Página 2083
Sábado, 8 de Abril de 1995 I Série-Número 63
VI LEGISLATURA 4.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1994-1995)
REUNIÃO PLENÁRIA DE 7 DE ABRIL DE 1995
Presidente: Exmo. Sr. António Moreira Barbosa de Melo
Secretários: Exmos. Srs.
João Domingos Fernandes de Abreu Salgado
Vítor Manuel Caio Roque
Belarmino Henriques Correia
SUMÁRIO
O Sr Presidente declarou aberta a sessão às 10 horas e 35 minutos. Deu-se conta da entrada na Mesa de diversos diplomas Ao abrigo do artigo 76 º, n.º 2, do Regimento procedeu-se a um debate sobre a Cimeira Mundial sobre o Desenvolvimento Social, o Forum Global das Organizações Não Governamentais realizado em Copenhaga, em Março p p, e a Conferência da Agenda para a Paz (ONU) Intervieram, além do Sr. Presidente, os Srs. Deputados Teresa Santa Clara Gomes (PS), João Amaral (PCP), Heloísa Apolónia (Os Verdes), Adriano Moreira (CDS-PP), Margarida Silva Pereira (PSD), Marques da Cova (PS), Manuel Sérgio (Indep.) e António Maria Pereira (PSD). O Sr Presidente encerrou a sessão eram 13 horas e 15 minutos.
Página 2084
2084 I SÉRIE-NÚMERO 62
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, temos quórum, pelo que declaro aberta a sessão.
Eram 10 horas e 35 minutos.
Estavam presentes os seguintes Srs. Deputados:
Partido Social-Democrata (PSD):
Adão José Fonseca Silva.
Adérito Manuel Soares Campos.
Adriano da Silva Pinto.
Alberto Cerqueira de Oliveira.
Alberto Monteiro de Araújo.
Alípio Barrosa Pereira Dias.
Álvaro José Martins Viegas.
Álvaro Roque de Pinho Bissaia Barreto.
Américo de Sequeira.
Anabela Honório Matias.
António Augusto Fidalgo.
António Costa de Albuquerque de Sousa Lara.
António da Silva Bacelar.
António de Carvalho Martins.
António Esteves Morgado.
António Germano Fernandes de Sá e Abreu.
António Joaquim Bastos Marques Mendes.
António Joaquim Correia Vairinhos.
António José Caeiro da Motta Veiga.
António Manuel Fernandes Alves.
António Maria Pereira.
António Moreira Barbosa de Melo.
António Paulo Martins Pereira Coelho.
Aristides Alves do Nascimento Teixeira.
Armando de Carvalho Guerreiro da Cunha.
Arménio dos Santos.
Belarmino Henriques Correia.
Carlos Alberto Lopes Pereira.
Carlos Filipe Pereira de Oliveira.
Carlos Lélis da Câmara Gonçalves.
Carlos Manuel de Oliveira da Silva.
Carlos Manuel Duarte de Oliveira.
Carlos Manuel Marta Gonçalves.
Cecília Pita Catarino.
Delmar Ramiro Palas.
Duarte Rogério Matos Ventura Pacheco.
Eduardo Alfredo de Carvalho Pereira da Silva.
Ema Mana Pereira Leite Lóia Paulista.
Fernando dos Reis Condesso.
Fernando José Antunes Gomes Pereira.
Fernando Manuel Alves Cardoso Ferreira.
Fernando Monteiro do Amaral.
Fernando Santos Pereira.
Filipe Manuel da Silva Abreu.
Francisco Antunes da Silva.
Guido Orlando de Freitas Rodrigues.
Guilherme Henrique Valente Rodrigues da Silva.
Hilário Torres Azevedo Marques.
Jaime Gomes Milhomens.
João Alberto Granja dos Santos Silva.
João Carlos Barreiras Duarte.
João do Lago de Vasconcelos Mota.
João Domingos Fernandes de Abreu Salgado.
João José da Silva Maçãs.
João José Pedreira de Matos.
Joaquim Cardoso Martins.
Joaquim Eduardo Gomes.
Joaquim Fernando Nogueira.
Joaquim Maria Fernandes Marques.
Joaquim Vilela de Araújo.
Jorge Avelino Braga de Macedo.
Jorge Paulo de Seabra Roque da Cunha.
José Alberto Puig dos Santos Costa.
José Augusto Santos da Silva Marques.
José de Almeida Cesário.
José Fortunato Freitas Costa Leite.
José Guilherme Pereira Coelho dos Reis.
José Guilherme Reis Leite.
José Júlio Carvalho Ribeiro.
José Leite Machado.
José Luís Campos Vieira de Castro.
José Manuel Alvares da Costa e Oliveira.
José Manuel Borregana Meireles.
José Manuel da Silva Costa.
José Manuel Nunes Liberato.
José Mário de Lemos Damião.
José Mendes Bota.
Luís António Carrilho da Cunha.
Luís António Martins.
Luís Carlos David Nobre.
Luís Filipe Garrido Pais de Sousa.
Luís Manuel Costa Geraldes.
Manuel Albino Casimiro de Almeida.
Manuel de Lima Amorim.
Manuel Estácio Marques Florido.
Manuel Filipe Correia de Jesus.
Manuel Joaquim Baptista Cardoso.
Manuel Maria Moreira.
Manuel Simões Rodrigues Marques.
Maria da Conceição Figueira Rodrigues.
Maria da Conceição Ulrich de Castro Pereira.
Maria Helena Falcão Ramos Ferreira.
Maria José Paulo Caixeiro Barbosa Correia.
Maria Luísa Lourenço Ferreira.
Maria Margarida da Costa e Silva Pereira Taveira de Sousa.
Marília Dulce Coelho Pires Morgado Raimundo.
Mário Jorge Belo Maciel Melchior Ribeiro Pereira Moreira.
Miguel Bento Martins da Costa de Macedo e Silva.
Miguel Fernando Cassola de Miranda Relvas.
Nuno Francisco Fernandes Delerue Alvim de Matos.
Olinto Henrique da Cruz Ravara.
Pedro Augusto Cunha Pinto.
Pedro Domingos de Souza e Holstein Campilho.
Pedro Manuel Cruz Roseta.
Pedro Manuel Mamede Passos Coelho.
Rui Alberto Limpo Salvada.
Rui Carlos Alvarez Carp.
Rui Fernando da Silva Rio.
Rui Manuel Lobo Gomes da Silva.
Rui Manuel Parente Chancerelle de Machete.
Simão José Ricon Peres.
Vasco Francisco Aguiar Miguel.
Virgílio de Oliveira Carneiro.
Vítor Manuel da Igreja Raposo.
Vítor Pereira Crespo.
Partido Socialista (PS):
Alberto da Silva Cardoso.
Alberto de Sousa Martins.
Alberto Manuel Avelino.
Alberto Marques de Oliveira e Silva.
Página 2085
8 DE ABRIL DE 1995 2085
Ana Maria Dias Bettencourt.
Aníbal Coelho da Costa.
António Alves Marques Júnior.
António Alves Martinho.
António de Almeida Santos.
António Fernandes da Silva Braga.
António José Borrani Crisóstomo Teixeira.
António Luís Santos da Costa.
Carlos Manuel Luís.
Carlos Manuel Natividade da Costa Candal.
Eduardo Ribeiro Pereira.
Elisa Maria Ramos Damião.
Eurico José Palheiros de Carvalho Figueiredo.
Fernando Alberto Pereira de Sousa.
Fernando Alberto Pereira Marques.
Fernando Manuel Lúcio Marques da Costa.
Guilherme Valdemar Pereira d'Oliveira Martins.
Gustavo Rodrigues Pimenta.
Jaime José Matos da Gama.
João Eduardo Coelho Ferraz de Abreu.
João Rui Gaspar de Almeida.
Joaquim Américo Fialho Anastácio.
Joaquim Dias da Silva Pinto.
Joel Eduardo Neves Hasse Ferreira.
Jorge Lacão Costa.
Jorge Paulo Sacadura Almeida Coelho.
José Alberto Rebelo dos Reis Lamego.
José António Martins Goulart.
José Eduardo dos Reis.
José Ernesto Figueira dos Reis.
José Manuel Oliveira Gameiro dos Santos.
José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa.
Júlio da Piedade Nunes Henriques.
Laurentino José Monteiro Castro Dias.
Leonor Coutinho Pereira dos Santos.
Luís Filipe Marques Amado.
Luís Manuel Capoulas Santos.
Manuel António dos Santos.
Maria Julieta Ferreira Baptista Sampaio.
Mana Teresa Dona Santa Clara Gomes.
Nuno Augusto Dias Filipe.
Raúl d'Assunção Pimenta Rêgo.
Rosa Maria da Silva Bastos da Horta Albernaz.
Rui António Ferreira da Cunha.
Rui do Nascimento Rabaça Vieira.
Vítor Manuel Caio Roque.
Partido Comunista Português (PCP):
Alexandrino Augusto Saldanha.
António Filipe Gaião Rodrigues.
António Manuel dos Santos Murteira.
João António Gonçalves do Amaral.
José Manuel Maia Nunes de Almeida.
Luís Carlos Martins Peixoto.
Luís Manuel da Silva Viana de Sá.
Miguel Urbano Tavares Rodrigues.
Paulo Manuel da Silva Gonçalves Rodrigues.
Partido do Centro Democrático Social - Partido Popular (CDS-PP):
Adriano José Alves Moreira.
Narana Sinai Coissoró.
Rui Manuel Pereira Marques.
Partido Ecologista Os Verdes (PEV):
Heloísa Augusta Baião de Brito Apolónia.
Deputados independentes:
Raúl Fernandes de Morais e Castro.
Manuel Sérgio Vieira e Cunha.
O Sr. Presidente: - Srs Deputados, o Sr. Secretário vai dar conta dos diplomas que deram entrada na Mesa.
O Sr. Secretário (João Salgado)- - Sr. Presidente e Srs. Deputados, deram entrada na Mesa, e foram admitidos, os seguintes diplomas: proposta de lei n.º 127/VI - Autoriza o Governo a rever o Código de Processo Penal; projectos de lei n.ºs 53 I/VI - Confere a todos os cidadãos a legitimidade para recorrer contenciosamente de actos administrativos lesivos de interesses públicos, 532/VI - Atribui à Assembleia da República a competência para a aprovação das grandes opções da política de segurança interna, 533/VI - Define as grandes opções da política de segurança interna e adopta medidas imediatas para defesa da segurança dos cidadãos, 534/VI - Sobre protecção dos consumidores em contratos submetidos a normas de direito público, tendo todos baixado à 1.ª Comissão, 535/VI - Cria uma providência cautelar, de forma a efectivar o direito à indemnização por danos provocados pela actividade do Estado, designadamente por actos dos serviços hospitalares, que baixou às 1.º e 8.ª Comissões, 536/VI - Elevação da freguesia de Serzedelo, no concelho de Guimarães, à categoria de vila, que baixou à 5.ª Comissão, todos da iniciativa do PCP; ratificações n.º 138/VI - Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, que aprova o Código Penal (PS), 139/VI - Decreto-Lei n.º 54/95, de 22 de Março, que aprova o regulamento da contribuição especial, devida pela valorização de imóveis decorrente da realização da Expo'98 (PCP), e 140/VI - Decreto-Lei n.º 55/95, de 29 de Março, que transpõe para a ordem jurídica interna as Directivas n.ºs 92/50/CEE, do Conselho de 18 de Junho de 1992, e 93/86/CEE, do Conselho de 14 de Junho de 1993, e estabelece o regime de realização de despesas públicas com empreitadas de obras e aquisição de serviços e bens, bem como a contratação pública relativa à prestação de serviços, locação e aquisição de bens móveis (PS)
Srs. Deputados, informo ainda que hoje reúne, às 10 horas, a Comissão de Economia, Finanças e Plano.
O Sr. Rui Carp (PSD). - Sr. Presidente, peço a palavra para interpelar a Mesa.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra, Sr. Deputado.
O Sr. Rui Carp (PSD): - Sr. Presidente, como está a decorrer uma reunião da direcção da minha bancada, peço uma suspensão dos trabalhos por 30 minutos.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, o artigo 70.º do Regimento faculta-lhe essa possibilidade, pelo que, nos termos regimentais, declaro suspensa a reunião.
Eram 10 horas e 40 minutos
O Sr. Presidente: - Srs Deputados, está reaberta a sessão.
Eram 11 horas e 15 minutos.
O Sr. Crisóstomo Teixeira (PS): - Sr. Presidente, peço a palavra para interpelar a Mesa.
Página 2086
2086 I SÉRIE-NÚMERO 63
O Sr Presidente: - Tem a palavra, Sr Deputado
O Sr Crisóstomo Teixeira (PS): - Sr Presidente, como Deputado da Assembleia da República, creio que o bom nome e a dignidade dos Deputados passam pelo facto de estes não serem forçados pelas instituições partidárias a que estão vinculados a agir contra a sua consciência.
Nesse sentido, gostaria de expressar aqui o meu pesar por, durante quase um ano os Srs Deputados do PSD que trazem parte da Comissão de Administração do Território, Equipamento Social, Poder Local e Ambiente terem sido forçados a repudiar a abolição das portagens no troço de Alverca até Lisboa.
Também quero chamar a atenção para o enxovalho a que foi submetido o Sr. Deputado António Guterres, Secretário-Geral do PS, quando, defendendo essa posição em Outubro de 1994, o Sr Ministro Ferreira do Amaral o apelou de «irresponsável».
A boa educação não se exige, mas julgo que a alteração de posição agora assumida pelo Governo relativamente a esta questão aconselha a que, efectivamente, seja apresentado um pedido de desculpas.
Aplausos do PS
O Sr Presidente: - Sr Deputado, a Mesa não tem nada a ver com a interpelação que lhe foi impropriamente dirigida.
Srs Deputados, a nossa ordem do dia de hoje respeita ao debate sobre a Cimeira Mundial sobre Desenvolvimento Social, o Forum das ONG, realizado em Copenhaga, em Março p p, e a Conferência da Agenda para a Paz (ONU), nos termos do artigo 76 º, n º 2, do Regimento da Assembleia da República.
A importância do tema vai resultar das intervenções que vão ser aqui produzidas De qualquer forma, à partida, creio que a Assembleia da República não pode ficar de fora da participação, da tomada de informação e do debate de temas tão relevantes como este.
Temos, pois, hoje, oportunidade para fazer aqui uma profunda reflexão sobre o desenvolvimento social A humanidade tem de repensar toda esta matéria, pelo que muito espero deste debate.
Srs Deputados, dando início ao debate, tem a palavra, para uma intervenção, a Sr.ª Deputada Teresa Santa Clara Gomes, que, aliás, esteve presente no Forum das ONG.
A Sr.ª Teresa Santa Clara Gomes (PS) - Sr Presidente, Sr. e Srs Deputados Paralela e simultaneamente à Cimeira Mundial sobre Desenvolvimento Social, decorreu em Copenhaga o Fórum Global das Organizações Não Governamentais envolvidas em acções relacionadas com o desenvolvimento.
A convite de uma task force internacional de mulheres, tive o privilégio de participar nesse acontecimento.
O ter sido interveniente e testemunha pessoal do que ali se viveu leva-me a cumprimentar, com redobrada razão, o Sr Presidente da Assembleia da República pela iniciativa deste debate.
Os resultados oficiais da Cimeira são conhecidos Dez compromissos assumidos pelos líderes políticos de 187 países e cinco capítulos de um programa de acção que desenvolve as questões centrais da conferência a irradicação da pobreza, a redução do desemprego e a integração social.
A novidade destes documentos pode resumir-se em poucas palavras Pela primeira vez, no contexto multilateral deliberativo, a pessoa humana - as pessoas - foi inequivocamente colocada no centro de todo o processo de desenvolvimento People first foi um slogan insistentemente repetido.
Também pela primeira vez, o conceito de desenvolvimento social foi claramente identificado e assumido nos seus objectivos próprios, as políticas sociais.
Outros Deputados falarão certamente das esperanças e desilusões que a Cimeira suscitou, dos consensos conseguidos e das tentativas de entendimento frustradas, dos instrumentos e mecanismos que, a nível nacional e internacional, terão de ser instaurados para exigir, mesmo a níveis mínimos, a implementação das decisões tomadas.
Pela minha parte, como testemunha vivencial da Conferência, escolhi trazer aqui algumas reflexões pessoais sobre uma das suas dimensões que considero mais significativa: a da interacção entre os representantes dos Estados e os da sociedade civil, isto é, entre a Cimeira e o Fórum Global das ONG Procurarei fazê-lo numa tríplice perspectiva, a do significado crescente atribuído pelos responsáveis políticos mundiais à parceria Estado/sociedade civil e à acção desenvolvida pelas Organizações Não Governamentais no âmbito do desenvolvimento, a da conquista progressiva de um espaço e de uma voz, por parle dos mais variados sectores da sociedade civil presentes na Cimeira e no Forum; e a da presença e influência preponderante dos movimentos de mulheres no conjunto das tomadas de decisão que se processaram ao longo de toda a Conferência.
Como é óbvio, não fiz uma verificação sistemática dos discursos e intervenções produzidos na Conferência Mas a informação que, ao longo dos dias, tem acumulando deixou-me uma certeza é hoje comum, tanto por parte das organizações internacionais intergovernamentais como por parte dos governos tomados isoladamente, o reconhecimento de que nenhuma política de desenvolvimento social será viável e muito menos eficaz sem a participação de todos aqueles a quem essas políticas se destinam Ou seja sem que os governos e os actores sociais se dêem as mãos na procura de soluções inovadoras para os problemas globais com que a Humanidade hoje se confronta.
Para o Secretário-Geral da ONU, essa chamada à participação passa por «um novo contrato social, à escala do planeta, capaz de oferecer aos Estados e às Nações, aos homens e às mulheres do mundo inteiro, razões concretas de esperança».
Para o Vice-Presidente dos Estados Unidos, trata-se de «criar uma relação mais vital entre os governos e os povos» e de estabelecer «uma nova parceria» com as ONG, de modo a que sejam elas a canalizar grande parte - no caso dos Estados Unidos, 40 % - da ajuda social ao desenvolvimento.
Por sua vez, Carlos Veiga, Primeiro-Ministro de Cabo Verde, apela à expansão e consolidação da sociedade civil, nos seguintes termos «nestes tempos de globalização, em que aos governos tantas vezes falta vontade ou poder, é factor de confiança e encorajamento que a sociedade - afinal a fonte de soberania - expanda e consolide a sua participação e a sua exigência de bem-estar e progresso social».
É esta, pois, Srs Deputados, a nova realidade Copenhaga tornou claro que as forças sociais estão, de facto, a «expandir e consolidar a sua participação» Se isso foi visível aos diferentes níveis dos trabalhos da Cimeira, foi-o particularmente no Fórum Global das Organizações Não Governamentais.
Página 2087
8 DE ABRIL DE 1995 2087
E o que é o Fórum? «É uma espécie de maxi-Congresso em que centenas de coisas se passam em simultâneo», explicava há poucos dias, na Gulbenkian, a representante de uma ONG portuguesa que integrou a delegação oficial. De facto, o Fórum foi, durante dez dias, uma imensa tribuna onde se fizeram ouvir as mais variadas vozes, quase todas de denúncia, tornando viva e próxima a situação de muitas das vítimas e excluídos de um modelo de desenvolvimento que só tem vindo a agravar as desigualdades existentes.
Mais de 600 ONG subscreveram, no final dos trabalhos, uma «Declaração Alternativa», onde se faz a crítica dos documentos oficiais saídos da Cimeira. Contesta-set fundamentalmente, a contradição entre os princípios dó equidade e de justiça social professados e as consequências do modelo económico neo-liberal dominante e cada vez mais universalizado.
De entre essas consequências destacam-se: o peso insustentável da dívida de dezenas de países, que Os priva de recursos indispensáveis ao seu desenvolvimento económico e social; os condicionalismos impostos pelos programas de ajustamento estrutural, que subalternizam as políticas sociais, colocando os serviços de saúde e educação fora do alcance dos mais pobres; e a concentração crescente de poder económico, político e tecnológico nas corporações e instituições financeiras transnacionais, que regem o crescimento económico em prioridade absoluta, subordinando-lhe o bem-estar social.
A Declaração Alternativa não pretende ser um documento representativo de todas as Organizações Não Governamentais. Mas dá-nos, sem dúvida, o tom das posições assumidas pela maioria dos grupos representados no Fórum Das organizações religiosas às laborais, das representações regionais às plataformas nacionais, as ONG analisaram, em profundidade, as causas estruturais da pobreza, do desemprego e da exclusão, e manifestaram uma vontade comum de colaborar com as organizações multilaterais na procura de novos mecanismos de resposta. Exemplo disso foi o apoio por elas dado à proposta 20/20 (uma das mais polémicas do Programa de Acção), que visou estabelecer percentagens fixas para as políticas sociais, tanto nas verbas destinadas pelos países ricos à ajuda ao desenvolvimento como nos orçamentos do Estado dos países receptores.
Sr. Presidente, Sr.ªs e Srs. Deputados: Fiz referência à diversidade dos sectores humanos presentes no Forum e, nesse contexto, não posso deixar de mencionar o papel preponderante, para não dizer dominante, das mulheres.
Para quem guarda ainda a imagem de que a voz das mulheres na cena internacional, aliás, como na cena nacional, é sobretudo uma voz reivindicativa da igualdade de oportunidades e de questões específicas relativas aos direitos reprodutivos das mulheres, a Conferência de Copenhaga foi, certamente, uma enorme surpresa.
Num crescendo difícil de prever - com início na Cimeira do Rio e tendo percorrido já os marcos da Conferência sobre Direitos Humanos, em Viena, e da Conferência sobre População e Desenvolvimento, no Cairo --, as organizações de mulheres foram, em Copenhaga, um dos lobbies mais visíveis e mais influentes.
Redefinir o emprego produtivo e o trabalho, transferir para as áreas sociais as verbas atribuídas a despesas militares e construir comunidades e não apenas mercados, foram algumas das propostas feitas em nome das organizações de mulheres, no dia 8 de Março, no plenário da Cimeira. Na tarde do mesmo dia, na grande Assembleia do Forum, essas propostas converteram-se em dança e em festa, enquanto, ao som dos ritmos mais diversos, se repetia a frase: «o século XXI será nosso; queremos pão e flores!»
A marcha para Pequim estava lançada: «180 dias - 180 vias» foi o desafio colocado a todas as presentes. Resta saber como essa marcha está a ser prosseguida em cada país e em cada região do mundo. Pela nossa parte, creio que deverá pensar-se, desde já, na participação de Deputadas desta Assembleia na Conferência e no Fórum de Beijing. Se lá não estivermos, faltaremos, com certeza, a um dos grandes rendez-vous da História neste final de século.
Sr. Presidente, Sr.ªs e Srs. Deputados: Sem querer terminar com uma nota de pessimismo, vem-me à memória, em jeito de remate, uma frase ouvida a um participante inglês num dos debates do Fórum, «alguns de nós viajamos na primeira classe; outros viajam no porão, mas estamos todos embarcados no mesmo Titanic».
Com efeito, a consciência crescente da globalização dos problemas torna-nos, a todos - povos do Norte e povos do Sul -, cúmplices na mesma luta pela sobrevivência da Humanidade, que parece apenas ser possível por caminhos de maior justiça na repartição dos bens que nos são comuns.
A denúncia desta situação e a afirmação conjunta, tanto por parte dos estados como da sociedade civil, da vontade de a ultrapassar constituem, sem dúvida, o principal adquirido da Cimeira de Copenhaga.
Cabe-nos agora exigir que os compromissos assumidos se concretizem e que as vontades solidárias se imponham «aos impasses sucessivamente provocados pela indiferença, pela burocracia e pela retórica vazias» (são as palavras da Primeira-Ministra Gro Bruntland).
No nosso país, teremos ocasião de aferir o impacto da Cimeira nas várias políticas nacionais quando nos confrontarmos com os programas dos partidos candidatos as próximas eleições e, sobretudo, quando aprovarmos, no final do ano, o próximo Orçamento do Estado. Da prioridade atribuída, ou não, ao elemento social na afectação de recursos dependerá a nossa fidelidade ou traição ao espírito de Copenhaga.
Aplausos gerais.
O Sr. Presidente: - Os meus cumprimentos, Sr.ª Deputada Teresa Santa Clara Gomes, pela excelência do seu relato e das suas reflexões.
Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado João Amaral.
O Sr. João Amaral (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Não temos qualquer dúvida em sublinhar a justeza e o importante significado da junção neste debate dos dois temas propostos: a Cimeira de Copenhaga e a Agenda para a Paz.
Juntar estes dois temas é dar sequência, aqui na Assembleia da República, ao que é hoje um património sólido das Nações Unidas: a consciência de que há uma ligação indissociável entre a problemática da paz e a problemática do desenvolvimento, por tal forma que «sem desenvolvimento, não há paz» ou, dito de outra forma, «a falta de desenvolvimento económico, social e político e a causa profunda dos conflitos». Citei dois passos das declarações subscritas por Boutros-Boutros Ghali.
Por isso, este debate conduz-nos, inevitavelmente, para uma reflexão global sobre a situação e o destino colecti-
Página 2088
2088 I SÉRIE-NÚMERO 62
vo da humanidade - uma espécie de debate sobre o estado do mundo. Um debate que faz falta fazer aqui com mais frequência, porque nele poderíamos confrontar a nossa visão do mundo e as nossas convicções filosóficas com a realidade concreta da humanidade, sem o refúgio do egoísmo grupai com que tratamos o quotidiano da nossa vida política de Nação.
Fazemos o balanço do século que estamos a terminar e das tremendas transformações e enormes desafios que o mundo sofreu, sem termos qualquer possibilidade de um juízo consensual. Está tudo excessivamente próximo, é o nosso tempo e o modo e o espaço onde o vivemos é diferente e, muitas vezes, conflitual.
Pode pedir-se a um ruandês, preso e amontoado numa cadeia de Kigali, com o décuplo da lotação admissível, que pense o mesmo do mundo que, por exemplo, o morador de um condomínio fechado, como os que se fazem hoje na cidade de Lisboa? E eu, apesar de tudo, fiz uma escala reduzida, porque podia comparar, por um lado, os bairros ricos de Hong-Kong ou da Califórnia e, por outro, as crianças subnutridas da Somália, da Etiópia ou de outros países africanos
Esse choque, perante desigualdades sem limite, não nos pode fazer esquecer a grandeza do movimento e do seu sentido, vividos ao longo do nosso século Movimento de afirmação política dos povos, de que a liquidação do colonialismo é o ponto mais representativo, movimento de progresso social, em que a construção do Estado providência, que é um orgulho do nosso século, dá o peso da realidade institucional, mas onde avulta também a importância conquistada para a dimensão social do homem, de que o Pacto Internacional dos Direitos Sociais e Económicos é uma expressão justa, movimento de afirmação de valores, onde avulta a derrota do projecto nazi-fascista e a afirmação da força inalienável das liberdades e dos direitos cívicos, movimento de admirável progresso científico e técnico jamais visto e tão longe da aplicação justa que bem devia ter
E, no entanto, tanta coisa mal à nossa volta! Tanta coisa por fazer! Tanta fragilidade em tudo o que chamamos conquistas da humanidade! Tantos projectos falhados e adiados!
A Agenda para a Paz foi elaborada num momento de grande e profunda crise, onde alguns quiseram ver o fim da história Isto foi só há quatro anos, Srs Deputados! Foi há quatro anos que esse texto encheu páginas de jornais, um produto típico de uma filosofia, que eu me permito chamar género Reader's Digest, e que hoje, seguramente, nos parece chocantemente indigno, uma despudorada tentativa de manipulação que a vida tratou de desmontar em dois tempos'
As Nações Unidas viveram essa crise profunda - que nos acompanha ainda neste momento- com o cândido optimismo que então se espalhou pelo mundo Na introdução da Agenda para a Paz, esse optimismo transparece e está dito «O antagonismo que caracteriza as décadas de guerra fria impediu a Organização de manter as suas promessas originais (...) A Cimeira do Conselho de Segurança, em Janeiro de 1992, ofereceu a oportunidade, até então inédita, de ver reafirmado, ao mais alto nível político, o compromisso de cada um dos Estados-membros com os fins e princípios enunciados na Carta Nos últimos meses (...) ganhou raízes a convicção de que existe nova oportunidade de se atingirem os grandes objectivos da Carta uma Organização das Nações Unidas capaz de manter a paz e a segurança internacionais, de fazer respeitar a justiça e os direitos humanos e ( ) de promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla» Estas eram as esperanças de Boutros Ghali em 1992.
Esta longa citação serve para duas coisas em primeiro lugar, para enquadrar o trabalho desenvolvido pela ONU nos últimos anos, com realce para as grandes cimeiras mundiais, a do Rio, a de Viena, a do Cairo, a de Copenhaga, a que outras se seguirão, como a que foi referida agora, que se vai realizar em Beijing sobre a mulher, e, em segundo lugar, para um confronto com outra citação, esta tirada da Agenda para o Desenvolvimento, subscrita também por Boutros Gali, em Junho de 1994, isto é, dois anos depois da anterior, que diz o seguinte «O conceito de desenvolvimento e décadas de esforços para reduzir a pobreza, o analfabetismo, a doença e as taxas de mortalidade são grandes realizações deste século Mas o desenvolvimento como causa comum está em perigo de desaparecer da lista dos nossos objectivos prioritários A competição pela influência, durante a guerra fria, incentivou o interesse pelo desenvolvimento Os motivos nem sempre foram altruístas, mas os países que procuravam desenvolver-se podiam beneficiar desse interesse das grandes potências Hoje, a competição para levar o desenvolvimento aos países mais pobres acabou Muitos dadores cansaram-se dessa tarefa Muitos dos países pobres estão à beira do desespero O desenvolvimento está em crise os países mais pobres cada vez ficam mais para trás»
Estas eram as amargas palavras de Boutros Ghali, dois anos depois da Agenda para a Paz Amargas palavras para uma amarga realidade, que mostram um mundo mais injusto, retratado com crueza nos documentos preparatórios da Cimeira de Copenhaga.
Os números aí estão, e vou citar só alguns, porque vale a pena que fiquem registados no Diário da Assembleia É terrível que 20 % da humanidade - mais de mil milhões de seres humanos -, nossos companheiros nesta viagem, nesta barca, que se chama o planeta Terra, vivam com menos de um dólar por dia, sem água corrente, analfabetos e sem sistema de saúde assegurado É 100 vezes a população de Portugal' São 100 países como Portugal!
E terrível que o desemprego mundial atinja a impressionante soma de 30 % da população activa e que o fosso entre os países ricos e os pobres se alargue Os 20 % da população mais rica- estes são os números que foram fornecidos à Conferência - detinha, em 1960, 70 % da riqueza mundial, mas, em 1991, tinha 85 %, os 20 países mais pobres tinham, em 1960, 2,3 % do rendimento mundial e, em 1991, esse rendimento desceu para 1,4%.
Sr Presidente, Srs Deputados Sobre a Cimeira de Copenhaga pode dizer-se, com rigor, uma coisa que é contraditória, isto é, que ela cumpriu os seus objectivos e que, simultaneamente, ficou muito aquém das expectativas.
Quando refiro aqui expectativas, quero esclarecer que não me refiro a uma expectativa que a Cimeira nunca pode ter criado, a de que ela desse uma contribuição decisiva e determinante para o lançamento de um processo de desenvolvimento social, de erradicação definitiva da miséria e do alfabetismo e para a construção de uma economia para o emprego e para o bem-estar Essa expectativa, se fosse reportada à Cimeira, como ela se realizou, seria uma ilusão, e as ilusões são perigosas e desmobilizadoras.
O que o decurso dos anos mostrou, e estes últimos anos de forma exemplar, é que não há solução para esses problemas da humanidade que não passe pelo combate às suas causas
Página 2089
8 DE ABRIL DE 1995 2089
É possível o desenvolvimento dos países mais atrasados no quadro da liberalização selvagem do comércio mundial, que tem permitido a degradação sucessiva dos preços das matérias primas e produtos produzidos por esses países? Há muitos países desses que aumentam todos os anos significativamente a sua produção e, no entanto, o seu PIB todos os anos desce.
É possível o desenvolvimento desses países com o garrote da dívida externa? Há países desses que, mesmo assim, exportam para os países mais desenvolvidos percentagens significativas do seu produto interno bruto, que chega a atingir 6 %. São 6 % do produto interno bruto de um pobre país exportado directamente para os cofres dos países mais ricos. É possível o desenvolvimento desses países quando não há transferência de tecnologia, quando o valor acrescentado por investigação se concentra nos países ricos, quando há a apropriação por estes países dos escassos cientistas e investigadores, que vão aparecendo nos países pobres, a famosa «fuga de cérebros»?
Vozes do PCP: - Muito bem!
O Orador: - Que capacidade tem o sistema sócio-económico dominante para dar solução aos problemas com que se confronta o mundo, quando os países 0m que pontifica - dizem que «com sucesso» - o saldo apresentado é o de legiões de desempregados e pobres? Os 20 milhões de desempregados da Comunidade e o$ 50 milhões de pobres demonstram que a causa da situação em que vive o mundo está no próprio sistema sócio-económico que o domina, no capitalismo e na irracionalidade que lhe está subjacente.
Vozes do PCP: - Muito bem!
O Orador: - Como esquecer os 400 000 sem abrigo de Londres, os 500 000 de Paris? Quer-se maior irracionalidade? Dirão que não foi construída qualquer outra sociedade mais perfeita. Di-lo-ão, porque é verdade. Mas não podem é dizer que esta é uma sociedade justa nem que a humanidade esteja condenada à irracionalidade e à injustiça. Por isso, a luta milenária do homem pela refundação da sociedade continua e há-de continuar até à superação da injustiça e dos sistemas que, como o capitalismo e o liberalismo, as geram.
A Cimeira de Copenhaga cumpriu então plenamente essa função, de exibir a chaga perante o mundo inteiro. A ideia da Cimeira foi um reflexo desse movimento de consciência do mundo acerca da sua dilacerada condição, e a sua realização foi uma contribuição poderosa para o aprofundamento dessa consciência.
Os números da nossa crueldade correram as televisões de todo o mundo, sentaram-se à mesa dos Chefes de Estado e de Governo, pesaram na consciência de todos, mesmos os que, como Bill Clinton e Ieltsin, não responderam à chamada. A Cimeira de Copenhaga cumpriu ainda essa função quando proporcionou a realização da cimeira das organizações não governamentais - como a Sr.ª Deputada referiu -, que reuniu mais de 2000 organizações, que foram a consciência crítica permanente do que a cimeira fez e do que não fez.
Cumpriu, por esse lado, mas ficou aquém das expectativas, por outro. Exposta a chaga, muitos sentiram o direito de reclamar alguns remédios que, mesmo sem atingirem as causas, dessem contribuições concretas para a solução dos problemas. Mas a Cimeira, no documento aprovado pelos 185 países participantes, não ultrapassou os compromissos não quantificados e sem valor vinculativo. É certo - e não quero subestimar esta componente - que são compromissos importantes, que têm um valor político directo. Os políticos devem honrar os seus compromissos e os povos têm o direito de confrontar os seus representantes com os compromissos que assumiram durante a Conferência. Mas o facto de esses compromissos não terem sido quantificados é um péssimo sinal.
Os 0,7 % que os países desenvolvidos deveriam consignar à ajuda continuam a não passar de, como são designadas, «ideias generosas» - e não sei por que é que lhe chamam «ideias generosas» quando não as passam à prática. Os Estados Unidos, por exemplo, dão o valor que corresponde a menos de 1/20 desses 0,7 %, isto é, dão a ridícula percentagem de 0,03 %, que é qualquer coisa como três dólares em cada 10000- e, mesmo assim, a actual maioria do Congresso pensa que é uma dádiva excessiva.
A cobrança do imposto de 0,05 % sobre os movimentos especulativos financeiros e cambiais, proposta inicialmente pelo Prémio Nobel James Tobin, também «ficou no tinteiro», como ficaram as ideias da afectação das reduções dos gastos em armamento e da sua aplicação ao desenvolvimento. Os gastos em armamento somam, ainda hoje, o valor impressionante de 800 000 milhões de dólares - fiz as contas e este valor dá qualquer coisa como 100 000 milhões de contos -, o que somado deve corresponder ao PIB de muitos países. O que significa que a Agenda para o Desenvolvimento dá os primeiros passos sob a ameaça da falta de vontade política para a sua concretização, ou seja, sob a ameaça do mesmo fracasso que hoje recai pesadamente sobre a Agenda para a Paz.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: De facto os escassos anos da Agenda para a Paz e a experiência recente da intervenção da ONU na prevenção, manutenção e restabelecimento da paz mostram que, neste ponto, também é preciso mudar os conceitos políticos. A ONU tem sido arrastada pelas conveniências das grandes potências, em particular da dominante. É preciso dizê-lo: as intervenções na Somália, como na ex-Jugoslávia, fazem-se ao sabor de critérios mais do que duvidosos, com métodos mais do que questionáveis e, por isso, inevitavelmente, com resultados desastrosos.
Vozes do PCP: - Muito bem!
O Orador: - A defesa da paz e a promoção do desenvolvimento exigem uma reponderação do papel do hegemonismo no modelo de funcionamento dos sistemas de cooperação e segurança e, desde logo, no próprio funcionamento da ONU. Por exemplo, a ONU interveio na Somália, alegadamente por razões humanitárias, mas, ao mesmo tempo, manteve um bloqueio ao Iraque que atingiu não a sua máquina de guerra, porque esta é protegida, já que se situa numa zona onde há outras poderosas máquinas de guerra, como a turca, a síria e a iraniana, mas, sim, a sua população civil, incluindo crianças, mulheres e idosos.
Vozes do PCP: - Muito bem!
O Orador: - Por tudo isto, a reflexão sobre a situação do mundo e os caminhos para a superar têm de passar também por uma reflexão sobre o papel da ONU, a sua estrutura e o seu modelo de funcionamento.
A paz e o desenvolvimento são uma aspiração sentida pelos povos, em que muitos homens e mulheres, políticos,
Página 2090
2090 I SÉRIE-NÚMERO 62
sindicalistas, intelectuais, membros de organizações humanitárias não governamentais dedicam toda a sua vida a uma causa maior da humanidade É uma causa em que muito foi feito à medida que se alarga a consciência de que essa é uma luta dos povos contra o sistema injusto.
Sr. Presidente, Srs Deputados. Termino com uma brevíssima referência a Portugal. Não creio que, em Portugal, tenhamos dado à Conferência e à Cimeira a importância que estas mereciam Para o fazer não bastaria dedicar-lhes páginas de jornais durante a sua realização ou, após esta, fazer debates Teria sido necessário suscitar, antes dela, um movimento de opinião pública, de interesse e de apoio A esse nível as várias instituições falharam.
Vozes do PCP e do PS: - Muito bem!
O Orador: - Dir-se-á que quem mais falhou foi o Governo. Talvez, por ter sido ele o responsável pela preparação da delegação portuguesa e pela documentação enviada com os pontos de vista nacionais No entanto, a Assembleia da República também poderia ter reclamado uma intervenção activa e não o fez, pois poderia ter preparado um texto, ter feito um debate prévio, ter designado representantes para integrar a delegação portuguesa E também os partidos, mas não quero dizer mais quanto a isto, embora pudéssemos falar bastante, mas não aponto o dedo porque há muita gente responsável.
A realização do debate de hoje é correcta e seria bom que significasse uma inflexão de posicionamento do Parlamento português.
Sugiro, Sr Presidente, que se pense, por exemplo, na organização de um seminário sobre os problemas da paz e do desenvolvimento, que abrisse as portas à sociedade, aos especialistas, à comunicação social Estes são os grandes temas do nosso tempo Acertemos o nosso modo com o nosso tempo!
Aplausos do PCP
O Sr Presidente: - Sr Deputado João Amaral, agradeço por ter acentuado bem a dependência que a paz tem em relação ao desenvolvimento, que é, aliás, um princípio que inspirou o texto da Carta das Nações Unidas, em 1945, e que explica muitas das coisas aí escritas. Mas é sempre bom lembrar, oportuna ou inoportunamente, o quanto há a fazer para ir melhorando a sociedade que temos
Parabéns! Muito obrigado!
Para uma intervenção, tem a palavra a Sr.ª Deputada Heloísa Apolónia
A Sr.ª Heloísa Apolónia (Os Verdes) - Sr Presidente, Sr.ªs e Srs Deputados: Sobre os problemas do planeta, é caso para dizer que, de cimeiras, está o mundo cheio Foram exemplos a do Rio, a do Cairo, a de Copenhaga. Mal não haverá decerto na discussão e reflexão para uma solução mas consequências práticas e medidas concretas para a resolução desses problemas não surgem, a vontade política não existe, os valores economicistas sobrepõem-se aos valores humanistas e da vida.
As dúvidas perante a Cimeira de Copenhaga foram significativas e muitos reafirmaram que a necessidade de acção perante o desenvolvimento social requer menos discursos e mais acção É que todos sabiam que aquilo que estava em causa era questionar o modelo de desenvolvimento, o actual modelo de desenvolvimento que se caracteriza pelo fosso Norte/Sul cada vez mais evidenciado pelo mundo - dito - desenvolvido hipocritamente a viver à custa da fome e da pobreza dos outros, pelo mundo - dito - industrializado a poluir, a contribuir para o buraco do ozono e para o efeito de estufa, a estragar o planeta que, «por acaso», também é dos outros, pela percentagem de riqueza a concentrar-se e a percentagem de pobreza a alargar-se cada vez mais, pela delapidação dos recursos naturais e a recusa de perceber que a poluição não tem fronteiras.
Um modelo de desenvolvimento que, na prática, traz dados como estes os gastos militares dos países mais desenvolvidos são equivalentes aos rendimentos totais auferidos por 2000 milhões de pessoas, as mais pobres no planeta; 1000 milhões de pessoas carecem de serviços básicos de saúde, um adulto em cada quatro é analfabeto e um quinto da população mundial fica sem ter o que comer cada dia que passa enquanto 800 000 milhões de dólares são gastos anualmente em programas militares Mais de 1500 milhões de seres humanos não dispõem de água potável nem de condições de saúde e higiene, uma em cada 115 pessoas do planeta é emigrante ou refugiado e foi obrigado a abandonar o país de origem por razões económicas, políticas ou militares.
Entretanto, com a Cimeira de Copenhaga, como também o demonstrou a Declaração das ONG, não foi evidente qualquer tradução política consubstanciada em actos e programas capazes de introduzirem alterações sociais, económicas, culturais e ambientais imprescindíveis para um desenvolvimento equilibrado, integrado e sustentável As propostas sobre a anulação das dívidas dos países. subdesenvolvidos não foram aceites, o desarmamento ligado ao desenvolvimento foi rejeitado, valeu mais a questão militar do que a questão social.
E, com bonitas palavras de solidariedade, a realidade é outra a pobreza, o desemprego, a marginalização, a fome, a exclusão social, a degradação da natureza intensificam-se e as soluções praticadas são, por exemplo, a de Schengen, que criou uma forte barreira fronteiriça que se fecha a pessoas de países terceiros Afinal, que conceitos são estes de solidariedade, de desenvolvimento, de paz e harmonia?
Perante esta reflexão, importa olhar também a nossa situação de país cada vez mais periférico em que o crescimento a todo o custo e a qualquer preço tem vindo a hipotecar o nosso futuro, nada tendo que ver com o verdadeiro desenvolvimento integrado se olharmos as malfeitorias infligidas nos nossos recursos hídricos, no ar que respiramos, na agricultura cada vez mais estrangulada, no desordenamento do território, na falta de qualidade de ambiente urbano e ainda na destruição do nosso tecido produtivo, na criação de mais e maior dependência do exterior nomeadamente em termos alimentares, no consequente crescimento do desemprego e da pobreza, no menosprezo dado a todo o processo de legalização de emigrantes, na clara secundarização que o Governo está a atribuir à luta contra o racismo, problemas não podem dissociar-se da falta de desenvolvimento social.
Sr. Presidente, Sr.ªs e Srs Deputados, é preciso compatibilizar o crescimento económico com o progresso social e a protecção do ambiente A população reclama que sejam dados passos reais em direcção a medidas concretas que efectivamente resolvam os problemas existentes!
Aplausos do PCP, do PS e do CDS-PP
O Sr Presidente: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr Deputado Adriano Moreira
Página 2091
5 DE ABRIL DE 1995 2091
O Sr. Adriano Moreira (CDS-PP): - Sr. Presidente, em primeiro lugar, quero prestar-lhe a minha homenagem por ter escolhido este tema para debate e espero que o país lhe dê uma importância superior àquela quo, porventura, nós próprios estamos a dispensar-lhe.
Sr. Presidente e Srs. Deputados, considero quo a escolha do tema é importantíssima porque, se a minha observação é exacta, estamos a regressar às Nações Unidas. Foi muito comum a afirmação de que vivíamos de acordo com a ordem de Malta ou de que, para pessoas mais respeitosas do pudor internacional, vivíamos de acordo com a ordem da Carta das Nações Unidas.
De facto, vivemos 50 anos de acordo com a ordem dos pactos militares! No entanto, a queda do muro de Berlim abriu uma tentativa de regresso às Nações Unidas, não se tendo suficientemente apercebido a comunidade internacional de que era, em muitos aspectos, o regresso a um deserto. Isto porque as Nações Unidas tinham estado, durante meio século, sem função em muitos domínios, sobretudo da defesa e da segurança, e estavam desprovidas de mecanismos, de apoios logísticos, de recursos financeiros, de recursos humanos indispensáveis para desempenhar as funções a que, subitamente, voltavam a ser chamadas.
E por isso que, entre a Agenda para a Paz. de Boutros Ghali e o balanço que ele torna público neste ano de 1995, não avultam resultados conseguidos nas operações de preservação da paz, de manutenção da paz, de restabelecimento da paz, mas os efeitos danosos que não se conseguiram evitar, porque as Nações Unidas não estão dotadas dos meios necessários para desempenharem as missões que, por outro lado, todos consideram que lhe devem ser atribuídas.
Por essa razão, é urgente e bem-vinda uma reflexão sobre esta questão, porque - e, novamente, se tiver algum rigor na observação - julgo estarmos, neste fim de século, a chegar a uma alteração fundamental na vida internacional.
Por um lado, ultrapassámos a estrutura de sociedade internacional a caminho de comunidade internacional, definição completamente diferente que vai exigir autoridades responsáveis pelos interesses globais.
Por outro lado, estamos a caminho de ver construir, para além das fronteiras das soberanias, uma sociedade civil mundial que não tem, neste momento, outra voz que não seja a das associações não governamentais.
Justamente, aquilo que me pareceu notável nesta Cimeira de Copenhaga, como já tinha sido pressentido na Cimeira do Rio, como está a repetir-se na Conferência de Berlim, é que os poderes políticos juntaram-se para dialogar com a sociedade civil mundial, o que nunca tinha acontecido.
As organizações não governamentais apresentaram-se ao lado dos «príncipes» e formularam, em nome das carências da sociedade civil mundial, reivindicações em relação ao poder. Julgo que nunca tinha sido tão expressiva a mudança no panorama internacional como com este acontecimento da Conferência de Copenhaga.
Também me associo à lamentação de que nós, que temos tanta experiência de ecumenismo, das responsabilidades em todas as áreas do mundo, não tenhamos dado sinal de ter pressentido a importância do que ia acontecer, de ter assumido uma participação mais efectiva neste acontecimento porque, para isso, tínhamos património, sabedoria e capacidade. Fomos omissos e espero que a iniciativa do Sr. Presidente nos ajude a reparar a omissão que praticámos.
As Nações Unidas foram herdeiras de dois legados ocidentais: um legado maquiavélico que se traduz numa fórmula muito simples, «quem tem força, joga-a», com expressão no Conselho de Segurança que paralisou completamente as intervenções a favor da paz durante 50 anos, e um legado humanista, com expressão na Assembleia Geral, em que os votos são iguais mas as decisões não são obrigatórias.
De acordo com a experiência que tivemos nestes 50 anos, frutificou o legado humanista, porque foram as organizações especialízadas das Nações Unidas que ajudaram a redefinir a ordem internacional e contribuíram, não apenas com filosofia mas com acções construtivas, para o bem-estar geral da humanidade. E o caso da UNESCO, à qual deve prestar-se homenagem, da Organização Mundial de Saúde, da FAO e de tantas outras organizações que ensinaram a respeitar a igualdade dos Estados, a abandonar o princípio da hierarquia que provinha do Conselho de Segurança.
Pelo menos neste momento, talvez possamos prestar alguma homenagem a uma serie de secretários-gerais das Nações Unidas - não foram todos notáveis, mas muitos foram-no- que procuraram salvaguardar o ideal de S. Francisco e manter a Organização pronta a intervir.
Recordo, a propósito, um texto desse Secretário-Geral notável que foi Hammarskjold. morto no cumprimento do dever, que, no Concert Day de 1960, nas Nações Unidas, nesse dia memorável que, todos os anos, chama as nações a meditarem sobre os ideais da paz, da beleza e da justiça, disse estas palavras admiráveis- «Quando a Nona Sinfonia abre, nós entramos num drama cheio de amargo conflito e escuras ameaças. Mas o compositor guia-nos e no começo do último movimento, ouvimos de novo os vários temas, repetidos agora como uma fonte na direcção de uma síntese final.» Espero que, nesta nova fase das Nações Unidas, as palavras de Hammarskjold, neste Concert Day de 1960, sejam relembradas e que tenham um significado que oriente a acção da Organização.
As Nações Unidas avançam para esta questão com uma doutrina segura sobre o desenvolvimento. As dimensões do desenvolvimento, segundo a doutrina assumida pelas Nações Unidas, são as seguintes: a paz, base do desenvolvimento; a economia, motor do progresso; o ambiente, base da sustentabilidade; a justiça social, pilar da sociedade; a democracia, modelo de funcionamento do Estado.
Esta atitude perante o mundo tem encontrado desenvolvimentos que vão esbarrar com as dificuldades estruturais com que ainda nos debatemos. Não é um êxito a intervenção na Jugoslávia, não é um êxito a intervenção em África. Mas não é um desastre, porque o que se mantém e que o actual Secretário-Geral, o Sr Boutros-Bou-tros Ghali, repetidamente afirma, quer na Agenda para a Paz e no relatório sobre a sua execução deficitária, quer na Agenda para o Desenvolvimento, é o retorno ao espírito de S. Francisco e à e é inquebrantável de que os valores persistem para além das debilidades que temos tido em executá-los.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Muito bem!
O Orador: - Para terminar esta minha breve intervenção, queria ler algumas palavras do próprio Secretário-Geral, nesta Agenda para o Desenvolvimento que é um documento que merece a nossa atenção. Diz ele: «Outrora, considerava-se que o desenvolvimento se limitava à transferência de fundos e de competências dos mais afortunados para os mais deserdados; hoje, tem-se a noção de que o desenvolvimento engloba todas as actividades hu-
Página 2092
2092 I SÉRIE-NÚMERO 62
manas. É assim que não podemos permitir que o desuno das gerações futuras fique comprometido ao contrairmos dívidas financeiras, sociais, demográficas ou ecológicas que não teremos possibilidades de reembolsar. Compete a todos, actuais habitantes do planeta, saber utilizar as instituições, as ideias e os ideais tão duramente adquiridos e que herdámos dos nossos antecessores pois, infelizmente, o progresso não é inerente à condição humana e um retrocesso não é de excluir. Para permitir à comunidade humana avançar devemos mostrar-nos respeitosos em relação ao que nos foi legado e conscientes de que o progresso deve ser acessível a todos. Temos o dever de transmitir às gerações futuras não um mundo em ruínas mas um mundo em desenvolvimento.»
Eu diria que a síntese desta atitude pode exprimir-se num conceito muito simples: não podemos alhear-nos dessa responsabilidade, porque o futuro já está entre nós.
Penso que a intervenção da Assembleia da República e um bom contributo para assumir o imperativo que resulta do facto de que o futuro já está entre nós.
(O Orador reviu).
Aplausos do CDS-PP, do PSD e do PS.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Adriano Moreira, muito obrigado pela reflexão que expôs diante da Câmara, por acentuar de forma brilhante, como é seu hábito, que o que se passa no mundo é um retorno às Nações Unidas. No fundo, pegando naquela ideia, que já aqui foi avançada por outro Sr. Deputado, de que é preciso rever o sistema de relações políticas globais, onde a filosofia do hegemonismo tem de sair do podium. É uma belíssima reflexão nesse sentido. Muito obrigado, em nome da Câmara.
Para uma intervenção, tem a palavra a Sr.ª Deputada Margarida Silva Pereira.
A Sr.ª Margarida Silva Pereira (PSD): - Sr. Presidente, permita-me que comece por saudar V. Ex.ª pela magnífica iniciativa do agendamento que, hoje, aqui nos convoca.
Naturalmente, é-me particularmente difícil tomar a palavra depois dos ilustríssimos oradores que me antecederam - e a todos felicito -, designadamente sobre a matéria da Cimeira de Copenhaga, de que me ocuparei. E não me levarão a mal que, de todos, e por uma específica intencionalidade política, destaque a intervenção notável proferida pela Sr.ª Deputada Teresa Santa Clara Gomes. Ela representou Portugal a muito alto nível nesta Cimeira, foi oradora, foi moderadora de um debate e trouxe-nos aqui, hoje - aliás, na esteira da sua intervenção, procurarei dizer também alguma coisa, seguramente de uma forma muito mais modesta -, a voz da preocupação que a Cimeira reflectiu sobre a questão das mulheres, da sua condição cívica e da sua participação política.
Não estive presente na Cimeira de Copenhaga e, por isso, o desafio de intervir é, também, um desafio acrescentado.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Colocada perante a incumbência de evocar neste debate a referida Cimeira Mundial sobre o Desenvolvimento Social, realizada no passado mês de Março, interroguei-me, como me interrogo neste momento, sobre o objecto de uma intervenção parlamentar como esta, neste domínio, sobre o objecto da intervenção que me compete fazer hoje, aqui.
É que entendo que seria frouxo, e julgo que seria também mal, trazer o tema da Cimeira em jeito de menção honrosa por certo merecida, beneplácito do Parlamento português e, neste caso, do meu partido, também por certo justo, a um evento mundial, francamente de boa memória, marcado não só por excelentes intenções como por propostas de concretizações meritórias.
E inquestionável que a Cimeira merece ser sublinhada pelo que já significou. Mas não me parece que a honre grandemente fazer um enunciado descritivo, de índole tecnocrática, a seu propósito. Ela - a Cimeira - merece ser tratada como coisa política de corpo inteiro que foi e é, porque seriamente políticas serão as suas implicações caso, como se espera, venha a ter real eficácia.
Que se fez em Copenhaga! Qualquer coisa de pioneiro, nem mais nem menos. A lógica de Copenhaga é diversa da lógica dos encontros entre Estados para definição de princípios e estratégias relativos a espaços culturais e económicos, como é o caso óbvio da União Europeia. É também uma lógica diferente daquela que, noutras ocasiões, permitiu que se enunciassem princípios gerais ou incidentes sobre temas sectoriais, em cimeiras das Nações Unidas, também elas de âmbito mundial.
A lógica de Copenhaga, repito, foi outra. As suas conclusões assentam no pressuposto de que deverão vigorar modelos precisos de intervenção do Estado e de participação dos cidadãos em domínios tão vastos como a saúde, a segurança social, o emprego, o ambiente, a segurança pública, os direitos humanos e a igualdade de oportunidades.
Ao fim e ao cabo, tratou-se e trata-se de, em nome da dignidade das pessoas e do reconhecimento do direito fundamental ao desenvolvimento - esse grande convidado, debaixo e em cima da mesa de Copenhaga -, exigir dos Estados a assunção de funções e o reconhecimento da importância de os cidadãos participarem - mormente através de organizações não governamentais - na estruturação de políticas que cumpram finalidades prioritárias. Erradicar a pobreza e a exclusão, promover a educação, a formação profissional e desenvolver a economia, construir modelos de efectivação da igualdade de oportunidades são agora fins últimos das sociedades, assumidos pelos 165 Estados e pelas cerca de 2000 organizações não governamentais presentes, e fins assumidos para além dos seus modelos ideológicos - que eram muitos -, ideais políticos ou estratégias de desenvolvimento e de bem-estar.
A lógica de Copenhaga é, assim, a lógica do primado de certas funções essenciais do Estado e do reconhecimento da participação pessoal e colectiva como missão, independentemente de ideologias, que o mesmo é dizer, pondo de parte as quimeras dos amanhãs que porventura cantem ou as sacralizações de um mercado entregue a uma sorte que não nos encarregaremos de condicionar. A lógica de Copenhaga é a do estabelecimento de um coeficiente de consenso político e económico a nível mundial muito mais amplo do que as maiores ousadias que até então se haviam atrevido a admitir.
É por isto que não ouso - por minha parte modesta - hoje admitir que o debate sobre a Cimeira de Copenhaga nos deva convocar, desde já, enquanto parlamentares, em direcções pequenas; ouso, isso sim, dizer que deve haver múltiplas direcções de reflexão política E delas sublinharei três aspectos, neste curto tempo que me atribuís.
Em primeiro lugar, o enquadramento económico e social das políticas de desenvolvimento; em segundo lugar, as implicações na estrutura política que lhe poderá servir de moldura; em terceiro lugar, a atenção central ao factor humano e, muito concretamente, às diferenças entre as pessoas em função do género - entre homens e mulhe-
Página 2093
8 DE ABRIL DE 1995 2093
rés - como pressuposto do novo enquadramento da política social
À primeira vista, e isto em relação ao primeiro aspecto, este reconhecimento da missão ampla, que agora reemerge do Estado no plano social, poderia sugerir um retorno aos princípios do Estado providencia, ou seja, ao reconhecimento de uma imprescindível assunção de um papel de direcção estatal em funções cruciais.
No entanto, não é disso que se trata nem tal colheria bem, aliás. Nos últimos 20 anos, o Estado providência, enquanto corporização de princípios da cidadania social, foi criticado e claudicou mesmo. À esquerda, apontou-se-lhe a incapacidade de construir uma sociedade realmente igualitária; à direita, foi criticado por desconsiderar o voluntarismo, o pluralismo, a auto-ajuda e a confiança da pessoa em si própria Foi ainda criticado por desaproveitar as potencialidades dos seres humanos.
Finalmente, dir-se-á que o Estado providência sucumbiu com o desaparecimento do paradigma dominante em que assentavam as suas virtudes: pleno emprego, flexibilização do trabalho, declínio da família tradicional, novas formas de pobreza e, mormente, a crescente feminização da pobreza.
Mas o fim do Estado providência não significa um retorno ao liberalismo tradicional, traz consigo novas vertentes de actuação e também novos protagonismos e protagonistas. Por isso, eclodem agora novas ideias, fermentadoras da participação social, bem como a preocupação crescente com as obrigações sociais e os deveres, mais do que com simples direitos e liberdades, que foram a ideologia dominante ate hoje.
A um novo reconhecimento político, repito, de novas obrigações sociais e deveres, corresponde um adequado tratamento político e jurídico. É isto que a Cimeira de Copenhaga legitima. E se ideologia aqui houve e se dela aqui se trata, será a da solidariedade ou, como disse alguém, da necessidade de construir uma resposta adequada à questão hobbesiana. o homem não pode ser lobo do homem.
Esta primeira conclusão, construção de um Estado de solidariedade, conduz-nos à segunda questão: as implicações na estrutura política que lhe serve de moldura. Se é imperiosa uma ideologia consensual básica - e em Copenhaga isto ficou claro -, pergunta-se: como estruturar a participação política! Como inovar aqui?
As diferenças que sentimos e as dificuldades inerentes a essa construção política, que tanto têm marcado - não vale a pena escamoteá-lo - este final de legislatura em Portugal, permitem-me uma brevíssima reflexão sobre esta matéria.
Procuramos ultrapassar as grandes dificuldades políticas dos nossos tempos, a clivagem entre eleitores e eleitos, o desprestígio da classe política, retornando a modelos alternativos que outros já experimentaram. Assim, se temos o sistema proporcional, tentamos contrapor-lhe o sistema maioritário, como se da sétima maravilha do céu se tratasse, e se não temos formas referendarias constitucionalmente admitidas, procuramos dizer que as admitiremos no futuro, acreditando que isso vai construir, com certeza, a retoma de uma ideia de participação entre eleitor e eleito.
Recordo que, há muito pouco tempo, Alan Minc assentou, tão trivialmente quanto neste princípio, a ideia da ultrapassagem de uma sociedade, nos moldes em que a tínhamos ate agora, para uma democracia de opinião. Mas será que com formalidades desta natureza nos bastaremos? Ou a grande alteração política implicará novas ideias políticas e novos protagonistas, o que implicará um investimento novo, completamente ousado, no factor humano? Penso que sim e é por isso que terminarei com a última questão que enunciei: novos modelos de participação e, sobretudo, uma outra consciência e uma outra ousadia relativamente ao problema da cidadania dos homens e das mulheres, da cidadania paritária, de uma nova construção mais profunda do que deva ser a democracia representativa.
De facto, em Copenhaga, mais uma vez este tema não foi «convidado debaixo da Mesa» A questão da participação feminina em Copenhaga não foi uma questão envergonhada, nem foi uma questão desprestigiada. Foi uma questão maior e, por via dela e através do seu manto, se concitou uma pluralidade de questões: falou-se da violência exercida contra as mulheres, das mulheres enquanto seres deficitários do ponto de vista da democracia e carentes dela enquanto cidadãs passivas, mas falou-se também do défice de protagonismo de cidadania activa.
E pergunto-me se a Europa, que construiu o primeiro modelo democrático do mundo, com Platão, Aristóteles e também com Rousseau, não ignorando a democracia feminina - o mesmo será dizer, não excluindo a participação política das mulheres -, poderá dar-se ao luxo, nesta viragem do século, de não ser fiel aos seus princípios ideológicos e de, em falta de consentancadade com eles. fazer coisa diferente do desafio que se lhe coloca.
O desafio que, neste momento, se coloca à Europa, ao que me parece, é o desafio da paridade. É que, Sr. Presidente e Srs. Deputados, a cidadania europeia que pretendemos ver assumir valor acrescentado aquando da revisão do Tratado da União Europeia, em 1996, passa, creio, inexoravelmente por aqui.
Não me cumpre - muito menos nesta sede - fazer propostas de revisão do Tratado, mas permito-me terminar a minha intervenção recordando a enorme vontade e esperança que homens e mulheres, felizmente muitos homens e muitas mulheres, de toda a União Europeia, depositam na consagração no Tratado de um direito, que será seguramente embrionário de uma futura constituição europeia- o direito da igualdade das mulheres e dos homens. Um direito a partir do qual a consideraçâo de igualdade deixe de ser ficticiamente neutra e assuma a diferença que só a paridade exprimirá em termos democráticos.
Não haverá desenvolvimento sem a assunção de responsabilidades por parte da metade da humanidade até hoje marginalizada da decisão: a metade que ainda não é protagonista - repito -, mas figurante da representação do povo.
Retiremos da Cimeira de Copenhaga a lição de que a Europa, mátria da democracia mais completa, não segregará as mulheres dessa mesma cidadania. A Europa não será contribuinte líquido eficaz do desenvolvimento que se pretende se prescindir da coragem necessária para a mudança qualitativa que se impõe, através desta nova forma de aproveitamento do factor humano. Acreditemos que, por essa forma, erradicaremos muitas das fragilidades do mundo político complexo do nosso tempo e, provavelmente, construiremos uma sociedade mais sólida.
Aplausos do PSD, do PS e do CDS-PP
O Sr. Presidente: - Sr.ª Deputada Margarida Silva Pereira, os meus cumprimentos pela acentuação que aqui trouxe do princípio da igualdade entre homem e mulher, enfrentando as exigências do tempo - se calhar, o de vencermos o síndrome grego que ainda subsiste na nossa
Página 2094
2094 I SÉRIE-NÚMERO 62
cultura. Referiu Platão e é provável que seja esse síndrome, que nos acompanha ainda, o que tem impedido a sociedade de evoluir sabiamente. Trata-se de um grande princípio de desenvolvimento social, que aqui lembrou em particular, e quero cumprimentá-la por o ter feito.
Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Marques da Costa.
O Sr. Marques da Costa (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados, não posso deixar de iniciar esta minha intervenção com uma saudação muito especial pela iniciativa de agendamento deste debate tomada pelo Sr. Presidente.
Creio que os temas que nos trazem aqui hoje são temas que estão na agenda do que vai ser a evolução do futuro da humanidade no milénio que se avizinha e, por isso, vale a pena a Assembleia da República marcar presença neste debate e marcá-la com continuidade. Deixo por isso a V. Ex.ª um primeiro apelo para que esta louvável iniciativa se possa prolongar no futuro, com ritmo de trabalho, de presença e de acompanhamento do desenvolvimento destes temas.
Não pode também o Governo dispensar-se de participar neste debate, e valerá a pena procurar no futuro as formas em que essa articulação com a Assembleia se deve fazer, no aprofundamento destas matérias. Creio que esta é matéria que interessa a todos os órgãos de soberania, a todos os políticos e aos portugueses em geral.
Permiti-me, Sr. Presidente, Srs. Deputados, procurar um ângulo talvez um pouco diferente da abordagem desta problemática, dado que, sabendo da lista de intervenções, deduzi que aqueles que me precederam esgotariam necessariamente o tema.
Será difícil não associar a questão da Cimeira de Copenhaga e o problema da Agenda para a Paz à reflexão sobre a própria reforma das Nações Unidas, que está também na ordem do dia, sobretudo neste ciclo comemorativista dos 50 anos da sua fundação. Creio que se pode dizer, sem sombra de dúvidas, que as Nações Unidas, passados 50 anos, mantêm válidos os princípios que a criaram há meio século atrás. Mas também não erraremos se apontarmos algum desfasamento provocado pela nova realidade geopolítica e geo-estratégica, que resulta necessariamente da última década de transformações nos sistemas económicos e nos blocos político-militares. Acho, por isso, necessária uma mudança. Ou talvez, para pegar nas palavras do Sr. Deputado Adriano Moreira, um reolhar para os princípios fundadores das Nações Unidas.
E começaria por tentar estabelecer uma ordem de prioridades, dado que o universo de reflexão é, necessariamente, vasto.
Entendo que, do ponto de vista político e metodológico, a discussão essencial deve convergir sobre o centro do sistema das Nações Unidas, ou seja, sobre a reforma dos próprios órgãos das Nações Unidas e depois, eventualmente, alargar esse debate à discussão e ao processo de reforma dos organismos especializados que careçam também dessas transformações.
Partindo desta metodologia, talvez o primeiro vector sobre o qual importa reflectir tenha de ser o próprio conceito de segurança internacional, que circunstâncias conhecidas de todos, naturalmente, tiveram, durante os últimos 50 anos, mais centrado em critérios de natureza estritamente militar, fruto da tensão entre dois blocos em presença. Ora, aquilo que, agora, parece importante será fazer evoluir decisivamente esse conceito anterior para um outro mais amplo que considere hoje, como pilares essenciais, o problema da paz e do desenvolvimento como vectores de uma nova filosofia de actuação Introduzir o problema do desenvolvimento como condição da segurança internacional é uma reforma imprescindível da doutrina que tem estado vigente até hoje.
Acho, por isso, importante que as próprias funções do Conselho de Segurança devam ser alargadas para compreender prevenção e actuação sobre áreas sociais e económicas críticas, focos de possíveis conflitos, de acordo com essa nova concepção de segurança. E não sei se não deveria mesmo decorrer daqui alguma reflexão, entre nós, sobre a necessidade, pelo menos na actuação, de desdobramento do Conselho de Segurança num órgão para assuntos de segurança política e noutro para assuntos do desenvolvimento e da defesa dos Direitos Humanos. Creio que essa é uma matéria que não deixará de ser interessante na nossa reflexão futura.
Naturalmente, outra das reformas necessárias é aquela que decorre da necessidade de encerrar o contencioso deixado pela II Guerra Mundial e reconhecer a nova inserção internacional e a indiscutível importância económica e mundial dos dois grandes derrotados dessa guerra - a Alemanha e o Japão. A reforma das Nações Unidas tem de passar, necessariamente, pelo encerrar da herança da II Guerra Mundial. Não creio que seja saudável esquecer a História mas, pior do que a esquecer, é querer ignorar a sua própria evolução. Hoje, a Alemanha e o Japão devem ter assento próprio no Conselho de Segurança e creio que Portugal deve ter, sobre isso, uma posição clara e inequívoca.
No que respeita à reforma da própria composição do Conselho de Segurança, para além do alargamento que já referi, dever-se-á defender - e já o foi - que a reforma tenha como propósito garantir que nele estará sempre representado um país de língua oficial portuguesa. Creio que a importância mundial da língua portuguesa e a diversidade dos países em que ela se expressa, aconselha a que essa política seja defendida por Portugal.
Coerente com o desenvolvimento de uma concepção preventiva dos conflitos, será talvez importante reforçar o dispositivo do artigo 99.º da Carta, ou seja, aquele que confere ao Secretário Geral a possibilidade de chamar a atenção «do Conselho de Segurança para qualquer assunto que, em sua opinião, possa ameaçar a manutenção da paz e da segurança internacionais», reforçando assim, o papel de intervenção do próprio Secretário Geral. Igualmente importante parece ser a necessidade de reforçar o papel do Secretário Geral quanto à coordenação das diversas operações de manutenção da paz. sobretudo na sua coordenação política, obviando assim à evidente falta de unidade de comando que se tem manifestado nalgumas missões dos «capacetes azuis».
Mas é importante ter uma visão mais ampla do futuro papel internacional das Nações Unidas, não o confiando apenas aos seus aspectos de segurança, mesmo se entendidos numa nova óptica. É necessário propor que os organismos especializados alarguem as suas actividades e que incluam a promoção dos direitos do Homem, o desenvolvimento económico e social dos países carenciados, o reforço do diálogo Norte/Sul, a gestão dos problemas ambientais e demográficos e a democracia partidária - que aqui também foi amplamente citada - na sua agenda permanente.
Nesse sentido de preocupações, creio que deverá também ser revisto o próprio funcionamento das principais agências de desenvolvimento e, sobretudo, deve ser re-interpretado, à luz das novas concepções, o modelo de
Página 2095
8 DE ABRIL DE 1995 2095
cooperaçâo e ajuda ao desenvolvimento até hoje posto em prática por essas agencias Sem uma doutrina firme de criação de condições de auto-sustentação do modelo de desenvolvimento dos países destinatários da ajuda, esta não se afastará significativamente de uma pura perspectiva de emergência que, independentemente da sua importância, nunca poderá contribuir para resolver os problemas de fundo - apenas para os iludir.
Hoje em dia, e fundamental compreender que um maior espaço de participação e de cooperação na acção deve ser conferido às organizações não governamentais (ONG) - um terceiro sector, incipiente senão inexistente na generalidade dos países à data da fundação das Nações Unidas, que tem hoje uma dinâmica e uma importância vital na vida dos Estados e, sobretudo, na articulação destes com os cidadãos.
As Nações Unidas terão de continuar a ser uma organização de nações - é esse o seu princípio e ele não pode ser desvirtuado - mas é indiscutível que as ONG tem de encontrar, na reforma que se venha a fazer, Uma forma mais eficaz de colaborar com o trabalho da ONU, quer no sentido da execução de programas nos países de destino, quer no sentido da contribuição consultiva na formulação de políticas próprias. Até porque, hoje, e tendência crescente, nos domínios da ajuda ao desenvolvimento, das novas gerações de direito, nas questões do ambiente, nas questões da cidadania, é a de que essas organizações desempenhem um papel cada vez mais interventor, e mesmo mais interventor e mais criativo do que os próprios Estados e órgãos de soberania.
Nesse sentido, as Nações Unidas devem ter uma política própria de apoio ao desenvolvimento do trabalho das ONG em colaboração com as suas agências especializadas, tal como entendo que Portugal deve desenvolver uma política de apoio à crescente participação das ONG nacionais nas acções e programas das Nações Unidas.
As comemorações destes 50 anos das Nações Unidas devem, portanto, servir para corporizar reformas que garantam que a Agenda para a Paz reúne algumas condições essenciais para o seu prosseguimento, para o prosseguimento dos seus objectivos. E devem, naturalmente, coincidir, do ponto de vista nacional, com um momento de maior atenção da política externa portuguesa ao próprio sistema das Nações Unidas.
Vinte anos apenas após a Revolução do 25 de Abril é natural que a ordem de prioridades da reinserção nova de Portugal tenha sido a questão europeia, o novo relacionamento com os países de língua oficial portuguesa, mas creio que é essencial introduzir como nova ordem de prioridades, na agenda da política externa, a questão do multilateralismo. Sem o reforço do multilateralismo, Portugal não poderá estar presente no importante debate que vai decorrer do desenvolvimento de todas estas cimeiras e do desenvolvimento natural da reforma das Nações Unidas e estar presente é, naturalmente, uma prioridade para Portugal.
Aplausos do PS, do PSD e do CDS-PP.
O Sr Presidente: - O Sr. Deputado Marques da Costa assentou a sua reflexão notável sobre a Organização das Nações Unidas num princípio que, paia mim, é fundamental: devemos ter a coragem de ir mudando a estrutura das Nações Unidas, mas sem nunca perder de vista que elas têm de ser uma união de Nações. Este é um ponto fundamental, porque o princípio da autodeterminação das Nações continua a ser parte essencial da evolução da sociedade internacional. E se imaginamos as Nações Unidas a passarem por cima do princípio dos Estados e das Nações, liquidamos esse outro princípio que é, e tem sido, fundamental na evolução e emancipação do género humano.
Sr. Deputado Marques da Costa, os meus parabéns pela reflexão que fez em torno desta temática.
O Sr. João Amaral (PCP): - Muito bem!
O Orador: - Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado Manuel Sérgio.
O Sr. Manuel Sérgio (Indep.): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Quero felicitar também, em primeiro lugar, o Sr. Presidente, pelo agendamento do tema que, hoje, nos reúne. Se não laboro em erro grave, mais do que o Presidente da Assembleia da República, promoveu este debate o homem culto e o humanista, ou seja. o homem a quem nada do que é humano lhe é alheio.
Felicito ainda a Sr.ª Deputada Teresa Santa Clara Gomes, pela forma brilhante como representou Portugal na Cimeira de Copenhaga.
Não vinha preparado para falar, mas julgo que, sem querer, depois de ouvir os Srs. Deputados, que são tão bons professores, também aprendi alguma coisa com aquilo que ouvi.
A Cimeira de Copenhaga também nos questiona a nós enquanto Deputados e enquanto pessoas que dizemos seguir uma determinada ideologia.
Segundo um livro que li, já há muitos anos, quando fiz o doutoramento, o G. Lipovetsky garantia ou afirmava que vivemos a era do vazio.
O Fukuyama, anos depois, veio quase repetir, veio fazer ressoar aquilo que muitos outros autores, de muito melhor elaboração conceptual, já diziam, ou seja, que vivemos, de facto, a era do vazio. Aliás, 100 anos antes, já o Nietzsche dizia que «Deus morreu». O que queria dizer Nietzsche? Nietzsche queria significar que uma certa cultura, uma certa civilização, uma certa sociedade, uma certa visão do homem tinham morrido. Aquela distinção que fazia entre Apolo e Dionisios era já uma certa visão do homem em que o corpo surgia olhado de forma diferente, longe do paradigma cartesiano. Portanto, já muito antes, até o Nietzsche afirmava «Deus morreu», quer dizer que uma certa sociedade tinha morrido.
Mas, para além de dizermos que tudo está mal, para além de dizermos que, de facto, estamos a atravessar uma época de crise - e, porque o mundo é um organismo vivo, até devemos olhar para a crise de forma optimista, porque estar em crise é próprio do que está vivo, os mortos não estão em crise -, temos de estar alegres, porque isso significa que vem aí o novo mundo.
Em todo o caso, no meu entender, o que distingue o mundo que aí vem do mundo que entrou nas vascas da agonia é, acima de tudo, o seu personalismo.
Todas as ideologias tradicionais opõem ao homem que fez a sociedade a sociedade que faz o homem, porque as ideologias tradicionais descambaram, mais ou menos, no mais completo e descabelado sociologismo, no mais completo e descabelado corporativismo Ninguém é olhado por ser pessoa humana, é olhado por pertencer a uma determinada corporação.
Durkheim chamou-nos, muitas vezes, a atenção, designadamente quando falou da educação, para o seguinte, a
Página 2096
2096 I SÉRIE-NÚMERO 62
educação e, afinal de contas, a socialização do jovem, ou seja, o jovem, mal nasce, começa logo a ser socializado.
Tradicionais são, de facto, todas as ideologias e, afinal, todas elas olharam para os Direitos do Homem com um olhar, mais ou menos, lateral e suspeitoso A própria ideia de pessoa pareceu-lhes perigosa, cheirou-lhes a anarquia Quando se falava em pessoa humana, a ideologia tradicional julgava que se descambava ipso facto em anarquia.
Sr Presidente, Srs Deputados: O mundo que aí vem chama-nos a atenção para uma questão importante democracia e interioridade estão ligados Acabemos com a mania do sociologismo! Enquanto cada um de nós, como pessoa, não for respeitado, o mundo está errado!
Repito democracia e interioridade estão ligados! A sociedade tem de ser, acima de tudo - e até já estou aqui a lembrar um pouco Karl Marx -, a transmutação da necessidade em liberdade e, como tal, a possibilidade de desenvolvimento de cada uma das pessoas. Se a sociedade é uma garantia contra os medos da natureza, a democracia tem de ser, acima do mais, uma garantia contra os medos da sociedade
Temos de passar cada vez mais do tradicional ao racional, não vá acontecer como muitas vezes acontece com as ideologias tradicionais que, recusando os actos de violência, continuemos a aceitar todos os estados de violência. E estes começam nas ideologias, começam dentro da cabeça de cada um de nós. Fala-se muito do que se passa no Sudão, aqui, ali e acolá, mas não se fala do que se passa dentro de nós. A violência está dentro de nós e não tanto nos actos de violência, porque antes de estar aí já começou dentro de nós.
É importante também chamar a atenção para o facto de a democracia não poder significar só liberdade de opinião, pois tem de significar também liberdade de formação de opinião É preciso ir mais longe. Quase que me leva a afirmar, e não sei se vou dizer uma grande asneira - neste momento, estou a falar ao nível do ontológico, quero ir mais fundo, quero mergulhar como quando se mergulha na água e se vai até ao fundo -, que há, de facto, uma separação ontológica de cada um de nós, das pessoas, pois nós não somos iguais.
Acho que as democracias fazem de cada pessoa cidadãos que não são sujeitos
O Sr Presidente: - Sr Deputado, tem de concluir.
O Orador: - Sr Presidente, só queria chamar a atenção para um livro importante que poderíamos ler - se calhar até já lemos -, onde há, de facto, uma relação dialéctica importante entre este alter e ego. Refiro-me ao livro de Levinas Totalité et Infini, que vale a pena ler.
Aplausos do PSD e do CDS-PP
O Sr Presidente: - Sr Deputado, muito obrigado pelo seu apelo de retorno ao Homem, aos Direitos do Homem, à solidariedade individual que é um valor do futuro tal como e do passado, de todo o humanismo.
Tem a palavra o Sr Deputado António Maria Pereira
O Sr António Maria Pereira (PSD) - Sr. Presidente, Sr.ªs e Srs Deputados. Quero, antes de mais, felicitar o Sr Presidente pela iniciativa de trazer ao Plenário debates sobre temas tão importantes. Atrever-me-ia até a dizer que são talvez os mais importantes temas que têm sido debatidos este ano nesta Assembleia e pena é que veja as bancadas tão rarefeitas, incluindo a da imprensa.
O meu desejo é que debates como este se possam repetir porque Portugal abre-se cada vez mais ao exterior e é fundamental que os portugueses tenham consciência das grandes linhas que determinam o futuro de nós todos porque esses são os pontos sobre os quais não se compreende que não tenhamos consciência, que não tenhamos opiniões, que não as debatamos.
Mais uma vez, Sr Presidente as minhas felicitações
Vou tratar da Agenda para a Paz dado que a minha colega Margarida Silva Pereira ía se ocupou da Cimeira de Copenhaga Vou deixar os problemas Norte/Sul, os problemas de desenvolvimento de certo modo de lado para me concentrar mais no Estatuto das Nações Unidas.
A Agenda para a Paz, apresentada pelo Secretário-Geral Boutros Ghali, em 1992 e depois completada em Janeiro de 1995, tem de ser enquadrada historicamente A ideia da criação de um organismo mundial que preservasse a Paz concretizou-se pela primeira vê? no rescaldo da I Guerra Mundial por iniciativa do Presidente Wilson, dos Estados Unidos, e foi a Sociedade das Nações. Mas a iniciativa em breve se gorou perante a ascensão dos totalitarismos que, levando o nacionalismo a extremos absurdos, novamente lançaram a humanidade numa guerra excepcionalmente cruenta em que pela primeira vez as grandes vítimas foram as populações civis e na qual se assistiu a violações maciças dos Direitos do Homem de uma crueldade e dimensão nunca atingidas em conflitos anteriores.
Terminada a guerra de novo a humanidade se lançou na tentativa de construir uma pá/; duradoura em que nunca mais os holocaustos fossem possíveis Foram sobretudo duas as iniciativas com esse objectivo a Carta das Nações Unidas, assinada em 1945, e a Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada em 1948 Os objectivos das Nações Unidas, tal como definidos no Capítulo I da Carta, conservam uma perfeita actualidade São eles, como se lê no artigo 1.º, manter a pá? e a segurança internacionais, desenvolver relações amistosas entre as nações baseadas no respeito da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, conseguir a cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caracter económico, social, cultural e humanitário e para promover e estimular o respeito pelos Direitos Humanos e pelas liberdades fundamentais de todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião.
Mas, Sr Presidente e Srs Deputados, a Carta das Nações Unidas, na sua organização e na composição dos seus órgãos, tinha e continua a ter a marca dos tempos de guerra em que foi promulgada as suas disposições essenciais foram fixadas pela vontade das grandes potências vencedoras - os Estados Unidos o Reino Unido, a União Soviética e a China - e assenta no postulado de que sem o acordo dessas grandes potências não e possível assegurar a paz no mundo, pelo que, se esse acordo não existir, é inútil pensar que poderá ser substituído pelo que quer que seja.
Este postulado determinou a arquitectura jurídica da instituição O órgão dominante - o Conselho de Segurança - é formado por 15 membros, sendo cinco permanentes (China, França, Reino Unido Rússia e Estados Unidos) e 10 não permanentes. Através do direito de veto, obteve-se a garantia de que nada pode ser decidido sem o acordo daqueles cinco membros permanentes. E, portanto, uma estrutura jurídica que não brilha pelo espírito democrático, que é pouco operacional mas que corresponde ao equilíbrio de forças do período da guerra e do pós-guerra.
Página 2097
8 DE ABRIL DE 1995 2097
Entretanto, o conflito ideológico Este-Oeste submeteu a rude prova o sistema das Nações Unidas, conduzindo à sua quase paralisação. Onde quer que um conflito eclodia os países ocidentais e a União Soviética ,assumiam quase sempre posições contraditórias, impedindo, através do exercício do direito de veto, sobretudo por parte da União Soviética, a maioria das intervenções passíveis.
Mas o colapso do comunismo e o fim da guerra fria abriram novo capítulo na história das Nações tinidas. O aumento incontrolado de conflitos e de crises locais que sucedeu ao imobilismo da guerra fria, o despertar dos nacionalismos conduzindo a confrontações por vezes extremamente sangrentas, os genocídios que se sucediam, todos os súbitos e inúmeros obstáculos surgidos à paz e ao desenvolvimento, obrigaram as Nações Unidas a intervir um pouco por toda a parte, quer em missões de mediação através da diplomacia preventiva, quer de manutenção de paz (peace-keeping), quer da promoção da paz (peace-building), envolvendo com frequência a imposição de sanções e o envio de forças armadas.
De todas estas actividades, a mais frequente é sem dúvida a de peace-keeping. Capacetes azuis de 76 países tem actuado na Europa (na ex-Jugoslávia), em África, na Asia, na América do Sul, através de soldados e polícias cujo número, em Dezembro de 1994, excedia, os 75 000, efectivos esses que sofreram várias vezes baixas no desempenho das suas missões.
Critica-se por vezes as Nações Unidas porque algumas dessas operações não correram da melhor maneira. É o que aconteceu, como já aqui foi dito, na Somália e na ex-Jugoslávia Queria dizer em todo o caso que em relação à Somália não considero que tenha sido um desastre total porque, graças a essa intervenção, e apesar de ela ter acabado mal, o certo é que houve dezenas de milhar de somalis que não morreram porque puderam sobreviver graças ao auxílio em mantimentos que as Nações Unidas puderam prodigalizar através da sua intervenção. Portanto, quando há uma intervenção que tem como consequência impedir a morte de dezenas de milhar de pessoas, essa intervenção não pode ser vista apenas como negativa.
A outra intervenção negativa foi na ex-Jugoslávia. Aí a responsabilidade é das Nações Unidas, sem dúvida nenhuma, mas é também da União Europeia. E digo que é das Nações Unidas antes de mais porque o Organismo que está encarregado de evitar guerras e de conseguir que elas terminem é as Nações Unidas, dado que não há mais nenhuma organização internacional com competência para fazer terminar uma guerra. As Nações Unidas não conseguiram fazer terminar a guerra na ex-Jugoslávia e aconteceu que morreram 200 000 pessoas porque não houve uma intervenção na altura própria.
O General De Gaulle costumava dizer que se tivesse havido uma intervenção oportuna de dois batalhões em Dantzig se tinha evitado a II Grande Guerra Mundial. Aqui, portanto, faltou uma vontade política para uma intervenção oportuna no momento oportuno. Recordo que há dois anos, antes de morrer, o General Woerner, secretário-geral da NATO, posto perante a questão de saber se a NATO não interviria e se poderia acabar com o conflito, respondeu, se me derem instruções acabo com o conflito rapidamente porque disponho de. forças suficientes para isso. A este respeito gostaria de citar um livro recente de André Glucksmann, chamado. De Gaulle: Ou es-tu? em que se diz a respeito da ex-Jugoslávia e do que lá fizeram as Nações Unidas: «La confusion des esprits marie allégrement l'aventure et la déission, comme l'indique la désolante equipée des casques blues en Bosnie, projetés à la va-vite et abandonnés en otage, tandis que la plus spectaculaire alliance (OTAN/ONU)..»
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, desculpe fazer-lhe esta observação, mas, se puder, traduza para o português.
O Orador: - Posso traduzir para português, mas
O Sr. Presidente: - Ou, então, dispense a leitura e forneça aos serviços o texto em francês, com a respectiva tradução, para que conste do Diário.
O Orador: - Eu leio em português, Sr. Presidente.
Diz o texto: «A confusão dos espíritos alia, alegremente, a aventura e a demissão, como indica a desolante aventura dos capacetes azuis na Bósnia, para ali atirados de qualquer maneira e abandonados como reféns, enquanto a mais espectacular aliança militar da História mundial (OTAN/ONU), está submetida à chantagem das milícias da Grande Sérvia.»
Portanto, actualmente, a maior aliança militar do mundo é a da ONU/OTAN, que não conseguiu evitar os 200 000 mortos na ex-Jugoslávia.
Este foi, realmente, um aspecto mais negativo do que positivo da intervenção das Nações Unidas na Bósnia.
Em todo o caso, graças às críticas que se fizeram nas Nações Unidas, foi possível que acordos e conflitos que se eternizavam durante a guerra fria. como aconteceu na Namíbia, no Camboja, em El Salvador, em Moçambique, no Haiti, e como está prestes a suceder em Angola, terminassem. Isso deve-se às Nações Unidas.
A ONU continua, portanto, a desempenhar, o melhor que pode, o papel que lhe foi atribuído na Carta, manter a paz e a segurança internacionais.
A sua função é insubstituível, apesar das deficiências que, por vezes, se notam. Sem a ONU muito mais gente teria morrido, muitos mais problemas, sobretudo à escala mundial, continuariam insolúveis. Como também e insubstituível a acção das Nações Unidas nos campos do desenvolvimento social e económico, da protecção do ambiente e da promoção dos Direitos Humanos.
Sr. Presidente e Srs. Deputados, ao celebrar-se os 50 anos das Nações Unidas é altura de reflectir na actualização da Carta, não só relativamente às estruturas, mas também na sua operacionalidade, de modo a tentar diagnosticar algumas das suas actuais fragilidades ou omissões e, a partir daí, avançar com algumas pistas para possíveis soluções.
A primeira crítica a fazer à Carta é o facto, como já se disse, de ter sido concebida para uma época e para condicionalismos que estão hoje totalmente ultrapassados É absurdo que países como o Japão, a Alemanha e também o Brasil - como referiu o Ministro dos Negócios Estrangeiros Durão Barroso na última Assembleia das Nações Unidas, quando propôs que o Brasil passasse a fazer parte também do Conselho de Segurança -, cuja importância internacional é óbvia, não façam parte do número dos membros permanentes do Conselho de Segurança. Portanto, esta era, realmente, uma actualização que se impunha.
Por outro lado, tendo a União Europeia uma política externa própria, nos termos do Tratado de Maastricht, tendo já os Estados membros, nos termos do artigo J.5 do Tratado, a obrigação de defender, no Conselho de Segurança, as posições e os interesses da União, parece também justificar-se que, num futuro previsível - não será para amanhã, porque haverá que resolver muitos proble-
Página 2098
2098 I SÉRIE-NÚMERO 63
mas diplomáticos -, a União Europeia passe a fazer parte também do número dos membros permanentes do Conselho de Segurança, em substituição da França e da Inglaterra, porque é neste sentido que a União Europeia evolui.
Quanto ao sistema de veto nas decisões do Conselho de Segurança, que tão gravemente tem afectado a operacionalidade da organização, haveria também vantagem em ser substituído por um sistema mais funcional que permita deliberações tomadas por maioria qualificada.
Será também necessário que a estrutura jurídica da ONU passe a reflectir a grande transformação que, desde a fundação das Nações Unidas, se verificou no Mundo: a ascensão à independência das antigas colónias - em 1956 os Estados membros eram 77, actualmente são cerca de 200, e isto deverá, obviamente, reflectir-se na estrutura da organização.
Este objectivo poderia ser atingido, como propôs o Ministro dos Negócios Estrangeiros Durão Barroso, através do aumento do número de membros permanentes e não permanentes do Conselho de Segurança, estes últimos à razão de um membro por região. E, neste aspecto, conviria recordar que Portugal é candidato a membro do Conselho de Segurança para o biénio 1997/1999.
O Capítulo VII da Carta, que trata dos procedimentos em caso de ameaça à paz, violação da paz e actos de agressão e que prevê os diferentes tipos de actuação possíveis para as Nações Unidas nesses casos, incluindo a intervenção armada, deverá também ser reformulado de acordo com as necessidades e ideias dos tempos modernos. Como se sabe, as Nações Unidas têm intervindo por vezes através de forças armadas, em caso de genocídio ou outras calamidades (no norte do Iraque em 1990, na Somália, no Ruanda, na Bósnia, etc.). Estas intervenções foram feitas ao abrigo do chamado direito - ou, melhor, do dever - de ingerência humanitária.
Este direito abre uma importante brecha no princípio da soberania, consagrado no n.º 7 do artigo 2.º da Carta, segundo o qual a ingerência em assuntos internos dos Estados é proibida.
Mas, actualmente, já não pode aceitar-se um conceito de soberania absoluta, sem limites.
Como escreveu Boutros Ghali, «há uma necessidade intelectual dos nossos tempos de repensar a questão da soberania, não para enfraquecer a sua essência, que é crucial para a segurança e cooperação internacionais, mas para reconhecer que pode tomar mais do que uma forma e prosseguir mais do que uma função. Sublinhar os direitos do indivíduo e os direitos dos povos representa uma dimensão da soberania universal que reside em toda a humanidade e atribui a todos os povos legitimidade para se envolverem em assuntos que afectam o mundo na sua globalidade».
Estes limites à soberania são conhecidos da teoria dos Direitos Humanos, que são, essencialmente, direitos dos homens e das mulheres, tão fundamentais que se sobrepõem à soberania dos Estados.
Por outras palavras, os Estados membros das Nações Unidas, ao assinarem a Carta, comprometem-se perante a comunidade internacional a respeitarem os Direitos Humanos nos seus territórios, daí resultando que o princípio da não ingerência deverá, em caso de violação desses direitos, ceder perante o dever humanitário de socorrer pessoas em perigo eminente.
Esta vocação internacionalista dos Direitos Humanos tem sido periodicamente posta em causa, sobretudo pelo países totalitários, mas tem-se mantido e foi reafirmada ainda recentemente na Conferência de Viena de 1993.
O dever de ingerência humanitário deverá, portanto, ser incluído e definido, na minha opinião, na Carta, no seu Capítulo VII.
Um outro fenómeno dos nossos tempos, a que já aqui foi feita referência, é a emergência da sociedade civil em todos os sectores - da política, da cultura, da economia, do ambiente, dos Direitos Humanos. Este fenómeno sente-se não só dentro de cada Estado mas também no campo internacional. Enquanto que durante a guerra fria os Estados eram quase que as únicas entidades relevantes no campo internacional, actualmente há que contar também com as organizações não governamentais, organismos regionais e outras formas associativas, que, por vezes, ultrapassam fronteiras e que, vigorosamente, exigem certas condutas por parte dos Estados, interna e internacionalmente.
Eu penso que, por exemplo, em relação a massacres, a violações maciças dos Direitos Humanos, a Amnistia Internacional tem, com certeza, a possibilidade de poder alertar mais rapidamente as Nações Unidas do que o Estado onde isso está a acontecer, já que este poderá mesmo ter interesse em que não se saiba o que nele se passa.
Por isso, a Carta, na minha opinião, devia prever uma nova figura, a do direito de petição, através da qual as ONG possam alertar o Conselho de Segurança para situações em que, eventualmente, se justificará a sua intervenção.
E passo agora a uma outra sugestão, que é a dos tribunais para crimes de guerra. Na verdade, o horror provocado pelos crimes praticados, sobretudo pelos sérvios, no desenvolvimento da sua política de limpeza étnica na ex-Jugoslávia, bem como o genocídio ocorrido no Ruanda, no ano passado, levaram as Nações Unidas a constituir tribunais especiais para o julgamento desses crimes. Um desses tribunais é o de Haia, que, neste momento, está já a funcionar, que já fez acusações formais contra vinte e tal arguidos e que, portanto, é já uma conquista positiva neste aspecto.
Pôs-se a questão, quando se levantou o problema da constituição destes tribunais, de saber se seria possível conseguir resultados concretos. E, provavelmente, não será. Quer dizer, é possível que estes vinte e tal homens, que estão, neste momento, acusados pelo Tribunal de Haia, mesmo depois de julgados não sejam presos, porque estão, designadamente, na Sérvia.
No entanto, considerou-se que o simples facto de os seus nomes serem citados, de as suas fotografias aparecerem na imprensa, de não poderem sair do país onde estão porque se arriscam a ser presos, é razão suficiente para vencer esse inconveniente e para avançar com tribunais para o julgamento de criminosos de guerra.
Em Kigali está também em funcionamento, neste momento, um tribunal para o julgamento de crimes de guerra, mas, segundo as últimas notícias que chegaram, não se encontra a funcionar em termos adequados por falta de juízes e porque se debate com imensas confusões.
Seja como for, mesmo que as coisas não corram bem em Kigali, a verdade é que o conceito de que os criminosos de guerra devem ser julgados tem um efeito dissuasor, que pode ser extremamente importante para o futuro. Por isso, a sugestão que faço é que os tribunais para os julgamentos de crimes de guerra não sejam organizados ad hoc, como tem ocorrido até agora - um para o Ruanda, outro para a ex-Jugoslávia -, mas antes institucionalizados na própria Carta das Nações Unidas, a seguir ao Tribunal Internacional de Justiça.
Sr. Presidente e Srs. Deputados, como observa Boutros Ghali, «existe um geral reconhecimento de que os Esta-
Página 2099
8 DE ABRIL DE 1995 2099
dos e os seus Governos não podem fazer face ou resolver os problemas da actualidade sozinhos. A cooperação internacional e inevitável e indispensável A qualidade, a extensão e o timing dessa cooperação fará a diferença entre o progresso ou a frustração e o desespero. Nenhuma organização se pode comparar às Nações Unidas para desempenhar essa missão».
Por isso, há que incentivar tudo o que possa contribuir para aperfeiçoar a Carta das Nações Unidas, para torná-la mais adequada aos tempos modernos e para melhorar a operacionalidade da organização.
Como disse o Primeiro-Ministro sueco Ingvar Carlsson recentemente, há três abordagens possíveis para os problemas mundiais: a primeira é através de uma liderança global e democrática, melhorando a ONU e outros sistemas de cooperação internacional; a segunda é deixar que seja uma ou duas super-potências a decidir em nome do resto do mundo, a terceira e deixar-nos cair na anarquia e no desespero».
A única solução aceitável - e penso que todos concordam com isto - é, obviamente, a primeira, tendo, em todo o caso, sempre presente a observação de Wiston Churchill, quando disse que «as Nações Unidas não foram criadas para nos levar ao Paraíso, mas para nos salvar do Inferno», o que é diferente.
Sr Presidente e Srs. Deputados. Portugal é um país vocacionado para a universalidade, vocação esta que Fernando Pessoa sintetizou numa genial metáfora. «O português que é só português não é português»
Mas Portugal é também um país profundamente imbuído de respeito pelos Direitos Humanos e pelos valores democráticos, com fortes ligações culturais à África e às Américas.
Portugal está, por isso, particularmente qualificado para prestar um importante contributo para a reforma da Carta das Nações Unidas, tornando-a mais adaptada às realidades e às necessidades dos tempos modernos.
Aplausos do PSD.
O Sr Presidente: - Muito obrigado, Sr. Deputado António Maria Pereira, pela sua rememoração da História, em particular, das Nações Unidas, e por uma nota que soube pôr aqui sobre a exautoração dos crimes de guerra como elemento para a construção do futuro.
Não sei se essa exautoração será para prevenir outros crimes, sei apenas que ela e um grilo, um protesto da consciência jurídica e moral da humanidade Nesse sentido, tem um função simbólica relevante para a construção da civilização.
Terminado o debate, Srs Deputados, congratulo-me com o nível das intervenções aqui apresentadas hoje. Quero cumprimentar todos os oradores de modo pessoal, muito efusivamente, porque todos souberam ser prospectivos e, mesmo quando falaram do passado, tinham em vista o futuro, o século que aí vem e a atenção que os dirigentes de hoje tem de ter relativamente a exigências para a melhoria permanente da nossa tenda, do mundo em que vivemos, para fazer este mundo melhor
Esta prospectiva foi importante no nosso debate, bem como a ideia de que temos de saber empenhar-nos mais, nós. Câmara, representante do povo português, em temas onde as diferenças partidárias podem e devem esbater, como foi hoje o caso. Cada um exprimiu aqui a sua sensibilidade, porque o problema que aqui nos trouxe é. rigorosamente, um problema comum e ninguém quer dele tirar ganhos e dividendos.
Os meus parabéns a todos
Esta é a última sessão deste período dos trabalhos da Assembleia da República e, antes da interrupção da próxima semana, quero agradecer, de modo especial, a colaboração que me foi dada pelos Srs. Vice-Presidentes, pelos Srs. Secretários da Mesa, as atenções que recebi de todos os Srs Deputados no desempenho da tarefa, que necessariamente tem de ser acolhida por todos e congratular-me, em geral, com o que foi produzido pela Assembleia.
Quero também dizer aos Srs. Funcionários que aqui nos acompanham, numa missão que não se vê mas que é altamente profícua, o muito agrado que lenho pelo trabalho que aqui produziram, agradecendo também aos Srs Jornalistas a sua tarefa de levar o eco das nossas vozes à comunidade que aqui nos mandou para a representarmos nesta Câmara.
A próxima reunião plenária terá lugar no dia 19 de Março, quarta-feira, pelas 15 horas, com um período de antes da ordem do dia. abrangendo o período da ordem do dia o debate das propostas de lei n.ºs 120 e 125/VI.
Nada mais havendo a tratar, desejo a todos uma boa semana de retempero
Aplausos gerais
Srs Deputados, está encerrada a sessão
Eram 13 horas e 15 minutos
Entraram durante a sessão os seguintes Srs. Deputados
Partido Social-Democrata (PSD)
Fernando Carlos Branco Marques de Andrade
Francisco João Bernardino da Silva
João Granja Rodrigues da Fonseca
José Álvaro Machado Pacheco Pereira
José de Oliveira Costa
Partido Socialista (PS)
António José Martins Seguro
António Manuel de Oliveira Guterres.
Armando António Martins Vara
Eduardo Luís Barreto Ferro Rodrigues.
José Carlos Sena Belo Megre
Partido do Centro Democrático Social - Partido Popular (CDS-PP):
Manuel Tomas Cortez.
Rodrigues Queiró.
Faltaram à sessão os seguintes Srs. Deputados
Partido Social-Democrata (PSD).
Carlos Alberto Pinto
Carlos de Almeida Figueiredo
Carlos Miguel de Valleré Pinheiro de Oliveira
Domingos Duarte Lima
Fernando José Russo Roque Correia Afonso
João Álvaro Poças Santos.
José Ângelo Ferreira Correia
José Macário Custódio Correia.
José Pereira Lopes
Manuel Antero da Cunha Pinto
Manuel da Costa Andrade
Manuel da Silva Azevedo
Maria Manuela Aguiar Dias Moreira
Página 2100
2100 I SÉRIE-NÚMERO 62
Nuno Manuel Franco Ribeiro da Silva.
Partido Socialista (PS):
Alberto Arons Braga de Carvalho.
Alberto Bernardes Costa.
António Domingues de Azevedo.
António Poppe Lopes Cardoso.
Artur Rodrigues Pereira dos Penedos.
João António Gomes Proença.
João Cardona Gomes Cravinho.
João Maria de Lemos de Menezes Ferreira.
José Eduardo Vera Cruz Jardim.
José Manuel Lello Ribeiro de Almeida.
José Manuel Marques da Silva Lemos.
José Manuel Santos de Magalhães.
Júlio Francisco Miranda Calha.
Luís Filipe Nascimento Madeira.
Manuel Alegre de Melo Duarte
Raúl Fernando Sousela da Costa Brito.
Rogério da Conceição Serafim Martins.
Partido Comunista Português (PCP)
Carlos Alberto do Vale Gomes Carvalhas.
Lino António Marques de Carvalho
Maria Odete dos Santos Octávio Augusto Teixeira.
Partido do Centro Democrático Social - Partido Popular (CDS-PP).
Mana Helena Sá Oliveira de Miranda Barbosa.
Partido Ecologista Os Verdes (PEV)
Isabel Mana de Almeida e Castro.
Deputado independente
Mário António Baptista Tome
A DIVISÃO DE REDACÇÃO E APOIO AUDIOVISUAL
Depósito legal n.º 8818/85
IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA, E. P.
1 - Preço de pagina para vencia avulso, 7$50+IVA
2 - Para os novos assinantes do Diário da Assembleia da República o período da assinatura será compreendido de Janeiro a Dezembro de cada ano Os números publicados em Outubro Novembro e Dezembro do ano anterior que completam a legislatura serão adquiridos, ao preço de capa
3 - O texto final impresso deste Diário é da responsabilidade da Assembleia da República
PREÇO DESTE NÚMERO 142$00 (IVA INCLUÍDO 5%)
Toda a correspondência, quer oficial, quer relativa s anúncios e a assinaturas do «Diário da república» e do «Diário da Assembleia da República» deve ser dirigida à administração da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, E., P., Rua de D. Francisco Manuel de Melo, 5-1092 Lisboa Codex