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Segunda-feira 26 de Abril de 1999 I SÉRIE - NÚMERO 77
DIÁRIO da Assembleia da República
VII LEGISLATURA 4ª SESSÃO LEGISLATIVA (1998/1999)
SESSÃO SOLENE COMEMORATIVA DO XXV ANIVERSÁRIO DO 25 DE ABRIL
Presidente: Exmo. Sr. António de Almeida Santos
Secretários: Exmos. Srs. Artur Rodrigues Pereira dos Penedos
Duarte Rogério Matos Ventura Pacheco
Rosa Maria da Silva Bastos da Horta Abernaz
João Cerveira Corregedor da Fonseca
SUMÁRIO
Às 9 horas e 5 minutos entrou na Sala das Sessões o cortejo em que se integravam o Sr. Presidente da República (Jorge Sampaio), o Sr. Presidente da Assembleia da República (Almeida Santos) - que saudaram, com uma vénia, os membros do Corpo Diplomático presentes -, o Sr. Primeiro-Ministro (António Guterres), os Srs. Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional, os Secretários da Mesa, a Secretária-Geral da Assembleia da Republica, o Chefe do Protocolo do Estado, o Director do GAREPI, o Adjunto do Presidente da Assembleia da República da República para os Negócios Estrangeiros e os Secretários do Protocolo do Estado.
No hemiciclo encontravam-se já, além dos Deputados e Ministros, os Ministros da República para os Açores e para a Madeira, o Procurador-Geral da República, o Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, os Presidentes do Supremo Tribunal Administrativo, do Tribunal de Contas e do Supremo Tribunal Militar, o Provedor de Justiça, os Chefes dos Estados-Maiores da Armada, do Exército e da Força Aérea, o Presidente do Conselho Económico e Social, o Presidente da Assembleia Legislativa Regional dos Açores e o Vice-Presidente da Assembleia Legislativa Regional da Madeira, os Conselheiros de Estado, o Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, os Juizes do Tribunal Constitucional, o Governador Civil de Lisboa, o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, o Presidente da Comissão Nacional de Protecção de Dados, o Presidente da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, o Comandante Naval do Continente, o Comandante do Comando Operacional da Força Aérea, o Governador Militar de Lisboa e os Comandante-Geral da Guarda Nacional Republicana e o Director Nacional da Polícia de Segurança Pública.
Encontravam-se ainda presentes nas tribunas e galerias o Patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, os ex-Presidentes da República Costa Gomes, Ramalho Eanes e Mário Soares, os ex-Presidentes da Assembleia da República Oliveira Dias e Vítor Crespo, os ex-Primeiros-Ministros Vasco Gonçalves e Pinto Balsemão, o Presidente do Partido Popular, Paulo Portas, as Sr.ªs Maria José Ritta, Maria Margarida Almeida Santos, Manuela Eanes e Maria de Jesus Barroso, o Presidente da República de Moçambique, o Presidente da Assembleia Nacional Popular da República da Guiné-Bissau, membros do Governo, do Corpo Diplomático e da Associação 25 de Abril, Conselheiros da Revolução, o representante da Associação dos Deficientes das Forças Armadas e demais convidados.
Constituída a Mesa, na qual o Sr. Presidente da República tomou lugar à direita do Sr. Presidente da Assembleia da República, a Banda da Guarda Nacional Republicana, postada nos Passos Perdidos, executou o Hino Nacional.
Seguiram-se os discursos dos Srs. Deputados Isabel Castro (Os Verdes), Lino de Carvalho (PCP), Luís Queiró (CDS-PP), Luís Marques Mendes (PSD) e Francisco de Assis (PS), do Sr. Presidente da Assembleia da República e do Sr. Presidente da República, e no final foi de novo executado o Hino Nacional.
Eram 11 horas e 10 minutos quando a sessão foi encerrada.
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O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, declaro aberta a sessão solene comemorativa e evocativa do 25.º Aniversário do 25 de Abril de 1974.
Eram 9 horas e 5 minutos.
A Banda da Guarda Nacional Republicana executou o Hino Nacional.
Estavam presentes os seguintes Srs. Deputados:
Partido Socialista (PS):
Acácio Manuel de Frias Barreiros.
Aires Manuel Jacinto de Carvalho.
Alberto de Sousa Martins.
Ana Catarina Veiga Santos Mendonça Mendes.
Aníbal Marcelino Gouveia.
António Alves Marques Júnior.
António Alves Martinho.
António de Almeida Santos.
António José Guimarães Fernandes Dias.
António José Martins Seguro.
Arlindo Cipriano Oliveira.
Armando Jorge Paulino Domingos.
Arnaldo Augusto Homem Rebelo.
Artur Miguel Claro da Fonseca Mora Coelho.
Artur Rodrigues Pereira dos Penedos.
Carlos Manuel Amândio.
Carlos Manuel Luís.
Casimiro Francisco Ramos.
Domingos Fernandes Cordeiro.
Eduardo Ribeiro Pereira.
Eurico José Palheiros de Carvalho Figueiredo.
Fernando Alberto Pereira de Sousa.
Fernando Alberto Pereira Marques.
Fernando Antão de Oliveira Ramos.
Fernando Garcia dos Santos.
Fernando Manuel de Jesus.
Francisco Fernando Osório Gomes.
Francisco José Pereira de Assis Miranda.
Francisco José Pinto Camilo.
Francisco Manuel Pepino Fonenga.
Gonçalo Matos Correia de Almeida Velho.
Henrique José de Sousa Neto.
João Rui Gaspar de Almeida.
Joel Eduardo Neves Hasse Ferreira.
Jorge Lacão Costa.
Jorge Manuel Damas Martins Rato.
Jorge Manuel Fernandes Valente.
Jorge Manuel Gouveia Strecht Ribeiro.
José Adelmo Gouveia Bordalo Junqueiro.
José Afonso Teixeira de Magalhães Lobão.
José Alberto Cardoso Marques.
José António Ribeiro Mendes.
José Carlos da Cruz Lavrador.
José Carlos Lourenço Tavares Pereira.
José de Matos Leitão.
José Ernesto Figueira dos Reis.
José Manuel Niza Antunes Mendes.
José Maria Teixeira Dias.
José Pinto Simões.
Jovita de Fátima Romano Ladeira.
Júlio da Piedade Nunes Henriques.
Júlio Manuel de Castro Lopes Faria.
Júlio Meirinhos Santanas.
Luís António do Rosário Veríssimo.
Luís Pedro de Carvalho Martins.
Mafalda Cristina Mata de Oliveira Troncho.
Manuel Afonso da Silva Strecht Monteiro.
Manuel Alberto Barbosa de Oliveira.
Manuel António dos Santos.
Manuel Martinho Pinheiro dos Santos Gonçalves.
Maria Celeste Lopes da Silva Correia.
Maria Fernanda dos Santos Martins Catarino Costa.
Maria Helena do Rego da Costa Salema Roseta.
Maria Isabel Ferreira Coelho de Sena Lino.
Maria Manuela de Almeida Costa Augusto.
Miguel Bernardo Ginestal Machado Monteiro Albuquerque.
Natalina Nunes Esteves Pires Tavares de Moura.
Nelson Madeira Baltazar.
Nuno Manuel Pereira Baltazar Mendes.
Paula Cristina Ferreira Guimarães Duarte.
Paulo Jorge Lúcio Arsénio.
Pedro Luís da Rocha Baptista.
Pedro Ricardo Cavaco Castanheira Jorge.
Raimundo Pedro Narciso.
Rosa Maria da Silva Bastos da Horta Albernaz.
Rui do Nascimento Rabaça Vieira.
Rui Manuel dos Santos Namorado.
Sérgio Paulo Mendes de Sousa Pinto.
Sónia Ermelinda Matos da Silva Fertuzinhos.
Partido Social Democrata (PSD):
Álvaro dos Santos Amaro.
Amândio Santa Cruz Domingues Basto Oliveira.
Antonino da Silva Antunes.
António Costa Rodrigues.
António d'0rey Capucho.
António dos Santos Aguiar Gouveia.
António Edmundo Barbosa Montalvão Machado.
António Joaquim Correia Vairinhos.
António José Barradas Leitão.
António Manuel Taveira da Silva.
António Moreira Barbosa de Melo.
António Roleira Marinho.
Arménio dos Santos.
Artur Ryder Torres Pereira.
Carlos Eugénio Pereira de Brito.
Domingos Dias Gomes.
Duarte Rogério Matos Ventura Pacheco.
Eduardo Eugénio Castro de Azevedo Soares.
Fernando José Antunes Gomes Pereira.
Fernando Manuel Alves Cardoso Ferreira.
Fernando Pedro Peniche de Sousa Moutinho.
Francisco José Fernandes Martins.
Francisco Xavier Pablo da Silva Torres.
Guilherme Henrique Valente Rodrigues da Silva.
Hermínio José Sobral Loureiro Gonçalves.
Hugo José Teixeira Velosa.
João Álvaro Poças Santos.
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João Bosco Soares Mota Amaral.
João Calvão da Silva.
João Carlos Barreiras Duarte.
João Eduardo Guimarães Moura de Sá.
Joaquim Martins Ferreira do Amaral.
Jorge Paulo de Seabra Roque da Cunha.
José Augusto Gama.
José Augusto Santos da Silva Marques.
José Bernardo Veloso Falcão e Cunha.
José de Almeida Cesário.
José Guilherme Reis Leite.
José Júlio Carvalho Ribeiro.
José Luís Campos Vieira de Castro.
José Luís de Rezende Moreira da Silva.
José Manuel Durão Barroso.
Lucília Maria Samoreno Ferra.
Luís Manuel Gonçalves Marques Mendes.
Luís Maria de Barros Serra Marques Guedes.
Manuel Alves de Oliveira.
Manuel Castro de Almeida.
Manuel Filipe Correia de Jesus.
Manuel Maria Moreira.
Maria de Lurdes Borges Póvoa Pombo Costa.
Maria Eduarda de Almeida Azevedo.
Maria Fernanda Cardoso Correia da Mota Pinto.
Maria Manuela Aguiar Dias Moreira.
Maria Manuela Dias Ferreira Leite.
Maria Teresa Pinto Basto Gouveia.
Mário da Silva Coutinho Albuquerque.
Miguel Bento Martins da Costa de Macedo e Silva.
Pedro Augusto Cunha Pinto.
Pedro José da Vinha Rodrigues Costa.
Pedro Manuel Cruz Roseta.
Pedro Manuel Mamede Passos Coelho.
Rui Fernando da Silva Rio.
Sérgio André da Costa Vieira
Vasco Manuel Henriques Cunha.
Partido do Centro Democrático Social - Partido Popular (CDS-PP):
António Carlos Brochado de Sousa Pedras.
Fernando José de Moura e Silva.
Francisco Amadeu Gonçalves Peixoto.
Gonçalo Filipe Ribas Ribeiro da Costa.
Jorge Alexandre Silva Ferreira.
Luís Afonso Cortez Rodrigues Queiró.
Nuno Jorge Lopes Correia da Silva.
Pedro José Del Negro Feist.
Rui Miguel Gama Vasconcelos Pedrosa de Moura.
Sílvio Rui Neves Correia Gonçalves Cervan.
Partido Comunista Português (PCP): .
Alexandrino Augusto Saldanha.
António Filipe Gaião Rodrigues.
António João Rodeia Machado.
Bernardino José Torrão Soares.
Carlos Alberto do Vale Gomes Carvalhas.
João António Gonçalves do Amaral.
João Cerveira Corregedor da Fonseca.
Joaquim Manuel da Fonseca Matias.
Lino António Marques de Carvalho.
Maria Luísa Raimundo Mesquita.
Maria Odete dos Santos.
Octávio Augusto Teixeira.
Partido Ecologista Os Verdes (PEV):
Heloísa Augusta Baião de Brito Apolónia.
Isabel Maria de Almeida e Castro.
O Sr. Presidente: - Dando início às intervenções programadas, tem a palavra, em representação do Grupo Parlamentar do Partido Ecologista Os Verdes, a Sr.ª Deputada Isabel Castro.
A Sr.ª Isabel Castro (Os Verdes): - Exmo. Sr. Presidente da República, Exmo. Sr. Presidente da Assembleia da República, Sr. Primeiro-Ministro, Sr.ªs e Srs. Membros do Governo, Sr.ªs e Srs. Convidados, Sr.ªs e Srs. Deputados: «Esta é a madrugada que eu esperava. O dia inicial inteiro e puro. Onde emergimos da noite e do silêncio. E livres habitamos a substância do tempo» - assim disse Sophia de Mello Breyner do 25 de Abril.
25 de Abril, o Dia da Liberdade: Liberdade do Povo, Liberdade de Povos. A liberdade para o povo português mas também para os povos da Guiné Bissau, de Cabo Verde, de S. Tomé e Príncipe, de Angola, de Moçambique que, por caminhos nem sempre fáceis, a conquistaram. Povos a que, pela sua heróica luta, se juntará em breve - é nosso desejo e estou convicta de que é desejo de todos os portugueses - o povo mártir de Timor Leste.
Povos africanos esses que, no seu processo libertador, simultaneamente, nos libertaram dos nossos próprios fantasmas, os fantasmas da guerra, da violência, do exílio.
Povos «juntos separados» que partindo nos acrescentaram, fazendo de Portugal, como diz Eduardo Lourenço, «um Portugal um pouco maior do que enquanto passado».
Povos irmãos, de um e do outro lado do mar, aliados de todos os combates, partilhando dos mesmos sonhos: a democracia, a paz, o direito à felicidade dos seus povos.
Como dizia Amilcar Cabral, nas suas clarividentes palavras, que recordo: «O nosso inimigo, não é o povo português, para nós combatentes da liberdade das colónias portuguesas, este inimigo é o colonialismo português... Isto não é culpa do povo português, que, em certo momento da história, soube mostrar o seu valor, a sua coragem, a sua capacidade e que, hoje mesmo, possui filhos capazes, filhos justos, filhos que querem também reconquistar as liberdades e a felicidade do seu povo».
Filhos de Portugal estes que também do lado de cá, durante gerações, souberam resistir! Mulheres e homens que souberam dizer não! Gente que afrontou a ditadura e lançou à terra as sementes da liberdade, da resistência, da rebeldia, as sementes que tornaram mais tarde, em Abril, o Abril possível!
Abril, o 25 de Abril que hoje nos concede a feliz oportunidade de reunir e acolher neste Parlamento, nesta sessão, neste 25 de Abril tão especial de festa, o Presidente Joaquim Chissano e o Sr. Bacai Sanhá, e através deles a possibilidade de saudar fraternalmente o povo moçambicano e da Guiné Bissau, que aqui representam.
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Aplausos gerais.
Sr. Presidente da República, Minhas Senhoras e Meus Senhores: 25 de Abril, o Dia da Liberdade. O dia em que os capitães, cansados da guerra, resgataram Portugal, fazendo emergir da ditadura a luz, para que pudéssemos nas ruas construir o dia! Os Capitães de Abril que, daqui, quero hoje, como sempre, vivamente, na sua generosidade, saudar! Os capitães a quem o povo português durante gerações de inconformismo e luta «mandou ser capitão revoltado».
Como diz Ary dos Santos: «Ser capitão revoltado/É o Povo que lhe diz/Que não ceda e não hesite/pode nascer um país do ventre duma chaimite». E nasceu!
Um País novo que pôs fim à ditadura, ao tempo do pensamento vigiado e único, ao tempo do terror, da censura, do isolamento, das prisões, do exílio. Um tempo de viragem, um tempo de começo, um tempo de projecto, um tempo de construção.
E é precisamente, Sr. Presidente, Sr.ªs e Srs. Convidados, desse Abril e desse País como presente e, sobretudo, como futuro a construir que importa falar.
Um Abril que nunca por nunca queremos ver transformado em mera sessão comemorativa. Um Abril em que nunca por nunca queremos que se abdique do sonho para nos fixarmos na recordação ou na melancolia. Um Abril que, formalmente, é sinónimo da democracia que se baseia num conjunto de direitos e liberdades públicas e se legitima enquanto tal, como organização da sociedade e do Estado, na busca do bem-estar, do desenvolvimento e da paz, como forma de assegurar a todos uma igualdade de oportunidades e uma existência digna.
Um Abril, contudo, que no seu significado mais autêntico, mais profundo, enquanto liberdade, enquanto democracia, enquanto expressão de poder partilhado, só deixará de ser uma referência simbólica, um conceito cristalizado, uma realidade por construir, um 25 de Abril que só deixará de ser uma meia verdade - a meia verdade que é como habitar meio quarto, ganhar meio salário e só ter direito a metade da vida, a meia verdade - que, dizia, só se afirmará plenamente como espaço de exercício da liberdade, como vivência individual e colectiva, como escolha, como destino solidário, como sentido da própria vida.
O sentido que falta à vida depois de Abril e que só conseguiremos, em conjunto, encontrar quando erradicarmos o analfabetismo e as periferias dos guetos geográficos ou sociais.
O sentido que só encontraremos quando a escola, em vez de se afunilar nas mentes e no acesso, se abrir à vida, se alargar nos horizontes mas também no gosto pela experimentação, no estímulo pela responsabilidade e pela crítica, no respeito pelo outro e pela natureza.
O sentido que falta e que só encontraremos quando, na vida, o direito à diferença cultural, religiosa, étnica e sexual deixar de ser tabu e quando a igualdade entre todos, como sinónimo da liberdade que pensa mais nos outros que em si própria, ousar finalmente transformar-se em justiça.
O sentido pleno que falta e só encontraremos quando, ao trabalho alienante e como direito em extinção, se suceder o trabalho como meio de realização individual, factor de desenvolvimento e de libertação para a vida.
O sentido que falta e só encontraremos quando, no reencontro com a nossa História, compreendermos a nossa condição de «primeiros exilados da Europa» e, nessa Europa, assumirmos a mestiçagem das nossas raízes, a riqueza da nossa identidade, a um tempo una e indivisível, e soubermos fazer da cooperação um fim e da solidariedade para com aqueles que vivem a sua diáspora uma vivência fraterna e quotidiana.
O sentido pleno da vida nascida de Abril que só encontraremos quando os recursos naturais deixarem de ser vilmente tratados como meros objectos passíveis de destruição, apropriação ou troca, e forem preservados como bens comuns, como condição de sobrevivência e como pertença de todos nós.
Um sentido para a vida que, após Abril, só encontraremos quando, em nome da memória que não se rende, soubermos optar entre a paz e a guerra, a vida e a morte, a palavra e a bomba e soubermos frontalmente recusar e não ser cúmplices da violência, do sofrimento e da morte.
Sr. Presidente da República, Minhas Senhoras e Meus Senhores: Falar de Abril enquanto projecto de construção é forçosamente, hoje, falar da nossa responsabilidade face ao futuro e da viagem que nele, colectivamente, temos de empreender.
Aquilo que verdadeiramente hoje se reclama, aquilo que ele requer, precisamente para dar vida a Abril e lhe garantir possibilidade de existência, é que ele se assuma como veículo criativo, libertador e de radical mudança.
Mudança que é forçoso operar no modo como vivemos, como produzimos, como consumimos.
Mudança quando tantas interrogações pesam sobre a sociedade, o planeta, o nosso futuro, o dos nossos filhos, o dos nossos netos.
Mudança na economia que, tal como existe, tem provado ser fonte de miséria, de exclusão, de degradação ambiental.
Mudança numa sociedade mergulhada no consumismo exacerbado, aprisionada pela ditadura dos objectos, que à solidariedade contrapôs a competitividade, que se afirma pelo ter e não pelo ser, que perdeu de vista a visão de longo prazo para se fixar no imediatismo e na pequenez dos ciclos eleitorais.
Mudança no tempo em que todos os bens são transformados em meros objectos passíveis de troca, tempo de apropriação privada de bens patrimoniais da humanidade, mesmo aqueles que são suporte da vida, como o ar que respiramos, a água que bebemos, a terra que pisamos.
Mudança em tempo de globalização, de ditadura de mercados, de glorificação do lucro como valor sagrado, em nome do qual tudo se sacrifica, destrói e parece justificar.
Mudança em tempo de crise ecológica sem paralelo que tem gerado desigualdade, destruição dos recursos, anulação da diversidade, pobreza, padronização cultural, perda de valores.
Tempo sobre o qual pairam novas ameaças, provocadas pelo apartheid social, as desigualdades, as rupturas dos ecossistemas, as alterações climáticas, a destruição da paisagem, o desaparecimento de espécies. Rupturas estas que, de modo irreversível, nos poderão tomar prisioneiros de processos incontroláveis e pôr em risco a nossa própria sobrevivência.
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Mudanças se reclamam, pois, perante um desafio novo, num registo historicamente inédito.
O desafio que liberte o Planeta mas também cada país, cada comunidade, cada cidadão, da armadilha de paradigmas ultrapassados.
O desafio que implica a responsabilidade de cada um em dar novas respostas aos problemas colocados.
O desafio que nos propõe uma nova solidariedade face às gerações futuras.
O desafio que nos impõe uma ética na relação do homem com a natureza e do homem consigo próprio.
O desafio do futuro que nos compromete, envolve e de cada um de nós exige uma ética de responsabilidade.
O futuro que começa agora, não é para amanhã, perante uma responsabilidade que não se decreta, aceita-se ou não, assim se concebe em democracia!
A democracia que, em nome de Abril, em cada dia terá de se reinventar, recusando o conformismo. A democracia que, inquieta sobre si própria, terá de ser capaz de se interrogar. A democracia que agora já não é dos outros mas é de todos e de cada um e está em nós, na nossa participação, na nossa vontade, no nosso dia-a-dia, saber moldar e animar.
Recuperando hoje, como ontem, o sonho e construindo a utopia. Em nome de Abril! Como o começo, como a aventura colectiva de um povo, que hoje, em 25 de Abril, é dia de celebrar.
Aplausos gerais.
O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, em representação do Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português, tem a palavra o Sr. Deputado Lino de Carvalho.
O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - Sr. Presidente da República, Sr. Presidente da Assembleia da República, Srs. Deputados, Sr. Primeiro-Ministro, Srs. Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional, Sr.ªs e Srs. Convidados, Sr. Presidente da República de Moçambique, Sr. Presidente da Assembleia Nacional Popular da Guiné Bissau, Homens e Mulheres de Abril: Faz hoje ,25 anos. Sensivelmente a esta mesma hora, sentado na borda da cama de um quarto-prisão do Hospital Miguel Bombarda, para onde havia sido transferido de Caxias, às ordens da PIDE, ouvi, do outro lado da janela, no pátio, alguém gritar «Marcelo caiu». Tendo em conta o local onde estava, e apesar das informações existentes, dei comigo a pensar que se tratava de um caso psiquiátrico. Afinal não era! A Liberdade, duramente conquistada, entrava-nos finalmente portas e janelas dentro. Até hoje.
Ao comemorarmos este quarto de século em liberdade, acodem-me à memória os nomes e as imagens dos que, com a sua luta, o seu sacrifício e o sacrifício dos seus familiares, por vezes a morte, na prisão, na clandestinidade ou no exílio, construíram as estradas que fizeram a liberdade. Comunistas, meus camaradas de partido, seguramente, mas também republicanos, socialistas, católicos, radicais de esquerda, estudantes, operários, assalariados agrícolas do Alentejo, camponeses, intelectuais, povos das então colónias em luta pela independência, mulheres e homens, todos - mas todos! -, desde os mais mediatizados e para sempre registados nas páginas da bibliografia de Abril até aos mais anónimos militantes da liberdade, com a sua luta, com a sua intervenção, construíram as «portas que Abril abriu». Todo um povo que deve ser convocado à nossa memória, à nossa homenagem, nesta hora, e que constituiu o fermento que adubou o campo onde floresceu a consciência dos militares, «dos Capitães de Abril», que, organizados no Movimento das Forças Armadas, arrombaram e escancararam as portas da Liberdade e da democracia. Como recordava Ary dos Santos, «Quem o fez era soldado/homem novo capitão/mas também tinha a seu lado/muitos homens na prisão». A eles, a todos eles, as nossas mais intensas saudações.
Aplausos do PCP, do PS, do PSD e de Os Verdes.
Tanto mais necessárias quanto, numa época de memórias dissolvidas e seleccionadas na diária mediatização da História, alguns, muitos, procuram branquear o passado e os responsáveis desse passado. Contra esse branqueamento, pela formação cívica das gerações posteriores e para que não volte, é preciso reafirmar sempre e sempre que o fascismo existiu em Portugal, que o nosso País foi palco de perseguições, de prisões por delito de opinião, de torturas, de censura, de guerra colonial, de proibições muitas e que o fim do fascismo não foi dádiva do regime, não foi o resultado de um simples «piparote», foi o resultado de muita luta, muito sangue, muita coragem cívica, muita paixão. Como dizia Hegel, «nada de grande se faz sem paixão».
Sr. Presidente da República, Sr. Presidente da Assembleia da República, Srs. Deputados, Srs. Convidados: Valeu a pena a luta pela Liberdade e pelas liberdades, mesmo quando muitas das esperanças de Abril estão por construir; mesmo quando o emprego com direitos não é um direito efectivo de todos e está quotidianamente ameaçado nos locais de trabalho e na legislação laboral do Governo; mesmo quando a pobreza e a marginalidade alastram, apesar do rendimento mínimo garantido; mesmo quando mais de 70% dos reformados continuam a ter de viver com pensões inferiores a 32 800$; mesmo quando as mulheres e os jovens continuam a ser discriminados; mesmo quando se agrava a injusta distribuição da riqueza para valores idênticos aos anteriores a 25 de Abril; mesmo quando o pensamento único, neo-liberal, por vezes polvilhado com contristadas devoções fingidas, domina os modelos de Estado e governos socialistas e sociais-democratas, impondo a desvalorização das políticas públicas, tudo submetendo à lógica da competitividade a todo o preço, da privatização e do lucro; mesmo quando, por isso mesmo, a sociedade hoje não é a sociedade da solidariedade com que sonhámos. Apesar de todos estes défices, valeu a pena, valeu incontestavelmente a pena fazer Abril, porque não há nenhum bem mais precioso do que a liberdade, sem a qual não há democracia política, e porque, em Liberdade, melhor se pode lutar pela democracia económica, social e cultural que ambicionamos.
Mas as celebrações deste quarto de século em liberdade ficam marcadas, estão marcadas, por factos dolorosos da maior gravidade: a brutal e irresponsável guerra de agressão dos Estados Unidos, da União Europeia e da NATO contra a Jugoslávia; a continuação da guerra em Angola, movida por Savimbi, em violação das resoluções da ONU; a violência, os
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massacres e a brutalidade da Indonésia contra o povo de Timor Leste.
Está hoje cada vez mais claro, designadamente para aqueles que, de boa fé, ainda concediam o benefício da dúvida, que a guerra não está a resolver nenhum dos problemas que alegadamente se propunha resolver, pelo contrário, está a agravá-los todos.
Violando a legalidade internacional, violando a Carta das Nações Unidas, milhares de toneladas de bombas destroem, colateralmente, cidades, fábricas, edifícios residenciais, pontes, escolas, edifícios históricos; matam crianças, velhos, mulheres e homens. É isto uma guerra humanitária, como afirmam os que a defendem? É isto uma acção humanitária, como sublinham os que pretendem dar cobertura constitucional à intervenção de Portugal? Não! Isto é uma guerra de destruição, isto é uma guerra de dominação imperial, isto é uma guerra onde Portugal está mergulhado, infelizmente, por responsabilidade do Governo do Partido Socialista.
Nas condições em que a NATO está a intervir - contra os seus Estatutos, fora das suas fronteiras, como organização ofensiva -, Portugal não tem nenhum dever de solidariedade. Portugal não tem nenhum compromisso com uma organização que, como meridianamente foi afirmado pelos estrategas norte-americanos, está já a testar no terreno o novo figurino que decorrerá de uma futura alteração do tratado constitutivo da NATO, como afirmação da nova ordem mundial, cumprindo a resolução do Senado norte-americano de 30 de Abril de 1998, formalizada no «Conselho de Guerra» de ontem, em Washington. Uma NATO a actuar como «xerife» do mundo, às ordens dos Estados Unidos e assessorada pelos governos europeus.
E isto é tanto mais insuportável quanto, simultaneamente - e sem querer forçar paralelismos deslocados -, se hesita e não se acode ao povo de Timor Leste, vítima de uma chacina continuada, perpetrada há mais de duas décadas, pela Indonésia, pelas suas forças armadas e pelas milícias por si organizadas e armadas. Aqui - como na Turquia, com o povo curdo - já não existem razões humanitárias que justifiquem uma acção firme que permita ao povo de Timor Leste escolher livremente o seu destino? É a política de dois pesos e duas medidas que o Partido Comunista Português há muito critica mas que só agora, alguns, com ar aparentemente sofrido, parecem ter descoberto.
Não defendemos, obviamente, uma qualquer intervenção militar. No Kosovo, no Curdistão ou em Timor Leste as soluções têm de ser políticas para problemas que são políticos.
O Governo português deve pôr termo ao seu envolvimento na guerra contra a Jugoslávia, contribuindo, no quadro da ONU, para uma solução política para o problema do Kosovo, com a sua autonomia, e assegurando o retorno pacífico da martirizada população de origem albanesa, no respeito pela soberania e integridade territorial da Jugoslávia e da Sérvia e pelos direitos das minorias nacionais.
Aplausos do PCP e de Os Verdes.
Se o fizesse, Portugal prestigiar-se-ia aos olhos dos portugueses e do mundo e teria mais autoridade para exigir igualmente uma intervenção mais determinada da ONU em Timor Leste, que garantisse a cessação imediata dos massacres e o desarmamento das milícias e que, no plano político, garantisse a autodeterminação e a independência do território. Ganhava Portugal e, sobretudo, ganhavam a causa dos povos e da paz. Esta seria a melhor celebração do 25.º Aniversário do 25 de Abril. 25 de Abril que nos libertou e pôs termo a uma guerra, 25 de Abril que não nos libertou para fazermos novas guerras.
Sr. Presidente da República, Sr. Presidente da Assembleia da República, Srs. Deputados, Srs. Convidados: Apesar das nuvens e das tempestades que se abatem no horizonte, mantemos bem viva a esperança e a certeza nos ideais de Abril. Não partilhamos de uma visão pessimista e catastrofista do País mas também não nos demitimos de dar voz aos que criticam os desequilíbrios territoriais, ambientais e sociais crescentes e de contribuirmos, com as nossas propostas, para construir um País melhor, um País e uma sociedade onde recuperemos a grande festa colectiva e solidária de Abril. Este é o único caminho para continuarmos a garantir, às portas de um novo milénio, a adesão das novas gerações aos ideais de Abril.
Por isso, com Abril, afirmamos, neste momento histórico, a necessidade de um novo rumo para a construção europeia, que assegure uma Europa dos trabalhadores e dos povos, de cooperação e de paz. Com Abril, afirmamos a necessidade de uma viragem à esquerda no País, que garanta a construção plena de uma democracia plena. Com Abril, afirmamos a necessidade de mais solidariedade, mais justiça social, mais liberdade. Com Abril, acreditamos no futuro.
Viva Abril!
Aplausos do PCP e de Os Verdes.
O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, em representação do Grupo Parlamentar do Centro Democrático Social - Partido Popular, tem a palavra o Sr. Deputado Luís Queiró.
O Sr. Luís Queiró (CDS-PP): - Sr. Presidente da República, Sr. Presidente da Assembleia da República, Sr. Primeiro-Ministro, Srs. Membros do Governo, Ilustres Convidados, Sr.ªs e Srs. Deputados, Nuno Abecasis disse, um dia, numa sessão igual a esta: «Liberdade e democracia são ruptura permanente, não só com os traços injustos e traumatizantes do antigo regime, mas também com aquilo que no regime actual ainda é fonte de frustração e desilusão».
É por aqui que devemos começar uma evocação do 25 de Abril. Uma evocação que não queremos que seja só de nostalgia mas que, ao mesmo tempo, tenha o rigor da História e assuma, no essencial, a preocupação do futuro.
Do ponto de vista dos factos, o 25 de Abril foi várias coisas e não uma só: foi, certamente, um golpe de Estado, onde coexistiram razões corporativas e aspirações políticas; foi, seguramente, uma Revolução que, ao contrário das reformas, por natureza prudentes e equilibradas, teve sonho e teve excesso, seguindo-se-lhe imediatamente um processo revolucionário, esse, sim, já em rota de colisão com o ideal democrático; por fim, o 25 de Abril, lido e entendido com o 25 de Novembro, foi, de facto, o baptismo de uma democracia parlamentar em Portugal.
É importante esta precisão histórica para que não caiamos na tentação de fazer História a preto e branco, nem de
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seleccionar heróis, nem de apagar verdades, numa palavra, para que não caiamos na tentação de ser maniqueístas.
Parece-nos oportuno, de resto, salientar que pertencemos à última geração que viveu o 25 de Abril e mal iríamos se não soubéssemos contá-lo com rigor.
É por isso que, para nós, faz todo o sentido e é de toda a justiça recordar neste Parlamento o contributo, pouco lembrado nestas ocasiões, dado pela Ala Liberal para que, anos mais tarde, o regime das liberdades fosse possível e dizer que não esquecemos o papel dos católicos para que houvesse uma consciência social disponível para a mudança. Outros - sim, sabemos que a própria ideia de desenvolvimento, nem mais nem menos do que a ideia de que havia outro Portugal possível, fazia já o seu curso nas novas gerações e nos novos quadros.
Assumimos que o 25 de Abril quer dizer coisas diferentes para pessoas diferentes.
Nós partilhamos o 25 de Abril da liberdade, da democracia e do projecto de bem-estar; não partilhamos, não nos peçam para partilhar, o 25 de Abril que não soube controlar uma descolonização que deveria ter sido um exemplo, nem soube evitar um processo de nacionalizações sem justa indemnização.
E, no entanto, estamos aqui todos sem crispação, descolonizando e, ao mesmo tempo, absorvendo um milhão de portugueses regressados das ex-colónias; estatizando as empresas e, ao mesmo tempo, recuperando o desenvolvimento próprio das economias de mercado, o que só pode querer significar que o verdadeiro herói é o povo português, que, com o seu voto, foi conduzindo a revolução militar para a democracia civil, a democracia civil para o desenvolvimento económico e, projecto inacabado, o desenvolvimento económico para a coesão social.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Abancada do CDS-PP representa aqui um dos quatro partidos fundadores da democracia portuguesa. Permitam-me que vos recorde, ainda que brevemente, o papel do nosso partido nesses 25 anos.
Tivemos razão, historicamente, quando votámos sozinhos contra uma Constituição que, por ser ideológica, dividia, como o vieram a comprovar as suas sucessivas revisões; quando aceitámos governar o País em bancarrota e sob ameaça do Fundo Monetário Internacional; quando participámos na Aliança Democrática, para civilizar um regime que persistia em manter uma tutela militar; quando fomos os primeiros a defender a liberalização da economia com o mesmo vigor com que hoje prevenimos o País para os excessos do liberalismo; e, ainda, quando alertámos para a necessidade de envolver a vontade popular e o espírito critico, numa fase em que se tornava oficial uma certa teologia da Europa.
Também não deixámos de estar na primeira Unha da definição do nosso presente quando, no ano passado, os portugueses foram chamados a votar em dois referendos. Em ambos, o que estava em causa era a escolha sobre valores essenciais e permanentes: num caso, o primado da vida, no outro, a unidade nacional. Naturalmente, o nosso empenhamento na vitória desses valores não foi exclusivo mas sabemos, e os portugueses sabem, que foi determinante.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: A primeira pergunta pára o futuro é saber se Portugal tem um projecto nacional. Um projecto nacional que nos permita ser, na Europa, o que formos capazes de fazer por nós próprios e o que formos capazes de projectar de nós mesmos para além da Europa.
Neste domínio, a nossa maior obrigação é para com Timor e com os timorenses, com quem há 25 anos falhámos, por quem há 25 anos lutamos e perante quem é chegada a hora de assumir todas as responsabilidades.
Permita-me, Sr. Presidente da República, que faça aqui, desta tribuna e neste dia, a Vossa Excelência e ao Governo, um apelo veemente para que tudo seja feito, até ao limite das nossas capacidades, no sentido não só de promover como de garantir aos nossos irmãos timorenses a liberdade de escolha para o seu futuro, como, de resto, a nossa Constituição claramente determina.
Sr. Presidente da República, Sr. Primeiro-Ministro: Julgo que a última coisa que podia acontecer a Portugal e a Timor era que as negociações de Nova Iorque se viessem a transformar num segundo Bicesse.
Por outro lado, devemos olhar com outra atenção para o espaço da lusofonia representado na CPLP. Devemos fazê-lo numa perspectiva quase refundacional, no momento em que a língua portuguesa já não é só nossa, é de todos.
Neste espaço lusófono, onde ainda há guerra, a nossa obrigação é ajudar à paz sem tomar partido e, onde há paz, devemos ter a capacidade de ajudar ao desenvolvimento, dando e recebendo.
A segunda pergunta respeita ao caminho que queremos trilhar na Europa. E aí sublinhamos, uma vez mais, que Portugal deve participar na construção europeia sem reserva mental mas com cautela, com a cautela e a prudência de quem quer estar na Europa mas não quer perder Portugal.
Salvaguardada a fronteira da nossa independência, isto é, da margem de autonomia que nos permite dominar o nosso próprio destino, devemos aprofundar a nossa cooperação e exercitar a nossa solidariedade com os demais Estados da União Europeia na edificação de uma Europa de paz e de uma Europa de prosperidade.
No plano interno, é oportuno recordar que é mais do que provável que o País fique entregue a si próprio após 2006, ano em que cessará a aplicação da leva de fundos comunitários recentemente negociada pelo Governo. Será, pois, a última oportunidade de que Portugal disporá para canalizar o investimento desses fundos para o factor humano e para a educação dos seus jovens. É essa a orientação que propomos, conscientes de que somos hoje, sobretudo, um País de pessoas e de que o que está em causa é a nossa atitude perante o futuro.
Quanto ao método na utilização dos fundos comunitários, limitamo-nos, Sr. Primeiro-Ministro, a exigir rigor, transparência e eficácia.
A terceira pergunta tem a ver com as mudanças corajosas a efectuar urgentemente no núcleo indelegável das funções do Estado, no domínio da justiça e da Administração Pública.
Quanto a nós, justiça que não é pronta não é justiça. A insuportável lentidão da justiça em Portugal, para além de constituir um evidente factor de crise na própria qualidade da democracia, afecta direitos fundamentais dos cidadãos.
Por isso, entendemos que é indispensável consagrar como prioridade, na política de justiça, a celeridade no seu funcionamento, o que há-de ser prosseguido onde está o problema: na melhoria e no aumento dos meios disponíveis e não na
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quebra das garantias fundamentais do processo judicial.
A qualidade da democracia também se preserva eliminando o excesso de burocracia de que padece a Administração Pública. A racionalização do seu funcionamento, a clarificação dos seus procedimentos e a sua não partidarização são, aos olhos do CDS-PP, elementos essenciais para restabelecer a confiança dos cidadãos no Estado.
Uma quarta e última questão prende-se com o direito que os portugueses têm de não se conformar com o atraso do seu País face aos outros países da Europa onde se integram de pleno direito.
Os portugueses reclamam do Governo capacidade e determinação para responder à sua ambição colectiva de igualdade de condições de vida com os demais cidadãos europeus.
Mais do que saber se o País satisfez critérios nominais para atingir a moeda única, os portugueses querem saber quando atingirão o pelotão da frente no que toca ao nível dos seus salários, ao montante das suas pensões, à qualidade da prestação dos cuidados médicos na rede de saúde pública e à justiça e equidade dos impostos que têm de pagar.
Não duvidamos que os portugueses estão dispostos a ser o pólo e o motor desse esforço colectivo de modernização e de desenvolvimento do seu País mas esperam do Governo um combate sem tréguas na erradicação da pobreza e no reforço das classes médias.
Nós, no CDS-PP, tributários dos valores personalistas da Democracia-Cristã, reafirmamos hoje, por ocasião do 25 de Abril, o nosso compromisso com uma justiça social mais efectiva, assente em mais desenvolvimento, melhor qualidade de vida, maior riqueza e efectiva solidariedade, porque as aspirações dos portugueses não nos são indiferentes.
Aplausos do CDS-PP.
O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, em representação do Grupo Parlamentar do Partido Social Democrata, tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Mendes.
O Sr. Luís Marques Mendes (PSD): - Sr. Presidente da República, Sr. Presidente da Assembleia da República, Sr. Primeiro-Ministro, Srs. Presidentes do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal de Justiça, Sr. Cardeal Patriarca, Excelência Reverendíssima, Srs. Convidados, Sr.ªs e Srs. Deputados: Comemoramos hoje, 25 anos volvidos, o momento que restituiu a liberdade a Portugal e abriu caminho à nossa democracia política. Comemoramos um 25 de Abril que não é propriedade de ninguém, nem à esquerda, nem à direita, porque pertence, por inteiro e por igual, à cidadania de todos os portugueses. Comemoramos o 25.º Aniversário de uma Revolução que operou, neste século, a mudança mais importante, porque mais profunda, mais sentida e mais duradoura, na vida de um Povo e de uma Nação. Portugal mudou o sentido da sua História, os portugueses passaram a ser senhores de si próprios e do seu destino.
os olhos de muitos, particularmente das novas gerações, tudo quanto comemoramos em Abril parece hoje óbvio ou até banal. Trata-se, afinal, da liberdade de falar, do direito de escolher ou de decidir - um elementar direito de cidadania. Só que a evidência de hoje era também a maior das negações há apenas 25 anos atrás.
Ao evocar Abril, estamos também, por isso mesmo, a exortar a memória e a coragem: a memória do que há 25 anos foi vencido, a coragem que foi necessária para vencer.
Muitos e muitos portugueses contribuíram, durante anos e anos, pela palavra, pela acção ou até com a própria vida, para ajudar à concretização deste desígnio colectivo. O País não esquece e a História não deixará de registar esse acervo de coragem e generosidade. E tomando hoje, aqui, a palavra, em nome do PSD, permita-se-me que evoque, de uma forma muito sentida, o papel e a acção que o fundador do nosso partido, Francisco Sá Carneiro, e seus companheiros na Ala Liberal desenvolveram a favor da liberdade e da democracia.
Aplausos do PSD e de alguns Deputados do Partido Socialista.
Mas uma homenagem é devida hoje, de forma muito particular, a quem, há 25 anos, ousou, arriscou e promoveu a mudança. Esse alguém são os militares de Abril, a quem o País está grato e que hoje, aqui, quero saudar e homenagear.
Aplausos gerais.
Sr. Presidente, o 25 de Abril não mudou apenas Portugal, mudou também o nosso lugar no mundo, porque nos devolveu à condição de Pátria entre as pátrias da liberdade, porque a democracia nos permitiu o reencontro de Portugal com a sua vocação de país europeu.
Quebrámos um isolamento secular em relação à Europa, um isolamento que nos empobrecia como Nação e nos tomava redobradamente um país periférico. Esta foi uma opção estratégica essencial, só possível, também ela, pela democracia que Abril instituiu. Uma opção que não anula, antes reforça, a aposta no ideal da lusofonia e na excelência das relações com os países africanos de expressão oficial portuguesa. Quero, por isso, também nesta ocasião, na pessoa do Presidente da República de Moçambique, que hoje nos honra com a sua presença, aproveitar para saudar os povos irmãos de Moçambique, Angola, Guiné Bissau, Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe, a quem nos ligam e ligarão sempre especiais relações de amizade e de solidariedade.
Hoje estamos no centro, no centro da decisão política e económica da Europa. Uma Europa que é factor de modernidade e alavanca de desenvolvimento mas que é também modelo de cidadania e paradigma do respeito pelos direitos humanos, o que nos confere uma legitimidade e uma autoridade particulares. A legitimidade, hoje ainda maior do que ontem, para evocar Timor e a memória fraterna do seu povo mártir. A autoridade para reclamar da comunidade internacional, em relação a Timor, coerência de atitudes e o fim da hipocrisia. É que não há povos de primeira e de segunda categoria, não há direitos humanos de primeiro ou de segundo grau, porque a Comunidade Internacional não pode ser firme nuns casos e permissiva ou tolerante noutros. A dualidade de critérios revolta e indigna.
O povo timorense tem direito à liberdade e à paz, Portugal tem o dever de ser firme e exigente e todos temos a fundada esperança que daqui a um ano - no próximo 25 de Abril - possamos estar aqui a celebrar também o início da nova era
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de liberdade, de paz e de independência para o martirizado povo de Timor Leste.
Aplausos do PSD e de alguns Deputados do PS.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Comemorar o 25 de Abril é, olhando para o passado, homenagear o acto de libertação de uma nação e de um povo, mas é também pensar o futuro, com as preocupações que o presente oferece. E nós temos, na pluralidade das opiniões deste Parlamento, algumas preocupações sérias. Elas têm a ver, sobretudo, com a qualidade da nossa democracia e com a crise que o Estado atravessa.
O tempo que aí vem é, para todos nós portugueses, um tempo de grande exigência. Não é apenas o tempo da nova página que se abriu na Europa. É, mais do que isso, é o advento da globalização, num mundo marcado por uma competição feroz e, por vezes, desumana. Vamos ter novos desafios e enfrentar problemas novos, alguns dos quais inéditos na nossa história.
Impõe-se, desde logo, por isso mesmo, ter uma cultura de grande exigência. Ao contrário, o que assistimos hoje em Portugal é à proliferação de uma cultura de facilidade. Na educação como na política, no Estado como na Administração em geral, estimula-se a facilidade em vez de se cultivar e premiar o esforço, o mérito e a excelência.
Sendo um tempo de exigência, não basta reagir. É imperativo ter a coragem de agir e de assumir convicções. Ao contrário, o que vemos hoje é cada vez mais substituir a ética das convicções pela lógica das conveniências. Faz-se o que é mais conveniente, não o que é mais necessário.
A filosofia do consenso tomou-se, na prática, uma obsessão. De excepção passou a regra. O que gera consenso faz-se, o que não se faz por consenso adia-se e não se faz. Como o consenso nem sempre é fácil, a conclusão resulta inevitável: mais adiamento ou maior imobilismo. Isto enfraquece a democracia representativa, porque põe em causa o primado da soberania popular, porque mina a autoridade democrática do Estado, porque desvirtua o mandato que é conferido através do voto, porque assim se retira verdade à acção política.
Os cidadãos passam a não confiar no Estado e a desacreditar de quem os representa. Agrava-se o divórcio entre governantes e governados. Perde qualidade a nossa democracia.
Como não há vazios em política e o Estado pouco decide, o poder legítimo e democrático, porque dimana do voto, é rapidamente substituído pelos poderes de facto, pelos gru1 pôs de pressão ou pelos interesses corporativos que se movimentam na sociedade. A pressão, a reivindicação, a ameaça ou até mesmo a chantagem passam a valer mais do que o voto de cada um. Quem tem maior capacidade de reivindicação, na economia, na informação, no mundo laborai ou empresarial, impõe o seu poder e afirma a sua vontade; quem é vulnerável e desprotegido e só dispõe da arma do voto, é rapidamente esquecido ou ultrapassado. Com a agravante, quando tal sucede, de que se agravam as desigualdades sociais, a riqueza concentra-se mais e distribui-se com menos justiça.
A legitimidade democrática cede, assim, perante outras legitimidades que o voto não contempla e o sufrágio não comanda. Isto não é bom para a democracia porque é uma perversão da própria ideia de democracia.
Aplausos do PSD.
Em vez de aperfeiçoarmos e aprofundarmos a democracia representativa, abrindo-a a novas formas de participação, acabamos, afinal, na prática, a reduzir o actual mandato de representação.
Mas à crise de valores e da democracia representativa soma-se ainda a crise do próprio Estado. E Portugal - há que dizê-lo - vive momentos de preocupação séria quanto ao estado do seu Estado de direito. Quando a justiça é lenta e atrasada, quando a investigação do crime chega tarde ou nem sequer chega, quando os conflitos e as acusações entre os órgãos e as instituições de justiça se agravam e, sobretudo, se travam na praça pública, quando se assiste a uma tendência crescente para a politização da justiça, quando a verdade mediática se sobrepõe à verdade judiciária, quando o cidadão é julgado na rua antes de o ser em tribunal, já não é apenas a denegação de justiça que está em causa, é muito mais do que isso, porque é a própria segurança das pessoas e são os próprios direitos e garantias do cidadão que estão ameaçados.
Aplausos do PSD.
Uma justiça serena e discreta, a funcionar com eficácia, dá confiança ao cidadão. Uma justiça em crise e em conflito na praça pública ameaça o cidadão e toma-o intranquilo e inseguro.
Também aqui, mas sobretudo aqui, neste pilar essencial do nosso Estado de direito, a diluição de responsabilidades, a omissão do Estado e a demissão da obrigação de exercer o poder assumem proporções inquietantes.
É que há, a todos os níveis da sociedade, lesões graves e omissões de difícil reparação; mas há, no plano do Estado, lesões e omissões que se podem tornar irreparáveis e irreversíveis.
É assim que se perde a confiança no Estado, é assim que se mina a democracia, mas é também tendo a percepção destes perigos que os podemos e devemos vencer, sem conformismos, sem resignações, com vontade, com lucidez e com esperança, com a convicção de que somos capazes, em coerência com o espírito mobilizador do 25 de Abril, que hoje assinalamos, honrando a saga que há um quarto de século devolveu Portugal à sua condição de país de futuro e com futuro.
Aplausos do PSD.
O Sr. Presidente: - Para uma intervenção, em representação do Partido Socialista, tem palavra o Sr. Deputado Francisco Assis.
O Sr. Francisco Assis (PS): - Sr. Presidente da República, Sr. Presidente da Assembleia da República, Sr. Primeiro-Ministro, Ilustres Convidados, Srs. Deputados: 25 anos decorridos sobre o momento em que o povo português recuperou a liberdade que a ditadura salazarista lhe havia confísca-
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do, quero começar por homenagear os homens e as mulheres que, ao longo desses opacos e sombrios 48 anos de autoritarismo político, tudo adiaram e de quase tudo prescindiram nas suas vidas - do amor, da família, da profissão, do percurso individual - para atenderem a uma única urgência vital, a de lutar pela deposição de um regime que coarctava os direitos cívicos e políticos, esmagava a liberdade e oprimia ferozmente os portugueses.
Aplausos do PS, do PCP e de Os Verdes.
Esses resistentes, que nunca abdicaram da esperança na dignidade humana, foram, pelos seus gestos e atitudes, as estrelas que guiaram a liberdade nos penosos tempos da noite fascista. Pela sua própria condição, esses homens e essas mulheres estão muito para além das homenagens que institucionalmente lhes possamos prestar e se os evoco hoje, aqui, é mais por nós do que por eles. Nesses gestos de grandeza inteiramente generosa, eles não se limitaram a legar um exemplo, outorgaram-nos também uma indeclinável responsabilidade cívica ao mesmo tempo que nos proporcionaram a possibilidade de reconciliação com o que de melhor a humanidade pode comportar. Nessa resistência estava mais do que a resistência, estava sobretudo a afirmação do homem que, ante o destino trágico, não verga, estava a lição fundamental do humanismo, tal como a nossa civilização o concebeu e consagrou nos seus momentos mais luminosos.
Não é pois sem emoção que, nesta Câmara, onde a liberdade plana entre as consciências que discordam, ouso evocar os que não cederam, os que não abdicaram, os que nunca desistiram. Nenhum deles teria como certo o êxito da luta que travava, mas levaram-na a cabo com um empenhamento absoluto que não decorria de qualquer expectativa concreta, mas antes de uma convicção funda que não conhecia hesitações. Porque a liberdade e a democracia não são um destino natural para os povos mas, sim, o resultado de vontades que tantas vezes têm mesmo de saber forçar o destino.
Talvez esses homens e essas mulheres pareçam demasiado velhos para o tempo vertiginosamente célere que vivemos, talvez a sua imagem surja longínqua e ténue. E é por isso mesmo que temos acrescida necessidade de os lembrar, porque nós sabemos que muitas vezes o assassinato da memória constitui um grave crime contra o futuro.
Aplausos do PS.
Durante 48 anos vigorou, em Portugal, um regime que cultivava uma visão anacrónica do país, que nos projectava fora do tempo e do espaço, nos impermeabilizava às correntes do pensamento que percorriam a Europa e o mundo, nos condenava ao estatuto desse "Portugal em diminutivo", como compreendeu o génio de Alexandre 0'Neill. Era o tempo do medo, da censura, da tortura, da polícia política, dos tribunais plenários, do exílio, da opressão, da denegação dos direitos cívicos e políticos, da injustiça e da intolerância. E era, para além disto tudo e sob isto tudo, o tempo de uma imensa hipocrisia, desse fascismo de aparentes brandos costumes que reprimia desde logo pela inibição, que censurava antes de mais pelo condicionamento mental, que torturava pela ameaça constante do recurso à tortura, não hesitando porém em recorrer à mesma, de forma cruel e bárbara sempre que a profilaxia do medo não funcionava. Era o tempo da pequena barbárie de todos os dias, que devassava intimidades, vigiava consciências, agrilhoava o sonho, a imaginação, as pequenas utopias que cada ser humano inelutavelmente transporta consigo.
Esse tempo acabou em 25 de Abril de 1974. Saúdo com entusiasmo os Capitães de Abril que restituíram a liberdade ao povo português.
Aplausos do PS, do PSD, do PCP e de Os Verdes.
Nenhuma revolução se leva a efeito sem alguma dose de inocência, neste caso bem patenteada na atitude desses jovens capitães que ousaram, num admirável gesto de insubordinação, romper com a ordem instituída, pondo fim a um regime que não apresentava perspectivas de auto regeneração e se regidificava em torno de dogmas absolutamente anquilosados.
Recordo a imagem, que ficará como um ícone para a história, do capitão Salgueiro Maia, em cima de um carro de combate, olhando solitariamente para a mais gregária das multidões, o povo de Lisboa libertado das grilhetas, festejando com genuína alegria o fim da ditadura.
Aplausos do PS, do PSD, do PCP e de Os Verdes.
Essa imagem perdurará como uma espécie de metáfora da Revolução. Lá está o militar, num gesto heróico e simples, e o povo ao fundo, um povo que já não aceita se não ser o sujeito do seu próprio devir histórico.
Como todas as revoluções também esta gerou vicissitudes diversas, originou, contradições, proporcionou eventuais perversões; mas, como poucas, esta foi uma Revolução pacífica e mesmo os excessos que possa ter provocado rapidamente foram recuperados e reconduzidos para a pureza original do acto revolucionário que consistia em restituir a liberdade ao País.
Nesta circunstância, cabe elogiar o elevadíssimo sentido de civismo do povo português e a excepcional lucidez política de que, em contexto tão conturbado, deu inegáveis provas. Em poucos anos, o País solidificou uma democracia parlamentar, erigiu um regime constitucional assente no primado do respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, encetou um processo de desenvolvimento económico e social de vastas proporções, projectou-se na cena internacional e adquiriu um novo prestígio na comunidade das nações.
Pelo meio, levou-se a cabo um processo de descolonização que permitiu o acesso à independência de povos e países que por ela lutavam e também aí revelámos a sabedoria necessária para não percebermos como traumática uma amputação territorial inevitável. Aproveito, aliás, este ensejo para saudar nas pessoas do Sr. Presidente da República de Moçambique e do Sr. Presidente da Assembleia Nacional da Guiné Bissau hoje aqui presentes, o que muito nos honra, os povos e os países irmãos de África, que alcançaram a independência na sequência do 25 de Abril...
Aplausos gerais.
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... e que, através da luta dos seus movimentos de libertação nacional, também contribuíram para o derrube do regime anterior. Felizmente, mantemos hoje profundas ligações políticas e afectivas com esses povos com quem compartilhamos valores de civilização e de cultura.
É também imperioso lembrar, nesta ocasião, o povo de Timor Leste, que tem travado um combate heróico pela consagração do direito à autodeterminação e tem vivido horas amargas que se espera sejam rapidamente ultrapassadas.
Aplausos do PS, do PSD e do CDS-PP.
Portugal mudou muito nestes 25 anos. Da ditadura passou-se a uma democracia representativa devidamente solidificada, que tem funcionado de forma admirável:Do proteccionismo económico isolacionista transitou-se para, uma economia social de mercado aberto aos fluxos da internacionalização. Deram-se relevantes modificações no plano social e o País é claramente outro no domínio da cultura e das mentalidades, mais aberto, mais cosmopolita, mais criativo e mais tolerante.
Cresceu significativamente o rendimento per capita, diminuiu drasticamente a mortalidade infantil, recuou o analfabetismo, aumentou exponencialmente a população escolar, com particular incidência no ensino superior, ampliaram-se as oportunidades colocadas à disposição dos portugueses, instituiu-se o poder local democrático e consagrou-se um estatuto de vasta autonomia para as regiões insulares.
Para além de tudo isto, promovemos o reencontro de Portugal com a Europa. Nós, que quase sempre fomos Europa de uma outra forma e que nos remetêramos para uma posição subalterna e periférica no nosso próprio continente, reencontrámos a Europa da tradição iluminista, liberal e progressista. Dela fazemos hoje parte, por iniludível vocação assente na ideia da participação no seu património de valores e princípios. A plena inserção na União Europeia constitui a expressão e o garante desta nova ancoragem da Pátria portuguesa.
Somos europeus sem renegarmos a nossa dimensão atlântica sem descurarmos a presença na vasta comunidade lusófona. Num mundo cada vez mais globalizado e interdependente, o ecumenismo, que historicamente nos caracteriza, constitui uma singularidade que nos distingue e abre novas perspectivas de afirmação internacional.
Muitos foram, seguramente, os contributos prestados para que o País alcançasse a presente situação. Permitam-me que saliente o papel desempenhado pelo Partido Socialista. Antes de 1974, na resistência, depois do 25 de Abril, na luta pela instauração de uma democracia parlamentar e na busca de equilíbrios que evitassem a exclusão de qualquer sector político do debate nacional, o PS revelou-se um partido fundamental em ordem à consolidação do regime democrático nascente.
Quantos não se recordam ainda da acção dos socialistas em momentos decisivos, do célebre comício da Fonte Luminosa até ao episódio do jornal República, lutando pelo triunfo de um Estado de direito Democrático e de uma democracia parlamentar no nosso país.
Aplausos do PS.
O PS contribuiu ainda decisivamente para, através das revisões constitucionais de 82 e 89, garantir o carácter plenamente civilista do regime e a modernização do modelo de organização económica da sociedade portuguesa. Temos também legítimas razões para ter orgulho no trabalho desenvolvido por todos os governos em que participámos, desde o I Governo constitucional ao actual Governo, liderado pelo Sr António Guterres.
E de entre os socialistas, um, muito em particular, se destacou em todo este processo: Mário Soares.
Aplausos do PS.
Não há nenhuma razão conjuntural que me iniba, nesta ocasião, de salientar a importância do contributo de Mário Soares para a consolidação da democracia portuguesa. Faço-o precisamente numa altura em que ele volta a travar um combate político, desta vez em nome de uma ideia e de um projecto para a Europa. E quero também saudar o Dr. Mário Soares por isso mesmo.
Vozes do PS: - Muito bem!
O Orador: - Que outro homem público, depois de se ter alcandorado ao desempenho das mais altas funções do Estado e de ter sido distinguido com as mais elevadas honrarias da República, se disporia, em nome de valores, de princípios, de referências programáticas, de profundas convicções, a regressar ao terreno do combate político?
Aplausos do PS. Vozes do PSD: - É uma vergonha!
O Orador: - Quem, senão Mário Soares, se predisporia a abandonar essa espécie de Olimpo em que jazem petrificadas as estátuas consensualmente reverenciadas para assumir, em plenitude e com todos os riscos, a condição de cidadão cívico e politicamente comprometido? 25 anos depois de Abril esta não é, seguramente, a menos sublime das homenagens que a Abril se prestam.
Temos hoje razões para enfrentar o futuro com optimismo, mas não devemos nunca perder a lucidez crítica. A democracia é sempre um regime frágil que carece de ser permanentemente realimentado. A perda de importância da componente política na sua função reguladora e enquadradora, num mundo doravante globalizado económica e financeiramente, o declínio da cidadania em sociedades cada vez mais atomizadas, o regresso de identidades tribalistas, desconfiadas face ao outro, o avanço de alguns populismos, não podem deixar de ser percebidos com inquietação.
Estamos a atingir ó final de um século simultaneamente marcado pela glória de realizações técnico-científicas sem precedentes e pela eclosão de desastres sem paralelo. Este foi o século da democracia e do totalitarismo, da afirmação do primado dos direitos do homem e da barbárie, dos avanços da medicina e do uso terrífico da ciência e da técnica. Neste século, tão fecundo e tão repleto de contrastes, aprendemos todos, seguramente, a ser um pouco mais modestos. Entre o
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caos e a redenção haverá, contudo, decerto, um caminho que a humanidade será capaz de trilhar.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Não quero terminar sem antes aqui deixar um registo existencial e pessoal. Pertenço a uma geração que cresceu e amadureceu cívica e politicamente já depois de 74. Não conhecemos a guerra colonial, não sofremos os efeitos da censura, nunca vivemos rodeados pelo medo. Éramos, em 74, demasiado novos para que o 25 de Abril pudesse ter sido o dia mais feliz das nossas existências, mas temos plena consciência que foi a ocorrência desse dia que tomou possíveis tantos dias felizes nas nossas vidas. Somos, e ouso falar em nome desta nova geração de portugueses, filhos da liberdade e da democracia. Na pluralidade que nos estrutura, transportamos connosco a esperança e a confiança no futuro de Portugal. E jamais perderemos de vista que cumprir Abril é uma tarefa sempre inacabada, como realizar Portugal é o nosso desafio de todos os instantes.
Aplausos do PS, de pé.
Neste momento, o Sr. Presidente da Assembleia da República, saindo da Mesa da Presidência, toma lugar na Tribuna do Orador, para proferir a sua intervenção.
Aplausos gerais.
O Sr. Presidente: - Sr. Presidente da Republica de Portugal, Sr. Primeiro-Ministro, Srs. Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional, Srs. Vice-Presidentes da Assembleia da República e Srs. Deputados, Srs. Membros do Governo, Sr. Presidente da República de Moçambique, Sr. Presidente da Assembleia Nacional Popular da República da Guiné Bissau, Excelências, Srs. Ex-Presidentes da República, Sr. Presidente e Membros da Direcção da Associação 25 de Abril, Srs. Embaixadores, Minhas Sr.ªs e Meus senhores, Sr. Patriarca de Lisboa, Excelência:
Sr. Presidente da República, é a quarta vez que, no aniversário da Revolução libertadora que de novo memoramos, esta Assembleia tem a honra da sua presença. Mas nem por isso a solenidade que ao acto V. Ex.ª empresta corre o risco de se converter num hábito. De comum, apenas o sentido do acto memorado, agora com a mais valia de sobre ele ter decorrido um quarto de século: o mais longo período da história política do nosso País em regime republicano e democrático.
Na nossa lapela, os mesmos cravos vermelhos que em 25 de Abril ornaram, em mensagem de libertação e paz, os canos das espingardas dos valorosos Capitães de Abril.
Mas o heroísmo e a poesia que em tudo isso houve reflorescem no nosso espírito e no nosso coração, tal como os cravos desta primavera que, sendo outros, são na sua beleza e no seu significado os mesmos.
Se há gestos imunes à rotina, é este de V. Ex.ª, nos dias 25 de Abril, querer dar-nos a satisfação e a honra de estar aqui connosco.
Este "estar com" tem ainda um outro significado: o de que V. Ex.ª esteve, antes de Abril e depois de Abril, do mesmo lado do combate travado pelos valorosos capitães. Bem haja também por esse combate.
Aplausos do PS.
Sr, Presidente da República de Moçambique, a presença de V. Ex.ª a este acto reveste-se, outros sim, de alto significado. Abril foi também libertador para o seu belo país. E Vossa Excelência esteve, durante mais de uma década, entre os que lutaram por essa libertação. Tal como os Capitães de Abril, aceitou morrer para poder ser cidadão de uma pátria livre.
Foi pena que tivesse de pegar em armas para conseguir o que estava inscrito nos determinismos da história e nos mais íntimos anseios dos nossos corações. Também os Capitães de Abril tiveram de preencher essa condição. Estou certo de que V. Ex.ª sente o significado do dia de hoje tanto e tão sinceramente quanto nós. Por isso, é grande a nossa satisfação por podermos tê-lo connosco. De igual modo pela presença do Sr. Presidente da Assembleia Nacional Popular da República da Guiné Bissau, ele também um combatente pela libertação do seu país, a quem igualmente e calorosamente saúdo...
Acompanham-nos ainda três prestigiosos ex-Presidentes da República Portuguesa, a quem o país também deve o que o 25 de Abril foi, não tanto enquanto acontecimento histórico mas enquanto processo conducente à institucionalização do seu espírito e do seu significado
Sr. Presidente e Membros da Direcção da Associação 25 de Abril, VV. Ex.ªs representam hoje, aqui. Abril e os vossos companheiros de armas que não puderam estar connosco. A todos, presentes e ausentes, estes na pessoa de V. Ex.ª, Sr. Presidente, quero agradecer, em representação da Assembleia da República, que é como quem diz - di-lo, aliás, expressamente a Constituição - em representação de "todos os cidadãos portugueses", o reencontro de Portugal consigo mesmo e com a liberdade que o 25 de Abril tornou possível.
Aplausos do PS, do PSD e do PCP.
Os valorosos Capitães de Abril - uma vez mais o digo - aceitaram o risco de morrer para que Portugal fosse livre. Essa dívida nunca se salda e a única moeda em que se amortiza é a gratidão.
Se o sentimentos são sempre os mesmos, e ciclicamente se renovam, não convém que as palavras o sejam. Não gostaria eu de copiar uma conhecida personalidade histórica, cujos discursos eram sempre iguais, além de os primeiros depois do último.
Risos.
Mas ao folhear um livro que esta Assembleia acaba de publicar, contendo as intervenções parlamentares das 23 anteriores cerimónias comemorativas do 25 de Abril, reli com prazer muitas delas, sem excluir - passe a pequena vaidade! - as cinco de que mi intérprete.
A minha preferência foi para a minha primeira - de entre as minha, é claro! - que teve lugar no 25 de Abril de 1980. Depois, mi perdendo imaginação, para não dizer fulgor. Por isso, peço permissão para transcrever a breve caracterização que então fiz do regime ditatorial anterior a Abril: "Os poderes concentrados num só homem; o voto reduzido a uma farsa; a justiça convertida numa comédia; a segurança traduzida num terror; a intimidade desfeita numa devassa; a
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consciência ultrajada numa tutela; a informação expressa num diktat; as colónias incendiadas numa guerra; as relações exteriores balizadas num cerco; o cidadão atolado num pântano».
E acrescentei: «É profilático lembrar. Lembrar que vivemos com um esbirro em cada esquina; um ouvido em cada telefone; um pé de cabra policial em cada porta; uma espreitadela pidesca em cada carta; um expurgo em cada intimidade; um cassetete em cada grito; um mandato de captura em cada capricho; uma ordem de morrer em cada jovem; uma injustiça em cada salário; uma violação em cada consciência.
Era este o Portugal feudalizado, belicista, neurótico e solitário de antes do 25 de Abril».
Aplausos do PS.
É de facto importante a memória do mal, a servir de negativo à memória do bem. Até porque - às vezes esquecemo-nos disso - os cidadãos que hoje têm 40 anos, ou seja, mais de metade da população portuguesa, e cerca de três quartos dos seus eleitores, começaram a raciocinar politicamente já depois do 25 de Abril. Para eles, a liberdade já começou transformada em hábito, sem grande margem a poder converter-se num verdadeiro sentimento.
Já se disse o mesmo de outro modo: «Já não estamos privados da liberdade, mas do pensamento da liberdade».
Por vezes, resisto mal à impressão de que, os que não têm acesso à memória dos tempos da ignomínia, da opressão, da indignidade e do medo, têm tendência para pensar que a nossa indignação contra «esse outrora agora», é sintoma de mentalidade doentia. Como sempre viveram em liberdade, propenderão a pensar que, se não foi sempre assim, sempre assim há-de ser. A verdade, porém, é que os novos arranjos do poder provisorizam vitórias que julgávamos definitivas. Daí, repito, a importância da memória do mal.
Até porque, ao contrário dos velhos resistentes da liberdade, aqueles contra quem resistiram não ensarilharam as armas do seu poder despótico nem encolheram as garras do seu ódio. É vê-los em operações de branqueamento de imagem, inequívocas e frequentes demais para não serem suspeitas.
Vozes do PS: - É verdade!
O Orador: - Salazar volta a assumir, nos recordatórios de alguns, o estatuto de homem enviado por Deus para salvar a Pátria das garras do mal. Não faltam sequer os sempre disponíveis inocentes úteis. E como sabem que não é fácil combater a partir de fora os regimes democráticos, cuidam de miná-los por dentro.
Ainda que com reserva mental, entram no jogo democrático. E sabendo que não podem com êxito explorar-lhe os defeitos - que não tem -, exacerbam-lhes as virtudes, até convertê-las no seu próprio oposto.
A virtude privilegiada para essa operação de autodestruição por dentro é a liberdade. Sabendo que, mal doseada, pode converter-se em desordem, lutam por aquilo que odeiam, instrumentalizando os excessos de liberdade e tentando transformá-los em passaporte para a anarquia. Atingida esta, passarão - é a lição da história - a exigir já não liberdade mas opressão e ordem.
Demais sabem eles o que com facilidade esquecemos: que a partir do momento em que a ordem valer mais na bolsa da psicologia colectiva do que a liberdade, os mesmos que se bateram por esta passarão a exigir aquela.
A esperança desses é que a liberdade venha a morrer às suas próprias mãos, que a liberdade sem controle mate a liberdade. Será por acaso que o neonazismo renascido volta a empunhar as armas do desemprego, da violência, da insegurança e da desordem que franquearam o acesso ao poder de um pintor medíocre de bigodinho irritante?
Em intervenção que aqui fez o saudoso Salgado Zenha, a propósito do 25 de Abril, deixou-nos este recado: «o contrário da tirania não é a anarquia, mas a liberdade».
Vozes do PS: - Muito bem!
O Orador: - Mas será que deliro receando que a liberdade e a democracia conquistadas a partir de 25 de Abril possam de novo estar em risco?
Não me digam, por favor, que deliro por ser óbvio que não é configurável um risco iminente. Não é disso que se trata. Do que se trata é de tendências, não tanto nacionais mas universais, cujo terminal previsível pode comportar esse risco.
É que a democracia vem de um mundo e de um tempo que não existem mais. Está aí, impante, o mundo só das velhas utopias, das instituições que o iluminismo nos legou, ameaça não deixar pedra sobre pedra. A luz agora é outra. Contraditoriamente, por um lado, globaliza, por outro, feudaliza. Globaliza territórios, mercados, moedas, informações, culturas, identidades. Mas converte satélites, cadeias de televisão, empresas transnacionais e máfias em novos pólos de poder feudalizado. Numa bandeja de livre iniciativa e feroz competição, redistribui o poder entre os profetas da informação, os donos do dinheiro e os senhores do crime organizado, os novos senhores feudais.
À centralização do poder, que esteve na origem dos estados-nação que o século XVIII nos legou, segue-se agora a sua pulverização. Novos poderes difusos dividem entre si, a benefício de inventário, a herança do Estado clássico que, incapaz de reagir, recua. Tudo se passa como se. um big-bang político pusesse a flutuar nos espaços das velhas soberanias pedaços da originária/w/e - y/os. O próprio cidadão, depois de durante séculos ter sido tutelado e sujeito, aspira agora a ser autárquico, e progressivamente o é.
Como foi isto possível? Foi-o porque a universalização da informação criou condições propícias ao triunfo de novos liberalismos. O liberalismo político, que exaltou o cidadão em detrimento da autoridade do Estado, e o liberalismo económico, que exaltou a competição em detrimento dos mais fracos. Resultado: uma sociedade civil que aspira à retoma das prerrogativas políticas que no passado delegou e uma organização económica - melhor diria, uma desorganização! -, que progressivamente se emancipa da tutela do Estado, concentra a riqueza nas mãos de cada vez menos e distribui a pobreza entre hordas de cada vez mais.
Neste novo contexto, a riqueza não apenas se concentra em novos pomos de poder político como se imaterializa, se oculta, e se joga à velocidade da luz no casino universal das
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bolsas, aí onde foge a pagar impostos e escapa à incomodidade da distinção entre a de origem limpa e a de origem suja. É nesta e outras lavanderias da «roupa» estampada nos bancos centrais que o crime organizado a si próprio se lava, após o que acede ao poder económico legítimo, e à sua extensão política, em pé de igualdade com qualquer outro.
Enquanto isto, os arranjos institucionais herdados ganham ferrugem e ganham bolor. Entre eles, os que mais se identificam com os valores e as práticas da democracia e da liberdade de não competir ou de não esmagar o próximo, tanto faz.
Pergunta elementar: foi este o mundo em função do qual o 25 de Abril escolheu os seus valores e programou os seus sonhos? As convicções e os ideais dos que o fizeram continuam eficazes contra os seus novos inimigos ou precisamos já de um outro 25 de Abril por dentro de cada um de nós, para que possamos vencer as novas batalhas do futuro?
O que faz mais sentido? Recordar o passado de Abril ou reflectir sobre o seu futuro?
Abril foi o fim do mal e a aurora do bem, 25 anos depois, o balanço é não só positivo mas exaltante. Somos hoje um País livre e democrático, que não apenas cresce mas em bom ritmo se desenvolve. País europeu entre parceiros europeus, prestigiado, com assento na torre de comando da nave europeia comum em direcção ao futuro. Somos, além disso, um moderno Estado de direito, com o que de garantístico esse conceito encerra.
Mas, em tempo de balanço, cumpre reconhecer que em alguns aspectos falta cumprir Abril, enquanto que noutros se impõe actualizar Abril.
Falta cumprir Abril com a libertação do povo de Timor, povo heróico, povo mártir, a nós ligado por laços de história, afecto e cidadania. Já desponta a alvorada da sua libertação por sobre os cadáveres de renovadas chacinas. O medo começa a transferir-se para o coração do algoz, mas ainda é cedo para cantar vitória. Não poderemos, no entanto, permitir-nos descanso enquanto, em plenitude, não raiar em Timor o sol da liberdade.
Aplausos gerais.
Falta cumprir Abril com a paz em Angola. A guerra civil que vitima o seu povo tem culpados certos, longínquos e próximos. Ainda assim, o povo português reflecte as ansiedades do povo angolano como se fossem suas.
Falta cumprir Abril com o triunfo definitivo dos direitos humanos, onde quer que novas limpezas étnicas, novos racismos, novas xenofobias e novas injustiças ou também novas violências desnecessárias, os ponham em causa ou apenas em risco. Onde quer que isso ocorra, diz-nos directamente respeito, a nós e a todos os povos, a nós e a todos os homens. Essa universalização de princípios e sentimentos é decerto o lado positivo de um fenómeno que justifica receios:
o fenómeno da globalização.
Falta ainda cumprir Abril, para além do muito que já foi cumprido, no grau de acesso a muitos dos direitos fundamentais que a nossa Constituição consagra. Onde ela diz - e muitas vezes diz - «todos têm direito a...», a realidade corrige por defeito esse universo. Se são cada vez mais os que dispõem de condições de exercício dos correspondentes direitos e se, em matéria de direitos fundamentais, o desenvolvimento é tarefa por definição inacabada, a muitos títulos estamos longe de poder descansar.
O meio século em que vivemos privados dos mais elementares direitos deixou marcas de difícil apagamento. E se os níveis de desenvolvimento se medem em termos comparativos, ocorre que os países desse nosso salutar campeonato continuam, eles também, a desenvolver-se, pelo que temos de vencer o nosso atraso e de compensar o seu avanço.
E como actualizaremos Abril? Preservando e actualizando os seus ideais, valores e propósitos, num contexto não apenas diferente mas em grande medida outro. Neutralizando o abissal desfasamento entre a realidade de hoje e a ordem política, económica e social de ontem. As regras do exercício do poder têm de mudar. O próprio poder é hoje substancialmente outro.
Sempre a essência do poder mudou com o alargamento do espaço das unidades políticas. É a conhecida inter-relação entre o tamanho e a natureza das coisas. Pois bem, as clássicas unidades territoriais fundem-se; as fronteiras que as balizavam derrubam-se; os sentimentos que as animavam apagam-se; a velha polis, raiz semântica da palavra política, tende agora a assumir a dimensão do próprio orbe. Enquanto isso, a própria acção política tradicional perde preeminência. Já os ensaístas se atrevem a configurar cenários de cena política deserta.
É esta tendencial transmutação dos corpos políticos tradicionais num só, qualitativamente ainda mal definido, que nos não deixa ver claro na bola de cristal do futuro.
Já se vislumbram alterações qualitativas de enorme complexidade e significado. O novo corpo político será mais relacional do que o institucional. Não sendo ainda fácil configurá-lo, é desde já possível concebê-lo como um complexo de redes informacionais entrelaçadas, por onde o novo poder circula, relacionado com jogos de interesses e já não, ou não tanto, com princípios e valores.
Os circuitos institucionais clássicos - os parlamentos, os governos, os tribunais, os partidos, os sindicatos e as igrejas -, se não os próprios conceitos de soberania e representação, verão acentuado o seu declínio. Irá ficando cada vez mais óbvia a sua impotência para darem respostas eficazes, em termos institucionais clássicos, às novas questões do nosso tempo.
Problemas universais, sejam eles o consumo de drogas, a explosão demográfica, a implosão ecológica, o crime organizado, a insegurança, o desemprego, só podem ter soluções universais, ou não as ter. Quanto mais dilatada é a sua dimensão, mais absurdo é tentar solução para eles em sistema de recinto fechado.
E a crise universal dos valores só pode encontrar tempero em normas jurídicas e princípios éticos imbuídos, eles também, do requisito da universalidade.
Parto de uma convicção: uma bolsa universal de informações e valores não chega para preencher o vazio deixado, ou a deixar, pelo complexo institucional herdado.
Neste panorama é ainda válido o espírito de Abril? Eu diria que o é mais do que nunca. Ele apeou definitivamente o conservadorismo e entronizou o espírito de mudança num mundo que vertiginosamente mudava e muda. Voltar a ser conservador, hoje, seria não apenas absurdo mas suicidário.
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Continuar Abril é persistir em mudar. Só continuando a mudar evitaremos que o fosso entre o novo e o velho se cave até à necessidade de uma nova ruptura, que poderia não ser um novo Abril. Se a queda do regime totalitário não foi fácil - em si e nos seus desenvolvimentos imediatos -, a queda de um regime de democracia e liberdade seria uma verdadeira catástrofe, um finispatriae.
Para esconjurar esse fantasma, que às vezes parece apostado em nos amedrontar, nada mais salutar do que celebrar o «dia do advento» da liberdade e da democracia, celebrá-lo não apenas folcloricamente mas reflexivamente.
Salvaguardar Abril é o contrário de «deixar correr». É impedir tudo o que favorece o aumento das desigualdades e injustiças sociais e a concentração do poder nas mãos de grupos, legais e ilegais, cada vez mais restritos. É qualificar substancialmente a democracia formal, na vertente económica, na vertente social, na vertente cultural. Qualificá-la imbuindo-a da solicitude humana e da paixão que lhe falta. É transformar cada um de nós, para o dia-a-dia do futuro, num capitão de Abril, independentemente dos postos políticos ou cívicos em que tivermos sido graduados.
Aplausos gerais do PS, de pé, do PSD, do CDS-PP, do PCP e de Os Verdes.
Para uma intervenção, por direito próprio, tem a palavra o Sr. Presidente da República.
Neste momento, o Sr. Presidente da República, saindo da Mesa da Presidência, toma lugar na Tribuna do Orador, para proferir a sua intervenção.
Aplausos gerais, de pé.
O Sr. Presidente da República (Jorge Sampaio): -Exmo. Sr. Presidente da Assembleia da República, Sr. Presidente da República de Moçambique, Sr. Presidente da Assembleia Nacional Popular da Guiné Bissau, Srs. Titulares dos Órgãos de Soberania de Portugal, Sr. Procurador-Geral da República, Srs. Conselheiros de Estado e ex-Presidentes da República, Srs. Membros do Corpo Diplomático, Ilustres Autoridades Civis e Militares, Sr. Cardeal Patriarca de Lisboa, Excelência Reverendíssima: Vinte e cinco anos depois, tudo parece tão simples. Banalizaram-se as imagens daqueles militares em ameno convívio com a população. As fotografias e os filmes a preto e branco conferem um ar remoto e frágil aos instantâneos da Revolução. Os testemunhos sucessivos dos intervenientes narram uma organização quase sem sobressaltos. Tudo isso e a distância do tempo parecem contribuir para uma imagem de facilidade no derrube do regime.
Mas a verdade é outra: derrubar a ditadura exigiu determinação, foi necessária muita coragem para arrostar com os riscos inerentes a uma revolta contra quem dispunha de um forte aparelho repressivo e do apoio de sectores das Forças Armadas.
Temos, por isso, naturalmente, uma grata dívida para com esses oficiais, sargentos e praças que, desprezando os riscos, pegaram em armas para permitir aos portugueses alcançar a liberdade há tanto tempo desejada.
Aplausos do PS, do PSD, do PCP e de Os Verdes.
Honra aos militares do 25 de Abril! Em nome da República, exprimo-vos o nosso reconhecimento e gratidão.
Recordo, sentido, a memória daqueles que, infelizmente, já não é possível ter hoje ao nosso lado. Permitam-me que, por todos eles, evoque o nome do Capitão Salgueiro Maia.
Aplausos gerais.
O gesto generoso do 25 de Abril põe fim a uma longa luta que opôs sucessivas gerações à ditadura. É à luz do sacrifício das diversas oposições ao Estado Novo que o 25 de Abril se compreende. É nessa ampla tradição de determinação, de sacrifício e de coragem que ele se integra.
Também hoje, essas décadas de combate parecem tão simples e remotas; e tão saradas, felizmente, as feridas dos que conheceram a prisão e a tortura; tão distantes, felizmente, os sacrifícios daqueles que foram forçados ao exílio ou aqui sofreram perseguições; e tão longe a dor de quem viu os seus familiares morrer às mãos da polícia ou numa guerra travada contra o sentido da História.
O 25 de Abril é o gesto de toda uma geração, que, por exemplo, das fábricas às universidades, dos campos do Alentejo aos movimentos de libertação, das batalhas dos intelectuais aos percursos pela emancipação da mulher e pela igualdade de oportunidades, geração que, dizia, em seu nome e no de todos os que antes de si ousaram lutar, tomou inviável a sustentação da ditadura.
O 25 de Abril é um acto único e irreproduzível; é o dia em que todos nos encontrámos, oriundos dos mais diversos percursos, desde os mais velhos, vindos da antiga oposição republicana, aos mais novos, agrupados em tomo das múltiplas famílias da esquerda; é o dia da liberdade e da esperança, liberdade e esperança, para as quais, cada um de nós, tinha, naturalmente, uma visão própria.
Vinte e cinco anos depois não é o balanço dessas perspectivas que importa fazer, a isso se dedicará o memorialismo, com as suas visões pessoais, e a História que, com distância e rigor, um dia se fará.
Mas há um país que se construiu com a liberdade. Creio que a todos nós, que tivemos responsabilidades políticas, é grato olhar para trás, para estes 25 anos, e reconhecer que o balanço é muito positivo. Creio que a todos os portugueses, que tiveram de contribuir com o seu trabalho e muitos com a sua quota-parte de sacrifícios, é igualmente grato reconhecer a enorme transformação que o seu esforço tomou possível.
Com a coragem desse dia tudo pôde mudar.
Quero sublinhar, em primeiro lugar, em homenagem aos militares, que a consolidação e a evolução da democracia permitiu uma grande mudança nas Forças Armadas. Graças a um processo de reestruturação e apetrechamento progressivo, elas estão hoje mais aptas para responder às exigências do mundo contemporâneo.
É conhecida a amplitude das actuais missões desempenhadas pelas Forças Armadas, em Portugal e no estrangeiro, e o prestígio que granjearam no exercício dessas missões. O seu qualificado contributo é decisivo na estratégica cooperação técnico-militar com os países de expressão portuguesa. A sua capacidade operacional é essencial à consubstanciação
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dos compromissos internacionais assumidos por Portugal com os demais Estados e organizações internacionais.
O processo de reestruturaçâo e modernização das Forças Armadas não está concluído. Apesar dos esforços já desenvolvidos, há ainda um longo caminho a percorrer, que faz apelo a um grande empenho, determinação e capacidade de compromisso de todos.
Os objectivos têm de ser claramente definidos. Para um país como Portugal, com recursos escassos e com um potencial estratégico limitado, é de primordial importância que tal exercício conduza à identificação actualizada das grandes prioridades que deverão orientar o esforço de modernização próximo das Forças Armadas, essencial para a projecção internacional do nosso país.
Portugal desempenha hoje um papel no concerto das nações só possível porque o 25 de Abril permitiu o fim de um ciclo marcado pelo isolamento e pela condenação internacionais.
Foi possível, então, pôr fim à guerra colonial. Guerra que ceifou a vida de tantos soldados portugueses que, honrando o seu amor a Portugal, serviram uma causa errada, que a ditadura impedia que se debatesse ou pusesse em causa. Guerra que ceifou também a vida de tantos irmãos nossos africanos que, com determinação, lutaram por um princípio fundamental: o do direito à autodeterminação. Hoje choramos ambos os mortos desta tragédia e lamentamos impotentes o desperdício de tantas vidas.
Sr. Presidente da Assembleia da República, Excelências:
Nada me poderia ser mais grato neste aniversário carregado de simbolismo e emoção do que saudar, em nome de Portugal, a presença do Sr. Presidente Joaquim Chissano e do Sr. Presidente da Assembleia Nacional da Guiné Bissau.
Aplausos gerais.
Sr. Presidente da Republica de Moçambique: Do alto desta tribuna não lhe pode falar o amigo que tanto o estima mas é com igual comoção que se lhe dirige o Presidente da República de Portugal. A sua presença aqui representa para nós, e sei que também para Vossa Excelência, muito mais do que o testemunho das excelentes relações entre Moçambique e Portugal, ela é o símbolo da consolidação de um reencontro entre Portugal e os países africanos, de língua oficial portuguesa. Reencontro em que todos nós, de um lado e do outro, pacientemente, superámos o desconhecimento e o preconceito com a redescoberta e o entendimento, ultrapassámos a relação de exploração com a complementaridade dos espaços económicos e sarámos a ferida da guerra com o abraço da fraternidade.
Quero que saiba, Sr. Presidente da República, e por isso lhe exprimo hoje, em nome de todos os órgãos de soberania, que este novo relacionamento de Portugal com África é um dos motivos de orgulho maior do balanço destes 25 anos.
Aplausos do PS, do PSD e do PCP.
A sua presença aqui, Sr. Presidente da Assembleia Nacional da Guiné Bissau, permite-nos também exprimir a nossa solidariedade e a esperança num futuro democrático da Guiné Bissau.
Excelências, quando foi possível libertarmo-nos da ilusão do império, reorientámos a vida colectiva nacional para a partilha e a solidariedade no espaço europeu. A adesão à Comunidade Económica Europeia é um projecto da República democrática. Alcançar esse objectivo foi um factor de estabilização da democracia, contribuiu para a racionalização e o enquadramento de estratégias de modernização económica e social do País e permitiu que Portugal definisse, de forma clara e consistente, uma nova política internacional.
Não teria sido possível percorrer com sucesso esse caminho se a jovem democracia portuguesa não tivesse podido dispor de um constante apoio internacional. É em sinal de reconhecimento por todo o apoio que Portugal recebeu dos países amigos que, com redobrado gosto, dirijo uma saudação muito especial a todo o corpo diplomático que nos dá o prazer de connosco comemorar este 25.º Aniversário da Revolução.
Aplausos gerais.
Sr. Presidente da Assembleia da República, Excelências:
Confesso-vos que, como português e como Presidente da República, sinto orgulho no Portugal democrático. É isso que deve dar forças a todos nós, na diversidade das perspectivas que cada um defende, para continuar a lutar por um Portugal melhor.
É difícil fazer o balanço de tantas transformações. Melhorou a prestação dos serviços primários de saúde, alargou-se o leque de beneficiários dos sistemas de protecção social, intensificou-se o processo de escolarização, nomeadamente no ensino básico e universitário, criaram-se equipamentos e infra-estruturas que melhoraram as condições de vida de muitos portugueses, aprovou-se legislação laboral impeditiva de abusos e arbítrios, eliminaram-se os obstáculos mais flagrantes a uma igualdade de direitos das mulheres; descentralizaram-se muitos serviços; consolidou-se o poder local democrático. A vida dos portugueses melhorou significativamente.
Com a democracia refundou-se também o Estado de direito; consagraram-se os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos; assegurou-se a independência dos tribunais, garantiu-se a liberdade e o pluralismo político; a liberdade eleitoral ficou associada à necessária equidade nas condições de divulgação das mensagens políticas.
Mas o Estado de direito carece de aperfeiçoamento permanente, atento à evolução das sociedades, para melhor garantir a igualdade de oportunidades e a capacidade de iniciativa.
O debate acerca da reforma do sistema político, da lei eleitoral, do reforço da participação dos cidadãos e do financiamento da actividade política continua em aberto e deve merecer a nossa maior atenção.
Há sempre novas questões á discutir, 25 anos depois temos, de novo, perante nós a necessidade de procurar com coragem a construção dos consensos sem os quais estas reformas são inviáveis.
Sem elas talvez não seja possível dar resposta aos sinais de distanciamento na relação entre o cidadão e o sistema de representação. Estes são evidentes, por exemplo, nas taxas
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de abstenção eleitoral ou na ausência de voluntários em número suficiente para as operações de escrutínio e fiscalização eleitoral que ainda há 10 anos mobilizavam milhares de militantes partidários.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: A entrada de Portugal no grupo de países fundadores da moeda única é igualmente um marco maior na democracia portuguesa, só possível à custa de rigor na governação. É alicerçados nessa realização, e no que ela significa de capacidade nacional, mas também no que ela nos impõe como continuidade, urgência e rigor no esforço de reformas, que importa olhar para o futuro.
Portugal continua a ter problemas muito sérios, problemas com que convivemos há décadas e que são de difícil solução. Problemas que todos os partidos que tiveram responsabilidades de governo já procuraram minorar, cada um à sua maneira, naturalmente.
No momento em que se fazem esforços, aliás de grande mérito, para responder aos desafios da sociedade da informação, persiste o analfabetismo literal e funcional e o abandono escolar precoce.
O Serviço Nacional de Saúde, que tanto sucesso alcançou, não responde ainda com eficácia às necessidades das populações; as assimetrias regionais de desenvolvimento continuam a penalizar zonas do País; o desemprego de longa duração e as dificuldades no acesso ao primeiro emprego persistem; a justiça é lenta e ainda inacessível aos mais desfavorecidos; a burocracia sem sentido resiste e tolhe os movimentos de quem tem iniciativa; o sistema fiscal continua a não ser uma arma eficaz na criação de mais equidade social; a toxicodependência mina o quotidiano de muitas famílias; os elevados níveis de pobreza existentes no País estão longe da erradicação.
É indispensável prosseguir com determinação os esforços encetados por todos os governos, ganhando ânimo com os resultados entretanto já alcançados. A previsível evolução da conjuntura europeia aconselha a que se encarem com coragem - que aqui é expressão de rigor, exigência e previsão - novos passos no sentido da modernização do País. Há um sentido de urgência que a todos deve interpelar, que todos temos de interiorizar. Só assim se contornam as pressões dos calendários eleitorais e os impasses nos consensos quando estes comprometem o momento em que é necessário decidir.
Sr. Presidente da Assembleia da República, Excelências:
A Europa vive um momento difícil. São conhecidas as causas da operação da NATO. É impossível aceitar a brutalidade inqualificável das forças militares e policiais servias contra os albaneses.
Aplausos do PS e do PSD.
Peco-vos um momento. Esta matéria não vai, Srs. Deputados, com aplausos por parágrafos, tem uma linha e, por isso, peco-vos que oiçam até ao fim.
Dizia eu que são conhecidas as causas da operação da NATO. É impossível aceitar a brutalidade inqualificável das forças militares e policiais servias contra os albaneses. Tão grosseiras violações dos direitos humanos são intoleráveis. Não há impunidade possível para actos desta natureza. É importante que isto se compreenda. É importante que se compenetre o Sr. Presidente Milosevic da determinação da comunidade internacional.
À violência tem de se responder necessariamente com a força. Mas a utilização da força só tem sentido se for prosseguida com objectivos militares claros e objectivos políticos claros. Por isso, é, necessário desenvolver, paralelamente às operações militares da NATO, um esforço político e diplomático para resolver os problemas que estão na base da presente crise.
Aplausos do PS.
È indispensável procurar com determinação uma solução política. É necessário reunir os esforços de todos, da União Europeia, da Aliança Atlântica, da Rússia, dos restantes membros da OSCE, das Nações Unidas e dó seu Secretário-Geral, que têm uma responsabilidade central em termos de garantir a paz e a segurança internacionais.
É bom e necessário que o Presidente Milosevic realize bem que este é o único caminho que pode seguir. E que o deve fazer depressa, activamente e de boa fé, que deve dar, em tempo útil, sinais inequívocos à comunidade internacional. Só assim se poderá alcançar uma solução política para o problema.
Para permitir essa solução é necessário pôr fim à presente fase desta crise, tendo por base os termos clara e convergentemente definidos pela NATO, pela União Europeia e pelo Secretário-Geral das Nações Unidas.
Entretanto, a situação humanitária é uma catástrofe que se agrava dia-a-dia. O número de vítimas inocentes aumenta. Cresce a preocupação quanto aos efeitos desestabilizadores da crise em outros países da região, nomeadamente na Macedónia, na Bósnia e no Montenegro. A Europa vive, sem dúvida, um dos momentos mais dramáticos e difíceis do pós-guerra.
Por muito criativas que sejam as novas expressões que definem hoje os conflitos, a guerra é o que é, a guerra é o que sempre foi, a guerra é uma coisa horrível.
Não creio que ninguém possa assistir sem um calafrio de horror à transformação em espectáculo mediático da trajectória de um míssil até que transforma riqueza, património e vidas em miséria, destruição e morte. E se algum dia a banalização do horror nos tomar insensíveis ao drama que uma guerra representa, os valores humanistas em que assenta quer a nossa civilização quer a construção europeia estarão postos em causa.
Aplausos do PS, do PSD e do CDS-PP.
A União Europeia em que nos reconhecemos é a que defende uma Europa que se rege por valores humanistas, a que deve condenar sempre as violações de direitos humanos mas também a que defende que a via da prevenção dos conflitos e da diplomacia são os instrumentos essenciais para assegurar a paz, a estabilidade na Europa e a segurança internacional.
Para isso é necessário que o projecto político europeu se reforce. Sem uma Europa politicamente mais integrada, não haverá uma política externa e de segurança comum credível e
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eficaz, nem a Europa poderá assumir um papel mais actuante na defesa dos seus interesses próprios.
A Aliança Atlântica continua a representar um quadro indispensável para garantir a segurança e a estabilidade dos seus membros, mas a Europa tem de assumir uma maior quota-parte de responsabilidade na sua própria defesa. Chegou a hora de os europeus disporem de uma capacidade própria e eficaz, em termos de gestão de crise, para poderem agir política e militarmente com autonomia.
Importa caminhar, com prudência e discernimento, mas com clara determinação política, na elaboração de uma política de defesa comum europeia, reforçando a nossa solidariedade política e militar e aproveitando o património que a UEO representa em si mesma.
Para além da resolução política do problema do Kosovo, julgo que se impõem medidas globais de estabilização e segurança do sudeste europeu, que passam pela consolidação de regimes democráticos, pela protecção eficaz das minorias e pelo desenvolvimento económico e social.
Os Balcãs não podem continuar a ser uma região da Europa sem perspectiva de futuro, excluída do concerto europeu, dos benefícios da paz, da segurança e do progresso. A União Europeia tem, aqui, uma especial responsabilidade e seria, sem dúvida, útil avançar com um pacto de estabilidade baseado em elementos políticos e económicos e reforçar a perspectiva de uma aproximação crescente destes países à União. A realização de uma conferência sobre a Europa do Sudeste seria, sem dúvida, muito oportuna.
Portugal participa na força da NATO com 3 aviões F-16 e 53 militares. Fazemo-lo porque o nosso país tem uma posição consistente quanto à defesa intransigente dos Direitos Humanos, fazemo-lo porque o Estado português sustenta uma posição de responsabilidade solidária no quadro dos seus compromissos internacionais, responsabilidade que assumimos com redobrado empenho quando as acções que dela decorrem são, em minha opinião, concordantes com os valores fundamentais que orientam a nossa vida constitucional.
Todos estamos conscientes dos limites do uso da força num conflito que só por solução política pode eliminar as causas que o geraram. Todos estamos conscientes das limitações nacionais. Mas um país pequeno, orgulhoso e responsável como Portugal tem de saber - e nós temos sabido sempre fazê-lo, nos últimos 25 anos - conjugar os nossos valores com as nossas responsabilidades na condução da política externa nacional. Só assim foi possível, no espaço de uma mesma geração, transformar Portugal, de um pais isolado no contexto das nações, num país internacionalmente respeitado pela consistência da sua política externa. É, aliás, a solidez da posição internacional de Portugal que nos tem assegurado as condições externas indispensáveis para obter novos resultados na resolução da questão de Timor Leste, como o demonstram, designadamente, as conclusões das últimas conversações de Nova Iorque, sob a égide do Secretário-Geral das Nações Unidas.
O acordo alcançado sobre uma consulta livre e democrática representa um passo da maior importância no processo de autodeterminação de Timor Leste. Sei que todos partilhamos a esperança de que esse acordo possa ser assinado proximamente e, sobretudo, que todas as partes, repito, todas as partes, se empenhem em cumprir, escrupulosa e integralmente, as suas disposições, de modo a criar as condições de paz e estabilidade no território. Pela nossa parte, tudo faremos nesse sentido.
Os portugueses têm um afecto muito especial por Timor, acompanham com angústia os momentos difíceis e com expectativa os momentos de esperança.
Timor tem vivido momentos dramáticos. Perderam-se muitas vidas humanas - mortos que choramos como se fossem nossos. Quiseram transformar a esperança em desespero, angústia a que temos de devolver de novo a esperança. Nunca desistiremos de lutar pelos direitos do povo de Timor Leste, nunca deixaremos de o fazer, até ao limite das nossas capacidades e meios, para que os timorenses possam decidir livremente o seu destino colectivo.
Sr. Presidente da Assembleia da República, Excelências:
Comemoramos o dia 25 de Abril mas sei que, naturalmente também, cada um de nós não deixa de, interiormente, comemorar o percurso das causas, e foram tantas, por que lutou ao longo da sua vida política e dos combates que em nome delas travou. Há um percurso pessoal que hoje cada um de nós, instintivamente, revisita. O meu é já longo de quatro décadas, feito de vitórias e de derrotas políticas, mas feito também de persistência, de esperanças e de incertezas; norteado por valores e procurando sempre exercer com rigor as minhas responsabilidades públicas.
Lutei desde muito novo contra a ditadura, num confronto de posições que não tinham conciliação possível. Assumi no regime democrático responsabilidades políticas muito variadas: em confronto, ao lado ou com o apoio de muitos dos presentes.
Sei que terei dificuldade em transmitir-vos o que significa para mim viver este dia exercendo o cargo que ocupo, procurando ser para todos uma referência suprapartidária, de isenção e rigor no exercício das minhas competências, exercendo uma magistratura de conciliação e de estímulo ao progresso constante do País, empenhando o melhor do meu esforço em desempenhar a mais nobre das funções que alguma vez me foram confiadas: a de procurar ser uma referência de unidade nacional e um factor de estabilidade política.
Olhando para o futuro, como é tão necessário olhar, olhando para o futuro acima das diversas perspectivas partidárias e até do que de mais premente pode haver na agenda política, permitam-me partilhar convosco algumas preocupações nacionais.
Uma é a preocupação de lutar contra a ignorância, contra o facilitismo, contra a inacção e contra a arrogância.
O papel da educação numa sociedade baseada na informação e no conhecimento é decisivo. Esta é uma sociedade de participação e quem nela não consegue participar activamente não existe. A participação exige que se saibam falar linguagens comuns e que se seja um interlocutor válido. É nessa tarefa que a qualidade da educação é decisiva.
É preciso incutir nos mais novos a confiança nas suas próprias conjecturas, único processo que os levará a construir novos edifícios intelectuais sobre os ombros das gerações que os precederam. Urge desenvolver uma cultura científica que garanta o alargamento dos horizontes e perspectivas fundamentais para a sua compreensão. Importa despertar nos mais novos o gosto e a curiosidade de experimentar, de observar, de conjecturar.
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Uma outra preocupação é a de incentivar uma cultura de cooperação. É preciso compreender que não há soluções reais no mundo contemporâneo que não sejam partilhadas, globais. É preciso promover uma cultura de cooperação, abandonando a ideia errada de que pensar o futuro é algo que não nos compete. Uma sociedade que abdica de definir e construir o seu próprio destino colectivo é uma sociedade que vai morrendo sem esperança.
Ainda outra preocupação é a de promover uma cultura de tolerância. Nunca a mudança nas sociedades foi tão rápida, nem os valores do conhecimento e da capacidade intelectual tão preciosos. Por estes motivos, sabemos que as soluções não se encontram num quadro desregrado de mecanismos que desprezem, humilhem e anulem os valores e as iniciativas dos outros. É preciso que os mais novos aprendam a acolher a alteridade e a reconhecer e aceitar o outro sem hesitações de qualquer espécie. Só assim se reconstrói e redefine hoje, em permanência, a identidade.
Finalmente, outra preocupação é a de minorar as desigualdades sociais. A igualdade dos cidadãos perante a lei exige que a democracia garanta a todos um mínimo de possibilidades económicas, sociais e culturais de integração e que as desigualdades - de oportunidades e de estatutos - introduzidas pelo funcionamento dos mercados sejam corrigidas ou, pelo menos, compensadas.
A garantia dos direitos sociais não é um luxo que se possa guardar para épocas de desafogo e de prosperidade acentuada. Pelo contrário, a garantia de direitos sociais constitui uma condição para que a universalidade dos direitos cívicos e políticos se possa realizar.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Lutar contra a ignorância, incentivar uma atitude de cooperação, promover uma cultura de tolerância, procurar corrigir as desigualdades, digo-os hoje como objectivos a prosseguir mas podíamos todos nós tê-los dito, e dissemo-los, de certeza, há 20,30 ou 40 anos. Valores por que lutámos e que continuam, como tantos outros, válidos e actuais. Valores por que lutei sempre e aos quais quero continuar a dar, convosco, o meu contributo de 25 anos depois do 25 de Abril.
Viva o 25 de Abril! Viva Portugal!
Aplausos do PS, do PSD e do CDS-PP, de pé.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, declaro encerrada esta sessão memorável de evocação e comemoração do 25 de Abril de 1974.
A Banda da Guarda Nacional Republicana executou, de novo, o Hino Nacional, cantado, de pé, por todos os presentes.
Aplausos gerais, de pé.
Realizou-se, então, o cortejo de saída, composto pelas mesmas individualidades do da entrada, tendo os Srs. Presidente da República e Presidente da Assembleia da República saudado, mais uma vez, o Corpo Diplomático com uma vénia.
Faltaram à sessão os seguintes Srs. Deputados:
Partido Socialista (PS):
Alberto Bernardes Costa.
Albino Gonçalves da Costa.
António Alves Cardoso.
António Bento da Silva Galamba.
António Fernandes da Silva Braga.
António Fernando Marques Ribeiro Reis.
António Manuel Carmo Saleiro.
Artur Clemente Gomes de Sousa Lopes.
Carlos Alberto Cardoso Rodrigues Beja.
Carlos Alberto Dias dos Santos.
Carlos Justino Luís Cordeiro.
Cláudio Ramos Monteiro.
Fernando Pereira Serrasqueiro.
Joaquim Sebastião Sarmento da Fonseca Almeida.
José Carlos Correia Mota de Andrade.
José da Conceição Saraiva.
José Fernando Rabaça Barradas e Silva.
José Manuel de Medeiros Ferreira.
José Manuel Rosa do Egipto.
José Manuel Santos de Magalhães.
Laurentino José Monteiro Castro Dias.
Luís Afonso Cerqueira Natividade Caudal.
Manuel Alegre de Melo Duarte.
Maria do Carmo de Jesus Amaro Sequeira.
Maria do Rosário Lopes Amaro da Costa da Luz Carneiro.
Maria Eduarda Bento Alves Ferrenha
Maria Jesuína Carrilho Bernardo.
Mário Manuel Videira Lopes.
Martim Afonso Pacheco Gradas.
Paulo Jorge dos Santos Neves.
Raul d'Assunção Pimenta Rego.
Rui Manuel Palácio Carreteiro.
Sérgio Carlos Branco Barros e Silva.
Partido Social Democrata (PSD):
Adriano de Lima Gouveia Azevedo.
Alberto Queiroga Figueiredo.
António de Carvalho Martins.
António Fernando da Cruz Oliveira.
António Paulo Martins Pereira Coelho.
Carlos Manuel de Sousa Encarnação.
Carlos Manuel Duarte de Oliveira.
Carlos Manuel Marta Gonçalves.
Fernando Santos Pereira.
Filomena Maria Beirão Mortágua Salgado Freitas Bordalo.
João do Lago de Vasconcelos Mota.
Joaquim Manuel Cabrita Neto.
José Álvaro Machado Pacheco Pereira.
José Carlos Pires Póvoas.
José Manuel Costa Pereira.
Luís Carlos David Nobre.
Manuel Acácio Martins Roque.
Manuel Joaquim Barata Frexes.
Maria de Lourdes Lara Teixeira.
Maria Luísa Lourenço Ferreira.
Miguel Fernando Cassola de Miranda Relvas.
Pedro Domingos de Souza e Holstein Campilho.
Rolando Lima Lalanda Gonçalves.
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2788 I SÉRIE - NÚMERO 77
Partido do Centro Democrático Social - Partido Popular (CDS-PP):
António Almeida Figueiredo Barbosa Pombeiro.
Augusto Torres Boucinha
Maria Helena Pereira Nogueira Santo.
Maria José Pinto da Cunha Avilez Nogueira Pinto.
Rui Manuel Pereira Marques.
Partido Comunista Português (PCP):
António Luís Pimenta Dias.
Deputado independente:
José Mário de Lemos Damião.
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