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Quinta-feira, 20 de Fevereiro de 1997
II Série-A — Número 22
DIÁRIO
da Assembleia da República
VII LEGISLATURA
2.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1996-1997)
SUMÁRIO
Resoluções:
Participação de Portugal na moeda única....................... 318
Situação dos explosivos em Portugal.............................. 318
Projectos de lei (n.05 164/VH, 172/VII, 177M1, 235/VII, 236WII, 277/VII c 278/V1I):
N.° 164/VII (Altera a Lei n.° 70/93, de 29 de Setembro, sobre o direito de asilo):
Relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias...... 318
N.° 172/VII (Publicidade da qualidade da água de abastecimento):
Relatório e parecer da Comissão de Administração do Território. Poder Local, Equipamento Social e Ambiente 325
N.° 177/VII — (Interrupção voluntária da gravidez):
Relatório e parecer da Comissão de Juventude......... 325
N." 235/VII — (Altera os prazos de exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez):
Idem......................................•......................................... 325
N.° 236/VII — (Interrupção voluntária da gravidez):
Idem............................................................................... 325
N.° 277/VII — Alteração dos limites da freguesia de Santa Luzia, no concelho de Tavira (apresentado pelo Deputado do PSD Macário Correia)........................................... 335
N.° 278/VII —Cria o Sistema de Informação para a Transparência dos Actos da Administração Pública (SITAAP)
e reforça os mecanismos da transparência previstos na
Lei n.° 26/94, de 19 de Agosto (apresentado pelo PS) 336
Propostas de lei (n." 70/V11 e 71ATI):
N.° 70/V1I—Estende as cooperativas de solidariedade social os direitos, deveres e benefícios das instituições
particulares de solidariedade social .............................. 337
N.° 71/VU — Aprova o regime disciplinar das federações desportivas......................................................................... 338
Propostas de resolução (n.™ 31/VTJ, 33/VH, 34/VII e 36/ VH):
N.° 31/VII (Aprova, para ratificação, a Convenção, estabelecida com base no artigo K.3 do Tratado da União Europeia, Relativa ao Processo Simplificado de Extradição entre os Estados Membros da União Europeia, assinada em Bruxelas em 10 de Maio de 1995):
Relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias................ 340
Relatório e parecer da Comissão de Negócios Estrangeiros, Comunidades Portuguesas e Cooperação........ 342
Relatório e parecer da Comissão de Assuntos Europeus............................................................................... 343
N.° 33/VII (Aprova, para ratificação, a Convenção sobre a Adesão da República da Áustria, da República da Finlândia e do Reino da Suécia à Convenção Relativa à Eliminação da Dupla Tributação em Caso de Correcção de Lucros entre Empresas Associadas e respectiva acta de assinatura, com as suas declarações):
Relatório e parecer da Comissão de Negócios Estrangeiros, Comunidades Portuguesas e Cooperação......... 343
N.° 34/V11 (Aprova, para ratificação, o Protocolo de Adesão do Governo da República da Áustria ao Acordo entre os Governos da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa Relativo à Supressão Gradual dos Controlos nas Fronteiras Comuns, assinado em Schengen a 14 de Junho de 1985):
Relatório e parecer da Comissão de Negócios Estrangeiros, Comunidades Portuguesas e Cooperação........ 344
N.° 367VII (Aprova, para ratificação, o Protocolo de Adesão da República da Áustria à Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen, de 14 de Junho de 1985, entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha c da República Francesa, Relativo à Supressão Gradual dos i Controlos nas Fronteiras Comuns, assinado em Schengen em 19 de Junho de 1990):
Idem
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RESOLUÇÃO
PARTICIPAÇÃO DE PORTUGAL NA MOEDA ÚNICA
A Assembleia da República resolve, nos termos do artigo 169.°, n.° 5, da Constituição, o seguinte:
1 — Reafirmar o profundo empenhamento e determinação na participação de Portugal, desde 1 de Janeiro de 1999, na terceira fase da União Económica e Monetária.
2 — Sublinhar que, face às normas do direito internacional e comunitário, tal participação deve decorrer, exclusivamente, da verificação dos pressupostos constantes do artigo 109.°-.! do Tratado de Maastricht e dos protocolos anexos n.os 5 e 6.
3 —' Manifestar preocupação e discordância pôr declarações públicas de responsáveis políticos de países da União Europeia, que objectivamente põem em causa o espírito e a letra do Tratado de Maastricht.
4 — Apoiar todas as diligências que o Governo tem desenvolvido, e venha a desenvolver, quer junto das instituições da União Europeia, quer junto dos Governos dos Estados membros, no sentido de assegurar a completa realização deste prioritário desígnio nacional.
5 — Recomendar que o Governo reforce os contactos com todos os Deputados portugueses ao Parlamento Europeu, designadamente em termos de informação acerca da evolução do processo de adesão de Portugal à moeda única.
6 — Mandatar o Governo para transmitir a todos os Estados membros da União Europeia o teor da presente resolução, sublinhando o empenho dos representantes do povo português na realização dos ideais europeus.
Aprovada em 13 de Fevereiro de. 1997.
O Presidente da Assembleia da República, António de Almeida Santos.
RESOLUÇÃO
SITUAÇÃO DOS EXPLOSIVOS EM PORTUGAL
A Assembleia da República resolve, nos termos do artigo 169.°, n.° 5, da Constituição, o seguinte:
1 — Recomendar ao Ministro da Administração Interna que ordene a realização urgente de uma acção extraordinária de fiscalização, a levar a cabo pela Polícia de Segurança Pública, sem prejuízo da necessária articulação com outras forças de segurança, destinada a apurar o cumprimento da regulamentação de explosivos, nomeadamente por parte dos estabelecimentos de fabrico e armazenagem, comerciantes, transportadores ou simples detentores dessas substâncias perigosas, e a inventariar a situação existente em Portugal no domínio dos explosivos e substâncias perigosas.
2 — Recomendar ao Governo a apresentação, na Assembleia da República, de um relatório sobre a situação dos explosivos em Portugal, acompanhado das iniciativas legislativas que eventualmente entenda dever apresentar na sequência da acção de fiscalização referida no número anterior.
Aprovada em 13 de Fevereiro de 1997.
O Presidente da Assembleia da República, António de Almeida Santos.
PROJECTO DE LEI N.º 164/VII
(ALTERA A LEI N.a 70/93, DE 29 DE SETEMBRO, SOBRE 0 DIREITO DE ASILO)
Relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias
Relatório I — Introdução
O projecto de lei vertente tem por escopo a alteração do actual quadro legal enformador do direito de asilo, ou seja, a Lei n.° 70/93, de 29 de Setembro.
Entende o PCP que se justifica uma alteração de fundo ao texto vigente, porquanto o mesmo patenteia no seu seio normas de duvidosa constitucionalidade e «fere princípios básicos de solidariedade entre povos».
Os mecanismos legais que foram recentemente adaptados são, na concepção dos subscritores desta iniciativa, uma autêntica denegação prática da apreciação de pedidos de asilo, quando não de pura e simples inviabilização da apresentação dos pedidos, acarretando uma inevitável restrição dos direitos e garantias fundamentais dos requerentes.
A necessidade de alteração do quadro legal vigente é exigida também por parte de organismos vocacionados para a protecção jurídica dos refugiados, de entre os quais surgem destacados o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e o Conselho Português para os Refugiados (CPR).
Considera, pois, o Grupo Parlamentar do Partido Comunista que se «afigura urgente proceder a uma revisão profunda da lei sobre direito de asilo, que expurgue as in-constitucionalidades de que ta! legislação presentemente padece e que adopte um quadro de garantias mínimas dos requerentes de asilo».
II — Da Constituição da República Portuguesa
Dispõe o artigo 33.°, n.° 6, da Constituição que «é garantido o direito de asilo aos estrangeiros e aos apátridas perseguidos ou gravemente ameaçados de perseguição, em consequência da sua actividade em favor da democracia, da libertação social e nacional, da, paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana».
No entendimento de J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, o direito de asilo genericamente considerado assume três dimensões: uma dimensão internacional, enquanto direito dos Estados a acolher e dar refúgio a quem seja perseguido ou ameaçado de perseguição por outro Estado; uma dimensão pessoal, enquanto direito subjectivo do perseguido a obter refúgio e asilo noutro Estado e a não ser remetido para o país donde provém, e uma dimensão constitucional objectiva, enquanto meio de protecção dos valores constitucionais da «democracia, da liberdade sócia] e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana».
É ainda bastante relevante a anotação a este artigo, onde se refere que a Constituição só garante o direito fundamental de asilo quando a perseguição seja motivada peja Juta por esses valores. Obviamente que a lei não está impedida de ampliar a concessão de asilo a outros casos; o que não pode é deixar de garantir particularmente os casos constitucionalmente garantidos, não podendo, então, o asilo ser recusado, verificadas as respectivas condições».
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III — Dos antecedentes e do quadro legal
Em Portugal só em 1980 é que o direito de asilo foi plasmado em lei ordinaria (mais especificamente a Lei n.° 38/80, de 1 de Agosto). Até então o enquadramento deste direito era conferido de forma generosa e consentânea com a Convenção de Genebra de 1951 no nosso texto constitucional (artigo 33.°, n.os 6 e 7).
Com vista a dar cumprimento a este normativo constitucional, foram sendo elaborados projectos inspirados em iniciativas legislativas anteriores à própria Constituição, designadamente no VI Governo Provisório.
O D Governo Constitucional obteve ainda da Assembleia da República autorização para legislar nesta matéria, não o tendo feito, porém, em virtude da sua queda.
O IV Governo Constitucional também apresentou à Assembleia uma proposta de lei de idêntico teor.
Foi, porém, no governo da Aliança Democrática, em 1980, que veio a ser apresentada a proposta de lei n.° 311/1, sobre o direito de asilo e estatuto de refugiado (Diário da Assembleia da República, 2° série, I Legislatura, 4.° sessão legislativa, n.° 25, de 23 de Fevereiro de 1980).
Foi no seio da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias que veio a ser criada uma subcomissão que elaborou, na sequência de discussão na especialidade, o texto que viria a constituir a Lei n.° 38/80, de 1 de Agosto, que regulou durante 13 anos o direito de asilo e o estatuto do refugiado.
A Lei n.° 38/80, de 1 de Agosto, foi tida como uma lei de espírito e letra generosa, onde se consagrava o asilo por motivos políticos (artigo 1.°), bem como o asilo por razões humanitárias, ou seja, aos estrangeiros e aos apátridas a quem não sejam aplicáveis as disposições do artigo 1.° e que sejam impedidos ou se sintam impossibilitados de regressar ao Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual por motivos de insegurança devido a conflitos armados ou da sistemática violação dos direitos humanos que ali se verifiquem deveria ser concedido o asilo (artigo 2.°).
Os efeitos do asilo eram extensivos aos cônjuges, filhos menores ou incapazes do peticionário, podendo ainda ser extensivos a outros membros do agregado familiar. ,
A competência para decidir do direito de asilo era partilhada entre o Ministério da Administração Interna e o Ministério da Justiça. A entidade responsável pela análise do pedido de asilo era a Comissão Consultiva para os Refugiados (CCR). Tratava-se de um órgão colegial interministerial, composto por sete membros representando os seguintes ministérios: um representante do Ministério da Justiça (que presidia à Comissão, em alternância com o representante do Ministério da Administração Interna); um representante do Ministério da Administração Interna; um representante do Ministério da Saúde; um representante do Ministério dos Negócios Estrangeiros; um representante do Ministério da Defesa Nacional um representante do Ministério do Trabalho, e um representante do Ministério da Segurança Social.
A CCR reunia-se quinzenalmente, estando sempre presente nessas reuniões um representante do ACNUR, que tinha direito a emitir a sua opinião sobre os processos, mas sem direito de voto.
Em termos de prazos, estava previsto que o processo entre a apresentação do pedido e o despacho ministerial conjunto tinha a duração máxima de 120 dias, podendo o pedido ser apresentado por escrito no prazo de 30 dias.
A Lei. n." 38/80, de 1 de Agosto, começou a revelar que necessitava de alguns aperfeiçoamentos no seu articulado,
tendo sido objecto de alterações que vieram a ser introduzidas pelo Decreto-Lei n.° 415/83, de 24 de Novembro, que foi aprovado ao abrigo da Lei n.° 9/83, de 12 de Agosto, de autorização legislativa.
Este decreto-lei veio introduzir a noção de recusa liminar de asilo (artigo 15.°-A —decisão ministerial em oito dias), bem como o mecanismo de reinstalação de refugiados (artigo 15.°-B). Por uma questão de segurança do próprio refugiado, determinou-se que a concessão de asilo deixaria de ser publicada no Diário da República.
Clarificaram-se também òs prazos para a interposição de asilo.
Com a adesão de Portugal à CEE, mais concretamente a implementação do mercado interno e a sua inerente liberdade de circulação, os países membros começaram a adoptar medidas algo restritivas no tocante ao acesso ao seu território por parte de Estados terceiros: a imposição de vistos, as sanções e responsabilização das transportadoras nas zonas internacionais e o ênfase colocado na documentação de viagem são disso um exemplo vivo.
É nesse novo contexto europeu e. internacional que surge a Lei n.° 70/93, de 29 de Setembro, envolta em polémica.
Gerada em férias da Assembleia da República, sob os auspícios de uma autorização legislativa que por veto político do Presidente da República se converteu em proposta de lei (proposta de lei n.? 62/VI — autorização legislativa, proposta de lei n.° 73/VI), o diploma foi concebido em termos que suscitaram várias dificuldades de aplicação prática, testemunhadas pelos principais interessados, pelos organizações não governamentais e pelo próprio Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (v. conclusões do grupo de trabalho do I do Congresso Internacional do CPR, realizado em Dezembro de 1994, sob a égide «Refugiados, Fortaleza Europeia: Exclusão ou Direito e Solidariedade?»).
IV — Do enquadramento internacional Esboço histórico
A palavra «asilo» tem a sua origem etimológica na Grécia e compõe-se da partícula «a» e do verbo sylao, que significa capturar, violentar, devastar. Textualmente asilo significa «sem captura, sem violência, sem devastação».
Na antiguidade existiam zonas de asilo consideradas sagradas, onde o território era inviolável e onde a perseguição era interdita.
Podemos identificar, assim, nas origens históricas do asilo a tradição grega, a tradição hebraica e a tradição cristã.
Esta última é a que parece avançar mais no asilo. Assistir o estrangeiro surge como uma condição para a salvação (v. cena célebre do último julgamento — Mateus, 25, pp. 31^6).
Só com o cristianismo, contudo, o asilo adquire carácter universal. Naturalmente que, com a evolução do direito e da organização político-social, o asilo passou a conceito político-jurídico e humanitário, laicizando-se.
A Convenção de Genebra de 1951 e o Protocolo Adicional de Nova Iorque de 1967
Em 1945, a Conferência de São Francisco, a mesma que redigiu a Carta das Nações Unidas, examinou a possibilidade de criar uma nova organização internacional para os refugiados. Em Fevereiro de 1946, a Assembleia Geral das Nações Unidas solicitou ao Conselho Económico e Social o estudo da questão.
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O Conselho recomendou que a UNRRA e o Comité Intergovernamental fossem substituídos por uma instituição especializada, não permanente, das Nações Unidas responsável por todas as actividades relativas aos refugiados. Foi assim que surgiu, em Dezembro de 1946, a Organização Internacional para os Refugiados (OIR).
É somente em 14 de Dezembro de 1950 que a Assembleia Geral adopta pela resolução n.° 428 (V) o estatuto do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), organismo que entraria em funções em Janeiro de 1951. Este estatuto previa a elaboração de uma convenção internacional relativa à protecção dos refugiados. Em 28 de Julho de 1951 foi elaborada a Convenção de Genebra de 1951 Relativa ao Estatuto dos Refugiados (Portugal aderiu à Convenção de Genebra de 1951 através do Decrelo-Lei n.° 43 201, de 1 de Outubro de 1960. Porém, apenas em 1980 o instituto do asilo teve expressão na legislação interna sob a forma de lei — Lei n.° 38/80, de 1 de Agosto. Através do Decreto n.° 207/75, de 17 de Abril, Portugal aderiu ao Protocolo Adicional de Nova Iorque, sem reservas).
A Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 Relativos ao Estatuto dos Refugiados são aspectos basilares do direito de asilo e só nestes vamos encontrar a definição internacional de refugiado: «Toda a pessoa que, receando com razão ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontre fora do país de que tem a nacionalidade e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a protecção daquele país, ou que, se não tiver nacionalidade e estiver fora do país no qual tinha a sua nacionalidade habitual após aqueles acontecimentos, não possa ou, em virtude do dito receio, a ele não queira voltar.»
A Convenção de Genebra retoma em detalhe aquilo a que podemos apelidar os direitos dos refugiados. De uma forma geral ela contém os principais direitos individuais e sociais próprios das constituições modernas. Trata-se de realizar a integração jurídica do refugiado, assegurando-lhe as vantagens próprias de um estrangeiro privilegiado. Mas são sem dúvida alguma as circunstâncias relativas à expulsão do país que são tratadas mais especialmente por força dos artigos 32.° e 33.° da Convenção.
Até ao momento presente estes três grandes acordos internacionais (Estatuto do ACNUR, Convenção de Genebra de 1951 e Protocolo de 1967) continuam a representar as pedras angulares das actividades do Alto-Comissariado no mundo.
Sobre a base da definição do artigo l.°-A da Convenção de Genebra de 1951, o ACNUR e os tribunais dos Estados membros desenvolveram uma longa experiência e constituíram uma jurisprudência que precisou os termos e os elementos da definição, adaptando-as às múltiplas circunstâncias segundo as quais um ser humano pode necessitar de protecção face à ausência de segurança no seu país de origem. A determinação, caso por caso, da condição de refugiado é uma das tarefas mais árduas dos Estados membros e do próprio Alto-Comissariado.
Não obstante os méritos desta definição, esta não acolhe todas as circunstâncias em que se podem encontrar os refugiados.
Nos anos 50 e 60 recrudesceram os conflitos na Argélia, Tunísia, Marrocos, Ruanda, Africa do Sul, Zimbabwe e Namíbia. Estes acontecimentos e outros eventos similares fizeram reflectir os legisladores africanos, que, em 10 de Setembro de 1969, em Adis-Abeba, adoptaram a Convenção da Organização da Unidade Africana (OUA), a qual
rege os aspectos específicos dos problemas dos refugiados em África. Este documento foi aprovado sob os auspícios e o impulso do ACNUR.
O artigo 1.°, parágrafo 2, desta Convenção introduz uma extensão da noção de refugiado, aplicando-a também a «toda a pessoa que, em virtude de uma agressão, de uma ocupação exterior, de um domínio estrangeiro ou em consequência de eventos que perturbem gravemente a ordem pública numa parte ou na totalidade do seu país de origem ou do país do qual seja nacional, é obrigada a deixar a sua residência habitual para procurar refúgio noutro local no exterior do seu país de origem ou do país de onde é nacional».
Esta definição não colide com os termos da Convenção de Genebra de 1951, contendo apenas um alargamento das causas que justificam a concessão de asilo. Encontramo-nos na presença não somente da possibilidade de uma perseguição individual mas também de eventos de ordem geral que se reflectem na comunidade.
A Convenção Africana teve o mérito de conferir um fundamento escrito às razões de intervenção do ACNUR, ainda que as condições requeridas pela Convenção de Genebra de 1951 não estejam preenchidas. Entrou em vigor em Junho de 1974 e 40 países africanos ratificaram-na de imediato, o que representa 80% do continente africano.
Ainda como solução regional de grande relevo urge destacar a Declaração de Cartagena de 1984. A definição de refugiado contida na Declaração de Cartagena, que tem somente a força de uma opinião partilhada sobre o plano internacional, considera igualmente como refugiados «as pessoas que fugiram do seu país ponque a sua vida, sua segurança, ou a sua liberdade estão ameaçadas por uma violência generalizada, uma agressão estrangeira, conflitos internos, uma violação massiva dos direitos do homem ou outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública».
Como podemos constatar, com esta definição surge um novo elemento com a referência à «violação maciça dos direitos do homem», circunstância evidentemente inspirada pelas condições vigentes nos países do Sul da América Latina, sujeitos a regimes autoritários e militares.
Estas novas acepções significam que o velho enunciado clássico da Convenção de 1951 perdeu a sua validade? Não o cremos.
Trata-se essencialmente de uma precisão suplementar da noção, tendendo a abranger novas realidades e a ultrapassar as condições materiais de uma intervenção de urgência.
A noção fundamental do «receio fundado» permanece intacta em todas as novas tentativas de definição.
Quer o ACNUR quer o Conselho Europeu de Refugiados e Exilados (CERE/ECRE) têm vindo a defender a necessidade de uma definição suplementar de refugiado, por forma que também sejam incluídos os «refugiados de facto», que são o grosso dos refugiados dos anos 90.
Declaração Universal dos Direitos do Homem
Em termos de direito internacional assume especial relevo o artigo 14.° da Declaração Universal dos Direitos do Homem, segundo o qual «toda a pessoa sujeita a perseguição tem o direito de procurar e de beneficiar de asilo em Outros países».
Na sequência da proclamação deste direito e no desenvolvimento dos princípios da Carta das Nações Unidas e visando codificar acordos internacionais relativos ao Estatuto dos Refugiados, veio a ser adoptada a Convenção de Genebra de 1951, a que já aludimos.
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A protecção contra a repulsão (princípio do non refoule-ment) está ainda protegida no artigo 3.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, segundo o qual «ninguém pode ser submetido a torturas nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes».
V — Do enquadramento comunitário Artigos K.1 a K.9 do Tratado de Maastricht
A CE-UE recusou sempre uma política comum em matéria de migrações e de asilo. Os tratados não lhe conferiram as competências correspondentes, como de resto o Tribunal de Justiça chegou a declarar o recurso de vários países membros quando a Comissão pretendeu tomar uma iniciativa nesse domínio.
No entendimento de Barros Moura, «a motivação para a definição de regras em tais domínios nunca é desinteressada: a CE-UE interfere nessas matérias se e na medida em que elas tenham implicações nos objectivos e competências consagradas nos tratados e nos interesses comuns aos Estados membros. A promoção dos direitos do homem no mundo não é, usualmente, de molde a inspirar uma política autónoma europeia de apoio aos refugiados e de acolhimento de pessoas carecidas de asilo».
A principal motivação recente para que a CE-UE se ocupe do direito de asilo e de toda a problemática das migrações extracomunitárias tem a. ver com o objectivo de consagrar no seu interior e em benefício dos cidadãos comunitários a liberdade de circulação de pessoas — objectivo esse traçado no AUE, mas que não chegou a ser realizado e que continua por. realizar.
O 3.° pilar, relativo à justiça e assuntos internos, onde se enquadra a política de asilo (Kl a K9), é uma área do Tratado da União Europeia cujo funcionamento parece merecer uma consensual apreciação negativa por parte das organizações não governamentais e das próprias instituições comunitárias.
A política de asilo europeia deveria ser baseada nos mais elevados standards e não no mínimo denominador comum, o qual tem sido a tendência dos Estados membros da União Europeia. Os principais resultados da cooperação intergovernamental no campo da política de asilo ao abrigo do 3.° pilar foram as resoluções de Londres de 1992 e de Copenhaga de 1993, bem como a mais recente resolução sobre as garantias mínimas nos procedimentos de asilo, de Junho de 1995.
Foi ainda adoptada em Novembro de 1995 a posição comum sobre a interpretação harmonizada do artigo l.°-A da Convenção de Genebra de 1951, que há muito constava da agenda dos Estados.
As resoluções de Londres — Dezembro de 1992
Uma das respostas da Europa Ocidental ao aumento dos requerentes de asilo desde os anos 80 foi a introdução do processo acelerado para os pedidos de asilo que são manifestamente infundados e, por conseguinte, não merecem um exame detalhado sobre o seu mérito.
Foi essa mesma preocupação que conduziu à adopção pelos ministros da imigração das resoluções de 30 de Novembro e 1 de Dezembro de 1992, sobre pedidos de asilo manifestamente infundados. A resolução define pedido manifestamente infundado, estabelece garantias processuais e prevê outras categorias de casos que serão canalizados para o procedimento acelerado.
Ainda nesse ano é adoptada a resolução sobre terceiros países seguros, na qual é definido que é tido por manifestamente infundado o pedido formulado por requerente que tenha cruzado um terceiro país seguro antes de chegar ao país onde solicitou o pedido de asilo.
A UE entende como terceiro país seguro ou país terceiro de acolhimento o país no qual, comprovadamente, o requerente de asilo não seja objecto de ameaças à sua vida e liberdade, na acepção do artigo 33.° da Convenção de Genebra de 1951, nem sujeito a torturas ou a tratamento desumano ou degradante, tenha obtido protecção ou usufruído da oportunidade, na fronteira ou no território daquele, de contactar com autoridades desse país para pedir protecção ou nele tenha sido comprovadamente admitido e em que beneficie de uma protecção real contra a repulsão, na acepção da Convenção de Genebra.
Foi ainda adoptada a conclusão alusiva ao país seguro de origem. A Comunidade observou que a formulação de certos pedidos de asilo por indivíduos oriundos de países democráticos não tinha qualquer sentido e desvirtuaria o próprio sentido do direito de asilo. Assim, nessa conclusão são elencados quatro grandes factores que nos permitem concluir que estamos perante um país seguro que, em princípio, não pratica actos persecutórios nem gera refugiados. Esses factores prendem-se com o respeito pelos direitos humanos, com a percentagem de concessão de asilo de nacionais desse país, com a existência e funcionamento normal das instituições democráticas e com a estabilidade política.
Assim, o país seguro de origem é definido como o país em relação ao qual se possa estabelecer com segurança que não dá origem, em princípio, de forma objectiva e verificável, a quaisquer refugiados, ou em que se possa determinar com segurança, e de forma juridicamente objectiva e verifi- • cável, que as circunstâncias que anteriormente podiam justificar o recurso à Convenção de Genebra de 1951 deixaram de existir, atendendo, nomeadamente, aos quatro factores supra-identificados.
Estas resoluções foram alvo de inúmeras criticas e reservas por parte das organizações não governamentais que lidam com o direito de asilo, tendo, inclusive, o ACNUR manifestado algumas reservas quanto ao conteúdo das mesmas e quanto à necessidade de estes conceitos se enquadrarem num procedimento justo com garantias mínimas asseguradas ab initio (para melhor análise consultar An Overview os Protection in Western Europe: Legislative Trends and Positions taken by UNHCR — European Series, vol. i, Setembro de 1995, traduzido em português em Fevereiro de 1996).
Resolução-sobre as garantias mínimas nos procedimentos de asilo —Junho de 1995
Em 29 de Junho de 1995 foi adoptada a resolução sobre garantias mínimas nos procedimentos de asilo. Globalmente esta resolução é positiva, porquanto estabelece um standard médio de protecção no processo de elegibilidade.
Assim, são estabelecidos como indispensáveis ps seguintes requisitos processuais:
Os seguintes elementos são citados verbatim da resolução do Conselho:
A — Garantias relativas à análise dos pedidos de asilo:
1 — As regras em matéria do acesso ao processo de asilo, as características fundamentais do processo propriamente dito e a designação das autoridades res-
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ponsáveis pela análise dos pedidos de asilo deverão ser determinados no âmbito do direito nacional;
2 — Os pedidos de asilo serão analisados por uma autoridade plenamente qualificada no tocante a questões de direito de asilo e de refugiados. As decisões serão tomadas de uma forma independente, ou seja, todos os pedidos de asilo serão analisados individualmente, objectiva e imparcialmente;
3 — Ao analisar o pedido de asilo, a autoridade competente deverá tomar em consideração e averiguar todos os factos pertinentes, bem como dar ao requerente a oportunidade de fazer uma descrição pormenorizada das circunstâncias do seu caso e de apresentar elementos comprovativos. O requerente ao asilo deverá, por seu lado, apresentar todos os factos e circunstâncias de que tenha conhecimento, bem xomo todos os elementos de prova disponíveis;
4 — O reconhecimento da qualidade de refugiado não depende da existência de elementos formais de prova;
5 — As autoridades responsáveis pela análise dos pedidos de asilo serão plenamente qualificadas no tocante a questões de direito de asilo. Para este efeito:
5.1 — Disporão de pessoal especializado, com os conhecimentos e a experiência necessários no domínio do direito de asilo e dos refugiados e com capacidade para apreciar a situação específica de um requerente de asilo;
5.2 — Terão acesso a informações precisas e actuais de diversas proveniências, nomeadamente a informações do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, acerca da situação nos países de origem dos requerentes de asilo e nos países de trânsito;
5.3 — Terão o direito de solicitar, se necessário, o parecer de peritos acerca de determinadas questões específicas, por exemplo de ordem médica ou cultural.
B — Direito dos requerentes de asilo no âmbito dos processos de análise, de recurso e de revisão:
1 — Os requerentes de asilo devem ter efectivamente a possibilidade de apresentar os respectivos pedidos no mais breve prazo;
2 — As declarações do requerente de asilo e as demais indicações relativas ao seu pedido constituem dados muito sensíveis, que devem ser protegidos.
O direito nacional deverá prever garantias adequadas em matéria de protecção de dados, em especial relativamente às autoridades do país de origem do requerente de asilo;
3 — Enquanto não tiver sido tomada uma decisão a respeito do pedido de asilo, será aplicado o princípio geral de que o requerente de asilo tem o direito de permanecer no território do Estado em que apresentou ou em que está a ser analisado o seu pedido de asilo;
4 — Os requerentes de asilo serão informados do procedimento a seguir e dos seus direitos e obrigações no decurso do processo, numa língua que possam compreender, e, em especial:
4.1 — Beneficiarão, se necessário, de um intérprete para apresentar os seus argumentos às autoridades responsáveis. Estes serviços de interpretação serão pagos através de fundos públicos, caso tenham sido solicitados pelas autoridades competentes;
4.2 — Podem recorrer a um advogado autorizado nos termos das. disposições do Estado membro em causa ou a outro consultor que lhes preste assistência no decurso do processo;
4.3 — Têm a possibilidade, em todas as fases do processo, de entrar em contacto com os serviços do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados ou com outras organizações de refugiados autorizadas a actuar em nome do ACNUR no Estado membro em causa, e vice-versa;
4.4 — Os requerentes de asilo podem, além disso, entrar em contacto com outras organizações de ajuda aos refugiados, com base nas regras estabelecidas pelos Estados membros;
5 — A decisão sobre o pedido de asilo será comunicada por escrito ao requerente. Caso o pedido seja indeferido, o requerente será informado dos motivos e das possibilidades de revisão da decisão. Na medida em que a legislação nacional aplicável assim o preveja, o requerente de asilo terá oportunidade de se informar, numa língua que compreenda, acerca do teor da decisão e das possibilidades de. interpor recurso;
6 — Caso solicite uma revisão relativa ao seu pedido, o requerente de asilo disporá de um prazo suficiente para interpor recurso e para preparar a sua argumentação, prazo esse que lhe será comunicado atempadamente;
7 — Enquanto não tiver sido tomada uma decisão a respeito do recurso, não poderá ser tomada nenhuma medida de afastamento salvo em determinadas excepções.
Esta resolução foi também bastante contestada, dado que nada tem de muito inovador, uma vez que tais garantias já há muito que foram veiculados nas conclusões n.os 8 e 30 do Comité Executivo do ACNUR (a conclusão n.° 8 — XXVrJJ, sobre a determinação do Estatuto de Refugiado, foi adoptada em 1977 na 28.° sessão do Comité Executivo e a conclusão n.° 30, relativa ao problema dos pedidos manifestamente infundados e abusivos para obter o Estatuto de Refugiado ou o asilo, foi adoptada na 34." sessão do Comité Executivo).
O ACNUR entende, inclusive, que nesta resolução são codificadas diferenças e nem sempre se harmoniza pelo mais elevado padrão as semelhanças processuais e substantivas.
Posição comum de 4 de Março de 1996, definida pelo Conselho com base no artigo K.3 do Tratado da Uniãop Europeia sobre a aplicação harmonizada da definição do termo «refugiado» na acepção do artigo 1 .fi da Convenção de Genebra de 1951.
A Convenção de Genebra de 1951 não estabelece, em nenhum capítulo, a forma de determinação do estatuto de refugiado, deixando tal processo à livre autonomia dos Estados. Daí que exista uma enorme diversidade de formas de determinação do estatuto e a enorme variação das taxas de concessão confirma tal disparidade.
Devido a essa ausência de uniformização e hamomxar¿aa, os Estados signatários da Convenção de Genebra de 1951 solicitaram ao ACNUR que estabelecesse critérios para uma interpretação o mais similar possível da mesma Convenção, pedido esse que resultou no Manual de Procedimentos e Critérios a Aplicar para a Determinação do Estatuto de Refugiado, 1979.
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Não obstante o instrumento valioso que tal guia acabou por ser, verificou-se ao longo das últimas décadas que era necessário um maior esforço de harmonização, sobretudo a nível da UE, o que acabou por resultar na posição comum referida. Esta não representou um salto qualitativo na política de harmonização e interpretação da definição de refugiado.
Tem sido sublinhado por vários quadrantes que a interpretação conferida ao artigo 1 ."-A não cobriu de forma justa o alcance desta definição. Este assunto vital foi tratado sem a consulta por parte dos Estados membros e organizações não governamentais, tornando inviável um contributo efectivo para estas discussões.
No respeitante à substância e essência deste assunto, o enfoque deveria basear-se na protecção dos refugiados, seja em que condições e circunstâncias em que a perseguição possa ocorrer ou quem quer que seja o perseguidor; esta posição comum circunscreve o agente de perseguição ao Estado, o que é por de mais limitador e simplista.
Os Estados membros adoptaram, na opinião da ECRE, «uma posição restritiva que poderá conduzir a situações perante as quais se torna cada vez mais difícil substanciar os pedidos de asilo».
VI —Análise do projecto de lei n.° 164/VI1 (PCP) Avaliação politica
O projecto de lei ora em apreço acolhe no seu seio muitas das sugestões vertidas no debate público para aperfeiçoamento de um texto legislativo que carecia de inúmeras correcções. Essas enricas e sugestões de aperfeiçoamento forma, ao longo dos três anos da sua vigência, apontadas pelos organismos que lidam de forma directa com esta problemática, inclusive o próprio Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.
O Xm Governo criou, para tal efeito, um grupo de trabalho para revisão da lei de asilo. Este grupo de trabalho foi constituído em 10 de Abril de 1996 (Diário da República, 2° série). Esse grupo de trabalho é presidido por um adjunto do Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Administração Interna, um representante do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, um representante do Conselho Português para os Refugiados, o Comissário Nacional para os Refugiados, um representante do Alto-Comissário para a •Imigração e Minorias Étnicas e o ACNUR, como parceiro privilegiado.
Esse grupo de trabalho foi incumbido de redigir um novo texto legislativo, o qual deverá plasmar o consenso dos interlocutores nele envolvidos.
Existe um anteprojecto elaborado pelos participantes desse grupo de trabalho, tendo o Governo anunciado que apresentará à Assembleia da República a correspondente proposta de lei, a qual será acompanhada de outros diplomas atinentes aos estrangeiros (v. entrada, saída e expulsão de estrangeiros do território nacional e trabalho de estrangeiros em Portugal).
Avaliação jurídica
O presente projecto de lei é composto por 14 artigos, tendo o PCP optado por introduzir alterações parcelares ao texto vigente em vez de criar um texto ex novo.
As principais alterações propostas pelos subscritores do presente projecto são as que seguidamente se sumariam:
J — Revogação do artigo 1,8 da Lei n.° 70/93, de 29 de Setembro, o qual havia acolhido os conceitos de país se-
guro de origem; terceiro país de acolhimento e pedido de asilo, influência das resoluções e conclusões de Londres de 1992, bem como da Convenção de Dublim. Justifica a eliminação deste artigo pelo facto de a aplicação de tais conceitos conduzir a uma denegação automática do estatuto de refugiado que se opera pelo simples facto de um cidadão requerente ser originário de qualquer país considerado seguro ou terceiro país de acolhimento. A aplicação destes conceitos no entendimento do PCP pode conduzir a um repatriamento gerador de perigo para a vida do requerente, violando o princípio internacionalmente consagrado do non refoulement.
2 — Reposição do regime de concessão de asilo por razões humanitárias (artigo 2.°-A do projecto de lei). Fundamenta tal reposição alegando que se em 1980 existiam razões para consagrar a concessão do estatuto de refugiado por razões humanitárias, não existem hoje menos razões para a sua reposição.
3 — Revogação do artigo 4.°, n.° 2, da Lei n.° 70/93 por duvidosa constitucionalidade, porquanto esta disposição possibilita a recusa de concessão de asilo «sempre que a segurança interna o justifique ou quando a protecção da população o exija, designadamente em razão da situação social ou económica do País» (artigo 3.° do projecto de lei).
4 — Consagração do carácter automático da extensão dos efeitos da concessão de asilo ao cônjuge e aos filhos menores, solteiros ou incapazes do requerente ou, sendo este menor de 18 anos, ao pai e à mãe (artigo 4.° do projecto de lei).
5 — Consagração da Comissão Nacional para os Refugiados em substituição do comissário nacional para os Refugiados, de modo a salvaguardar a natureza independente da entidade competente para analisar os pedidos de asilo e apresentar propostas sobre a sua concessão.
Entende o PCP que será mais curial a atribuição das competências de análise a um órgão colegial, que terá a natureza de uma entidade pública independente.
Tal órgão será presidido por um magistrado judicial a designar pelo Conselho Superior da Magistratura e integrará dois membros de designação ministerial (MAI/MSSS) e um outro designado pelo Conselho Português para os Refugiados (artigos 7.° e 8.° do projecto de lei).
6 — Atribuição de efeito' suspensivo automático do recurso contencioso (à semelhança do previsto na Lei n.° 38/ 80, de 1 de Agosto) que seja interposto de uma decisão administrativa que negue a concessão do direito de asilo.
O PCP considera que se tal decisão administrativa não tiver efeito suspensivo poderá ter como consequência o abandono forçado do território nacional por parte do requerente, retirando efeito útil ao próprio recurso e determinando, desde logo, a irreversibilidade da decisão (artigo 13." do projecto de lei).
7 — Revogação das disposições referentes ao processo acelerado de decisão constante dos artigos 19.° e 20.° da Lei n.° 70/93, de 29 de Setembro (artigo 14.° do projecto de lei).
É hoje consensual a necessidade de revisão da Lei n.° 70/93, de 29 de Setembro.
Desde os primeiros meses de entrada em vigor desta lei que se gerou no seio das organizações não governamentais em geral e do CPR em especial que era indispensável rever a Lei n.° 70/93 e que tal era uma necessidade vital para a implementação de uma política de asilo pautada por uma trilogia de justiça na determinação do estatuto, eficácia nos métodos e procedimentos e celeridade na instrução, análise e decisão dos pedidos de asilo.
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Essa convicção foi-se consolidando ao longo de várias etapas, das quais se destacam, pela importância que revestiram, as seguintes:
A) Primeira etapa (Dezembro de 1994) — Congresso Internacional CPR: «Refugiados, Fortaleza Europeia, Exclusão ou Direito e Solidariedade?». Neste Congresso e nos grupos de trabalho constituídos foi pela primeira vez discutido, em conjunto com o ACNUR, CPR e SEF, a Lei n.° 70/93, de 29 de Setembro, e os aspectos negativos que a mesma patenteia. Foi como que a consciencialização de que existia um problema de fundo e a clara percepção de que, não obstante o enquadramento europeu de que Portugal faz parte e no qual assumiu obrigações internacionais, certas soluções legislativas foram obra do legislador nacional e fruto da precipitação na concepção do articulado.
B) Segunda etapa (Junho de 1995) — reunião de especialistas sobre o regime jurídico do asilo, organizada pelo ACNUR na Fundação Calouste Gulbenkian. — Nesta reunião internacional foi apresentado um documento de trabalho preparado por um grupo de especialistas, no qual se efectuou um enquadramento internacional e europeu da problemática, bem como uma avaliação dos aspectos da Lei n.° 70/93 que urgia rever, alterar, clarificar ou suprimir.
Assim, foi proposto a revisão dos seguintes artigos:
Artigo 5.°, «Extensão do asilo». — A alteração da fórmula contida na Lei n.° 38/80, de 1 de Agosto, poderá frustrar o artigo 67.° da Constituição e o princípio da unidade familiar. A expressão «os efeitos do asilo devem ser declarados extensivos» era mais forte e vinculativa do que a expressão ora adoptada «podem ser extensivos».
Artigo 10.°, «Competência do CNR para aplicar o artigo 10.° da Lei n.° 70/93». — Dado que o artigo 12." da lei supramencionada define de forma exaustiva as competências do CNR e dado que nada refere sobre a emissão de pareceres sobre o regime excepcional por razões humanitárias, o CNR entendeu que apenas pode propor a organização de processo autónomo no tocante a esses casos.
Artigo 13.°, n.° 2. — Ao contrário da legislação anterior, não existe nenhuma referência à recusa liminar do asilo por extemporaneidade do pedido. Quid júris quando o candidato não solicita asilo nos prazos previstos legalmente? Dado que a lei nada prevê nesse sentido, é necessário recorrer aos princípios gerais de direito. Seria mais correcto se a este artigo fosse aditado um número que previsse a consequência da extemporaneidade do pedido. Contudo, será sempre necessário ter em consideração as recomendações internacionais que defendem que um pedido não deve ser rejeitado sem análise do seu mérito pelo simples facto de ser extemporâneo.
A não observação estrita do prazo não deve conduzir, pura e simplesmente, à recusa do pedido, mas a uma análise do fundamento das razões eventualmente justificativas da omissão (v. conclusão n.° 15 da EXCOM).
Deveriam ainda ser clarificadas as situações referentes ao Estatuto do CNR, o qual nunca foi regulamentado à semelhança do que foi feito para anteriores corpos de análise, bem como a questão da distinção clara do que é um pedido fundado daquilo que é manifestamente infundado, bem como a importância e dificuldade de aferir a credibilidade de um pedido de asilo.
No tocante ao enquadramento em processo acelerado constatou-se que:
a) A lei não define de forma clara e inequívoca a quem é que compete tomar a opção pelo processo
acelerado, nem se exige a fundamentação da decisão;
b) A lei, além de não exigir a fundamentação para tal enquadramento, não prevê qualquer tipo de medida contenciosa de reclamação face ao mesmo.
Artigo 17.°, n.° 2. — O direito de recurso está expressamente mencionado no caso de recusa de asilo em processo normal (artigos 13.° a 18.°), mas não está previsto para os casos de processo acelerado (artigos 19.° e 20.°).
Contudo, se se pretendeu inicialmente afastar os casos do processo acelerado do recurso contencioso, tal pretensão foi frustrada, porquanto constitucionalmente tal situação revela-se dificilmente contomável.
Assim, na prática, em ambas as situações exerceu-se o direito de interpor recurso contencioso, só que em sede de processo normal está previsto um prazo de 20 dias e em sede de processo acelerado, dada a omissão legislativa, fun-. ciona o prazo da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, ou seja, 60 dias, o que é paradoxal e ilógico, tendo ^ em conta os interesses acautelados num e noutro processo e o encurtamento dos prazos previstos no processo acelerado.
Criticou-se, além disso, o facto de o recurso ter perdido o efeito suspensivo automático, situação que retira ao recurso a sua tutela constitucional efectiva. A este propósito v. a conclusão n.° 8 da EXCOM, que recomenda que os requerentes possam aguardar a decisão do recurso no território dos Estados; cf., idem «Fair and efficient procedures for detyermining refugee status», ECRE, 1990; European Refugee policy in lhe lighl of estabüshed principies, ECRE 1994.
Artigos 35." e 37.° «Apoio social». — Dado o enquadramento da maioria dos casos em processo acelerado e a diminuta emissão de autorizações de residência provisórias, a segurança social só prestou apoio efectivo a um reduzido número de casos. A dimensão social da política de asilo continua, assim, longe dos padrões mínimos no tocante ao apoio social. Ainda que no passado e no momento presente o ACNUR preste apoio de emergência aos candidatos ao asilo, numa primeira fase do processo afigura-se como necessária a criação de um sistema apropriado que assegure de forma efectiva o apoio social e económico aos casos em situação de carência. Entende-se que o procedimento de asilo e a decisão final do pedido devem ser mais expeditas. As conclusões, que se dedicaram às questões sociais, foram sempre no sentido da criação de uma estrutura de acolhimento desde que esta se paute por valores humanitários.
Os prazos previstos para o processo acelerado não são passíveis de cumprimento e o artigo 20.°, n.° 2, relativo à afixação do parecer, devido às inúmeras reclamações produzidas pelo CPR e pelo ACNUR junto de várias instâncias, deixou de ser afixado por razões de segurança e de confidencialidade, sendo enviado por via postal uma cópia do mesmo.
Assim, estes artigos deveriam ser revistos.
A esta reunião seguiram-se outros eventos de relevo onde as questões apontadas foram ganhando consolidação e a necessidade de revisão tomou-se imperiosa, começando a gurar-se como um passo nuclear para a efectivação de uma protecção eficaz dos refugiados, sem défices procedimentais e com uma indispensável dimensão social.
Q Terceira etapa — Audição parlamentar de 26 de Fevereiro de 1996 sobre a situação dos refugiados em Portu-
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gal, organizada pela Assembleia da República, Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, com a cooperação do ACNUR. —Nesta audição parlamentar foi apresentada uma posição comum de revisão da lei de asilo pelo ACNUR e CPR. O diagnóstico, avaliação e prognose efectuados mereceram um alargado consenso, tendo, inclusive, o Secretário de Estado da Administração Interna concordado com a necessidade de rever o texto vigente. A criação de um grupo de trabalho para a revisão da lei atrás referido foi fruto desta audição.
Esta terceira etapa foi, sem dúvida, das mais importantes, porquanto representou um corolário do trabalho desenvolvido ao longo dos últimos três anos pelos organismos directamente envolvidos nesta temática, ou seja, o ACNUR e o CPR.
O projecto de lei n.° 164/VTJ reúne algumas das preocupações vertidas em todos os eventos supradescritos na feição específica dos proponentes.
Parecer
O presente projecto de lei reúne as condições necessárias para ser apreciado em Plenário.
Assembleia da República, 19 de Fevereiro de 1997.— O Deputado Relator, Nuno Baltazar Mendes. — O Deputado Presidente, Barbosa de Melo.
Nota. — O relatório foi aprovado com os votos a favor do PS, do PCP e a abstenção do PSD e do CDS-PP e o parecer foi aprovado por unanimidade.
PROJECTO DE LEI N.9 172/VII
(PUBLICIDADE DA QUALIDADE DA ÁGUA DE ABASTECIMENTO)
Relatório e parecer da Comissão de Administração do Território, Poder Local, Equipamento Social e Ambiente.
Relatório I — Objectivo
O projecto de lei em apreço tem por objectivo regulamentar as regras da publicidade dos dados relativos à qualidade da água de abastecimento. Trata-se de matéria que o partido proponente tinha já apresentado — em termos semelhantes aos que agora esta Comissão tem de avaliar — na legislatura anterior (projecto de lei n.° 324/VT).
2 — Enquadramento
2.1 —As normas a que deve obedecer a qualidade da água para diversas utilizações são fixadas pelo Decreto-Lei n.° 74/90.
No que se refere à água para consumo humano (e pensa o relator que é a esta que se refere o projecto de lei em causa), são particularmente relevantes a definição das competências que são atribuídas por este diploma, no seu artigo 4.°, às Direcções-Gerais da Qualidade do Ambiente, dos Recursos Naturais e dos Cuidados de Saúde Primários e às acAninístrações regionais de saúde.
2.2 — O projecto de lei em apreço vem impor às administrações central e local a obrigação de publicitar dados relativos à qualidade da água, definindo quais os dados que, em cada caso, deverão ser publicitados e a forma como o deverão ser. Deve entender-se que estas novas obrigações não prejudicam as competências referidas no n.° 2.1?
2.3 — O projecto de lei em causa restringe à obrigação de publicitar dados à qualidade da água para abastecimento para consumo humano. Deverão ou não ser também considerados os dados com interesse para outras utilizações? Citam-se, nomeadamente:
Águas para suporte da vida agrícola;
Águas para rega;
Águas para utilização recreativa.
2.4 — 0 projecto de lei define quais os dados cuja publicidade passará a ser obrigatória. Haverá, porventura, outros dados, nomeadamente alguns dos referidos nos anexos ao Decreto-Lei n.° 74/90 acima citado, que devam igualmente ser publicitados?
3 — Comentários
As questões levantadas nos números anteriores poderão, contudo, ser consideradas relevantes e vir a ser analisadas quando o projecto de lei vier a ser discutido na especialidade.
Parecer
Assim, nestas circunstâncias, conclui-se que o projecto de lei cumpre os preceitos de ordem constitucional e regimental, encontrando-se, pois, em condições de subir a Plenário para debate e votação na generalidade, reservando os partidos para essa oportunidade a sua posição e sentido de voto.
Palácio de São Bento, 11 de Julho de 1996.— O Deputado Deputado, Falcão e Cunha. — O Deputado Presidente, Eurico Figueiredo.
Nota. — O relatório e o parecer foram aprovados por unanimidade.
PROJECTO DE LEI N.º 177/VII
(INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GRAVIDEZ)
PROJECTO DE LEI N.2 235/VII
(ALTERA OS PRAZOS DE EXCLUSÃO DA ILICITUDE NOS CASOS DE INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GRAVIDEZ)
PROJECTO DE LEI N.º 2367VII (INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GRAVIDEZ) Relatório e parecer da Comissão de Juventude
Relatório I
Do objecto e dos motivos do projecto de lei n.° 177/VTI
Através do presente projecto de lei o PCP pretende a exclusão da ilicitude da interrupção voluntária da gravidez (TVG) quando realizada nas primeiras 12 semanas, sem in-
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vocação de quaisquer motivos, introduzindo, desta forma, alterações ao artigo 142." do Código Penal. Associada a esta inovação surgem outras alterações que se prendem com o alargamento dos prazos já existentes para a prática da IVG.
Esta iniciativa visa dar continuidade a projectos similares apresentados por este grupo parlamentar em legislaturas anteriores, os quais foram rejeitados e que iam no sentido de excluir a ilicitude do aborto por motivos sociais e de caminhar para a despenalização do mesmo.
No presente projecto os seus subscritores, além das propostas já referidas, propõem:
O alargamento dos prazos para as 16 semanas a pedido da mulher nos casos de mães toxicodependentes;
O alargamento dos prazos de 16 para 22 semanas nos casos de aborto eugénico; 1
O alargamento de 12 para 16 semanas nos casos em que a IVG se mostre indicada para evitar perigo de morte ou de grave lesão para a saúde física ou psicológica da mulher grávida;
O alargamento de 12 para 16 semanas nos casos de vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual e o alargamento desse mesmo prazo para as 22 semanas sempre que se trate de menores de 16 anos ou incapazes por anomalia psíquica;
Garantir o acesso a consultas de planeamento familiar.
Propõem ainda os subscritores a despenalização da conduta da mulher que consinta na IVG fora dos prazos e limites legalmente estatuídos, dado que a consideram uma vítima e não agente do crime.
Os motivos subjacentes à apresentação desta iniciativa prendem-se com compromissos eleitorais assumidos por este grupo parlamentar e, sobretudo, com uma luta constante na defesa dos direitos da mulher e pela liberalização do aborto.
Com o presente projecto de lei pretende o PCP que se «institua um regime legal mais adequado que o vigente, nomeadamente tendo em conta os conhecimentos da medicina, o qual tem de ser acompanhado por políticas que garantam a realização pessoal dos cidadãos e que protejam a maternidade e a paternidade».
Do objecto e motivos do projecto de lei d.° 235/VTI
O projecto de lei n.° 235/VTJ. faz precisamente aquilo que o seu objecto indica, ou seja, altera os prazos legalmente previstos para a interrupção voluntária da gravidez em três situações perfeitamente identificadas.
Assim, os seus subscritores propõem:
A exclusão da ilicitude da interrupção voluntária da gravidez sem limite gestacional nas situações de feto inviável;
O alargamento de 16 para 24 semanas, comprovadas ecograficamente, nos casos de aborto eugénico;
O alargamento de 12 para 16 semanas do prazo dentro do qual a IVG pode ser praticada sem punição nos casos de vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual e quando menores de 16 anos ou incapazes por anomalia psíquica.
O projecto contém ainda um conjunto de normas que prevê a criação de uma comissão técnica de avaliação de defeitos congénitos, a obrigação de reorganização dos servi-
ços hospitalares para que estejam dotados de estruturas adequadas à prática da IVG, bem como de consultas de planeamento familiar.
Os fundamentos subjacentes à propositura desta iniciativa radicam em razões de ordem técnico-científica, as quais se inserem, em última instância, numa filosofia pró-nata-lista.
Entendem os proponentes que urge enfrentar o problema da interrupção voluntária da gravidez de forma técnica, no sentido de legalizar as situações clínicas de malformações fetais que poderão ser mais facilmente diagnosticáveis às 24 semanas. Considera que às 16 semanas ocorrem, por vezes, malformações que, com o evoluir da gravidez, passam a morfologicamente normais.
Do objecto e da exposição de motivos do projecto de lei n.° 2367VU
O presente projecto, apresentado pelos Deputados da Juventude Socialista, pretende, com as alterações preconizadas com a presente iniciativa, contribuir de forma inequívoca para o combate ao aborto ilegal, permitindo a possibilidade de se interromper voluntariamente a gravidez com vista à preservação da dignidade social e moral e de uma maternidade consciente e livre.
Os motivos que conduziram à apresentação desta iniciativa prendem-se com a necessidade de implementar um regime legal adequado à realidade portuguesa, enquadrando de forma harmoniosa as soluções europeias vigentes nesta matéria.
O direito comparado das legislações existentes na União Europeia situa a legislação portuguesa nas legislações menos abrangentes, quer no referente aos motivos quer em relação aos prazos para a IVG. Em particular, os prazos para uma IVG nos casos de malformação do feto são, muitas vezes, impraticáveis face ao tempo de gravidez exigido legalmente, o qual não permite claramente a comprovação daquele facto.
De extrema importância para os subscritores deste projecto é o combate áo aborto clandestino e às sequelas que, a nível físico e psíquico, resultam para as mulheres, sendo certo que a exclusão da ilicitude não aumenta as laxas de IVG. Verifica-se, aliás, que a taxa de aborto diminuiu consideravelmente nos países em que o mesmo foi inserido e tratado em programas de planeamento familiar, sustentado por serviços de saúde adequados e eficazes e acompanhado de informação e formação nesta área.
Assim, através do presente projecto de lei propõe-se:
A exclusão da ilicitude da interrupção voluntária da gravidez quando realizada nas primeiras 12 semanas a pedido da mulher;
O alargamento do prazo de 16 para 24 semanas de gravidez quando haja seguros motivos para crer que o nascituro virá a sofrer de forma incurável de doença grave ou malformação congénita;
Alargamento do prazo de 12 para 16 semanas em que a prática da IVG surge por se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou grave lesão para o corpo ou saúde física e psíquica da mulher grávida-.
Alargamento do prazo de 12 para 16 semanas no caso de vítimas de crimes contra a l;berdade e autodeterminação sexual, aumentando-se aquele prazo para as 18 semanas quando praticados contra menores de 16 anos ou incapazes por anomalia psíquica;
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Criação de centros de aconselhamento familiar destinados a fornecer o aconselhamento e apoio necessário à mulher grávida, visando a superação de problemas relacionados com a gravidez, contribuindo, assim, para uma decisão responsável e consciente.
Pretendem ainda que seja criminalizada e punida a propaganda à interrupção voluntária da gravidez com uma pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
n
Dos antecedentes do projecto de lei n.° 177/Vn
Antes, porém, de entrar na sua apreciação, não será inútil falar dos antecedentes do.diploma sub judies.
A problemática do aborto surgiu aproximadamente com a apresentação, na Assembleia da República, pelo Partido Comunista, dos projectos lei n.05 307/11, 308/D. e 309/n, intitulados, respectivamente, «Protecção e defesa da maternidade», «Garantia do direito ao planeamento familiar e educação sexual» e «Interrupção voluntária da gravidez».
Este último projecto de lei veio a ser rejeitado pela Assembleia da República em 11 de Novembro de 1982. Contudo, ao ser retomado na sessão legislativa seguinte (n.° 7/IJJ) contribuiu para o vivo debate que então se realizou e que conduziu a aprovação da Lei n.° 6/84, de 11 de Maio, à qual introduziu nova redacção aos artigos 139.°, 140.° e 141.° do Código Penal.
A Lei n.° 6/84 teve por antecedente o projecto de lei n.° 265/DI — Exclusão da ilicitude em alguns casos de interrupção voluntária da gravidez, apresentado pelo PS, tendo sido aprovada com os votos contra do PSD e do CDS.
A discussão do projecto de lei n.° 265/HJ veio a processar-se conforme consta do Diário, n.os 67 e 68, de 26 e 27 de Janeiro de 1984, com aprovação na generalidade desse projecto, bem como de mais dois projectos do PS e do PSD sobre educação sexual e planeamento familiar e protecção da-maternidade.
A matéria relativa ao projecto referido sobre interrupção voluntária da gravidez, depois de discutido na especialidade pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, foi aí aprovada, mas com algumas alterações.
Seguidamente, subiu a Plenário para aprovação final global, vindo a obtê-la por maioria simples.
Dos antecedentes dos projectos de lei n.M 235/VTJ e 236/VTI
O Partido Socialista apresentou na IV Legislatura o projecto de lei n.° 265/IJI, que tinha por objecto a exclusão da ilicitude em alguns casos de interrupção voluntária da gravidez.
Esse projecto foi discutido conjuntamente com projectos similares do PCP (projecto de lei n.° 7/IU) e com outras iniciativas co-relacionadas com a interrupção voluntária da gravidez, tais como a protecção e defesa da maternidade e garantia do direito ao planeamento familiar e à educação sexual (projectos de lei n.os 5/m e 6/m, do PCP, 267/IJJ, do PS e PSD, e 272/TJJ, do PS e PSD).
O projecto de lei n.° 265/TJI — Interrupção voluntária da gravidez foi apresentado pelo Deputado Ferraz de Abreu, o qual defendeu as seguintes linhas de força:
O Partido Socialista, de acordo com a vontade expressa pela grande maioria dos seus militantes e
apoiantes, considerou um imperativo ético a apresentação do projecto de lei n.° 265/JTJ, sobre a exclusão da ilicitude de alguns casos de interrupção voluntária da gravidez. Fizemo-lo conscientes dos valores éticos, sociais, culturais, religiosos e políticos que se movimentam em torno da temática da interrupção voluntária da gravidez e da grande divergência de opiniões, conceitos e comportamentos, sempre presente perante qualquer proposta de alteração das disposições legais que criminalizam duramente os intervenientes em tal interrupção.
Mas ao elaborarmos o nosso .projecto tivemos em conta o peso de todos os valores em causa e preocupamo-nos em respeitar os direitos e as posições daqueles que, por imperativos conceptuais ou de fé religiosa, sejam adversos a toda e qualquer interrupção voluntária da gravidez.
É que não desconhecemos a realidade trágica do nosso país; não desconhecemos o sofrimento, as mortes, as mutilações, os traumas físicos e psíquicos; enfim os graves atentados à saúde das mulheres, provocados pelo aborto clandestino, cuja existência ninguém ignora, mesmo o Código Penal, mas que campeia impune na nossa sociedade para desgraça de muitos e proveito de poucos.
É que reconhecemos a inutilidade e a ineficácia da punição imposta indiscriminadamente a qualquer caso de interrupção da gravidez pelo Código Penal em vigor, que a outro resultado não leva a que não seja incrementada a prática do aborto clandestino [...]
Somos contra o aborto, mas procuramos assumir em tal matéria um comportamento realista que, sem perder de vista os valores em causa e respeitando a consciência e as motivações dos que não aceitem as nossas opções, vise libertar a nossa sociedade da exploração sórdida, da angústia opressora e do grave risco do aborto clandestino e que permita às mulheres usufruir as alegrias de uma maternidade desejada.
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Breve esboço histórico
1 — Pelo que à incriminação do aborto diz respeito, verifica-se que ela variou em função de épocas consideradas e dos países a que diz respeito. A referência mais antiga que é conhecida remonta ao ano 3000 a. C. e foi descoberta nos arquivos reais da China, havendo notícia de outros textos remotos que, de uma ou outra forma, se lhe referiam.
2 — O código de Hammurabi considerava apenas o aborto provocado por terceiros, nada dizendo sobre o aborto consensual.
3 — O código hitita também punia o aborto cometido por terceiros, para o qual estabelecia uma peia pecuniária de acordo com a idade do feto. No entanto, se o marido não tivesse outro filho, o agressor seria punido com a morte. Quanto à mulher que intencionalmente se fazia abortar era empalada, deixando-se por enterrar.
4 — Entre os Hebreus, só muito depois da chamada «lei mosaica» se passou a considerar ilícita a interrupção da gravidez, testemunhando uma passagem da Bíblia que o aborto só era punido quando praticado por violência, ainda que voluntariamente (v. Bíblia, Êxodo, capítulo 21, versículo 22).
5 — Na Grécia Antiga os abortos eram bastante frequentes e médicos famosos, como, por exemplo, Asclepíades, não
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só os executavam como ensinavam a perpetrar o mesmo (António Leite, «Legislações recentes sobre o aborto», in Scientia Jurídica, L xxn, n.os 122-123, p. 384), tudo indicando, no entanto, terem sido punidos com as legislações de Licurgo e Sólon. Foi na Grécia, de resto, que se começou a especular sobre a ideia metafísica de animação do feto.
Platão e Aristóteles, respectivamente na República e Política, fixavam limites e condições para o aborto, sendo plausível que fora de tais parâmetros se não pudesse verificar licitamente, tendo Actzus, por sua vez, transmitido a profusa lista das substâncias abortivas e anticoncepcionais indicadas por Aspásia, companheira de Péricles.
6 — Em Roma, não obstante algumas leis antigas que pareciam proibi-lo, sobretudo a partir do império, o aborto tornou-se prática corrente e mesmo entre as classes mais elevadas a procuratio abortes não era repelida, influenciados pela filosofia estóica, o feto era considerado uma parte das vísceras da mãe, podendo esta dispor daquilo que era seu.
No tempo dos imperadores António e Septímio Severo passou, no entanto, a ser punido com penas muito graves, que eram dirigidas à mulher e a terceiros.
7 — Com o advento do Cristianismo, a prática do aborto é considerada contrária ao quinto mandamento — «não matar» — e, com a conversão dos imperadores romanos e depois de a religião cristã ter sido adoptada como religião do Estado, ter-se-ão multiplicado as leis civis contra os que praticavam o aborto e todos os que nele colaboravam.
8 — No começo da Idade Média os teólogos disputaram muito em torno da incriminação do aborto. Ainda baseado na doutrina de Aristóteles, que admitia o aborto no caso de o feto ainda não haver adquirido alma, Santo Agostinho, considerando que tal só ocorria 40 ou 80 dias depois da concepção, respectivamente quod hominem e quod feminam, não considerava criminoso o aborto praticado antes do decurso de tais períodos. Muitos médicos e teólogos, baseados na teoria, supunham que até àquele período o embrião passava pelo estádio de vida meramente vegetativa, seme-' lhante à das plantas, e depois vida sensitiva, como a dos animais, para só depois atingir a vida humana, quando lhe era infundida a alma. Tal era, por exemplo, o parecer de São Tomás de Aquino, seguido por numerosíssimos discípulos (v. António Leite, p. 385).
9 — Numa resenha retrospectiva temporalmente mais próxima (anos 60/70) também consideradora da geografia do aborto, no que à Europa respeita, pode dizer-se que se vislumbravam, ainda não há muito tempo, três tendências principais.
Uma de cariz mais repressivo fazia sentir-se nas legislações da Bélgica, Espanha, Grécia, Itália e Portugal. Numa linha mais liberal situavam-se países como a URSS e a Hungria, onde o aborto provocado era livre, nomeadamente nos três primeiros meses de gravidez.
Como tendência intermédia havia ainda uma corrente que autorizava o aborto em vários casos, tomando em consideração a saúde física ou mental da mãe, a violação e o incesto, permitindo-se, de uma maneira geral, o aborto terapêutico, eugénico e social. Apresentavam-se como seguidores iniciais desta orientação os países escandinavos, a Suíça e a Grã-Bretanha.
As tendências mais recentes serão descritas no ponto vm deste relatório.
IV
Do enquadramento legal — Lei n-° 6784 e Código Penal
4.1 — A Lei n.° 6/84 teve por antecedente o projecto de lei n.° 265/lTJ —Exclusão da ilicitude de interrupção vo-
luntária da gravidez, apresentada pelo PS, tendo sido aprovado com os votos contra do PSD e CDS.
Por força desta lei foram alterados os artigos 139.°, 140.° e 141.° do Código Penal e estabeleceram-se normas criando punição para os médicos por conduta negligente, adequada organização dos estabelecimentos de saúde para o efeito da prática de IVG, a consagração do direito à objecção de consciência por parte da classe médica e, por fim, a obrigação de os médicos e demais profissionais clínicos se vincularem ao segredo de justiça. _
Esta lei acabou por ficar revogada (no referente aos artigos que alteravam o Código Penal) com a revisão do Código Penal, operada pelo Decreto-Lei n.° 48/95, de 15 de Março, ao introduzir-se novo texto aos artigos 139.° e 141." e algumas normas destinadas a legitimar a prática do aborto.
Vejamos cada um dos artigos de per si, seguindo de perto os comentários de M. Maia Gonçalves. .
Quanto ao actual artigo 140.° (anterior artigo 139.°), verifica-se que reproduz, com meras alterações formais, os n.os 2 e 3 do artigo 139.° da anterior versão do Código, na redacção que fora introduzida na Lei n.° 6/84, de 11 de Maio. A Comissão de Revisão do Código Penal, nas suas 22." e 44.° sessões, em 16 de Janeiro e 10 de Dezembro de 1990, considerou que após a intensa polémica registada quanto ao aborto e à IVG, com a intervenção dos diversos órgãos de soberania e sociedade civil, não parecia legítimo a curto prazo proceder a modificações importantes neste domínio. Assim, a revisão manteve as soluções de fundo que à data vigoravam e que representam o ponto de equilíbrio alcançado na sociedade portuguesa, apenas oferecendo somente uma melhor redacção, do ponto de vista técnico, às soluções contidas na Lei n.° 6/84.
Quanto ao artigo 141.°, «Aborto agravado», verifica-se que os preceitos dos n.os I e 2 correspondem aos n.os 5 e 6 do artigo 139.°, segundo a redacção que lhes fora dada pela Lei n.° 6/84, de 11 de Maio, os quais, por sua vez, correspondiam ao artigo 150.° do projecto de parte especial do Código Penal de 1966. Em relação à versão anterior dos n.os 5 e 6 do artigo 139.°, como se referiu supra, nota-se uma acentuada simplificação do texto, o que não implicou nenhuma alteração de fundo relevante.
No tocante ao artigo 142.°, «Interrupção da gravidez não punível» —anterior artigo 140.°, sobre a exclusão da ilicitude do aborto —, o texto deste artigo é resuJtaníe da revisão do Código levada a efeito pelo Decreto-Lei n.° 48/95, de 15 de Março.
Os n.051 e 2 correspondem aos n.05 1 e 2 do artigo 140.° da versão originária do Código, com a redacção que íhe fora dada pela Lei n.° 6/84, de 11 de Maio. A CRCP propusera o período de 22 semanas no n.° 1, alínea c), para a interrupção da gravidez nos casos designados de aborto eugénico. O entendimento governamental foi diferente, porquanto a proposta de lei n.° 92/V1 retomou o período de 16 semanas de gravidez da referida Lei n.° 6/84.
Esta situação encontra-se também descrita no relatório da 1.° Comissão sobre essa mesma proposta de lei:
A comissão revisora optara pelo seu alargamento até 22 semanas, no pressuposto de que algumas das anomalias do feto que justificam a prática do aborto (por fazerem provar que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação) só podem ser detectadas nessa altura. O facto de a proposta reverter ao prazo legal já previsto não se deve a qualquer ponderação de bens jurídicos a ter em conta . nesta sede (designadamente, o acréscimo de pengo ^rasa.
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a saúde da mãe, sobre o qual não existe consenso nos meios científicos). A razão foi não tocar a matéria sem discussão alargada que estritamente sobre ela incida.
No douto entendimento de M. Maia Gonçalves a proposta da Comissão de Revisão do Código Penal afigurava--se mais equilibrada e até de harmonia com as soluções da Alemanha e da Espanha. Apontam-se mesmo soluções mais permissivas nos casos da Dinamarca, França, Grécia, Luxemburgo e Inglaterra, que despenalizam o aborto eugé-nico até à 25.a ou à 28.° semanas.
Neste artigo, e no seguimento da referida lei, consagrare a exclusão da ilicitude nos casos de aborto terapêutico — n.° 1, alíneas a) e b) —, eugénico — n.° 1, alínea c) — e sentimental — n.° 1, alínea d).
Podemos observar que o nosso ordenamento jurídico não exclui a ilicitude nos casos de aborto social, ou seja, do que é praticado devido à impossibilidade de a família sustentar o nascituro. A nossa lei alinhou, assim, pelos sistemas menos permissivos, de entre aqueles que consagram a licitude da interrupção voluntária da gravidez.
4.2 — A Lei n.° 6/84 tem sido considerada por vários organismos, associações e médicos como uma «lei desajustada». Numa intervenção proferida pelo Dr. Luís Elmano Barroco, no colóquio «10 anos depois, a situação do aborto em Portugal», realizado no Instituto Franco-Portugais, no dia 19 de Março de 1994, foi constatado pelo mesmo a inadequação desse quadro legal.
4.2.1 —O relatório do inquérito sobre a IVG em Portugal, realizado pela APF em Junho de 1993, 10 anos após a publicação da Lei n.° 6/84, veio mostrar que mais de 50 % dos hospitais, ou seja, 36 dos 54, responderam ao inquérito, dos quais 29 na zona norte e 7 na zona sul não realizavam IVG pelas seguintes razões: inexistência de serviços especializados (15), falta de recursos (6), objectores de consciência (8), impossibilidade de cumprir prazos (1).
Tal como se pode depreender pelos dados acima referidos, verifica-se, na opinião do Dr. Luís Elmano, que a lei dificulta a realização de grande número de casos, por isso a consideramos «desajustada» ou «inadequada», mas permite resolver pelo menos 50% dos que se apresentam.
Nesse relatório consta ainda a informação de que cinco hospitais não têm pedidos de interrupção de gravidez.
4.2.2 — Há quem entenda ainda que a Lei n.° 6/84 não contempla as condições sociais e sócio-económicas num país em que são precisamente estas as que levam a grávida a procurar o aborto clandestino, com toda a morbilidade que a interrupção da gravidez naquelas condições acarreta. Existe ainda hoje uma patologia significativa resultante da prática de IVG clandestinas e efectuadas sem os mínimos cuidados de saúde — lesões cervicais, a perfuração uterina, a infecção, a sépsis ou salpingite com infertilidade.
4.2.3 — Assim, a APF tem manifestado em público a sua posição de carácter conclusivo, que vai no sentido de considerar que a lei portuguesa não encara a IVG como um cuidado de saúde primário, sendo inadequada em alguns pontos cruciais, como é o caso dos prazos, demasiado curtos para permitir o diagnóstico pré-natal. Além disso, a realidade é muito dispare entre os vários estabelecimentos de saúde. Para esta associação as razões para o pequeno número de abortos legais praticados em Portugal são essencialmente as seguintes: falta de informação das mulheres sobre as possibilidades contidas na lei; deficiente organização dos serviços de saúde oficiais; limitações da própria lei quanto à possibilidade do exercício das IVG; direito da objecção de consciência por parte do corpo clínico.
V
Da posição do Tribunal Constitucional em 1984 e 1985 principais acórdãos e jurisprudência
Tal como se adivinhava, dada a polémica que envolveu os debates parlamentares e as dúvidas de constitucionalidade que entretanto se suscitaram, o Presidente da República, ao abrigo do artigo 278.° da CRP, requereu ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade da norma relativa à chamada «exclusão da ilicitude em alguns casos de interrupção voluntária da gravidez» constante do artigo 1.° do decreto n.° 4l/UJ da Assembleia da República.
0 Presidente invocou, na altura, os seguintes fundamentos:
1 — Antes de efectuar a promulgação do diploma em apreço considerou necessário que, previamente à decisão que entenda tomar, o Tribunal se pronuncie sobre tal constitucionalidade, dado que diversas entidades, organizações nacionais e muitos cidadãos, alguns deles técnicos, especialistas médicos e juristas, entenderam que, nos casos limitados previstos na nova redacção ao n.° 1 do artigo 140.° do Código Penal, a exclusão da ilicitude do aborto é, entre nós, incompatível com o princípio da inviolabilidade da vida humana estabelecido no artigo 24.° da Constituição ou que, pelo menos, é de duvidosa constitucionalidade.
2 — Para tanto aquelas entidades e organizações apresentam, de entre outros, como fundamentos essenciais da tese da inconstitucionalidade da norma que despenaliza, ainda que com certas limitações, a interrupção voluntária da gravidez, as seguintes razões:
2.1 — A Constituição estabelece no seu artigo 24.° que a vida humana é inviolável e que em caso algum haverá pena de morte. Se ambos os princípios estão inseridos no direito à vida (epígrafe desse artigo 24.°), a sua amplitude ou extensão conceituai é diversa porque, em termos técnico-jurídicos, as penas, mesmo a de morte, só têm sentido relativamente a pessoas criminalmente imputáveis, isto é, que, além do mais, tenham idade superior a determinado limite mínimo; '
2.2 — Assim, a «vida humana» referida no n.° l do artigo 24.° da Constituição abrangeria também a vida humana intra-uterina, que, a ser assim, estaria protegida, ao menos indirectamente, na lei fundamental, até porque esse entendimento postula um dado da ciência médica que, como tal, é aceite pelo sistema jurídico português actual, que, nessa parte, não é substancialmente diverso daquele que vigorava na altura em que a Constituição foi elaborada ou revista:
a) Quer o Código Penal anterior quer o actual, para além de estabelecerem a ilicitude do aborto, consideram-no um atentado contra a vida das pessoas, como resulta da inserção sistemática da respectiva tipificação;
b) No Código Civil os nascituros são protegidos desde o momento da concepção para diversos efeitos, designadamente na perfilhação (artigo 1855.°), na presunção da paternidade e reconhecimento (artigos 1810.°, 1822.°, 1825.° e 1847) e, sobretudo, para efeitos sucessórios (artigo 2033.°).
3 — Deste modo, pelo recurso à «unidade do sistema jurídico», como critério interpretativo (artigo 9.°, n.° 1, do Código Civil), a expressão «vida humana» usada no artigo 24.° da Constituição consagraria a tese que defende que a «vida humana começa com a fecundação» e que com a fecundação ou a concepção se gera ou surge um ser humano.
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Assim, o aborto seria, por natureza, um atentado contra o direito à vida, qualquer que seja o momento ou as circunstancias em que é praticado.
4 — Por isso, a exclusão da ilicitude do aborto, ainda que limitada aos casos e condições previstos no artigo 141.° do Código Penal, na redacção proposta, infringiría directamente o princípio da inviolabilidade da vida humana e, reflexamente, outros princípios ou normativos constitucionais, tais como:'
a) O da igualdade dos direitos dos cônjuges à manutenção dos filhos, consagrado no n.° 3 do artigo 36.°, uma vez que o texto dos novos artigos 139." e 141.° do Código Penal apenas exige o consentimento da mulher grávida;
b) O da igualdade dos valores «paternidade» e «maternidade», que, por força do artigo 57." da Lei Constitucional n.° 1/82, foram mandados inscrever como epígrafe no artigo 68.° da Constituição e consagrados como «valores sociais eminentes» no n.° 2 desse artigo 68.°;
c) O do direito à integridade pessoal, previsto no artigo 25.°, na medida em que o aborto significaria um trato cruel, degradante e desumano para a criança que é destruída e eliminada;
d) E ainda o princípio da «defesa da dignidade da pessoa humana» (artigo 1.° da Constituição), o da «realização pessoal» conferido aos membros da «família» (artigo 67.°, n.° 1), o do «desenvolvimento integral» das crianças (artigo 69.°), o da plenitude dos direitos dos que sofrem de deficiência física ou mental (artigo 71.°), etc.
O Tribunal Constitucional foi, no entanto, do entendimento de que as normas constantes do artigo 1.° do decreto n.° 41/m, da Assembleia da República, relativo à «exclusão da ilicitude em alguns casos de interrupção voluntária da gravidez», não são inconstitucionais.
Permitimo-nos citar a última parte do acórdão supra-refe-rido, que é bastante claro cjuanto às questões controvertidas:
Embora a vida uterina do nascituro e da mãe pareçam prima facie ter o mesmo conteúdo essencial — tanto que se afirma do lado da ciência não haver nenhuma' diferença qualitativa entre uma e outra —, não podemos, porém, esquecer que para o direito pode não ser assim, estando a ciência jurídica ainda longe de uma plena equiparação, não obstante alguns progressos que lentamente vão sendo alcançados.
A evolução a tal respeito não é tal que se possa falar de capacidade jurídica geral, mas apenas «restrita», do nascituro e, assim, é impossível ou, pelo menos, muito difícil organizar a defesa da vida humana que já lhe compete constitucionalmente. . O conflito dos dois bens ou valores pode ter uma solução diferente daquela que teria se o conflito se desenhasse após o nascimento. Para o demonstrar basta a tradição jurídica nacional, que, como é sabido, nunca equiparou o aborto ao homicídio. As concepções sociais dominantes vão também no mesmo sentido.
Em todo o caso, o sacrifício de uma em face da outra, embora devendo ser proporcional, adequado e necessário à salvaguarda da outra (incluindo aqui a vida e a integridade física ou físico-psíquica — artigo 25.°— da mãe), pode ser maior ou me^
nor em face da ponderação que o legislador faça no caso concreto, sempre restando, então, uma certa liberdade conformativa do legislador dificilmente controlável pelo juiz, pelo Tribunal Constitucional.
Estamos, assim, caídos, ao fim e ao cabo, com muitas ligeiras diferenças, nas soluções que a doutrina germânica tem defendido perante preceitos e princípios constitucionais idênticos, até porque neste ponto a Constituição Portuguesa, ou seja, as que em síntese ficaram referidas no capítulo v-1 e 2.
Poder-se-á objectar que aqueles requisitos — proporcionalidade, necessidade e adequação do sacrifício da vida humana intra-uterina— parecem faltar, pelo menos, no aborto eugénico e criminológico.
Aqui podem as dúvidas ser cruciantes — e são--no, mesmo para o relator.
Embora possamos admitir e compreender que malformações graves do futuro filho e mesmo uma gravidez resultante de violação possam gerar situações que se reflictam gravemente na saúde fisíco--psíquica da mulher grávida e que, então, entre a doença e a morte não irá grande distância, sérias dúvidas se poderiam suscitar quanto à verificação daqueles três requisitos (proporcionalidade, necessidade e adequação).
Em todo o caso, sempre seria de acentuar que no confronto de um valor não juridicamente subjectivado —o da vida humana intra-uterina — com outros valores juridicamente subjectivados na mulher grávida, com a natureza de direitos fundamentais, é lícito admitir a possibilidade de sacrifício daquele que não deixe de observar os aludidos três requisitos, principalmente quando tal é apenas admitido — como sucede no decreto em apreço— nas primeiras semanas de gravidez.
Como quer que seja, mesmo na constância de dúvidas insuperáveis que o relator não pode inteiramente afastar, sempre haveria de entender-se dever prevalecer a presunção de não inconstitucionalidade.
Além da fiscalização preventiva do decreto em causa, posteriormente à promulgação do Presidente da República, o Provedor de Justiça requereu a fiscalização abstracta sucessiva sobre a constitucionalidade dos artigos 140.° e \W? do Código Penal, na redacção que lhes foi dada pelo artigo 1.° da Lei n.° 6/84, de 11 de Maio, bem como dos artigos 2.° e 3.° dessa mesma lei, que excluem a ilicitude em certos casos de interrupção voluntária da gravidez.
De novo o Tribunal Constitucional se pronunciou pela constitucionalidade dessas normas.
O relator desse acórdão (Acórdão n.° 91/85, de 19 de Junho de 1985), o conselheiro Magalhães Godinho, considerou que, analisados os preceitos impugnados, designadamente o artigo 140.° do Código Penal, que define os casos de exclusão da ilicitude — perigo de morte ou para a saúde física e psíquica da mulher, previsível doença ou malformação do nascituro, gravidez resultante de violação—, forçoso é verificar que tais casos configuram situações típicas de conflito entre, por um lado, a persistência da gravidez e a correlativa garantia da vida intra-uterina e, por outro, certos direitos fundamentais da mulher grávida ou outros valores ou interesses constitucionalmente protegidos (direito à vida e à saúde, direito a uma maternidade consciente, incluindo a escolha do pai dos seus filhos).
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A exclusão da ilicitude só abrange os abortos praticados nos primeiros meses de gravidez, à excepção da alínea a) do artigo 140.°, sendo certo que não é indiferente, à luz da consciência cultural e jurídica, a fase de desenvolvimento do feto, reclamando este uma tutela tanto maior quanto mais próximo estiver o nascimento.
Alicerça-se ainda a decisão do Tribunal Constitucional numa segunda ordem de argumentos, que se prendem com o estatuto constitucional da lei e da sanção penal. Os bens ou valores constitucionalmente protegidos em geral, tenham ou não a natureza de direitos fundamentais, exigem do Estado que ele mesmo não atente contra eles e que os proteja dos atentados de outrem.
Enquanto bem constitucionalmente protegido, também a vida intra-uterina reclama, portanto, a protecção do Estado. Todavia, entre afirmar-se isso e sustentar que essa protecção tem de revestir, por força da Constituição, natureza penal, mesmo contra a mulher grávida, vai uma enorme diferença e distância, não podendo daí inferir-se que a ausência de protecção penal equivale, pura e simplesmente, a desamparo e desprotecção.
Como é lógico, o recurso a meios penais está constitucionalmente sujeito a limites bastante estritos. Constituindo as penas, em geral, na privação de sacrifícios de determinados direitos (máxime a liberdade no caso de prisão), as medidas penais só são constitucionalmente admissíveis quando sejam necessárias, adequadas e proporcionadas à protecção de determinado direito ou interesse constitucionalmente protegido (cf. artigo 18.° da CRP), e só serão constitucionalmente exigíveis quando se trate de proteger um direito ou bem constitucional de primeira importância e essa protecção não possa ser garantida de outro modo.
No caso do aborto e da garantia da vida intra-uterina, outros meios de tutela e de combate ao aborto existem que devem preceder os meios penais e cuja ausência ou insuficiência só (orna mais gravosas e desproporcionadas as normas penalizadoras.
É feliz a expressão do douto relator quando afirma nesse acórdão que, «sob um ponto de vista jurídico-constitucio-nal, a tutela penal há-de ser a última ratio das medidas culturais, económicas, sociais, sanitárias, e não um sucedâneo para a falta delas».
Assim, o Tribunal considerou que nos casos abrangidos pelas normas em discussão não é sustentável uma obrigação constitucional de penalização. As situações constantes da Jei vertente são situações de conflito de tal natureza e gravidade que não se pode defender ser apropriado ou proporcionado impor à mulher grávida, mediante instrumentos penais, que sacrifique os seus direitos ou interesses consti-tucionalmente protegidos, a favor da persistência da gravidez.
O Tribunal Constitucional não vislumbrou, assim, a existência de razões que levem a censurar, no plano jurídico--constitucional, as normas que excluem a ilicitude em certos casos de interrupção voluntária da gravidez.
A decisão não foi, no entanto, pacífica, dado que se verificaram seis votos de vencido.
Decorridos 12 anos depois da discussão quente e complexa que se verificou na Assembleia da República, aquando da apresentação de projectos do PS e do PCP, voltamos a envolver-nos em novas polémicas. Desta vez estão em causa os projectos de lei n.05 177/VTl (PCP) e 236/VTI (JS) e, em menor grau de contestação, o 235/VTI (PS), dado que
este, ao contrário dos outros dois, não propõe a IVG a livre pedido da mulher até as 12 semanas.
VI
Do enquadramento constitucional
A matéria controvertida nos projectos de diploma em apreço implica conexões com vários artigos do texto constitucional, de entre os quais se destaca o artigo 24.° da CRP, que consagra o direito à vida. Estabelece ainda o seu n.° 2 que, em caso algum, haverá pena de morte.
O direito à vida é o primeiro dos direitos fundamentais constitucionalmente enunciados. No douto entendimento de J. J. Oomes Canotilho e Vital Moreira, este direito é prioritário, dado que está na base de todos os direitos das pessoas que decorrem deste; «ao conferir-lhe uma protecção absoluta, não admitindo qualquer excepção, a Constituição erigiu o direito à vida em direito fundamental qualificado. O valor do direito à vida e a natureza absoluta da protecção constitucional traduzem-se no próprio facto de se impor, mesmo perante a suspensão constitucional dos direitos fundamentais, em caso de estado de sítio ou de estado de emergência, e na proibição de extradição de estrangeiros em risco de serem condenados a pena de morte».
A análise que se faz do artigo 24.° da CRP poderá conduzir-nos a entendimentos diferentes consoante entendamos que a vida intra-uterina compartilha da protecção que a Constituição confere à vida humana enquanto bem constitucionalmente protegido (isto é, valor constitucionalmente objectivo), mas que não pode gozar de protecção constitucional do direito à vida — que só cabe a pessoas —, podendo, portanto,' aquele ter que ceder, quando em conflito com direitos fundamentais ou com outros valores constitucionalmente protegidos; ou se formos do entendimento de que os termos «vida» e «morte» do artigo 24.° têm carácter biológico, e para a biologia a vida humana começa no zigoto. O direito à vida está indissociavelmente ligado ao facto biológico da existência humana, que constitui o pressuposto de tal direito. É lícito, por isso, afirmar que se tem direito a viver porque já se vive.
Se a CRP protege a vida do nascituro e o aceita como titular do direito à vida é porque lhe reconhece a qualidade de pessoa.
Relacionados com esta questão estão de forma reflexa envolvidos os princípios ou normativos constitucionais, tais como: artigo 36.°, n.° 3 (igualdade dos direitos dos cônjuges à manutenção dos filhos), artigo 25.° (direito à integridade pessoal), artigo 1.° (dignidade da pessoa humana), artigo 67.°, n.° 1 (realização pessoal), artigo 68.°, n.° 2 (valores sociais eminentes da maternidade e paternidade), artigo 69.° (desenvolvimento integral das crianças) e artigo 71.° (plenitude dos direitos dos que sofrem de doença física ou mental).
Vffl
Breve perspectiva de direito comparado
A presente situação relativa à IVG na Europa é bastante diversa, porquanto oscila entre a proibição absoluta do aborto, plasmada na Constituição da Irlanda, e o direito explícito de as mulheres decidirem por elas próprias, na Suécia.
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Em termos de direito comparado, a tendência tem sido, nos últimos anos, para a liberalização, e o quadro que seguidamente se traça é disso evidenciador:
IVG — Legislação europeia
"VER DIÁRIO ORIGINAL"
Em termos de direito comparado das legislações existentes nos países da União Europeia, a legislação portuguesa, em conjunto com a espanhola, é das legislações menos abrangentes, quer em relação aos prazos para a IVG quer em relação às causas de exclusão da ilicitude. Com efeito, na Bélgica, Dinamarca, França, Grécia, Itália e Holanda permite-se a IVG a pedido da mulher, sem necessidade de justificação de índole médica, eugénica, social ou ética.
Portugal deverá repensar a sua posição jurídico-penal no tocante ao aborto e os diversos grupos parlamentares deverão adoptar posições claras sobre este flagelo social.
VII
Das audições sobre a interrupção voluntária da gravidez
Decorreu nos dias 30 de Janeiro, 3, 4 e 6 de Fevereiro de 1997, na Assembleia da República, um conjunto de audições sobre a interrupção voluntária da gravidez, durante as quais alguns organismos e associações tiveram a oportunidade de manifestar as suas posições críticas face aos projectos de lei do PS e do PCP sobre a alteração ao quadro legal da IVG, que serão debatidas no próximo dia 20 de Fevereiro de 1997.
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Apresento, de seguida, algumas posições dos organismos auscultados pelas Comissões de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, de Saúde, da Juventude e da Paridade, sendo certo que nos pontos precedentes deste parecer fui revelando as recomendações de alguns desse organismos.
Organizações políticas de juventude —22 de Janeiro de 1997
Juventude Comunista Portuguesa — os representantes da JCP manifestaram-se a favor do alargamento dos prazos em relação ao aborto eugénico e defenderam a exclusão da ilicitude da IVG a simples pedido da mulher, desde que praticado até às 12 semanas. Criticaram o projecto de lei n.° 235/VJJ por ser «um projecto corporativista, feito à medida da classe médica e não da defesa das mulheres».
JC/Gerações Populares — sobre o alargamento dos prazos em relação ao aborto eugénico os representantes das Gerações Populares remeteram a questão para a opinião técnica da classe médica. Defenderam que a questão deveria ser sobre o «valor vida», e não sobre as iniciativas legislativas em análise, e classificaram a discussão que hoje decorre na sociedade portuguesa de leviana e desenquadrada.
Juventude Social-Democrata — os representantes da JSD defenderam o referendo, não querendo, por isso, emitir qualquer opinião ou posição sobre os projectos de lei em análise.
Juventude Socialista — defenderam o alargamento dos prazos do aborto eugénico na sua vertente pró-natalista e na defesa de um diagnóstico mais correcto. Defenderam a IVG se realizada até às primeiras 12 semanas como forma de defender uma maternidade consciente e o direito da mulher à saúde. Consideram a questão do aborto clandestino um grave problema de saúde pública.
Ordem dos Médicos — 30 de Janeiro de 1997 •
A Ordem dos Médicos, na pessoa do seu bastonário, manifestou-se claramente a favor do alargamento dos prazos do aborto eugénico: «O alargamento do período de diagnóstico de malformação é correcto, é difícil que essas malformações sejam precocemente detectadas.» Justificou ainda tal posição como pró-natalista, dado que com o alargamento dos prazos pode-se vir posteriormente a concluir que um feto inicialmente inviável afinal é normal.
Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida
O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida considerou que a IVG, quando realizada nas primeiras 12 semanas e a pedido de mulher fora das causas de exclusão de ilicitude, é contraria aos princípios éticos e aos que fundamentam o sistema jurídico português.
A extensão dos prazos para as causas de exclusão de ilicitude não suscita dificuldades de ordem ética, já que, a questão de fundo é a da própria interrupção da gravidez, e não a fase de vida pré-natal em que é praticada.
Não têm objecções à remoção de seres seguramente inviáveis em qua/quer fase da gestação.
Discordam da despenalização da mulher grávida que consente no abortamento fora das indicações e prazos estabelecidos na lei, dado que essa proposta ofende ainda o valor constitucional ancorado na vida pré-natal como um bem juridicamente inviolável.
Discordam da cláusula de objecção de consciência nos termos formulados pelos três projectos de lei.
Revelaram muitas reservas sobre eventuais abortos praticados em fetos portadores de doenças compatíveis com uma vida de razoável qualidade.
Direcção-Geral da Saúde —30 de Janeiro de 1997
A Direcção-Geral de Saúde reconheceu que há uma importante população portuguesa que não se reconhece na actual lei do aborto e actua à margem da lei, recorrendo ao aborto em condições deploráveis, que desfavorece quem não tem acesso aos cuidados médicos em condições aceitáveis. Não possuem dados fiáveis, estimando-se que são praticados 22 000 abortos por ano (20% dos 110 000 nascimentos).
Os hospitais portugueses registaram 7875 internamentos hospitalares devido aos mais diversos tipos de IVG em 1995. 3056 foram considerados não especificados (provavelmente ilegais), 4283 foram abortos espontâneos, 168 ilegais e 268 legais.
Alta-Comissária para as Questões da Promoção da Igualdade e da Família —3 de Fevereiro e 1997
A alta-comissária manifestou-se claramente pelo alargamento do prazo para 24 semanas «nos casos de fetos incompatíveis com a vida» e «quando está em causa a saúde psíquica da mulhen>. Afirmou ainda que não se liberaliza completamente o aborto só quando afecta a saúde psíquica da mulher.
Defendeu, por outro lado, a urgente necessidade de um estatuto para os médicos objectores de consciência. Com efeito, muitas mulheres recorrem aos hospitais para ali efectuarem uma IVG legal e deparam-se com o facto de todos os médicos presentes serem objectores de consciência.
Associação de Juristas Católicos — 3 de Fevereiro de 1997
A Associação de Juristas Católicos foi também manifestamente contra os projectos de lei em apreciação e contra a fundamentação da objecção de consciência.
Associação de Médicos Católicos 3 de Fevereiro de 1997
Os médicos católicos recusam que o direito ao aborto se sobreponha ao seu direito à objecção de consciência, considerando este um direito fundamental. Entendem que a subalternização da objecção de consciência não tem legitimidade numa sociedade democrática.
Há múltiplas técnicas de DPN aplicáveis em fase diversa da gravidez e o próprio diagnóstico genético é tecnicamente exequível antes das 16 semanas em serviços habilitados.
A infecção por VTH não é razão para abortar, dado que a percentagem de recém-nascidos atingidos pela doença é de 13% a 20% e que a terapêutica com AZT, já comum em maternidades portuguesas, justifica uma expectativa realista de redução adicional, favorecida também pelo advento previsível de novos fármacos.
Conferência Episcopal — 3 de Fevereiro de 1997
O padre Feytor Pinto e a ginecologista Isabel Miranda; em representação da Conferência Episcopal, pronunciaram-
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-se contra a prática do aborto e pelo direito à vida, que para a Igreja Católica se inicia no momento da concepção.
Manifestaram-se igualmente contra um referendo ao aborto: «A Igreja não aceita nenhum sociologismo ético e, para além disso, diz não ao referendo.» Há valores que não devem ser referendados e a vida é um deles.
A ginecologista defendeu a ecografia endovaginal, que permite detectar quase todas as anomalias até às 12/13 semanas. Após as 16 semanas, entende que não há alterações significativas no embrião.
Associação Portuguesa de Diagnóstico Pré-Natal
Defendem o alargamento do prazo para as 24 semanas por razões de saúde do feto ou da grávida, já que os actuais prazos são insuficientes para se diagnosticarem anomalias nos embriões. Alertaram ainda para a urgência de se criar um estatuto para o médico objector.
São da opinião que se o projecto de lei do Deputado Strecht Monteiro não for aprovado isso trará como consequência a continuação dos abortos clandestinos e os fluxos de grávidas para clínicas estrangeiras.
Associação para o Planeamento Familiar 3 de Fevereiro de 1997
Os representantes da Associação para o Planeamento Familiar esperam que «desta vez haja a coragem de enfrentar o problema do aborto ilegal e inseguro existente em Portugal».
Defenderam a necessidade de serem melhorados os cuidados de planeamento familiar e recomendaram a educação sexual nas escolas portuguesas.
A Associação para o Planeamento Familiar recomenda: IVG por malformação do feto — alargamento até às 22 semanas; causas psico-sociais — despenalização alargada a este tipo de causas, à semelhança do existente na União Europeia; IVG por violação — alargamento para as 22 semanas no caso de violação ou crime contra a autodeterminação sexual; ênfase na informação e planeamento.
Comissão para a Igualdade e Direitos das Mulheres 3 de Fevereiro de 1997
A Comissão para a Igualdade e Direitos das Mulheres colocou sérias dúvidas sobre a oportunidade de um referendo sobre o aborto, que,' por ser uma questão de consciência, nunca poderá ser consensual.
Manifestou ainda alguma preocupação pelo facto de a lei não estar a ser aplicada quando são evocadas pelas mulheres razões de ordem psíquica para pedir a IVG.
Defendem o alargamento dos prazos por permitirem não só mais rigor médico no diagnóstico como mais tempo de reflexão e de amadurecimento da decisão de interromper a gravidez. Pugnam por uma melhor adequação dos estabelecimentos de saúde, e quanto à objecção de consciência do direito da mulher grávida entendem que não pode constituir um impedimento à concretização do direito da mulher grávida que preencha os requisitos legais de acesso à IVG.
Defendem que o direito à maternidade consciente está a ser violado e que cabe ao Estado assegurar a maternidade e não impor a função reprodutiva baseada em quebras de natalidade.
Associação O Ninho — 4 de Fevereiro de 1997
Não é suficiente a alteração da lei do aborto. Há que reformular também a prevenção da gravidez indesejada no caso das prostitutas. Manifestam-se favoráveis à liberalizarão da IVG.
Departamento de Mulheres da CGTP-IN 4 de Fevereiro de 1997
São a favor do aborto a pedido.
Frisaram que são as mulheres com menos recursos as principais vítimas do aborto ilegal: «É importante não fechar os olhos à realidade e optar por uma solução que permita erradicar o aborto clandestino de Portugal.» O referendo não é, para a CGTP, uma solução mas um mero adiamento do problema.
Prof. Agostinho Santos —6 de Fevereiro de 1997
Defende a utilização da ecografia transvaginal como método de detecção precoce de malformação congénita, que pode ser detectada às 12-14 semanas.
Todos estes contributos trouxeram mais-valia à Assembleia da República e permitirão que os Deputados, aquando do debate de 20 de Fevereiro de 1997, estejam munidos de todos os dados científicos, sociais, económicos, motivações éticas e religiosas, que lhes permitirão decidir em plena consciência sobre uma questão sempre polémica e sempre actual.
Parecer
A Comissão de Juventude entende que os projectos de lei n.os 177/Vn, 235/VU e 236/VJJ. preenchem os requisitos constitucionais e regimentais, pelo que estão em condições de subir a Plenário e ser apreciados na generalidade.
Assembleia da República, 19 de Fevereiro de 1997. — O Deputado Relator, Luís Pedro Martins. — O Presidente da Comissão, Miguel Relvas.
Nota. — O relatório e o parecer foram aprovados por unanimidade.
Relatórios de audição
Aos 22 dias do mês de Janeiro de 1997, na sala n.° 250-G, a Comissão de Juventude procedeu à audição da ECOLOJOVEM, JCP, JC-Gerações Populares, JSD e JS, com a presença dos Srs. Deputados constantes do respectivo livro de presenças.
Esta audição enquadra-se no conjunto de audições a realizar por esta Comissão no âmbito da discussão dos projectos de lei n.** 177/VD (PCP), 235/VJJ (PS — Strecht Monteiro e outros) e 236/VTJ (PS — Sérgio Sousa Pinto e outros) sobre a interrupção voluntária da gravidez.
A ECOLOJOVEM, representada por Cláudia Oliveira e Rui Pedro Vilarinho, começou por saudar a iniciativa do PCP, ao despoletar a discussão sobre a matéria. Defenàeu o alargamento, quer dos prazos, quer das causas para a prática do aborto, defendendo que a actual lei tem consequências gravíssimas, dado que há muito aborto clandestino.
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Referindo-se aos projectos, consideraram o projecto do PCP o melhor, sendo o da JS muito semelhante. Quanto ao outro projecto, foi considerado muito limitativo, fazendo uma abordagem meramente científica da questão.
Intervirem, para solicitar esclarecimentos, os Srs. Deputados Bernardino Soares (PCP) e Sérgio Vieira (PSD), tendo os dirigentes da ECOLOJOVEM respondido as questões levantadas.
De seguida foi ouvida a Juventude Comunista Portuguesa, que leu uma declaração sobre o tema, que se anexa. Esta organização defendeu o projecto do PCP, justificando o alargamento dos prazos para o aborto eugénico e o aborto livre até às 12 semanas e criticando o PSD por pretender fazer um referendo sobre a matéria, o que classificaram como manobra de diversão.
Solicitaram esclarecimentos os Srs. Deputados Afonso Candal (PS), Heloísa Apolónia (Os Verdes) e Hermínio Loureiro (PSD), que foram respondidos pelos membros da JCP, que defenderam ainda a necessidade de o País assumir a saúde como uma prioridade.
Seguidamente foram ouvidos os dirigentes da JC-Gera-ções Populares João Almeida e Henrique Burnay, que começaram por realçar que, nesta discussão, o mais relevante é o valor vida, discordando dos três projectos dé lei, manifestando ainda a sua discordância sobre a ideia de referendo nesta matéria.
Foram feitos pedidos de esclarecimento pelos Srs. Deputados Bernardino Soares, Afonso Candal, Ricardo Castanheira (PS), Nuno Correia da Silva (CDS-PP) e Luís Pedro Martins (PS).
Posteriormente, foi ouvida a Juventude Social-Democra-ta, representada por Jorge Moreira da Silva e Miguel Goulão, que defenderam o referendo sobre a proposta de aborto livre. Quanto ao alargamento de prazos do aborto eugénico, entenderam que a Assembleia da República o poderá fazer, se houver razões médicas para tal.
Pediram esclarecimentos os Srs. Deputados Afonso Candal, Ricardo Castanheira, Luís Pedro Martins, Nuno Correia da Silva e Bernardino Soares.
Finalmente, foi ouvido o secretário-geral da Juventude Socialista, Sérgio Sousa Pinto, que começou por dizer que o essencial das suas posições está no projecto subscrito por vários Deputados do PS, não só pela JS.
Sumariou essas posições com a defesa do aborto livre até às 12 semanas, por razões como as da dignidade social, da maternidade consciente e do direito da mulher à saúde. Defendeu ainda o alargamento dos prazos do aborto eugénico, dado que há muitos casos em que há mal formações que se resolvem após os prazos actuais.
Pediram esclarecimentos os Srs. Deputados Bernardino Soares e Hermínio Loureiro.
O Sr. Presidente solicitou a todas as organizações presentes na audição que remetessem (caso entendessem) as suas posições por escrito, com o objectivo de as publicar no fim dos trabalhos de discussão dos projectos existentes sobre este assunto.
Nada mais havendo a tratar, o Sr. Presidente deu a audição por encerrada pelas 13 horas e 45 minutos.
Aos 12 dias do mês de Fevereiro dè 1997, pelas 10 horas, na sala n." 250-D, a Comissão de Juventude procedeu à audição da Interjovem e da Comissão de Juventude da
UGT, com a presença dos Srs. Deputados constantes do respectivo livro de presenças.
Esta audição enquadra-se no conjunto de audições a realizar por esta Comissão no âmbito da discussão dos projectos de lei n.05 177/VTJ (PCP), 235/VTJ (PS — Strecht Monteiro e outros) e 236/VU (PS — Sérgio Sousa Pinto e outros) sobre a interrupção voluntária da gravidez.
A Interjovem, organização de juventude da CGTP-Intersindical, defendeu o aborto livre até às 12 semanas, entendendo não se dever pronunciar sobre a extensão às 24 semanas do aborto eugénico, uma vez que, sob esse ponto de vista, só os técnicos de saúde poderão dar a sua opinião. Foi defendido, no âmbito da prevenção destas situações, um maior envolvimento das associações de pais na escola.
Solicitaram esclarecimentos o Sr. Deputado Bernardino Soares (PCP) e o Sr. Presidente da Comissão, Deputado Miguel Relvas.
De seguida foi ouvida a Comissão de Juventude da UGT, que, enquanto organização sindical, entendeu não tomar qualquer posição oficial sobre o assunto, uma vez que se eritendeu ser uma questão em que cada um deverá ter a sua posição individualmente.
Solicitaram esclarecimentos os Srs. Deputados João Moura de Sá (PSD) e Bernardino Soares (PCP).
Ambas as organizações presentes foram informadas que, caso o entendessem, poderiam trazer documento em que expressassem a sua opinião sobre o assunto, com o objectivo de o publicai no fim dos trabalhos de discussão dos projectos existentes sobre este assunto.
O Sr. Prof. Júlio Machado Vaz, na impossibilidade de estar presente, remeteu à Comissão uma carta em que recorda a sua tese de doutoramento, que concluiu pela «realidade penosa da liberalizarão ilegal» do aborto.
Nada mais havendo a tratar, o Sr. Presidente deu a audição por encerrada pelas 11 horas.
O Presidente da Comissão, Miguei Relvas.
PROJECTO DE LEI N.º 277/VII
ALTERAÇÃO DOS LIMITES DA FREGUESIA DE SANTA . LUZIA, NO CONCELHO DE TAVIRA
A freguesia de Santa Luzia, no concelho de Tavira, criada em 1984 pela Lei n.° 54/84, de 31 de Dezembro, por eventual lapso no texto da sua delimitação, viu-se privada de praias no seu território, quando estas lhe são adjacentes à sua sede, do outro lado do canal.
Assim, ao abrigo das disposições constitucionais e regimentais em vigor, o Deputado do Grupo Parlamentar do PSD apresenta o seguinte projecto de lei:
Artigo único. — 1 — Os limites da freguesia de Santa Luzia, a sul, ficarão compreendidos pelo oceano Atlântico, entre a Terra Estreita e o'Barril, confinantes com as freguesias de Santa Maria e Luz, respectivamente.
2 — Os restantes limites são os que constam da Lei n.° 54/84, de 31 de Dezembro.
Palácio de São Bento, 12 de Fevereiro de 1997.— O Deputado, do PSD, Macário Correia.
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PROJECTO DE LEI N.º 278/VII
CRIA 0 SISTEMA DE INFORMAÇÃO PARA A TRANSPARÊNCIA DOS ACTOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA (SITAAP) E REFORÇA OS MECANISMOS DE TRANSPARÊNCIA PREVISTOS NA LEI • 26/94, DE 19 DE AGOSTO.
Exposição de motivos
1 — É hoje irrecusável a importância da utilização de novas tecnologias de informação para colher, tratar e disseminar dados relativos a actividades da Administração Pública e cuja publicidade se revista de especial relevância.
Com efeito, as inovações ocorridas no mundo da informática e das telecomunicações vieram tornar possível, fácil e económico o tratamento e acessibilização de vastas quantidades de informação sobre actos cujo conhecimento público não só representa uma importante contribuição para a realização dos objectivos de acompanhamento pelos cidadãos da actividade dos órgãos representativos que elegem como constitui condição de exercício de direitos de partiéi-pação e acção (incluindo uma acção popular redimensionada em função dos desafios decorrentes do crescimento do papel do Estado na atribuição de vantagens a particulares). Não sobram dúvidas quanto ao carácter crucial de tais medidas para o reforço da moralidade administrativa e para a defesa da legalidade democrática.
É certo que muitos desses dados são hoje acessíveis em suportes tradicionais, sendo possível compilá-los e submetê--los a diversas formas de tratamento e disseminação. Importa, porém, dar um impulso decisivo ao uso de meios informáticos e telemáticos para tratar e disseminar a massa de informação assim obtida e alargar o número de actos cuja publicidade ampla é obrigatória.
2 — Embora Portugal não disponha de serviços telemáticos com a popularidade e uso generalizado de que goza em França o Minitel e só recentemente se assista à um crescendo de interesse do público e dos operadores pela universalização do acesso a redes electrónicas como a Internet, a actual infra-estrutura nacional de informação faculta já o quadro técnico necessário para mudarmos radicalmente os termos em que se efectua a transparência da vida administrativa e o funcionamento dos mercados (onde é crucial a cog-noscibilidade, em tempo real, das formas de relacionamento entre particulares e o Estado).
Nada impede, de facto, entre nós a criação de um sistema, amplamente descentralizado, de informação que permita conhecer, estudar e avaliar, no tocante à Administração Pública, decisões, actividades e actos cuja prática releva especialmente numa óptica de moralidade administrativa: actos que adjudiquem empreitadas, fornecimento de bens e serviços, concessão de exclusivos, obras e serviços públicos, subsídios, subvenções, ajudas, incentivos, donativos, bonificações, isenções e outros benefícios fiscais, perdões e dilações de dívidas, indemnizações cujo valor não tenha sido fixado judicialmente ou outros benefícios equivalentes, doações de bens públicos (do Estado, das Regiões Autónomas ou das autarquias locais) a entidades privadas, actos de licenciamento de loteamentos urbanos, empreendimentos turísticos e centros comerciais e a atribuição de habitação social.
3 — A criação de um sistema de informação para a transparência dos actos da Administração Pública, proposta pelo PS na VI Legislatura e depois incluída no Programa do XHJ Govemo Constitucional, visa colocar nas mãos das institui-
ções e dos cidadãos (e das próprias empresas empenhadas na garantia de uma genuína concorrência) um poderoso instrumento capaz de permitir a qualquer interessado, de forma quase instantânea e com recurso a instrumentos simples, respostas fiáveis a múltiplas perguntas reveladoras da forma como a Administração decide e sobre o universo de entidades que beneficiam ou são lesadas por essas decisões.
Na era da revolução digital o espectro sombrio do Big Brother (cuja força temível decorria da posse de informação privilegiada e secreta contra os cidadãos) só é conjurável, como o PS propõe, pela criação de sistemas abertos à intervenção cívica e sujeitos a eficaz controlo democrático. Por isso, o projecto do PS assegura que dos suportes de informação dos ficheiros dos SITTAP não constem quaisquer dados de natureza opinativa, bem como informações cuja recolha seja constitucional ou legalmente vedada. Prevê-se, igualmente, que a fiscalização da organização e funcionamento do sistema, bem como o direito de rectificação pelos interessados das informações nele contidas, se regulem pelo disposto na Lei n.° 10/91, de 29 de Abril, designadamente na parte relativa às competências de controlo por parte da Comissão Nacional de Protecção de Dados Pessoais Informatizados.
4 — Extraindo lições da vigência da Lei n.° 26/94, de 19 de Agosto (que regulamenta a obrigatoriedade de publicitação dos benefícios concedidos pela Administração Pública a particulares), adiantam-se na versão do projecto agora apresentado duas medidas complementares e pontuais de reforço da transparência administrativa: a primeira ampua os meios de divulgação dos actos de concessão de benefícios, atenta a importância dos municípios para realizar os objectivos legais; a segunda garante o melhor conhecimento de quem são os responsáveis técnicos de projectos candidatos a financiamento.
Nestes termos, ao abrigo das disposições constitucionais e regimentais aplicáveis, os Deputados abaixo assinados, do Grupo Parlamentar do PS, apresentam o seguinte projecto de lei:
Artigo 1." Criação
1 — É criado o Sistema de Informação para a Transparência dos Actos da Administração Pública (SITAAP).
2 — O SITAAP assenta no funcionamento descentralizado de um conjunto de bases de dados distribuídas, cuja criação será gradualmente assegurada pelas entidades legalmente previstas.
Artigo 2." Objectivos
1 — O SITAAP tem por objectivo a recolha, tratamento e divulgação de dados nominativos e estatísticas sobre os seguintes actos da administração pública central, regional e local:
a) Que adjudiquem empreitadas, fornecimento de bens e serviços, concessão de exclusivos, obras e serviços públicos;
b) Que concedam a entidades privadas subsídios, subvenções, ajudas, incentivos, donativos, bonificações, isenções e outros benefícios fiscais, perdões e dilações de dívidas, indemnizações cujo valor não tenha sido fixado judicialmente ou outros benefícios equivalentes;
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c) Que aprovem doações de bens do Estado, das Regiões Autónomas ou das autarquías locais a entidades privadas;
d) De licenciamento de loteamentos urbanos, empreendimentos turísticos e centros comerciais;
e) De atribuição de casas no ámbito de programas de habitação social.
2 — A legislação regulamentar da presente lei define as prioridades necessárias à gradual criação das estruturas necessárias à execução do disposto no número anterior.
Artigo 3.° Acessibilidade
Serão asseguradas, designadamente junto dos operadores de telecomunicações, as medidas técnicas necessárias para que as bases de dados que integram o SITAAP sejam acessíveis telemáticamente a partir de qualquer ponto do território nacional, em condições de igualdade, por forma a propiciar a qualquer interessado a simplicidade da consulta e a livre utilização dos dados assim divulgados.
Artigo 4.° Garantias e fiscalização
1 — Dos suportes de informação dos ficheiros do SITAAP não podem constar quaisquer dados de natureza opinativa, bem como informações cuja recolha seja constitucionalmente ou legalmente vedada.
2 — A fiscalização da organização e o funcionamento do SITAAP, bem como o direito de rectificação pelos interessados das informações nele contidas, regem-se pelo disposto na Lei n.° 10/91, de 29 de Abril, designadamente na parte relativa às competências de controlo por parte da Comissão Nacional de Protecção de Dados Pessoais Informatizados.
Artigo 5." Dever de cooperação
Todas as autoridades públicas têm o dever de cooperação com o SITAAP com vista à recolha e actualização dos elementos de informação necessários à realização do previsto na presente lei, devendo ser incentivado e organizado o uso de sistemas- padrão de estruturação e comunicação regular de dados e assegurada a respectiva transmissão telemática.
Artigo 6.° Reforço de deveres de transparência
1 — Dos benefícios concedidos pela Administração Pública a particulares nos termos da Lei n.° 26/94, de 19 de Agosto, será dado conhecimento aos municípios onde tenham domicílio profissional os respectivos beneficiários para divulgação em locais acessíveis à consulta pública.
2 — Os projectos de candidaturas à atribuição de subsídios do Estado Português a actividades económicas devem identificar, para além do candidato, o responsável técnico pc\a respectiva elaboração.
Artigo 7.°
Regulamentação
1 — O Governo regulará as condições da aplicação da presente lei, nomeadamente especificando os tipos de actos abrangidos e osjimiares acima dos quais a publicitação é obrigatória, quando tal não decorra de outras disposições legais.
2 — O Governo definirá igualmente as prioridades na criação das bases de dados distribuídas que integram o SITAAP, bem como a respectiva inserção orgânica e os meios técnicos e financeiros necessários à sua entrada em funcionamento.
Artigo 8.° Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor nos termos do artigo 170.°, n.° 2, da Constituição.
Assembleia da República, 19 de Fevereiro de 1997.— Os Deputados do PS: Jorge Lacão^ Artur Penedos — José Magalhães — António Braga.
PROPOSTA DE LEI N.9 70/VII
ESTENDE ÀS COOPERATIVAS DE SOLIDARIEDADE SOCIAL OS DIREITOS, DEVERES E BENEFÍCIOS DAS INSTITUIÇÕES PARTICULARES DE SOLIDARIEDADE SOCIAL.
Os objectivos previstos no artigo 1." do Decreto-Lei n.° 119/83, de 25 de Fevereiro, têm sido. prosseguidos por pessoas colectivas de direito privado nas suas formas de associação, fundações e cooperativas de solidariedade social.
O Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social não abrange actualmente as cooperativas de solidariedade social, mesmo quando prosseguem exactamente os mesmos objectivos.
Esta diferenciação de estatuto tem resultado numa discriminação negativa das CSS, nomeadamente no seu tratamento fiscal.
Assim, nos termos da alínea d) do n.° 1 do artigo 200." da Constituição, o Governo apresenta à Assembleia da República a seguinte proposta de lei:
Artigo único. As cooperativas de solidariedade social que prossigam os objectivos previstos no artigo 1." do Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 119/83, de 25 de Fevereiro, e que sejam reconhecidas nessa qualidade pela Direcção-Ge-ral de Acção Social, são equiparadas às instituições particulares de solidariedade social, aplicando-se-lhes o mesmo estatuto de direitos, deveres e benefícios, designadamente fiscais.
Visto e aprovado, em Conselho de Ministros, de 23 de Janeiro de 1997. — O Primeiro-Ministro, António Manuel de Oliveira Guterres. — O Ministro das Finanças, António Luciano Pacheco de Sousa Franco. — O Ministro da Educação, Eduardo Carrega Marçal Grilo. — O Ministro da Solidariedade e Segurança Social, Eduardo Luís Barreto Ferro Rodrigues.
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PROPOSTA DE LEI N.º 71/VII
APROVA 0 REGIME DISCIPLINAR DAS FEDERAÇÕES DESPORTIVAS
Exposição de motivos
0 regime jurídico das federações desportivas titulares do estatuto de utilidade pública desportiva, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 144/93, de 26 de Abril, determina que as federações desportivas titulares de tal estatuto devam dispor de regulamentos disciplinares e adoptar medidas de defesa da ética desportiva, designadamente nos domínios da prevenção e da punição da violência associada ao desporto, da dopagem e da corrupção no fenómeno desportivo. t
No âmbito disciplinar assumem particular relevância todas as acções praticadas pelos diversos agentes desportivos violadoras de normas básicas da ética desportiva. O desporto sem dimensão ética é a negação do próprio desporto, até pela repercussão que tais atitudes possam vir a ter sobre a população em geral e os desportistas em particular.
Importa, assim, para além de fixar um conjunto de princípios a que deva obedecer o regime disciplinar federativo, estabelecer sanções adequadas para as mais graves violações das normas básicas de convivência desportiva, mormente as que visam assegurar o fair-play e o jogo limpo.
Assim, nos termos da alínea d) do n.° 1 do artigo 200." da Constituição, o Governo apresenta à Assembleia da República a seguinte proposta de lei:
Artigo 1.°
Regulamentos disciplinares
1 — As federações desportivas titulares do estatuto de utilidade pública desportiva devem dispor de regulamentos disciplinares com vista a sancionar a violação das regras de jogo ou da competição, bem como as demais regras desportivas, nomeadamente as relativas à ética desportiva.
2 — Para efeitos do presente diploma são consideradas normas de defesa da ética desportiva as que visam sancionar a violência, a dopagem ou a corrupção, bem como todas as manifestações de perversão do fenómeno desportivo.
3 — As federações desportivas deverão adaptar ou fazer adaptar os respectivos regulamentos disciplinares às normas constantes do presente diploma no prazo de 90 dias.
4 — Para efeitos do número anterior, deverão as federações desportivas enviar ao Instituto do Desporto, até ao termo desse prazo, os referidos regulamentos, a fim de ser verificado a sua conformidade com o disposto neste diploma.
Artigo 2.° Princípios gerais
O regime disciplinar deve prever, designadamente, as seguintes matérias:
d) Tipificação das infracções como leves, graves e muito graves e determinação das correspondentes sanções;
b) Sujeição aos princípios da igualdade, irretroac-tividade e proporcionalidade da aplicação de sanções;
c) Exclusão das penas de irradiação ou de duração indeterminada;
d) Enumeração das causas ou circunstâncias que eximam, atenuem ou agravem a responsabilidade do infractor, bem como os requisitos da extinção desta;
e) Exigência de processo disciplinar para a aplicação de sanções quando estejam em causa infracções qualificadas como muito graves e, em qualquer caso, quando a sanção a aplicar determine a suspensão de actividade por um período superior a um mês;
f) Consagração das garantias de defesa do arguido, designadamente exigindo que a acusação seja suficientemente esclarecedora dos factos determinantes do exercício do poder disciplinar e estabelecendo a obrigatoriedade de audiência do arguido nos casos em que seja necessária a instauração de processo disciplinar;
g) Garantia de recurso, seja ou não obrigatória a instauração de processo disciplinar.
Artigo 3.°
Âmbito do poder disciplinar
1 — No âmbito desportivo, o poder disciplinar das federações dotadas de utilidade pública desportiva exerce-se sobre os clubes, dirigentes, praticantes,'treinadores, técnicos, árbitros, juízes e, em geral, sobre todos os agentes desportivos que desenvolvam a actividade desportiva compreendida no seu objecto estatutário, nos termos do respectivo regime disciplinar.
2 — Os agentes desportivos que forem punidos com a pena de inabilitação para o exercício de funções desportivas ou dirigentes por uma federação desportiva não poderão exercer tais funções em qualquer outra federação desportiva durante o prazo de duração da pena.
Artigo 4.° Responsabilidade disciplinar
O regime da responsabilidade disciplinar é independente da responsabilidade civil ou penal.
Artigo 5.° Condenações em processo penal
Os agentes desportivos que forem condenados criminalmente por actos que, simultaneamente, constituam violações das normas de defesa da ética desportiva ficarão inibidos, quando a decisão judicial condenatória o determinar, de exercer quaisquer cargos ou funções desportivas por um período a fixar entre 2 e 10 anos.
Artigo 6." Participação obrigatória
Se a infracção revestir carácter contra-ordenacional ou criminal o órgão disciplinar competente deve dar conhecimento do facto às entidades competentes.
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Artigo 7.°
Inabilitação para o exercício de cargos ou funções desportivas
1 — Os árbitros ou juízes, os membros dos conselhos ou comissões de arbitragem é os titulares dos órgãos das respectivas associações de classe que solicitem ou aceitem, para si ou para terceiros, directa ou indirectamente, quaisquer presentes, empréstimos, vantagens ou, em geral, quaisquer ofertas susceptíveis, pela sua natureza ou valor, de porem em causa a credibilidade das funções que exercem serão punidos pelo órgão disciplinar respectivo com a pena de suspensão do exercício de todas as funções desportivas ou dirigentes por um período a fixar entre 2 e 10 anos.
2 — Os dirigentes e os demais agentes desportivos contra os quais se prove que participaram ou que declarem ter •participado em actos de corrupção da arbitragem serão punidos pelo órgão disciplinar respectivo com a pena de suspensão de todas as funções desportivas ou dirigentes por um período a fixar entre 2 e 10 anos.
Artigo 8.° Proibição de exercício de certas actividades
1 — Nas federações no âmbito das quais se disputem competições de natureza profissional os árbitros ou juízes, os membros dos conselhos ou comissões de arbitragem e os titulares dos órgãos das respectivas associações de classe não podem:
a) Realizar negócios com clubes ou outras pessoas colectivas que integrem a federação em cujo âmbito actuam;
b) Ser gerentes ou administradores de empresas que realizem negócios com as entidades referidas na alínea anterior ou deter nessas empresas participação social superior a 10% do capital;
c) Desempenhar quaisquer funções em empresas nas quais os dirigentes dos clubes detenham posições relevantes.
2 — As infracções ao disposto neste artigo serão punidas pelo órgão disciplinar respectivo com a pena de suspensão do exercício de todas as funções desportivas ou dirigentes por um período a fixar entre 2 e 10 anos.
Artigo 9.° Registo de interesses
1 —As federações desportivas no seio das quais se realizem competições de natureza profissional devem organizar um registo de interesses relativamente aos árbitros e aos demais titulares dos órgãos dirigentes da arbitragem.
2 — O registo de interesses consiste na inscrição, em livro próprio, do património dos agentes desportivos que exercem funções na arbitragem, bem como de todas as situações profissionais e patrimoniais relevantes para efeitos do disposto no artigo anterior, e deverá ser actualizado pelos interessados no início e no final de cada época desportiva, nos íermos a fixar em regulamento federativo.
3 — Os árbitros abrangidos pelas normas constantes deste artigo são os que actuam nos quadros competitivos nacionais das federações referidas no n.° 1.
4 — O registo não é público, podendo ser consultado por todos os titulares dos órgãos federativos com competências disciplinares.
5 — A verificação de omissões, falsidades ou inexactidões nos dados inscritos será sancionada com a pena de suspensão de todas as funções desportivas ou dirigentes por um período a fixar entre um e cinco anos.
Artigo 10.° Sanções nas competições de natureza profissional
1 — Sem prejuízo do disposto no artigo 7.°, no âmbito das competições de natureza profissional, as infracções à ética desportiva serão sancionadas de acordo com a seguinte escala de penas:
a) Multa de 500 000$ a 5 000 000$;
b) Inabilitação para o exercício de cargos ou funções desportivas ou dirigentes entre 1 e 10 anos, com agravamento para o dobro em caso de reincidência;
c) Perda de pontos ou de lugares na ordem classificativa do campeonato;
d) Descida de divisão;
é) Exclusão da competição profissional, por um período não superior a cinco épocas.
2 — As penas referidas nas alíneas a) e b) do número anterior podem ser aplicadas aos agentes desportivos envolvidos cumulativamente com as penas referidas nas restantes alíneas.
Artigo 11.° Competência disciplinar
Os órgãos disciplinares federativos terão sempre competência para investigar e punir as infracções ao disposto no artigo 7.°, ainda que as mesmas ocorram no âmbito das competições de natureza profissional.
Artigo 12.° Reincidência e acumulação de infracções
Para efeitos disciplinares os conceitos de reincidência e de acumulação de infracções serão idênticos aos constantes no Código Penal.
Artigo 13.° Norma revogatória
É revogado o artigo 22.° do Decreto-Lei n.° 144/93, de 26 de Abril.
Visto e aprovado em Conselho de Ministros de 23 de Janeiro de 1997.—O Primeiro-Ministro, António Manuel de Oliveira Guterres. — O Ministro da Presidência, António Manuel de Carvalho Ferreira Vitorino. — O Ministro da Justiça, José Eduardo Vera Cruz Jardim. — O Ministro Adjunto, Jorge Paulo Sacadura Almeida Coelho.
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PROPOSTA DE RESOLUÇÃO N.º 31/VII
(APROVA, PARA RATIFICAÇÃO, A CONVENÇÃO, ESTABELECIDA COM BASE NO ARTIGO O DO TRATADO DA UNIÃO EUROPEIA, RELATIVA AO PROCESSO SIMPLIFICADO DE EXTRADIÇÃO ENTRE OS ESTADOS MEMBROS DA UNIÃO EUROPEIA, ASSINADA EM BRUXELAS EM 10 DE MAIO DE 1995:)
Relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias
Relatório
Pela Resolução n.° 23/89, a Assembleia da República aprovou, para ratificação, a Convenção Europeia de Extradição, assinada em Estrasburgo, em 27 de Abril de 1977, e os seus dois protocolos adicionais, assinados também em Estrasburgo, em 27 de Abril de 1977 e em 27 de Abril de 1978.
O Governo apresentou agora à Assembleia da República a proposta de resolução n.° 31/VTI, que visa a aprovação, para ratificação, da Convenção, estabelecida com base no artigo K-3 do Tratado da União Europeia, Relativa ao Processo Simplificado de Extradição entre os Estados Membros da União Europeia.
O artigo K-3 insere-se no título vi do Tratado da União Europeia, «Disposições relativas à cooperação no domínio da justiça e dos assuntos internos».
Analisando a Convenção
O texto da Convenção acordado entre as Altas Partes Contratantes, Estados membros da União Europeia, partiu:
Da expressão de um desejo de melhorar a cooperação judiciária em matéria penal entre os Estados membros, tanto no que diz respeito ao exercício da acção penal como à execução das decisões condenatórias;
Do reconhecimento da importância atribuída à extradição no âmbito da cooperação judiciária para a realização daqueles objectivos;
Da convicção de uma necessidade de simplificar o processo de extradição, sem prejuízo tanto dos princípios fundamentais da direito nacional de cada Estado membro como dos princípios da Convenção Europeia de Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais;
Da constatação de que, em número muito elevado de processos de extradição, a pessoa reclamada consente na entrega imediata ao Estado requerente, renunciando ao processo judicial de extradição;
Da consideração de que, verificando-se esse consentimento, é desejável a redução do tempo necessário à extradição, bem como de qualquer período de detenção para o efeito.
Procurou-se, em conformidade, facilitar a aplicação da Convenção Europeia de Extradição, de 13 de Dezembro de 1957, simplificando e melhorando o processo de extradição, sem embargo de se esclarecer e acentuar que «as disposições da Convenção Europeia de Extradição continuam a ser aplicadas em todas as questões que não sejam tratadas na presente Convenção».
Mérito da Convenção
O texto da Convenção contém 17 artigos, que vão ser objecto de uma análise e apreciação necessariamente breves e perfunctórias.
Artigo 1", «Disposições gerais» — no seu n.° 1 enuncia o propósito de facilitar a aplicação da Convenção Europeia de Extradição e de complementar as suas disposições; no seu n.° 2 salvaguarda a aplicação de disposições mais favoráveis dos acordos bilaterais ou multilaterais em vigor entre os Estados membros. A Convenção Europeia de Extradição revogou, no que respeita aos territórios a que se aplica, os tratados, convenções ou acordos bilaterais que, entre as duas Partes Contratantes, regulassem a matéria de extradição, mas permitiu que as Partes Contratantes concluíssem entre si acordos bilaterais ou multilaterais para completar as disposições da Convenção ou para facilitar a aplicação dos prin- * cípios nela contidos.
É neste contexto, e no âmbito do espírito de simplifica-. ção, que se insere a ressalva do n.° 2.
Artigo 2.°, «Obrigação de entrega» — consigna a obri-^ gação de entregar as pessoas procuradas para efeitos de extradição, desde que haja o consentimento dessas pessoas e o acordo do Estado requerido.
Artigos 3.° a 7.° — reportam-se, especialmente, às regras do procedimento simplificado de extradição, do qual se destacam:
Suficiência de um certo número de informações a prestar pelo Estado requerente, sem prejuízo de o Estado requerido poder solicitar outras complementares;
Enumeração das formalidades a observar na obtenção do consentimento da pessoa a extraditar e da renúncia expressa ao benefício da regra da especialidade, em vista a proporcionar-lhe uma declaração de vontade esclarecida e livre;
Estabelecimento do princípio da irrevogabilidade do consentimento e da renúncia, prevendo-se, embora, a admissibilidade «da declaração pelo Estado membro de que o consentimento e a renúncia podem ser revogados em conformidade com o direito interno».
Artigo 8.°, «Comunicação do consentimento» — fixa o prazo máximo de 10 dias a contar da data da detenção provisória para que o Estado requerido comunique ao Estado requerente se a pessoa prestou ou não o consentimento, em ordem a que este formule o pedido de extradição (n.° 1), e estabelece a regra de que essa comunicação se efectuará directamente entre as autoridades competentes (n.° 2).
Artigo 9.°,«Renúncia ao benefício da regra da especialidade» — prevê que, no momento do depósito do instrumento de ratificação, o Estado membro possa declarar que as regras da especialidade não são aplicáveis quando a pessoa consinta na extradição ou quando, tendo consentido, renuncie expressamente ao benefício.
Artigo 10.°, «Comunicação da decisão de extrar&^a» — derroga as formalidades constantes da norma do artigo 18." da Convenção Europeia de Extradição, emitindo a comunicação da decisão de extradição e das informações relativas ao processo directamente entre as autoridades do Estado requerente e do Estado requerido.
Artigo 11.°, «Prazo de entrega» — fixa e disciplina o prazo de entrega da pessoa, prevendo as consequências da respectiva inobservância.
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Artigo 12.°, «Consentimento dado após o prazo fixado no artigo 8." ou noutras circunstâncias» — prevê as situações em que, sendo o consentimento dado após o prazo de 10 dias, mesmo assim se «aplicará» o procedimento simplificado ou se «poderá aplicar» esse procedimento; admite a possibilidade de o Estado membro, no momento do depósito do seu instrumento de ratificação, declarar «se e em que condições tenciona aplicar o segundo travessão do n.° 1 e o n.° 2».
Artigo 13.°, «Reextradição para outra Estado membro» — estabelece a regra de que, não beneficiando a pessoa extraditada da regra da especialidade, não se aplicará o artigo 1S.° da Convenção Europeia de Extradição, salvo declaração em contrário, a fazer no âmbito do artigo 9.° desta Convenção.
Artigo 14.°, «Trânsito» — reporta-se à simplificação das formalidades do trânsito através da território de um Estado membro.
Artigo 15.° — reporta-se à determinação das autoridades competentes «na acepção dos artigos 4.° a 8.°, 10.° e 14."».
Artigo 16.° — ocupa-se da entrada em vigor da Convenção.
Artigo 17.° — prevê a adesão dos Estados membros que se tornem membros da União Europeia.
O texto da proposta de resolução
O artigo 1.° limita-se a consagrar a aprovação, para ratificação, da Convenção.
0 artigo 2." visa a formulação de algumas declarações adicionais, aliás, previstas na Convenção.
Apreciação da conformidade dos textos da Convenção e da proposta de resolução com os preceitos constitucionais vigentes
1 —Em conformidade com o disposto rio artigo 12." da Convenção, o n.° 1 do artigo 2.° da proposta de resolução insere a declaração de que Portugal aplicará o procedimento simplificado aos casos em que tenha sido apresentado um pedido formal de extradição previsto nos n." 1 e 2 daquele artigo.
• Na segunda parte desse número, ressalva a aplicação da lei portuguesa quanto à definição do momento em que deve ocorrer a prestação do consentimento da pessoa reclamada, situando-o no início da fase judicial.
Nenhuma objecção a fazer a tal declaração.
2 — No n.° 2 do mesmo artigo 2.° visa-se dar satisfação ao «preceituado» no artigo 15.° da Convenção: «indicar quais são as autoridades competentes na acepção dos artigos 4." a 8.°, 10.° e 14.°».
Essa indicação foi feita em termos que não merecem reparo: a autoridade competente é a judicial para todos os casos, com a única excepção do artigo 14.° que se reporta a um procedimento meramente administrativo.
Somos, contudo, levados a pensar que na redacção da alínea a) do n.° 2 do artigo 2.°, onde se escreveu «para efeitos dos artigos 4." e 10.°» se terá querido escrever «para efeitos dos artigos 4." a 8.° e 10.°».
3 — Já nos interrogámos sobre se o texto da proposta de resolução não devia ir mais longe na formulação de outras dec/arações, de resto também elas previstas na Convenção. Assim-.
3.1 —O n.° 4 do artigo 7." da Convenção inicia-se com a formulação de que o consentimento da pessoa para a
aplicação do processo simplificado de extradição e a declaração de renúncia ao benefício da especialidade são irrevogáveis. Mas logo aí prevê a admissibilidade de o Estado membro fazer declaração no sentido de que o consentimento e a renúncia possam ser revogados em conformidade com as regras aplicáveis ao direito nacional.
Tal declaração não consta do texto da proposta de resolução e disso se apercebeu o Sr. Presidente da Assembleia da República quando, na parte final do seu despacho de admissão, manifestou a opinião de que deveria apurar-se, «através de uma adequada ponderação dos direitos e dos bens que, em concreto, poderão conflituar, da necessidade de formular declarações adicionais e eventualmente reservas», especialmente de revogação do consentimento e da renúncia ao benefício da regra da especialidade, bem co-explicitação de que o consentimento na extradiçãr /rica poderá envolver a renúncia automática ao benefíci i regra da especialidade. /
Da primeira dessas questões (da revogação ^consenti-mento e da renúncia) trataremos já e aqui, caçando por dizer que se afigura pertinente tal observ-^eíó.
Talvez que, no entanto, uma e outra c* Vam ter tratamento diferenciado. /
É que, se em relação à renúncia ao ^enefício da regra da especialidade, não divisamos que da sua revogação em qualquer altura possam advir contrariedades para o processo de extradição, já o mesmo não sucederá no caso de revogação do consentimento, a partir do momento em que este desencadeou todo um processo, ainda que simplificado, e prejudicou a iniciativa do processo «normal» ou «clássico».
Haverá, pois, que salvaguardar o princípio da livre revogabilidade, em nome dos valores que a própria Convenção defende e visa prosseguir, mas sem atentar contra «a doutrina que apenas defende a legitimidade constitucional da autolimitação voluntária ao exercício dos direitos fundamentais quando a mesma não envolve renúncia ao núcleo essencial do direito».
Afigura-se, pois, de toda a conveniência formular a declaração (prevista no n.° 4 do artigo 7.° da Convenção) de que o consentimento e a renúncia podem ser revogados em conformidade com as regras aplicáveis da lei portuguesa. E na nossa lei interna encontramos a disposição do n.° 4 do artigo 39.° do Decreto-Lei n.° 43/91, de 22 de Janeiro, dispondo que a declaração prestada pela pessoa detida para efeitos de extradição de que consente na sua entrega imediata ao Estado requerente e de que renuncia ao processo judicial de extradição é revogável até ao momento da sua homologação pelo juiz.
Este diploma tem natureza supletiva em relação às «normas, tratados, convenções e acordos internacionais e apontará o caminho da solução».
Em sede de discussão na especialidade, haverá que procurar consenso com vista à formulação dessa declaração complementar de revogação, quer do consentimento quer da renúncia.
3.2 — Já a «explicitação de que o consentimento na extradição nunca poderá envolver a renúncia automática ao benefício da regra da especialidade», sugerida no mesmo despacho de admissão, se afigura desnecessária, dada a formulação do artigo 9.° da Convenção.
Na verdade, desde que nenhuma declaração se faça, continuará a aplicar-se o disposto no artigo 14." da Convenção Europeia de Extradição e a questão da «renúncia automática» não chega a pôr-se.
Nessa ordem de ideias, bem se andou ao não se propor aqui qualquer declaração.
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Parecer
A proposta de resolução n.° 31/VII preenche os requisitos constitucionais e regimentais, pelo que está em condições de subir a Plenário para ser apreciada na generalidade, reservando os grupos parlamentares as suas posições para o debate.
Palácio de São Bento, 19 de Fevereiro de 1997. — O Deputado Relator, Antonino Antunes. — O Presidente da Comissão, Barbosa de Melo.
Nota. — O relatório e o parecer foram aprovados por unanimidade.
Relatório e parecer da Comissão de Negócios Estrangeiros, Comunidades Portuguesas e Cooperação.
Relatório
Nos termos da Constituição da República Portuguesa, a extradição só pode ser determinada por autoridade judicial, não sendo possível a extradição de cidadãos portugueses do território nacional nem a extradição por motivos políticos ou a extradição por crimes a que corresponda pena de morte segundo o direito do Estado requisitante (artigo 33.°).
Em 1989 Portugal ratificou a Convenção Europeia da Extradição, tendo assegurado as seguintes excepções:
Portugal não concederá a extradição de pessoas:
Que devem ser julgadas por um tribunal de excepção ou cumprir pena decretada por um tribunal dessa natureza;
Quando se prove que serão sujeitos a processo que não ofereça garantias jurídicas de um procedimento penal que respeite as condições internacionalmente reconhecidas como indispensáveis à salvaguarda dos direitos do homem ou que cumprirão as penas em condições desumanas;
Quando reclamados por infracção a que corresponda a pena ou medida de segurança com carácter perpétuo;
Quando se trate de crime punível com pena privativa
de liberdade inferior a 1 ano; Que tenha a nacionalidade portuguesa; Quando se trate de crime punível com pena de morte
segundo o Estado requerente.
A Convenção ora em análise tem a particularidade de se tratar da primeira convenção a ser concluída no âmbito do título vi do Tratado da União.
Embora só tenha sido assinada em 10 de Março de 1995 pelos 15 Estados membros, é fruto de uma reflexão e de um trabalho iniciado alguns anos antes, particularmente desenvolvido a partir do 2.° semestre de 1992, e que estava direccionado para analisar as condições de fundo da extradição e versando acerca dos procedimentos que permitissem melhorar a eficácia da cooperação judiciária dentro da União, neste domínio.
Resumidamente, pode afirmar-se que o objectivo final desta Convenção é o de simplificar consideravelmente o procedimento da extradição.
Mais, que pretende facilitar mesmo a aplicação da Convenção Europeia de Extradição atrás referida, ratificada por Portugal em 1995 (mas concluída já em 1957), e decorre
das traves mestras dessa Convenção, que se mantêm inalteráveis.
Por outro lado, e como se entende face à evolução da própria União, ter-se-á sentido a necessidade de introduzir a simplificação do processo de extradição e de reduzir consideravelmente alguns dos seus procedimentos, sendo certo que tal facto pode, diminuindo a duração do processo de extradição, ser considerado um benefício para a própria pessoa.
É patente, por outro lado, o objectivo de criar progressivamente um espaço judiciário europeu em que se acautele e, inclusive, reforce a segurança dos cidadãos, segurança que será tanto maior quanto maior for a colaboração entre os Estados membros.
O processo simplificado de extradição necessita de reunir determinados requisitos:
1) É necessário que tenha sido solicitada a detenção provisória da pessoa ou a sua extradição;
2) Que ela tenha dado o seu consentimento à extradição;
3) Que a autoridade competente do Estado requerido dê o seu acordo à extradição.
Em relação ao n.° 1), dír-se-á que nos Estados membros que são parte na Convenção de Schengen (como é o caso de Portugal), a detenção provisória pode decorrer de uma menção inscrita no Sistema de Informação de Schengen.
Quanto ao n.° 2), ter-se-á de sublinhar que o consentimento se desdobra em consentimento para ser entregue ao Estado requerente por meio de procedimento simplificado e, eventualmente, renúncia expressa ao benefício da regra da especialidade. No n.° 4 do artigo 7." estipula-se que «o consentimento e, eventualmente, as renúncias referidas no n.° 1 são irrevogáveis».
Ora, é esta questão que motivou as pertinentes e fundadas observações de S. Ex.* o Presidente da Assembleia da República no despacho de admissão da presente proposta e que se dão por transcritas.
No entanto, e segundo parece, decorre da própria disposição atrás citada da Convenção que «os Estados membros poderão indicar, numa declaração, que o consentimento e, eventualmente, a renúncia podem ser revogados em conformidade com as regras aplicadas no direito nacional».
Estando a presente proposta a ser analisada em sede da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, não se aprofunda deliberadamente esta questão.
Dir-se-á ainda, e por fim, que esta Convenção é certamente um passo em frente na criação de um espaço judiciário europeu neste domínio da extradição, estimando-se que um terço dos processos de extradição possa vir a seguir este processo simplificado.
Parecer
A Comissão de Negócios Estrangeiros, Comuniáa4es> Portuguesas e Cooperação entende que a*pro posta de resolução n.° 31 ATI reúne as condições necessárias e os requisitos regimentais, pelo que está em condições de subir a Plenário e ser apreciada na generalidade, reservando os grupos parlamentares as suas posições para o debate.
Palácio de São Bento, 18 de Fevereiro de 1997.— O Deputado Relator, Ferreira Ramos. — O Presidente da Comissão, Azevedo Soares.
Nota. — O relatório e o parecer foram aprovados por unanimidade.
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Relatório e parecer da Comissão de Assuntos Europeus
Relatório
1 — O Governo apresentou à Assembleia da República a proposta de resolução n.° 31/VII, que aprova, para ratificação, a Convenção, estabelecida com base no artigo K.3 do Tratado da União Europeia, Relativa ao Processo Simplificado de Extradição entre os Estados Membros da União Europeia, assinada em Bruxelas, em 10 de Março de 1995.
A presente Convenção, aprovada segundo a disciplina própria da cooperação nos domínios da justiça e dos assuntos internos criada pelo Tratado da União, prende-se, pelo seu âmbito e alcance, com a cooperação judiciária em matéria penal, considerada questão de interesse comum nos termos do artigo K. do mesmo Tratado.
2 — Alicerçada em três pilares, a construção europeia saída do Tratado de Maastricht procurou que, à reafirmação, redefinição e extensão das competências comunitárias (primeiro pilar), passassem a acrescer sectores outrora relevantes da actuação intergovernamental e a que o Tratado da União conferiu unia dinâmica centrípeta através do patrocínio comunitário em que os envolveu: além da política externa e de segurança comum (segundo pilar), também a cooperação nos domínios da justiça e dos assuntos internos (terceiro pilar).
Numa perspectiva pragmática, o terceiro pilar visou promover uma mais adequada e eficiente consecução dos objectivos gerais da União, em especial a livre circulação de pessoas e a realização do Mercado Único Europeu. Não obstante o seu carácter claramente instrumental, o terceiro pilar, fruto do consenso possível entre os Estados membros, pretendeu jogar a cartada da consagração no Tratado da União, aí residindo, aliás, o seu principal trunfo face ao anterior modelo de cooperação política.
Todavia, o terceiro pilar acabou por revestir uma fisionomia híbrida, que funde a intergovemamentalidade remanescente com um processo de comunitarização mitigada, se-lectivae a prazo, em que as instituições europeias têm uma intervenção discreta.
Como o texto da presente Convenção evidencia, a Comissão ficou privada do direito de iniciativa neste campo, que subsiste ainda na titularidade exclusiva dos Estados membros; o Conselho de Ministros aprovou a Convenção por unanimidade e o Tribunal de Justiça viu-se afastado do exercício normal das suas funções em sede interpretativa e de resolução de eventuais diferendos quanto à aplicação do texto adoptado, uma vez que a Convenção não previu expressamente a sua intervenção para o efeito.
De inequívoca importância para a simplificação e flexibilização dos procedimentos de extradição, tornados mais eficazes e mais céleres face ao modelo inicial ínsito na Convenção Europeia de 13 de Dezembro de 1957, o presente texto, reflectindo ainda resquícios da intergovemamentalidade, procura já posicionar-se para assegurar o reforço da cooperação judiciária e, bem assim, para permitir, a prazo, a criação de um espaço judiciário europeu.
Acresce que, dada a fundamentação jurídica invocada e a natureza dos mecanismos utilizados na negociação, a Convenção,, uma vez aprovada, há-de ser ratificada pelos Estados membros à luz das respectivas disposições jurídico--constitucionais, razão subjacente, aliás, à proposta de resolução ora apresentada à Assembleia da República pelo Governo Português.
3 —Em termos substantivos, ao remeter para o direito dos Estados membros em matérias atinentes à efectiva, garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, a Convenção não colide com a ordem jurídica portuguesa, quer no plano constitucional quer a nível de legislação ordinária.
Assim, por referência ao artigo 33." da Constituição política, começam, desde logo, por estar salvaguardados os direitos dos cidadãos portugueses, em relação aos quais não é constitucionalmente admissível a extradição do território nacional, uma vez que um semelhante pedido não seria aceite pela autoridade nacional competente. De igual modo, ao remeter para o direito vigente em cada Estado membro, a Convenção não pode ser aplicada em Portugal a casos em que a extradição seja solicitada mediante invocação de motivos políticos e, bem assim, se ao crime de que o extraditando for acusado corresponder, no Estado requisitante, a pena de morte.
Acresce que a Convenção assegura ainda um outro princípio constitucional da maior relevância e á que a Constituição Portuguesa deu acolhimento: a determinação da extradição por uma autoridade judicial.
Idêntica análise de conformidade resulta também do cotejo entre a presente Convenção e o Decreto-Lei n.° 43/91, de 22 de Janeiro, não só no que concerne às garantias dadas ao extraditando e ao recolhimento do seu acordo como também no tocante ao carácter irrevogável do mesmo.
Do exposto decorre, portanto, que a Convenção pode ser recebida pela ordem jurídica portuguesa.
Parecer
A Comissão dos Assuntos Europeus considera que estão preenchidos todos os requisitos legais e regimentais para que a proposta de resolução seja discutida e votada em Plenário, reservando os grupos parlamentares as suas posições para o debate.
Palácio de São Bento, 19 de Fevereiro de 1997.— A Deputada Relatora, Maria Eduarda Azevedo. — O Vice--Presidente da Comissão, João Poças Santos.
Nota.—O relatório e o parecer foram aprovados por unanimidade, encontrando-se ausentes o PCP e Os Verdes.
PROPOSTA DE RESOLUÇÃO N.º 33/VII
(APROVA, PARA RATIFICAÇÃO, A CONVENÇÃO SOBRE A ADESÃO DA REPÚBLICA DA ÁUSTRIA, DA REPÚBUCA DA FINLÂNDIA E DO REINO DA SUÉCIA À CONVENÇÃO RELATIVA À ELIMINAÇÃO DA DUPLA TRIBUTAÇÃO EM CASO DE CORRECÇÃO DE LUCROS ENTRE EMPRESAS ASSOCIADAS E RESPECTIVA ACTA DE ASSINATURA, COM AS SUAS DECLARAÇÕES.)
Relatório e parecer da Comissão de Negócios Estrangeiros, Comunidades Portuguesas e Cooperação.
Relatório
O Governo apresentou à Assembleia da República a proposta de resolução n.° 33/VII, que visa a ratificação da
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Convenção sobre a Adesão da República da Áustria, da República da Finlândia e do Reino da Suécia à Convenção Relativa à Eliminação da Dupla Tributação em Caso de Correcção de Lucros entre Empresas Associadas. A Comissão de Negócios Estrangeiros, Comunidades Portuguesas e Cooperação foi incumbida de elaborar os respectivos relatório e parecer.
A Convenção que elimina a dupla tributação em apreço foi aberta à assinatura em Bruxelas, em 23 de Julho de 1990, e a sua aplicação rege-se, nomeadamente, pelos seguintes princípios:
Quando uma empresa de um Estado Contratante participe directa ou indirectamente na direcção, no controlo ou no capital de uma empresa de outro Estado Contratante, ou que as mesmas pessoas participem da mesma forma na direcção, no controlo ou no capital de idênticas empresas e, em ambos os casos, as duas empresas, nas suas relações comerciais ou financeiras, estiverem ligadas por condições aceites ou impostas que difiram das que seriam estabelecidas entre empresas independentes, os lucros que, se não existissem essas condições, teriam sido obtidos por uma das empresas mas não o foram por causa dessas condições podem ser incluídos nos lucros dessa empresa e, consequentemente, tributados;
Quando uma empresa de um Estado Contratante exercer a sua actividade noutro Estado Contratante por meio de um estabelecimento estável aí situado, serão imputados a esse estabelecimento os lucros que obteria se fosse uma empresa distinta e separada que exercesse as mesmas actividades ou actividades similares nas mesmas condições ou similares e tratasse com absoluta independência com a empresa de que constitui estabelecimento estável;
Sempre que um Estado Contratante pretende corrigir os lucros de uma empresa em aplicação aos princípios anunciados comunica oportunamente a empresa da sua intenção e dar-lhe-á oportunidade de informar a outra de forma a permitir que esta, por sua vez, informe o outro Estado Contratante. Todavia, o Estado Contratante que prestar esta informação não deve ser impedido de proceder à correcção prevista.
Na sua aparente formalidade, esta Convenção, que integra 22 cláusulas, relança a problemática da livre circulação de mercadorias, pessoas, serviços e capitais da União Europeia, que pode pressupor a alteração dos regimes fiscais dos países que integram a União Europeia.
A Convenção a que a Áustria, Finlândia e Suécia aderiram facilita as empresas uma actividade na União Europeia mais fácil, evitando a dupla tributação e ultrapassando obstáculos tributários que poderiam criar desvantagens para o seu desenvolvimento.
A regulamentação que este instrumento diplomático introduz nas relações entre empresas de Estados Contratantes prevê a constituição de uma comissão consultiva que emite parecer sobre a forma de eliminar a dupla tributação em questão, o que possibilita a ultrapassagem de problemas ou de dúvidas que possam surgir. Desta comissão fazem parte, além do presidente, dois representantes de cada uma das autoridades competentes e interessadas, que pode ser reduzido para um, e um número par de personalidades indepen-
dentes designadas de comum acordo. O presidente é escolhido pelos membros que integram a comissão e deve reunir as condições exigidas para o exercício das mais altas funções jurisdicionais no seu próprio país ou ser um jurisconsulto de reconhecida competência. As empresas devem prestar todas as informações, meios de prova ou documentos que lhes sejam solicitados por esta comissão.
A dupla tributação dos lucros considera-se eliminada se estes estiverem incluídos no cálculo dos lucros sujeitos a tributação num único Estado ou se do montante do imposto a que os lucros estiverem sujeitos num dos Estados for deduzido um montante igual ao do imposto lhes for aplicado no outro Estado. A Convenção é celebrada por um período de cinco anos. Seis meses antes do termo desse período os Estados Contratantes reunirão para decidir sobre a sua prorrogação.
A Áustria, a Finlândia e a Suécia, como últimos países a integrarem a União Europeia, aderiram a esta Convenção, tendo procedido à assinatura da respectiva acta em Bruxelas, em 21 de Dezembro de 1995.
Parecer
A Comissão de Negócios Estrangeiros, Comunidades Portuguesas e Cooperação, depois de analisar a proposta de resolução, é de entendimento que ela cumpre as condições regimentais e constitucionais em vigor, estando apta a ser apreciada em Plenário, reservando os grupos parlamentares a sua posição política para o debate que se seguirá.
Palácio de São Bento, 18 de Fevereiro de 1997.— O Deputado Relator, João Corregedor da Fonseca. — O Presidente da Comissão, Azevedo Soares.
Nota, — O relatório e o parecer foram aprovados por unanimidade.
PROPOSTA DE RESOLUÇÃO N.0 34/Vtt
(APROVA, PARA RATIFICAÇÃO, O PROTOCOLO DE ADESÃO DO GOVERNO DA REPUBLICA DA ÁUSTRIA AO ACORDO ENTRE OS GOVERNOS DA UNIÃO ECONÓMICA BENELUX, DA REPÚBLICA FEDERAL DA ALEMANHA E DA REPÚBLICA FRANCESA, RELATIVO À SUPRESSÃO GRADUAL WÄ CONTROLOS NAS FRONTEIRAS COMUNS, ASSINADO EM SCHENGEN A 14 DE JUNHO DE 1985.)
PROPOSTA DE RESOLUÇÃO N.s 3oJ\M
(APROVA, PARA RATIFICAÇÃO, O PROTOCOLO DE ADESÃO DA REPÚBLICA DA ÁUSTRIA À CONVENÇÃO DE APLICAÇÃO DO ACORDO DE SCHENGEN, DE 14 DE JUNHO DE 1985, ENTRE OS GOVERNOS DOS EST KOOS DA UNIÃO ECONÓMICA BENELUX, DA REPÚBLICA FEDERAL DA ALEMANHA E DA REPÚBLICA FRANCESA, RELATIVO À SUPRESSÃO GRADUAL DOS CONTROLOS NAS FRONTEIRAS COMUNS, ASSINADO EM SCHENGEN EM 19 DE JUNHO DE 1990.)
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20 DE FEVEREIRO DE 1997
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Relatório e parecer da Comissão de Negócios Estrangeiros, Comunidades Portuguesas e Cooperação.
Relatório
1 — O Governo apresentou à Assembleia da República, para ratificação, dois protocolos de adesão firmados pela República da Áustria, a saber:
a) Protocolo de Adesão do Governo da República da Áustria ao Acordo entre os Governos da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa, relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns, assinado em Schengen, em 14 de Junho de 1985, tal como alterado pelos protocolos relativos à adesão dos Governos da República Italiana, do Reino de Espanha, da República Portuguesa e da República Helénica, assinados, respectivamente, em 27 de Novembro de 1990, em 25 de Junho de 1991 e 6 de Novembro de 1992, concluído em Bruxelas, em 28 de Abril de 1995;
b) Protocolo de Adesão da República da Áustria à Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen, de 14 de Junho de 1985, entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa, relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns, assinado em Schengen, em 19 de Junho de 1990.
2 — O Acordo de Schengen, assinado em 14 de Julho de 1985, entre os Estados da União Económica Benelux, a República Federal da Alemanha e a República Francesa, ao qual aderiu, em Novembro de 1990, a República Italiana, tem por objectivo a supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns das Partes Contratantes, constituindo um marco importante para a concretização da livre circulação de pessoas e mercadorias na Europa.
Em 1990, Portugal solicitou formalmente a sua adesão ao Acordo de Schengen e à Convenção de Aplicação, tendo a assinatura dos respectivos documentos ocorrido em 25 de Junho de 1991, simultaneamente com a assinatura do instrumento de adesão da Espanha.
Os instrumentos de adesão foram aprovados pela Resolução da Assembleia da República n.° 35/93 e ratificados pelo Decreto do Presidente da República n.° 55/93, ambos de 25 de Novembro.
Não obstante os Estados signatários do Acordo de Schengen e respectiva Convenção de Aplicação serem todos eles membros da União Europeia, importa acentuar que o Acordo de 1985 e a Convenção Complementar de 1990 revestem uma natureza intergovernamental do tipo clássico, o,us expressamente excluem a possibilidade de emissão de reservas por parte dos aderentes.
O Acordo prevê medidas aplicáveis a curto prazo, as quais se traduzem num conjunto de regras que pretendem fixar o regime de fiscalização da circulação de pessoas nas fronteiras comuns, enquanto não é atingido o objectivo primeiro de supressão dos controlos.
De entre essas medidas salientam-se:
A simples fiscalização visual dos veículos de passageiros que passam a fronteira comum a velocidade reduzida;
Renúncia do controlo sistemático, nas fronteiras comuns, da folha itinerário e das autorizações de
transporte para os transportes públicos rodoviários de passageiros;
Realização dos controlos agrupados nos postos de controlo nacionais justapostos;
Adopção de disposições tendentes à aplicação de procedimentos relativos à emissão de vistos e à admissão no território;
Substituição nas fronteiras comuns do controlo dos documentos.
No Acordo, como medidas aplicáveis a longo prazo, encontramos:
A supressão do controlo de pessoas nas fronteiras comuns e sua transferência para as fronteiras exter-> ,nas'<
Adopção de medidas compensatórias tendentes à salvaguarda da segurança e à luta contra a imigração ilegal de nacionais de países terceiros;
Harmonização das disposições legais sobre estupefacientes, armas e explosivos;
Harmonização das políticas em matéria de vistos e no que respeita às condições da entrada no respectivo território.
Em 19 de Junho de 1990, foi assinada a Convenção de Aplicação do referido Acordo. O texto da Convenção, composto por 142 artigos, fòi acompanhado de uma série de declarações comuns e unilaterais, nas quais se prevê que a Convenção só entrará em vigor quando se encontrarem preenchidas, nos Estados signatários, as condições prévias à sua aplicação e forem efectivos os controlos nas fronteiras externas.
Atribuiu-se, pois, fulcral importância ao desenvolvimento de formalidades e procedimentos conducentes à defesa da livre circulação de pessoas como domínio essencial da construção do espaço europeu.
Dispõe o artigo 200.° da Constituição da República Portuguesa, no seu n.° 1, alínea d), que compete ao Governo apresentar propostas de lei e de resolução à Assembleia da República e, bem assim, o artigo 164.", na sua alínea j), que compete à Assembleia da República aprovar as convenções internacionais que versem matéria da sua competência reservada, os tratados de participação de Portugal em organizações internacionais, os tratados de amizade, de paz, de defesa, de rectificação de fronteiras, os respeitantes a assuntos militares e ainda quaisquer outros que o Governo , entenda submeter-lhe.
3 — Pelas presentes iniciativas a Áustria adere ao Acordo de Schengen, sem quaisquer reservas, comprometendo--se a aplicar as disposições dos dois textos (Acordo de Schengen e Convenção de Aplicação) no seu território e nas suas relações com os restantes países Schengen e subscreve totalmente as actas e as declarações assinadas no momento da assinatura da Convenção de 1990.
O respectivo acordo de adesão ao Acordo de Schengen entrará em vigor no 1." dia do 2.° mês seguinte ao do depósito dos instrumentos de ratificação pelos Estados, para os quais a Convenção de Aplicação tenha entrado em vigor e pela República da Áustria desde que no respectivo país estejam preenchidas as condições prévias e sejam efectivos os controlos nas fronteiras externas.
No respeitante à adesão à Convenção de 1990, esta só entrará em vigor no 1dia do mês seguinte ao do depósito dos instrumentos de ratificação, aceitação ou aprovação pelos Estados para os quais esta Convenção tenha entrado em vigor e pela Áustria.
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II SÉRIE-A — NÚMERO 22
No âmbito do acordo de adesão à Convenção são ainda definidas as entidades da Áustria que irão prosseguir os seus objectivos e medidas na área do tráfico ilícito de estupefacientes, tráfico de armas e de explosivos e transporte ilícito de resíduos tóxicos e prejudiciais, e que correspondem aos agentes já preestabelecidos pela Convenção nestes sectores.
Parecer
A Comissão de Negócios Estrangeiros, Comunidades Portuguesas e Cooperação, tendo presentes:
1) O Protocolo de Adesão do Governo da República da Áustria ao Acordo entre os governos da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa, relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns, assinado em Schengen, a 14 de Junho de 1985, tal como alterado pelos Protocolos Relativos à Adesão dos Governos da República Italiana, do Reino de Espanha, da República Portuguesa e da República Helénica, assinados, respectivamente, a 27 de Novembro de 1990, a 25 de Junho de 1991
e a 6 de Novembro de 1992, concluído em Bruxelas, em 28 de Abril de 1995; 2) O Protocolo de Adesão da República da Áustria à Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen, de 14 de Junho de 1985, entre os Governos dos Estados da União Económica Benelux, da República Federal da Alemanha e da República Francesa, relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns, assinado em Schengen, em 19 de Junho de 1990.
é de parecer que ambas as propostas de resolução preenchem os requisitos formais e obedecem aos preceitos regimentais, legais e constitucionais aplicáveis, pelo que se mostram em condições de ser apreciadas em Plenário da Assembleia da República.
Palácio de São Bento, 18 de Fevereiro de 1997.— O Deputado Relator, Laurentino Dias. — O Presidente da Comissão, Azevedo Soares.
Nota. — O relatório e o parecer foram aprovados por unanimidade.
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