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Terça-feira, 26 de abril de 2022 I Série — Número 10
XV LEGISLATURA 1.ª SESSÃO LEGISLATIVA (2022-2023)
Sessão Solene Comemorativa do XLVIII Aniversário do 25 de Abril
Presidente: Ex.mo Sr. Augusto Ernesto Santos Silva
Secretários: Ex.mos Srs. Maria da Luz Gameiro Beja Ferreira Rosinha Duarte Rogério Matos Ventura Pacheco
S U M Á R I O
Às 10 horas, entrou na Sala das Sessões o cortejo em que se integravam o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República — que saudaram, com uma vénia, os membros do Corpo Diplomático presentes —, o Primeiro-Ministro, os Secretários da Mesa da Assembleia da República, o Secretário-Geral da Assembleia da República, a Chefe do Protocolo do Estado, o Chefe da Casa Militar do
Presidente da República, a Chefe do Gabinete do Presidente da Assembleia da República, o Chefe da Casa Civil do Presidente da República e a Diretora da Direção de Relações Internacionais, Públicas e Protocolo da Assembleia da República.
No Hemiciclo, encontravam-se já, além dos Deputados e Ministros, os Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça, do
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Tribunal Constitucional, do Supremo Tribunal Administrativo e do Tribunal de Contas, o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, a Procuradora-Geral da República, o Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, os Representantes da República para as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira, o Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, o Vice-Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, em representação do respetivo Presidente, o Presidente do Governo Regional dos Açores, o Conselheiro de Estado Domingos Abrantes Ferreira e os Chefes dos Estados-Maiores dos três ramos das Forças Armadas.
Encontravam-se ainda presentes: Na Tribuna A, a mulher do Presidente da Assembleia da
República, Dr.ª Isabel Margarida Duarte, a mulher do Primeiro-Ministro, Dr.ª Fernanda Tadeu, o antigo Presidente da República António Ramalho Eanes e mulher, Dr.ª Manuela Eanes, e os antigos Presidentes da Assembleia da República Mota Amaral e Eduardo Ferro Rodrigues e mulher, Dr.ª Maria Filomena de Aguilar;
Na Tribuna B, o Núncio Apostólico, Decano do Corpo Diplomático, D. Ivo Scapolo;
Na Galeria I, os Deputados ao Parlamento Europeu João Pimenta Lopes e Cláudia Monteiro de Aguiar, o Presidente do Conselho Diretivo da Associação Nacional de Freguesias, o Juiz Conselheiro do Tribunal Constitucional Afonso Patrão e as Juízas Conselheiras do Tribunal Constitucional Maria da Assunção Pinhal Raimundo e Mariana Rodrigues Canotilho, o Comandante-Geral da Guarda Nacional Republicana, o Diretor Nacional da Polícia de Segurança Pública, o Presidente e membros da Comissão da Liberdade Religiosa e o Presidente da Junta de Freguesia da Estrela;
Na Galeria II, o Presidente da Comissão Nacional de Eleições, a Presidente da Comissão Nacional de Proteção de Dados, o Presidente do Conselho dos Julgados de Paz, o
Presidente da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, o Vice-Presidente do Mecanismo Nacional de Monotorização da Implementação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ex-Conselheiros da Revolução, a Direção e membros da Associação 25 de Abril, os Secretários-Gerais da CGTP-IN e da UGT e o Presidente da Associação dos Deficientes das Forças Armadas;
Na Galeria III, Secretários de Estado e o Presidente e membros da Direção da Associação dos ex-Deputados da Assembleia da República;
Nas Galerias IV a VI, público convidado; Na Tribuna C, os Adjuntos do Secretário-Geral da
Assembleia da República, os Assessores do Presidente da Assembleia da República e os Chefes de Gabinete da Ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares, dos Grupos Parlamentares e dos Deputados únicos representantes de um partido;
Na Tribuna D, os representantes dos órgãos de comunicação social.
Constituída a Mesa, na qual o Presidente da República tomou lugar à direita do Presidente da Assembleia da República, a Banda da Guarda Nacional Republicana, colocada nos Passos Perdidos, executou o hino nacional, que foi cantado, de pé, pelos presentes.
Seguiram-se os discursos dos Deputados Rui Tavares (L), Inês de Sousa Real (PAN), José Moura Soeiro (BE), Paula Santos (PCP), Bernardo Blanco (IL), André Ventura (CH), Rui Rio (PSD) e Pedro Delgado Alves (PS), do Presidente da Assembleia da República e do Presidente da República (Marcelo Rebelo de Sousa).
A sessão foi encerrada eram 11 horas e 46 minutos, tendo a Banda da Guarda Nacional Republicana executado, de novo, o hino nacional, que foi cantado e aplaudido, de pé, pelos presentes.
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Após ter sido constituída a Mesa, a Banda da Guarda Nacional Republicana, colocada nos Passos Perdidos,
executou o hino nacional, que foi cantado, de pé, pelos presentes.
O Sr. Presidente da Assembleia da República: — Sr. Presidente da República, Sr. Primeiro-Ministro e
demais Membros dos Governos, demais Autoridades, Sr.as e Srs. Deputados, bom 25 de Abril a todos.
Está aberta a Sessão Solene Comemorativa do XLVIII Aniversário da Revolução do 25 de Abril de 1974.
Eram 10 horas e 2 minutos.
Para intervir, em nome do partido Livre, tem a palavra o Sr. Deputado Rui Tavares.
O Sr. Rui Tavares (L): — Sr. Presidente da República, Sr. Presidente da Assembleia da República, Srs. e
Sr.as Membros do Governo, Excelências, Dignitários, Caros e Caras Colegas Deputados e Deputadas à
Assembleia da República: Pensemos num homem, nascido em 1929. Passou a sua primeira infância, na sua
aldeia, em ditadura; foram-lhe ensinadas as primeiras letras, mas não mais do que essas, em ditadura; foi
aprendiz de torneiro mecânico, em ditadura; casou, em ditadura; teve dois filhos, em ditadura; enviuvou, em
ditadura. Veio para a capital, foi condutor de camiões de lixo, de carros de praça, de viaturas de administradores
de banco, tudo em ditadura; casou de novo, teve mais três filhos, incluindo este, em ditadura. Só depois de tudo
isso, quando tinha uma idade não muito longe daquela que hoje tenho, viu pela primeira vez aquilo que para
muitos outros países da Europa ocidental já era uma normalidade, viu pela primeira vez a democracia.
Imaginemos uma mulher, nascida em 1931, na mesma aldeia, com os mesmos constrangimentos à partida,
e ainda outros, num tempo em que uma das poucas vias de saída para a sua vida seria ser criada de servir.
Para chegar a ver o seu País atingir tantos dias de democracia como teve de ditadura precisou de chegar aos
91 anos, o que, felizmente, fez.
Esta não é a minha história, esta é a nossa história, a história de décadas de compressão de potencial
humano, porque é isso que uma ditadura é, além da repressão das liberdades cívicas e políticas; a história de
milhões de pessoas, portugueses e portuguesas, e muitos e muitas nas ex-colónias, que não foram tudo aquilo
que poderiam ser. E, por isso, do 25 de Abril em diante, a nossa história não é só a história de um regime de
liberdades cívicas e políticas, se isso fosse pouco, não é só a história do pluralismo, se isso fosse pouco, que
não é, e é muito, é a história da liberdade, mas de tudo aquilo que conseguimos fazer com ela, porque a luta
pela liberdade e a luta pela igualdade são a mesma luta. Elas não são só a luta, como se isso fosse pouco, por
corrigir injustiças, são a luta por garantir que toda a gente, toda a gente comum, em todo o lado, possa ter direito
a uma vida maior, mais preenchida, com mais possibilidades, com mais potencial realizado, precisamente aquilo
que faltou a tanta gente no nosso País, durante décadas e até durante séculos.
Não é por acaso que, logo que lhes foi possível, a primeira coisa que milhões de pais e mães do nosso País
fizeram foi pôr os filhos e as filhas a estudar até onde eles e elas quisessem.
Ainda hoje — façam a experiência —, agora que eles já são avôs e avós, e até bisavós, perguntem-lhes o
que lhes dá mais orgulho e ouvirão: a neta que acabou o mestrado e quer fazer o doutoramento, o neto que está
a fazer Erasmus.
É que a democracia que construíram, que construímos, com o 25 de Abril representou, finalmente, uma
possibilidade de acesso ao ensino para todos numa escala e de uma forma que nunca tinha existido na história
de quase 900 anos deste País.
O nosso dever perante o 25 de Abril é o que fazemos por nós, em gratidão ao 25 de Abril, pelo nosso futuro
e pelo nosso País, com as liberdades cívicas e políticas, com o Serviço Nacional de Saúde (SNS), que garante
que ninguém precisa de temer ir à bancarrota só porque está doente.
O acesso ao ensino público é parte fundamental do caminho para podermos ter, desde há 48 anos, aquilo
que para outros países tem sido apenas a normalidade: as pré-condições para uma sociedade dinâmica e da
dignidade, a base a partir da qual se constroem os futuros.
Em 25 de Abril de 1974 amanhecemos com uma ditadura de décadas; à medida que o dia avançava ficou
claro que não haveria outro caminho senão o da democracia. Amanhecemos com um sistema de censura, que
também tinha décadas e até uma história de séculos no nosso País; à tarde já saíam jornais dizendo «não foi
visado por nenhuma comissão de censura».
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Amanhecemos com uma detestada polícia política, que detinha poder sobre os mais simples aspetos da
nossa vida cívica, e o povo, nas ruas, deixou claro que não admitiria outra coisa que não a extinção dessa polícia
política.
O dia 25 de Abril foi um dia que valeu décadas. Amanheceu com presos políticos nas cadeias e acabou com
a noção de que eles, todos juntos, nas cadeias, decidiram que ou saíam todos juntos ou não saía nenhum.
Por fim, em 25 de Abril de 1974, amanhecemos com uma guerra colonial de 13 anos, mas o dia acabou
sabendo-se que ela tinha de acabar. E aí, pensemos um pouco, o 25 de Abril não valeu só por décadas, valeu
por séculos, porque representou o fim do ciclo imperial e colonial e abriu caminho a que se iniciasse um ciclo
europeu, o que significa uma basculação da nossa história tão determinante que creio que ainda não foi
verdadeiramente assimilada. Dos três D da democracia, do desenvolvimento e da descolonização pensa-se, por
vezes, que este último foi o mais imediato a ser cumprido, mas, se pensarmos que o abandono das estruturas
coloniais significa tratar toda a gente com o mesmo respeito e dignidade e, para o País, encontrar um novo lugar
na Europa e no mundo, logo perceberemos que, como os outros dois D, se trata de uma tarefa longa, ainda a
ser cumprida.
O caminho que se abre à frente de Portugal é agora muito diferente daquele que durante séculos nos
habituámos a trilhar, e ainda bem. O tempo não volta atrás. A partir de agora contamos só com a valorização
das pessoas, do conhecimento e do território como chaves do nosso futuro. E nada é tão importante quanto
aprofundar a nossa democracia, debater e escolher um novo modelo de desenvolvimento para o nosso País e
levá-lo a cabo, encontrando o nosso lugar no mundo de cidadania global.
É isso que devemos ao 25 de Abril; agora chegou o momento de dar de volta. A gratidão que lhe temos é o
melhor penhor para o nosso futuro coletivo.
Aplausos do PS, do PAN, de Deputados do PSD e do Deputado do BE José Moura Soeiro.
O Sr. Presidente da Assembleia da República: — Para uma intervenção, em nome do partido Pessoas-
Animais-Natureza, tem a palavra a Sr.ª Deputada Inês Sousa Real.
A Sr.ª Inês de Sousa Real (PAN): — Sr. Presidente da República, Sr. Presidente da Assembleia da
República, Sr. Primeiro-Ministro e demais Membros do Governo, Ilustres Entidades, Altas Autoridades e
Distintos Convidados, Sr.as e Srs. Deputados: Depois de uma crise sanitária e socioeconómica sem precedentes,
a guerra na Ucrânia veio relembrar-nos que os direitos humanos, a paz, a segurança e a democracia não podem
ser dados como adquiridos. E a data que hoje assinalamos não é uma data meramente evocativa, aliás, jamais
o será.
Nestes 48 anos da Revolução de Abril podíamos falar do facto de sermos um país que vive em bancarrota
climática, já que são precisos dois planetas para suportar os níveis de produção e de consumo, mesmo quando
o sol, o vento e os oceanos podem ser a solução e atribuir um novo significado à liberdade, garantindo a nossa
autonomia energética, a par da descarbonização da economia que o nosso País e o mundo têm de fazer.
Podíamos falar de um país onde 2 milhões de pessoas vivem em pobreza energética — não têm dinheiro
sequer para aquecer as suas casas — e mais de 8000 pessoas vivem em situação de sem-abrigo; ou podíamos
falar da dificuldade de acesso à habitação por parte dos jovens. O mesmo País que tem as mãos largas para
financiar os prejuízos da banca e nada faz para impedir a perda de muitos milhares de milhões de euros para
os paraísos fiscais ou para a corrupção.
Podíamos, ainda, falar de um país que dá mais dinheiro público para o baronato da caça ou para a tortura e
a crueldade das touradas do que para o combate ao abandono e aos maus-tratos e para a proteção e bem-estar
animal.
Mas hoje queremos falar-vos da desigualdade que ainda persiste, queremos falar-vos das mulheres,
adaptando aqui as palavras da escritora bielorrussa Svetlana Aleksievitch, refugiada do regime de Lukashenko,
homólogo de Putin, e dizer-vos que Abril ainda não tem rosto de mulher.
Apesar de todos os avanços e conquistas que foram trazidos pela Revolução e que romperam com uma
ditadura que acusava aquelas que, como Natália Correia ou as três Marias, ousavam criticar a moral social
reinante, Abril ainda não tem rosto de mulher, quando, a cada dia, mais de 50 mulheres são vítimas de violência
doméstica; quando temos um sistema e uma justiça que são marcados por um machismo tóxico, que
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desculpabiliza sistematicamente o agressor; ou uma justiça lenta, em que as mulheres acabam por perder a
própria vida ou por ver destruídos os seus sonhos e expectativas de vida.
Abril ainda não tem rosto de mulher, quando os crimes sexuais não têm um prazo de prescrição capaz de
respeitar as emoções e o tempo de cada vítima ou quando a sua consequência são apenas multas ou penas
suspensas.
Abril não tem ainda rosto de mulher, quando existem, no nosso País, mais de 6500 mulheres e meninas que
foram vítimas de mutilação genital feminina.
E Abril também não tem rosto de mulher quando as mulheres têm de trabalhar mais 51 dias/ano para igualar
o salário de um homem, ou quando nos dizem que vamos ter de esperar até 2052 para ter igualdade salarial
entre géneros, ou até 2063 para que os cargos de chefia sejam ocupados por tantas mulheres como homens.
E, Senhoras e Senhores aqui presentes, Abril não tem rosto de mulher, quando as mulheres continuam a ser
as mais afetadas pela pobreza; quando uma em cada 10 mulheres não tem dinheiro, sequer, para comprar
produtos de higiene, vivendo em pobreza, também, menstrual.
Abril ainda não tem rosto de mulher, quando, em 230 Deputados deste Hemiciclo, desta que é a Casa da
democracia, somos apenas 84 Deputadas mulheres. Nunca tivemos uma mulher como Presidente da República
e os demais altos cargos do Estado fazem-se sempre com o rosto masculino.
Senhoras e Senhores, a dois anos dos 50 anos da Revolução dos Cravos, as palavras de Maria de Lourdes
Pintasilgo mantêm-se, infelizmente, atuais: o sexismo é uma violação dos direitos humanos, o sexismo é uma
praga nacional.
É preciso lutar pelo fim do sexismo e transformar a emancipação feminina em realidade. Só assim a manhã
de Abril poderá acordar em plena igualdade e liberdade. Que nos inspirem, então, as palavras de Simone de
Beauvoir, para que a manhã de Abril, que está por cumprir quanto aos direitos das mulheres, seja esta realidade:
«Que nada nos limite, que nada nos defina, que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria
substância, já que viver é ser livre», pois só assim Abril poderá ter finalmente rosto de mulher.
Viva a liberdade, viva a igualdade, viva o 25 de Abril.
Aplausos do PS, do BE, do L e de Deputados do PSD.
O Sr. Presidente da Assembleia da República: — Para uma intervenção, em nome do Grupo Parlamentar
do Bloco de Esquerda, tem a palavra o Sr. Deputado José Soeiro.
O Sr. José Moura Soeiro (BE): — Sr. Presidente da República, Sr. Presidente da Assembleia da República,
Srs. Presidentes do Tribunal Constitucional e do Supremo Tribunal de Justiça, Sr. Primeiro-Ministro e demais
Membros do Governo, Sr.as e Srs. Deputados, Caros Convidados: São 10 horas e 16 minutos. Às 4 horas da
manhã, muito antes da primeira claridade do dia, já um punhado de mulheres saía da cama para vir trabalhar.
Apanharam o transporte às cinco menos um quarto, chegaram às 6 horas à Assembleia.
Quando o dia nasceu, muito antes de os nossos despertadores tocarem, já elas tinham lavado a escadaria
principal, puxado o lustro com as rotativas às madeiras enceradas dos Passos Perdidos, esfregado as casas de
banho; já elas tinham aspirado, de novo, as carpetes vermelhas, desinfetado as bancadas desta Sala, conferido
se os cravos estavam bem espetados nas esponjas verdes que não vemos.
Depois de sairmos, são elas quem recolherá os papéis abandonados nas bancadas, são elas quem voltará
a lavar as sanitas e a passar a esfregona no chão para as visitas da tarde.
O seu trabalho só costuma ser notado quando não está feito.
Quem talhou estas madeiras? Quem ligou os cabos e segura as câmaras? Quem nos transportou até cá?
Quem lavou as meias que calçamos? Quem as pôs no estendal e quem as levantou do estendal?
Quem passou as camisas e as blusas e os fatos?
Quem fez o pequeno-almoço?
Quem ficou hoje com as crianças e com os mais velhos? Se foi trabalho remunerado, quanto ganham?
Para que esta sessão aconteça, para que a Sala esteja pronta para a solenidade, há centenas de pessoas
nos bastidores da democracia. Vemo-las mesmo?
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Que atenção temos dado, enquanto sociedade, a todas estas pessoas sem as quais o mundo não funciona?
Nos supermercados e nas cantinas, nos transportes e nas escolas, nos call centers e nas empresas, nos
serviços e na indústria, nas casas.
Na pandemia, identificámos profissões essenciais, trabalhadores da linha da frente, chamámos-lhes «heróis
e heroínas do quotidiano». Mas muitas das atividades das quais dependemos continuam a ser as mais
desvalorizadas, as mais precárias, as mais externalizadas.
Que atenção tem merecido quem produz aquilo de que precisamos? Que consideração tem merecido quem
cuida e mantém a vida?
Setecentos e poucos euros de salário, eis o que ganha quem limpa o mundo, e o Parlamento. Se tiver um
contrato só de umas horas — também os há aqui — são trezentos e poucos euros, mais 1,39 € para o pequeno-
almoço. Subtraia-se o transporte e a renda de casa. O que sobra? Subtraia-se a inflação, que galopa. Quanto
fica para viver?
E não é só delas, das que limpam, a aflição. É de toda a gente que recebe o salário mínimo ou pouco mais,
é da maioria.
A quem faz o País funcionar, a democracia não deve apenas gratidão, deve reconhecimento e justiça.
No nosso País de salários baixos, a elite dos gestores das 15 maiores empresas — onde se incluem EDP
(Energias de Portugal), Pingo Doce, Mota Engil, Galp — aumentou, em 90%, o seu rendimento no ano passado.
Um gestor chega a ganhar 880 000 € por mês. Uma caixa de supermercado teria de trabalhar mais de 1250
anos para ganhar o mesmo que o administrador da sua empresa, no ano passado. Quão democráticas são
estas desigualdades?
Não, não está tudo bem.
É tempo de ouvir todas as pessoas que não estão no retrato emoldurado dos notáveis, que não têm nem
terão medalhas nem ruas com o seu nome, que estão no avesso dos lugares, mas sem as quais não existiriam
lugares.
Outras histórias, «ou de como Maina Mendes pôs ambas as mãos sobre o corpo e deu um pontapé no cu
dos outros legítimos superiores». A frase é a epígrafe das Novas Cartas Portuguesas.
Foi em abril de 1972, faz agora 50 anos, que esse livro — gerado durante nove meses pelas três Marias —
fazia explodir as convenções, o amor subserviente, as sombras do castigo, o desejo reprimido, o «não fales
dessas coisas», o «a minha mãe diz que é pecado», o «olha que o respeitinho é muito lindo», o «dá um beijinho
à senhora, que ela é tão boazinha para a gente»; que fazia explodir, também, as fronteiras entre géneros
literários, os limites da linguagem, os interditos temáticos.
No País da guerra colonial e da pobreza, do «Deus, Pátria e Família», em que uma mulher tinha de pedir
autorização ao marido para ir ao estrangeiro e uma professora primária tinha de pedir autorização ao Governo
para casar, o livro não durou mais de três dias nas bancas.
Para o fascismo, por mais primaveras marcelistas, era «insanavelmente pornográfico e atentatório da moral
pública» falar do trabalho das mulheres e da violência contra elas, do colonialismo e da dominação masculina,
da vertigem do corpo e do corpo como campo de batalha, dos úteros «escangalhados por tentativas de aborto
clandestino com agulhas de tricot e talos de couve», do desespero da guerra, da emigração a salto, da
desigualdade, da pobreza, da ditadura.
Os livros foram recolhidos e destruídos pela censura.
Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa foram atiradas para o Tribunal da Boa
Hora, de tal forma os estilhaços do que tinham escrito haviam ferido o regime. O julgamento, contudo,
transformou o caso numa causa feminista internacional. Simone de Beauvoir, entre outras, propôs que as
feministas de todo o mundo se mobilizassem. Multiplicaram-se manifestações e protestos pelas embaixadas
portuguesas, em vários países. Seria preciso a Revolução para que o julgamento mudasse. Para que tudo
mudasse. Para que não fosse mais a mesma essa metade da humanidade de que falavam as três Marias.
E não foi a mesma?
A nossa democracia nasceu da Revolução, tem a marca inapagável desse cordão umbilical.
A democracia não ficou à espera de que viesse o documento autenticado, o papel oficial, a ordem do Sr.
Doutor.
Foi fazer o sindicato e gerir a empresa, porque o patrão tinha fugido.
Foi fazer a creche e a cantina, porque não havia e era preciso.
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Foi trabalhar a terra e aprender as contas.
Foi pôr a gente a morar nas casas abandonadas, porque ter casas vazias, ao abandono, não era um direito
e ter um teto, sim.
Foi passar os filmes todos, que agora não eram proibidos.
Foi fazer cooperativas de produção e de teatro e de cinema, e até de espectadores.
Foi não mais aceitar esconder, mesmo se um general da Junta de Salvação Nacional dizia que «a Revolução
não foi feita para prostitutas e homossexuais».
Foi tratar os outros por tu.
Foi sair de casa ou dizer ao homem que agora as coisas mudaram, que o tempo da servidão já não é.
Foi o salário mínimo, o direito à greve, foi o Serviço Nacional de Saúde, foi a segurança social e a escola
pública.
Foi fazer isso tudo com as próprias mãos. Foi não ficar à espera e não ficar satisfeito.
Estamos em 2022 e nós não estamos satisfeitos.
Não olhamos a democracia como um protocolo sem conteúdo de igualdade.
Nós celebramos termos agora mais tempo de democracia do que de ditadura. Fazemos a festa na rua. Mas
nós não queremos ter só mais tempo de democracia, nós queremos ter mais democracia.
Falta-nos ainda quase tudo.
Falta Estado social, onde já começámos a construí-lo, como na saúde, e onde não tem existido, como na
habitação ou nos cuidados.
Falta acabar com as hierarquias e as divisões sexuais, os padrões de colonialidade que persistem. Falta
produzir e viver de outro modo.
Não nos digam que o debate é entre quem quer simplesmente manter o que existe e quem quer destruir o
que existe.
Que triste e que pobre visão do mundo a de quem acha que o campo de possíveis da democracia se resume
a sermos democratas liberais ou iliberais.
Nós não aceitamos essa prisão de expectativas.
A Revolução não é um património a ser velado com zelo, mas um legado para iluminar as contradições do
presente.
A memória da Revolução é um repertório de luta para ampliar o nosso imaginário e para empurrarmos, hoje,
as fronteiras do possível, contra a exploração, a destruição climática, o despotismo do mercado.
Não olhamos a democracia como uma herança a ser conservada, mas como uma tarefa para o presente. O
futuro não há de ser o passado nem a perpétua repetição do presente, é agora fazer outro tempo.
Aplausos do BE, do PCP e de Deputados do PS.
O Sr. Presidente da Assembleia da República: — Para uma intervenção, em nome do Grupo Parlamentar
do Partido Comunista Português, tem a palavra a Sr.ª Deputada Paula Santos.
A Sr.ª Paula Santos (PCP): — Sr. Presidente da República, Sr. Presidente da Assembleia da República, Sr.
Primeiro-Ministro e demais Membros do Governo, Srs. Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal
Constitucional, Capitães de Abril, Ilustres Convidados, Sr.as e Srs. Deputados: Acontecimento maior da vida e
da história do povo português, a Revolução de Abril trouxe a liberdade. A liberdade de falar sem receio de ser
perseguido, preso ou torturado; a liberdade de opinião, de expressão, de organização e intervenção.
A Revolução de Abril derrubou a ditadura fascista, a repressão e a opressão e instaurou a liberdade e a
democracia. Pôs fim à exploração e à miséria que afetavam a esmagadora maioria da população e trouxe a
melhoria das suas condições de vida. Pôs fim à guerra colonial e estabeleceu a paz, a libertação e a
independência dos povos das ex-colónias.
Foi a luta antifascista nas fábricas, nos campos, nas universidades, nas artes, nas ruas que criou as
condições para o derrubamento da ditadura e que possibilitou profundas transformações na sociedade
portuguesa.
Homenageamos todos os democratas e antifascistas, os homens e mulheres que, em circunstâncias
extremamente difíceis, lutaram contra o fascismo.
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Homenageamos os militares de Abril e o Movimento das Forças Armadas, a quem se juntaram as massas
populares, concretizando a Revolução e as suas conquistas de grande alcance.
Há quem procure branquear o que foi o fascismo. Não o permitiremos e lembramos a natureza do regime
fascista — a corrupção como política de Estado, por via da fusão do poder político com o poder económico,
sustentado nos monopólios e nos latifúndios, o saque dos recursos nacionais a favor daqueles interesses, a
acumulação de colossais fortunas por uma meia dúzia de ricos e poderosos, enquanto para o povo era a pobreza
e a miséria, a negação das liberdades, o analfabetismo, a falta de cuidados de saúde, o colonialismo, o racismo,
a guerra, a discriminação das mulheres. Não deixamos que se esqueça, para que nunca mais volte!
Há quem procure desvirtuar o conteúdo e significado do 25 de Abril. Contra as perversões e falsificações
históricas, celebramos a Revolução que assumiu como objetivos instaurar um regime democrático, liquidar o
poder dos monopólios, promover o desenvolvimento económico geral e a reforma agrária, entregando a terra a
quem a trabalha, elevar o nível de vida das classes trabalhadoras e do povo em geral, democratizar o acesso à
educação e à cultura, afirmar a independência nacional, libertar Portugal do imperialismo, prosseguir uma
política de paz e de amizade com todos os povos. Tudo isto consagrado na Constituição, aprovada em 2 de abril
de 1976, apesar dos propósitos e atentados das forças reacionárias para o impedir.
Nestas quase cinco décadas, houve sempre quem não se conformasse com as conquistas de Abril e tenha
procurado limitar e reduzir o seu alcance, dificultar a sua concretização e impor retrocessos, num verdadeiro
ajuste de contas com Abril.
Em resultado da política de direita, da submissão às imposições da União Europeia e da subalternização dos
interesses nacionais aos dos grupos económicos, as condições de vida agravam-se.
O descarado aproveitamento da guerra e das sanções como pretexto para maior acumulação de lucros exige
uma firme e determinada intervenção, que enfrente os interesses dos grupos económicos para defender o povo
e o País. No entanto, o Governo PS e os partidos à sua direita recusam essa resposta e insistem em impor aos
trabalhadores e ao povo que paguem a fatura da guerra e das sanções.
A tentativa de imposição do pensamento único, o levantamento de novas censuras, a hostilização de quem
livremente emite opinião divergente daquela que é ditada pela ideologia dominante são perigosos elementos de
ataque ao regime democrático e, por isso, têm como alvo os seus mais firmes defensores, os comunistas e
outros democratas, visando silenciar a sua intervenção.
Ouvem-se hoje, por aí, velhas ideias, mascaradas de modernas, com o objetivo de subverter o regime
democrático e de liquidar a Constituição, submetendo-a aos dogmas liberais, em benefício dos grupos
económicos e do seu domínio, atacando direitos e impondo mais exploração e empobrecimento aos
trabalhadores e ao povo.
O que se impõe é concretizar os direitos que a Constituição inscreve e que constituem o rumo necessário
para um Portugal com futuro.
As conquistas, valores e ideais de Abril são a solução para os problemas atuais e para o futuro do nosso
País.
A luta dos trabalhadores e do povo por melhores salários e pensões, pelo reforço dos direitos, pela proteção
social, pelo Serviço Nacional de Saúde, pela escola pública, pelo direito à habitação, à cultura, aos transportes,
à segurança, pela igualdade, pela proteção do ambiente é a luta pela política alternativa, é a luta por Abril.
Abril é património do povo português, mas nem todos foram obreiros na sua construção. Cabe a todos os
democratas defendê-lo.
Da parte do Partido Comunista Português, com o exemplo de 100 anos de luta ao serviço do povo e da
Pátria, contra tentativas de intimidação, reafirmamos o compromisso, de hoje e de sempre, contra o fascismo e
a guerra, pela paz, a liberdade, a democracia, a justiça social, pelos valores de Abril na vida das crianças, dos
jovens, dos trabalhadores, do povo português, com uma inabalável confiança no futuro.
Ao comemorarmos Abril, evocamos a sua realização, mas, sobretudo, projetamos as suas conquistas e
valores na construção de um Portugal desenvolvido, de progresso, de paz e soberano, porque Abril é mais
Futuro!
Aplausos do PCP e do Deputado do BE Pedro Filipe Soares.
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O Sr. Presidente da Assembleia da República: — Para uma intervenção, em nome do Grupo Parlamentar
do Iniciativa Liberal, dou a palavra ao Sr. Deputado Bernardo Blanco.
O Sr. Bernardo Blanco (IL): — Sr. Presidente da República, Sr. Presidente da Assembleia da República, Sr.
Primeiro-Ministro e Membros do Governo, Ex.mos Convidados, Srs. Deputados, Portugueses: Silêncio. Antes do
25 de Abril, tivemos quase 50 anos de silêncio, 50 anos sem uma autêntica eleição, 50 anos sem a voz livre da
oposição, 50 anos sem liberdade de expressão. Como é que isto aconteceu? Como é que uma grande parte
dos portugueses não quis saber?
Antes do 25 de Abril, Portugal era um país fantoche controlado por uma mão cerrada.
Portugal tinha, em primeiro lugar, uma justiça fantoche. Portugal tinha presos políticos sem crimes. Havia
proibição de livros e filmes. Os homens tinham mais direitos que as mulheres.
Em segundo lugar, Portugal tinha uma economia fantoche, baseada num nacionalismo económico,
controlada por cartéis do Estado com pouco ou nada de livre mercado.
Em terceiro, Portugal tinha um sistema político fantoche baseado no culto do chefe, na opressão da polícia
política, na rejeição da democracia liberal e da crítica.
Como é que isto aconteceu? Como é que uma grande parte dos portugueses não quis saber?
Como escreveu Fernando Pessoa: «Sim, é o Estado Novo, e o povo / Ouviu, leu e assentiu. / Sim, isto é um
Estado Novo / Pois é um estado de coisas / Que nunca antes se viu.»
Para mim, que nasci nos anos 90, e para quem nasceu já no novo milénio, o Estado Novo é o Estado velho:
uma realidade tão distante, ao nível temporal e ao nível de ideal, que, para mim, a maior dádiva do 25 de Abril,
felizmente, já não é material, mas, sim, espiritual.
Para mim, o 25 de Abril é o dia em que os portugueses quiseram saber. É o dia que representa o espírito de
insurreição que rompe a ditadura, de insurgência que rompe a censura, de inconformismo que rompe a
estagnação. E é este espírito que tem de voltar com prontidão.
Este ano, em que, como já foi hoje assinalado, os 48 anos de 25 de Abril superam os 48 anos de ditadura,
não é, certamente, o momento para acabar com «o estado a que chegámos», relembrando Salgueiro Maia, mas
é o momento de refletir sobre e de mudar o estado a que chegámos.
Portugal está, de novo, num longo sono, muito menos grave e, obviamente, incomparável com o sono
anterior, mas que não deixa de ser preocupante. Portugal é um país estagnado; Portugal, economicamente,
está parado, socialmente, está hipnotizado, politicamente, diria que está desligado.
Hoje, o dono de um restaurante em Faro que queira aumentar o salário de um jovem, de 800 € para 900 €,
vê o Estado levar metade desse aumento, e o jovem nem faz ideia, perpetuando um País de salários mínimos
e cada vez dos mais pobres da União Europeia. Hoje, uma enfermeira em Lisboa ganha 1000 € líquidos e grande
parte vai para pagar a sua habitação, pensando, todos os dias, cada vez mais, na opção forçada da emigração.
Hoje, uma médica ou um consultor no Porto que ganhem um pouco acima da média, entre IRS (imposto
sobre o rendimento das pessoas singulares) e segurança social de elevadas dimensões, veem praticamente
40% do seu salário ir para um Estado que gasta 4 mil milhões a brincar aos aviões.
Hoje, uma família em Aveiro, em vez de ter liberdade para escolher a escola dos seus filhos, tem menos
mobilidade social, porque é obrigada pelo Governo a frequentar a escola do seu código postal. Hoje, uma família
em Braga tem menos escolhas na saúde e tem mais filas de espera prolongadas porque o Governo decidiu, ao
contrário do resto da Europa, acabar com as parcerias público-privadas. E hoje, de Beja aos Açores, metade
dos portugueses não vota — um caso único na Europa ocidental, agravado, obviamente, pelo facto de não haver
um círculo de compensação nacional.
A boa notícia, obviamente, é que Portugal não está condenado. Não é esse, certamente, o nosso fado. Mas,
para Portugal sair da cauda da Europa e voltar a estar na frente, é preciso romper com tudo aquilo que o Estado
Novo ainda nos deixou. É preciso mudar. Mudar o «poucochinho» e o receio pela ambição e pela inovação dos
descobrimentos. Mudar o «respeitinho» cego à autoridade pelo inconformismo da Revolução Liberal de 1820.
Mudar o desinteresse e a apatia pela participação massiva de 90% nas eleições de 1975.
Falta a Portugal o inconformismo de Abril para romper a estagnação. Abril confiou-nos esta difícil missão, a
de continuar a querer saber da política, de Portugal, da Europa, do mundo, essencialmente, do futuro. E, como
Abril nos demonstrou e a guerra na Ucrânia nos confirma, a democracia é difícil de conquistar, mas fácil de
perder.
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Por isso, hoje, importa dizer que todas as pessoas livres, onde quer que vivam, são cidadãos da Ucrânia.
Terminando, Sr. Presidente, o 25 de Abril é um legado maior do que todos nós e cujo único dono é o povo
português. É o dia despertador, é o espírito que nos acorda ao longo do longo sono de ontem em busca de um
melhor amanhã. Portugueses, vamos voltar a querer saber. Vamos, com o inconformismo de Abril, romper a
estagnação.
Aplausos do IL e de Deputados do PSD.
O Sr. Presidente da Assembleia da República: — Para uma intervenção, em nome do Grupo Parlamentar
do Chega, tem a palavra o Sr. Deputado André Ventura.
O Sr. André Ventura (CH): — Sr. Presidente da República, Sr. Presidente da Assembleia da República, Sr.
Primeiro-Ministro, demais Autoridades, Srs. Deputados, Ilustres Convidados: A história que nos ensinaram deste
dia e desta manhã foi a história da glória dos cravos que hoje enfeitam este Parlamento. A história da glorificação
de uma manhã saída de uma noite que quis dar triunfo, liberdade e prosperidade a Portugal.
Por isso, passámos, e continuamos a passar, todos os nossos dias 25 de Abril saudando-nos uns aos outros,
trazendo estes cravos vermelhos e mostrando ao País que somos diferentes.
Hoje, e talvez isto nunca tenha sido dito nesta Câmara, devíamos, sim, olhar para os portugueses e dizer
«desculpem, porque falhámos», porque falhámos.
Falhámos na justiça que construímos; falhámos no império que se dissolveu e que deixou outros países à
sua mercê e famílias à sua sorte; falhámos nos jovens que querem emigrar como nunca, no País que lhes tinha
prometido ser o País da prosperidade; falhámos aos pensionistas e aos reformados, que têm hoje o pior poder
de compra da União Europeia. Tanto falhou Abril. E estes cravos de nada valem a essas pessoas, que, para
irem ao supermercado, têm de usar o dinheiro da sua reforma e não um cravo vermelho para poderem pagar a
sua comida.
Falhámos, portugueses! Nós, todos, os que aqui estamos sentados, falhámos! Falhámos na luta que
devíamos ter travado por todos vós. Falhámos aos polícias, falhámos aos magistrados, falhámos aos
empresários, falhámos às famílias, falhámos àqueles que olharam e disseram «deem-nos um país diferente,
deem-nos essa manhã que nos prometeram», pois Portugal não cessa de ser ultrapassado e obscurecido.
Falhámos na reconciliação. E, Sr. Presidente, talvez hoje fosse o dia de, ao mesmo tempo que saudamos a
liberdade, relembrar todos aqueles que foram vítimas da expropriação após o 25 de Abril de 1974, todos os
retornados que vieram dos seus países e aqui encontraram um País que não lhes deu a mão e que lhes devia
ter dado a mão, esse País que já não temos.
Aplausos do CH.
Sim, Sr. Presidente, falhámos também a esses. Falhámos aos retornados, falhámos aos ex-combatentes,
alguns deles a viver na rua, aqui, nesta cidade de Lisboa. Enquanto celebramos com cravos vermelhos neste
Parlamento, há ex-combatentes que estão a viver nas estações do metro, na estação de Santa Apolónia.
Viva Abril! Sem dúvida! Mas era o Abril de todos os portugueses, inclusive daqueles que o fizeram e que
foram esquecidos por Portugal, todos esses, as vítimas da expropriação, da reforma agrária. O esquecimento
de um regime que não deixou de os esquecer e que ostensivamente fez por ignorá-los. Não devíamos, aqui,
hoje, ter medo de os citar e de os trazer também à memória, porque são tão portugueses como nós e têm
famílias como nós também temos.
Por isso, permita que me dirija a si, Sr. Presidente da República, meu adversário e vencedor das últimas
eleições, com um pedido muito específico: não condecore aqueles que torturaram, mataram e expropriaram em
Portugal.
Aplausos do CH.
Sr. Presidente da República, nós não podemos ter, entre os condecorados, pessoas que mataram bebés,
pessoas que assassinaram famílias, pessoas que destruíram a economia portuguesa nos anos 70 e 80. Ainda
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hoje estamos a pagar por isso e, se queremos reconciliar Portugal, certamente, não é a fazer deles heróis que
vamos reconciliar Portugal, mas a ter a capacidade de olhar a História de frente e dizer que quem cometeu atos
terroristas, quem patrocinou e promoveu nacionalizações e expropriações não pode ser um herói, tem de ser
considerado aquilo que é, um bandido. E nós devemos tratar os bandidos como bandidos, porque é isso que
são.
Aplausos do CH.
Por isso, Sr. Presidente da República e Sr. Presidente da Assembleia da República, permitam-me deixar,
neste dia solene, este repto: nenhum sentido faz estarmos aqui, hoje, a celebrar o 25 de Abril, se não tivermos
a coragem de dizer que não teria havido 25 de Abril se não tivesse existido 25 de Novembro, e devemos ter a
coragem de dizer a Portugal que o 25 de Novembro foi o dia que nos trouxe a liberdade e a democracia!
Aplausos do CH.
Por isso, falhámos. Falhámos em todos os dados que temos ao nosso dispor.
Em 1975, Sr. Presidente, Portugal estava na 23.ª posição do Índice de Desenvolvimento Humano; em 2015,
estava na 41.ª Estes cravos deviam dizer isso todos os dias: «Portugal estava na 23.ª posição, passou para
a 41.ª»
Aquilo que tínhamos era mau, muito do que veio depois pior foi, ou mau continuou a ser. Três em cada quatro
jovens do nosso País ganham menos de 950 € por mês; três em cada quatro dos que nos estão a ver em casa,
e sabem bem do que estou a falar, ganham menos de 950 € por mês. Alguns deles, hoje, olham para países
que ainda há poucos anos estavam atrás de uma «Cortina de Ferro» e têm lá salários mais altos do que aqui
praticamos. Como é que foi possível termos chegado aqui?!
Dizemos que naquelas chaimites vinha a ética, a transparência e a justiça. E, nesta semana do 25 de Abril,
Sr. Presidente, tivemos mais um ministro que saiu direto do Governo para uma instituição que financiou, cujo
orçamento distribuiu dotação para a financiar, no ISCTE.
Neste mesmo ano, no 25 de Abril, em que tanto celebrámos por passar mais tempo em liberdade do que em
ditadura, um ex-banqueiro corrupto recusa ser julgado, porque tem Alzheimer, mas está de férias na Sardenha,
no momento em que muitas destas sessões aqui se realizaram.
Sim, Sr. Presidente, ao mesmo tempo que celebramos o 25 de Abril, há políticos presos a receber
subvenções vitalícias e há pensionistas a receber 200 € por mês, todos os meses. Se isto era Abril, nós não
queríamos este Abril e preferíamos outro, porque são as pessoas, em primeiro lugar, os portugueses, em
primeiro lugar, a quem temos de dar memória.
Aplausos do CH.
Nos 48 anos de Abril, nos 48 anos da Revolução dos Cravos, devíamos assumir aos portugueses que
falhámos.
Falhámos no progresso, e fomos arranjando, sistematicamente, desculpas para dizer que falhámos: foi a
crise financeira, foi a pandemia, agora, é a guerra. Não sei a que velocidade seguiam as chaimites que vinham
de Santarém para Lisboa, mas sei uma coisa: sei que, na velocidade do pós-25 de Abril, Portugal ficou
sistematicamente para trás. Talvez o símbolo de algumas avarias militares daquela manhã viesse a ser o
símbolo do que foi a avaria do País nos anos que se seguiram.
Eu não aceito viver num país que, ao fim de 10, 15, 20 ou 40 anos de democracia, se deixe ultrapassar pela
Letónia, se deixe ultrapassar pela Checoslováquia, se deixe ultrapassar por países que ainda há poucos anos
estavam na outra «Cortina de Ferro». Eu não aceito viver num país ultrapassado, empobrecido e amedrontado,
e não tenho medo de o dizer.
Aplausos do CH.
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Nos 48 anos de Abril, continuamos a ter um Governo que tenta asfixiar a justiça e atirá-la contra os seus
inimigos. Continuamos a ter um País ultrapassado por países que nem sonhávamos, há alguns anos, poderem
ultrapassar-nos. E era isto que devíamos dizer às pessoas neste dia solene. Eles, que nos estão a ver, sabem
bem que esse País ficou para trás nos netos que emigraram, naquele filho polícia que teve de assumir a
responsabilidade por defender a lei e a ordem, naqueles que fizeram e construíram este País e sentem que hoje
pagam mais impostos do que nunca.
Vou terminar, Sr. Presidente, deixando isto: nunca pagámos tantos impostos em Portugal. «E para quê?»,
pergunta-se quem nos está a ver. Para que é que pagamos esta quantidade incrível de impostos, se não para
sustentar uma clientela de Estado enorme que empobrece, destrói e vai destruindo a nossa democracia?! Hoje,
os portugueses sentem que pagam verdadeiramente para sustentar o Estado, mas, pior, que pagam para
sustentar quem não quer fazer absolutamente nada. E isto não é admissível numa democracia moderna e numa
democracia como a nossa.
Era Francisco Sá Carneiro que dizia: «Uma democracia que não se defende vigorosamente não tem o direito
de sobreviver». E um povo que não se insurge não tem o direito de vencer. E nós queremos muito, muito,
queremos muito, muito vencer! Não vencer pelos cravos, não vencer por qualquer flor, não vencer por qualquer
símbolo: vencer por Portugal, por esse Portugal que precisa de nós. Como dizia o nosso maior poeta: «Senhor,
falta cumprir-se Portugal»! E nós não temos medo, nós, cedo ou tarde, cumpriremos Portugal!
Aplausos do CH, de pé.
O Sr. Presidente da Assembleia da República: — Para uma intervenção, em nome do Grupo Parlamentar
do Partido Social Democrata, tem a palavra o Sr. Deputado Rui Rio.
O Sr. Rui Rio (PSD): — Sr. Presidente da República, Sr. Presidente da Assembleia da República, Sr.
Primeiro-Ministro e demais Membros do Governo, Sr.as e Srs. Convidados, Sr.as e Srs. Deputados: Celebramos
hoje os 48 anos do 25 de Abril. Fazer um discurso em homenagem à Revolução dos Cravos e, por conseguinte,
em defesa da democracia não pode ser, tantos anos depois, um mero repositório de afirmações laudatórias mil
vezes repetidas.
Uma coisa é a importância e a gratidão que todos devemos a quem nos proporcionou a liberdade há quase
meio século; coisa diferente é honrar esse ato histórico que nos libertou da ditadura, com uma análise séria e
corajosa da situação em que se encontra, hoje, o regime que nessa data se fundou.
Aqueles que arriscaram o seu futuro e, nalguns casos, a sua própria vida, para que o País pudesse viver em
democracia, merecem que os homenageemos de forma genuína; ou seja, defendendo sempre os valores que
eles, heroicamente, nos ofereceram.
E defender esses valores é, antes do mais, ter a coragem e a frontalidade para apontar o que com o tempo
se foi degradando e, dessa forma, enfraquecendo os principais propósitos do 25 de Abril.
Se para alguns de nós a Revolução dos Cravos é uma memória bem presente e intensamente vivida, a
verdade é que para a maioria dos portugueses ela já é apenas mais uma data histórica ocorrida antes do seu
nascimento.
Também por isso se impõe que a evocação do 25 de Abril seja um momento de autocrítica sério e realista
do trajeto que temos seguido, porque ficar pelo simples elogio do passado é, objetivamente, renunciar ao futuro.
Numa sociedade que muda a uma velocidade nunca antes sentida pela humanidade, a necessidade de
reformar o que ainda há pouco se reformou é uma evidência com que temos vivido, e com que vamos ter de
viver, cada vez mais intensamente.
Em democracia, esta realidade gerou um desafio de contornos contraditórios, que a sociedade tem tido
dificuldade em equilibrar.
Se é justo responsabilizar a política, porque ela não tem tido a coragem de fazer as reformas estruturais que
o desenvolvimento do País reclama, a verdade é que a maioria do eleitorado também valoriza muito mais a
promessa fácil da benesse imediata do que a realização das reformas que preparam o seu futuro.
Esta contradição, entre a necessidade dos votos para ganhar as eleições e a necessidade de responder à
evolução da sociedade, sempre existiu, mas, no tempo presente, dada a voracidade dessa evolução, ela é cada
vez mais evidente e, diria eu, bem mais preocupante.
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É uma das principais razões para o descrédito em que a vida pública tem caído, porque o eleitorado que hoje
escolhe o caminho mais fácil é o povo que amanhã se queixará da ineficácia da governação que escolheu.
Ao cabo de 48 anos, esse descrédito e o descontentamento popular que lhe está associado foram-se
transformando nos principais suportes de novas forças extremistas que, com a sua tradicional demagogia,
procuram saciar os impulsos emotivos de quem está mais fragilizado.
Aplausos do PSD.
A solução para travar o crescimento dos extremismos não são absurdos «cordões sanitários», nem é a
desqualificação do voto de quem neles aposta.
A solução está em nós próprios. A solução está em enfrentar a realidade sem cobardia nem hipocrisia. Está
em reformar ou, diria melhor, em romper com o que há muito está enquistado e ao serviço de interesses setoriais
ou de grupo. Romper com tudo aquilo que não funciona de acordo com a lógica do interesse coletivo, mas sim
em função do setor ou da corporação a quem o imobilismo aproveita. É este o primeiro motivo que estrangula o
desenvolvimento do nosso País e alimenta o desencanto que hoje existe.
A alteração do sistema eleitoral, a revisão constitucional, a reforma da justiça, a descentralização, a Lei dos
Partidos Políticos e a sua lógica de funcionamento, ou uma reforma do Estado que fomente a qualidade e a
produtividade dos serviços públicos e permita a redução dos impostos, são tudo exemplos de matérias que
carecem de adequação aos tempos que vivemos.
Mas também uma atitude política de firme combate à corrupção e fundamentalmente ao tráfico de influências,
de real autonomia face à atual lógica de funcionamento da comunicação social, de renúncia à política-espetáculo
e de reforço da verdade e da competência, de coragem para se ser mais forte com os fortes do que com os
fracos e, principalmente, de genuinidade e coerência entre as palavras e os atos, são tudo formas de estar que,
se forem corrigidas no sentido certo, ajudarão, seguramente, à credibilização da vida pública e ao renascer da
esperança que o 25 de Abril nos trouxe, mas que o tempo e os homens têm deixado enfraquecer.
Sr. Presidente, se queremos um Portugal virado para o futuro, que não se atrasa cada vez mais na escala
europeia e que não quer continuar a ver os seus jovens a emigrar, então, teremos de ter o rasgo de fazer
diferente, atuando coerentemente sobre as verdadeiras causas do nosso problema.
Os que, há 48 anos, nos deram a liberdade e a democracia merecem que assim o façamos. Merecem que
saibamos construir o Portugal com que eles sonharam e pelo qual tudo arriscaram, porque é esse o Portugal
que vale a pena.
Aplausos do PSD, de pé, e do Deputado do IL Carlos Guimarães Pinto.
O Sr. Presidente da Assembleia da República: — Para uma intervenção, em nome do Grupo Parlamentar
do Partido Socialista, tem a palavra o Sr. Deputado Pedro Delgado Alves.
O Sr. Pedro Delgado Alves (PS): — Sr. Presidente da República, Sr. Presidente da Assembleia da
República, Sr. Presidente Ramalho Eanes, Srs. Presidentes Ferro Rodrigues e Mota Amaral — e em vós
saudando todos os antigos parlamentares —, Srs. Capitães de Abril e representantes da Associação 25 de Abril
— e em vós saudando o Movimento das Forças Armadas —, Sr. Primeiro-Ministro e demais Membros do
Governo, Srs. Presidentes do Tribunal Constitucional, do Supremo Tribunal de Justiça e demais tribunais
superiores, demais Autoridades Civis e Militares, Sr.as e Srs. Deputados, Minhas Senhoras e Meus Senhores:
Comemorar o 25 de Abril é, em primeiro lugar, honrar a memória dos que resistiram, sofreram e tombaram para
que a liberdade fosse possível.
No ano em que os dias da democracia superam o número de dias em ditadura, deu-se a coincidência de
essa data ocorrer a 24 de março, dia da revolta estudantil que mobilizou a juventude contra quem a privava do
seu futuro. Permitam-me, assim, convocar a memória de quem, na resistência ao Estado Novo e na construção
da II República, infelizmente, pela primeira vez não acompanhará a celebração de Abril, o Presidente Jorge
Sampaio.
Aplausos do PS e do L, de pé, do PCP, do BE, do PAN e de Deputados do PSD.
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Sampaio demonstrou, nesse 24 de março de 1962, que já era um homem livre antes de a liberdade raiar,
nunca se vergando perante a opressão e a injustiça, não tendo medo de arriscar, quando o que se arriscava era
a vida e o futuro. Desde esses dias, com os colegas, na Alameda da Universidade, perante a arbitrariedade dos
tribunais plenários que enfrentou e na sua vida de incansável construtor da democracia — como tribuno nesta
Assembleia, como autarca no poder local e na Presidência da República —, Jorge Sampaio junta-se aos eternos
que tanta falta nos fazem para recordar que o respeito, a cordialidade, a convivialidade são essenciais à
democracia.
Aplausos do PS.
É através da memória de Jorge Sampaio que hoje me permito homenagear todos aqueles que, desde a
década de 20 do século XX — republicanos, anarquistas, comunistas, socialistas, monárquicos, liberais e
democratas de outras extrações —, mantiveram acesa a chama da esperança de um Portugal livre,
desamordaçado enfim, como Mário Soares exigiu e ajudou a concretizar.
Aplausos do PS.
Sr. Presidente da República, Sr. Presidente da Assembleia da República, Sr.as e Srs. Deputados: Comemorar
Abril é também honrar os que, na madrugada decisiva, quebraram os grilhões que prendiam os seus
concidadãos, dando às gerações vindouras o direito de nascerem homens e mulheres livres. Para o
agradecimento que lhes é devido serão sempre escassos os gestos e as palavras, incapazes que são de os
abraçar a todos e a dimensão singular do seu gesto libertador, não apenas de um, mas de vários países. Na
Associação 25 de Abril, presente entre nós, e no espírito de todos os que, hoje, celebram a liberdade, curvamo-
nos, uma vez mais, em gratidão.
Todavia, honrar Abril é também não esquecer que as contradições e tensões que, então, se enfrentaram e
arriscaram fraturar o País durante o processo revolucionário foram superadas pelos decisores de então, ninguém
excluindo, todos conquistando para a democracia, sarando as feridas e privilegiando aquilo que nos une e que
a todos orgulha. Não erremos hoje, fora de tempo, onde Soares, Sá Carneiro, Cunhal, Freitas do Amaral, Melo
Antunes e Ramalho Eanes não falharam.
Aplausos do PS.
Sr. Presidente da República, Sr. Presidente da Assembleia da República, Sr.as e Srs. Deputados: Comemorar
o 25 de Abril é, ainda, reconhecer que o Portugal que somos hoje apenas existe graças às portas, então,
franqueadas.
O decurso do tempo, que esbate a memória coletiva, torna cada vez mais relevante que o dia de hoje seja,
também, um dia de balanço dos feitos da democracia. Não para nos conformarmos e abrandarmos a nossa
determinação em prosseguir, mas, antes, para motivar as gerações futuras a continuar a construir um País mais
justo e mais solidário.
Confrontemos, então, o Portugal anterior ao 25 de Abril de 1974 com as realizações do Portugal democrático
e europeu que temos hoje.
Uma menina que nasça em abril de 2022 não se confrontará com um regime que lhe diz que não pode ser
juíza, ou diplomata, que a sujeita ao seu marido como chefe de família, que não a protege da violência e que
lhe determina um papel social do qual não poderá escapar.
Uma menina que nasça em abril de 2022 não terá de desafiar uma taxa de mortalidade infantil que
envergonha o seu País e poderá encarar o futuro com uma esperança de vida de 81 anos, sabendo que terá o
SNS ao seu lado para enfrentar o que surgir pela frente.
Uma menina que nasça em abril de 2022, graças à escola pública, não conhecerá um país em que 20% dos
homens e 31% das mulheres são analfabetos, mas, antes, uma população que saltou de 5% de escolarização
secundária para 83%…
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Aplausos do PS.
… e saltou de menos de 1% com ensino superior, entre 30 e 34 anos, para mais de 50%.
Uma menina que nasça em 2022 e queira viver livremente a sua identidade e orientação sexual não será
marginalizada ou tratada como criminosa nem obrigada a conformar-se com os preconceitos dos outros.
Uma menina que nasça em 2022 terá do seu lado a garantia de um salário mínimo, a greve como direito,
proteção no desemprego, defesa contra os despedimentos arbitrários, direitos de parentalidade, pensão quando
se reformar e apoios sociais, caso precise da solidariedade da sua comunidade.
Uma menina que nasça em 2022 não conhecerá limites à sua criatividade, fruirá sem censura da criatividade
dos outros, terá direito a informar-se e a ser informada, a manifestar-se, a usar da palavra, a não usar da palavra,
a ler o que entender e a reunir-se com quem desejar.
Uma menina que nasça em 2022 será livre de professar qualquer fé ou de não professar fé alguma, de
beneficiar da proteção do Estado contra quem a quiser discriminar, caso seja uma pessoa racializada ou uma
pessoa com deficiência.
Uma menina que nasça em 2022 terá nas suas mãos o poder de participar, com o seu voto, na definição dos
destinos do seu País, da sua região autónoma ou da sua autarquia.
Uma menina que nasça em 2022 conhecerá um País em paz.
Não foi por sorte, não foi por obra do acaso, não foi apesar da Revolução que tudo isto aconteceu. Foi graças
ao 25 de Abril que se pôde concretizar o desejo do País de aderir ao projeto democrático europeu e de vencer
o atraso a que esteve condenado, edificando um País solidário, com instituições democráticas robustas e um
Estado social assente na solidariedade como princípio fundamental de verdadeira emancipação.
Aplausos do PS.
Sozinhos e de costas voltadas entre nós, de forma individualista, não teríamos percorrido tantas décadas em
tão poucos anos.
Sozinhos, fechados nas nossas fronteiras, de costas voltadas para a nossa diáspora e para as comunidades
de emigrantes, que connosco partilham o seu destino, não nos teríamos enriquecido da mesma forma.
Sozinhos e de costas voltadas para a Europa ou para quem partilha a nossa língua não teríamos alcançado
o respeito da comunidade internacional e das democracias do mundo.
Sr. Presidente da República, Sr. Presidente da Assembleia da República, Sr.as e Srs. Deputados: Falta
apenas referir a derradeira razão para continuar a comemorar Abril, o futuro.
Como disse Manuel Alegre, há quase 20 anos, desta mesma tribuna, na sessão evocativa dos 30 anos da
Revolução, o 25 de Abril é daqueles raros dias da vida de um povo em que o futuro está em aberto,
indeterminado, sendo essa abertura inicial que faz com que todos os sonhos sejam possíveis.
Orgulhosos que estamos do que realizámos, devemos encarar a função de representação que nos convoca
hoje com a humildade que decorre de sabermos que ainda nos falta trilhar caminho e que, sendo humanos,
muitas das nossas realizações não são perfeitas e não estão completas.
Em dias como o de ontem, na Pátria das liberdades, de ameaças populistas e de recurso à simplificação do
que é complexo para instigar ressentimentos entre os cidadãos, a qualidade das instituições democráticas nunca
foi tão importante, o respeito pelo outro nunca foi tão fundamental, a preservação do Estado social nunca foi tão
decisiva para nos imunizar contra esses riscos.
Muitos dos inconformados com o que ainda falta fazer, desiludidos com os sonhos ainda por realizar ou
descontentes com a qualidade da democracia, não são inimigos de Abril, mas correm o risco de ser manipulados
ou instrumentalizados por aqueles que são e que me escuso de enunciar.
É precisamente assegurando que todos prosperam e que encontram na nossa República, sob a proteção do
seu Estado social, espaço para realizar os seus sonhos que a ainda jovem democracia portuguesa vencerá o
desafio que tem pela frente e evitará que se quebre a adesão popular expressiva que ainda congrega.
A este desafio dentro de portas acresce ainda a cada vez mais urgente necessidade de solidariedade para
com aqueles que, mundo fora, precisam de nós, na defesa conjunta de uma ordem internacional baseada em
regras comuns, onde se abandona a lei do mais forte.
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Não há qualquer espírito de Abril na força bruta para resolver diferendos nem no desrespeitar da soberania
e integridade dos povos vizinhos.
Aplausos do PS.
Sr. Presidente da República, Sr. Presidente da Assembleia da República, Sr.as e Srs. Deputados:
Assinalando-se, este ano, os 200 anos da primeira Constituição Portuguesa e da instituição parlamentar,
convoquemos essa inspiração quanto ao papel que a Assembleia da República pode desempenhar, dando voz
a todos os portugueses, sem exclusões, afirmando-se como garante das liberdades fundamentais, projetando
os valores de Abril e provando a superioridade do modelo democrático e de inclusão, divergindo sem atacar,
discordando sem desrespeitar, criticando sem fulanizar.
As primeiras palavras do nosso atual texto constitucional — que, curiosamente, começa com o 25 de Abril e
termina também com o 25 de Abril de 1976, data de entrada em vigor da Constituição — são precisamente as
que enunciam com clareza a centralidade da data libertadora e devem continuar a federar, sem qualquer
hesitação, todos os democratas e todos os que defendem os direitos e liberdades fundamentais.
A 25 de Abril de 1974, o Movimento das Forças Armadas, coroando a longa resistência do povo português e
interpretando os seus sentimentos profundos, derrubou o regime fascista.
Libertar Portugal da ditadura, da opressão e do colonialismo representou uma transformação revolucionária
e o início de uma viragem histórica da sociedade portuguesa. Empenhemo-nos, pois, em continuar a estar à
altura deste desafio e desta viragem, mantendo sempre abertas as portas que Abril abriu.
Viva Portugal, viva a República, viva o 25 de Abril!
Aplausos do PS, de pé.
O Sr. Presidente da Assembleia da República: — Sr. Presidente da República, Sr. Primeiro-Ministro e
demais Membros do Governo, Srs. Presidentes dos Tribunais Superiores, Autoridades Civis, Militares e
Religiosas, Sr. Núncio Apostólico, em representação do Corpo Diplomático, Ilustres Convidadas e Convidados,
Caras e Caros Concidadãos, Sr.as e Srs. Deputados, Capitães de Abril: A celebração do 48.º Aniversário do 25
de Abril ocorre num contexto europeu e internacional particularmente dramático. A guerra desencadeada pela
Rússia contra a Ucrânia constitui a mais grave ameaça, em décadas, à segurança europeia e à paz mundial. No
seu posicionamento nacional e no quadro das organizações a que pertence, designadamente a União Europeia,
as Nações Unidas e a NATO (North Atlantic Treaty Organization), Portugal tem pugnado pela condenação do
regime agressor e o apoio à nação agredida e pela exigência de que o agressor cesse as hostilidades, de forma
que se possa salvar vidas e reconduzir o diferendo ao plano político-diplomático onde se concerte solução
duradoura. Desejamos o melhor sucesso às diligências que esta semana realiza, para o efeito, o Secretário-
Geral das Nações Unidas.
Aplausos do PS e de Deputados do PSD.
Em tempos tão difíceis, as características essenciais da nossa Pátria, como uma democracia madura, um
país seguro e pacífico e uma sociedade coesa e aberta ao outro, emergem como um valioso património e um
exemplo internacional. Graças à Revolução libertadora do 25 de Abril e ao modo como fomos, desde então,
construindo uma democracia pluralista que a todos procura integrar, sem admitir fraturas de base religiosa,
territorial ou identitária, não tem cessado de crescer o reconhecimento internacional da capacidade portuguesa
de comunicar com todos, de fazer pontes entre realidades distintas e de ser uma nação europeia aberta ao
mundo.
Em tempos de fechamento e ódio, a abertura aos outros de um país como o nosso, onde vivem atualmente
cidadãos de quase todas as nacionalidades, sem que isso constitua qualquer problema, onde qualquer confissão
religiosa é bem-vinda e que se sente tão à vontade a lidar com os seus parceiros europeus como na relação
com África, as Américas e as várias regiões da Ásia, essa abertura é um bem precioso que devemos acarinhar.
Aplausos do PS.
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Muito se deve às instituições e agentes políticos do regime democrático. Mas vai mais fundo, pois tem raízes
na experiência multissecular dos portugueses e, em particular, na vivência da emigração. Como dizia meu
mestre Vitorino Magalhães Godinho, a emigração é, desde o século XV, uma constante estrutural da nossa
história. Mesmo na época do império, as gentes que saíam do território peninsular não paravam nos seus
confins, antes, iam além, e além se estabeleciam, se misturavam, se tornavam, não forâneos, mas «filhos da
terra», tão bem estudados pelo saudoso António Manuel Hespanha.
Na idade contemporânea, o contributo das vagas migratórias para o Brasil, os Estados Unidos, a França, a
Alemanha, e tantos outros destinos, foi determinante para o desenvolvimento económico e a transformação
social das regiões de origem. Continua a sê-lo, hoje, e de várias maneiras: através do consumo e das remessas,
captando e realizando investimento, criando um nicho próprio e valioso para certas exportações nacionais,
servindo de veículo privilegiado para encontros de costumes, tradições, saberes e maneiras de ser.
A capacidade social desta experiência de mobilidade e migração vai formando o que, como sociólogo, tenho
designado como um cosmopolitismo ao rés do chão da vida quotidiana, que abre Portugal ao mundo e tende a
tratar o estrangeiro como comparte da mesma humanidade, igual em direitos e responsabilidades.
Eu sei que, em razão da importância para o País das comunidades residentes no estrangeiro, lhes dedicamos
o 10 de Junho, quando muito apropriadamente celebramos o poeta errante Luís de Camões, o qual dizia ter
deixado «a vida em pedaços pelo mundo repartida». Mas creio que nos falta ainda evocar o elo essencial entre
a democracia e as comunidades, entre as comunidades e a democracia; e não há melhor data para fazê-lo, na
sequência das efemérides, do que o dia 25 de Abril, e muito em particular este 25 de Abril de 2022, em que o
Parlamento acaba de eleger para presidir-lhe um Deputado eleito pelo círculo de fora da Europa.
Aplausos do PS.
É muito o que a democracia deve às comunidades, no reconhecimento internacional de que gozamos como
País pacífico, seguro, humanista e cosmopolita.
Pausa.
Sr. Presidente, Senhoras e Senhores: Como dizia, é muito o que devemos às comunidades, no
reconhecimento internacional de que gozamos como País seguro, humanista e cosmopolita. Cada concidadã
ou concidadão, onde quer que esteja, é um exemplo vivo das qualidades de trabalho, entreajuda, sociabilidade
e civismo que, a justo título, se associam à nossa gente. Sendo mais de 5 milhões e residindo em mais de 180
países, a influência que assim projetam os portugueses e lusodescendentes é verdadeiramente global. As
comunidades que formam são uma demonstração concreta de quão falso é o mito da contradição entre
identidade originária e integração, sobre que repousam variadas estirpes de xenofobia.
De facto, as comunidades portuguesas são um exemplo claro de dupla vinculação harmoniosa: de uma
banda, ligação profunda a Portugal e às respetivas regiões e localidades; da outra, inserção plena nas
sociedades de acolhimento, com respeito escrupuloso pelas suas leis, usos e costumes.
Essas características estão enraizadas na história da emigração. Mas a instauração da democracia política
e o desenvolvimento que ela permitiu vieram conceder-lhes uma nova dimensão. Porque a realidade social e
cultural do País se transformou e mudou consequentemente a imagem que os outros fazem de nós; porque a
descolonização, primeiro, e a integração europeia, depois, alteraram substancialmente a definição dos circuitos
e modalidades de mobilidade internacional em que os portugueses se inscreviam; porque a escolarização
maciça se traduziu também em novas oportunidades de integração laboral e social no exterior; e tudo isto ajudou
a diversificar os perfis da emigração, a composição social dos migrantes, as condições de sucesso de filhos e
netos nas sociedades de acolhimento, a conquista progressiva de posições de alta responsabilidade nas
empresas, academias, instituições públicas e organizações internacionais, assim enriquecendo-nos a nós todos.
Porém, se a mudança social e política associada ao processo de democratização do nosso País, no pós-25
de Abril, influenciou sobremaneira o estatuto e os percursos dos residentes no estrangeiro, também estes foram
decisivos para o sucesso da democracia e do desenvolvimento nacional. Várias das «portas que Abril abriu»
foram abertas pelos migrantes. Basta atentar na forma como, entre 1974 e 1976, 1 milhão de portugueses
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retornados de África — em condições tão difíceis e traumáticas — e da Europa se integrou plenamente na
sociedade portuguesa e aí recuperou a economia local, sem nenhuma fratura.
Esses emigrantes retornados são um dos alicerces do regime saído do 25 de Abril, e afirmemo-lo, alto e bom
som, no dia da celebração.
Aplausos do PS.
Excelências: O laço entre comunidades e democracia não seria, contudo, o que é sem a viragem que a
Revolução dos Cravos operou na política pública para os portugueses vivendo no estrangeiro. A viragem
começou logo, em 1975, com a criação da Secretaria de Estado da Emigração, posta ainda no Ministério do
Trabalho, prosseguiu, cinco anos transatos, com a criação da Secretaria de Estado das Comunidades e, de
seguida, diferentes Governos foram aperfeiçoando as medidas até erguerem uma verdadeira política para a
diáspora.
Ora, só há uma palavra para nomear o fundamento desta política, a palavra democrática por excelência:
cidadania. A consagração, pela Constituição de 1976, da igualdade de direitos dos compatriotas residentes no
exterior, e as respetivas consequências — a institucionalização do ensino de Português no estrangeiro, o apoio
ao associativismo, o nascimento do Conselho das Comunidades Portuguesas, a extensão da nacionalidade
originária aos lusodescendentes —, é uma trave-mestra do nosso regime democrático, e, insisto, não devemos
ter pejo em dizê-lo.
A expressão mais alta é a participação cívica e eleitoral. A criação dos círculos de emigração para a
Assembleia da República e o alargamento do direito de voto às eleições presidenciais e europeias foram passos
fundamentais para que a nossa democracia fosse de todos nós. A última barreira foi quebrada em 2018, quando
neste Parlamento, por unanimidade, o recenseamento automático foi expandido aos portadores de cartão de
cidadão com morada no estrangeiro, fazendo de um 1 e 600 mil deles eleitores de pleno direito. O efeito não
demorou: o número dos que votaram, nos chamados círculos da emigração, nas eleições de 30 de janeiro foi
seis vezes superior ao que se registara em 2015. E vai continuar a aumentar, assim nos aproximando da
ambição de qualquer democracia, que é tratar por igual todas as pessoas como cidadãos, quer dizer, sujeitos
do seu destino.
O que até agora carreei já seria razão bastante para louvar as comunidades residentes no estrangeiro. Mas
permiti, Sr.as e Srs. Deputados, que vá mais longe, para justificar trazê-las a terreiro no dia em que, precisamente,
valorizo a imagem de Portugal no mundo, como fazedor e atravessador de pontes.
Nos últimos anos, primeiro digamos que a medo, por via de casos isolados, depois gradualmente numa
corrente, os lusodescendentes vão alcançando funções de responsabilidade nos municípios, regiões e Estados
de que são habitantes: vão ocupando postos dirigentes nas administrações públicas, nos sistemas de justiça,
na organização de escolas e universidades; vão-se tornando vereadores, presidentes de câmaras municipais,
membros de assembleias estaduais, Deputados a parlamentos e congressos nacionais, membros de Governos.
O número daqueles a que chamamos, e bem, luso-eleitos é já hoje da ordem das centenas, e as redes que vão
formando, juntamente com as de estudantes e profissionais pós-graduados, de câmaras de comércio, de
conselheiros das comunidades, constituem um capital preciosíssimo de que o País dispõe, para alavancar e
projetar a sua influência no mundo — essa influência cuja natureza benfazeja eles, agindo, demonstram
quotidianamente.
A democracia que agora celebramos alimenta-se também desta seiva: a participação cívica e política dos
portugueses residentes no estrangeiro nos assuntos públicos quer da sua Pátria portuguesa, quer da pátria de
acolhimento.
Falo de todos eles. Dos ilustres emigrantes que hoje nos dignificam à frente das Nações Unidas e outras
organizações internacionais, no mundo económico e profissional, nas artes, na Igreja, no desporto, no
voluntariado. E falo, sobretudo, daqueles em cujos ombros estes repousam — são os milhões de homens e
mulheres comuns que partiram, em busca de uma vida um pouco menos difícil, e de que tão bem falam os
romances de Camilo, Ferreira de Castro, Olga Gonçalves, Dulce Maria Cardoso, ou o cinema de Miguel Gomes
e Ruben Alves.
Ao contrário da ditadura, a democracia não esconde os problemas. As tarefas que hoje temos são várias:
como estancar a sangria de muitos dos nossos jovens mais qualificados, como apoiar o seu regresso a Portugal,
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como servir melhor as comunidades no estrangeiro. Mas compreender que estas comunidades são parte
indispensável da nação que formamos, um recurso essencial para a nossa influência no mundo e um exemplo
vivo de que identidade e integração, multiculturalidade e coesão são polos que se complementem e não opostos
que se digladiem, compreendê-lo é a melhor maneira de enfrentar os problemas: os problemas dos portugueses,
de novo às voltas com as consequências económicas da guerra, e os problemas do mundo, carente de mais
pessoas como nós, amigas da paz.
Foi o 25 de Abril que investiu os portugueses residentes no estrangeiro como cidadãos portugueses de corpo
inteiro. Merecem, pois, ser finalmente tema principal do discurso de um presidente do Parlamento, na sessão
solene comemorativa da nossa libertação.
Aplausos do PS.
A revolução que encheu de cravos os canos das espingardas fez dos portugueses residentes no estrangeiro
e dos seus descendentes membros plenos da comunidade cívica que é a nossa Pátria. E, assim, Portugal
alargou horizontes e fortaleceu-se no seu papel mais frutífero no concerto das nações: como berço e casa de
gente a seu modo cosmopolita, pacífica, humanista, solidária, aberta aos outros, calcorreando pelo mundo e em
todo o lado derrubando muros e erguendo pontes.
Também por isso, Capitães de Abril, por terdes iniciado o movimento que permitiu a Portugal construir uma
democracia onde cabem todos os portugueses, independentemente do lugar onde nasçam ou residam, Capitães
de Abril, muito obrigado! Do fundo do coração, muito, muito obrigado!
Aplausos do PS, do PCP, do BE, do L e de Deputados do PSD, de pé, e do PSD, do PAN e do Deputado do
IL Rodrigo Saraiva.
O Sr. Presidente da República vai agora dirigir uma mensagem ao Parlamento.
Faça favor, Sr. Presidente da República.
O Sr. Presidente da República (Marcelo Rebelo de Sousa): — Sr. Presidente da Assembleia da República,
Sr. Primeiro-Ministro, Sr.ª e Srs. Presidentes dos Tribunais Supremos, Sr. Presidente António Ramalho Eanes,
Srs. Presidentes João Bosco Mota Amaral e Eduardo Ferro Rodrigues, Sr. Núncio Apostólico, em representação
do Corpo Diplomático, Srs. Membros do Governo, Digníssimos Convidados, em particular representantes e
Capitães de Abril, Sr.as e Srs. Deputados, Portugueses: Saúdo com elevada consideração pessoal e
solidariedade institucional V. Ex.ª, Sr. Presidente, e, na pessoa de V. Ex.ª, as Sr.as Deputadas e os Srs.
Deputados, na primeira vez em que uso da palavra perante a Assembleia da República depois da eleição de
janeiro último.
Formulo calorosos votos dos maiores sucessos, a bem de Portugal, que o mesmo é dizer de todos os
portugueses.
E permitam-me que aqui evoque, também, com muita saudade, quem nos acompanhou 25 de Abril após 25
de Abril com a constante militância cívica que pautou a sua vida por Portugal, o Presidente Jorge Sampaio.
Aplausos do PS, do PSD, do PCP, do BE, do PAN e do L.
Sr.as e Srs. Deputados, Portugueses: Há um ano falei-vos do Portugal na sua caminhada do império até ao
25 de Abril, à descolonização e à democracia. E nunca é demais evocar e agradecer o gesto refundador dos
Capitães de Abril. Pense-se o que se pensar sobre o que foram antes e depois desse gesto, ele foi único,
singular e decisivo. Sem ele não haveria hoje uma Assembleia da República livre, com vozes livres. Não há
como esquecê-lo na escrita ou na reescrita da História.
Hoje, falo do que vem de muito antes de Abril, vem do começo de Portugal. Mesmo se só têm 700 anos no
mar, 400 anos dos quais como corpo permanente e organizado, muitos séculos em terra e um século no ar, são
as nossas Forças Armadas garantes da independência, da soberania, da integridade e da unidade da nossa
Pátria. E, nestes tempos em que a guerra na Europa reentra nas nossas casas, toca as nossas vidas, muda o
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nosso dia a dia, falar em Forças Armadas é falar daquilo que, sendo passado, é muito presente e, mais ainda,
futuro.
Esta guerra não é a única, neste instante, no mundo, mas é talvez a mais global de todas. Esta guerra não
foi a única que conhecemos na Europa, já depois de abril de 1974, mas pode vir a ser a mais brutal em refugiados
forçados a terem de cortar as suas raízes e, também, a mais universal nos seus efeitos em quase meio século.
Mas não é da guerra que vos quero falar hoje.
Hoje, o que importa é falar das nossas Forças Armadas no Portugal que Abril permitiu que fosse democrático,
das Forças Armadas em democracia.
Há uma semana, agradeci aos nossos militares que partiam para a Roménia — e eram 200 — o seu serviço
à Pátria. Iam em missão de paz, não em missão de guerra; para defender a paz, não para fazer a guerra; para
prevenir contra mais guerra e contribuir para criar mais paz. Paz para a Europa, e, desde logo, para aquela
Europa em conflito e as vítimas diretas imediatas e mais trágicas da guerra, paz para a Pátria, a nossa Pátria,
do mesmo modo. Paz e segurança. Aquela paz e segurança que são a missão primeira das Forças Armadas.
Pela Pátria! E o que é a Pátria que elas existem para servir? É um Estado independente há quase 900 anos? É,
mas é mais do que isso.
É uma comunidade de vida, de cultura, de língua, de identidades forjadas na diversidade, a que muitos
chamam Nação, mesmo se o nosso Estado é, há muito, plurinacional? É, mas é mais do que isso.
É uma História, feita de glórias e fracassos, e mais glórias do que fracassos, senão, porventura, aqui não
estaríamos agora? É, mas é mais do que isso.
É uma ideia, um projeto, um desígnio que nos une para além daquilo que nos separa, como o sermos
universais, espalhados pelos mundos e servindo como plataformas de encontro entre eles? É, mas é mais do
que isso. É tudo o que disse, mas mais, muito mais.
Uma Pátria são pessoas de carne e osso, todas somadas e cada uma delas per se, vivam cá dentro das
fronteiras físicas, vivam fora delas, no território espiritual, que é onde estiver cada um de nós.
Portugal são os portugueses, mais os que se acolheram ou por eles foram acolhidos, e cada qual diferente,
diverso, irrepetível.
Servir a Pátria, como existem para servir as Forças Armadas, é servir esses portugueses — cá dentro e lá
fora — mais aqueles que se integram na nossa família comum.
Servir a Pátria desde sempre. Foi traçar o nosso território continental e partir para as ilhas. E atravessar
oceanos e contactar continentes. E quase perder, ou perder mesmo, a independência. E reconquistá-la, tempo
após tempo, geração após geração. E perder batalhas. E guerras. Mas ganhar umas e outras. Nas armas, na
diplomacia, na economia, no tecido social, mas também na língua, na cultura, nas pessoas. Sim, porque as
batalhas, como as guerras, se perdem e ganham nas pessoas, com elas e para elas.
Servir a Pátria, neste tempo, por exemplo, é ir para a Roménia, como estar na Lituânia, na República Centro-
Africana, no Mali, no Mediterrâneo, no Golfo da Guiné, em Moçambique. É nessas paragens, como noutras,
servir a paz e a segurança de todos nós.
Mas como? Como é que na Roménia, ou nos céus da Europa Báltica, ou noutras Europas, Áfricas, Américas,
ou Ásias, se luta pela paz e a segurança?
Luta-se, porque as nossas fronteiras já não são as que foram. Porque no Báltico, como no Leste europeu, as
fronteiras da União Europeia são as nossas fronteiras. Tal como noutros continentes, as fronteiras da CPLP
(Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) são as nossas fronteiras. Tal como, nalguns deles, as fronteiras
da NATO, ou do mundo ibero-americano, são as nossas fronteiras. Tal como, cada vez mais por esse mundo
fora — que são as Nações Unidas —, as fronteiras da paz, da segurança, da liberdade, da igualdade, da luta
contra a miséria e a pobreza e pela ação climática são as nossas fronteiras.
Se a paz não existir, a insegurança atingirá também as nossas vidas, a começar na dos compatriotas
espalhados pelo universo, a nossa economia, os preços da nossa energia, dos nossos alimentos, dos nossos
bens básicos, e tantos dos nossos projetos de vida.
A paz e a segurança não são, pois, apenas — e já seria muitíssimo, mesmo o mais pungente — a vida e a
morte de quem está a dois ou três dias de viagem das nossas casas. Não. É o nosso viver de todos os dias.
São as Forças Armadas, não os únicos, mas dos principais garantes dessa paz. Mais visivelmente ainda em
tempo de guerra. Mesmo se não entram nessa guerra, previnem, ajudam a construir e preservam, mesmo ali ao
lado, a paz possível e desejável.
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Mas fazem mais, muito mais, cá dentro: desinfetam lares e escolas, organizam vacinação nacional em
pandemia, apoiam em incêndios florestais, cheias, catástrofes naturais. Não são os únicos, mas são sempre
dos fundamentais. E ainda dão, e querem dar mais, formação profissional para reinserção no emprego e na
sociedade.
Sr.as e Srs. Deputados, Portugueses: Por que razão, neste 25 de Abril, falo das nossas Forças Armadas, na
democracia que temos de recriar, jornada após jornada? Porque sem as Forças Armadas, e Forças Armadas
fortes, unidas e motivadas, a nossa paz, a nossa segurança, a nossa liberdade, a nossa democracia — sonhos
do 25 de Abril — ficarão mais fracas.
Porque reconhecer como são importantes as Forças Armadas, na nossa vida como Pátria, exige mais do que
recordarmos, por palavras, essa sua importância.
Porque, se queremos Forças Armadas fortes, unidas, motivadas, temos de querer que tenham condições
para serem ainda mais fortes, unidas e motivadas.
Porque, se não quisermos criar essas condições, não nos poderemos queixar de que, um dia, descubramos
que estamos a exigir às nossas Forças Armadas missões difíceis de cumprir por falta de recursos.
Porque se o não fizermos a tempo, outros o exigirão por nós, e, depois, não nos queixemos de frustrações,
desilusões, contestações ou afastamentos.
Porque pode ser tão simples mobilizar com pequenos grandes gestos. Estimular a que quem é indispensável
para servir nessas missões fundamentais o possa fazer com horizontes de esperança.
Juntar, ao reconhecimento pelas qualidades excecionais que, cá dentro e lá fora, é unânime quanto às
nossas Forças Armadas, mais meios imprescindíveis para poderem sê-lo também mais e melhor.
E fazer isto não é ser-se de direita ou de esquerda, conservador ou progressista, moderado ou radical, é ser-
se pura e simplesmente patriota, em liberdade e democracia.
E fazer isto não é só tarefa de um Presidente, de um Parlamento, de um Governo, requer um consenso
nacional continuado e efetivo acerca das Forças Armadas como pilar crucial da nossa vida coletiva.
Não podemos aplaudir ou clamar mesmo por maior envolvimento em ações externas, ou querê-las ainda
mais presentes nos apoios internos, nomeadamente em situações extremas, e pensarmos que longe vão as
guerras, que há muito mais onde gastar dinheiro, que nós podemos dispensar de nelas investir em benefício de
todos nós.
Nós sabemos que, mesmo quando lhes faltam esses meios, são das melhores das melhores. Mas não nos
habituemos ao simplismo de converter milagres em quotidiano modo de vida. Ajudemos a esses milagres,
sobretudo quando eles respeitam à paz e à segurança de todos nós.
Neste tempo, em que a guerra surge como mais real ainda, em que a pandemia impôs necessidades mais
evidentes; neste dia, em que celebramos democracia e liberdade e em que percebemos como a paz e a
segurança tocam as nossas vidas, não é demais pensar, como Pátria que somos, nas Forças Armadas que
temos, nas que queremos ter e nas que precisamos de ter. Como desafio de todos, dos poderes públicos, da
sociedade, de cada portuguesa, de cada português. Porque se os portugueses não perceberem, não aderirem
e não apoiarem, não há poder público, mesmo o mais corajoso ou voluntarista, que vingue sem a vontade
popular.
É urgente essa vontade popular, constante e firme. Para que a liberdade e a democracia, para as quais o 25
de Abril abriu pistas fundamentais que prosseguimos até hoje, vivam sempre. Para que esse sonho do 25 de
Abril viva sempre. Mas, sobretudo, para que Portugal viva sempre.
Vivam a liberdade e a democracia!
Viva o 25 de Abril!
Viva, não menos do que isso, Portugal!
Aplausos do PS, do PSD, do PAN e do L, de pé, do CH, do IL, do PCP e do BE.
O Sr. Presidente da Assembleia da República: — Está encerrada a Sessão Solene Comemorativa do
XLVIII Aniversário do 25 de Abril de 1974.
Eram 11 horas e 46 minutos.
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A Banda da Guarda Nacional Republicana executou, de novo, o hino nacional, que foi cantado e aplaudido,
de pé, pelos presentes.
Presenças e faltas dos Deputados à reunião plenária.
A DIVISÃO DE REDAÇÃO.