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REPUBLICA PORTUGUESA

SECRETARIA-GERAL DA ASSEMBLEIA NACIONAL E DA CÂMARA CORPORATIVA

DIÁRIO DAS SESSÕES

N.° 241 ANO DE 1973 30 DE MARÇO

ASSEMBLEIA NACIONAL

X LEGISLATURA

SESSÃO N.° 241, EM 29 DE MARÇO

Presidente: Exmo. Sr. Carlos Monteiro do Amaral Netto

Secretários: Exmos. Srs.
João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira
Amílcar da Costa Pereira Mesquita

SUMÁRIO: - O Sr. Presidente declarou aberta a sessão às 16 horas.

Antes da ordem do dia. - Para cumprimento do disposto no § 3.º do artigo 109.º da Constituição, foram presentes à Assembleia os Decretos-Leis n.º 133/73, 134/73 e 135/73.
O Sr. Deputado Pinto Castelo Branco analisou a maneira como decorreram as eleições legislativas nos diversos territórios ultramarinos.
O Sr. Deputado Joaquim Macedo referiu-se ao problema da indústria automóvel.
O Sr. Deputado Almeida e Sousa usou da palavra para fazer algumas considerações acerca da Universidade do Porto.
O Sr. Deputado Leal de Oliveira, depois de fazer algumas considerações sobre política geral, apelou para o Governo no sentido de acelerar diversas obras relacionadas com o desenvolvimento do Algarve.
O Sr. Deputado Homem de Mello referiu-se a alguns problemas do distrito de Aveiro, nomeadamente sob o aspecto agrícola.

Ordem do dia. - Prosseguiu o debate do aviso prévio sobre a indústria do turismo no desenvolvimento económico e social do ultramar.
Usaram da palavra os Srs. Deputados Agostinho Cardoso e Alberto de Alarcão.
O Sr. Presidente encerrou a sessão às 18 horas e 15 minutos.
O Sr. Presidente: - Vai proceder-se à chamada. Eram 15 horas e 55 minutos.

Fez-se a chamada, à qual responderam os seguintes Srs. Deputados:

Agostinho Gabriel de Jesus Cardoso
Albano Vaz Pinto Alves.
Alberto Eduardo Nogueira Lobo de Alarcão e Silva
Alberto Maria Ribeiro de Meireles.
Albino Soares Pinto dos Reis Júnior.
Álvaro Filipe Barreto de Lara.
Amílcar da Costa Pereira Mesquita.
António Fausto Moura Guedes Correia Magalhães Montenegro.
António da Fonseca Leal de Oliveira.
António Júlio dos Santos Almeida.
António Lopes Quadrado.
António Pereira de Meireles da Rocha Lacerda.
Armando Júlio de Roboredo e Silva.
Artur Augusto de Oliveira Pimentel.
Bento Benoliel Levy.
Carlos Eugénio Magro Ivo.
Carlos Monteiro do Amaral Netto.
D. Custódia Lopes.
Delfim Linhares de Andrade.
Delfino José Rodrigues Ribeiro.
Eleutério Gomes de Aguiar.
Fernando Artur de Oliveira Baptista da Silva.
Fernando David Laima.
Fernando Dias de Carvalho Conceição.
Fernando do Nascimento de Malafaia Novais.
Filipe José Freire Themudo Barata.
Francisco António da Silva.
Francisco Correia das Neves.
Francisco Esteves Gaspar de Carvalho.
Francisco Manuel de Meneses Falcão.
Francisco de Moncada do Casal-Ribeiro de Carvalho.
Francisco de Nápoles Ferraz de Almeida e Sousa.
Gabriel da Costa Gonçalves.
Gustavo Neto Miranda.

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Henrique Veiga de Macedo.
Humberto Cardoso de Carvalho.
João Duarte Liebermeister Mendes de Vasconcelos
Guimarães.
João Duarte de Oliveira.
João José Ferreira Forte.
João Lopes da Cruz.
João Manuel Alves.
João Nuno Pimenta Serras e Silva Pereira.
João Paulo Dupuich Pinto Castelo Branco.
Joaquim Carvalho Macedo Correia.
Joaquim Germano Pinto Machado Correia da Silva.
Joaquim José Nunes de Oliveira.
Joaquim de Pinho Brandão.
Jorge Augusto Correia.
José Maria de Castro Salazar.
José de Mira Nunes Mexia.
José Vicente Cordeiro Malato Beliz.
Lopo de Carvalho Cancella de Abreu.
D. Luzia Neves Pernão Pereira Beija.
Manuel Elias Trigo Pereira.
Manuel Homem Albuquerque Ferreira.
Manuel de Jesus Silva Mendes.
Manuel Martins da Cruz.
Miguel Pádua Rodrigues Bastos.
Olímpio da Conceição Pereira.
Pedro Baessa.
Prabacor Rau.
Rafael Ávila de Azevedo.
Rafael Valadão dos Santos.
Ramiro Ferreira Marques de Queirós.
Ricardo Horta Júnior.
Rui de Moura Ramos.
D. Sinclética Soares dos Santos Torres.
Teófilo Lopes Frazão.

O Sr. Presidente: - Estão presentes 68 Srs. Deputados.
Está aberta a sessão.

Eram 16 horas.

Antes da ordem do dia

O Sr. Presidente: - Está em reclamação o n.° 239 do Diário das Sessões.

Pausa.

Se nenhum de VV. Exas. tem rectificações a apresentar ao n.° 239 do Diário das Sessões, considerá-lo-ei aprovado.

Pausa.

Está aprovado.

Pausa.
Não tenho expediente a mencionar a VV. Exas. Informo que, para cumprimento do § 3.° do artigo 109.° da Constituição, está na Mesa, enviado pela Presidência do Conselho, o Diário do Governo, 1.ª série, n.° 74, de 28 do corrente, que insere os seguintes decretos-leis:

N.° 133/73, que define o estatuto legal dos parques industriais e cria a Empresa Pública de Parques Industriais;
N.° 134/73, que altera a redacção dada a algumas disposições do Decreto-Lei n.° 36 976, de 20 de Julho de 1948, pelo Decreto-Lei n.° 475/ 72, de 25 de Novembro (Lei Orgânica da Administração-Geral do Porto de Lisboa);
N.° 135/73, que altera a redacção dada a algumas disposições do Decreto-Lei n.° 36 977, de 20 de Julho de 1948, pelo Decreto-Lei n.° 477/72, de 27 de Novembro (Lei Orgânica da Administração dos Portos do Douro e Leixões).

Tem a palavra o Sr. Deputado Pinto Castelo Branco.

O Sr. Pinto Castelo Branco: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Regressado anteontem a Lisboa, vindo da minha província da Beira Baixa, onde a cerimónia de entrada em funções do novo representante do Governo Central deu azo às mais expressivas e sentidas manifestações de unidade, não só distrital, mas também nacional, não podia deixar de reagir com particular intensidade ao profundo significado dos actos eleitorais que, do mar de Timor ao oceano Atlântico, acabaram de se processar no Portugal de além-mar.
De facto, Sr. Presidente, depois de enumerar as parcelas que constituem o território nacional disperso pelas cinco partidas do Mundo, diz a Constituição que "o Estado Português é unitário, podendo compreender regiões autónomas com organização político-administrativa adequada à sua situação geográfica e às condições do respectivo meio social". Logo a seguir acrescenta que "a forma do regime é a República Corporativa, baseada na igualdade dos cidadãos perante a lei, no livre acesso de todos os portugueses aos benefícios da civilização e na participação dos elementos estruturais da Nação na política e na administração geral e local", e, ainda, serem elementos estruturais da Nação "os cidadãos, as famílias, as autarquias locais e os organismos corporativos".
É dentro desta orientação básica que creio firmemente que a realização das eleições gerais para a constituição dos órgãos de representação electiva das nossas províncias ultramarinas corresponde a um passo marcante na linha da promoção política e do desenvolvimento social daquelas parcelas do território nacional.
Na realidade, o facto de as eleições se terem efectuado demonstra claramente que Portugal, no cumprimento da sua vocação civilizadora, tem sido capaz de conferir, contra ventos e marés, às populações dos seus territórios ultramarinos o grau de maturidade sócio-cultural e política suficiente para o estabelecimento, em termos de indiscutível legitimidade, de genuínos órgãos representativos provinciais, quais são, em âmbito político geral, as assembleias legislativas e, em plano mais orgânico, ou corporativo, as juntas consultivas.
Por outro lado, a boa ordem e inteira tranquilidade em que decorreram as eleições, não só em Macau, Timor, Cabo Verde ou S. Tomé e Príncipe, como também na Guiné, em Angola e em Moçambique, apesar da pressão da subversão externa que incide sobre algumas das zonas fronteiriças destes territórios e da exacerbada - para não dizer exasperada - propaganda inimiga, são também prova irrefutável da

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crescente incapacidade das forças do mal em impedir a vida do dia-a-dia, e, até, aqueles mesmos eventos mais notórios que vão balizando a tenaz prossecução do progresso dos territórios e das populações de Portugal, na Europa e fora dela.
Neste aspecto, pode dizer-se também que o domingo 25 de Março de 1973, sendo certo marcar uma vitória cívica, assinala ainda uma clara vitória militar no plano da luta anti-subversiva em que o País se encontra empenhado há já doze anos, pode dizer-se que dia por dia.
Vitórias que são ambas indício certo de, por elas e com elas, Portugal ir caminhando, lenta mas seguramente, para a paz, que sempre pretendeu construir na justiça.

O Sr. Neto Miranda: - V. Exa. dá-me licença?

O Orador: - Faz favor.

O Sr. Neto Miranda: - A análise que V. Exa. está a fazer ao acto eleitoral que ocorreu no passado dia 25 em todo o espaço ultramarino situa-o em dois aspectos fundamentais: primeiro, numa preparação cívica com fins políticos; segundo, numa atitude de reprovação pela acção desenvolvida pelos nossos inimigos quanto a esse mesmo acto eleitoral.

O Orador: - É isso mesmo.

O Sr. Neto Miranda: - Eu dou inteiro aplauso às palavras com que V. Exa. acaba de iniciar a sua intervenção e devo também significar que, mercê de determinadas circunstâncias, acompanhei o acto eleitoral numa proximidade menos longínqua do que aquela em que V. Exa. se situa. E precisamente isso permitiu-me, avaliar do interesse que o acto eleitoral que se avizinhava estava a despertar em toda a população; um significado evidentemente de civismo e de autenticidade política, no qual as populações das províncias do ultramar desejavam participar.
Eu suponho que estas minhas palavras podem esclarecer ainda melhor os resultados obtidos e o conhecimento que foi dado a todos nós, através das comunicações oficiais e mesmo da imprensa, da forma como decorreu o acto eleitoral, da forma cívica como nele tudo se processou e ainda das percentagens de votantes em face dos cadernos eleitorais e do recenseamento que de ano para ano se está a avolumar, prova acentuada de maior civismo e de maior integração de todas as populações na participação na vida pública e política do País, como tão vivamente o Sr. Presidente do Conselho tem recomendado a todos nós.
Muito obrigado.

O interruptor não reviu.

O Orador: - Muito obrigado, Sr. Deputado Neto Miranda, por esta achega, que tem, além de tudo o mais, o valor do testemunho presencial.
Muito obrigado, pois.
Dizia eu que ambas as vitórias, a vitória cívica e a vitória militar, são indício certo de, por elas e com elas, Portugal ir caminhando, lenta mas seguramente, para a paz, que sempre pretendeu construir na justiça
Vitórias de que são credores, na frente ou na retaguarda, todos aqueles que, independentemente de opiniões políticas, continuam a crer na vocação transcendente da Nação, e de entre os quais é justo salientar as forças armadas e de segurança, quer nos sacrificados quadros permanentes que as estruturam, quer na generosa e também sacrificada juventude que as integram e corporizam.
Neste momento, apenas uma nota de tristeza vem ensombrar a legítima satisfação que todos os portugueses de lei não podem deixar de sentir. Refiro-me, Sr. Presidente, ao Estado Português da índia, única parcela do nosso território onde a presença invasora não permite a realização de eleições livres.
Para os nossos compatriotas de Goa, Damão e Diu, sujeitos ao jugo estrangeiro ou livres, mas afastados de familiares e amigos, vai a profunda solidariedade do nosso pensamento, tornada ainda maior pela hora alta de igualdade e participação vivida pelo resto do País.
De igualdade e participação, disse eu. Pois que, efectivamente, este é o significado mais profundo do exemplo frisante que a Nação acaba de dar ao Mundo no último domingo, pela ausência total de discriminação racial, confissional ou outra, e pela participação efectiva, livre e natural, que são a um tempo origem e finalidade das eleições legislativas e orgânicas no ultramar português.
Seja-me por isso permitido trazer aqui um testemunho que, vindo de Angola, é igualmente válido para qualquer das restantes províncias.
Refiro-me à notável entrevista concedida pelo Secretário-Geral daquele Estado aos órgãos de informação a propósito do acto eleitoral e na qual diz, nomeadamente:

No nosso eleitorado só 20% é que serão brancos. E eu digo estimamos - e com isso respondo, com certeza, a algumas interrogações (pelo menos respondo a algumas que já me eram feitas) de quantos, no colégio eleitoral, são brancos ou não são brancos -, porque, na verdade, não sabemos. Os nossos cadernos de recenseamento não pedem a cor a ninguém e nunca fizemos depender da cor nenhum critério, nem para votar, nem para ser eleito, nem para ser elemento que se situe dentro dos estratos sociais ou dos estratos económicos, dentro dos estratos de decisão. Não podemos dizer.
Quando nos perguntam quantos no colégio eleitoral têm a 4.ª classe, pois eu terei de responder que não sabemos, porque a lei, no sentido de proporcionar a mais larga representação, não exige a 4.ª classe: basta que saibam ler e escrever português e, naturalmente, face à simplificação da exigência, não há ninguém que vá munir-se dos seus diplomas universitários, ou secundários, ou da simples instrução primária, quando tal não é exigido para a comprovação.
Quando nos perguntam, ainda, quantos é que dos candidatos são de cor e quantos é que são brancos, sinto-me realmente na situação de impossibilidade de responder, porque sabemos a terra da sua naturalidade e, no nosso conceito de civilização, não entendemos que alguém possa presumir uma maior representação de determinada terra só pela circunstância de ali ter nascido, na medida em que os há que numa terra vivem e há outros que numa terra só nasceram.

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O que importa é, realmente, o contributo que cada um pode trazer para a sua terra, no sentido de terra não de que se apropria, mas de terra a que devota.
Srs. Deputados: Eu por mim acrescentarei apenas que, se é certo não nos pesar na consciência, graças a Deus, nenhuma das discriminações que a O.N.U. diz reprovar - embora a maioria daqueles seus membros que nos atacam as pratiquem -, talvez sejamos réus de outras.
A primeira - que é absoluta, pois de outro modo nos negaríamos a nós mesmos - resulta de não podermos admitir os poucos e lamentáveis transviados que renegam o próprio ser da Nação Portuguesa.
A segunda é aquela a que poderá chamar-se "dos mais capazes", pois ao revés da demagogia e do farisaico igualitarismo infelizmente espalhados hoje no mundo ocidental, não queremos deixar, honesta e claramente, de afirmar que aquilo que deve distinguir os cidadãos no desempenho das diversíssimas funções que constituem o corpo social é, e deve ser, a capacidade efectiva de cada um. Este, nomeadamente, o sentido de toda a nossa obra de promoção sócio-política no ultramar.
Terminarei, Sr. Presidente, afirmando que o acto eleitoral, decorrido no passado fim de semana, naquele "relativo silêncio das coisas sérias", com tanta felicidade referido por um dos Srs. Governadores-Gerais (e nosso par até há bem pouco tempo), dá jus a que os portugueses aquém e além-mar possam e devam sentir a tranquila satisfação do dever cumprido. De um dever cumprido:
Na unidade e na diversidade características desde início da Nação Portuguesa; Na unidade e na diversidade tão portuguesmente consubstanciadas na veneranda figura do Chefe do Estado. Na unidade e na diversidade tão inteligente e tenazmente prosseguidas a bem da Nação pelo Presidente do Conselho.

Tenho dito.

O Sr. Joaquim Macedo: - Sr. Presidente: O Sr. Deputado Themudo Barata, a quem publicamente testemunho a alta consideração que me merecem as suas qualidades pessoais, trouxe há pouco a esta Câmara, com a independência que lhe conhecemos, um problema de extraordinária importância na nossa panorâmica económica - o da indústria automóvel.
Fez o Sr. Deputado desenvolvidas considerações sobre a política industrial adoptada neste domínio, materializada no Decreto-Lei n.° 44 104, de 20 de Dezembro de 1961, e igualmente sobre os resultados que dele se colheram e referiu-se ainda às alterações recentemente introduzidas pelo Decreto-Lei n.° 157/72.
Perfeitamente de acordo com o que o Sr. Deputado aqui disse, permita-me V. Exa. Sr. Presidente, que ajunte alguns comentários sobre o mesmo problema, focados sobretudo em perspectiva de futuro.
Lamento também que, quando se começou a pensar, pela pressão de importações rapidamente crescentes, na indústria automóvel, e sendo ainda possível projectá-la nessa altura em termos de autarcia económica, se não tivesse querido ou podido traçar com mais audácia a política industrial do sector. Teria sido evidentemente indispensável limitar drasticamente o número de marcas e de modelos presentes no mercado e obrigar essas a taxas de incorporação elevadas que correspondessem a uma efectiva fabricação portuguesa, em lugar de se ter aberto a porta a todos os que pretendessem montar automóveis, observando uma incorporação mínima, que pouco excedia o trabalho de montagem e pintura e os acessórios cujo fabrico o mercado de substituição existente tinha já justificado entre nós - os pneus, as baterias e os vidros. Originaria essa outra política automóveis mais caros, teria dela resultado, além disso, reacção à monotonia de moldes, contrastando como o hábito enraizado de dispormos de toda a enorme variedade que comporta a produção mundial?
Pois decerto que teríamos tido esses inconvenientes, mas, em contrapartida, haveria agora talvez em Portugal, com o substancial aumento de consumo que temos experimentado, uma indústria automóvel capaz de poder ser concorrencial, quando, em 1980, se liberalizar o mercado. Infelizmente tem sido hábito reservar-se o autoritarismo, sobretudo para o domínio da política, enquanto no domínio da economia mantivemos muitas vezes um liberalismo não muito apropriado para fomentar o arranque de indústrias difíceis.

O Sr. Leal de Oliveira: - V. Exa. dá-me licença?

O Orador: - Faz favor.

O Sr. Leal de Oliveira: - Simplesmente uma pequena achega para concordar com V. Exa. no que se refere à conveniência de se reduzir o número de marcas de automóveis e estou convencido de que o problema também tem muita acuidade, no que concerne aos tractores agrícolas, pois existe um número exageradíssimo de marcas, que dificulta a lavoura no tocante a reparações, peças, elevado custo, a necessidade de imensos stocks, que, mudando o tipo de tractores, muitos destes stocks se perdem.

O interruptor não reviu.

O Orador: - Muito obrigado Sr. Deputado Leal de Oliveira. Eu adiante desenvolverei algumas considerações que vão no sentido das palavras que acaba de dizer.
Não foi essa, pois, a política industrial escolhida e por isso e ainda porque se adoptou, além de mais, um esquema demasiado benévolo, ou até inexistente, de fiscalização da observância do Decreto-Lei n.° 44 104, chegamos a uma situação que comporta mais de vinte linhas de montagem, donde saem nada menos de seiscentos modelos diferentes, considerando veículos ligeiros e pesados.
Mas esta situação é um dado do problema e, neste momento em que nos encontramos ligados por acordos comerciais tendentes à liberalização de mercados, são inviáveis orientações de política industrial traduzidas em medidas legislativas discriminatórias. Por isso me parece que não poderia ter sido muito diferente o Decreto-Lei n.° 157/72, o qual, seguindo a linha fundamental do Decreto-Lei n.° 44 104, veio essencialmente corrigir o que dava origem a vícios e

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abusos de interpretação deste último diploma. De facto, não vejo como se poderia ter obrigado a vintena de linhas de montagem já autorizadas a taxas de incorporação mínima, em peças, muito mais elevadas, uma vez que para isso seria necessário incluir também constituintes tecnologicamente muito mais complexos e exigindo investimentos avultados. De uma publicação do Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento sobre a Indústria Automóvel retirei as seguintes informações comprovativas: para além da montagem, a incorporação de 20% é conseguida com peças de fácil produção, enquanto o motor e transmissão representam 40% e a carroçaria os restantes 25%. E, quanto ao investimento, a relacção investimento/produção é de 6% para a fabricação do motor e 8% para a carroçaria, enquanto se limita apenas a cerca de 2% nos acessórios de incorporação fácil. É evidente que, com produções muito pulverizadas como temos, não é possível impor taxas de incorporação mínima elevadas, sobretudo a sete anos apenas da liberalização do mercado.
Partindo da realidade presente da indústria automóvel, quais serão então as várias hipóteses de evolução futura possíveis, atendendo a todos os factores que a podem influenciar, nomeadamente a nossa actual ligação à Comunidade Económica Europeia?
Uma delas seria a de desaparecer completamente a indústria de montagem em 1980, data em que se anularão as protecções alfandegárias. A facilitar esta hipótese, temos, por um lado, que as empresas que se dedicam às montagens têm os seus investimentos fixos representados, na sua grande parte, por edifícios fabris e amplos terrenos, os quais têm beneficiado da valorização não só correspondente à alteração do valor do dinheiro, mais ainda derivada do desenvolvimento da zona onde se implantam as instalações. Deste modo, uma liquidação podia revelar-se economicamente interessante. Mas acresce ainda que a incorporação do trabalho nacional provoca fatalmente encarecimento sensível da produção, dada a situação de extrema pulverização de modelos em que nos encontramos, e que impedem, evidentemente, que se atinjam economias de escala. Na publicação já citada do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento referem-se alguns valores relativos ao ano de 1965, que documentam este acréscimo de custos, resultantes da produção local, em países de consumo reduzido. Assim, na Argentina, Brasil e México, nos quais a incorporação atingia, respectivamente, 69%, 82% e 51%, os aumentos de custos eram de 2,6, 1,7 e 1,6 vezes os obtidos em países de grande produção para veículos equivalentes.
Mas esta hipótese de evolução constituiria um total fracasso da política iniciada em 1961, trazendo gravíssimas consequências para a nossa balança comercial e para o nível de emprego e produção industrial. Já, aliás, nos finais dos anos 40 o nosso ilustre colega engenheiro Araújo Correia, em relatório sobre as contas públicas, ao verificar que as importações de automóveis tinham aumentado de 44 813 contos, em 1938, para 142 253 contos, em 1946, afirmava que "esta tendência para a compra de automóveis, se se mantiver na escala dos últimos anos, será extremamente ruinosa para a economia do País". E passava-se isto em época já longínqua; extrapolando para 1980, a uma taxa de aumento realista, tendo em conta o nível actual do nosso parque automóvel, o valor dos veículos vendidos anualmente situar-se-á à volta dos 12 milhões de contos, considerando apenas o mercado da metrópole. Este número é suficientemente eloquente para se avaliarão peso que, sobre a nossa tão desequilibrada balança comercial, pesaria a importação de automóveis se cessasse a incorporação nacional.
No plano do emprego e da produção, a indústria de montagem ocupou, em 1970, 5300 pessoas e pagou 215 000 contos de salários, para uma incorporação de trabalho nacional de 650 000 contos e um valor de produção total da ordem dos 2 600 000 contos. A extrapolação para 1980, em cálculo grosseiro, mantendo-se a taxa "de incorporação actual, daria cerca de 20 000 pessoas ocupadas e salários da ordem dos 700 000 contos, a preços de 1970, e uma produção nacional da ordem dos 3 milhões de contos.
Transferir para outras actividades este volume de emprego e alterar as volumosas produções dos fornecedores das linhas de montagem em pneus, baterias e estofos, para citar apenas os mais importantes, é tarefa por demais difícil, para não dizer impossível, para poder ser aceite esta hipótese de evolução.
Outra situação possível, após a total liberalização de trocas com a C.E.E., é a de se manter a montagem em Portugal, cessando porém a incorporação de constituintes nacionais. A favor desta solução milita o facto de que a montagem de conjuntos CKD, realizada em séries médias, não provoca subidas de custo sensíveis, relativamente à importação do automóvel montado. Segundo informação que retirei da publicação já citada, as operações de montagem cujo peso no custo total do veículo é de cerca de 15 %, introduz apenas encarecimentos da ordem de 1,2% e 6% realizadas no México, Argentina e Brasil, relativamente aos custos nos Estados Unidos.
Esta solução, se bem que menos desfavorável do que a anterior, acarretará ainda um dispêndio, em 1980, da ordem dos 10 milhões de contos de divisas, na importação dos CKD correspondentes às necessidades de veículos do mercado metropolitano.
Teremos pois de procurar outra via e a magnitude do problema exige bem que o Governo e a indústria se empenhem a fundo para a sua solução. E esta, penso bem que não pode ser outra senão a do fabrico de veículos com elevada taxa de incorporação.
Não nos permite o nosso acordo com o Mercado Comum equacionar o problema, após 1980, em termos de soluções impostas. A liberdade de comércio só permitirá que vingue o que naturalmente, ou seja concorrencialmente, possa sobreviver. Como afirmou o Sr. Deputado Themudo Barata, a solução não poderá ser alcançada apenas pela via legislativa.
Mas não terá algo de quixotesco o pensar-se em indústria automóvel sem proteccionismos? Penso que o interesse que ponho no desenvolvimento do País me não perturbará a lucidez ao considerar que reunimos condições favoráveis, sem quimeras nem megalomanias.
Analisemos o problema primeiro sob o ângulo da necessidade. É por demais evidente a imperiosidade do nosso desenvolvimento industrial. Não estão apenas em jogo as condições de vida dos Portugueses, mas eu diria também a própria sobrevivência nacional. Não é mais possível gabar as virtudes da pobreza

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colectiva e afirmar que podemos seguir o nosso caminho sem cuidar do que se passa com os demais. A nossa contiguidade geográfica e a permeabilidade das fronteiras às pessoas e à informação tornam ilusória qualquer hipótese de evolução autónoma, só já cultivada na imaginação de um nacionalismo provinciano, cego a toda a evidência. Nestas condições, as ideologias cedem passo aos condicionalismos das situações concretas. O caminho do desenvolvimento é, pois, uma fatalidade que temos de aceitar, quer se goste ou não.
A mística do desenvolvimento começa a perder impacte em sectores mais intelectualizados de países de alto nível de industrialização e de riqueza, que passaram a acentuar mais o aspecto qualitativo do que quantitativo de vida. Mas não antes de estarem satisfeitas as necessidades, já não apenas essenciais à sobrevivência, mas as que asseguram um nível normal de vida, para os padrões actuais.
Por não termos podido assegurar esse nível normal de vida é que sofremos a emigração. A saída de cerca de 1 milhão de portugueses durante a década de 60 representa um terrível plebiscito, a que aparentemente não damos a sua verdadeira dimensão. Banidas pela moral e pelo direito as soluções de limitação autoritária, cuja falência aliás a prática também demonstrou, é pela criação de riqueza, e portanto de novos empregos e da melhoria de condições de vida, que poderemos travar a saída de mais compatriotas e porventura impelir ao regresso parte dos que se encontram no estrangeiro.
Mas o desenvolvimento industrial é também indispensável, olhando à situação da nossa balança comercial.
Não podemos sustentar indefinidamente déficits volumosos, até agora compensados pelas transferências dos emigrantes, mas as quais não poderão deixar de ser transitórias, quer a evolução da colónia portuguesa no estrangeiro seja no sentido da fixação definitiva ou do regresso. Sem essas transferências e na impossibilidade de medidas drásticas de redução de importações, não seria possível manter o valor de troca da nossa moeda.
É completamente desnecessário demonstrar a importância da indústria automóvel, quando é bem conhecido o facto de as suas duas mais importantes empresas ocuparem a 1.ª e 3.ª posição na lista das mais importantes empresas mundiais. Não será, porém, talvez supérfluo referir o seu extraordinário efeito motor na actividade económica. Falando a linguagem dos números, que embora fastidiosa é sem sombra de dúvida a mais expressiva e convincente, cito alguns elementos tirados da publicação da Automobile Industrial Association, do Japão. Lê-se aí que nos Estados Unidos a indústria automóvel ocupava, em 1963, 717 591 trabalhadores, distribuídos por 3165 fábricas, e registava, no domínio das vendas por grosso, nada menos de 25% do total do mercado americano. Por seu lado, os consumos da indústria automóvel representavam também nos Estados Unidos e em 1964, e relativamente à produção total, 22 % para os produtos de aço ordinário, 28% para os aços especiais, 8% para o cobre, 34 % para o zinco, 14% para o níquel, 39% para o ferro maleável, 65% para a borracha natural e 61% para a borracha sintética.
Salientada a necessidade de um vigoroso esforço de desenvolvimento industrial e a importância da indústria automóvel, como motor poderoso desse mesmo desenvolvimento, debrucemo-nos um pouco sobre o condicionalismo que a torna presentemente de viabilidade talvez possível.
A primeira condição foi o acordo de comércio firmado com a C.E.E.; por decisão tão louvável do Governo, e a sua possibilidade de ampliação futura a esquemas de colaboração mais ampla e mais íntima. Abre-se-nos assim um mercado de 300 milhões de consumidores de largo poder de compra, sem o qual pensar em indústria automóvel seria manifestamente impossível.
Por outro lado, assistimos a certa emigração de indústrias de massa, das zonas mais desenvolvidas da Europa para a periferia. As carências de mão-de-obra dessas zonas têm sido colmatadas pelo recurso a trabalhadores estrangeiros, cada vez em escala mais intensa, e essa presença crescente de populações estranhas à língua e aos costumes locais não é isenta de problemas de reacção social. Ainda recentemente assistimos a reacções desse tipo na liberal Suíça, tendentes a reduzir a presença de trabalhadores estrangeiros.
Penso que começa a generalizar-se o entendimento de que é mais fácil e menos dispendioso, desde que não existam outros factores negativos compensatórios, levar as indústrias para onde há mão-de-obra do que deslocar esta para as zonas já fortemente industrializadas, onde falta.
É recente exemplo desta evolução a notícia da próxima construção, em Espanha, de uma grande unidade industrial da Ford, para a produção de 250 a 300 mil carros por ano, com uma incorporação mínima de 60%, voltado sobretudo para a exportação. O Governo Espanhol estabeleceu-lhe um máximo de vendas no mercado interno de 10% desse mercado, o que representará em 1976, ano previsto para a plena laboração, apenas 80 000 automóveis. Os restantes 200 000 terão de ser colocados, pois, nos mercados estrangeiros. Aliás, já se verificou a exportação de carros Austin de fabricação espanhola para a Suíça e de Seat 850 para a Inglaterra.
Há, pois, que aproveitar esta maré favorável. Mas não basta criar condicionalismo legal apropriado e esperar que as decisões de investimento surjam. Há que fazer um trabalho de promoção e de divulgação das vantagens que temos a oferecer junto dos produtores estrangeiros, uma vez que a iniciativa portuguesa independente é de excluir. A existência de produção local de acessórios diversos, em nível concorrencial de preços, constituirá factor atractivo importante e por isso desejo destacar a acção de promoção de exportações no sector, que o Banco de Fomento está actualmente a empreender.
Os produtores de veículos são enormes clientes de uma grande variedade de constituintes que não produzem e estão em regra receptivos à consideração de novas fontes de abastecimento, quando satisfaçam as condições de preço e de qualidade. De imediato, constituiria a exportação a maior potencialidade de desenvolvimento da indústria de acessórios. Mas para a sua concretização não basta esta acção altamente útil do Banco de Fomento, são necessários apoios da parte do Estado. Sem a pretensão de esgotar o assunto, aponto como um dos primeiros a definição clara das

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prioridades e, portanto, dos incentivos a conceder a esta indústria, pois não creio possível que sem ela possam surgir iniciativas de alguma dimensão, sobretudo se nelas participarem interesses estrangeiros. As decisões de investimento exigem, antes de tudo, o conhecimento nítido do quadro dos condicionalismos em que se situarão e da estabilidade destes. Espero que a tão esperada regulamentação da lei do fomento industrial faça luz neste domínio.
Outra condição necessária é a de concederem incentivos, nesta fase em que as protecções são ainda possíveis, aos produtores estrangeiros que montam veículos em Portugal para a importação de constituintes portugueses. Além de outras vantagens a estudar, uma concessão mínima seria a de considerar a origem portuguesa desses acessórios, quando incorporados nos CKD enviados para Portugal.
Mas a indústria automóvel, não podemos esquecê-lo, abrange também a produção de veículos pesados. E, se nos automóveis a produção mínima, para poder ser concorrencial, se mede pelas centenas de milhares, nos camiões esse limiar da competitividade situa-se em números muito mais modestos. Voltando aos exemplos que nos oferece o estrangeiro, cito o caso da índia, que em 1966 fabricou 19 000 camiões de 81, perfeitamente semelhantes a um modelo de fabricação europeia, enquanto no domínio do automóvel produziu também 5700 veículos de modelo também europeu, com 85% de incorporação local. Pois bem, no caso dos automóveis, os custos foram de 2,2 vezes mais caros na produção indiana, enquanto nos camiões, devido à proximidade de dimensão - pois se tratava de uma produção de 19 000 na índia contra 30 000 na Europa -, os custos estiveram já nivelados com os europeus.
Mas não só as séries mais reduzidas e a maior standardização de constituintes jogam a favor da indústria de veículos pesados. A existência entre nos de uma produção já relativamente evoluída e prestigiada de carroçarias, tanto de autocarros como de camiões, e o facto de dispormos de um mercado razoável de veículos militares são bases muito importantes para o lançamento em Portugal dessa indústria.
Aliás, o relatório que o Stanford Institute elaborou em 1965 apontava prioritariamente nesta direcção. É pena que tenha sido aparentemente esquecido.

O Sr. Themudo Barata: - V. Exa. dá-me licença?

O Orador: - Faça favor.

O Sr. Themudo Barata: - Sr. Deputado: Vejo que V. Exa. vai no fim das suas considerações e, atendendo também - ao adiantado desta legislatura, não terei nova oportunidade para voltar a este problema, sobre o qual me debrucei com algum interesse. Vejo, com imensa satisfação, a compreensão que as minhas palavras encontraram em V. Exa. e as palavras amáveis que quis dirigir-me; desejava, primeiro, manifestar-lhe a minha satisfação pela compreensão elas encontraram e pela perfeita interpretação lhes deu.
Queria acrescentar algo mais. Certamente, o nosso atendimento nesta matéria resulta de um ponto muito importante, que é a nossa formação técnica. Vemos o problema habituados não apenas a fazer leis.
mas a executá-las no plano do engenheiro, e essa formação creio ser da maior importância para enfrentar estes problemas.
Além disto, há um outro aspecto, que é este: o problema da indústria dos automóveis não pode ver-se apenas no espaço metropolitano; Portugal dispõe de um espaço mais vasto.
Angola e Moçambique, como referi, são já consumidores, como era a metrópole, na altura das primeiras leis referentes a automóveis. Portanto, creio que, sem de forma nenhuma se prejudicarem as indústrias nascentes nessas províncias, se poderiam também conciliar os interesses nacionais para que a indústria automóvel no espaço português fosse uma indústria unitária, em que a mão-de-obra e a inteligência portuguesas contribuísse em maior medida e que não fosse tão fortemente subsidiária de firmas estrangeiras, que muito naturalmente pretendem daqui tirar os seus rendimentos, à sombra da legislação que nós publicamos, e não podemos estranhar que elas busquem essencialmente os seus interesses; a firmeza das nossas autoridades é que as deve fazer inscrever nos interesses nacionais.

Muito obrigado.

O Orador: - Muito obrigado, Sr. Deputado Themudo Barata, pelas sua palavras. Queria agradecer-lhe a amabilidade com que se referiu à minha intervenção e também explicar-lhe a omissão relativamente ao problema ultramarino. É que não foi um lapso, simplesmente eu não consegui obter elementos sobre esse mercado, pelo que me abstive de o incluir, mas evidentemente que a inclusão do mercado ultramarino só vem reforçar os argumentos que eu desenvolvi na minha intervenção.
Muito obrigado.
E termino com um voto, que espero não acabe por ser apenas piedoso: o de que a nossa capacidade de captação de investimento, devidamente potenciada pela acção decidida do Governo, a quem dirijo apelo, nas pessoas dos Srs. Ministro das Finanças e da Economia e Secretário de Estado da Indústria, seja capaz de, finalmente, tornar possível em Portugal a indústria automóvel efectiva.

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Almeida e Sousa: - Pelo menos muito estranho parecerá que numa assembleia onde têm assento cinco meritíssimos professores da Universidade do Porto seja precisamente quem não tem outros conhecimentos ou outra vocação para tratar problemas universitários que não sejam os que lhe deram as duas Faculdades que um dia frequentou, que se arrogue vir defender perante VV. Exas. os direitos da alma mater da cultura portucalense.
Haverá inconveniente, sem dúvida, em que seja assim, em que, por falta de cultura específica ou de conhecimento das razões, possa aqui distorcer factos ou mal interpretar acontecimentos. Se me pedissem um relatório técnico sobre a Universidade do Porto, pois necessariamente que me recusaria a escrevê-lo. Pedem-me, no entanto e só, que exprima aqui anseios, e quem me pede, na medida do que representa, tem muita força sobre mim.

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É a vereação da Câmara Municipal do Porto que me pede reproduza nesta mais alta Assembleia os anseios que, em reunião nossa, já foram tratados.
Nunca a cidade do Porto e, consequentemente, a sua Câmara se desinteressaram, no mínimo que fosse, de tudo quanto à sua Universidade se refere. Universidade de que a cidade se considera muito mãe - não admira que lhe queira como filha -, na medida em que, quando em 1761 pediu a el-rei D. José a semente de que havia de nascer - foi então a Escola Náutica -, se comprometeu a sustentá-la e a provê-la de tudo quanto fosse necessário ao seu bom funcionamento.
Já nessa altura era assim: o que permitiam que o Porto tivesse tinha de ser pago pelo Porto, fossem ele escolas, hospitais, fragatas ou regimentos.
É sina, como tal temos de a aceitar. Há que trabalhar mais para que os outros possam trabalhar menos. É sina, mas justo talvez não seja.
Quase a mesma injustiça - perdoem-me que fale com a expressão rude, mas sincera, de tantos dos que aqui represento -, quase a mesma injustiça, em relação apenas ao Porto, esclareço, se lerá na comunicação histórica em que o Sr. Ministro da Educação Nacional anunciou ao País a instituição de novas Universidades.
O Porto, ainda não há muito, apesar das tradições de cultura que sempre ostentou, e que, aliás, estão bem patentes na literatura e na ciência deste país, ainda não há muito o Porto tinha apenas meia Universidade, e meia Universidade de carácter predominantemente técnico. O Porto tinha, e ainda tem, dentro dos seus muros, de muito longe, a menor percentagem de universitários em relação à população do hinterland que serve. De todo o Norte, pelo contrário, emigraram sempre e emigram ainda todos os anos revoadas de moços que vão procurar em Lisboa ou em Coimbra os ramos de ciência que a sua Universidade lhes não dá.
Quantos regressam? Alguns sem dúvida regressarão, mas quantos? Dos melhores não, vão enriquecer outras terras, desenraizados que foram do torrão que era o seu, falange bem prematura e bem importante do dreno de cérebros que há dias aqui estigmatizei.
O Porto tinha e ainda tem uma Universidade amputada, diminuída, que não podia nem pode servir o que deve e tem de servir.
Pareceria assim que seria o Porto, centro de gravidade de maior massa de população mal servida, que deveria beneficiar, primeiro do que todos, da munificência dos novos tempos, aliás muito de louvar, longe de mim negá-lo!
No entanto, quem ler a exposição do Sr. Ministro poderá comparar. Temos de lhe agradecer, é verdade, mais dois cursos na nossa ainda incompleta Faculdade de Letras. Mas quando a outras Universidades se deram Faculdades inteiras não nos parece que, em justiça, tenhamos sido muito favorecidos. Sobretudo carecendo tanto quanto carecemos.
Não nos esquecemos das palavras que precederam a enumeração das novas Universidades: "Sem prejuízo de transformação a introduzir para valorizar as Universidades actuais [...]"
Pois é precisamente fazendo força nestas palavras que entendo de direito as considerações que VV. Exas. vão ouvir. Que me perdoem se forem menos correctas. Mais sinceras, posso garantir que não poderão ser.
Sempre pensei e penso que uma escola deve e tem de ser, acima de tudo, nalgumas ciências mais do que noutras, sem dúvida, mas em todas basilarmente, o que forem os professores que tiver.
Desde que os professores sejam bons, a escola sê-lo-á. Pelo contrário, poderá ter tudo quanto for possível ter para ser exemplar, que, se os professores não forem bons, para bem pouco servirá.
Não falarei por isso das instalações que ocupa a Universidade do Porto. Para mim, repito, a escola são fundamentalmente os professores que a fazem, e hoje, na Universidade que já existe, só de professores quereria cuidar.
Que vemos nós neste campo?
Vemos, para começar, uma Faculdade de Economia com quase 2000 alunos salutarmente exigentes, servidos por um corpo docente que, quanto sei, não tem senão um catedrático.
Criada em 1953, há vinte anos portanto, da multidão de alunos que a frequentou ainda não saiu um único professor efectivo. Nem sequer um doutorado! Houve, é certo, doutoramentos, mas de licenciados por outras escolas.
Tenho, no entanto, a certeza de que todos acreditamos, até por conhecimento directo que todos teremos, que, de entre os professores que regem nessa Faculdade, há quem muito mereça a cátedra.
Por que a não têm ainda? Por que é que uma Faculdade tão frequentada apenas tem um catedrático? Por que é que, em tantos alunos que nela aprenderam, não tem havido doutorandos?
São perguntas a que não sei responder cabalmente, mas quanto conheço do que é uma Faculdade me diz que, se vinte anos depois esta ainda assim se encontra, não há dúvida que tem defeito que urge procurar e resolver.
Referir-me-ei agora à Faculdade de Engenharia, com serviços prestados indesmentíveis na materialização de tantas e tão grandes obras espalhadas por todo o país. Ainda há bem pouco foi reformada no seu plano de estudos.
Não se nega, nem ninguém pode negar aos seus professores devoção, que hoje é rara. No entanto, o ensino diversificou-se, só de devoção não chega, são precisos mais professores e mais especialistas.
Tem, apesar de tudo, esta Faculdade conseguido atrair valores jovens que pretendem seguir a carreira do ensino. Mau é, que, quando há possibilidade de prover cátedras, se não abram em tempo útil os respectivos concursos. Já muito se exige, a troco de bem pouco, das boas cabeças que se seleccionam para ensinar, para que possa ser justo obrigá-las a espera sem fim por futuro que de certo nada tem.
Sei que ainda há bem pouco tempo o conselho escolar da Faculdade pediu a abertura de concursos para três vagas de professor catedrático e uma de professor extraordinário, garantindo a existência de candidatos habilitados. Até hoje, porquê não sei, as vagas não foram abertas.
Só pergunto se será justo que se trave a carreira de quem se não furta a esforços e sacrifícios, se às servidões por todos conhecidas de uma carreira a que é imperioso atrair os melhores será justo que

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se some o calvário de uma promoção remota e incerta?
Que acontecerá se a situação se não vier a modificar? Pois não deixará de ser explorada por escola congénere há pouco criada, escola que, por ter todos ou quase todos os lugares vagos, pode seguir política muito mais agressiva. E o Porto verá deslocar-se para outra Universidade, Universidade que lhe pode dar o que a sua não pode, valores em que punha toda a sua esperança.
Será justo? Eu responderei que não. Valores que foram formados pela Universidade do Porto são da Universidade do Porto e se nela pretendem continuar, em toda a medida do possível, justo é que se lhe dê satisfação. Roubando de um bolo que não cresce, todos ficaremos mais pobres.
Passarei - e agora serei eu que serei injusto - com uma única palavra de louvor para o esforço que vêm fazendo as restantes Faculdades, com um acento que me é muito grato no trabalho sério e produtivo que a Faculdade de Medicina do Porto de há anos a esta parte vem realizando, com muita glória para si e para toda a ciência portuguesa.
Não devo, porém, alongar-me mais, já que quero reservar as últimas palavras que pronunciarei - seria inadmissível que as não reservasse - para as duas grandes aspirações que em matéria de ensino superior o Porto tem.
A primeira de que quero falar - já me custa ser tão insistente - é a escola de jornalismo. Vai fazendo o seu caminho -de quando em quando vimo-lo sabendo - o Instituto Superior de Ciências da Informação. Qualquer dia, esperemos que muito breve, será uma realidade. Foi já instituído um grupo de trabalho para a sua criação. Não sabemos se já teve ou ainda não teve reuniões, mas uma coisa supomos poder adivinhar: nem por sombras terá passado pela cabeça de algum dos seus membros que a sede não seja em Lisboa. Infelizmente já estamos habituados...
Está bem? Será justo? Parece-nos, ainda uma vez, que não.
Entretanto, gostaria que quem de direito visse o entusiasmo que ainda há bem pouco tempo manifestaram pelo curso de jornalismo os alunos de um dos liceus do Porto em reunião em que afinal lhes iam falar de outros cursos. Haverá mais interesse em Lisboa? Em Lisboa, onde até já há uma escola superior de jornalismo, embora particular?
E passarei finalmente à outra grande, eu diria, à maior aspiração da Universidade do Porto. Aspiração já aqui defendida por um colega de círculo, jurista de formação, já pedida superiormente pelo Senado Universitário, já solicitada pela Câmara Municipal, já clamada e reclamada por quantos naquelas terras sentem a responsabilidade do futuro: a Faculdade de Direito do Porto.
Se um dia quiséssemos aprofundar as razões do desequilíbrio que se gerou, pois talvez não fosse difícil encontrar quota-parte muito importante na falta que esta escola tem feito.
Num País que desde há bem mais de um século vem sendo dirigido quase ininterruptamente por pessoas de formação jurídica - se quisermos exemplos sensíveis, basta que consideremos a constituição do actual Governo ou mesmo, simplesmente, a composição desta Assembleia - num País assim, uma região que não tenha uma Faculdade de Direito, por mais populosa e trabalhadora que seja ou possa ser, está sempre em nítida desvantagem. Os chefes não sairão dela. Ou, se um dia saírem, não mais se considerarão seus.
Cabe-me perguntar, pedindo resposta muito sincera: Não constituirá a região do Porto, com todo o potencial humano que, quer queiram, quer não, tem, com todo o comércio e toda a indústria que, apesar de tudo, ainda possui, com todas as tradições de cultura e de humanismo que nunca quis deixar morrer, não constituirá essa região substractum suficiente e vivificante para uma Faculdade de Direito que, como as melhores, haveria de honrar o País?
Se se entende, e até agora tem-se entendido, que aos chefes é a cultura jurídica que mais convém, por que se nega ao Porto a possibilidade de ter os chefes que deve ter, que sejam também do Porto os chefes que hão-de dirigir a Nação?
Não preciso de sair do campo que venho tratando, o da educação, para trazer aqui exemplo que, pelo menos para mim, é bem elucidativo:
Recordar-se-ão por acaso VV. Exas. de quantos anos teremos que arrepiar na história dos nossos dias para encontrar à frente do Ministério da Instrução Pública, já que nunca ainda do da Educação Nacional, um professor da Universidade do Porto?
Por impossível que pareça, quarenta anos! Quarenta longos anos que já se perdem na memória de quase todos nós, que alguns de nós ainda não viveram. 1933, e apenas por episódica passagem de alguns meses!
Tínhamos até há pouco só quatro Universidades, duas das quais aqui em Lisboa. Muito estranho é que, durante quarenta longos anos, na alternância dos nomes que se sucederam à frente dos destinos da nossa cultura, nunca tivesse havido ninguém que se lembrasse de que no Porto houve sempre e há homens de indiscutível mérito.
Que admira, assim, que a Universidade do Porto, apesar do valor dos seus mestres, apesar das necessidades ingentes de cultura da região, tenha sido sempre e continue a ser a gata borralheira das Universidades de Portugal?
Precisamos pois de advogados que nos defendam, e, pelo que é patente, não os temos tido, talvez por não termos Faculdade que os forme...
Não serei eu certamente, e por todos os motivos, o melhor dos advogados, nem sequer advogado sou e por isso mais não direi. Mas se são justas as leis dos homens, mesmo quem não é advogado pode pedir justiça e outra coisa não quiseram as palavras que VV. Exas. acabaram de ouvir.
Oxalá que, finalmente, em breve nos seja feita!

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Leal de Oliveira: - Sr. Presidente: Está prestes a findar o 4.° período legislativo da X Legislatura, da histórica X Legislatura.
Estes quatro anos de útil experiência pessoal colhida nesta Casa, e para a qual o exemplo de V. Exa., Sr. Presidente, me foi altamente proveitoso

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e benéfico, permitiram-me aqui e lá fora a verificação de entrechoques entre o viável e o inviável, entre o possível e o impossível, entre o justo e o injusto. E muito bem senti a acção firme, coerente e activa do Presidente do Conselho de Ministros, Prof. Marcelo Caetano, na satisfação dos anseios justos e legítimos e na moderação dos apetites exagerados.
Difícil é governar em tão conturbados tempos, quando se tem por objectivo cimeiro a feitura de um Estado social de direito que assegure "igualdade na repartição dos bens da vida, diminuindo as distâncias resultantes da distribuição das riquezas".
Difícil é, também, a acção nesta Assembleia dos Deputados que se obrigaram perante o seu eleitorado a aqui pugnarem por um Portugal uno e indivisível, onde os Portugueses se sintam realizados sócio-económica e politicamente.
É que estamos, na verdade, em tempos difíceis. Temos boas e más heranças e os trabalhos inadiáveis avolumam-se.
A luta pela integridade da Pátria, pela educação e ensino e pelo progresso sócio-económico é imprescindível.
Está o Governo nela empenhado.
Está a Nação ávida dos seus resultados e acompanha atentamente, confiante, a acção do Governo.
Mas, Srs. Deputados, assim como há maus portugueses, poucos, que pretendem discutir publicamente a validade da defesa do solo pátrio, muito outros atrevem-se, aproveitando os tempos difíceis que correm e as dificuldades que nos cercam, a perturbar a acção governamental e até dos representantes lídimos da Nação, em acções de "sapa", reivindicadoras de "benesses", mantenedoras de privilégios pouco legítimos, de grupo, de classe, esquecendo que o Governo se propôs, e constantemente, realizar a feitura de um Estado social sem socialismo.
Pois procuram esses portugueses, exercendo métodos próprios tão bem codificados e explicados por Jean Meynaud no seu estudo intitulado Os Grupos de Pressão, levar os órgãos orientadores e executivos da administração pública e os políticos a agir de acordo com as suas conveniências ou actuam travando ou retardando as acções ou empreendimentos que lhes não interessam directamente ou possam, por qualquer razão, perturbar os seus desígnios ou proveitos confessáveis ou inconfessáveis.
Sr. Presidente: Nenhum país pode deixar de estar influenciado por forças negativas.
Nós também as temos e sofremos.
Mas certo é que, com Marcelo Caetano, com o seu Estado Social, as forças negativas entorpecedoras, desmoralizadoras e egoístas tenderão a diminuir, mesmo a desaparecer.
Nós sabemos isso e eles também o sabem.
Por isso estou com ele; por isso continuarei a lutar com as armas de que disponho por um Portugal que me faça sentir honrado.
Vieram estas considerações ao meu espírito quando tomei conhecimento pelos órgãos da informação de que o Conselho de Ministros, reunido em 18 passado, tinha aprovado "um decreto-lei emanado do Ministério das Obras Públicas e que habilita a concessionária do primeiro escalão (Alqueva)do aproveitamento
hidroeléctrico do Guadiana -ou seja, a Companhia Portuguesa de Electricidade - a adquirir os terrenos indispensáveis à execução daquele empreendimento".
Sr. Presidente: Histórico foi o Conselho de Ministros de 18 de Março de 1973.
O nervo motor do desenvolvimento do Alentejo e do Algarve vai ser completado.
Vamos ter mais água e mais energia eléctrica.
Vamos reter a população em fuga.
Vamos produzir os elementos de que necessitamos; iremos exportar os produtos que em excesso criarmos.
Perdoai-me, Sr. Presidente, o ardor com que estou a comentar tão importante decisão governamental. Costumo ser mais calmo e menos laudatório.
É que tenho seguido atenta e intensamente a problemática que envolveu nos últimos dez anos o Plano de Rega do Alentejo.
Tenho seguido uma lavoura que luta pela sua emancipação e se apoia nas virtualidades da água e que tem progredido.
Tenho ouvido "velhos do Restelo" que em nada acreditam - a não ser, claro, nas suas verdades - e que ainda não querem enxergar a água que já corre pelos canais e que dá vida a terras ásperas e áridas que dantes pouco ou nada produziam.
Tenho sentido as suas pressões, como amante que sou do progresso.
Tenho constatado as suas críticas ao Plano e algumas não deixam de ser verdadeiras. Nada se cria isento de máculas; nada é perfeito, mormente uma obra tão grandiosa e que só no Baixo Alentejo promoveu o dispêndio de uma verba superior a 1 500 000 contos. Há certamente muito que limar; há que eliminar os estrangulamentos decorrentes da obra e que se considerem negativos.
Há, por exemplo, de se compartimentar quanto antes os campos do Mira, revestir as cabeceiras das barragens e solucionar o problema social da Mina da Juliana.
Mas certo é também, e paralelamente, o desenvolvimento da riqueza que se tem criado e a promoção humana surgida nas regiões onde a água circula.
Obrigado, Sr. Ministro das Obras Públicas, engenheiro Rui Sanches. V. Exa. é digno continuador dos que lhe legaram tão grandiosa quão árdua e espinhosa tarefa.

Vozes: - Muito bem!

O Orador: - Obrigado, Sr. Presidente do Conselho, pela acção havida desde as primeiras horas para a concretização do Plano de Rega do Alentejo.
Obrigado, Sr. Presidente da República. A presença veneranda e atenta de V. Exa. em todas as cerimónias que têm envolvido a obra e as visitas particulares às regiões a vivificar pela água bem demonstram a validade dos empreendimentos.
Sr. Presidente: Já vários Deputados bem demonstraram ultimamente o interesse do Plano de Rega que comento.
Cito em primeiro lugar o Deputado Gabriel Gonçalves, que em 21 de Abril do ano passado teceu sobre o assunto criteriosas considerações, e ontem o Deputado Lopes Frazão, que com a sua eloquência e saber nos brindou com a sua palavra.
Ambos representam, e bem, o Alentejo.
Ambos disseram que sim ao regadio alentejano.

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Parecerão talvez para muitos desnecessárias e descabidas as palavras apologéticas e laudatórias que há pouco proferi.
Julgo que não.
Eleito, com efeito, pelo círculo de Faro, tenho vivido com grande intensidade a rega do Alentejo como técnico da Secretaria de Estado da Agricultura e residente em Beja, e coube - estou grato à Previdência - aos serviços que ali chefio a estruturação das infra-estruturas que permitissem à lavoura, por integração vertical, a máxima rentabilidade dos produtos que arrancam arduamente das suas explorações.
Vi nascer e crescer as Cooperativas do Roxo e do Mira.
Vi nascer e crescer as Uniões de Cooperativas Unisul e Orisul.
Estou a seguir a construção do descasque de arroz cooperativo de Alvalade, que irá apoiar as Cooperativas de Alcácer do Sal, Ferreira do Alentejo, Roxo e Mira.
Estou a ver e a acompanhar o trabalho de centenas e centenas de empresários agrícolas, que, de mãos dadas com o Governo e serviços, estão penosamente - o trabalho é árduo, diga-se em abono da verdade - a criar um Alentejo mais verde, mais rico e onde a riqueza criada se tem mostrado melhor distribuída.
Sr. Presidente: A minha fala de hoje não é só laudatória.
Ela pretende aproveitar uma ocasião e um acontecimento que, aliás, muito me agradaram, para chamar a atenção do Governo para o Algarve.
Ela visa apelar, mais uma vez, o cuidado do Governo para a urgência de levar para o Algarve tudo que possa melhorar a situação angustiosa da lavoura, em crise agudíssima, já aqui bastantes vezes comentada.
O Algarve precisa de água para irrigação dos seus campos e para abastecimento das suas urbes, em expansão agigantada.
Pois, Sr. Presidente, o Plano de Rega do Alentejo está intimamente ligado ao do Algarve.
O rio Guadiana une aquelas duas províncias que a serra algarvia separa e de características ecológicas e humanas tão diferentes, mas complementares.
O Plano de Rega do Alentejo, já superiormente aprovado no seu todo, mas parcialmente executado, prevê o aproveitamento das águas daquele rio até ao local da Rocha da Galé.
As águas sobrantes e as recolhidas na bacia hidrográfica que se expande para jusante e que se perdem no oceano são suficientes para a rega e abastecimento de água para fins urbano-industriais de que o Algarve é tão ávido.
Não deixou o Ministério das Obras Públicas de equacionar este problema, o que calou fundo no meu coração de algarvio.
Com efeito, a resposta a um requerimento que aqui apresentei e dirigido, àquele Ministério permitiu-me concluir que o abastecimento de água do Algarve com fins múltiplos rega e abastecimento urbano - estava no pensamento do Governo e já devidamente equacionado.
O assunto é de tal transcendência para o desenvolvimento e progresso algarvio e de tal maneira apetecido e ansiosamente aguardado pelos meus co-provincianos que irei transcrever, na íntegra, a resposta fornecida pelo Ministério das Obras Públicas, e que bem demonstra o seu interesse e do Governo no
abastecimento de água do Algarve, o muito que se tem feito, o que se projecta para o próximo futuro e as potencialidades hídricas a aproveitar mais longinquamente no tempo. Diz a referida resposta governamental:
1 - Na província do Algarve foram anteriormente executados pelo Estado aproveitamentos hidroagrícolas para a rega das áreas seguintes:

Hectares
Obra de Rega de Silves, Lagoa e Portimão .................................. 1 900
Obra de Rega dos Campos de Alvor .......................................... 1 800
Canal do Rogil, da Obra dos Campos do Mira (Plano de Rega do Alentejo) .... 1 330
Total ..................................................................... 5 030

ou seja, em números redondos, 5000 ha.
Para o efeito foram construídas no Algarve barragens, que criaram albufeiras com as seguintes capacidades de armazenamento (106 m3):

[Ver tabela na imagem]

fazendo-se a rega de 1330 ha, dominados pelo canal do Rogil, a partir da albufeira de Santa Clara, no rio Mira (Alentejo), com a seguinte capacidade:

Total - 485,0 X 106 m3.
Útil - 240,3 X 106 m3.

2 - Para além das áreas servidas pelas obras de fomento hidroagrícola já realizadas, discriminadas em 1, foram seleccionadas, no Algarve, em estudo preliminar de prospecção geral de aptidão das terras ao regadio, as seguintes áreas:


Hectares
Campos de Tavira e Vila Real de Santo António ....................... 11 900
Campos de Benaciate, S. Bartolomeu de Messines, Algoz e Paderne...... 6 000
Campos de Faro a Lagoa .............................................. 25 000
Várzea de Aljezur.................................................... 500
Total................................................................ 43 400

Uma vez realizados esses regadios, a área total regada no Algarve, sem incluir os 1300 ha dominados pelo canal do Rogil(obra do Mira), ficará a ser de:

Hectares
Obras já executadas (Silves, Lagoa e Portimão)......................... 3 700
Novas áreas susceptíveis de regadio.................................... 43 400
Total ................................................................ 47 100

ou seja, em números redondos, 47 000 ha.

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Para a rega dessa área de 47 000 ha prevê-se a necessidade da disponibilidade de 470 X 106 m3/ano.
Para abastecimento de populações e para fornecimento à indústria, não recuperáveis, prevê-se, em reforço das disponibilidades já existentes, criadas pelo recurso a águas subterrâneas, um acréscimo de consumo de 50 X 106 m3, correspondente a uma capitação suplementar média de cerca de 150 m3 por habitante/ano.
O consumo total de águas superficiais, para as utilizações de água antes referidas, cifra-se assim em:

Rega............................................... 470 X 106 m3/ano
Abastecimento de populações e indústria ............ 50 X 106 m3/ano
Total............................................... 520 X 106 m3/ano

3 - A província do Algarve, pela sua situação no extremo S.W. da Península apresenta um regime hidrológico muito irregular, com uma pluviosidade média relativamente baixa e geralmente concentrada nalguns meses. O relevo, muito recortado e de baixa altitude média (excepto nas serras de Monchique, Espinhaço de Cão e Caldeirão), cria um grande número de cursos de água do tipo torrencial e, na sua maioria, de relativamente pequena importância.
A área da zona Algarve, excluída a parte que pertence à bacia hidrográfica do Guadiana, é de 4048 km2, e as alturas médias de chuva anual foram nela, no período de 1954-1955 a 1970-1971, as seguintes:

Milímetros
Média (dezassete anos) .................................. 731
Máxima (1962-1963) .....................................1131
Mínima (1966-1967) ..................................... 425

A irregularidade das precipitações anuais é evidenciada também pelos valores, relativos a alguns dos postos, que a seguir se indicam:

[ver tabela na imagem]

4- O único grande rio que corre no Algarve, embora marginalmente, é o Guadiana, no seu curso inferior, em que serve de fronteira com a Espanha.
O escoamento médio anual do Guadiana, na estação hidrométrica de Benavides, na proximidade da origem do seu troço internacional de montante, é de aproximadamente 3700 X 106 m3.
Tendo em conta o acréscimo provável dos consumos de água em Espanha, discriminados pelos serviços oficiais espanhóis, o escoamento médio anual virá a descer, mas mantendo-se, em Benavides, superior a 2400 X 106 m3.
As áreas da bacia hidrográfica são de 47916 km2 em Benavides, de 54 960 km2 em Alqueva e de 63 399 km2 no escalão de jusante do aproveitamento do Guadiana, na Rocha da Galé.
Os caudais integrais médios afluentes a Alqueva, de 4833 X 106 m3/ano, reduzir-se-ão a 4041 X 106 m3/ano em regime regularizado pelas albufeiras espanholas e com as utilizações correspondentes à execução parcial do Plano de Badajoz, e a 3645 X 106 m3, igualmente em regime regularizado pelas albufeiras espanholas, mas com as utilizações correspondentes à execução total do plano espanhol de regadios.
Por outro lado, o volume a retirar anualmente do Guadiana para a rega do sistema do Baixo Alentejo e dos blocos do Ardila e de Évora será aproximadamente de 700 X 106m3 em ano médio e de 800 X 106 m3 em ano extremamente seco.
Na fase final, o escoamento anual médio na Rocha da Galé (bacia de recepção de 63 399 km2) será de cerca de 4300 X 106 m3.
Tendo em conta os escoamentos dos afluentes da margem direita do Guadiana, situada em território português a jusante da Rocha da Galé (ribeira de Oeiras, Carreiras, Vascão, Foupana, Odeleite, Choupana e Beliche), bem como o dos cursos de água da restante área do Algarve (4048 km2), resulta, para as disponibilidades hídricas de superfície, um valor anual médio da ordem dos 5500 X 106 m3/ano, a partir do qual haverão que suprir-se as necessidades, no total de 520 X 106 m3/ano, antes referidas em 2.
Com um valor médio próximo de 1,5 para o coeficiente de utilização das capacidades úteis das albufeiras, o volume total resultante para essas capacidades será da ordem de 750 X 106 m3.

5 - Das ribeiras que no Algarve correm de norte para sul as que mais se prestam para a criação de albufeiras são as de Odelouca, Arade e Odiáxere.
Nestas últimas, conforme antes referido, já estão construídas as barragens de Silves e da Bravura.
Com gabinete técnico especializado, celebrou a Direcção-Geral dos Serviços Hidráulicos, em final de 1971, contrato para a celebração do plano geral do aproveitamento nas ribeiras de Odelouca e de Arade e do plano geral do sistema de abastecimento de água das populações e da indústria na área de influência daqueles aproveitamentos.
O respectivo estudo prévio, no respeitante aos aproveitamentos hidráulicos, já. foi apresentado e está a ser apreciado, com vista ao seu breve seguimento para o Conselho Superior de Obras

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Públicas e Transportes, a fim de este emitir o seu parecer.
Naquele estudo prévio está prevista a construção de duas barragens, cujas albufeiras serão ligadas para um túnel que estabelecerá comunicação entre elas.
Uma das barragens (Odelouca) ficará situada na ribeira de Odelouca e a outra (Funcho, localização preferível à designação de Retorba) localiza-se no rio Arade, no extremo de montante da albufeira já existente.
As capacidades de armazenamento previstas para essas albufeiras são as seguintes:

[Ver tabela na imagem]

O valor médio das somas dos escoamentos anuais afluentes a uma e a outra dessas albufeiras está avaliado em 189,8 X 106 m3, ou seja, em números redondos, em 190 X 106 m3.
Com a construção dessas barragens, conjugando-se a sua exploração com a das já existentes (Silves e Bravura), ficará assegurada disponibilidade média anual da ordem dos 150 X 106 m3.
6 - O excedente necessário para fazer face às necessidades referidas em 2), correspondente às utilizações indicadas, deverá porvir basicamente do rio Guadiana e dos seus afluentes, através de esquema a estabelecer definitivamente em face do esclarecimento de aspectos fundamentais, como seja o da distribuição, na totalidade ou em parte a definir, do escalão de jusante do troço internacional do Guadiana.
Na realidade, pelo Convénio entre Portugal e Espanha para Regular o Uso e o Aproveitamento Hidráulico dos Troços Internacionais dos Rios Minho, Lima, Tejo, Guadiana, Chança e Seus Afluentes, aprovado pelo Decreto-Lei n.°48 661, de 5 de Novembro de 1968, foi reservada para Portugal a "utilização de todo o troço do rio Guadiana entre os pontos de confluência deste com os rios Caia e Cuncos, incluindo os correspondentes desníveis dos afluentes do mesmo troço", mas não também a utilização do troço internacional de jusante do Guadiana.
O problema já foi oficialmente posto à consideração da Comissão Luso-Espanhola para Regular o Uso e Aproveitamento dos Rios Internacionais nas Suas Zonas Fronteiriças, que o inclui na agenda da sua 6.ª Reunião Plenária, efectuada em Espanha nos dias 2 e 3 de Outubro do ano corrente.
Um dos assuntos dessa agenda foi, assim, o "aproveitamento do troço internacional do rio Guadiana não distribuído pelo Convénio", em relação ao qual o Grupo de Trabalho, constituído pelos representantes dos Ministérios das Obras Públicas de Portugal e Espanha, informou que "continuou o intercâmbio de pontos de vista sobre a futura utilização do troço internacional de jusante do referido rio e que decidiu proceder à elaboração e à análise de esquemas concretos sobre a utilização dos caudais do troço de jusante do Guadiana. A comissão será mantida ao corrente do progresso desse estudo".
Anota-se que, ao abrigo do disposto no Convénio de 1968, já foi elaborado o projecto do "aproveitamento hidráulico do rio Guadiana" respeitante à "barragem, central hidroeléctrica e estação elevatória de Alqueva", tendo este projecto sido apreciado e aprovado, aguardando-se a determinação para a sua entrada era execução.
A barragem de Alqueva ficará situada em território português (troço nacional do Guadiana), mas a sua albufeira, com a capacidade total de 3300 X 106 m3, estender-se-á pelo troço internacional, inundando territórios de um e de outro dos países.
Também a barragem da Rocha da Galé ficará situada em território português.
7 - Considera-se que as águas regularizadas nas albufeiras de Alqueva e da Rocha da Galé, que não sejam utilizadas pelo esquema do Plano de Rega do Alentejo e para outros fins naquela província, deverão vir a ser aproveitadas em conjugação com o sistema Odeleite-Foupana-Vascão. As afluências próprias destas ribeiras, cujas albufeiras poderão ser interligadas, cifram-se na ordem dos 280 X 106 m3/ano, podendo a sua exploração independente facultar anualmente cerca de 120 X 106 m3 regularizados.
A conjugação da respectiva exploração com a da albufeira da Rocha da Galé reforçaria os volumes regularizados garantidos, muito para além dos valores correspondentes a uma exploração independente, situando-os ao nível dos 600 X 106 m3/ano.
O esquema de utilização conjugada destas ribeiras com o rio Guadiana constitui alternativa para a exploração dos recursos da zona do Sotavento do Algarve, com interesse designadamente em face evoluída de consumos.
A mais curto prazo, correspondente a fase menos evoluída dos consumos, haverá que recorrer-se designadamente aos recursos próprios da ribeira de Odeleite, regularizados em albufeira a criar por barragem a construir nas proximidades da povoação do mesmo nome.
Para nível de armazenamento (50), a capacidade total da albufeira será de cerca de 120 X X106 m3, dos quais 90 X 106m3 serão úteis, podendo garantir o fornecimento de 50 X 106 m3/ano, enquanto explorada isoladamente.
8 - Há, porém, que não se perder de vista que as águas do troço internacional do rio Guadiana entre a foz do Chança e Vila Real de Santo António são mais susceptíveis, em princípio, de aproveitamento económico, mediante a construção de um açude que evite a subida de água salgada, conjugado com bombagem para as albufeiras de regularização do Guadiana (Rocha da Galé e Alqueva) e para a albufeira de Odeleite ou para o sistema Odeleite-Foupana-Vascão, se em tal se confirmar a vantagem.
Oferece particular interesse o estudo da instalação na Rocha da Galé de uma central rever-

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sível, tendo em contra embalse por jusante, com a localização que resulte mais adequada em face das negociações decorrentes quanto ao troço internacional de jusante do Guadiana.
Na realidade, a utilização de águas doces do baixo Guadiana internacional constituirá reserva de alto valor e elevada garantia de disponibilidades de água para o futuro, podendo servir de fecho ao esquema conjugado e interligado dos aproveitamentos hidráulicos do Algarve, facultando adequadamente a marcha do desenvolvimento económico e humano das regiões alentejana e algarvia.
Complementarmente não deixará de haver lugar ao prosseguimento do recurso a águas subterrâneas em resolução de problemas locais, de interesse restrito manifesto, mas de relativamente reduzido significado no contexto geral dos problemas a resolver, como é induzido pelos resultados alcançados nos dezanove furos captados pela Direcção-Geral dos Serviços Hidráulicos no Algarve no quinquénio de 1967 a 1971, nos quais o caudal médio obtido foi de 12,9 l/s.

Longa transcrição, mas o futuro do Algarve, a médio e a longo prazos, nos campos agrícola, urbano e industrial, depende da execução de tão bem elaborado esquema.
Sr. Presidente: O texto que li, e que muito honra o Ministério das Obras Públicas e a sua Direcção-Geral dos Serviços Hidráulicos, permite-me solicitar, em nome da população do Algarve e com a consciência de o fazer por causa justa e exequível:
Que se iniciem com urgência as obras referentes aos aproveitamentos hidroagrícolas das ribeiras de Odelouca e Arade;
Que se acelerem os estudos para o aproveitamento das águas que não sejam utilizadas no esquema de rega do Alentejo e o possam vir a ser em conjugação com o sistema Odeleite-Foupana-Vascão, visando a sua possível inclusão no IV Plano de Fomento.
Este aproveitamento é fundamental para o progresso do Sotavento do Algarve, que não tem sido beneficiado com obras de rega colectivas;
Aceleração das negociações com a Espanha visando o aproveitamento das águas internacionais do Guadiana entre o rio Chança e a foz por represamento, por intermédio de açude a construir no troço jusante do rio, obra de interesse múltiplo e ao qual já me referi nesta Casa.

Tenho dito.

O Sr. Homem de Mello: - Sr. Presidente: Não desejaria que a legislatura terminasse sem erguer a minha voz para tratar de alguns dos mais importantes aspectos que caracterizam a actividade e o progresso do distrito de Aveiro. Essa região a que tão intimamente me sinto ligado e onde palpita o germe do desenvolvimento.
As palavras que vou proferir - tão breves quanto possível, mas tão incisivas quanto seja capaz - não representam, apenas, a opinião do orador. Inserem-se no contexto político local e mereceram a concordância dos principais responsáveis pelos destinos da região.
O notável surto de desenvolvimento industrial do distrito faz, por vezes, esquecer a sua excepcional importância agrícola.
Nos domínios da produção do leite, da carne, da batata, do vinho, da madeira, do milho, etc., Aveiro ocupa lugar de destacado relevo.
Daí que a problemática agrícola se faça sentir com a maior acuidade. E seja acompanhada com vivo interesse.
Não sendo possível nem desejável esgotar a matéria, esforçar-me-ei por abordar alguns dos aspectos que se me afiguram mais relevantes e prementes.
Começo pela "taxa do vinho". Pela famigerada "taxa do vinho".
O lavrador vitivinícola não desconhece os benefícios que tem colhido à sombra do intervencionismo da Junta no sector. E não ignora que a regularização do mercado só foi possível - quando a produção abundava - mercê do apoio que a Junta Nacional do Vinho decidida e corajosamente prestou.

O Sr. Cancella de Abreu: - Muito bem!

O Orador: - A "taxa do vinho" nasceu da necessidade de se processar a referida intervenção. Por isso foi aceite, embora - como bons portugueses - os agricultores tivessem pago bufando.
Mas se o princípio de que resultou a aplicação da taxa foi compreendido e aceite, já o mesmo não se poderá dizer da forma como esta se tem processado.
Parece, assim, indispensável que o Governo reveja esse processo e o adapte, quanto antes, à conjuntura que atravessamos.

O Sr. Cancella de Abreu: - Muito bem!

O Orador: - Como se sabe, o preço do vinho, entre nós, ainda resulta do grau alcoólico. Ora a taxa é uniforme.
Acresce que a própria água-pé - e assim terá de se considerar o vinho de graduação inferior a 8º - também não foge à regra do pagamento.
Ninguém compreende que assim continue.
Por outro lado, encontram-se isentos do pagamento da taxa apenas os primeiros 2000 l de cada produção individual. Afigura-se-nos limite demasiado exíguo. O lavrador que produza 5000 l por ano é ainda um pequeno vinicultor. Como a taxa é aplicada de forma a isentar os pequenos produtores, deverá ser alargado aquele limite até, pelo menos, aos 5000 l. E para não identificar - o que parece injusto - o produtor médio com o grande proprietário, poder-se-ia reduzir de $20 para $10 a taxa a pagar por aqueles que produzam entre 5000 l e 10 000 l, mantendo-se os $20 só a partir de produções superiores.
Estamos certos de que uma tal medida, por parte de quem de direito, seria favoravelmente acolhida, dissolvendo rapidamente o ambiente pesado e desfavorável que, neste momento, se respira.
Outro problema ainda ligado à vitivinicultura - e com forte incidência na região - é o do chamado "vinho americano".
Ninguém ignora que há grandes manchas territoriais cobertas pelo plantio dos "produtores directos".

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Todas as medidas tendentes a acabar com a produção do "vinho americano" têm-se revelado ineficazes.
Pouco importará não digo chorarmos sobre o leite, mas, neste caso, sobre o "vinho" derramado. O que importa é ter a coragem de enfrentar a realidade. Realidade que o Governo não pode desconhecer ou fazer de conta que desconhece.
Se se mantiver, com a maior firmeza, a proibição da comercialização do produto, com pesadas multas a suportar pelos comerciantes que o adquiram ao lavrador para tal fim: se o Estado concordar no pagamento de um prémio pecuniário (por exemplo: 10$ ou 15$) por cada pé voluntariamente arrancado ou enxertado, resultando desta política a existência legal de "produtores directos" nas regiões tradicionalmente produtoras - pensa-se que o problema tenderá para uma conveniente solução em prazo relativamente curto. O arranque compulsório ou a multa anual progressiva - como alguns preconizam - não só provocaria mal-estar social, como poderia acentuar a apetência, tão portuguesa, pelo fruto proibido.
No que respeita ao leite e à carne, cumpre assinalar que se trata de dois dos mais importantes produtos d?- economia rural do distrito, uma vez que nele se concentra o maior e melhor núcleo de transformação tecnológica do País, apoiado em vasta produção leiteira, como resulta dos números, relativos a 1971, que a seguir se apresentam:

[Ver tabela na imagem]

Ora, as medidas de fomento leiteiro tomadas após o grande surto de 1967-1970 não foram, de maneira geral, nem oportunas, nem adequadas.
A produção poderá incentivar-se, ainda mais, desde que:

a) Haja coordenação entre os serviços das Secretarias de Estado do Comércio e da Agricultura;
b) Se dê apoio, em força, à instalação de salas de mungição e de estábulos colectivos;
c) Sejam revistos os escalões de classificação do leite, até que seja possível conseguir o que se refere na alínea anterior, evitando os escalões de preço muito baixo (1$20 a 1$50 o litro), o que é desencorajante;
d) Sejam tomadas medidas contra a inflação qualificativa das rações;
e) Seja concedido apoio técnico-económico à produção forrageira e ao registo genealógico dos animais leiteiros, com vista a aumentar a produtividade.
Permita-se-nos que insistamos um pouco sobre o lançamento das salas colectivas de mungição. Importa que não tarde. Com 60 000 a 80 000 contos, far-se-á a desejável cobertura, de que resultaria apreciável crescimento da produção, com imediato reflexo na produção de carne, uma vez que, aumentando o número de fêmeas, logo cresce o número de crias.
Outra medida de largo alcance que se preconiza é a defesa dos campos do Baixo Vouga, obra orçada em 500 000 contos. Obra que deverá ser incluída no próximo Plano de Fomento, sob pena de autêntico "escândalo local".
Trata-se de 11 000 ha de óptimos terrenos de aluvião, de comprovada aptidão forrageira, que, uma vez aproveitados, proporcionarão um acréscimo imediato da produção distrital leiteira e bovina da ordem dos 25%.
Detenhamo-nos, agora, um pouco sobre a carne bovina abatida e o respectivo consumo per capita (números de 1971).

[Ver tabela da imagem]

O quadro releva e confirma a tradicional vocação da região aveirense para a produção e consumo de carne. O que não pode também deixar de ser indício do progresso sócio-económico que por toda a região se verifica. Tirar partido imediato dessa vocação parece ser medida que se impõe. Por isso nos permitimos insistir na inclusão do aproveitamento do Baixo Vouga no novo Plano de Fomento.
Quanto à batata, sabe-se como o distrito é altamente produtor. Confrange o protelamento, ao longo dos anos, de soluções de alguns problemas básicos, tais como:

a) A falta de esclarecimento da produção (quando existe é sempre parcial e extemporânea) sobre as características de variedades com interesse de cultivo;
b) Excessivo número de variedades de batata de semente autorizadas a importar, com absoluta falta de elementos que assegurem escolha criteriosa;
c) Garantia de preço, dada a tempo e horas.
A que tem sido oferecida envolve variedades pouco correntes da produção, pelo que a mais abundante está desprotegida, havendo anos em que o preço vem até $70 o quilo. O que é ruinoso mesmo com grande produção. E outros anos em que, mesmo na época de mais intensiva apanha, o preço anda pelos 2$ a 2$50 o quilo;
d) Pesada operação de taxas sobre as variedades
desejadas pelo consumo interno e pela produção, como sejam as variedades Arran-Banner e Arran-Consul.
É mister que a Secretaria de Estado do Comércio se debruce sobre o problema, encontrando as soluções mais convenientes.
Agora duas palavras quanto à produção de madeira.
Nos incêndios do Verão passado arderam cerca de 6000 ha de floresta, que necessitam urgentemente ser repovoados.

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Para além do pagamento de indemnizações pela companhia responsável, deverá conceder-se aos proprietários apoio técnico e financeiro, a fim de se refazer, no mais curto espaço de tempo, a riqueza florestal, aproveitando-se o ensejo para corrigir os vícios das estruturas tradicionais, promovendo os serviços, em conjunto com a actividade privada, o povoamento ordenado e racional das zonas devastadas, de acordo com as mais modernas técnicas, sem prejuízo dos direitos de propriedade de cada um.
Por outro lado, impõem-se formas mais recomendáveis para uma melhor e indispensável participação dos povos na administração das matas florestais, de maneira a evitar o antagonismo entre as populações e os serviços florestais.
Em matéria de preços, regista-se viva insatisfação dos produtores, que nem sempre compreendem a actuação das firmas que dominam o mercado.
A abertura da exportação e o franco apoio, às cooperativas, como a que está já constituída na região, com sede em Águeda (Coflora), poderão contribuir para o indispensável saneamento do ambiente.
Sr. Presidente: Verifico que já estou no uso da palavra há largos minutos. E que não cheguei a dizer metade do que desejava.
Não posso, todavia, abusar da paciência da Câmara.
O apontamento que fiz deverá, contudo, ser suficiente para despertar e espevitar a atenção dos governantes, não só sobre os problemas que abordei como também sobre os demais que desejaria (e deveria) focar. Aveiro tudo merece. E tem retribuído generosamente a confiança que o Governo vem depositando em quantos habitam e fazem progredir a região.
Não ignoro que falar é quase tão fácil como sonhar. Difícil é realizar, pôr em prática as construções teóricas arquitectadas no remanso dos gabinetes.
A soma de benefícios já alcançados nos mais diversos sectores, o interesse que o Governo sempre tem manifestado pela região, o apoio que quotidianamente ratifica aquele que tão dignamente o representa (cuja transbordante e profícua actividade me apraz enaltecer nesta Casa) levam-me a encarar o presente com natural confiança. Porque o futuro, esse, haveremos de conquistá-lo.

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados: Vamos passar à

Ordem do dia

Continuação do debate do aviso prévio sobre a indústria do turismo no desenvolvimento económico e social do ultramar.
Tem a palavra o Sr. Deputado Agostinho Cardoso.

O Sr. Agostinho Cardoso: - Ao longo da minha vida parlamentar interessaram-me sempre os problemas do turismo - indústria nova e original, mãe de outras e variadas actividades subsidiárias e criadora de uma "exportação invisível" de grande valor, porque considerável fonte de divisas.
Original ainda quanto à sua matéria-prima, que vai do monumento e da paisagem ao acepipe regional ou ao folclore exótico.
Este aviso prévio do Sr. Deputado David Laima - que com ele vem salientar uma característica importantíssima do nosso ultramar - sugere-me, entre muitos, um aspecto com que pretendo, ao tratá-lo em brevíssima intervenção, colaborar na sua iniciativa.
Trata-se de focar a importância do turismo ultramarino na qualidade de turismo interno de um país que, por ser pluricontinental, pode oferecer ao turista português variedade e originalidade de paisagens, ambientes, costumes e folclore, com riqueza e exuberância excepcionais, sem que, ao usufruí-los, se tenha de ultrapassar as fronteiras da Pátria.
E, ainda, que este turismo interno pode constituir um tampão contra a hemorragia de divisas que o turismo externo dos Portugueses venha a determinar.
Como é óbvio, a balança turística é tanto mais positiva quanto mais se viajar na nossa terra e menos se for viajar à terra alheia.
Daí, os países para lá da "cortina de ferro", mormente a Jugoslávia, que recebe hoje um considerável número de turistas, recusarem divisas aos seus compatriotas para virem gastá-las ao estrangeiro...
Isto, se não houvesse outras razões para limitar o acesso ao "paraíso ocidental"...
É no turismo interno - viajar na própria terra - que está o antídoto para a perda de divisas correspondentes ao turismo que os Portugueses vão fazer lá fora.
O desgaste turístico de divisas, em alguns países como os Estados Unidos e a França, assume certa importância, pelos volumes populacionais cada vez maiores que se deslocam ao estrangeiro.
Em Portugal, que, além da faixa continental europeia, possui, para lá do mar, as ilhas adjacentes e um extenso ultramar com enorme potencialidade turística, este turismo interno tem condições excepcionais para ser valorizado.
Valorização, como poupança de divisas, como publicidade do ultramar e motivação para fazê-lo conhecer.
Turismo interno que não tem menos interesse - embora diferente - do que frequentar Madrid, Paris ou Londres - quando se tem à mão alguns poucos dias de férias.
"Viajar na nossa terra" pode ser redescobrir a beleza paisagística e a suavidade climática da Madeira - arrabalde de Lisboa porque a uma hora de distância por ar; ou debruçar-se sobre as "sete cidades" em S. Miguel, que fica apenas a uma meia hora mais além.
Pode ser vaguear por S. Tomé, com os seus dialectos, a sua miniatural paisagem exuberante, o portuguesismo da sua gente; ver de relance Cabo Verde com a sua música, a sua cultura e a variedade das suas ilhas; ver deslumbrado à noite da "ilha", a pequena ,Guanabara jorrando luz, que é a baía de Luanda e a portentosa cidade que nela se debruça.
Ou ainda, passear de jangada ao longo das paradisíacas ilhas do Mussolo ou, em silêncio, ouvir o fragor das quedas do Duque de Bragança desfazendo-se em espuma. Ou olhar o planalto de Nova Lisboa, grande cidade, distante da costa, na qual se evoque a figura de Norton de Matos, ou Sá da Bandeira, onde perpassa a memória dos madeirenses que ultrapassaram a pé o deserto e subiram penosamente a montanha, com uma tenacidade que é símbolo do nosso esforço ultramarino.

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Ao dealbar do dia, espreitar na Gorongosa a fauna africana - elefantes, leões, veados, zebras e hienas -, dar um salto a Vila Pery ou a Vila Cabral, deslumbrar-se com o desenvolvimento a ritmo acelerado de Nampula e Nacala ou com as instalações portuárias da Beira, onde chineses, indianos, mestiços e brancos de cor e raças variadas, mas de uma só língua e de uma só pátria, inundam alegremente os passeios, os cafés, as escolas e as fábricas desta lindíssima cidade de arquitectura moderna, onde as raças se fundiram como em nenhuma outra.
Ou jornadear por Lourenço Marques, a grande metrópole do Índico, cidade-jardim harmoniosamente delineada, onde as fábricas e os grandes edifícios crescem rapidamente.
E dar um salto em pequeno avião até Inhaca, a ilhota que espera o turismo na quietude dos seus palmares.
Ou meditar no passado, religiosamente, ao passar sem receio pelos bairros muçulmanos da ilha de Moçambique, onde as mulheres dão bom-dia ao transeunte e a mesquita com seus fiéis vive em harmonia com a igreja, e onde a fortaleza e o Palácio-Museu de S. Paulo nos falam do gigantesco esforço de um passado de séculos...
Argumentos não faltam assim às províncias ultramarinas - sem esquecer Macau e Timor - para quererem desenvolver uma indústria turística que lhes vai trazer divisas - para a qual têm abundante matéria-prima e que se reveste de aspectos politicamente positivos que é quase inútil salientar: torná-las melhor conhecidas dos portugueses metropolitanos, ou dos estrangeiros curiosos que por vezes descreiam do mundo que os Portugueses construíram.
Mas não basta matéria-prima. Estruturas turísticas têm de ser criadas e traçada uma política de tráfego aéreo que vise o turismo.
É sobretudo no domínio do tráfego aéreo turístico que todos os esforços devem concentrar-se.
Tarifas especiais, excursões para grupos organizados, voos com tudo incluído, agências de viagem que se especializem em turismo ultramarino, etc.
E há muito a fazer neste capítulo.
Basta dizer que os pais de militares mobilizados no ultramar e que ali têm de permanecer dois anos não usufruem de qualquer tarifa especial se quiserem visitar os filhos.
E deviam tê-la.

O Sr. David Laima: - Muito bem!

O Orador: - Como Deputado pelo Funchal, tenho acentuado várias vezes quanto os Continentais conhecem pouco o arquipélago da Madeira - primeira terra portuguesa para lá do mar que achámos ou descobrimos.
E como ela pouco tem beneficiado de um turismo interno, desajudado pelo custo alto das passagens de avião Lisboa-Funchal. Há férias para portugueses nas Baleares ou nas Canárias mais económicas do que idêntico programa para a Madeira.
Vai surgir este problema do tráfego aéreo turístico da metrópole para o ultramar, e serão fundamentais as soluções a que se chegue na promoção turística ultramarina.
Como português das ilhas adjacentes, só desejo que o turismo ultramarino possa ser perante o Mundo o grande cartaz da nossa pátria pluricontinental.

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Alberto de Alarcão: - Sr. Presidente: Rogou-me o Sr. Deputado David Laima que tentasse colaborar no aviso prévio sobre "A indústria do turismo no desenvolvimento económico e social do ultramar".
Mas porque não sou daí natural nem residente, nem ao ultramar me ligam outros laços que não sejam os de português e da amizade que me ligam a muitos dos que lá vivem ou viveram - e tal me basta -, interroguei-me que contributo poderia trazer à apreciação da matéria ora na ordem do dia dos trabalhos do plenário desta Assembleia Nacional.
Resolvi escolher tema que, pela sua especificidade, acredito que não virá a ser largamente desenvolvido no decurso deste aviso prévio. Mas tem algo a ver com o turismo, com todas as formas de turismo: interno e externo, e o desenvolvimento do ultramar, aliás de todos os territórios ou nações, qualquer que seja o seu grau de desenvolvimento económico e social: o artesanato.
A ele vamos. E porque da leitura empreendida e da muita mais que ficou por fazer ressaltou obra recentemente publicada no Brasil, e a esse contexto luso-tropical respeitante, com tanto paralelismo destoutro lado do mar Atlântico, entendi por bem adaptar as essenciais conclusões do estudo [José Artur Rios e associados - Artesanato e Desenvolvimento. O Caso Cearense. Rio de Janeiro. Serviço Social da Indústria (S.E.S.I.) da Confederação Nacional da Indústria] como homenagem à Comunidade Luso-Brasileira que nos trópicos vai florindo, como testemunho de respeito e admiração às maravilhosas obras de artesanato que me foi dado apreciar em visitas de estudo às províncias ultramarinas de Angola e de S. Tomé.
Fique esta prosa descolorida como resposta pronta e amiga a quem o solicitou. E se servir a alguém, ou a algum serviço, nesta hora de turismo nacional, dar-me-ei por satisfeito, por feliz.
Sr. Presidente: O crescimento e a expansão da indústria nos países de civilização ocidental parece ter levado muita gente a concluir pelo desaparecimento gradual das actividades artesanais.
A muitos estudiosos, nos alvores do processo de industrialização, afigurava-se que a fábrica acabaria fatalmente por absorver a oficina, o artífice se integraria no operariado qualificado dos grandes estabelecimentos industriais e o artesanato, típico de uma era superada pelo capitalismo industrial, passaria a actividade fóssil e marginal no contexto das novas civilizações.
No entanto, o exemplo contemporâneo de países altamente industrializados parece vir desmentir a tese pessimista dos que acreditavam na extinção natural do artesanato pelo simples crescimento das indústrias. Efectivamente, não apenas "ofícios" ou "artes" cresceram paralelamente à actividade industrial sempre que souberam modernizar seus métodos e objectivos, sua criatividade original e "enriquecedora", como também a sua preservação passou a constituir preocupação de estadistas e humanistas, de quantos se preo-

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cupam com o homem e sua realização pessoal, e seu ambiente e qualidade de vida.
A conservação das actividades artesanais deixou de ser considerada, assim, como nas últimas décadas do século passado, uma tentativa romântica de reacção do homem pela máquina - começa a ser encarada, inclusive, como podendo constituir um empreendimento económico de assaz interesse ou rentabilidade se tiver em atenção os padrões, os níveis de vida, não apenas materiais, mas igualmente espirituais, das populações, das civilizações. Não revestirá as mesmas formas do passado, forçosamente terá de evoluir.
"Um dos paradoxos da economia moderna", diz Marcel Laloire, "é a sobrevivência das pequenas empresas industriais ao lado de empresas gigantescas que tendem à concentração". Paradoxo porquê? Certamente em face do preconceito que, oriundo desse século já passado, se repercute ainda em nossos dias na concepção de uma sociedade marcada pelo gigantismo das concentrações industriais.
Em muitos países o artesanato, o florescimento e expansão de pequenas e médias empresas a ele dedicadas está sendo largamente compreendido e utilizado como importante etapa e, ao mesmo tempo, complemento do processo industrial, como meio natural de formação de futuros operários qualificados e empresários - pode revestir assim interesse para o processo de crescimento económico e de desenvolvimento social das populações ultramarinas, pode ter que ver com o turismo interno às mesmas ou do exterior proveniente.
Importa, assim, dilatar o conceito de desenvolvimento económico e social, alargar o campo de entendimento da industrialização. Não é apenas a criação de altos-fornos, por muito necessários que se tornem para o crescimento explosivo de economias a partir de, pelo menos, certo estádio de desenvolvimento, mas também a manutenção e fomento de pequenas e médias empresas voltadas para produções artesanais e outras, interessando a ocupação de mão-de-obra disponível e a satisfação de necessidades mais elementares ou menos "sofisticadas" de populações."Apesar das forças hostis", di-lo Melvin M. Knight em Encyclopedia of Social Sciences, "o artesanato permanece o método essencial de produção e manufactura, não só porque produz artigos artisticamente superiores (por vezes) aos fabricados pela máquina", como por ser, em muitos casos, actividade essencial à vida das populações - e a qualidade ou estética dos produtos, a individualização dos artífices, tendem em numerosos casos a ser devidamente apreciados, valorizados.
Importa não esquecer, além disso, o peso dos tradicionais mercados consumidores, que a própria movimentação interna das populações fomenta, e também esse é turismo, e também esse se abastece de artigos, cujos hábitos, transmitidos de geração em geração, criam uma preferência marcada pelo produto artesanal.
Não sei mesmo se em muitos casos, inclusive em sociedades economicamente mais evoluídas, se não estará mesmo a regressar a certas formas de descoberta e valorização de produções artesanais, de que talvez pudessem ser exemplos as procuras de peças de mobiliário manualmente trabalhadas, de artigos de decoração ou ménage fora de série, de peças de estatuária de madeira ou pedra, de obras de joalharia, ouro e prata finamente lavradas e apreciadas mesmo, ou, sobretudo, pelos estratos economicamente mais possidentes das "sociedades de abundância".
Essa permanência do artesanato não se limita aos países da órbita capitalista. Na Rússia, mesmo já bastante depois da revolução marxista, a atitude do Governo Soviético foi de apoio e estímulo aos pequenos ofícios. "Durante muito tempo ainda", escrevia-se em decreto, "a indústria não será capaz de produzir o suficiente para as necessidades do país, nem poderá absorver todo o excedente da mão-de-obra" (drama que atinge outros espaços e sociedades). A indústria artesanal, em pequena escala, poderá empregar esse excedente, sobretudo entre as camadas mais pobres do campesinato e satisfazer em certa extensão as necessidades dos mercados rural e urbano. Isso explica a sua enorme importância para a economia nacional, a ênfase concedida, para além do estímulo e fomento da indústria pesada, ao artesanato em seus planos de fomento.
Não aprovámos nós ainda há bem pouco tempo os agrupamentos complementares de empresas e não assistimos, na apreciação da sua base I, à defesa viva do direito à sobrevivência e protecção de pequenas e médias empresas, que terá levado alguns Srs. Deputados a tentar justificar, inclusive, a exclusão de todos os fenómenos de integração vertical do âmbito legislativo da matéria em discussão?
Mas regressemos ao "artesanato e desenvolvimento", aos seus diversos estádios no processo de crescimento.
Sr. Presidente: Parece existir uma tipologia do artesão, que vai dos graus mais baixos da qualificação profissional à plena e especializada profissionalização.
No extremo inferior da escala, que mergulha na sociedade e economias tradicionais, vislumbra-se uma poeira de aptidões artesanais que não chegam a incorporar-se num tipo de artesão definido, muito menos de profissional do artesanato. São, antes, linhas artesanais que fazem parte integrante do património cultural. Transmitindo-se de geração em geração pelos mecanismos da transmissão cultural (a sugestão verbal, o ensino oral e a prática acopulada, a influência dos mais velhos ou chegados, a imitação, etc.), a sua instrumentalidade é simples, dispensa mesmo locais especializados. Nessa etapa civilizacional, as exigências da vida quotidiana, lúdicas ou utilitárias, orientam a aptidão, inspiram a actividade artesanal, imprimem sentido ao acto criador ou ao objecto criado.
Numa segunda fase, a actividade artesanal começa a distinguir-se das demais, embora o artesão ainda não exista como tipo social suficientemente diferenciado. Essa aurora do artesanato parece coincidir com a aparição de um mercado, com a possibilidade de relação permanente produtor-consumidor, ainda que ditada por normas meramente tradicionais, sem nenhuma implicação da chamada "economia de mercado". O artesanato, a "arte", como o povo lhe chama, constitui ocupação de algumas horas, dias da semana ou épocas do ano, ao acaso da oportunidade ou do tempo livre, à margem de outras tarefas consideradas principais ou essenciais. É uma actividade mista ou complementar, visando a melhoria da subsistência.
Dessa actividade intercalar e aleatória decorre mais tarde o artesão, que profissionaliza e especializa as suas aptidões e se identifica pessoalmente à produção

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de certos objectos. A sua fama estende-se na localidade ou região. Trabalha num espaço profissionalmente delimitado, que pode ser ainda a sua casa, mas reveste já nítida peculiaridade, integrada embora nos quadros-ambiente da sociedade tradicional: o seu comportamento económico, as formas de produção e comercialização, o calendário de laboração continuam" a aderir intimamente aos padrões tradicionais, à sua cultura, estilos de vida, economia e sociedade.
A partir daí sofre o artesão um desdobramento, consoante a intensidade da vocação e dotes pessoais e as possibilidades que o ambiente lhe oferece: ou se transforma em artesão-empresário - caminhando para uma organização empresarial do tipo familiar, mista, ou já exclusivamente de operários -, ou se torna trabalhador por conta de outrem, nas mais diversas situações contratuais. Nessa fase começa a afirmar-se já certa industrialização ou semi-industrialização característica. A oficina volve-se em fábrica, especializa-se relativamente à habitação; o equipamento moderniza-se, o instrumental torna-se variado; a produção "normaliza-se"; a comercialização passa a fazer-se através de organizações ou pessoal especializado. As relações entre empresários e empregados tendem a conformar-se com os padrões gerais da indústria e da legislação do trabalho.
Estas quatro fases podem ser contemporâneas, coexistir lado a lado no mesmo território e tempo, variando apenas de artesanato para artesanato. Alguns não chegarão a sair da primeira fase, outros sofrerão um bloqueio na segunda ou terceira. Essa caracterização faseológica é, no entanto, fundamental para qualquer programa de assistência técnica ou financeira que diversificar se deve segundo o tipo de artesanatos prevalentes.
Não iremos fazer a história desenvolvida de como o artesão "nasce" ou "se faz". Seriam tantas aliás as motivações ou razões possíveis do surgimento que algumas haveriam de ficar no limbo do esquecimento.
Pode ter interesse reconhecer, no entanto, que a vocação se consolida muitas vezes no artesanato, ao desencadear-se a procura dos mercados, o atractivo do lucro. Dinheiro passa a ser, nessas sociedades em vias de desenvolvimento onde o artesão se faz ou individualiza, não apenas um meio de troca, mas símbolo de alguma libertação monetária, de maior independência económico-social, de realização pessoal.
Há, em muitos desses artífices, ao lado de um brio profissional que se afirma, a aspiração de independência económica e um prometedor espírito de promoção social. Interpretam sua actividade profissional como uma possibilidade de ascensão social.
A vontade de melhorar, de progredir, de ampliar o negócio ou o ofício, aparece repetidas vezes em inquéritos que se façam a artesãos a respeito de motivações.
São ideais típicos de uma classe média que balbucia, ensaia os primeiros passos. E, de facto, ao lado de atitudes e aspirações características dessa camada, muitos artesãos têm consciência já de integrá-la, de fazer parte dela ou se identificarem, ainda que de modo hesitante ou confuso.
Começam por vezes a aspirar ao comércio, consequência porventura do confronto que possibilita. Mas não é fácil estabelecerem-se comercialmente. Do artesanato ao comércio o salto é grande, representa
uma melhoria considerável, geralmente, uma mudança nítida de estrato social. Por isso, o comércio aparece como um ideal remoto na conversa de muitos desses artesãos.
Essa percepção das distâncias e das diferenças profissionais aparece frequentemente mesclada de sentimentos de frustração e algum desânimo.
Não é tão frequente como imaginar se possa, em sociedades ditas "abertas", o desejo de encaminhar os filhos para a sua "arte". Muitas querem vê-los longe dela. Um desejo de valorização inerente ao homem explica essa atitude face à profissionalização dos filhos.
Mas a frustração dos artífices em sociedades menos "bloqueadas" tem a sua explicação mais razoável nas dependências e tensões que envolvem a actividade artesanal na sua inserção e integração social.
Essas dependências são de vária ordem e intensidade. Variam muito de um artesanato para outro e consoante os tipos de artesão. A que mais pesa sobre as categorias inferiores de artífices é a dependência do dono da matéria-prima, mas não menos do comerciante - talvez mesmo mais, até -, pois no ramo pululam os intermediários e se formam, por vezes, avantajadas margens de comercialização. É por isso que, sempre que pode, o artesão procura vender directamente ao consumidor, em feiras e mercados tradicionais, às portas dos estabelecimentos hoteleiros, em gares de aeroportos às horas de movimento, em locais de maior concentração de turistas.
Aumentam as tensões entre artesãos e comerciantes à medida que a produção se amplia e a actividade se industrializa. Sente-se então mais fortemente a subordinação do artífice ao dono do capital, que muitas vezes é, igualmente, o intermediário, o comerciante.
A falta de financiamento, de crédito fácil e barato, é nitidamente uma das causas dessas tensões e ressentimentos contra o intermediário. Deve merecer, pois, a atenção dos Poderes Públicos.
Não há dúvida de que alguns, mesmo muitos, chegam a prosperar. Mas as dificuldades de melhoria e ascensão social são grandes se comparadas com a importância económica do artesanato e a massa humana que nele se ocupa. É matéria, pois, que bem importa considerar, conjuntamente com a de melhor organização produtiva e comercial.
Sr. Presidente: O artesanato, mais do que um conjunto de técnicas, é, sobretudo, um tipo de organização social. Fazendo parte de uma: sociedade e de uma cultura geralmente tradicionais, não escapa à influência da sua estrutura e instituições.
Actividade "socializante" e "socializada" - no sentido de que pretende tornar social, "sociabilizar", integrar o indivíduo na sociedade -, apoia-se o artesanato nos diversos grupos que a estruturam ou fundamentam.
O eixo à volta do qual gira quase toda a cultura tradicional é a família; não se estranha, pois, que em tais sociedades seja esse grupo ou elemento estrutural que se encarregue da "socialização" do indivíduo e da transmissão dos conhecimentos essenciais à vida - no meio rural, a família é berço, tem sido escola, faz as vezes, inclusive, de comunidade mais global.
O artesanato nessas sociedades em vias de desenvolvimento torna-se, assim, incompreensível sem a fa-

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mília. A identificação entre esta e o quadro oficinal é, por vezes, tão íntima que se torna difícil distinguir; é na família que o indivíduo aprende o ofício; é através da família que se organiza para garantir a sobrevivência ou ganhar a vida, e é ainda apoiado na família que sobe na hierarquia social.
A aprendizagem processa-se naturalmente no quadro da oficina fortemente familiar. Começa geralmente cedo: junto de quase todos os artesãos há crianças rondando, fazendo trabalhos ligeiros, levando recados; breve começam a pegar nas ferramentas - ainda não são "aprendizes" verdadeiramente, ajudam nos trabalhos e vão aproveitando para aprender, passam mais tarde a ganhar alguma coisa.
O candidato(a) a artífice faz a sua primeira aprendizagem com o pai ou a mãe, consoante a natureza do artesanato, com o irmão, o parente mais próximo, o vizinho. Quando há diversificação entre a ocupação da família e a "arte" para a qual desejam encaminhar a criança ou o adolescente, é confiado a parente, amigo ou conhecido que o inicie nessoutra "arte".
A relação mestre-aprendiz confunde-se, assim, frequentemente, com as relações de parentesco. O grupo familiar aparece como uma escola profissional, onde o saber de ciência adquirido na prática se transmite de geração em geração. Essa transmissão repetitiva de gestos é tão espontânea que artífices, interrogados como aprenderam c ofício, respondem vagamente: "aprendi comigo mesmo" ou "isso não tem que se aprender: a gente vê os outros e vai fazendo também".
Raramente se encontra em tais sociedades um condicionamento formal, encaminhando para a assimilação de uma técnica ou de um ofício; escolas ou cursos técnicos são raros.
Compreende-se que no sistema de relações dentro do qual os conhecimentos se transmitem, a sistematização seja pequena, a transmissão frouxa, a inovação rara. Compreensívelmente também nem sempre o mestre revela todos os segredos ao aprendiz do ofício.
"Arte", no dizer de mestre, "é o que nem todos fazem, nem talvez convenha que façam [...]" Por isso, toda a arte é cercada de certo véu de mistério, de saber abstraio. "Há segredos que não se transmitem a qualquer um." Os segredos constituem assim o âmago da arte, a quinta-essência do aperfeiçoamento profissional, ligado ao status do artífice, à sua inserção sócio-profissional.
Apesar de tudo, certos artesãos atraem aprendizes, criam tradição de mestres. São mestres verdadeiramente, têm a noção da sua função de instrutor profissional; em alguns casos têm até consciência dos graus que levam os aprendizes à maturidade profissional.
Quantos não foram focos de difusão, de irradiação artesanal, em dada área? Os seus discípulos espalharam-se pelos corredores, revê-os com certo orgulho. Mestres, na acepção da palavra.
Pode alegar-se que a transmissão das técnicas nestas sociedades tradicionais se faz muito ao acaso do nascimento, por "escolas" familiares, geralmente, mas também entra a todo o tempo a cópia de objecto que eventualmente cai à mão ou sob o alcance dos olhos, como entre igualmente a improvisação ou inspiração de momento. À transmissão do ofício ou "arte" pelo exemplo ou compulsão paterna ou de outro mestre mistura-se por esta forma a transmissão casual,
muito importante no caso de inovações e mudanças tecnológicas.
Parece que os artesãos mais necessitados não inovam, ou por acomodação pura e simples à tradição que assegura livre curso ao seu produto, ou por falta de tempos livres para repensarem sua "arte". Artistas pertencentes a camadas sociais medianamente prósperas podem arriscar-se a perder tempo e trabalho em tentativas de melhoria, ainda que conduzam a maior parte das vezes ao fracasso.
Neste processo, frequentemente individual de habilitação profissional, os dons pessoais dos artífices - mestre e aprendiz - têm enorme importância, primam mesmo sobre qualquer outro sistema formal de transmissão de conhecimentos. "A gente aprende vendo (ou ensinando), depois aperfeiçoa-se por conta própria."
Em tais sociedades rurais tradicionais são extraordinariamente reduzidas as escolas profissionais de artes e ofícios, o seu número e especializações. Pior do que isso: nem sempre procuram adaptar os programas às características da zona onde se inserem (veja-se, por exemplo, o caso da agricultura e certas "artes" rurais), menos ainda às necessidades, potencialidades ou perspectivas da sua economia e comunidades. Falta-lhes, sobremaneira, a visão prospectiva do que tempos vindouros poderão vir e exigir-lhes.
Visam - têm visado normalmente - apenas a criança ou o adolescente. Deixam de lado o adulto, o artífice formado na escola da vida, que em quase todos os ramos e graduação do seu ofício está igualmente, tantas das vezes, ansioso por aprender. Tem até a mais forte das motivações: trabalho para viver e melhorar a sua condição social. É, no entanto, nessas sociedades e sistemas de ensino demasiado fechados o mais esquecido ou sacrificado.
Contra essas e outras forças adversas luta o artesão. Prodigioso é o esforço de certos artífices dotados de rara inventividade, que se esforçam por galgar barreiras institucionais, bloqueios de estrutura - do sistema escolar ao demais social.
Bem merecem a nossa compreensão e o nosso carinho, o estímulo de uma palavra, sobretudo o de uma acção.
Há, no entanto, estímulos de mudança, internos ou externos ao artesão e à sua arte.
A criatividade do artífice consegue vencer barreiras que o mundo geralmente desconhece. Quantas conquistas da ciência e da tecnologia se não ficaram a dever a esses artífices desconhecidos, a esses obscuros cidadãos da sua pátria e do mundo?
Catálogos que circulam ocasionalmente, modelos provindos quiçá de outras paragens, produtos, objectos novos que lhe chegam podem ser assim preciosos estímulos de inovação no artesanato - para além das visitas tradicionais a museus de arte popular, de etnologia ultramarina, como o que se irá erguer agora nas encostas do Restelo e mais importaria difundir também pelo ultramar.
Raramente surgem mencionados os livros profissionais nos inquéritos a artesãos tradicionais de países ou territórios em vias de desenvolvimento. A falta dessa literatura como motivo de inovação prende-se, sem dúvida, ao grau de instrução geral, muitos sendo analfabetos ou com baixo grau de escolaridade, como facilmente se compreende. Profunda transformação

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está em curso no ultramar também nesta matéria. Qual virá a ser o seu impacte?
Quase todas as transformações tecnológicas introduzidas na área (electrificação, cinema, televisão, etc.) podem por si só determinar notáveis alterações, aumentar o rendimento, renovar as técnicas e o instrumental. Já se terá pensado nessoutro impacte que esses factores, mais a educação e a habilitação profissionais, poderão determinar no desenvolvimento económico-social dos espaços ultramarinos? O surto explosivo, o milagre económico que aí se afirma em alguns desses territórios, será bem pequeno comparado ao que resultará no dia em que todos esses factores vierem coadjuvar a obra de civilização.
A comercialização mais intensa de determinado produto pode vir, por seu turno, a apressar a mecanização. É o caso dos bordados que o turismo pode fomentar em largo estilo e encontrar respostas no trabalho de máquinas de bordar. Inclusive pode ser tal o interesse de aprendizas, tão poderosa a motivação e a procura que iniciativas surjam, nomeadamente de carácter particular, no sentido de formalizar o seu ensino. E muitos outros casos mais se poderiam citar.
A facilidade de crédito poderá ser, igualmente, factor de inovação. Possibilita a aquisição de ferramentas, a compra de máquinas e equipamentos novos. Muitos artífices têm consciência do que poderiam fazer melhorando os processos de produção, renovando o equipamento. Mas falta-lhes dinheiro, ou por não terem quem lhes empreste, ou por não saberem como obtê-lo, ou ainda por se sentirem culturalmente constrangidos ao pedi-lo. Modificações de atitudes e comportamentos levam seu tempo a processar-se.
E nem todas serão desejáveis - ou, pelo menos, as mais desejadas. Assim, a economia de mercado, a industrialização e a comercialização se, por um lado, incentivam a aprendizagem e potencializam as vocações artesanais, por outro, destroem frequentemente relações tradicionais entre mestres e aprendizes, que noutros tempos envolviam não apenas ensinamentos, transmissão de técnicas, mas abarcavam, de algum modo, dependências espirituais, filiações de consciência, obrigações mútuas, lealdades.
Sr. Presidente: A organização da produção artesanal e a distribuição dos seus produtos pautam-se ainda hoje, mesmo nos sectores mais permeáveis à racionalização e à técnica, por normas tradicionais. Todo o sistema económico do artesanato habitual prende-se a uma economia cujo funcionamento ainda tem carácter eminentemente pré-capitalista, e é ditado em grande parte pela escassez do dinheiro, pelo baixo poder aquisitivo do consumidor, pela importância dos sectores primário (agricultura) e terciário (comércio) da economia.
Essa marca de subdesenvolvimento, em economias que não podem coordenar ainda seus diversos sectores ou promover um tipo de industrialização adequado às suas peculiaridades regionais, transparece em diversos momentos da produção, da distribuição e do consumo.
Retenhamos algumas: a maioria dos artífices mora no próprio local da produção, outros ao lado ou nas vizinhanças. Os motivos para essa localização contígua são expressos de várias maneiras: para além da protecção contra o roubo, etc., há muita gente que prefere comprar na própria oficina e aparecem viajantes a qualquer hora.
A comercialização de muito artesanato não envolve, assim, nenhuma racionalização das relações entre o produtor e o consumidor. Seria ofensivo fechar a porta a um viajante, embora apareça fora do chamado "horário comercial" (mas que é este?). A oficina adapta-se a essas circunstâncias.
Num nível rudimentar de comercialização, o artista-comerciante carrega a loja aos ombros. É ambulante, produtor e comerciante. Leva toda a produção num saco (vejam-se as "trouxas de bordados" nos cais de desembarque de turistas); mais tarde, em sua carrinha.
A produção, a venda, o emprego da mão-de-obra artesanal, estão condicionados a factores extrínsecos à economia do artesanato, à safra agrícola, às feiras e mercados, às romarias, às chegadas de turistas. As grandes oficinas podem produzir e armazenar; as menores ficam à mercê dos comerciantes, dos que dispõem de capital para comprar e armazenar.
No primitivismo do sistema tornam-se possíveis todas as explorações. Espanta a variabilidade dos preços por vezes solicitados; perguntados como os calculam os artífices, mesmo em sectores já mais evoluídos, respondem frequentemente de uma forma vaga. Muitos não têm a menor ideia de cálculos de custos, não surpreendem os resultados negativos na sua arte.
A "encomenda" é já uma forma singular de transição do mercado local para a venda mais ampla. É um tipo bastante generalizado de produção e de comércio, que pressupõe ainda todas as condições da economia tradicional, mas que prepara o artesanato para um nível mais adiantado de comercialização.
A grande maioria dos artesãos em sectores já mais evoluídos trabalha por "encomenda". A fama do produto espalha-se, firma-se o nome do artífice, começam a chegar os pedidos. Esse tipo de contrato verbal, regido exclusivamente pelos usos costumeiros, exige um tipo de relação pessoal que se baseia na confiança mútua e, um pouco também, no brio profissional do artífice.
A "encomenda" permite ao artesão escapar um pouco às flutuações e aos azares do mercado. Quem trabalha de encomenda pode produzir pouco, mas não corre o risco de ter capital empatado em stocks imobilizados. E, principalmente, tem a garantia da saída regular do seu produto, da remuneração certa do trabalho.
Por esta forma de comercialização, o artífice obtém, por vezes, igualmente o adiantamento do que necessita para adquirir matéria-prima ou ferramentas e conseguir sua subsistência. É, no fundo, um empréstimo disfarçado, cujo interesse está camuflado no preço total da mercadoria.
A concessão oficial de empréstimos poderia ser meio de ajudar a racionalização da produção e lograr disciplina na confusa contabilidade das oficinas. Os artífices que a eles recorreriam ver-se-iam obrigados à determinação e, porventura, revisão dos custos, à fixação de prioridades nos investimentos. Ganhariam qualidades de previsão, de administração e, inclusive, aprenderiam regras de amortização, poupança e investimento.
Mas não é fácil, por vezes, conceder empréstimos, apesar da "fome de dinheiro" nessas economias subdesenvolvidas. Há um preconceito generalizado contra

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o empréstimo; quando se pergunta a certos artífices se já algum contraíram, protestam como se fora tentação demoníaca. Na perspectiva da economia tradicional, onde há sempre uma relação pessoal do tipo primário, directa, mesmo nos contratos aparentemente mais impessoais, tomar dinheiro envolve um cerimonial de obrigações que exige conhecimento mútuo entre quem toma e quem empresta, mesmo por interpostas pessoas. Não admira, assim, que muitos artífices ignorem e continuem a esquivar-se ao empréstimo, por confundi-lo com uma hipoteca que viria onerar seus bens.
Uma outra dificuldade na organização do artesanato é a falta de padronização, de normalização. As grandes oficinas já conseguem certa uniformidade do produto e atendem a compradores de fora, que buscam grandes quantidades. Essa uniformidade não é alcançada por pequenos fabricantes, que fazem peças de todos os tipos e tamanhos - é a maneira como enfrentam e se defendem da concorrência. É igualmente deficiência, que em parte importa superar através da integração de circuitos comerciais, nomeadamente para formas mais evoluídas da produção de artesanato.
A racionalização da produção, dos produtos, da sua fabricação e comércio só lentamente penetra no artesanato, mas não creio que possa conduzir muito longe se não vierem a ser estudados e revistos tais aspectos.
O artesanato, do ponto de vista económico, significa o suprimento de certas lacunas não preenchidas pela indústria, pela "grande indústria", e por esse facto se explica a sua existência, mesmo entre civilizações altamente desenvolvidas.
Recurso para aumento de rendimento, forma de absorção de mão-de-obra na precariedade das estruturas económicas ou na valorização individualizada de produtos de qualidade, o artesanato apresenta-se, numa visão social, como um conjunto de aptidões que podem vir a concluir na formação de um operariado técnico para uma industrialização mais avançada e na preparação de gerentes e directores de pequenas e médias empresas, que podem constituir a vanguarda de um desenvolvimento industrial. Também, por esse lado, importa ao crescimento económico e à promoção social do ultramar.
Para desenvolver o artesanato são necessários técnicos e técnicas, instrutores profissionais que possam desenhar produtos de bom gosto, de acordo com os materiais e padrões locais. Muitos objectos feitos à mão ou com forte incorporação de trabalho - riqueza que aí existe - começam a ter procura e poderão um dia ser vendidos em Nova Iorque e Londres, Paris ou Berlim, noutras cidades e países.
O que interessa é fomentar o que possa ter maiores possibilidades de desenvolvimento, de viabilidade comercial (nomeadamente objectos de arte, de luxo mesmo, recordações ou souvernirs, etc.), o que pressupõe prospecção.
Do mesmo modo não dispensa uma aprendizagem, habilitação profissional e técnica, não realizada de maneira empírica, assistemática, de que só pode resultar abaixamento do gosto artístico e da qualidade do produto. Antes, pela reestruturação do ensino e sua organização, se poderá alcançar a criação de oportunidade de emprego para mão-de-obra subempregada e economizar um factor escasso em todas as economias em vias de desenvolvimento: o capital, possibilitando melhores níveis de rendimento, concorrendo para o equilíbrio da balança comercial, preparando mão-de-obra qualificada para o futuro desenvolvimento industrial.
Sr. Presidente: Um último ponto, entre dezenas de outros possíveis, quereria abordar, e esse respeita precisamente à promoção e segurança sociais, à Previdência.
O artesão abraça o ofício, muitas vezes com um mal menor: porque não existe muito outra coisa, por o horizonte de possibilidades de encontrar emprego ou trabalho remunerador ser restrito, segue-se o ofício, a "arte". Quantas vocações e bons profissionais não serão assim sacrificados à falta de recursos, de oportunidades na vida e de escolaridade não facilitadas ou favorecidas nos tempos de juventude?
Não admira, pois, que mais tarde, já no exercício da sua actividade profissional, as dificuldades que encontra, a precariedade das remunerações, a instabilidade da vida, lhe confiram frequentemente um sentido de desencanto: "Só não deixo esta arte porque não conheço outra." E porque se trata frequentemente de uma ocupação aleatória, instável, incerta, sobretudo se tradicional, raro é o artesão que deseja para os seus filhos a mesma arte. "Deus os livre de trabalhar nisso."
Existem, evidentemente, excepções: "Nós gostamos dessa arte porque se come e bebe dela." Mas mesmo no caso destas atitudes, mais resignadas que concordantes, por adesão própria, pessoal: "Não tenho outro meio de ganhar a vida, por isso tenho de estar satisfeito com este trabalho", por vezes persiste no íntimo a aspiração: "Queria que os meus filhos tivessem outra carreira; se eu me capitalizasse levá-los-ia para outro meio." Apesar de tudo, pode o artesanato ser forma de capitalização e promoção social, pode importar do desenvolvimento do ultramar.
Nas formas de organização tradicional, porém, o tipo de estrutura predominante bloqueia a ascensão do artífice, a sua melhoria profissional e social, dificulta a maturidade e estabilidade como categoria profissional; a estrutura fechada gera frequentemente pessimismo, a frustração, o desânimo. Pode alastrar, assim, um pessimismo difuso que atinja não só as possibilidades de inovação e renovação artesanal, mas se propaga a quase todos os valores da vida. A abertura, ainda que nocturna, de escolas ou cursos profissionais para esses artífices é melhoria das perspectivas de formação e promoção sociais.
Não deve fechar-se por mais tempo os olhos a outras preocupações que angustiam os artífices. Entre elas sobressaem, por exemplo, as inseguranças quanto à doença e velhice: "Se eu ficasse doente..."; "Quando eu for velho..."
E o teor das missivas que nestes últimos tempos têm chegado a V. Exa. Sr. Presidente, é bem o sentimento de uma expressão que começa a generalizar-se entre os empresários artesanais e de mais trabalhadores por conta própria, e importa acolher, acarinhar em suas aspirações.
Ao procurar uma solução para estes problemas, os artesãos acabam por voltar-se para os Poderes Públicos de que, por outro lado, tanto descrêem (se até os médicos já fizeram chegar a sua voz, voz de profissionais, quantas vezes liberais no exercício da profissão...).

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Mas voltemos aos artífices. Não se lhes lembra ou ocorre uma organização própria, uma sociedade beneficente. No seu património cultural não existe essa tradição. Na sociedade rural tradicional, as relações pessoais, as relações de dependência, "as obrigações", o compadrio, fazem as vezes das sociedades de auxílio mútuo e de beneficência em outros meios. Era uma solidariedade informal que não resultava na criação de uma associação ou outra entidade própria; mas que funcionava na prestação de auxílio por ocasião de morte ou acidente no âmbito da família alargada, do próprio grupo profissional - generalização ou prolongamento da solidariedade entre vizinhos, no âmbito já das "comunidades da profissão". Mas desaparecidas as antigas corporações de ofícios, verdadeiramente nada as substitui em termos de previdência organizada. Esperemos que, no decurso do próximo Plano de Fomento, os seus profissionais possam encontrar a devida cobertura previdencial.
É tempo de terminar.
Não apresentaremos desta vez conclusões, muito menos um circunstanciado plano de acção para o desenvolvimento do artesanato no ultramar, a ter que ver com o seu turismo interno e externo.
Afigura-se-me que os aspectos e problemática nesta matéria estão ainda insuficientemente conhecidos - para além de alguns meritórios esforços de investigação e promoção artesanal, antes precisam de ser estudados mais e melhor e integrados numa visão de conjuntos e de desenvolvimento sócio-económico das províncias de além-mar. Neste sentido procurámos chamar a atenção para eles.
É contributo modesto, mas o turismo vive de toda uma multidão de pequenos contributos, por mais modestos que se afigurem. Vive sobretudo de um quadro de vida e de relações económicas e sociais, humanas, paisagísticas, que bem importa para o seu desabrochar e pleno evoluir.
Não bastam por muito "sensacionais" que sejam - e de facto o são - 5000 km de praias de Portugal. É muito, mas não é tudo. É importante, mas não basta, para a atracção e retenção dos turistas, para o seu encantamento, fixação e propaganda. Todas as componentes não serão de mais para a devida valorização e rentabilidade de conjunto, e aí se insere precisamente o artesanato que vos quis trazer, Sr. Deputado avisante.
Aguardemos que para o seu estudo, conhecimento e promoção possam contribuir, entre outros, os centros de informação e turismo das províncias de além--mar, cuja orgânica muito recentemente, já nesta segunda metade do mês, foi aprovada e acaba de vir à luz no Diário do Governo. Que das suas páginas saia para a vida a estudar, investigar, promover, incentivar também nesta matéria, é o voto que humildemente acrescento ao que outros oradores aqui trouxeram.
E por que tem cabimento entre as formas de cultura popular, fonte de turismo, que os artigos 1.°, 4.° e 23.° do Decreto-Lei n.° 108/73, de 16 de Março, nomeadamente contemplam, aí o deixo. Ficam em boas mãos, porque ficam em mãos próprias, especificas.
Tenho dito!

Vozes: - Muito bem!

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados: Vou encerrar a sessão.
A próxima sessão será amanhã, à hora regimental, tendo como ordem do dia a continuação do debate sobre este aviso prévio.
Está encerrada a sessão.

Eram 18 horas e 15 minutos.

Srs. Deputados que entraram durante a sessão:
António de Sousa Vadre Castelino e Alvim.
Duarte Pinto de Carvalho Freitas do Amaral.
Francisco João Caetano de Sousa Brás Gomes.
João António Teixeira Canedo.
José Coelho Jordão.
José da Costa Oliveira.
José João Gonçalves de Proença.
José da Silva.
José Vicente Pizarro Xavier Montalvão Machado.
Júlio Dias das Neves.
Luís António de Oliveira Ramos.
Manuel Joaquim Montanha Pinto.
Manuel José Archer Homem de Mello.
D. Maria Raquel Ribeiro.
Maximiliano Isidoro Pio Fernandes.
Nicolau Martins Nunes.
Raul da Silva e Cunha Araújo.
Rogério Noel Peres Claro.
Ulisses Cruz de Aguiar Cortês.
Victor Manuel Pires de Aguiar e Silva.

Srs. Deputados que faltaram à sessão:

Alberto Marciano Gorjão Franco Nogueira.
Alexandre José Linhares Furtado.
Amílcar Pereira de Magalhães.
António Bebiano Correia Henriques Carreira.
Armando Valfredo Pires.
Augusto Domingues Correia.
Augusto Salazar Leite.
Camilo António de Almeida Gama Lemos de Mendonça.
Deodato Chaves de Magalhães Sousa.
Fernando de Sá Viana Rebelo.
Francisco José Pereira Pinto Balsemão.
Henrique José Nogueira Rodrigues.
Henrique dos Santos Tenreiro.
João Bosco Soares Mota Amaral.
João Ruiz de Almeida Garrett.
Joaquim Jorge Magalhães Saraiva da Mota.
José Coelho de Almeida Cotta.
José Dias de Araújo Correia.
José Gabriel Mendonça Correia da Cunha.
José dos Santos Bessa.
Júlio Alberto da Costa Evangelista.
Luís Maria Teixeira Pinto.
Manuel Marques da Silva Soares.
Manuel Monteiro Ribeiro Veíoso.
Manuel Valente Sanches.
Rui Pontífice Sousa.
Teodoro de Sousa Pedro.
Tomás Duarte da Câmara Oliveira Dias.
Vasco Maria de Pereira Pinto Costa Ramos.

Página 4880

IMPRENSA NACIONAL - CASA DA MOEDA PREÇO DESTE NÚMERO 9$60

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