estudantes estrangeiros um veículo a vigiar.
Fala-se em montar um serviço telefónico para testemunho anónimo confidencial da droga, isto é, a participação telefónica de que se está a consumir droga em determinado local, permitindo a intervenção imediata das brigadas policiais. Seria uma espécie de "115" da droga. Havia interesse na criação deste serviço adentro da organização profiláctica, que deve ser ampliada e apetrechada o melhor possível no nosso país.
Um despacho recente do Ministério da Saúde, no intuito de prevenir o desvio de estupefacientes do campo terapêutico para o tráfico ilícito, atribui à Imprensa Nacional o exclusivo do impresso para receituário a eles destinado e a ser fornecido directamente aos clínicos pela Ordem dos Médicos.
O Decreto-Lei n.° 420/70, do Ministério da Justiça, veio actualizar a nossa legislação sobre droga em moldes muito satisfatórios e paralelos, em grande parte, à legislação francesa mais recente.
Tem anexa uma lista de estupefacientes a alucinogéneos bastante completa.
A lei francesa permite a perseguição domiciliária para descoberta e por ordem do juiz de instrução, a qualquer hora do dia e da noite. Nenhuma disposição especial tem este decreto português a tal respeito, pelo que se aplicam as disposições do Código Penal, que só permitem esta diligência durante o dia.
Também não vejo que ali seja prevista a punição de exibir-se filmes ou de publicar-se literatura que estimule o uso da droga.
A lei francesa tem a preocupação do tratamento compulsivo dos drogados e da vigilância médica e policial dos que apresentam toxicomanias averiguadas e sobretudo dos reincidentes - para além do período de investigação e de pena de prisão.
O artigo L 355-14 do Código de Saúde Pública daquele país estabelece, em princípio, que "as pessoas que usem ilicitamente substâncias ou plantas classificadas como estupefacientes sejam colocadas sob vigilância da autoridade sanitária". O uso pessoal e solitário de estupefacientes constitui, assim, em França uma infracção.
A luta contra a toxicomania vem enquadrada no capítulo daquele Código que respeita a cinco flagelos sociais: tuberculose, doenças venéreas, cancro, doenças mentais e alcoólicos altamente perigosos.
O toxicómano - que é considerado como um doente, tendo em vista o perigo social que a toxicomania representa e a actuação longa e em profundidade que exige o seu tratamento e recuperação -, é objecto de medidas sanitárias que ultrapassam a repressão.
O toxicómano colocado sob a alçada da autoridade policial ou detectado directamente pelos serviços de saúde é, após inquérito, internado compulsivamente para a desintoxicação, se é toxicómano averiguado, e, se não o é, fica sob vigilância sanitária periódica durante um certo tempo.
Estes serviços são gratuitos.
O toxicómano pode voluntariamente apresentar-se ao serviço hospitalar de desintoxicação - neste caso ainda é tratado gratuitamente e guardado o anonimato -, sendo-lhe entregue à saída um certificado do tempo e duração do tratamento para apresentar à Polícia, se disso necessitar.
A lei portuguesa citada não pune o consumo de estupefacientes, "mas a sua obtenção de qualquer modo" (artigo 2.°) e o consumo "na presença de terceiros com a consciência de poderem incentivar ou difundir o uso de estupefacientes" (artigo 4.°).
O artigo 71.° do nosso Código Penal, § 2.°, prevê o internamento de toxicómanos em estabelcimentos especiais de recuperação, mas suponho que só durante o cumprimento da pena. O tratamento dos toxicómanos, dizem os técnicos, deve preferentemente ser hospitalar, mas nunca em meio psiquiátrico.
É difícil o tratamento, difícil o temperamento destes doentes, escassos os bons resultados definitivos. Discute-se ainda o tipo ideal de estabelecimento para tratamento de toxicómanos.
A Fundação Synamon é considerada o melhor estabelecimento francês. Resultados: 50 por cento de curas após dois anos de permanência em "socioterapia".
A experiência das free clinics americanas, de que é piloto o Hight Ashboury Medical Clinic, de S. Francisco, parece ainda obter melhores resultados, com anonimato e gratuitidade assegurados aos que se apresentem voluntariamente.
Há ainda em França iniciativas curiosas de pequenas comunidades para reabilitação de drogados, como a do padre Gerardin, e, em Inglaterra, a Comunidade Daytop, onde ex-drogados fazem auto-recuperação livre.
Interessava muito que em Portugal se organizasse uma pequena clínica piloto especializada, para tratamento e recuperação de drogados, pronta a actuar e a multiplicar-se, se necessário, não actuando necessariamente em meio psiquiátrico.
Faço votos para que sejam consideradas oportunamente pelo Estado as sugestões que fiz acerca da busca domiciliária nocturna, de repressão de filmes e literatura que insinuem ou estimulem o uso da droga, do tratamento médico compulsivo e voluntário fora do período penal da criação de um estabelecimento piloto para desintoxicação.

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Quando há pouco disse que na metrópole é pouco frequente ainda o uso de drogas, não esqueci que leva sempre algum tempo a vir à superfície o que se passa no underground da droga. E ainda que por volta de 1965, salvo erro, Sir George Godber, um dos responsáveis pela saúde pública na Grã-Bretanha, fizesse afirmações optimistas quanto ao consumo da droga, dois anos depois vinha, alarmado, fazer declarações opostas - já que a situação em dois anos se modificara totalmente.
Não esqueçamos que há poucos anos tentou-se distribuir a adolescentes, junto a estabelecimentos de ensino secundário, rebuçados drogados - tentativa que foi cortada cerce, mas que deve alertar-nos.
Sr. Presidente: Possui este tenebroso mundo da droga tantas incidências curiosas que, tendo procurado completar um pouco o muito que disse o Sr. Deputado avisante, e resumindo quanto pude ideias e conceitos, cheguei aqui, longe de chegar ao fim...
Tragédia humana vivida no presente, por muitos países ocidentais, projecta-se no futuro como uma tara gigantesca e como uma angustiosa incerteza.
Incerteza, se será dominável e extinguível tão grande mal...
Portugal corre riscos, como disse, embora o contágio não se afirme ainda na metrópole em escala alarmante.
Mas quem pode esquecer o papel da droga nos acontecimentos no Norte de Angola em 1969?
Drogados pelo haxixe, encorajados pela afirmação dos "feiticeiros" de que estavam imunes contra as balas, bandos de assassinos assaltavam a peito descoberto fazendas, aldeias e vilas daquele nosso Estado. E como disse há tempos um articulista da Brotéria, o que é triste no meio deste ambiente de droga e de fanatismo selvagem é que houve nesta altura brancos e pretos da nossa terra serrados vivos ou cruelmente escortejados, só por serem portugueses.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: A droga já matou muitos portugueses no ultramar...
E deixou nos corpos e nas almas cicatrizes que não podem ser esquecidas, antes há que lembrá-las a alguns, os que buscam o caminho da derrota e abandono que pode às vezes coincidir com o da traição.

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Roboredo e Silva: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Depois de se ouvir a completa, vibrante e exaustiva exposição sobre a matéria do seu aviso prévio com que ontem nos brindou o nosso ilustre colega Dr. Delfino Ribeiro, nada fica para se dizer. E a coisa torna-se ainda mais delicada após a brilhante intervenção de há pouco do não menos ilustre Deputado Dr. Agostinho Cardoso. Todavia, como audaces furtuna juvat não deixarei de trazer o meu magríssimo contributo para tão palpitante assunto, como é este que o aviso prévio contempla.
Os sãos conceitos de uma vida moral compensadora, no campo individual e familiar e verdadeiramente fortalecedores dos alicerces das nações, estão a esboroar-se, digamos assim, perante a complacência das pessoas e de muitos governos.

O Sr. Delfino Ribeiro: - Muito bem!

O Orador: - Parece que se receia enfrentar realidades e que haverá antes a intenção de tolerar situações graves, aceitando-se um provável desmoronamento da civilização ocidental em que nos criámos e para a qual não se enxerga substituto, nem legítimo, nem útil.

O Sr. Delfino Ribeiro: - Muito bem!

O Orador: - Na verdade, parece que com alguma indiferença se consente na ridicularização dos princípios fundamentais da nossa ética e da nossa civilização. Em nome da literatura, do teatro, do cinema e da arte, em geral, da juventude, da evolução, da simbologia, jovens e não jovens, intelectuais e pseudo-intelectuais querem contestar, se não destruir, a priori, não só aquilo que tem de ser modificado acompanhando o progresso mental e espiritual do homem, mas também aqueles conceitos que, uma vez destruídos e não validamente substituídos, não permitirão às sociedades actuais sobreviver.
Está a deixar-se lavrar um incêndio de tais proporções que chega a duvidar-se se alguém o saberá ou poderá dominar. Reconstruir sobre escombros será admissível como objectivo futuro?
Este intróito vem a propósito dos vícios degradantes que assolam boa parte da humanidade.
O presidente Nixon dizia há tempos que a toxicomania nos Estados Unidos da América tem agora aspecto de uma catástrofe nacional. Se não pusermos fim a este flagelo, será ele que dará cabo de nós.
Nesta toxicomania temos de envolver os alucinogéneos, os estimulantes, os sedativos, os narcóticos e até o álcool quando ingerido em doses incontroladas.
Quem tem percorrido a Europa Ocidental encontra um popularidade crescente por tudo o que é imoral e erótico, pela justificação do uso da droga como provocadora de novas sensações, por uma liberdade sexual mal compreendida que, afinal, irá reduzir o homem a puro animal, por um louvor histérico do happening com forma de felicidade espontânea e remuneradora.
Em suma: droga, erotismo, prostituição, sex-boutiques, vendendo os artigos mais ousados e variados, revistas, livros, diapositivos, filmes, gravações eróticas, etc. E muitas vezes ao balcão encontram-se a atender os clientes raparigas com menos de 20 anos.
Já nem falo no tráfico e chantagem sobre mulheres e crianças, em que a Europa Ocidental é grande fornecedora de matéria-prima. Em média desaparecem umas 50 000 raparigas europeias por ano, destinadas a ser reduzidas à condição de escravas sexuais. A droga é um dos principais meios usados para lançar as mulheres na prostituição, vindo daí a designação de battery girls - raparigas mantidas sob o efeito da droga e guardadas em casas "apropriadas"; quando é necessário activar a acção da droga, diz-se simplesmente que há que recharger la batterie.
Recentemente vi uma notícia sobre o aumento do consumo da droga nos meios universitários canadianos, que em dois anos cresceu 12,2 por cento. Usando a heroína, marijuana e L. S. D., a proporção era de uns 30 por cento, ou seja quase de um estudante em cada grupo de três. O contraste é tanto mais impressionante quanto no resto da população o consumo da droga não excedia 3,5 por cento.
Esta individualização não teve qualquer significado particular, pois é sabido que a percentagem de jovens viciados na droga é assustadora na Europa Ocidental.

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Um médico especialista de Hamburgo disse que dois terços dos seus clientes eram alunos liceais. Num inquérito feito em dezenas de liceus alemães, um em cada dois alunos de mais de 15 anos tinha experimentado o haxixe ou o L. S. D.
Em Inglaterra, personalidades em evidência defenderam a venda livre da droga. Distribuindo livremente o fruto proibido, seria a maneira mais inteligente de evitar as tentações (esta ilusão foi responsável pela livre comercialização da pornografia na Dinamarca). Assim, solicitava-se que as farmácias vendessem livremente haxixe ou cocaína com a naturalidade com que se vendia aspirina ou pastilhas contra a tosse! Hoje, porém, já não se pensa da mesma forma.
Na Suécia também o uso da droga excede os 15 por cento nos liceus, enquanto na população a percentagem é incomparavelmente menor.
Mas o problema não é muito diferente noutros países, e não vale a pena mencionar mais casos. Lembra-se que há anos, nos Estados Unidos da América, foi feito um inquérito em que os hippies foram divididos em duas categorias: os falsos, que aderem ao movimento seduzidos pelas "viagens" proporcionadas pela droga e pelas perspectivas de amor livre, e os verdadeiros, revelados pela sinceridade do comportamento e, sobretudo, pela escravidão total à droga. O verdadeiro hippy - afirmou-se no inquérito - droga-se.
Li ultimamente um livro do Dr. Donalt Louria, especialista dos males da droga, a respeito da acção da heroína nos Estados Unidos da América. Traduzo esta passagem:
Neste período (desde a 2.ª Guerra Mundial), milhares de viciados no uso da heroína morreram por paragens respiratórias (respiratory arrest) ou congestões pulmonares devido a injectarem-se com doses demasiado elevadas da droga. Milhares de jovens mulheres foram forçadas a seguir vidas depravadas e a prostituição para arranjar dinheiro a fim de manter o vício. Dezenas de milhares de jovens sofreram de abcessos, hepatites, endocardites, malária e tétano por, ao injectarem-se com heroína, usarem agulhas contaminadas; e centenas de milhares tornaram-se criminosos, roubando mais de 1 bilião de dólares por ano, a fim de obter dinheiro para comprar heroína.

Do mesmo livro, a propósito do uso da marijuana transcrevo:

[...] durante as décadas de 40 e 50 houve um gradual mas persistente aumento de consumo entre os estudantes, mas nos últimos cinco anos o consumo entre jovens assumiu proporções epidémicas.

Um número: Na Califórnia são fumados diariamente um milhão de cigarros de marijuana. Seja qual for a verdade deste número, ele é impressionante e aterrador.
No livro a que me refiro faz-se uma análise das características e consumo das diferentes drogas com bastante síntese que pode interessar a quem se ocupa da matéria, sem o fazer em grande profundidade.
Na União Soviética e na China Continental o problema da droga não existe. E enquanto no Ocidente, sob a capa da libertação ou da contestação, a droga e outras maleitas mencionadas vão minando a sociedade, tornando-a cada vez mais decadente, na Rússia e nos domínios do Presidente Mao - aqui, todavia, muito mais acentuada - a austeridade dos costumes é directiva estatal rigorosamente seguida e fiscalizada. Ao passo que do nosso lado, e agora não faço excepções, quero dizer envolvo Portugal no todo, pois infelizmente não poderíamos deixar de ser apanhados por tão vasta engrenagem ainda que, graças a Deus, muito mais moderada e discretamente do que noutros países, certa mocidade progressivamente se diminui e estiola num crepúsculo prematuro e vive na promiscuidade e indigência, despresivelmente suja, alimentada a L. S. D. e embalada por doutrinas dissolventes, buscando na droga os estímulos de que necessita para o amor sem barreiras e para viver uma vida sem ideias nem ideais.
No mundo comunista, e designadamente na China, uma juventude bastante fanatizada noutro sentido, ainda observa uma vida espartana, robustece-se física e moralmente, norteada por princípios que condenamos por contrários ao sentido moral que temos da vida, mas aos quais muito apraz um Ocidente narcotizado por drogas e tendências desmoralizadoras, situação que de bom grado ajudará a manter e a expandir-se.
Poderia ou deveria talvez tirar conclusões, mas afigura-se-me que se torna desnecessário...
Todos lemos ou ouvimos dizer da acção da droga no Vietname sobre os militares americanos, utilizando os meios mais subtis e atraentes para minar o seu moral.
O problema teve grande acuidade, pois já vi escrito num livro americano que três quartas partes das tropas combatentes se drogavam, principalmente com marijuana. O célebre morticínio de My Lai não deixou de ser explorado como resultado da droga. Nos Estados Unidos da América, além da legislação federal cuja lei principal emanada do Congresso é de 1970, cada ramo das forças armadas tem a sua própria legislação, aplicável ao pessoal militar e da reserva e em parte aos funcionários civis que os servem. Além de testes periódicos, à responsabilidade nos vários níveis hierárquicos, a programas de educação e doutrinação até à retenção no serviço de pessoal envolvido no uso de drogas, reabilitação, etc., tudo é considerado. É este aspecto que, ao usar da palavra sobre a matéria do aviso prévio, me preocupa mais que nenhum outro.
Refiro-me às repercussões que a drogagem da juventude ou outros vícios e as desgraças do seu hábito resultantes podem ter sobre as instituições militares. Devemos considerá-las mesmo problema extremamente delicado, porque serão os militares que depois não estarão moralizados para enfrentar as viris lutas em que tenham de intervir para defender a Pátria, por melhores que sejam os planos de defesa e mais copiosos os meios materiais.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - No nosso caso, perante a situação que nos forçam a enfrentar em África, é lícito e humano estar inquieto. O homem foi, é, e será eternamente o elemento mais valioso para ganhar guerras, seja qual for o seu tipo, pelo que o seu moral terá de ser sempre muito elevado e mais vincados ainda os seus sentimentos patrióticos. O culto do de-

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ver e da honra, da disciplina e da tradição tem de ser permanente preocupação do indivíduo que veste um uniforme. E hoje, como noutras ocasiões tenho afirmado, nos areópagos internacionais só se fala de direitos, esquecendo-se que, sem deveres bem definidos, os direitos, considerados isoladamente, são, antes, começo de subversão.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Por outro lado, nas forças armadas, sendo a massa constituída pela juventude, aliás digna de todo o nosso respeito e admiração pela maneira devotada e corajosa como vem defendendo as populações e a terra portuguesa de África, se ela perdesse a noção do culto daqueles deveres da honra e da disciplina, o que representaria tal massa?
Há, portanto, que não descurar a firmeza moral da retaguarda que é questão da maior dignidade, de prestígio e mesmo de sobrevivência.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Para isso é necessário que se defendam, por todos os processos e formas que a imaginação alcance, através de gente bem formada moral, social e psicologicamente, os princípios fundamentais que informam a nossa civilização e a pátria portuguesa.
Há que fornecer aos indivíduos de todas as idades, classes e camadas sociais uma razão forte, imperativa, que os convença sem ambages e lhes imponha um estado de espírito capaz de todos os riscos para assegurar a perenidade do Portugal pluricontinental e multirracial que somos.
E lembrando as palavras que o pastor negro Luther King uma vez pronunciou:
[...] são de facto maravilhosos os recursos de que dispomos para viver, mas há, porém, alguma coisa que falta: aprendemos a voar como os pássaros e a nadar como os peixes, mas não conseguimos aprender a arte simple de vivermos unidos como irmãos.

E lembrando estas palavras terminarei as minhas considerações convencido de que o problema não é ainda um grave problema entre nós portugueses, mas que tem de se estar alertado e atento e tomar as medidas requeridas, fundamentalmente de prevenção, mas também de recuperação e de repressão, porventura agravadas, estas últimas, se a situação o impuser.
Concordo, portanto, neste contexto e na generalidade, com as conclusões a que chegou o digníssimo Deputado avisante, afigurando-se-me que a criação de um centro de tratamento e reabilitação de toxicómanos e a preparação dos respectivos especialistas de que julgo ainda não dispormos - centro e especialistas - se justifica inteiramente, admitindo até que já esteja nos propósitos do Governo preencher essa lacuna, o que, a ser verdade, me daria muita alegria.
Tenho dito.

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados: Vou encerrar a sessão.

A próxima sessão será na terça-feira, 13 do corrente mês, à hora regimental, tendo como ordem do dia a continuação da discussão do aviso prévio sobre a toxicomania.
Está encerrada a sessão.

Eram 17 horas e 25 minutos.

Srs. Deputados que entraram durante a sessão:

António da Fonseca Leal de Oliveira.
Filipe José Freire Themudo Barata.
João Duarte Liebermeister Mendes de Vasconcelos Guimarães.
José Gabriel Mendonça Correia da Cunha.
José de Mira Nunes Mexia.
Júlio Dias das Neves.
Manuel Martins da Cruz.
Manuel Valente Sanches.
D. Maria Raquel Ribeiro.
Maximiliano Isidoro Pio Fernandes.

Srs. Deputados que faltaram à sessão:

Alberto Marciano Gorjão Franco Nogueira.
Alexandre José Linhares Furtado.
Álvaro Filipe Barreto de Lara.
António Bebiano Correia Henriques Carreira.
António Fausto Moura Guedes Correia Magalhães Montenegro.
António Júlio dos Santos Almeida.
Armando Valfredo Pires.
Camilo António de Almeida Gama Lemos de Mendonça.
Carlos Eugénio Magro Ivo.
Fernando David Laima.
Fernando do Nascimento de Malafaia Novais.
Francisco Correia das Neves.
Francisco Esteves Gaspar de Carvalho.
Francisco José Pereira Pinto Balsemão.
Francisco Manuel de Meneses Falcão.
Francisco de Nápoles Ferraz de Almeida e Sousa
Gabriel da Costa Gonçalves.
Gustavo Neto Miranda.
João Lopes da Cruz.
João Manuel Alves.
João Pedro Miller Pinto de Lemos Guerra.
João Ruiz de Almeida Garrett.
Joaquim Carvalho Macedo Correia.
Joaquim Jorge Magalhães Saraiva da Mota.
Jorge Augusto Correia.
José Coelho de Almeida Cotta.
José Coelho Jordão.
José da Costa Oliveira.
José Dias de Araújo Correia.
José Vicente Pizarro Xavier Montalvão Machado.
Júlio Alberto da Costa Evangelista.
Luís Maria Teixeira Pinto.
Manuel Homem Albuquerque Ferreira.
Manuel José Archer Homem de Mello.
Manuel Monteiro Ribeiro Veloso.
Rafael Valadão dos Santos.
Ricardo Horta Júnior.
Rogério Noel Peres Claro.
Rui Pontífice Sousa.
D. Sinclética Soares dos Santos Torres.
Tomás Duarte da Câmara Oliveira Dias.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.

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