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II SÉRIE-A — NÚMERO 87

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PROJETO DE RESOLUÇÃO N.º 458/XIV/1.ª

CAMPANHA NACIONAL RENOVAR O PACTO ANTIRRACISTA NA SOCIEDADE PORTUGUESA

A Constituição da República Portuguesa consagra o princípio da igualdade no ser artigo 13.º, ao determinar

que «Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei» e que «Ninguém pode ser

privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de

ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução,

situação económica, condição social ou orientação sexual».

Porém, apesar de esta igualdade estar consagrada na lei fundamental do País e o artigo 240.º do Código

Penal tipificar e punir o crime de discriminação racial, aquela não está completamente consagrada na práxis. O

racismo em Portugal, enquanto legado colonial no presente e sistema de (re)produção de desigualdades, abarca

formas de discriminação racial e étnica que devem ser consideradas, sobretudo dadas as relações históricas de

poderque não foram problematizadas, nomeadamente o papel central que o País teve na produção do racismo

ao iniciar o tráfico de pessoas escravizadas à escala mundial. Tal atrocidade precisava de ser justificada, pelo

que o colonialismo, sobretudo com a chegada ao continente americano e o regime da plantação, vê surgir a

marcação e hierarquização das identidades (o índio, o negro, o branco, o mameluco e o mestiço), que se tornam

depois a fundação do racismo científico do século XIX para o qual contribuíram muitas disciplinas científicas,

nomeadamente a antropologia e a medicina, e que, fundamentalmente, preconizava que havia grupos genética

e culturalmente inferiores.

Em Portugal, a mitologia de um suposto excecionalismo do colonialismo português, alegadamente de

especial vocação humanista, espiritual e universal, foi justamente construída (e matizada) a partir de finais do

século XIX. Este discurso de uma colonização supostamente benigna e não violenta, foi sofrendo adaptações

ao longo do tempo, permeando mais tarde o lusotropicalismo do antropólogo brasileiro Gilberto Freyre, que

adquiriu particular força em Portugal a partir dos anos 1950, quando o estado novo necessitou de argumentos

para justificar internacionalmente a ordem colonial1 a que submetia os territórios em África contra o cenário das

descolonizações em curso. Nem o 25 de Abril, que decorreu também como consequência de uma violenta guerra

colonial, e apesar da descolonização política, conseguiu superar este consenso ideológico de um suposto

colonialismo onde todas as raças conviveriam em paz. Ainda hoje o legado lusotropical insiste em reverberar,

de forma acrítica, na esfera pública portuguesa, permeando a opinião pública e até o discurso político e, deste

modo, obliterando o racismo quotidiano, institucional e estrutural a que estão sujeitas muitas pessoas e

comunidades racializadas. Ora não se pode combater o que se considera não existir. A colonialidade, enquanto

faceta «oculta» da modernidade e perpetuação no presente da matriz colonial do poder, tem no racismo um dos

seus mais duradouros legados2.

Muito embora a discriminação não seja assumida pelo Estado democrático, as tipologias raciais (coloniais)

continuam a estruturar o senso comum e a compor hierarquias sociais, agora baseadas na nacionalidade e na

cor da pele. Se a ciência já provou que biologicamente as raças não existem, o racismo, sim, existe. Enquanto

estrutura histórico-social, que produziu determinados efeitos classificatórios e culturais, o racismo tem

consequências na vida das pessoas a todos os níveis, (re)produzindo desigualdades estruturais e institucionais.

Tal é claro na estigmatização; na precariedade do emprego e dos baixos salários; no acesso à habitação

condigna e sem guetização; no ensino, onde a taxa de reprovação das pessoas racializadas é superior; na

cultura, onde as comunidades racializadas estão sub-representadas; na sua sub-representação em carreiras

especializadas, bem como em órgãos de decisão e de produção do conhecimento; na justiça, em taxas de

condenação e encarceramento que são mais elevadas e em que as suas queixas são arquivadas ou resultam

na impunidade dos infratores; na violência policial de que mais frequentemente são vítimas (como evidenciam

casos recentes, como o da esquadra de Alfragide, em 2015, ou aquele de que foi vítima Cláudia Simões); e até

1 O lusotropicalismo é o discurso colonialista português, que se tornou hegemónico e que forjou uma imagem em que os portugueses ainda hoje se revêem: a de um povo tolerante, fraterno, adaptável e de vocação ecuménica. No passado serviu para legitimar o colonialismo português, hoje alimenta o mito da tolerância racial dos portugueses e de um nacionalismo integrador e universalista, em contraponto a um nacionalismo xenófobo. Cf. Cláudia Castelo, «O Modo Português de Estar no Mundo»: o Luso-tropicalismo e a Ideologia Colonial Portuguesa (1933-1961) (Porto: Edições Afrontamento, 1998). 2 Cf. Aníbal Quijano, «Colonialidad y modernidad/racionalidade», in Perú Indígena (Lima) Vol. 13, Nº 29 (1992).