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I SÉRIE — NÚMERO 140

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Parecendo a destempo para falar de Abril, quando já decorrem, de facto, se desenham e se prolongarão

oficialmente as suas justas e esperamos que dignas comemorações, Miguel Torga, no Diário XIII, possivelmente

depois de ter lido o ensaio de Camus sobre o mito de Sísifo, escreveu: «Recomeça… / Se puderes / Sem

angústia / E sem pressa. / E os passos que deres, / Nesse caminho duro / Do futuro / Dá-os em liberdade. /

Enquanto não alcances / Não descanses. […]» E assim será.

Há quase 50 anos, o facto histórico fundamental e incontornável foi o da afirmação da liberdade como valor

supremo da nova República, a par da conquista e consagração dos direitos civis, da democracia e do pluralismo

políticos.

Devemos essa manhã libertadora aos capitães de Abril, assim como às mulheres e homens que durante

décadas lutaram, às claras ou na clandestinidade forçada — foram censurados, presos, torturados e tantos

morreram em defesa dos seus e dos nossos ideais. Tantos! Devemos e temos-lhes feito um permanente e

sentido agradecimento, a todos e a cada um: foram, são e serão os nossos heróis.

Mas, se bem se lembram, o Programa do Movimento das Forças Armadas enunciava os seus referenciais,

os seus princípios, os seus objetivos: democratizar, descolonizar, desenvolver.

Chegados aqui, como cidadão, recuso o caráter de uma mera evocação histórica, retórica e ritual do passado,

não podendo deixar de me interrogar e de vos interpelar sobre ele mesmo, mas também sobre o nosso presente

e o futuro.

Pensar criticamente é condição para o exercício da liberdade de agir. Pensar e agir com a determinação dos

homens verdadeiramente livres é o que separa de todos os que desejam lutar contra a apatia e o seguidismo

que nos convoca e empurra para a vala comum do politicamente correto.

Faltará cumprir Abril, 50 anos depois, se não nos reconciliarmos connosco mesmos, com as nossas

memórias, com a nossa história e com os que a fizeram, anonimamente.

Falar de democracia hoje é falar da necessidade de uma reforma profunda da organização política, incluindo

do sistema eleitoral. É necessária uma maior clareza na definição do funcionamento autónomo dos diferentes

poderes do Estado e, por outro lado, dos contrapoderes que garantam a democraticidade no funcionamento da

sociedade.

Como bem sublinhou Ernesto Melo Antunes, na passagem dos ainda jovens 20 anos de Abril, «a um certo

nível de representação simbólica, eu diria da necessidade de reafirmar Montesquieu, de revisitar Tocqueville,

de rememorar Kant e a existência ética de pensar a política, sem esquecer as contribuições que refletem as

inquietações da modernidade».

Ora, feita também a descolonização, estamos finalmente em paz com o mundo, na CPLP (Comunidade dos

Países de Língua Portuguesa), e somos orgulhosamente irmãos miscigenados de uma família multirracial,

detentora de uma língua comum, que passou pelo génio de Camões, mas também por Fernando Pessoa e

Agustina Bessa-Luís, Machado de Assis e João Ubaldo Ribeiro, Luandino Vieira e Pepetela, Craveirinha e

Paulina Chiziane, Germano Almeida e tantos mais.

Mas a colonização e a descolonização mantêm ainda feridas abertas, que temos a obrigação de saber sarar,

mesmo que tantos anos depois, mas com frontalidade, sem ambiguidades e coragem, se preciso for.

Porque devemos ainda uma palavra, mesmo que de desculpas tardias, aos portugueses que tiveram de fugir,

assustados, à pressa e com a roupa que tinham no corpo, todos despidos do seu passado e muitos da sua

esperança no futuro. Porque está a morrer a melhor das gerações, aquela que sem estudos educou os seus

filhos, aqueles que sem recursos se reinventaram e ajudaram também a reconstruir este País, os que mais

sofreram, os que mais trabalharam. Estão a morrer os que passaram tantas necessidades e que se vão embora

sem dizer adeus, sem lhes dizermos publicamente e reconhecidamente do nosso respeito, da nossa admiração

e da nossa profunda gratidão.

A definição da identidade é recorrente em Portugal. O que é ser português? Porque esta é, afinal, a questão

que se coloca a africanos, portugueses de antanho — e que, no seu entender, nunca por nunca deixaram de o

ser, quer se queira quer não — que juraram servir e serviram Portugal.

Muitos, como poucos, não merecem continuar esquecidos e abandonados, como foram e são, na lonjura de

onde quer que ainda se encontrem.

Governo e oposição sabem desentender-se frequentemente, barricando-se tantas vezes nas suas reservas

ideológicas, mas também sabem entender-se quando é caso disso, e como já aconteceu em diferentes

momentos e de diversas formas, pelo supremo interesse de Portugal e dos portugueses.

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