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Terça-feira, 16 de março de 2021 II Série-A — Número 97
XIV LEGISLATURA 2.ª SESSÃO LEGISLATIVA (2020-2021)
SUPLEMENTO
S U M Á R I O
Decreto da Assembleia da República n.º 109/XIV — Regula as condições em que a morte medicamente assistida não é punível e altera o Código Penal:
— Mensagem do Presidente da República sobre a devolução, sem promulgação, do Decreto, tendo como anexo o Acórdão do Tribunal Constitucional.
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DECRETO DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA N.º 109/XIV
REGULA AS CONDIÇÕES EM QUE A MORTE MEDICAMENTE ASSISTIDA NÃO É PUNÍVEL E
ALTERA O CÓDIGO PENAL
Mensagem do Presidente da República sobre a devolução, sem promulgação, do Decreto, tendo
como anexo o Acórdão do Tribunal Constitucional
Junto devolvo a Vossa Excelência, nos termos do artigo 279.°, n.º 1, da Constituição o Decreto da
Assembleia da República n.º 109/XIV – Regula as condições em que a morte medicamente assistida não é
punível e altera o Código Penal, uma vez que o Tribunal Constitucional, através de Acórdão cuja fotocópia se
anexa, se pronunciou, em sede de fiscalização preventiva, nos termos seguintes:
a) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade da norma constante do seu artigo 2.º, n.º 1, com fundamento
na violação do princípio de determinabilidade da lei enquanto corolário dos princípios do Estado de direito
democrático e da reserva de lei parlamentar, decorrentes das disposições conjugadas dos artigos 2.° e 165.°,
n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa, por referência à inviolabilidade da vida humana
consagrada no artigo 24.°, n.º 1, do mesmo normativo; e, em consequência,
b) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 4.°, 5.°, 7.° e 27.° do
mesmo Decreto.
Lisboa, 15 de março de 2021.
O Presidente da República,
(Marcelo Rebelo de Sousa)
Anexo
Acórdão n.º 123/2021
Processo n.º 173/2021
Plenário
Relator: Conselheiro Pedro Machete
(Conselheira Maria José Rangel de Mesquita)
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. O Presidente da República vem, ao abrigo do disposto no artigo 278.º, n.º 1, da Constituição da
República Portuguesa e dos artigos 51.º, n.º 1, e 57.º, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, adiante referida como «LTC»), requerer
ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva da constitucionalidade de diversas «normas constantes do
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Decreto n.º 109/XIV da Assembleia da República, publicado no Diário da Assembleia da República, Série II-A,
número 76, de 12 de fevereiro de 2021, que regula as condições especiais em que a antecipação da morte
medicamente assistida não é punível e altera o Código Penal, recebido e registado na Presidência da
República no dia 18 de fevereiro de 2021, para ser promulgado como lei».
As normas em causa são especificadas na parte inicial do requerimento nos seguintes termos:
« – a norma constante do n.º 1 do artigo 2.º, na parte em que define antecipação da morte medicamente
assistida não punível como a antecipação da morte por decisão da própria pessoa, maior, em ‘situação de
sofrimento intolerável’,
– a norma constante do n.º 1 do artigo 2.º, na parte em que integra no conceito de antecipação da morte
medicamente assistida não ‘punível o critério’ lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso
científico;
– Consequentemente, as normas constantes dos artigos 4.º, 5.º e 7.º, na parte em que deferem ao médico
orientador, ao médico especialista e à Comissão de Verificação e Avaliação a decisão sobre a reunião das
condições estabelecidas no artigo 2.º;
– Consequentemente, as normas constantes do artigo 27.º, na parte em que alteram os artigos 134.º, n.º 3,
135.º, n.º 3, e 139.º, n.º 2, do Código Penal.».
Na sequência da apresentação dos fundamentos que sustentam o seu pedido de fiscalização preventiva da
constitucionalidade, o requerente conclui:
«Atento o exposto, requer-se, nos termos do n.º 1 do artigo 278.º da Constituição, bem como do n.º 1 do
artigo 51.º e n.º 1 do artigo 57.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, a fiscalização preventiva da
constitucionalidade das normas do artigo 2.º e, consequentemente, dos artigos 4.º, 5.º, 7.º e 27.º constantes
do Decreto n.º 109/XIV da Assembleia da República, por violação dos princípios da legalidade e tipicidade
criminal, consagrados no artigo 29.º, n.º 1 e do disposto no n.º 5 do artigo 112.º, relativamente à amplitude da
liberdade de limitação do direito à vida, interpretado de acordo com o princípio da dignidade da pessoa
humana, conforme decorre da conjugação do artigo 18.º, n.º 2, respetivamente, com os artigos 1.º e 24.º, n.º 1,
todos da Constituição da República Portuguesa».
2. Os preceitos do Decreto n.º 109/XIV da Assembleia da República – que, segundo a respetiva epígrafe,
«Regula as condições em que a morte medicamente assistida não é punível e altera o Código Penal» – têm o
seguinte teor:
«Artigo 2.º
Antecipação da morte medicamente assistida não punível
1 – Para efeitos da presente lei, considera-se antecipação da morte medicamente assistida não punível a
que ocorre por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida,
em situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso
científico ou doença incurável e fatal, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde.
2 – Para efeitos da presente lei, consideram-se legítimos apenas os pedidos de antecipação da morte
apresentados por cidadãos nacionais ou legalmente residentes em território nacional.
3 – O pedido subjacente à decisão prevista no n.º 1 obedece a procedimento clínico e legal, de acordo com
o disposto na presente lei.
4 – O pedido pode ser livremente revogado a qualquer momento, nos termos do artigo 11.º».
«Artigo 4.º
Parecer do médico orientador
1 – O médico orientador emite parecer fundamentado sobre se o doente cumpre todos os requisitos
referidos no artigo 2.º e presta-lhe toda a informação e esclarecimento sobre a situação clínica que o afeta, os
tratamentos aplicáveis, viáveis e disponíveis, designadamente na área dos cuidados paliativos, e o respetivo
prognóstico, após o que verifica se o doente mantém e reitera a sua vontade, devendo a decisão do doente
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ser registada por escrito, datada e assinada.
2 – A informação e o parecer prestados pelo médico e a declaração do doente, assinados por ambos,
integram o RCE.
3 – Se o parecer do médico orientador não for favorável à antecipação da morte do doente, o procedimento
em curso é cancelado e dado por encerrado e o doente é informado dessa decisão e dos seus fundamentos
pelo médico orientador, podendo o procedimento ser reiniciado com novo pedido de abertura, nos termos do
artigo 3.º.»
«Artigo 5.º
Confirmação por médico especialista
1 – Após o parecer favorável do médico orientador, este procede à consulta de outro médico, especialista
na patologia que afeta o doente, cujo parecer confirma ou não que estão reunidas as condições referidas no
artigo anterior, o diagnóstico e prognóstico da situação clínica e a natureza incurável da doença ou a condição
definitiva da lesão.
2 – O parecer fundamentado do médico especialista é emitido por escrito, datado e assinado por ele e
integra o RCE.
3 – Se o parecer do médico especialista não for favorável à antecipação da morte do doente, o
procedimento em curso é cancelado e dado por encerrado e o doente é informado dessa decisão e dos seus
fundamentos pelo médico orientador, podendo o procedimento ser reiniciado com novo pedido de abertura,
nos termos do artigo 3.º.
4- No caso de parecer favorável do médico especialista, o médico orientador informa o doente do conteúdo
daquele parecer, após o que verifica novamente se o doente mantém e reitera a sua vontade, devendo a
decisão do doente ser registada por escrito, datada e assinada pelo próprio ou pela pessoa por si designada
nos termos do n.º 2 do artigo 10.º, e, juntamente com o parecer ou pareceres alternativos emitidos pelo médico
ou médicos especialistas, integrar o RCE.
5 – Caso o doente padeça de mais do que uma lesão definitiva ou doença incurável e fatal, o médico
orientador decide qual a especialidade médica a consultar.»
«Artigo 7.º
Parecer da Comissão de Verificação e Avaliação
1 – Nos casos em que se apresentem os pareceres favoráveis nos termos dos artigos anteriores,
reconfirmada a vontade do doente, o médico orientador remete cópia do RCE para a Comissão de Verificação
e Avaliação dos Procedimentos Clínicos de Antecipação da Morte (CVA), prevista no artigo 23.º, solicitando
parecer sobre o cumprimento dos requisitos e das fases anteriores do procedimento, que é elaborado no prazo
máximo de 5 dias úteis.
2 – Quando a CVA tiver dúvidas sobre se estão reunidas as condições previstas na presente lei para a
prática da morte medicamente assistida, deve convocar os médicos envolvidos no procedimento para prestar
declarações, podendo ainda solicitar a remessa de documentos adicionais que considere necessários.
3 – Em caso de parecer desfavorável da CVA, o procedimento em curso é cancelado, podendo ser
reiniciado com novo pedido de abertura, nos termos do artigo 3.º.
4 – No caso de parecer favorável da CVA, o médico orientador deve informar o doente do conteúdo
daquele parecer, após o que verifica novamente se este mantém e reitera a sua vontade, devendo a sua
decisão consciente e expressa ser registada em documento escrito, datado e assinado pelo próprio ou pela
pessoa por si designada nos termos do n.º 2 do artigo 10.º, o qual integra o RCE.»
«Artigo 27.º
Alteração ao Código Penal
Os artigos 134.°, 135.° e 139.° do Código Penal passam a ter a seguinte redação:
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‘Artigo 134.º
[…]
1 – […].
2 – […].
3 – A conduta não é punível quando realizada no cumprimento das condições estabelecidas na Lei n.º xxx.
Artigo 135.º
[…]
1 – […].
2 – […].
3 – A conduta não é punível quando realizada no cumprimento das condições estabelecidas na Lei n.º xxx.
Artigo 139.º
1 – (Atual corpo do artigo).
2 – Não é punido o médico ou enfermeiro que, não incitando nem fazendo propaganda, apenas preste
informação, a pedido expresso de outra pessoa, sobre o suicídio medicamente assistido, de acordo com o n.º
3 do artigo 135.°.’»
3. Os fundamentos apresentados no pedido para sustentar a inconstitucionalidade dos artigos impugnados
são os seguintes:
«1.º
Pelo Decreto n.º 109/XIV, a Assembleia da República aprovou o regime que regula as condições especiais
em que a antecipação da morte medicamente assistida não é punível e altera o Código Penal.
2.º
Nos termos da exposição de motivos de um dos projetos de lei (PS), que deram origem ao Decreto em
apreciação, o legislador entendeu, com o presente Decreto, exercer a sua margem de conformação, em
matéria muito sensível, relativamente à qual, afirma-se na mesma exposição de motivos, a Constituição não
determina orientação definitiva. Quer isto significar que, nos termos da Lei Fundamental, cabe ao legislador
permitir ou proibir a eutanásia, de acordo com o consenso social, em cada momento.
3.º
Não é objeto deste requerimento ao Tribunal Constitucional, em todo o caso, a questão de saber se a
eutanásia, enquanto conceito, é ou não conforme com a Constituição, mas antes a questão de saber se a
concreta regulação da morte medicamente assistida operada pelo legislador no presente Decreto se conforma
com a Constituição, numa matéria que se situa no core dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, por
envolver o direito à vida e a liberdade da sua limitação, num quadro de dignidade da pessoa humana.
4.º
Esta mesma dificuldade é, de resto, reconhecida pelo legislador, na citada exposição de motivos, na
medida em que afirma que ‘para que a intervenção, a pedido, de profissionais de saúde seja despenalizada
sem risco de inconstitucionalidade por violação do princípio da dignidade da pessoa humana, a lei tem de ser
rigorosa, ainda que recorrendo inevitavelmente a conceitos indeterminados, desde que determináveis’.
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5.º
Considera-se antecipação da morte medicamente assistida não punível a antecipação da morte da própria
pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em i) situação de sofrimento
intolerável, ii) com lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico ou doença
incurável e fatal, iii) quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde.
6.º
O primeiro critério estabelecido é o da situação de sofrimento intolerável. Todavia, este conceito não se
encontra minimamente definido, não parecendo, por outro lado, que ele resulte inequívoco das leges artis
médicas. Com efeito, ao remeter-se para o conceito de sofrimento, ele parece inculcar uma forte dimensão de
subjetividade. Uma vez que estes conceitos devem ser, nos termos do Decreto, como adiante se concretizará,
preenchidos, no essencial, pelo médico orientador e pelo médico especialista, resulta pouco claro como deve
ser mensurado esse sofrimento: se da perspetiva exclusiva do doente, se da avaliação que dela faz o médico.
Em qualquer caso, um conceito com este grau de indeterminação não parece conformar-se com as exigências
de densidade normativa resultantes da Constituição, na matéria sub judice.
7.º
O mesmo se diga do segundo critério, em particular do subcritério de lesão definitiva de gravidade extrema
de acordo com o consenso científico.
8.º
Este subcritério aponta para uma solução pouco consentânea, de resto, com os objetivos assumidos pelo
legislador, na medida em que permite uma interpretação, segundo a qual a mera lesão definitiva de gravidade
extrema poderia conduzir à possibilidade de morte medicamente assistida. Este subcritério deve ser conjugado
com o primeiro, é certo, e para além da lesão definitiva de gravidade extrema deve estar presente o sofrimento
intolerável. Mas tendo em conta o que antecede – o carácter muito indefinido do conceito de sofrimento
intolerável e a total ausência de densificação do que seja lesão definitiva de gravidade extrema, nem de
consenso científico, não parece que o legislador forneça ao médico interveniente no procedimento um quadro
legislativo minimamente seguro que possa guiar a sua atuação. Acresce que, sendo o único critério associado
à lesão o seu carácter definitivo, e nada se referindo quanto à sua natureza fatal, não se vê como possa estar
aqui em causa a antecipação da morte, uma vez que esta pode não ocorrer em consequência da referida
lesão, tal como alerta, no seu parecer, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.
9.º
A referida insuficiente densificação normativa não parece conformar-se com a exigência constitucional em
matéria de direito à vida e de dignidade da pessoa humana, nem com a certeza do Direito. Contudo, como
bem alerta no seu parecer o Conselho Superior do Ministério Público, há uma outra dimensão em que essa
falta de densidade se revela especialmente problemática.
10.º
Com efeito, a concretização destes conceitos fica largamente dependente da decisão do médico orientador
e do médico especialista. Resulta do disposto no artigo 4.º que o médico orientador emite parecer sobre se o
doente cumpre todos os requisitos do artigo 2.º, devendo este ser confirmado por parecer de especialista, nos
termos do previsto no artigo 5.º, o qual confirma a reunião das condições referidas, bem como o diagnóstico e
prognóstico da situação clínica e a natureza incurável da doença ou a condição definitiva da lesão.
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11.º
Para além de alguma redundância exibida por esta norma – referindo-se aos critérios já enunciados, e
depois elencando-os numa ordem diversa, o que não contribui para a clareza e segurança jurídica –, resulta
claro, mais uma vez, que cabe aos clínicos, no âmbito do procedimento, a definição do preenchimento dos
pressupostos para o exercício da antecipação da morte medicamente assistida, sendo depois tal verificado e
confirmado pela Comissão de Verificação e Avaliação.
12.º
Como é sabido, a Constituição veda ao legislador a delegação da integração da lei em atos com outra
natureza que não a legislativa, nos termos do disposto no artigo 112.º, n.º 5. Na verdade, ao utilizar conceitos
altamente indeterminados, ademais em matéria de direitos, liberdades e garantias, remetendo a sua definição,
quase total, para os pareceres dos médicos orientador e especialista, o legislador parece violar a proibição de
delegação, constante no artigo 112.º da Constituição.
13.º
Não se diga, por outro lado, que a insuficiente densificação normativa pode ser corrigida em sede de
regulamentação da lei. Nos termos do disposto no artigo 30.° do Decreto, o Governo aprova, no prazo máximo
de 90 dias, a referida regulamentação. Todavia, sendo o presente Decreto o único instrumento legislativo que
pode ser analisado neste momento, e padecendo ele das insuficiências assinaladas, a sua
inconstitucionalidade não pode ser sanada com a expectativa de um regime futuro, cujo conteúdo se
desconhece, ainda que dele o legislador faça depender a entrada em vigor do regime presente. É sobre este,
e apenas sobre ele, que deve recair o juízo de conformidade constitucional.
14.º
Com efeito, como se referiu, ao não fornecer aos médicos quaisquer critérios firmes para a interpretação
destes conceitos, deixando-os, no essencial, excessivamente indeterminados, o legislador criou uma situação
de insegurança jurídica que seria, de todo em todo, de evitar, numa matéria tão sensível. Esta insegurança
afeta todos os envolvidos: peticionários, profissionais de saúde, e cidadãos em geral, que assim se veem
privados de um regime claro e seguro, num tema tão complexo e controverso.»
4. O requerimento deu entrada neste Tribunal no dia 18 de fevereiro de 2021 e o pedido foi admitido na
mesma data.
5. Notificado para o efeito previsto no artigo 54.º da LTC, o Presidente da Assembleia da República veio
apresentar resposta na qual oferece o merecimento dos autos. Anexou à resposta uma nota sobre os
trabalhos preparatórios do Decreto n.º 109/XIV, elaborada pelos serviços de apoio à Comissão de Assuntos
Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, e informou que os trabalhos preparatórios se encontram
disponíveis na página do Parlamento na Internet.
6. Elaborado o memorando a que alude o artigo 58.º, n.º 2, da LTC e fixada a orientação do Tribunal,
importa decidir conforme dispõe o artigo 59.º da mesma lei.
II. Fundamentação
A) Delimitação do objeto material da apreciação da constitucionalidade pedida pelo requerente
7. A jurisdição específica do Tribunal Constitucional respeita à apreciação da inconstitucionalidade – e em
certos casos também da ilegalidade – nos termos dos artigos 277.º e seguintes da Constituição (cfr. os
respetivos artigos 221.º e 223.º, n.º 1). No que se refere em especial à inconstitucionalidade por ação, está em
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causa a apreciação da compatibilidade de normas jurídicas extraídas de fontes infraconstitucionais com o
parâmetro constitucional: são «inconstitucionais as normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os
princípios nela consignados» (v. o artigo 277.º, n.º 1). Este conceito de norma funcionalmente relevante, além
de reaparecer a propósito da previsão dos diferentes modos de fiscalização da constitucionalidade –
cumprindo destacar no caso vertente o n.º 1 do artigo 278.º da Constituição –, é concretizado no artigo 51.º,
n.º 5, da LTC, a título de disposição comum dos processos de fiscalização abstrata, preventiva ou sucessiva:
«O Tribunal só pode declarar a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de normas cuja apreciação tenha sido
requerida, mas pode fazê-lo com fundamentação na violação de normas ou princípios constitucionais diversos
daqueles cuja violação foi invocada.» (cfr. o lugar paralelo, relativamente à fiscalização concreta, constante do
artigo 79.º-C da LTC).
Vêm estas considerações a propósito de o requerimento ora em análise identificar as normas cuja
apreciação é pedida ao Tribunal em termos não unívocos.
Com efeito, embora o preceito do Decreto n.º 109/XIV mencionado na parte inicial e na parte conclusiva do
requerimento como fonte formal do objeto material a apreciar a título principal – as inconstitucionalidades
imputadas às normas constantes dos demais preceitos referidos no requerimento são meramente
consequenciais – seja o mesmo (ou quase) – respetivamente, o artigo 2.º, n.º 1, e o artigo 2.º –, as normas
identificadas para efeitos daquela apreciação a título principal, ora surgem recortadas como um segmento da
norma constante do preceito – «a norma constante do n.º 1 do artigo 2.º, na parte em que» –; ora se reportam
mais amplamente às normas constantes do preceito – as «normas do artigo 2.º». Além disso, mesmo que a
menção deste último artigo sem especificar apenas o seu n.º 1 se deva a mero lapso, a referência na
fundamentação do pedido apenas a certos segmentos da norma constante de tal artigo, por si só, não é
suficientemente clarificadora nem decisiva, uma vez que nessa parte do requerimento o que é necessário
fazer é tão só indicar as razões por que se considera existir uma violação dos parâmetros constitucionais
concretamente invocados. E esse vício ou vícios-fundamento podem resultar de um determinado aspeto da
norma, comprometendo esta última na sua totalidade.
Torna-se necessário, por conseguinte, esclarecer exatamente qual a norma ou normas sindicadas pelo
requerente, porquanto de tal delimitação depende, nos termos do mencionado artigo 51.º, n.º 5, da LTC, a
definição do âmbito dos poderes de cognição do Tribunal. Mas tal esclarecimento não se afigura menos
indispensável para uma correta compreensão das questões de constitucionalidade colocadas ao Tribunal,
tendo em conta os parâmetros convocados pelo requerente.
Impõe-se, deste modo, clarificar o sentido e alcance do pedido por referência aos preceitos que nele são
indicados e às questões que no mesmo são enunciadas. Para o efeito, importará considerar a inserção jurídica
de tais preceitos no conjunto do diploma e a matéria versada nos mesmos.
8. O Decreto n.º 109/XIV, aprovado para ser promulgado como lei, sob a já mencionada epígrafe, tem por
objeto «[regular] as condições especiais em que a antecipação da morte medicamente assistida não é punível
e altera o Código Penal» (artigo 1.º). Encontra-se estruturado em seis capítulos:
– Capítulo I: Disposições gerais e enquadramento penal (artigos 1.º e 2.º);
– Capítulo II: Procedimento (artigos 3.º a 16.º);
– Capítulo III: Direitos e deveres dos profissionais de saúde (artigos 17.º a 21.º);
– Capítulo IV: Fiscalização e avaliação (artigos 22.º a 26.º);
– Capítulo V: Alteração legislativa (artigo 27.º);
– Capítulo VI: Disposições finais e transitórias (artigos 28.º a 32.º).
Para efeitos do regime aprovado, e concretizando a primeira parte do objeto previsto no artigo 1.º,
considera-se «antecipação da morte medicamente assistida não punível a que ocorre por decisão da própria
pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento
intolerável, com lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico ou doença
incurável e fatal, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde.» (artigo 2.º, n.º 1; itálicos
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acrescentados).
Tenha-se presente, em vista da contextualização das normas objeto do pedido, que o regime instituído pelo
Decreto n.º 109/XIV estabelece, em desenvolvimento do seu artigo 1.º, o seguinte:
i) A noção de «antecipação da morte medicamente assistida não punível» (artigo 2.º, n.º 1);
ii) A determinação do universo das pessoas que podem apresentar pedidos de antecipação da morte
(artigo 2.º, n.º 2): «consideram-se legítimos apenas os pedidos de antecipação da morte apresentados por
cidadãos nacionais ou legalmente residentes em território nacional.»;
iii) O procedimento clínico e legal a que deve obedecer o pedido subjacente à decisão da pessoa prevista
no n.º 1 do artigo 2.º (artigo 2.º, n.º 3, que, depois, é disciplinado no Capítulo II); em especial, tal procedimento
integra:
– Regras relativas ao pedido de antecipação da morte medicamente assistida, que inicia o
procedimento de antecipação da morte, nomeadamente os artigos 3.º, n.os
1 e 4, 6.º, n.º 5, 7.º, n.º 4, 8.º,
n.os
2, 3 e 5, 9.º, n.os
2 a 5, 10.º (decisão pessoal e indelegável) e 11.º (revogação do pedido);
– Regras relativas à emissão de pareceres no quadro do procedimento pelo médico orientador e,
subsequentemente, pelo médico especialista (e, eventualmente, pelo médico especialista em psiquiatria)
e, finalmente, pela Comissão de Verificação e Avaliação dos Procedimentos Clínicos de Antecipação da
Morte (CVA; artigos 3.º a 7.º); e, por fim, após parecer favorável da referida Comissão (artigo 8.º, n.º 1),
– Regras relativas à concretização da decisão do doente, ou seja, ao procedimento com vista à
execução da antecipação da morte (cujo pedido foi autorizado por via da emissão de sucessivos
pareceres favoráveis, num total de três ou quatro, consoante o caso), mediante a administração ou
autoadministração de fármacos letais, sempre na presença (pelo menos) do médico orientador e outro
profissional de saúde, que tem lugar, em princípio, em local autorizado (estabelecimentos de saúde do
Serviço Nacional de Saúde ou dos sectores privado e social devidamente licenciados e autorizados e que
disponham das condições previstas no Decreto – artigos 8.º, 9.º e 12.º);
iv) As regras sobre deveres dos profissionais de saúde (artigos 17.º a 21.º), em especial sigilo profissional e
confidencialidade da informação (artigo 19.º), objeção de consciência (artigo 20.º) e responsabilidade
disciplinar (artigo 21.º);
v) As regras de fiscalização e avaliação (artigos 22.º a 26.º);
vi) A alteração aos artigos 134.º (Homicídio a pedido da vítima), 135.º (Incitamento ou ajuda ao suicídio) e
139.º (Propaganda do suicídio) do Código Penal, introduzindo números adicionais nesses artigos consagrando
a não punibilidade das condutas dos intervenientes que realizem a antecipação da morte medicamente
assistida nas condições estabelecidas no diploma ou prestem informação, a pedido expresso de outra pessoa,
sobre o suicídio medicamente assistido (artigo 27.º, que introduz, com esse sentido, novos n.os
3 nos artigos
134.º e 135.º e um novo n.º 2 no artigo 139.º, todos do Código Penal).
vii) Disposições finais e transitórias sobre: seguro de vida (artigo 28.º), sítio na Internet da Direção-Geral da
Saúde (artigo 29.º), regulamentação (artigo 30.º), disposição transitória (artigo 31.º) e entrada em vigor – 30
dias após a publicação da regulamentação aprovada pelo Governo (artigo 32.º).
9. As duas normas indicadas na parte inicial do requerimento como objeto do pedido a título principal
respeitam, assim, ao preceito em que se estabelece o que, para efeitos da opção político-legislativa assumida
pelo legislador no Decreto n.º 109/XIV, se considera antecipação da morte medicamente assistida não punível
(artigo 2.º, n.º 1).
As primeiras normas indicadas pelo requerente a título consequencial – reportadas aos artigos 4.º, 5.º e 7.º
do Decreto – respeitam já ao procedimento clínico e legal desencadeado pela expressão da decisão da
pessoa – neste diploma referida como «doente» (cfr. o artigo 3.º, n.º 1) – de antecipar a sua morte nos termos
legalmente previstos e que conduz à concretização de tal decisão, na parte em que, como afirma o requerente
relativamente aos preceitos em causa, «deferem ao médico orientador, ao médico especialista e à Comissão
de Verificação e Avaliação a decisão sobre a reunião das condições estabelecidas no artigo 2.º». Recorde-se
que, conforme estatuído no n.º 3 deste artigo, o «pedido subjacente à decisão prevista no n.º 1 obedece a
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procedimento clínico e legal, de acordo com o disposto na presente lei». Nos preceitos ora considerados,
prevê-se que: i) o médico orientador, além de prestar toda a informação e esclarecimento sobre a situação
clínica em causa, «emite parecer fundamentado sobre se o doente cumpre todos os requisitos referidos no
artigo 2.º» (artigo 4.º, n.º 1); ii) o médico especialista, consultado pelo médico orientador, emite parecer que
confirma ou não «que estão reunidas as condições referidas no artigo anterior, o diagnóstico e prognóstico da
situação clínica e a natureza incurável da doença ou a condição definitiva da lesão» (artigo 5.º, n.º 1; itálicos
acrescentados); e iii) a CVA emite parecer sobre o cumprimentos dos requisitos e das fases anteriores do
procedimento (artigo 7.º, n.º 1). Significa isto que as condições ou requisitos previstos pelo legislador no artigo
2.º e que àquelas três entidades cumpre confirmar constituem também comandos e limites da atuação das
mesmas.
Por fim, as últimas normas indicadas, igualmente a título consequencial, pelo requerente como constantes
do artigo 27.º, «na parte em que alteram os artigos 134.º, 135.º e 139.º do Código Penal», reportam-se – aliás,
nem poderia ser de outro modo, visto que aquele preceito não prevê nada para além das alterações à redação
dos referidos artigos – ao aditamento já antes mencionado de um número aos artigos 134.º, 135.º e 139.º
desse diploma, excluindo a punibilidade de condutas quando realizadas no cumprimento das condições
estabelecidas no regime aprovado pelo Decreto n.º 109/XIV.
É com referência a este enquadramento das normas sindicadas no conjunto do regime versado no Decreto
n.º 109/XIV que cumpre proceder, clarificando o âmbito da intervenção deste Tribunal, a uma explicitação das
normas objeto do pedido e das questões de constitucionalidade colocadas.
10. O pedido de fiscalização preventiva apresentado pelo requerente, tal como enunciado, pode considerar-
se, desde logo, duplamente delimitado – pela positiva e pela negativa.
Por um lado, o requerente enuncia as normas impugnadas a título principal – ou seja, as normas
constantes do n.º 1 do artigo 2.º – exclusivamente através da identificação de dois dos seus segmentos
(literais) cuja conformidade constitucional pretende ver apreciada: i) na parte em que «define» antecipação da
morte medicamente assistida não punível como a antecipação da morte por decisão da própria pessoa, maior,
em situação de sofrimento intolerável; ii) na parte em que integra no conceito de antecipação da morte
medicamente assistida não punível o critério lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso
científico. Por outro lado, o requerente afirma expressamente pretender excluir do objeto do pedido de
fiscalização preventiva «a questão de saber se a eutanásia, enquanto conceito, é ou não conforme com a
Constituição», esclarecendo que o objeto do requerimento é, «antes a questão de saber se a concreta
regulação da morte medicamente assistida operada pelo legislador no presente Decreto se conforma com a
Constituição, numa matéria que se situa no core dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, por
envolver o direito à vida e a liberdade da sua limitação, num quadro de dignidade da pessoa humana.» (cfr.
ponto 3.º do requerimento – itálicos acrescentados).
A delimitação negativa é efetuada por referência a um conceito – eutanásia – que não consta dos
enunciados linguísticos das disposições do Decreto n.º 109/XIV. É certo que o requerente o faz por referência
à exposição de motivos de um dos projetos de lei que esteve na origem do processo legislativo que culminou
com a aprovação do citado Decreto – o Projeto de Lei n.º 104/XIV/1.ª, apresentado pelo Partido Socialista
(«Procede à 50.ª alteração do Código Penal, regulando as condições especiais para a prática de eutanásia
não punível) –, retirando da mesma exposição de motivos a leitura de que «a Constituição não determina
orientação definitiva» e o sentido de «que, nos termos da Lei Fundamental, cabe ao legislador permitir ou
proibir a eutanásia, de acordo com o consenso social, em cada momento». E é perante tal conclusão que o
requerente afirma (aí pretendendo delimitar a questão pela negativa) não ser objeto do seu requerimento a
este Tribunal, «em todo o caso, a questão de saber se a eutanásia, enquanto conceito, é ou não conforme
com a Constituição» (expressão que, aliás, apenas constava igualmente do Projeto de Lei n.º 67/XIX/1.ª,
apresentado pelo PAN, que, propunha regular o acesso à morte medicamente assistida, «na vertente de
eutanásia e suicídio medicamente assistido» – cfr. os respetivos artigos 1.º e 12.º).
O enunciado do objeto pela positiva respeita à «concreta regulação da morte medicamente assistida
operada pelo legislador» no Decreto em análise (cfr. requerimento, ponto 3.º) e tem pressuposta a
identificação, na letra do n.º 1 do artigo 2.º, de três autónomos critérios (e, no que releva para a apreciação do
pedido, dois subcritérios do segundo critério) quanto à não punibilidade da intervenção de terceiros na
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antecipação da morte de uma pessoa a seu pedido: i) que esta se encontre numa situação de sofrimento
intolerável; ii) com lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico (primeiro
subcritério) ou doença incurável e fatal (segundo subcritério); iii) praticada ou ajudada por profissionais de
saúde (cfr. requerimento, pontos 5.º e 6.º a 8.º). As dificuldades de natureza jurídico-constitucional que o
requerente enuncia baseiam-se, como mencionado, no tipo de matéria a que tal regulação respeita,
circunstância que, segundo ele, teria sido reconhecida pelo legislador na já citada exposição de motivos:
«‘para que a intervenção, a pedido, de profissionais de saúde seja despenalizada sem risco de
inconstitucionalidade por violação da dignidade da pessoa humana, a lei tem de ser rigorosa, ainda que
recorrendo inevitavelmente a conceitos indeterminados, desde que determináveis’» (requerimento, ponto 3.º).
Assim, as questões colocadas pelo requerente respeitam ao primeiro critério (requerimento, ponto 6.º), ao
segundo critério, em particular, ao primeiro subcritério (requerimento, pontos 7.º e 8.º).
A primeira questão, reportada ao primeiro critério, reside em o mesmo – situação de sofrimento intolerável
– «não se encontra[r] minimamente definido», nem parecendo que «resulte inequívoco das leges artis
médicas»; ao remeter para o conceito de sofrimento «parece inculcar uma forte dimensão de subjetividade»; e,
dado que tais conceitos devem ser preenchidos no essencial pelos médicos orientador e especialista, «resulta
pouco claro como deve tal sofrimento ser mensurado: se da perspetiva exclusiva do doente, se da avaliação
que dela faz o médico». Conclui o requerente que «um conceito com este grau de indeterminação não parece
conformar-se com as exigências de densidade normativa resultantes da Constituição, na matéria sub judice»
(requerimento, ponto 6.º).
Aduz ainda o requerente que a concretização dos conceitos – critérios – «fica largamente dependente da
decisão do médico orientador e do médico especialista» (requerimento, ponto 10.º). E conclui caber «aos
clínicos, no âmbito do procedimento, a definição dos pressupostos para o exercício da antecipação da morte
medicamente assistida, sendo depois tal verificado e confirmado pela Comissão de Verificação e Avaliação»
(requerimento, ponto 11.º – cfr. os artigos 4.º, 5.º e 7.º do Decreto) e que o legislador, «ao utilizar conceitos
altamente indeterminados, ademais em matéria de direitos, liberdades e garantias, remetendo a sua definição,
quase total, para os pareceres dos médicos orientador e especialista, […] parece violar a proibição de
delegação constante do artigo 112.º da Constituição» (requerimento, ponto 12.º). E, mais adiante, o requerente
salienta que, «padecendo [o Decreto] das insuficiências assinaladas, a sua inconstitucionalidade não pode ser
sanada com a expetativa de um regime futuro, cujo conteúdo se desconhece, ainda que dele o legislador faça
depender a entrada em vigor do regime» em causa (requerimento, ponto 13.º). Em suma, «ao não fornecer
aos médicos quaisquer critérios firmes para a interpretação [dos] conceitos, deixando-os, no essencial,
excessivamente indeterminados, o legislador criou uma situação de insegurança jurídica [que] afeta todos os
envolvidos: peticionários, profissionais de saúde, e cidadãos em geral, que assim se veem privados de um
regime claro e seguro, num tema tão complexo e controverso» (requerimento, ponto 14.º).
Por seu lado, a segunda questão de constitucionalidade colocada respeita especificamente ao subcritério
da lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico, e baseia-se em idêntica ordem
de razões (requerimento, ponto 7.º): no caso, «a total ausência de densificação do que seja lesão definitiva de
gravidade extrema nem de consenso científico», para mais conjugado com «o caráter muito indefinido do
conceito de sofrimento intolerável» (requerimento, ponto 8.º). Com efeito, resulta de tal indeterminação a
«ausência de um quadro legislativo minimamente seguro que possa guiar» a atuação do médico interveniente
no procedimento (ibidem). A insegurança é ainda agravada pela natureza do referente – uma lesão definitiva
de gravidade extrema –, uma vez que, «nada se referindo quanto à sua natureza fatal» não se vê como possa
estar aqui em causa a antecipação da morte, uma vez que esta pode não ocorrer em consequência da referida
lesão», solução considerada «pouco consentânea […] com os objetivos assumidos pelo legislador, na medida
em que permite uma interpretação, segundo a qual a mera lesão definitiva de gravidade extrema poderia
conduzir à possibilidade de morte medicamente assistida» (ibidem).
11. Sendo as questões de constitucionalidade reportadas à insuficiente densidade normativa – que
funciona, assim, como a causa determinante das invocadas inconstitucionalidades, ou seja, a concreta causa
de inconstitucionalidade correspondente à causa de pedir – dos conceitos indeterminados ínsitos no
enunciado dos dois critérios (e subcritério) identificados pelo requerente, não surpreende, pelo menos numa
primeira aproximação, a pretensão daquele que o juízo deste Tribunal se cinja aos segmentos normativos do
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n.º 1 do artigo 2.º por si identificados na parte inicial do requerimento. De resto, mesmo a referência ao
problema da «amplitude da liberdade de limitação do direito à vida, interpretado de acordo com o princípio da
dignidade da pessoa humana, conforme decorre da conjugação do artigo 18.º, n.º 2, respetivamente, com os
artigos 1.º e 24.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa» feita na conclusão do pedido, sinaliza
uma especial exigência em matéria de densificação dos pressupostos de que depende a despenalização da
antecipação da morte medicamente assistida.
Não obstante, para aferir a exata delimitação da norma ou normas objeto do pedido e, bem assim, dos
poderes de cognição deste Tribunal, impõe-se considerar o teor e a estrutura do artigo 2.º do Decreto n.º
109/XIV, onde, conforme refere expressamente o requerente, se aloja a ou as normas por si sindicadas.
Este preceito versa, como referido, sobre a antecipação da morte medicamente assistida não punível: o n.º
1 refere-se, prima facie, à noção de antecipação da morte não punível, salientando que a mesma, só ocorre
por decisão da própria pessoa, podendo ser praticada diretamente ou ajudada a praticar por profissionais de
saúde, mas, em qualquer caso, desde que se encontrem verificadas determinadas condições; o n.º 2 delimita
o universo das pessoas legitimadas a pedir a antecipação da própria morte a um profissional de saúde,
esclarecendo o n.º 3 que a decisão relativa a tal antecipação, para ser relevante, deve concretizar-se num
pedido, a tramitar nos termos do procedimento clínico e legal disciplinado no Decreto; e, enfim, o n.º 4
estabelece a livre revogabilidade, a qualquer momento, do pedido de antecipação da morte, remetendo,
quanto às consequências dessa revogação para o artigo 11.º.
Em concreto, a disposiçãonormativa (na expressão de Blanco de Morais, Justiça Constitucional, Tomo II,
O Direito do Contencioso Constitucional, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2011, p. 164) do n.º 1 do artigo
2.º, isto é, o enunciado linguístico correspondente a tal artigo, em que se inserem as duas «normas»
pretendidas identificar pelo requerente a partir de dois segmentos literais, reporta-se à noção de antecipação
da morte medicamente assistida não punível. Numa primeira leitura da mesma, aquela disposição contém uma
norma jurídica, estruturalmente completa, ou seja, em cujo «módulo lógico» se pode distinguir «um
antecedente e um consequente, ou seja, uma previsão e uma estatuição» (assim, Baptista Machado,
Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1983, p. 79, itálicos acrescentados; no
mesmo sentido, cfr. Miguel Nogueira de Brito, Introdução ao Estudo do Direito, AAFDL Editora, Lisboa, 2017,
pp. 420 e 432): a antecipação da morte praticada ou ajudada por profissional de saúde que ocorre por decisão
da própria pessoa (previsão 1), maior (previsão 2), cuja vontade seja reiterada, séria, livre e esclarecida
(previsão 3), em situação de sofrimento intolerável (previsão 4), com lesão definitiva de gravidade extrema de
acordo com o consenso científico (previsão 4.1) ou doença incurável e fatal (previsão 4.2), não é punível
(estatuição).
Aprofundando a compreensão lógica do mesmo preceito, no seu contexto de completude significativa – a
caracterização e consagração normativa do que constitui a antecipação da morte medicamente assistida não
punível –, extrai-se uma «outra» (rectius, extrai-se «a») norma jurídica, igualmente completa (dotada de
antecedente normativo/previsão e consequente normativo/estatuição), que esse n.º 1 exprime, na sua
inarredável integração com o n.º 3 do mesmo artigo. E isto é assim, já que a «decisão», que se expressa no
pedido da própria pessoa, apto a fazer ocorrer (a ter como resultado) a antecipação da sua morte (ou,
segundo a letra do n.º 2 do artigo 12.º do Decreto, a «prática» «[d]o ato de antecipação da [sua] morte»),
necessariamente desencadeia («obedece», na terminologia do n.º 3) um procedimento clínico e legal, de
acordo com o regime previsto na lei. Ora, segundo tal leitura integrada, resulta do n.º 1: a antecipação da
morte praticada ou ajudada por profissional de saúde que ocorre por decisão da própria pessoa (previsão 1),
maior (previsão 2), cuja vontade seja reiterada, séria, livre e esclarecida (previsão 3), em situação de
sofrimento intolerável (previsão 4), com lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso
científico (previsão 4.1) ou doença incurável e fatal (previsão 4.2), formalmente expressa num pedido (previsão
5), a tramitar segundo um procedimento clínico e legal regulado na mesma lei (previsão 6), não é punível
(estatuição).
É este o enunciado da norma jurídica (que é completa) que integralmente reflete, no seu todo significativo
incindível – sem desvirtuar o sentido do que só nesse todo adquire verdadeira existência –, no seio do Decreto
n.º 109/XIV, a pretendida antecipação da morte medicamente assistida não punível que o legislador
intencionou consagrar com a aprovação do diploma.
Com efeito, o conteúdo prescritivo essencial correspondente à opção político-legislativa positivada no
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Decreto n.º 109/XIV encontra-se expresso no respetivo artigo 2.º, n.º 1: não é punível a antecipação da morte
de uma pessoa a seu pedido, praticada ou ajudada por profissionais de saúde, desde que verificadas
determinadas condições ou pressupostos (correspondentes aos segmentos da previsão anteriormente
indicados). Ou seja, por via desta disposição, o legislador redesenha em certos termos – e somente nesses
termos – a linha que separa o ilícito do lícito quanto à colaboração voluntária de terceiros na morte de uma
pessoa a seu pedido, já que fora das condições estatuídas no preceito em análise a mesma colaboração
continua a ser criminalizada (cfr. os artigos 1.º e 27.º do referido Decreto).
Significa isto que, sob pena de se manipular – ou mesmo atraiçoar – o pensamento legislativo, as diversas
condições de que depende a passagem da fronteira da antecipação da morte medicamente assistida punível
para a não punível, não podem deixar de ser vistas e compreendidas como uma unidade de sentido. Por
outras palavras, cada um dos critérios cumulativos de que depende a não punibilidade da referida colaboração
voluntária dos profissionais de saúde na antecipação da morte de alguém a seu pedido – previsões 1 a 6, sem
prejuízo do caráter alternativo entre si das previsões 4.1 e 4.2 – não vale isolada e autonomamente. À
completude estrutural da norma corresponde, por força do sentido prescritivo que a mesma encerra, uma
unidade teleológica impeditiva de uma segmentação – ou «fatiamento» – em que cada uma das condições
(cumulativas) de acesso – ou critérios – à antecipação da morte medicamente assistida pudesse adquirir um
sentido normativo autónomo suscetível de ser considerado isoladamente.
A eliminação de uma ou mais dessas condições implicaria, na verdade, a transformação da norma
constante do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIV num aliud: a referida linha divisória da esfera ilícito-lícito
não só passaria a ser outra – nomeadamente em função do pressuposto ou critério que tivesse sido eliminado
–, como, sobretudo, passaria a obedecer a uma diferente teleologia. Ora, tal como não seria concebível em
sede de fiscalização abstrata sucessiva que, na eventualidade de um juízo positivo de inconstitucionalidade
parcial incidente sobre apenas um desses critérios ou condições, a norma pudesse continuar a vigorar
expurgada do critério então considerado inconstitucional – sob pena de ser o Tribunal a redesenhar ele
próprio, por via da sua decisão, uma nova fronteira e, assim, uma nova norma –, nesta sede de fiscalização
preventiva, a apreciação a realizar pelo Tribunal também não pode deixar de considerar a norma na sua
unidade teleológica e a consequente união incindível dos elementos da sua previsão.
Deste modo, por razões de ordem teleológica – designadamente a mencionada redefinição da fronteira
entre o que deixou de ser ilícito para passar a ser lícito em matéria de colaboração ou intervenção voluntária
na antecipação da morte de uma pessoa, a seu pedido – a previsão da norma constante do citado artigo 2.º,
n.º 1 (a prática ou ajuda à antecipação da morte de alguém a seu pedido em determinadas condições)
constitui uma unidade de sentido que não se deixa reconduzir à soma dos diferentes critérios ou pressupostos
nela estabelecidos como condição de atuação da estatuição (a descriminalização ou não punibilidade de tal
prática). Neste caso, portanto, o todo daquela previsão é mais do que a soma das suas partes.
Esta razão de ordem substantiva tem, como mencionado, uma correspondência na completude formal-
estrutural da norma em causa. O artigo 2.º, n.º 1, em apreço contém, na verdade, uma formulação normativa
típica: orienta a conduta dos seus destinatários e consubstancia um autónomo critério de decisão. O mesmo
preceito é uma verdadeira disposição normativa. Ao invés do que poderia parecer numa leitura superficial, o
seu alcance não se esgota na determinação das situações a que se aplica o regime estabelecido nos artigos
subsequentes, como se se tratasse de uma simples definição legal (sobre a contraposição entre normas
prescritivas e outros enunciados jurídicos, como as definições legais, v. além dos Autores acima referidos,
José Lamego, Elementos de Metodologia Jurídica, Almedina, Coimbra, 2016, pp. 39 e ss.). Inversamente, tais
artigos, nomeadamente os do Capítulo II (artigos 3.º a 16.º), é que desenvolvem e regulam aspetos já contidos
no artigo 2.º, n.º 1.
A inadequação do enunciado deste preceito como definição legal (ou como definição tout court) acaba, de
resto, por ser implicitamente reconhecida pelo próprio requerente, ao salientar a sua incompreensão,
secundando as críticas expressas no parecer pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida,
relativamente àquele que acima foi identificado como o primeiro subcritério do segundo critério: «sendo o único
critério associado à lesão o seu caráter definitivo, e nada se referindo quanto à sua natureza fatal, não se vê
como possa estar aqui em causa a antecipação da morte, uma vez que esta pode não ocorrer em
consequência da referida lesão» (requerimento, ponto 8.º). Correspondendo a morte a uma inevitabilidade – a
hora é incerta, mas a morte é certa – a (única) antecipação da morte aqui relevante é aquela que, sendo
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punível noutras circunstâncias, por força do disposto no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto deixa de o ser.
De todo o modo, é de referir que nem o caráter estruturalmente completo de uma dada norma, nem a sua
unidade teleológica constituem obstáculos definitivos à identificação, a partir de segmentos ideais da mesma
ou de partes do respetivo enunciado linguístico, de outras normas autónomas de âmbito mais restrito –
operando-se, deste modo, um desdobramento da primitiva norma em (sub) normas de âmbito mais restrito –
sem que tal desvirtue ou ponha necessariamente em causa o sentido normativo fundamental da primeira.
Por exemplo, e confirmando isso mesmo, no caso vertente, facilmente se podem autonomizar quatro
normas, considerando a dupla alternativa «praticar ou ajudar» na antecipação da morte pedida por pessoa em
situação de sofrimento intolerável, com «lesão definitiva ou doença incurável e fatal». E em qualquer uma
delas subsiste a unidade teleológica da respetiva previsão, já que em todas continua a operar-se – e, o que se
afigura decisivo, a respeitar-se no seu núcleo essencial –, ainda que somente no âmbito de aplicação material
respetivo – que é necessariamente mais restrito – a mencionada redefinição da fronteira entre o ilícito e o lícito
operada pelo legislador.
Este pretendeu definir por via do Decreto n.º 109/XIV, e no exercício da sua liberdade de conformação, o
espaço máximo do lícito no quadro da ilicitude preexistente. Assim sendo, a referida segmentação normativa
seria possível, porque apenas estaria em causa a delimitação, naquele espaço máximo, de áreas de licitude
mais reduzidas para a antecipação da morte medicamente assistida não punível – somente a ajuda, e não
também a prática; ou somente no caso de doença incurável e fatal; e não também em caso de lesão definitiva
de gravidade extrema. Tratar-se-ia, assim, de diminuir, por razões de constitucionalidade, o espaço do lícito
criado pelo legislador dentro do ilícito já existente, e que o legislador quis manter; e não de o aumentar, como
porventura poderia resultar da supressão de outras condições. Uma tal operação de redução ou limitação seria
legítima, porquanto o Tribunal não estaria a desbravar novas fronteiras, substituindo-se ao legislador nessa
tarefa, mas tão-somente, no exercício do seu poder de controlo negativo, a limitar, por razões de legitimidade
constitucional, as escolhas já realizadas pelo próprio legislador.
12. Assim, no presente processo, admitindo-se que a pretensão do requerente aponta no sentido de que o
juízo a proferir se deva cingir às normas (segmentos normativos), isoladamente consideradas, do n.º 1 do
artigo 2.º do Decreto n.º 109/XIV enunciadas no requerimento – as normas constantes do n.º 1 do artigo 2.º, na
parte em que define antecipação da morte medicamente assistida não punível como a antecipação da morte
por decisão da própria pessoa, maior, em situação de sofrimento intolerável, e na parte em que integra no
conceito de antecipação da morte medicamente assistida não punível o (sub)critério lesão definitiva de
gravidade extrema de acordo com o consenso científico – considera-se, todavia, como decorre das
considerações feitas no número anterior, e, em especial, face à completude e ao sentido da norma jurídica em
causa, que a análise de tal pretensão carece de sentido se não for integrada no conjunto global e lógico dos
elementos da previsão da norma que, cumulativamente, determinam a não punibilidade da antecipação da
morte medicamente assistida por decisão da pessoa e a seu pedido.
Com efeito, resulta da estrutura da norma que os segmentos do n.º 1 do artigo 2.º autonomizados no
requerimento correspondem a dois elementos que, a par dos demais, constituem requisitos ou pressupostos
do parecer favorável a emitir pela CVA, na sequência de pareceres favoráveis sucessivos emitidos pelos
médicos intervenientes no procedimento (artigo 7.º, n.º 1), parecer esse que é condição necessária para se
passar à fase da concretização da decisão de antecipar a morte da pessoa que, com o seu pedido, deu início
ao procedimento clínico e legal que culmina na administração (ou autoadministração) dos fármacos letais
(artigos 2.º, n.º 3, 8.º, n.º 1, e 9.º, todos do Decreto n.º 109/XIV). Por ser assim, tais segmentos devem ser
entendidos lógica e teleologicamente como elementos objetivos (juntamente com outros não mencionados no
pedido) dos quais depende a exclusão da punição da prática ou ajuda, por profissional de saúde, à
antecipação da morte de alguém a seu pedido.
Deve entender-se, pois, que o objeto material do pedido enunciado pelo requerente não pode deixar de ser
recortado, para que verdadeiramente adquira sentido no quadro compreensivo em que se integra e justifica, na
sua conjugação com os demais elementos da previsão da norma.
Assim, a norma sindicada a título principal, tal como compreendida pelo Tribunal, é a que consta do artigo
2.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIV, com todo o seu conteúdo prescritivo (designadamente aquele que lhe é
projetado a partir do número 3), enquanto norma completa, ao considerar antecipação da morte medicamente
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assistida não punível a que ocorre por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada,
séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva de gravidade extrema de
acordo com o consenso científico ou doença incurável e fatal, quando praticada ou ajudada por profissionais
de saúde e concretizada mediante pedido que obedece a procedimento clínico e legal (previsto no Decreto).
Este recorte ou entendimento permite ao Tribunal analisar a conformidade de tal norma com a Constituição,
incluindo o parâmetro do direito à vida, consagrado no respetivo artigo 24.º, n.º 1, o qual o próprio requerente
não deixa de invocar quando, ao enunciar (negativa e positivamente) o objeto do recurso, refere «tratar-se de
matéria que se situa no core dos direitos, liberdades e garantias, por envolver o direito à vida e a liberdade da
sua limitação, num quadro de dignidade da pessoa humana»; e, outrossim, mais adiante, na conclusão, ao
fazer referência «à amplitude da liberdade de limitação do direito à vida, interpretado de acordo com o
princípio da dignidade da pessoa humana, conforme decorre da conjugação do artigo 18.º, n.º 2,
respetivamente, com os artigos 1.º e 24.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa» (cfr. o ponto 3.º do
requerimento e a conclusão); ou, ainda, quando afirma que a «insuficiente densificação normativa não parece
conformar-se com a exigência constitucional em matéria de direito à vida e de dignidade da pessoa humana»
(requerimento, ponto 9.º).
13. Também as concretas questões de constitucionalidade suscitadas pelo requerente – e sobre as quais o
Tribunal tem o dever de se pronunciar nesta sede – com base na alegação de uma insuficiente densificação
normativa dos critérios por si identificados em função de parâmetros como os princípios da legalidade e da
tipicidade criminal, consagrados nos artigos 29.º, n.º 1, e 112.º, n.º 5, da Constituição, só têm sentido à luz da
prescrição ínsita no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto: o grau de determinabilidade exigível aos conceitos
expressamente referidos na parte inicial do requerimento e ao longo da respetiva fundamentação – e, antes
disso, o próprio sentido e alcance normativo-jurídico dos mesmos – só é inteligível à luz da função dos
pressupostos ou critérios que tais conceitos visam exprimir. Ou seja, os mesmos só correspondem a
«critérios», porque estão associados à condição de produção de certos efeitos jurídicos (in casu, trata-se de
pressupostos essenciais da não punição da assistência à morte medicamente assistida; considerados como
meros enunciados linguísticos, os conceitos em apreço limitam-se a descrever a realidade empírica, sem
qualquer relevância jurídica. Por outro lado, na dogmática jusadministrativa – pertinente in casu, desde logo
em razão da intervenção necessária no procedimento clínico e legal de uma entidade pública, como é o caso
da CVA, mediante a emissão de parecer (cfr. os artigos 7.º, n.os
1 e 4, 23.º, 24.º e 25.º, n.º 1, todos do Decreto
n.º 109/XIV) – a indeterminação normativa decorrente da utilização de certas expressões é relevante para
efeitos de saber se o legislador pretendeu ou não atribuir uma margem de livre apreciação – e, em caso
afirmativo, quais os limites da mesma – e tal conclusão depende da interpretação da norma em que tais
conceitos se integram (cfr., por todos, Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. II, 3.ª ed.,
Almedina, Coimbra, 2016, pp. 93 e ss., maxime p. 100: só «em concreto, por interpretação da lei se pode
determinar a que tipo se reconduz certo conceito indeterminado»; e Marcelo Rebelo de Sousa e André
Salgado de Matos, Direito Administrativo Geral, tomo I, 3.ª ed., Dom Quixote, Alfragide, 2008, pp. 183 e ss.,
maxime pp. 190-193). Ou seja, o grau de determinabilidade exigível aos conceitos utilizados nos enunciados
linguísticos correspondentes a disposições normativas é função do sentido e alcance das normas em que os
mesmos se integram. Assim, no caso vertente, a determinabilidade dos conceitos expressamente referidos
pelo requerente implica o conhecimento da sua função no quadro da própria previsão da antecipação da morte
medicamente assistida.
B) O horizonte problemático da antecipação da morte medicamente assistida prevista no artigo 2.º,
n.º 1, do Decreto n.º 109/XIV
14. As considerações que antecedem permitem compreender o horizonte problemático em que a não
punibilidade da antecipação da morte medicamente assistida objeto do Decreto n.º 109/XIV se inscreve e torna
mais clara a estratégia argumentativa seguida pelo requerente, em especial no que se refere à intenção
expressa de não discutir «a eutanásia, enquanto conceito» e a questão de saber se a mesma «é ou não
conforme com a Constituição» (requerimento, ponto 3.º).
A verdade é que a antecipação da morte medicamente assistida implica a colaboração voluntária de
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profissionais de saúde na morte de uma pessoa a seu pedido, a qual, até à data, é sempre punível, nos termos
dos artigos 134.º e 135.º do Código Penal (ou, porventura, em função das circunstâncias do caso, mesmo dos
artigos 131.º e 133.º do mesmo Código). O fim precípuo do legislador, pelo menos no tocante à norma do
artigo 2.º, n.º 1, do citado Decreto, foi o de deixar de punir tal colaboração, desde que realizada por
profissionais de saúde com observância de determinadas condições materiais e procedimentais, libertando-os,
desse modo, do dever de não matar ou de não ajudar ao suicídio de terceiros. Ou seja, e agora na perspetiva
de quem deseja morrer: o direito a uma morte medicamente assistida nas condições legalmente previstas –
direito esse que também é conferido pelo diploma em análise – implica excluir a punibilidade dos profissionais
de saúde que, nessas mesmas condições, matem ou colaborem na morte da pessoa que exerceu tal direito.
Na perspetiva do requerente, dir-se-á que a prática da antecipação da morte medicamente assistida, tal
como prevista no referido artigo 2.º, n.º 1, é considerada não punível desde que se mostrem respeitados
determinados pressupostos, entre eles, a «situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva de
gravidade extrema de acordo com o consenso científico ou doença incurável e fatal». Porém, atendendo ao
significado objetivo de tal prática – matar alguém a seu pedido ou ajudar alguém a suicidar-se – a discussão
das condições concretas ou dos pressupostos da mesma prática só tem sentido – e só tem utilidade –, caso a
mesma não seja, desde logo, e de per si, incompatível com a Constituição, nomeadamente com o disposto no
seu artigo 24.º, n.º 1. A antecipação da morte medicamente assistida, pela sua própria natureza, contende
obviamente com o valor da vida humana afirmado nesse preceito, pelo que tal questão, além de incontornável,
é prévia a todas as demais expressamente colocadas pelo requerente (e isto, independentemente da extensão
atribuída no caso concreto ao objeto do pedido).
15. A alternativa entre a prática ou ajuda à morte medicamente assistida não punível convoca, ao menos
implicitamente, diferentes conceitos em regra associados à temática que o legislador entendeu regular – a
decisão de uma pessoa pôr termo à vida, com o envolvimento de outra pessoa, que a ajuda a praticar o ato
que provoca a morte ou pratica tal ato – evitando as expressões mais usuais para referir os conceitos de ajuda
à morte (Sterbehilfe) ou eutanásia, frequentemente discutidos e analisados no domínio do direito penal. Trata-
se de realidades muito diferenciadas cujo «núcleo semântico» se prende «com a ideia de proporcionar uma
boa morte ou uma morte suave a quem se encontra numa fase terminal da vida, acometido por doença
incurável e numa situação de profundo sofrimento» (assim, v. Rui Medeiros e Jorge Pereira da Silva in Jorge
Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2010,
anot. XXVII ao artigo 24.º, p. 530; no mesmo sentido fundamental, v. Figueiredo Dias, «A ‘ajuda à morte’: uma
consideração jurídico-penal» inRevista de Legislação e de Jurisprudência, n.º 137.º, Ano 2007-2008, n.º 3949
(março-abril de 2008), pp. 202 e ss., p. 203).
Esta perspetiva é confirmada pelos cinco projetos de lei que integraram o procedimento legislativo que
culminou na aprovação do Decreto n.º 109/XIV:
– O Projeto de Lei n.º 4/XIV/1.ª, apresentado pelo Bloco de Esquerda, tinha por objeto definir e regular as
condições em que a antecipação da morte por decisão da própria pessoa (com lesão definitiva ou doença
incurável e fatal e em sofrimento duradouro e insuportável), quando praticada ou ajudada por profissionais de
saúde, não é punível (artigos 1.º e 8.º, n.º 2);
– O Projeto de Lei n.º 67/XIV/1.ª, apresentado pelo PAN, tinha por objeto regular o acesso à morte
medicamente assistida, «na vertente de eutanásia e suicídio medicamente assistido» (cfr. artigos 1.º e 12.º);
– O já mencionado Projeto de Lei n.º 104/XIV/1.ª, apresentado pelo Partido Socialista, visava regular as
condições especiais em que a prática da eutanásia não é punível (artigo 1.º), abrangendo no conceito de
eutanásia a prática e a ajuda à antecipação da morte («considera-se eutanásia não punível a antecipação da
morte por decisão da própria pessoa, maior, em situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva ou
doença incurável e fatal, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde» – cfr. o artigo 2.º, n.º 1);
– O Projeto de Lei n.º 168/XIV/1.ª, apresentado pelo Partido Ecologista «Os Verdes», visava regular as
condições e os procedimentos específicos a observar nos casos de morte medicamente assistida e alterar o
Código Penal para despenalizar a morte medicamente assistida (artigo 1.º, n.º 1), consistindo a morte
medicamente assistida na administração de fármacos por médico ou pelo próprio doente sob vigilância
médica, configurando este caso o suicídio medicamente assistido [artigo 3.º, n.º 2, alíneas a) e b)];
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– Por fim, o Projeto de Lei n.º 195/XIV/1.ª, apresentado pelo Deputado único da Iniciativa Liberal visava
definir e regular as condições em que a antecipação da morte por decisão consciente e expressa,
manifestando vontade atual, livre, séria e esclarecida da própria pessoa que, padecendo de lesão definitiva ou
doença incurável e fatal, esteja em sofrimento duradouro e insuportável, quando praticada ou assistida por
profissionais de saúde, não é punível (artigo 1.º), mediante autoadministração ou administração por médico de
fármaco letal (artigo 8.º, n.º 2).
Em suma, do conjunto dos projetos de lei apresentados resulta que a expressão eutanásia apenas é
utilizada em dois deles – seja nela abrangendo a prática e a ajuda à antecipação da morte (Projeto de Lei n.º
104/XIV/1.ª), seja distinguindo a eutanásia do suicídio medicamente assistido (Projeto de Lei n.º 67/XIX/1.ª).
Decerto que a omissão do termo no Decreto aprovado terá tido em conta o receio de que os difíceis problemas
colocados por esta realidade, até «na sua incidência especificamente jurídico-penal, [são] muitas vezes
obscurecidos pelo clima de paixão em que ocorrem as controvérsias, maxime, quando se depara com o tabu
que continua a ligar-se ao uso do termo ‘eutanásia’» (cfr., Figueiredo Dias, cit., p. 202, que mais adiante
adverte para a necessidade rigorosa de delimitação do contexto problemático em causa – ibidem, pp. 204-
205).
Daí a importância de clarificar, ab initio, que o núcleo problemático da eutanásia se situa corrente e
tipicamente «‘no auxílio médico […] à morte de um paciente já incurso num processo de sofrimento cruel e
que, segundo o estado dos conhecimentos da medicina e um fundado juízo de prognose médica, conduzirá
inevitavelmente à morte; auxílio médico que previsivelmente determinará um encurtamento do período de vida
do moribundo’» (v. Rui Medeiros e Jorge Pereira da Silva, ob. cit., anot. XXVIII ao artigo 24.º, p. 533, citando
Figueiredo Dias). É este o referente tradicional e fundamental, que está na base das ideias de humanidade e
compaixão enformadoras da noção de «boa morte» ou «morte tranquila», uma morte inevitável, mas sem
sofrimento.
Como as experiências de direito comparado comprovam, ao menos a questão da ajuda ao suicídio ou do
suicídio medicamente assistido – mas não já as da morte a pedido – também tem sido equacionada a partir de
uma perspetiva diferente, radicada na autonomia pessoal e na consequente capacidade de autodeterminação,
mesmo em relação ao fim da vida (v., muito particularmente, as decisões do Bundesvewrfassungsgericht, de
26 de fevereiro de 2020 [2 BvR 2347/15, em especial, Rn. 210 e 212-213] e do Verfassungsgerichtshof
(austríaco), de 11 de dezembro de 2020 [G 139/2019-71, em especial, Rn. 73-74 e 80-81]. Todavia, não foi
esse, manifestamente, o caminho seguido pelo legislador português, que não só decidiu tratar conjuntamente
a prática da antecipação da morte de uma pessoa a seu pedido e da ajuda à antecipação da morte igualmente
a pedido da pessoa que vai morrer (cfr. os artigos 2.º, n.º 1, 8.º, n.º 2, e 9.º, n.º 2, do Decreto n.º 109/XIV),
como, sobretudo, manteve a incriminação da ajuda ao suicídio prestada fora das condições previstas no
Decreto (cfr. o respetivo artigo 27.º).
16. Mesmo no referido quadro problemático de referência do legislador português é necessário e
conveniente clarificar algumas noções.
O termo eutanásia é proveniente do grego e decorre da junção das palavras eu (bem) e thanatos (morte),
expressando a ideia de uma «boa morte». Em sentido amplo, o conceito é usualmente utilizado de forma
indiferenciada para abarcar diferentes realidades associadas à morte assistida. Porém, em sentido estrito, é
empregue para denominar situações em que um terceiro provoca ativa ou passivamente a morte de outra
pessoa. Assim, a eutanásia ativa (direta) traduz-se na ação praticada por uma pessoa destinada a provocar
diretamente a morte de outra pessoa, a seu pedido. Ao invés, a eutanásia passiva traduz-se na omissão de
uma pessoa (em regra um médico) em adotar medidas de prolongamento da vida de outra, o que irá
invariavelmente provocar a sua morte. Enquanto a eutanásia ativa se encontra criminalizada em quase todos
os ordenamentos jurídicos a nível mundial (seja pela sua subsunção ao crime fundamental de homicídio ou a
um crime privilegiado de homicídio a pedido da vítima), a eutanásia passiva tem vindo a ser aceite de forma
mais generalizada, sendo permitida num número bastante mais alargado de Estados.
Distintas da eutanásia em sentido estrito são as situações de suicídio assistido (ou ajuda ao suicídio), em
que um terceiro se limita a auxiliar outra pessoa a cometer suicídio. A diferença para os casos de eutanásia
ativa reside no facto de não ser o terceiro a provocar diretamente a morte de outra pessoa, limitando-se a
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contribuir para que a mesma consiga pôr termo à própria vida (v.g., através do fornecimento de uma
substância letal, que é autonomamente ingerida ou injetada pelo próprio suicida). Também esta conduta se
encontra criminalizada em quase todos os Estados a nível mundial, embora existam ordenamentos jurídicos
que demonstrem uma maior tolerância relativamente a esta prática em comparação com a eutanásia ativa
(v.g. Alemanha, Itália, Suíça e, agora, na sequência da referida decisão do Verfassungsgerichtshof, também a
Áustria).
Por fim, importa ainda assinalar que existem outras realidades e conceitos que se encontram intimamente
ligados ao tema da morte assistida. Um deles é a ortotanásia (também conhecida como eutanásia ativa
indireta), referente às intervenções médicas que, embora se destinem a reduzir as dores do paciente,
apresentam o risco de provocar o encurtamento da sua vida. Por sua vez, a distanásia (também designada
como obstinação terapêutica) ocorre quando um paciente é mantido vivo de forma meramente artificial e
desproporcional, através de tratamentos médicos de suporte à vida que retardam uma morte que se afigura
inevitável.
17. Recorde-se que a norma do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIV, tal como entendida por este
Tribunal, versa sobre o que, para efeitos da lei, se considera antecipação da morte medicamente assistida não
punível, contendo, na sua estrutura completa, os elementos de previsão e estatuição já antes identificados.
Conforme também já referido, aquele preceito aloja diversas previsões normativas, passíveis de combinação
entre si, todas elas conducentes ao mesmo conceito – que o legislador designa como «antecipação da morte
medicamente assistida» – e todas elas submetidas ao mesmo regime – correspondente aos trâmites e
condições regulados no citado Decreto.
Tomando este quadro complexo por pressuposto, não pode deixar de se precisar que o citado artigo 2.º, n.º
1, configura na respetiva facti species, em alternativa, a antecipação da morte medicamente assistida não
punível i) praticada por profissionais de saúde; ou ii) ajudada por tais profissionais. O legislador, ao tratar e
valorar conjuntamente a vontade de antecipação da morte e os pressupostos em que a mesma pode ser
relevante, com total abstração, até quase ao termo de procedimento preparatório, do modo de execução do
concreto «ato de antecipação da morte» (a expressão surge no artigo 13.º do Decreto n.º 109/XIV), por via da
administração ou da heteroadministração de fármacos letais, tende a estabelecer uma parificação categorial e
normativa entre duas práticas de fim de vida, comummente designadas por eutanásia ativa direta e auxílio ao
suicídio. Na perspetiva legal, está em causa indistintamente o envolvimento do médico orientador e de outros
profissionais de saúde na preparação e na execução do ato de antecipação da morte.
Apesar das diferenças estruturais entre aquelas duas práticas, fundadas no «domínio sobre o ato que de
forma imediata e irreversível produz a morte» (assim, v., por todos, Costa Andrade, «Comentário ao artigo
134.º», §§ 18-24, pp. 105-109, em especial, o § 23, p. 108, in Figueiredo Dias (dir.), Comentário
Conimbricense do Código Penal, tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2012) – mas no regime contido no
citado Decreto, apesar de tudo, muito atenuadas por via da respetiva procedimentalização – , o legislador terá
optado por valorizar os momentos de comunicabilidade entre as mesmas, que também existem, e que, dados
os pressupostos previstos no artigo 2.º, n.º 1, do mesmo diploma, surgem reforçados:
«Estão em causa duas incriminações [– o Homicídio a pedido da vítima, no que se refere à eutanásia ativa;
e o Incitamento e ajuda ao suicídio, no caso do suicídio medidamente assistido –] em cuja área de proteção
parece irrecusável a presença inter alia do propósito de prevenir o perigo (abstrato) de uma decisão apressada
ou precipitada pelo termo da vida. Num caso e noutro sobra por isso problemática a punição do facto em
situações concretas em que aquele perigo perde plausibilidade. Isto é, naquelas situações concretas em que –
à vista da perda irreversível de sentido da continuação da vida, pela iminência irreversível da morte e pelo
caráter incontrolável e insuportável do sofrimento – o exercício da autodeterminação no sentido de pôr termo à
vida se afigura «objetivamente razoável». Em termos tais que o respeito pela dignidade pessoal postula o
respeito pela decisão compreensível do paciente» (assim, v. Costa Andrade, Comentário Conimbricense, cit.,
«Comentário ao artigo 135.º», § 12, p. 139).
Ou seja, desconsiderando em larga medida as diferenças normalmente apontadas, no Decreto n.º 109/XIV
opta-se por tratar e valorar indistintamente aqueles tipos de condutas como uma única modalidade de ação: a
antecipação da morte medicamente assistida.
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Esta é regulada sem qualquer distinção de tipo ou grau relativamente ao agente causador da morte. Aliás,
a escolha entre a prática da antecipação da morte e a ajuda prestada à mesma reconduz-se, bem vistas as
coisas, a uma escolha do «doente» (cfr. o artigo 3.º, n.º 1), a realizar já na fase de concretização da decisão
de antecipação da morte – uma fase tardia do procedimento clínico e legal estabelecido no Decreto n.º
109/XIV – quanto ao método a utilizar para antecipar a morte: «a autoadministração de fármacos letais pelo
próprio doente ou a administração pelo médico ou profissional de saúde devidamente habilitado para o efeito
mas sob supervisão do médico» (artigo 8.º, n.º 2).
C) O sentido e alcance da morte medicamente assistida regulada no Decreto n.º 109/XIV
18. A alternativa resultante da opção legislativa vertida no Decreto n.º 109/XIV – que se projeta no n.º 1 do
artigo 2.º – entre a prática ou ajuda à antecipação da morte medicamente assistida não punível deve ser
compreendida e enquadrada no âmbito de um complexo quadro de regulação jurídica no qual se integra, em
especial, numa dinâmica de interação entre o cidadão-doente e o Estado, um procedimento administrativo
especial de caráter autorizativo. A finalidade do mesmo é a emissão de um parecer favorável pela CVA, que
constitui condição sine qua non do ato (ou operação material) de antecipação da morte.
Segundo o artigo 7.º, n.º 1, nos casos em que se apresentem os pareceres favoráveis emitidos
previamente pelo médico orientador e pelo médico especialista (e eventualmente pelo médico especialista em
psiquiatria) – artigos 4.º, 5.º e 6.º – e o doente tenha confirmado na sequência de cada um desses pareceres a
sua vontade de antecipar a morte, deve a CVA, a solicitação do médico orientador, emitir «parecer sobre o
cumprimento dos requisitos e das fases anteriores do procedimento», no prazo máximo de 5 dias úteis. Caso o
parecer da CVA seja favorável, o médico orientador informa o doente do seu conteúdo, após o que volta a
verificar se o doente mantém e reitera a sua vontade (artigo 7.º, n.º 4). Só depois, pode o mesmo médico
combinar com o doente o dia, hora, local e método a utilizar para a antecipação da morte (artigo 8.º, n.º 1). A
antecipação da morte propriamente dita, por via da administração (prática da antecipação da morte a pedido)
ou autoadministração (ajuda à antecipação da morte) dos fármacos letais encontra-se prevista e regulada no
artigo 9.º do Decreto.
A CVA corresponde a um órgão independente criado junto da Assembleia da República e funcionando no
âmbito desta para cumprimento do disposto no n.º 1 do artigo 7.º, sendo a sua composição e a disciplina
principal de funcionamento estabelecidas no Decreto n.º 109/XIV (cfr. os artigos 23.º e 24.º). A sua
centralidade no procedimento de antecipação da morte medicamente assistida decorre, em primeiro lugar, da
função de controlo prévio que lhe é cometida por via da competência para a emissão do parecer que põe
termo à fase preparatória daquele procedimento: a antecipação da morte medicamente assistida só pode ser
concretizada, caso o parecer daquela Comissão seja favorável (cfr. o artigo 8.º, n.º 1). Ressalta, em segundo
lugar, a intervenção a posteriori da mesma Comissão, seja em sede de controlo sucessivo da legalidade de
cada procedimento, mediante o relatório de avaliação (cfr. o artigo 25.º, n.os
2 e 3); seja em sede de avaliação
global do funcionamento do sistema, por via do relatório de avaliação anual a apresentar à Assembleia da
República (cfr. o artigo 26.º).
Outra entidade fiscalizadora que sinaliza o compromisso público com o procedimento clínico e legal
previsto no Decreto em análise é a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS), que fiscaliza os
procedimentos clínicos de antecipação da morte, com poderes para, fundamentadamente, determinar a
suspensão ou o cancelamento de procedimentos em curso (cfr. o artigo 22.º, n.os
1 e 2). Para esse efeito, deve
o médico orientador remeter-lhe uma cópia do Registo Clínico Especial (RCE; sobre este v. o artigo 3.º, n.º 1)
após a consignação da decisão do doente relativa ao método para a antecipação da morte, ou seja, a partir do
momento em que se pode passar à administração dos fármacos letais (cfr. o artigo 8.º, n.º 4). A IGAS pode
acompanhar presencialmente o procedimento de concretização da decisão do doente, não carecendo para tal
de autorização deste último, nem do médico orientador (cfr. ibidem, e sem prejuízo do disposto no artigo 9.º,
n.º 1). Finalmente, a IGAS presta à CVA as informações solicitadas sobre os procedimentos de fiscalização
realizados relativamente ao cumprimento da lei (cfr. o artigo 26.º, n.º 3).
19. A antecipação da morte medicamente assistida implica, deste modo, a atuação de um procedimento
administrativo especial, de caráter autorizativo, destinado a comprovar a verificação das condições de que,
nos termos legais, depende o direito de uma pessoa obter a colaboração de profissionais de saúde na
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antecipação da sua própria morte; ou, na perspetiva destes últimos, de os mesmos poderem envolver-se na
preparação e execução de um ato de antecipação da morte de uma pessoa, a pedido desta, sem temerem
uma perseguição criminal, visto encontrarem-se, atenta a observância no caso concreto das referidas
condições legais, libertos do dever de não matar ou de não prestar ajuda ao suicídio.
O procedimento em causa inicia-se com um pedido da pessoa que pretende antecipar a sua morte e
desenvolve-se através de um conjunto encadeado de atos que culmina – ou, melhor, pode culminar – com a
prática do ato de antecipação da morte, por via da autoadministração de fármacos letais (isto é, pelo próprio
doente) ou por administração de tais fármacos diretamente pelo médico ou profissional de saúde sob
supervisão médica (heteroadministração). Tal procedimento envolve, nomeadamente: i) o pedido de abertura
do procedimento clínico de antecipação da morte, formulado pela pessoa (o doente) que tomou a decisão de
antecipar a sua morte, a ser integrado num RCE criado para o efeito (artigos 2.º, n.º 3, e 3.º, n.º 1); ii) a
emissão de um parecer fundamentado pelo médico orientador sobre se o doente cumpre todos os requisitos
referidos no artigo 2.º (artigo 4.º, n.º 1); iii) caso tal parecer seja favorável, a emissão de um parecer do médico
especialista destinado a confirmar que estão reunidas as condições referidas no artigo 2.º, o diagnóstico e
prognóstico da situação clínica e a natureza incurável da doença ou a condição definitiva da lesão (artigo 5.º,
n.º 1); iv) eventualmente, o parecer de um médico especialista em psiquiatria nas condições previstas no artigo
6.º; v) a emissão do parecer «final» da CVA, funcionando enquanto autorização da antecipação da morte
medicamente assistida não punível (artigo 7.º); vi) a concretização da decisão do doente, mediante a fixação
do dia, hora, local e método a utilizar para a antecipação da sua morte (artigo 8.º); vii) a prática do ato de
antecipação da morte, mediante autoadministração dos fármacos letais – que corresponde à antecipação da
morte ajudada por profissionais de saúde – ou a sua heteroadministração – a antecipação da morte praticada
por profissionais de saúde (artigo 9.º); e, ainda, a jusante, viii) a elaboração de um relatório final pelo médico
orientador ao qual é anexado o RCE, a remeter por aquele à CVA e à IGAS.
Refira-se, em todo o caso, que as intervenções para a emissão de parecer, com exceção da intervenção do
médico orientador (e, sendo caso disso, também do médico especialista em psiquiatria), não preveem
expressamente uma relação direta (um exame clínico ou contacto direto) entre os intervenientes nessa fase –
médico especialista e CVA – e o doente.
No quadro deste procedimento, a decisão da pessoa de antecipar a sua morte mencionada no artigo 2.º,
n.º 1, do Decreto – estritamente pessoal e indelegável – tem expressão reiterada ao longo da marcha do
procedimento, pelo menos, em seis (eventualmente, sete) momentos do procedimento administrativo de
preparação e de execução. Primeiro, através da formulação do pedido de abertura do procedimento clínico,
em «documento escrito, datado e assinado pelo próprio ou pela pessoa por si designada» (artigo 3.º, n.º 1);
segundo, após emissão de parecer fundamentado pelo médico orientador, através da decisão de manter e
reiterar a sua vontade, a qual deve ser registada por escrito, datada e assinada (artigo 4.º, n.º 1) e assinada
também pelo médico orientador (v. o n.º 2 do mesmo preceito); terceiro, após emissão de parecer favorável
pelo médico especialista, através da decisão de manter e reiterar a sua vontade, perante o médico orientador
(que informa o doente do conteúdo daquele parecer), a qual deve ser registada por escrito, datada e assinada
(artigo 5.º, n.º 1); quarto (eventualmente), após emissão de parecer favorável pelo médico especialista em
psiquiatria, quando este deva intervir, através da decisão de manter e reiterar a sua vontade, após ser
informado pelo médico especialista em psiquiatria, acompanhado do médico orientador, do conteúdo daquele
parecer – decisão que se qualifica como «consciente e expressa» –, a qual deve ser registada em documento
escrito, datado e assinado (artigo 6.º, n.º 1); quinto, após emissão de parecer favorável da CVA, através da
decisão de manter e reiterar a sua vontade, perante o médico orientador (que informa o doente do conteúdo
daquele parecer) – decisão que se qualifica como «consciente e expressa» – a qual deve ser registada em
documento escrito, datado e assinado (artigo 7.º, n.º 4); sexto, na fase da concretização da decisão do doente,
na qual o médico orientador informa e esclarece o doente sobre os métodos disponíveis para praticar a
antecipação da morte, designadamente a autoadministração de fármacos letais ou a administração pelo
médico ou profissional de saúde habilitado para o efeito mas sob supervisão médica – sendo a decisão nesta
fase «da responsabilidade exclusiva do doente» e devendo a mesma ser consignada por escrito, datada e
assinada (artigo 8.º, n.os
2, 3 e 4); por fim, sétimo, na fase de administração dos fármacos letais, na qual,
«imediatamente antes de se iniciar a administração ou a autoadministração» de tais fármacos, o doente deve
confirmar perante o médico orientador se mantém a vontade de antecipar a sua morte – aqui já não por
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escrito, mas na presença de uma ou mais testemunhas, devidamente identificadas no RCE (artigo 9.º, n.º 3).
Esta exigência de comunicação ao médico orientador – e, bem assim, de documentação num registo de
natureza pública como o RCE – da vontade de manter a decisão inicial de antecipar a própria morte comprova
a interação necessária do interessado com os terceiros que intervêm, sempre numa base em que a respetiva
consciência é salvaguardada por via do direito à objeção de consciência (cfr. o artigo 20.º), ativamente na
antecipação da morte e com o próprio Estado. Este, por intermédio da CVA e da IGAS, assume uma função de
garante de que todas e cada uma das condições previstas no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto é respeitada, desde
a formulação do pedido inicial até à prática do ato de antecipação da morte. Isto, naturalmente, sem prejuízo
do Estado também poder desempenhar o papel de prestador de tal serviço no quadro do Serviço Nacional de
Saúde, conforme previsto no artigo 12.º, n.º 2.
20. Numa tentativa de síntese expressiva, o Decreto n.º 109/XIV, através da projeção densificadora
consequencial da realidade definida no respetivo artigo 2.º, n.º 1, compreendido este no contexto normativo
completo anteriormente descrito, cria e enquadra – legaliza, para usar o conceito que enquadrou o debate
público travado a este respeito –, organiza socialmente (para usar uma expressão de Gustavo Zagrebelsky –
v. infra), a prática da eutanásia e do suicídio assistido. Correspondendo qualquer das situações à causação da
morte a pedido do próprio, distinguem-se, como referido, pelo domínio sobre o ato que de forma imediata e
irreversível produz a morte (cfr. supra o n.º 17, in fine).
Esta distinção materializa-se, no percurso conducente à morte estabelecido no Decreto n.º 109/XIV, no
artigo 8.º, concretamente no seu n.º 2, que assim dispõe:
«Artigo 8.º
Concretização da decisão do doente
1 – Mediante parecer favorável da CVA, o médico orientador, de acordo com a vontade do doente, combina
o dia, hora, local e método a utilizar para a antecipação da morte.
2 – O médico orientador informa e esclarece o doente sobre os métodos disponíveis para praticar a
antecipação da morte, designadamente a autoadministração de fármacos letais pelo próprio doente ou a
administração pelo médico ou profissional de saúde devidamente habilitado para o efeito mas sob supervisão
médica, sendo a decisão da responsabilidade exclusiva do doente. […]».
E vale, na concretização do passo definitivo final, a designada administração dos fármacos letais, previsto
no artigo 9.º, n.º 2: «[i]mediatamente antes de se iniciar a administração ou autoadministração dos fármacos
letais, o médico orientador deve confirmar se o doente mantém a vontade de antecipar a sua morte […]».
Deste modo, a distinção entre eutanásia e suicídio assistido assenta no elemento, referido ao paciente,
heteroadministração e autoadministração da substância que vai produzir a morte. Antes de se alcançar esse
momento ocorre uma decisão do paciente, finalisticamente destinada a obter a sua própria morte, por via de
um procedimento de autorização (pelo Estado) desse desfecho (nas duas formas de concretização antes
referidas) que é condicionado à verificação das condições elencadas no artigo 2.º, n.º 1.
Ou seja, em vista da causação (antecipação, na terminologia legal) da sua morte, a «decisão da própria
pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida», encontrando-se a mesma
pessoa «em situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o
consenso científico ou doença incurável e fatal», é apta, enquadrada num determinado procedimento
legalmente estabelecido (n.º 3 do preceito), a originar um ato de cariz autorizativo – embora sempre referido
como parecer favorável –, protagonizado pela CVA, ato esse que habilita profissionais de saúde a praticarem
diretamente ou a ajudarem a ocorrência do resultado final traduzido na morte do doente (v. o trecho final do
artigo 2.º).
No fulcro da opção legislativa feita pelo Decreto n.º 109/XIV, encontra-se a criação de um procedimento
geral de enquadramento de pretensões de morte medicamente assistida, em função do qual se cria um grupo
de destinatários – aqueles que preencham as condições definidas no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto – elegíveis
para a prática, sob tutela (de legalidade) do Estado, da eutanásia ou do suicídio assistido.
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21. A referida opção legislativa, consagrada nos seus traços essenciais no artigo 2.º, n.º 1, do mencionado
Decreto, reporta-se, assim, na sua substância, a montante da incidência jurídico-penal (que releva apenas
consequencialmente como decorrência da instituição daquele procedimento), a uma categoria de práticas de
fim de vida que, a par de outras diversas que não relevam para a análise da norma em causa (como a
distanásia ou a ortotanásia), «se referem a provocar intencionalmente a morte – pelo próprio e/ou por terceiro
(em que se incluem a eutanásia voluntária ativa direta e o suicídio ajudado) – relativas à administração
deliberada de substâncias letais» (assim, Lucília Nunes, Luís Duarte Madeira e Sandra Horta e Silva, Suicídio
ajudado e eutanásia [Morte provocada a pedido] – Terminologia e sistemática de argumentos. Working Paper,
Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, 2018 [atualização janeiro de 2020], p. 7). No núcleo de
tal opção encontra-se, pois, a consagração no ordenamento jurídico de certas práticas de fim de vida,
manifestando o Decreto n.º 109/XIV a opção do legislador não só de as descriminalizar, em certas condições
(por via da mera não punibilidade de condutas que, não fora essa opção, permaneceriam puníveis), mas de as
regular – e, assim, de as legalizar – no quadro (e apenas no quadro) de um procedimentoadministrativo
autorizativo e de execução que o próprio Estado institui e regula em todas as suas fases e com intervenção
(não apenas, mas sempre) de entidades de natureza pública.
No que releva de tal opção legislativa, assumem lugar central os conceitos de eutanásia ativa direta (ou
ajuda à morte ativa direta) e o suicídio ajudado ou assistido – que, no regime em apreço, só se diferenciam
num elemento muito particular e, porventura, de menor relevo: aquele que detém o controlo da ação e pratica,
efetivamente, o ato de antecipação da morte mediante a utilização (autoadministração ou heteroadministração,
consoante o caso) de fármacos letais, para mais, e como mencionado, por «decisão da exclusiva
responsabilidade» daquele que é morto com tais fármacos (artigo 8.º, n.º 2). No primeiro caso – eutanásia
direta ativa –, o domínio da ação no último momento pertence ao profissional de saúde que pratica o ato de
antecipação da morte, administrando (à pessoa que decidiu a antecipação da sua morte) um fármaco letal; no
segundo – suicídio assistido ou ajudado –, o domínio da ação em tal momento como que é materialmente
repartido entre pessoa que decide a antecipação da sua morte, e quem a ajuda na prática do ato de
autoadministração do fármaco letal. Bem se pode dizer, portanto, que o procedimento clínico e legal instituído
pelo Decreto n.º 109/XIV no âmbito do qual se desenvolve a morte medicamente assistida pressupõe uma
intervenção ativa e decisiva dos profissionais de saúde: sem a colaboração destes e sem o quadro legal-
procedimental em que a mesma tem lugar, a antecipação da morte medicamente assistida não é lícita e
continua a ser punível criminalmente. Por isso, tal quadro tende, em substância, a aproximar a ajuda à
antecipação da morte medicamente assistida de alguém a seu pedido mais da eutanásia ativa direta – a
prática por profissionais de saúde dos atos necessários à antecipação da morte dessa pessoa, com a exceção
do ato material de administração do fármaco letal –; e a afastá-la de um suicídio verdadeiramente autónomo e
meramente assistido ou ajudado (cfr. supra o n.º 17, in fine).
22. Confirmado que a regulação concreta da antecipação da morte medicamente assistida pelo Decreto n.º
109/XIV a integra no horizonte problemático da eutanásia em sentido amplo (e também em sentido próprio, de
modo a abranger tão-só a colaboração voluntária na morte de uma pessoa a seu pedido por razões de
compaixão, de humanidade ou de solidariedade e com o intuito de proporcionar uma morte tranquila a quem
se encontra numa situação de profundo sofrimento – excluindo, por isso, fenómenos como a eutanásia
eugénica), torna-se incontornável discutir se a opção legislativa consagrada no respetivo artigo 2.º, n.º 1, se
compatibiliza ou não com o direito à vida afirmado no artigo 24.º, n.º 1, da Constituição, pois que praticar a
antecipação da morte de alguém, mesmo a seu pedido, ou ajudar alguém a antecipar a sua própria morte
implica necessariamente fazer com que essa pessoa morra ou contribuir decisivamente para a sua morte.
Por outras palavras, perante a alternativa resultante da opção legislativa em causa no artigo 2.º, n.º 1, do
Decreto n.º 109/XIV entre a prática da ou ajuda à morte medicamente assistida não punível – verificados os
pressupostos, cumulativos (ou alternativos previstos igualmente no n.º 1 do artigo 2.º –, não pode deixar de ser
considerado, ao equacionar a conformidade constitucional da norma constante de tal artigo, o parâmetro
constitucional relativo ao direito à vida.
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D) A compatibilidade da antecipação da morte medicamente assistida com a inviolabilidade da vida
humana (artigo 24.º, n.º 1, da Constituição)
23. A conclusão anterior mostra que a aparente tentativa de autolimitar o pedido nos termos preconizados
no ponto 3.º do requerimento – e que assenta na distinção radical entre uma perspetiva puramente conceptual
e abstrata, porventura baseada em postulados filosóficos, éticos ou outros, e o que poderia ser considerado
como uma perspetiva já (ou simplesmente) jurídico-positiva de uma dada disciplina normativa – não se mostra
solvente. A questão de constitucionalidade de saber se, ao consagrar a antecipação da morte medicamente
assistida não punível, incluindo os concretos elementos de previsão questionados pelo requerente, se mostra
violado o direito à vida, tal como consagrado no artigo 24.º, n.º 1, da Constituição, porque respeita ao próprio
sentido prescritivo da norma do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIX, é prévia a qualquer outra, uma vez
que só tem sentido e utilidade discutir vícios que afetem elementos ou partes dessa mesma norma desde que
tal norma globalmente considerada, atento o seu sentido prescritivo, possa subsistir à luz do parâmetro
constitucional. Com efeito, e como já anteriormente mencionado (cfr. supra o n.º 12), a discussão da
conformidade constitucional de condições concretas ou dos pressupostos da própria antecipação da morte
medicamente assistida só tem sentido – e utilidade – caso tal antecipação da morte medicamente assistida
não seja, desde logo, e em si mesma, considerada incompatível com a Constituição, nomeadamente com o
seu artigo 24.º, n.º 1. E isto é assim porque aquela antecipação implica a colaboração voluntária e causal de
terceiros, designadamente dos profissionais de saúde e da própria CVA por via do seu parecer favorável
(abstraindo já da atuação da IGAS) na morte de uma pessoa a seu pedido.
Pelo exposto, a delimitação do objeto do processo antes efetuada – ou seja: a norma do n.º 1 do artigo 2.º
do Decreto n.º 109/XIV, ao considerar antecipação da morte medicamente assistida não punível a que ocorre
por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em
situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso
científico ou doença incurável e fatal, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde e concretizada
mediante pedido que obedece a um procedimento clínico e legal previsto no referido Decreto (cfr. supra o n.º
12) – convoca necessariamente, enquanto parâmetro primacial de apreciação desse objeto, a questão da
tutela constitucional do direito à vida, sedeada no artigo 24.º, n.º 1, da Constituição, aí encabeçando – e
constitui um dado pleno de significado – o Título II da Parte I que no texto constitucional diz respeito aos
direitos, liberdades e garantias [o mesmo sucedendo, sequencialmente, no Capítulo I desse Título (Direitos,
liberdades e garantias pessoais)].
Mas a conclusão não poderia ser outra, mesmo no caso de o pedido se dever considerar limitado aos
concretos aspetos focados no requerimento – o critério expresso no conceito de situação de sofrimento
intolerável (ponto 6.º) e o primeiro subcritério do segundo critério, correspondente à lesão definitiva de
gravidade extrema de acordo com o consenso científico (pontos 7.º e 8.º), porquanto se trata, em ambos os
casos, de pressupostos centrais (e cumulativos) da solução normativa que estatui a não punibilidade da
antecipação da morte medicamente assistida, nessa medida permitindo que tais procedimentos de natureza
eutanásica se tornem admissíveis no ordenamento jurídico português (cfr. supra o n.º 13). Ora, todo o
procedimento clínico e legal da antecipação da morte medicamente assistida está ordenado ao ato de pôr fim
à vida de uma pessoa a seu pedido, seja viabilizando a autoadministração de fármacos letais de forma
controlada e em ambiente adequado, seja por via da heteroadministração do mesmo tipo de fármacos em
idênticas condições.
24. A referida posição cimeira do direito à vida é evidenciada, desde logo, pelo elemento literal do texto
que, numa construção fortemente incisiva, o expressa:
«Artigo 24.º
Direito à vida
1 – A vida humana é inviolável.
2 – Em caso algum haverá pena de morte.»
Essa posição privilegiada é confirmada pela ponderação do contexto que presidiu a uma consagração tão
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expressivamente forte quanto esta, situando-o – conforme referido pelo requerente – «no core dos direitos,
liberdades e garantias dos cidadãos».
A redação daquele preceito foi aprovada por unanimidade na Assembleia Constituinte e permanece
incólume desde a versão originária da Constituição de 1976 (tendo apenas transitado, por via da nova
arrumação do texto decorrente da primeira revisão constitucional, de 1982, do artigo 25.º para o artigo 24.º
atual). Nela sobressai o uso do adjetivo inviolável, apenas repetido no texto constitucional, com uma valoração
categorial semelhante nos artigos 25.º («[a] integridade moral e física das pessoas é inviolável») e 41.º («[a]
liberdade de consciência, de religião e de culto é inviolável») (cfr. Jorge Miranda e Pedro Garcia Marques in
Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, vol. I, cit. [aqui na reimpressão da 2.ª ed.
feita pela Universidade Católica Editora, Lisboa, 2017], anot. I ao artigo 41.º, p. 647).
Com efeito, quanto à valoração categorial que dimana dos artigos 24.º, 25.º e 41.º, a inviolabilidade do
domicílio, do sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada, indicada no artigo 34.º,
diversamente daqueles, vale como formulação menos densa, se se preferir, intrinsecamente mais matizada e,
por isso, distinta daquelas, gerando «uma inviolabilidade (que é, como a referem alguns comentadores) de
princípio, ressalvadas as restrições previstas [no próprio] preceito», concretamente nos respetivos n.os
2, 3 e 4
(assim, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed.,
Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 539-540; itálicos acrescentados). A este respeito – distinguindo a força
da expressão inviolabilidade no artigo 34.º e no artigo 24.º da Constituição – referem Germano Marques da
Silva e Fernando Sá, em anotação ao primeiro daqueles artigos: «[a] Constituição conhece outros graus de
inviolabilidade de direitos fundamentais, bastando pensar na inviolabilidade da vida humana, cujo grau é de
nível superior à inviolabilidade do domicílio ou das comunicações porque não admite, por exemplo, que tal
direito fundamental seja afastado em caso de estado de sítio ou de emergência (artigo 19.º, n.º 6), ao contrário
do que se passa com o direito ao domicílio ou ao sigilo das comunicações» (v. Autores cits., in Jorge Miranda
e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, vol. I [reimpr], cit., pp. 549-550).
Assim, perspetivando a força expressiva idiossincrática da afirmação contida no n.º 1 do artigo 24.º, dir-se-
á – citando Rui Medeiros e Jorge Pereira da Silva:
«A Constituição portuguesa não se limita, ao contrário de outros textos fundamentais e da própria DUDH, a
dizer que ‘todos os homens têm direito à vida’, afirmando antes, numa fórmula normativa muito mais forte e
expressiva, que ‘a vida humana é inviolável’. O artigo 24.º desempenha, entre os direitos fundamentais, um
papel absolutamente ímpar. Membro do clube restrito dos direitos insuscetíveis de suspensão (n.º 6 do artigo
19.º), o direito à vida surge consagrado no n.º 1 do artigo 24.º não apenas na sua dimensão puramente
subjetiva, como o primeiro dos direitos fundamentais – mais do que um direito, liberdade e garantia, ele
constitui o pressuposto fundante de todos os demais direitos fundamentais –, mas como valor objetivo e como
princípio estruturante de um Estado de Direito alicerçado na dignidade da pessoa humana (artigo 1.º)»
(Autores cits., in Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, vol. I [ed. da Coimbra
Editora], cit., anot. I ao artigo 24.º, p. 501; itálicos no original; no mesmo sentido de o direito à vida ser «o
primeiro dos direitos fundamentais» e, logicamente, um direito prioritário, pois é condição de todos os outros
direitos fundamentais», v. também Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa
Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2007, anot. I ao artigo 24.º, p. 446).
25. Já antes foi salientada a imutabilidade do texto que consagra o direito à vida na Constituição
portuguesa – de todo o texto – desde a versão inicial de 1976. Essa circunstância confere um particular relevo
interpretativo à génese dessa exata forma, dotada de apreciável singularidade, de consagrar o direito à vida,
bem diversa da que era empregue na Constituição de 1933 (que referia, no respetivo artigo 8.º, 1.º, constituir
direito e garantia individual dos cidadãos portugueses: «[o] direito à vida e integridade pessoal»). O rememorar
das incidências da consagração, em 1976, desse texto pode contribuir para a captação da mensagem
normativa por ele expressa.
O texto aprovado pelos constituintes teve origem no projeto de Constituição apresentado pelo Partido
Comunista Português, no início de julho de 1975 (Diário da Assembleia Constituinte, Suplemento ao n.º 16, de
24 de julho de 1975, p. 42):
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«Artigo 30.º
(Direito à vida)
1. A vida humana é inviolável.
2. Não existe pena de morte.»
Este texto foi transporto, quase integralmente, para o texto final. O Deputado constituinte José Ribeiro e
Castro, em texto de opinião recente, datado de 2 de fevereiro de 2021, publicado no jornal onlineObservador,
aludiu à força extraordinária desta fórmula, em comparação com as outras propostas de texto então
apresentadas:
«[A] generalidade dos projetos de Constituição, em 1975, continha formulações jurídicas habituais na
proteção do direito à vida. O projeto do CDS dizia: ‘Constituem direitos e liberdades individuais do cidadão
português (…) o direito à vida e à integridade física.’. O do PS: ‘É garantido o direito à vida e integridade
física.’. O do MDP/CDE e da UDP nada diziam. O do PPD afirmava: ‘O Direito à vida e à integridade pessoal é
inviolável’. Foi o do PCP a propor a proclamação consagrada: ‘A vida humana é inviolável’».
A individualização no n.º 2 do artigo 24.º da exclusão – pela afirmação «em caso algum haverá…» – da
pena de morte, correspondendo embora a uma tradição de referenciação desta no texto constitucional, que
remonta à Constituição de 1911 (que constitucionalizou a abolição operada em 1867), não deixa de ter o
sentido de um reforço da afirmação contida no n.º 1, subtraindo-lhe, numa elevação de grau de proteção, o
que na génese bíblica do mandamento não matarás, na sua evolução no pensamento judaico-cristão, foi
construído, a par da guerra, como exceção ao imperativo moral de não matar (cfr. Nahum M. Sarna, The JPS
Torah Commentary, Exodus, The Jewish Publication Society, Philadelphia, Jerusalem, 1991, p. 113; «The
Christian Judge and the Taint of Blood: The Theology of Killing in War and Law», James Q. Whitman, The
Origins of Reasonable Doubt. Theological Roots of the Criminal Trial, Yale University Press, New Haven,
Londres, 2008, pp. 28-49). E permanece a pena de morte – só permanece, todavia, para quem a aceite – com
um sentido paradoxal face à afirmação da inviolabilidade da vida humana.
Neste contexto, vale assinalar, na exegese do artigo 24.º (então o artigo 25.º), que uma maior proximidade
ao legislador histórico (ao contexto histórico da construção dessa disposição) conduziu Gomes Canotilho e
Vital Moreira, na 1.ª edição da sua Constituição Anotada, à afirmação de uma natureza absoluta do valor do
direito à vida: «[o] valor do direito à vida e a natureza absoluta da proteção constitucional traduz-se no próprio
facto de se impor mesmo perante a suspensão constitucional dos direitos fundamentais, em caso de estado de
sítio ou de estado de emergência» (ob. cit., Coimbra, 1978, p. 92). Assim, acompanhando a questão no
contexto evolutivo desta obra de referência – cuja análise permite interessante perspetivação diacrónica do
tratamento jurídico-constitucional da questão –, na respetiva 2.ª edição, já com a consideração do problema do
suicídio, questionando quanto a este os Autores a referenciação ao próprio do dever de proteção da vida,
encontra-se igualmente presente a afirmação da mesma ideia de uma proteção absoluta, associada a uma
natureza qualificada do direito: «[a]o conferir-lhe uma proteção absoluta, não admitindo qualquer exceção, a
Constituição erigiu o direito à vida em direito fundamental qualificado» (ob. cit., Coimbra, 1984, p. 190). Tal
ideia é repetida, até de forma mais enfática, na 3.ª edição, aí já com a ponderação da questão da eutanásia:
«[j]urídico-constitucionalmente não existe o direito à eutanásia ativa, concebido como o direito de exigir de um
terceiro a provocação da morte para atenuar sofrimentos («morte doce»), pois o respeito da vida alheia não
pode isentar os ‘homicidas por piedade’» (ob. cit., Coimbra, 1993, pp. 174-175).
É importante referenciar, a culminar o percurso empreendido pela obra em análise, a caracterização do
direito à vida, num contexto mais próximo do presente, na 4.ª edição: «[n]ão se trata […] apenas de um prius
lógico: o direito à vida é material e valorativamente o bem (localiza-se, logo, em termos ontológicos no ter e ser
vida, e não apenas no plano ético-deontológico do valor ou no plano jurídico axiológico dos princípios) mais
importante do catálogo de direitos fundamentais e da ordem jurídico-constitucional no seu conjunto.
Precisamente por isso é que o direito à vida coloca problemas jurídicos de decisiva relevância nas
comunidades humanas» (ob. cit., anot. I ao artigo 24.º, p. 447). Além disso, é reiterada a inexistência de um
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26
direito à eutanásia ativa:
«Jurídico-constitucionalmente não existe o direito à eutanásia ativa, concebido como o direito de exigir de
um terceiro a provocação da morte para atenuar sofrimentos («morte doce»), pois o respeito da vida alheia
não pode isentar os «homicidas por piedade» (cfr., porém, as especificidades do crime de «homicídio a pedido
da vítima» tipificado no artigo 134.º do Código Penal). Relativamente à ortotanásia («eutanásia ativa indireta»)
e eutanásia passiva – o direito de se opor ao prolongamento artificial da própria vida – em caso de doença
incurável («testamento biológico», «direito de viver a morte»), podem justificar regras especiais quanto à
organização dos cuidados e acompanhamento de doenças em fase terminal («direito de morte com
dignidade»), mas não se confere aos médicos ou pessoal de saúde qualquer direito de abstenção de cuidados
em relação aos pacientes (cfr. Resolução sobre a Carta dos direitos do doente do Parlamento Europeu, de
19/01/84). A Constituição não reconhece qualquer «vida sem valor de vida», nem garante decisões sobre a
própria vida» (v. ob. cit., anot. VII ao artigo 24.º, p. 450).
26. A peculiar feição do direito à vida, traduz-se em «[apresentar-se] em regra como um direito de tudo ou
nada – no sentido de que não são concebíveis ataques parcelares à vida sem perda dessa mesma vida» –
avesso a operações de concordância prática e cujo conteúdo tende a coincidir com o seu conteúdo essencial»
(assim, Rui Medeiros e Jorge Pereira da Silva, Constituição…, cit., anot. IV ao artigo 24.º, p. 502). Contudo,
essa proteção sendo especialmente qualificada, próxima até da ideia de absolutização, não tem exatamente
esse significado – entendendo-se por ser absoluto, no que a um direito diz respeito, a ideia, radicada na
etimologia latina da palavra (solutus), de libertação deste de condições, exceções ou quaisquer margens de
ponderação, expressando uma coincidência exata, rectius, uma total sobreposição, entre o conteúdo do direito
e a extensão da proteção que o mesmo confere.
Assim se compreende que a opção constitucionalmente sedeada de libertar um direito de quaisquer
condicionantes ou margens de ponderação – a opção pela absolutização da inviolabilidade deste – se
expresse, numa língua com a riqueza e a precisão do alemão, pela expressão unantastbar (empregue no
Artigo 1. (1) da Grundgesetz, relativo à dignidade da pessoa humana: Die Würde des Menschen ist
unantastbar), com o significado mais preciso de intangibilidade, ao passo que a afirmação, nesse contexto
linguístico, da inviolabilidade de um direito se expresse – como sucede no Artigo 2. (2) do mesmo normativo –
pela expressão unverletzlich, que exatamente corresponde a inviolabilidade (o significado desta diferenciação
linguística na Grundgesetz é explicitado por Dieter Grimm, «Dignity in a Legal Context: Dignity as an Absolute
Right» in Christopher McCrudden (ed.), Understanding Human Dignity, Oxford University Press, Oxford, 2014,
p. 387).
Claro que a «intangibilidade», referida a um contexto significativo muito aberto (dignidade), com raízes
teológicas e filosóficas muito marcadas e tributário – é esse o contexto histórico da Grundgesetz – de
acontecimentos históricos fortemente traumáticos, conduz a margens de indefinição apreciáveis que o tornam
menos operante em contextos de argumentação jurídico-constitucional, onde pode, consistentemente, ser
invocado em lados opostos do debate («[t]alvez a expressão dignidade signifique, neste contexto, muitas
coisas diferentes e contraditórias para assumir um papel clarificador nesta discussão. Pessoas favoráveis à
eutanásia falam da morte com dignidade, enquanto os seus oponentes argumentam que é precisamente a
dignidade que impede a morte de alguém nesse contexto»; assim, Alan Mittleman, «Two or Three Concepts of
Dignity» in JRB, Summer, 2013). Como, referindo-se à mesma questão, é sublinhado por Ronald Dworkin,
«[d]ignidade – que significa respeitar o valor inerente às nossas próprias vidas – constitui o cerne de ambos os
argumentos» (v. Autor cit., Life’s Dominion: An Argument About Abortion, Euthanasia, and Individual Freedom,
Vintage Books, New York, 1994, p. 238). Esta caraterística reflete, todavia, a força essencial da ideia de
dignidade humana alcandorada à categoria de princípio, que exige uma abrangência qualificada, um
metaprincípio, particularmente adequado a inferências reflexas (assim, Jorge Miranda e António Cortês in
Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição…, cit. [reimpr.], anotação ao artigo 1.º, p. 65).
No caso do artigo 24.º, n.º 1, da Constituição, o grau superior de qualificação assumido pela afirmação
enfática da inviolabilidade da vida humana, exige um nível protetivo congruente com a forte identidade
axiológica que o caracteriza. Isso não exclui em absoluto, porém, a consideração de fatores de ponderação
que permitam dar resposta, na projeção dessa inviolabilidade, a circunstâncias especiais – neste caso muito
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especiais – que devam ser efetivamente consideradas em contextos consistentemente desafiantes em que os
pressupostos da absolutização – a «libertação» de quaisquer condições ou espaços de ponderação – são
testados ao limite, exigindo respostas nem sempre acomodáveis à projeção de uma rigidez levada ao
paroxismo.
Na verdade, como tem sido sublinhado, a «posição original que o direito à vida ocupa entre os demais
direitos» também constitui uma fonte de dificuldades que não se deixam resolver pela mera «afirmação da
aplicabilidade direta do artigo 24.º, associada à crença (quase se diria ingénua) na exequibilidade da norma
constitucional em causa» (cfr. Rui Medeiros e Jorge Pereira da Silva, Constituição…, cit., anot. IV ao artigo
24.º, p. 502). Tal direito, para além da sua dimensão subjetiva – «o direito de não ser morto, de não ser
privado da vida» –, tem associado um «conteúdo objetivo da proteção do bem da vida humana [que] implica,
de forma incontornável, o reconhecimento do dever de proteção do direito à vida, quer quanto ao conteúdo e
extensão, quer quanto às formas e meios de efetivação desse dever» (assim, v. Gomes Canotilho e Vital
Moreira, Constituição…, cit., anots. I e III ao artigo 24.º, p. 447). Ora, é no plano da atuação deste dever – que
é de promoção e proteção – nos diversos domínios do agir humano que frequentemente surge a necessidade
de compromissos e de concordâncias práticas justificativa de margens de liberdade de conformação legislativa
mais ou menos amplas (nesse sentido, Rui Medeiros e Jorge Pereira da Silva, ibidem; Gomes Canotilho e Vital
Moreira, no local cit., referem também as «delicadas questões relacionadas com a autonomia da pessoa»,
exemplificando com o «direito ao corpo», o suicídio, a colocação da vida em perigo, o consentimento de
tratamentos médicos ou a «liberdade de morrer»). A eutanásia e o suicídio medicamente assistido são dois
campos problemáticos em que tal tensão se torna particularmente visível e aguda, como é evidenciado pelas
experiências de direito comparado e pela jurisprudência, seja de tribunais constitucionais, seja de tribunais
internacionais.
27. Com efeito, independentemente das formulações mais ou menos expressivas, a verdade é que o direito
à vida é objeto de um reconhecimento jurídico universal. Mas esta universalidade não impede a consagração
de soluções muito diferenciadas quanto à matéria da morte medicamente assistida.
No plano do direito comparado, é possível encontrar três grandes tendências: i) a despenalização e a
regulação expressa da eutanásia ativa e, ou, do suicídio assistido (Países Baixos, Bélgica, Luxemburgo,
Canadá, alguns Estados dos Estados Unidos da América, Colômbia, Estado australiano da Victória e Nova
Zelândia); ii) a tolerância relativamente ao suicídio assistido, sem que lhe seja conferida uma regulação legal
expressa (Alemanha, Itália, Suíça); e iii) a proibição da eutanásia ativa e do suicídio assistido (v.g. França e
Reino Unido, entre muitos outros).
27.1. Atualmente, no continente europeu, apenas nos três Estados do Benelux vigora legislação que
despenaliza e regula a eutanásia ativa e, ou, o suicídio assistido. A legislação foi criada em 2002 (nos Países
Baixos e na Bélgica) e em 2009 (no Luxemburgo). Em Espanha, o Congresso dos Deputados aprovou, em 17
de dezembro de 2020, uma proposta de lei orgânica sobre a regulação da eutanásia, e que se encontra em
apreciação no Senado, a qual contempla a legalização e a regulação da eutanásia (ativa e direta) e o suicídio
assistido, sob a denominação de prestação de ajuda para morrer – configurada como um direito a solicitar e a
receber tal prestação.
Os Países Baixos, em abril de 2002, tornaram-se no primeiro Estado a nível europeu a despenalizar e a
regular a eutanásia ativa e o suicídio assistido, na sequência da entrada em vigor da Lei sobre o Termo da
Vida a Pedido e Suicídio Assistido (Procedimento de Avaliação), aprovada em abril de 2001. Esta lei introduziu
alterações aos artigos do Código Penal que criminalizavam o homicídio a pedido e a ajuda ao suicídio (artigos
293.º e 294.º) procedendo à despenalização destas condutas, quando praticadas por um médico de acordo
com o regime nela previsto.
A aprovação da lei em causa constituiu o culminar de um longo debate que se verificou durante várias
décadas na sociedade holandesa, particularmente impulsionado por vários casos mediáticos discutidos na
jurisprudência. Efetivamente, desde o início da década de 70 que os tribunais holandeses tinham vindo a
demonstrar abertura a situações de eutanásia ativa e de suicídio assistido, tendo começado por aplicar
sanções penais simbólicas aos agentes deste tipo de crimes e passado, numa segunda fase, a excluir a sua
responsabilidade penal através da aplicação da figura do estado de necessidade. Nessa medida, a
despenalização e regulação da eutanásia ativa e do suicídio assistido por via legal não constituiu propriamente
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um ponto de viragem no ordenamento jurídico holandês, pois teve primordialmente o efeito de cristalizar, a
nível normativo, uma prática que já vinha a ser aceite, há muito, pela jurisprudência.
Na Bélgica, o ordenamento jurídico admite, na senda dos Países Baixos, a eutanásia ativa desde a
aprovação da Lei de 28 de maio de 2002. A regulação da morte assistida no ordenamento jurídico belga
conheceu dois momentos fundamentais: em maio de 2002, quando foi aprovada a lei que passou a permitir a
eutanásia ativa para pessoas maiores de idade e, mais tarde, em 2014, quando foi aprovada uma alteração a
este diploma destinada a permitir a eutanásia ativa para menores de idade com «capacidade de
discernimento». Segundo o artigo 2.º do diploma, e para efeitos de aplicação do mesmo, «considera-se
eutanásia o ato, praticado por um terceiro, que intencionalmente põe fim à vida de uma pessoa a pedido da
mesma». Saliente-se que o diploma em causa não é aplicável a situações de suicídio assistido, sendo certo
que a ajuda ao suicídio também não é criminalizada no Código Penal belga.
No Luxemburgo, a eutanásia ativa e o suicídio assistido são legalmente admissíveis desde março de 2009.
A inovação foi introduzida no ordenamento do Grão-Ducado pela Lei de 16 de março de 2009 sobre a
eutanásia e o suicídio assistido, que procedeu a uma alteração do Código Penal destinada a despenalizar
estas condutas e consagrou o regime jurídico aplicável a tais procedimentos (artigo 397.º, n.º 1), fortemente
inspirado pela legislação belga. No mesmo dia, foi igualmente aprovada uma lei relativa aos cuidados
paliativos, à diretiva antecipada e ao acompanhamento no fim de vida.
Por fim, a legislação espanhola, em processo de aprovação, secunda os modelos legislativos que regulam
os pressupostos em que assenta a eutanásia enquanto prática legalmente admissível, sempre que sejam
observados certos requisitos e garantias. O diploma gravita em torno do conceito de prestação de ajuda para
morrer (cfr. o seu artigo 1.º), que, de acordo com a definição contida no artigo 3.º, alínea g), abrange tanto a
administração direta ao paciente de uma substância destinada a provocar a morte (eutanásia ativa), como a
prescrição ou entrega de uma substância que o paciente autoadministra para provocar a morte (suicídio
assistido). Os pressupostos para que a morte assistida possa ter lugar encontram-se especialmente previstos
no artigo 5.º, que determina dever o paciente: 1) ter nacionalidade espanhola ou residência legal em Espanha
e ser maior de idade, capaz e estar consciente no momento em que formula o pedido; 2) receber por escrito as
informações relativas ao seu processo clínico e às alternativas existentes, incluindo o acesso a cuidados
paliativos; 3) ter formulado dois pedidos de forma voluntária e por escrito, com um intervalo de pelo menos 15
dias entre ambos; 4) sofrer de uma doença grave e incurável ou de uma doença grave, crónica e incapacitante
(una enfermedad grave e incurable o un padecimiento grave, crónico e imposibilitante), certificada pelo médico
responsável; e 5) prestar o consentimento informado antes de receber a ajuda para morrer.
27.2. Numa outra perspetiva, são de referir as pronúncias do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos
(TEDH) sobre queixas individuais contra os Estados relacionadas com esta temática (cfr., em especial, os
acórdãos proferidos nos casos Pretty v. Reino Unido [TEDH (4.ª Secção), de 29 de abril de 2002], Haas c.
Suíça [TEDH (1.ª Secção), de 20 de março de 2011], Koch c. Alemanha [TEDH (5.ª Secção), de 19 de julho de
2012], Gross c. Suíça [TEDH (2.ª Secção), de 14 de maio de 2013, e TEDH (Grande Câmara), de 30 de
setembro de 2014, 2014) e, finalmente, Lambert e o. c. França [TEDH (Grande Câmara), de 5 de junho de
2015]). Esta jurisprudência teve em especial atenção a interpretação e aplicação dos artigos 2.º e 8.º da
Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH). O artigo 2.º garante o direito à vida, estabelecendo no
seu n.º 1 que «o direito de qualquer pessoa à vida é protegido pela lei» e que «ninguém poderá ser
intencionalmente privado da vida, salvo em execução de uma sentença capital pronunciada por um tribunal, no
caso de o crime ser punido com esta pena pela lei»; o artigo 8.º, por seu turno, consagra o direito ao respeito
da vida privada e familiar, dispondo no seu n.º 1 que «qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida
privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência».
Desta jurisprudência – respeitante exclusivamente a casos de suicídio assistido e de eutanásia passiva (e
não já de eutanásia ativa, que não foram ainda objeto de apreciação por parte deste Tribunal) – é possível
retirar as seguintes conclusões fundamentais: i) o direito à vida consagrado no artigo 2.º da Convenção não
compreende o direito a morrer, seja com a ajuda de uma terceira pessoa, seja com a assistência de uma
autoridade pública; ii) o direito ao respeito pela vida privada consagrado no artigo 8.º da CEDH compreende o
direito de uma pessoa decidir por que meios e em que momento terminará a sua vida, desde que seja capaz
de decidir livremente sobre esta questão e de agir em conformidade; iii) esse direito não é absoluto e deve ser
ponderado por referência aos interesses contrapostos que com ele conflituam, com especial destaque para as
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obrigações estaduais positivas de proteção decorrentes do direito à vida consagrado no artigo 2.º da CEDH,
na parte em que vinculam os Estados a proteger as pessoas vulneráveis contra decisões tomadas por si
próprias que possam colocar em risco as suas vidas; e iv) os Estados beneficiam de uma ampla margem de
apreciação para fazer essa ponderação, devido ao facto de estarem em causa problemas éticos, científicos e
jurídicos relativos ao fim da vida e de não existir um consenso entre os Estados membros do Conselho da
Europa nesse domínio.
Ao referido acervo devem somar-se as já mencionadas decisões do Bundesverfassungsgericht e do
Verfassungsgerichtshof (cfr. supra o n.º 15), que, assumindo a existência nas respetivas ordens jurídicas de
um direito fundamental a uma morte autodeterminada, censuraram, como desproporcionadas, o que
entenderam ser regulamentações restritivas de tal direito, a propósito de soluções legais incriminadoras de
formas determinadas de apoio ao suicídio (caso alemão) ou mesmo incriminadoras de tal ato (caso austríaco).
E, bem assim, ainda que numa perspetiva diversa, porquanto acentua a relativa fluidez das fronteiras entre
eutanásia passiva e eutanásia ativa, duas importantes decisões da Corte Costituzionale italiana com origem no
caso Cappato – a Ordinanza 207/2018 (Cappato) e a Sentenza 242/2019.
27.3. Cumpre referir ainda que outras fontes, de direito internacional, universal e regional, existem e que
igualmente se reportam ao direito à vida e ao direito ao respeito da vida privada e familiar. Tal é o caso de
fontes adotadas no quadro do Conselho da Europa e da Organização das Nações Unidas (ONU).
No âmbito do Conselho da Europa refiram-se a Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e da
Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina (usualmente designada por
«Convenção de Oviedo»), celebrada em 1997 e entrada em vigor em 1999 (artigos 1.º, 5.º e 6.º); a
Recomendação da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa 1418 (1999), relativa à proteção dos
direitos humanos e dignidade dos doentes terminais e moribundos e a sua Resolução 1859 (2012), relativa à
proteção dos direitos humanos e da dignidade dos pacientes através da consideração dos seus desejos
previamente expressos (Parliamentary Assembly, Recommendation 1418 (1999), «Protection of the human
rights and dignity of the terminally ill and the dying e Parliamentary Assembly, Resolution 1859 (2012),
«Protecting human rights and dignity by taking into account previously expressed wishes of patients).
No âmbito da ONU, merecem referência a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) e o Pacto
Internacional dos Direitos Políticos e Cívicos (PIDPC) – os quais garantem o direito à vida e o direito à reserva
da vida privada nos artigos 3.º e 12.º e nos artigos 1.º e 17.º, respetivamente. O Comité de Direitos Humanos
da ONU teve já a oportunidade de se pronunciar sobre o regime jurídico de alguns Estados-Membros que
despenalizaram a eutanásia e, ou, o suicídio assistido no âmbito das avaliações periódicas relativas à
implementação do PIDPC. Este foi, desde logo, o caso dos Países Baixos, que têm vindo a ser
particularmente alertados para a necessidade de instituírem um procedimento de controlo prévio à realização
de procedimentos de morte assistida.
28. O teor da consagração do direito à vida na Constituição portuguesa – a vida humana é inviolável –
torna facilmente apreensível que aquele direito não tem uma dimensão negativa: ao direito de viver (e,
portanto, de não ser morto) não se contrapõe um direito a morrer ou a ser morto (por um terceiro ou com o
apoio da autoridade pública), um direito a não viver ou um direito de escolha sobre continuar ou não a viver
(cfr. neste sentido o Acórdão do TEDH [Sec.], de 29 de abril de 2002, Pretty c. Royaume-Uni, Queixa n.º
2346/02, §§ 39-40).
Não se pode excluir, todavia, que um tal direito não possa resultar da liberdade de cada um se
autodeterminar, em função do seu projeto pessoal de vida (cfr., de novo, o caso Pretty c. Royaume-Uni, §§ 65
e 67, e a demais jurisprudência do mesmo Tribunal adiante citada), impondo um limite ao próprio dever
estadual de proteção da vida decorrente do artigo 24.º, n.º 1. Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira,
a «proteção da vida humana, enquanto valor em si, independentemente da sua subjectivização pessoal,
levanta ainda o problema de saber se o dever de a proteger se impõe ao próprio indivíduo (dever de viver),
negando assim um direito ao suicídio […]. Trata-se de saber se a vida, como base e expressão da existência
humana, está na disponibilidade do próprio titular» (v. Autores cits., Constituição…, cit., anot. VII ao artigo 24.º,
p. 450).
Na ordem jurídica portuguesa, os valores da liberdade geral de ação e da capacidade de autodeterminação
individual encontram-se particularmente refletidos no direito fundamental ao desenvolvimento da
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personalidade, consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, claramente inspirado no direito
correspondente previsto no Artigo 2.º (1) da Grundgesetz, o qual, de acordo com a doutrina e jurisprudência
alemãs, compreende duas diferentes vertentes: o direito geral de personalidade e a liberdade geral de ação.
A doutrina portuguesa tem também vindo a acentuar as dimensões de liberdade e de autodeterminação
que se encontram associadas a este direito. Como escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira relativamente
ao mesmo: «na qualidade de expressão geral de uma esfera de liberdade pessoal, ele constitui um direito
subjetivo fundamental do indivíduo, garantindo-lhe um direito à formação livre da personalidade ou liberdade
de ação como sujeito autónomo dotado de autodeterminação decisória, e um direito de personalidade
fundamentalmente garantidor da sua esfera jurídico-pessoal e, em especial, da integridade deste» (Autores
cits., Constituição…, cit., anot. III ao artigo 26.º, pp. 463-464). Os mesmos Autores acrescentam que o âmbito
normativo de proteção deste direito compreende três dimensões: 1) a formação livre da personalidade, sem
planificação ou imposição estatal de modelos de personalidade; 2) a proteção da liberdade de ação de acordo
com o projeto de vida, vocação e capacidades pessoais próprias; e 3) a proteção da integridade da pessoa em
vista a garantir a esfera jurídico-pessoal no processo de desenvolvimento (ibidem).
Em sentido próximo, Rui Medeiros e António Cortês salientam que aquele direito compreende uma tutela
abrangente da personalidade enquanto substrato da individualidade (nos seus diversos aspetos) e uma tutela
da liberdade (Autores cits., Constituição…, cit., anot. XIV ao artigo 26.º, p. 614). Estes Autores assinalam
ainda a interligação que se verifica entre o direito em apreço e outros direitos e interesses constitucionalmente
tutelados, afirmando que «o respeito pela dignidade humana, pelo pluralismo democrático, pela identidade
pessoal e pelo desenvolvimento da personalidade de cada um implica o reconhecimento de um espaço
legítimo de liberdade e realização pessoal liberto de constrangimentos jurídicos» (ibidem).
A mencionada liberdade geral de ação traduz-se essencialmente num espaço próprio de autonomia que
confere a cada pessoa a liberdade de conduzir a sua própria existência de acordo com as características
específicas da sua personalidade e do seu projeto de vida. Como este Tribunal já frisou a propósito de tal
dimensão, a mesma consiste numa «liberdade de exteriorização da personalidade ou liberdade de ação de
acordo com o projeto de vida e a vocação e capacidades pessoais próprias» (Acórdão n.º 225/2018),
assegurando-se «a cada um a liberdade de traçar o seu próprio plano de vida» (Acórdão n.º 288/98). Já a
capacidade de autodeterminação traduz-se essencialmente num espaço próprio de autonomia decisória que
confere a cada pessoa a liberdade de fazer escolhas relevantes para a sua vida enquanto ser racional e o
ónus de assumir a responsabilidade pelas mesmas. Também esta vertente tem vindo a ser enfatizada na
jurisprudência constitucional e na doutrina, que a descrevem como a «liberdade de ação necessária à
autoconformação da identidade própria de um sujeito autodeterminado» (Acórdão n.º 225/2018), ou ainda a
como a «liberdade de ação como sujeito autónomo dotado de autodeterminação decisória» (v. Gomes
Canotilho e Vital Moreira, Constituição…, cit., anot. III ao artigo 26.º, p. 463).
Estas duas dimensões do direito ao desenvolvimento da personalidade conferem a cada pessoa o poder de
tomar decisões cruciais sobre a forma como pretende viver a própria vida e, por inerência, a forma como não a
pretende continuar a viver. O espaço irredutível de autonomia individual para conduzir a sua própria existência
de acordo com as características específicas da sua personalidade e o seu projeto de vida decorrente da
liberdade geral de ação pode, assim, integrar um projeto de fim de vida delineado em função das conceções e
valorações relativas ao significado da própria existência para cada pessoa. Por sua vez, a liberdade de cada
um fazer escolhas relevantes para a própria vida enquanto ser dotado de racionalidade e de responsabilidade,
que é própria da autonomia decisória, também pode proteger a decisão de uma pessoa pôr termo à própria
vida, desde que tomada de forma capaz, livre, consciente e esclarecida.
Vai nesse sentido o entendimento do TEDH de que «o direito de uma pessoa decidir de que modo e em
que momento a sua vida deve terminar, desde que esteja em condições de formar livremente a sua vontade a
esse respeito e de agir em conformidade é um dos aspetos compreendidos no direito ao respeito pela vida
privada consagrado no artigo 8.º da Convenção» (v. o Acórdão [Sec.] de 20 de janeiro de 2011, Haas c.
Suisse, Queixa n.º 31322/07, § 51; confirmando esta jurisprudência, v. os Acórdãos [Sec.] de 19 de julho de
2012, Koch c. Allemagne, Queixa n.º 497/09, § 52; e de 14 de maio de 2013, Gross c. Suisse, Queixa n.º
67810/10, § 59).
Contudo, neste processo, não é necessário tomar posição sobre tal matéria, porquanto não está em causa
a conduta isolada de alguém que quer pôr termo à própria vida, mas a assistência de profissionais de saúde,
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num quadro de atuação regulado e controlado pelo Estado, à antecipação da morte de uma pessoa a pedido
desta. Ora, esta colaboração voluntária de terceiros em vista da prática ou ajuda à prática do ato de
antecipação da morte coloca problemas de natureza diversa, que transcendem a esfera pessoal de quem
pretende morrer, projetando-se socialmente com implicações para o dever (estadual) de proteção da vida. E é
a configuração deste, em razão da importância fundante do bem em causa para todos os demais direitos
fundamentais que se impõe começar por analisar.
Certo é que em Portugal o suicídio tentado não é punível e que mesmo as intervenções e tratamentos
médico-cirúrgicos levados a cabo de acordo com as leges artis tendo em vista prevenir, diagnosticar, debelar
ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal só podem ser realizados com consentimento do
paciente (cfr. os artigos 150.º e 156.º do Código Penal). De todo o modo, a continuidade – até à data
inquestionada quanto à sua legitimidade constitucional – dos tipos incriminadores Homicídio a pedido da vítima
e Incitamento ou ajuda ao suicídio (artigos 134.º e 135.º do Código Penal), mesmo depois de aprovado o
Decreto n.º 109/XIV (cfr. o respetivo artigo 27.º), constitui um indício forte no sentido do não reconhecimento
de um direito fundamental fundado na autodeterminação do próprio quanto à disponibilidade da sua própria
vida, por razões de defesa do bem vida e da própria liberdade-autonomia daquele que deseja a sua morte. O
ato de suicídio corresponde, em tal enquadramento, a um mero agere licaere, a uma atuação de facto
(expressão da simples possibilidade individual de atuar) e que é juridicamente irrelevante – e, portanto,
também não punível – consistente na disposição de um bem que se encontra na esfera de ação do próprio, e
não a uma liberdade juridicamente conformada e protegida.
Ora, na ausência do reconhecimento desse hipotético direito fundamental a uma morte autodeterminada,
seguindo, na esteira do TEDH, a via da jurisprudência do Bundesverfassungsgericht e do
Verfassungsgerichtshof já mencionada (cfr. supra o n.º 15), subsistem as complexas questões relacionadas
com as omissões relevantes e o direito ou o dever de intervir de terceiros nas situações em que o suicida ou o
ativista em greve de fome perde o controlo da situação – o domínio do facto – já depois de iniciada a ação
autodestrutiva (por exemplo, devido a entretanto ter ficado inconsciente).
29. A referida diferença, que vai da intranscendência social do ato de quem, seja pelas razões que for, se
mata, e a passagem ao patamar da organização social foi bem salientada por Zagrebelsky (antigo Presidente
da Corte Costituzionale), em resposta à questão de saber se não seria contraditório o silêncio da lei
relativamente ao suicídio tentado quando confrontado com a punibilidade da ajuda ao suicídio, visto em ambos
os casos estar em causa a mesma realidade, ou seja, o suicídio:
«[S]e alguém se mata, isso é considerado um facto, um mero facto que […] permanece dentro da sua
esfera jurídica pessoal. Porém, entrando em jogo outra pessoa, isso transforma a situação num facto social,
mesmo que isso envolva apenas duas pessoas: quem pede para morrer e quem a ajuda. Mais ainda se entrar
nesse processo uma organização, seja ela pública ou privada, como na Suíça ou na Holanda. […] Se a
maioria dos casos de suicídio deriva da injustiça, da depressão ou da solidão, o suicídio, como facto social,
levanta uma outra questão. A sociedade pode dizer, está bem, podes sair do caminho [va bene, togliti di
mezzo], e nós até te ajudamos a fazê-lo? Não é muito fácil? Mas dever do Estado não é o contrário: dar
esperança a todos? O primeiro direito de cada pessoa é poder viver uma vida com sentido, correspondendo à
sociedade o dever de criar as condições. […] Uma coisa é o suicídio como facto individual; outra coisa é o
suicídio socialmente organizado. A sociedade, com as suas estruturas, tem o dever de cuidar, se possível; se
não for possível, tem, pelo menos, o dever de aliviar o sofrimento» (Autor cit., «Il diritto di morire non existe» in
Il Fatto Quotidiano di Silvia Truzzi, 14 Dicembre 2011).
Na mesma linha, de afirmação de uma diferença essencial entre suicídio e ajuda ao suicídio, afirma Costa
Andrade:
«É precisamente a identificação da vida humana (de outra pessoa) como bem jurídico tutelado que
empresta – e baliza – a indispensável legitimação material da incriminação do Incitamento ou ajuda ao
suicídio. Uma legitimação que alguns pretendem questionar ou mesmo minar, a partir da irrelevância ou
indiferença do suicídio para a ordem jurídico-penal. Só que esta indiferença do suicídio não se comunica
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necessariamente ao Incitamento ou ajuda ao suicídio. Trata-se, na verdade de ações distintas, com distintos
sentidos, horizontes e sistemas de referência. O suicídio esgota o sentido no desempenho auto-referente e
autopoiético da pessoa, não pertencendo ao sistema social […]. Já o auxílio ao suicídio assume uma
irredutível valência sistémico-social: independentemente da singularidade da sua trajetória, esta ação projeta-
se sobre a vida de outra pessoa. ‘As interferências de terceiros no suicídio, incitando ou auxiliando, não só
produzem uma relação intersubjetiva, que é pressuposto de todo o ilícito, como se tornam socialmente
desvaliosas’ (Silva Dias, Crimes contra a vida 67). Dito noutros termos, a interferência do terceiro converte o
facto num facto pertinente ao sistema social, estando como tal, exposto aos seus códigos e valorações. Sendo
assim, uma vez que quem é punido por incitamento ou ajuda ao suicídio, não é punido ‘acessoriamente’ por
ilícito de terceiro, mas por ilícito próprio, fica infirmada a conhecida e recorrente objeção de que a punição da
ajuda ao suicídio criminaliza uma participação num facto principal não punível’ (Kubiciel, JZ 2009 608 […]. Por
maioria de razão, não pode considerar-se fundada a objeção daqueles que estigmatizam a incriminação como
mero reflexo de tabu e moralismo […]» (Autor cit., Comentário Conimbricense, cit., «Comentário ao artigo
135.º», § 11, pp. 138-139).
Do ponto de vista jurídico, a relevância ou projeção social da ajuda ao suicídio tem como reverso a sua
sujeição às preocupações sociais e às medidas dimanadas em vista da proteção e promoção dos valores
acolhidos na ordem constitucional.
30. A singularidade constitucional da dimensão subjetiva do direito à vida consagrado no artigo 24.º, n.º 1,
da Constituição, assente em considerações de ordem literal e histórica e, outrossim, de natureza jurídico-
sistemática – o direito à vida, recorde-se, é «o primeiro dos direitos fundamentais» e constitui «o pressuposto
fundante de todos os demais direitos fundamentais» (assim, Rui Medeiros e Jorge Pereira da Silva, cits. anot.
I, p. 501) ou é «um direito prioritário, pois é condição de todos os outros direitos fundamentais»; «o direito à
vida é material e valorativamente o bem […] mais importante do catálogo de direitos fundamentais e da ordem
jurídico-constitucional no seu conjunto» (assim, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição…, cit., anot. I
ao artigo 24.º, pp. 446-447) – determinam-lhe um valor objetivo de não menor relevo, enquanto «princípio
estruturante de um Estado de Direito alicerçado na dignidade da pessoa humana (artigo 1.º)» (v. aqueles
primeiros Autores, ibidem; cfr. também supra os n.os
24, 25 e 26).
Um tal direito implica, assim, necessariamente, o reconhecimento de um exigente dever para o Estado, e
em particular para o legislador, de proteger e promover a vida humana. Em relação a esta, o Estado de direito
democrático não é neutro nem pode ser indiferente, sob pena de negar um dos seus fundamentos e de
comprometer a possibilidade de respeitar e fazer respeitar e, bem assim, de garantir a «efetivação dos [outros]
direitos e liberdades fundamentais» (cfr. o artigo 2.º da Constituição).
De resto, e sem prejuízo de distintos acentos tónicos e de distintas concretizações que no desenvolvimento
destas premissas se possam colocar em função dos diferentes contextos normativos, o TEDH também já as
reconheceu e sublinhou devidamente a respetiva importância. Assim, por exemplo, no caso Haas c. Suisse,
cit., considerou que a CEDH deve ser lida como um todo, daí resultando a necessidade de considerar, também
no quadro de uma eventual violação do artigo 8,º «o artigo 2.º da Convenção, que impõe às autoridades o
dever de protegerem as pessoas vulneráveis, defendendo-as dos seus comportamentos que ameacem a sua
própria vida», porquanto «aquela disposição obriga as autoridades nacionais a impedirem um indivíduo de pôr
termo à vida nos casos em que a sua decisão não seja tomada de forma livre e com conhecimento de todas as
circunstâncias» (§ 54; no mesmo sentido, v. o Acórdão [Tribunal Pleno] de 5 de junho de 2015, Lambert et
autres c. France, Queixa n.º 46043/14, §§ 136 e ss., em especial o § 142; e o Acórdão (Sec.) de 22 de
novembro de 2016, Hiller v. Austria, Queixa n.º 1967/14, § 49). No caso Lambert, o TEDH afirmou igualmente:
«117. O Tribunal recorda que a primeira frase do artigo 2.º [– o direito de qualquer pessoa à vida é
protegido pela lei –], que se encontra entre os artigos primordiais da Convenção, na medida em que consagra
um dos valores fundamentais das sociedades democráticas que constituem o Conselho da Europa […], impõe
ao Estado não apenas que se abstenha de causar a morte «intencionalmente» (obrigações negativas), mas
também que tome as medidas necessárias à proteção da vida das pessoas sob a sua jurisdição (obrigações
positivas).
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[…]
140. O artigo 2.º impõe ao Estado que tome as medidas necessárias à proteção das pessoas sob a sua
jurisdição; no domínio da saúde pública, tais obrigações positivas implicam a instituição pelo Estado de um
quadro normativo que imponha aos hospitais, privados ou públicos, a adoção de medidas que assegurem a
proteção da vida dos doentes […]»
É conhecido, em todo o caso, que, em geral, um direito inicialmente concebido contra o Estado (sem
prejuízo de, nos termos do artigo 18.º, n.º 1, da Constituição, também se poder dirigir contra as «entidades
privadas») e o dever estadual de proteger tal direito não se confundem. E assim também sucede no tocante ao
direito à vida, apesar de toda a sua importância (cfr. supra o n.º 26, in fine). O direito à vida, na sua dimensão
de direito de não ser morto, proíbe comportamentos determinados, atentatórios da vida humana; já o dever de
proteção da vida impõe atuações não pré-determinadas mas com um sentido ou a finalidade de salvaguardar
o bem vida. Daí que «o regime de proteção da vida humana, enquanto bem constitucionalmente protegido,
não [seja] o mesmo que o direito à vida, enquanto direito fundamental das pessoas, no que respeita à colisão
com outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos» (assim, Gomes Canotilho e Vital Moreira,
Constituição…, cit., anot. VI ao artigo 24.º, p. 449).
Na verdade, compete ao legislador conceber modelos de proteção e de os estabelecer normativamente,
gozando para o efeito de uma liberdade de conformação mais ou menos ampla. Isso mesmo reconhecem Rui
Medeiros e Jorge Pereira da Silva: «no cumprimento dos referidos deveres de atuação [– deveres esses
dirigidos à promoção e proteção do bem vida nos mais diversos domínios do agir humano –], e apesar do seu
permanente comprometimento com a vida, os legisladores penal, civil ou administrativo nunca surgem
desprovidos de margens de liberdade de conformação, que por vezes podem revelar alguma amplitude» (v.
Constituição…, cit., anot. IV ao artigo 24.º, p. 502).
Daí que as possibilidades de controlo de eventuais défices de proteção também sejam limitadas, cingindo-
se genericamente à verificação da omissão de quaisquer medidas de proteção ou à verificação da
inadequação manifesta daquelas que foram adotadas ou à sua total insuficiência para alcançar o fim de
proteção devido. Em todo o caso, também é claro que o grau de exigência de proteção aumenta não só em
função da importância do bem a proteger, como da menor valia constitucional do interesse contraposto e que
justifica a afetação de tal bem. Se a vida humana, mesmo do ponto de vista do seu titular, não é um bem como
qualquer outro, já que constitui a condição de possibilidade de todos os demais bens e até o pressuposto
ontológico da dignidade da pessoa humana, isso não pode deixar de ter consequências na avaliação dos
limites impostos pela consideração de outros bens à sua própria proteção. Aliás, esta consideração justifica
uma aproximação ao problema da concordância prática a partir do ponto de vista do valor objetivo da vida
humana, perspetivando os interesses ou bens que se lhe contraponham como limites mais ou menos amplos.
Concorda-se, por isso, com Rui Medeiros e Jorge Pereira da Silva, quando afirmam que, não sendo o direito à
vida «um direito ilimitado ou absoluto, imune a situações de delicadas colisões de direitos […], não deixa,
entretanto, de ser um direito que beneficia a priori de uma posição muito vantajosa na ordem flexível e não
hierárquica da axiologia constitucional» (v. Constituição…, cit., anot. IV ao artigo 24.º, p. 502).
31. No Decreto n.º 109/XIV, a exclusão da punibilidade da antecipação da morte medicamente assistida,
verificadas determinadas condições (ou critérios) materiais e com observância do procedimento aí
disciplinado, coexiste com a continuação da punibilidade da morte a pedido da vítima e da ajuda ao suicídio
(cfr. o artigo 27.º do Decreto, na parte em que adita um novo número aos artigos 134.º e 135.º do Código
Penal). Esta opção mostra que o fim prosseguido pelo legislador – deixando de lado o aspeto prestacional
relacionado com a possibilidade de antecipação da morte medicamente assistida no âmbito do Serviço
Nacional de Saúde – é duplo: i) criar condições para que as pessoas em determinadas situações de
sofrimento intolerável possam, se assim o desejarem, antecipar a sua morte em segurança mediante a
colaboração voluntária de médicos e outros profissionais de saúde; ii) dar aos profissionais de saúde que não
tenham problemas de consciência em intervirem na antecipação da morte de uma pessoa que se encontre em
determinadas situações de sofrimento intolerável e a pedido da mesma a certeza de que não serão punidos.
Com efeito, sem uma norma como a do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIV – e as demais que dela
decorrem diretamente, como as alterações ao Código Penal – as práticas de eutanásia ativa direta ou de ajuda
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ao suicídio relativamente a pessoas – por exemplo, doentes terminais – em situações extremas e de grande
sofrimento só não seriam punidas criminalmente, caso fosse reconhecido, em concreto, que o agente atuara
em estado de necessidade (desculpante), em termos de se justificar uma dispensa de pena (cfr. o artigo 35.º,
n.º 2, do Código Penal). Recorde-se que foi esse o caminho seguido nos Países Baixos até à aprovação, em
2001, da legislação que despenalizou e regulou a eutanásia ativa e o suicídio assistido (cfr. supra o n.º 27.1).
Porém, como é fácil de compreender, em tais circunstâncias, «o caminho para a não punibilidade do agente é
viável, mas está cheio de dificuldades de percurso e, em consequência, de incertezas quanto ao resultado
final. […Em tais situações o percurso é] muito incerto quanto aos seus resultados, do que deriva a
impossibilidade de os médicos, sobretudo aqueles que convivem diariamente com os limites da vida,
encontrarem nas normas penais um esteio claro e seguro pelo qual possam conformar a sua atuação» (cfr.
Rui Medeiros e Jorge Pereira da Silva, Constituição…, cit., anot. XXX ao artigo 24.º, p. 537).
Mas tal insegurança acaba por atingir negativamente também os próprios doentes, na medida em que se
veem privados, frequentemente em situações-limite de grande sofrimento físico e angústia existencial, de uma
escolha que, na sua ótica, os poderia libertar. Para eles, a liberdade de morrer com a ajuda profissional e
qualificada de um terceiro poderá significar um último reduto da sua autonomia pessoal, a última possibilidade
de poderem tomar uma decisão central para a respetiva existência. E, um dos objetivos subjacentes à norma
do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto é, claramente, a de, em condições controladas e materialmente justificadas na
ótica da pessoa em sofrimento, conferir-lhe a liberdade de escolher morrer com a assistência – considerando
aqui a autoadministração acompanhada e supervisionada de fármacos letais ou a heteroadministração dos
mesmos fármacos, a seu pedido – qualificada de terceiros sem os sujeitar a uma ação penal.
Assumindo que a antecipação da morte não deve ser banalizada nem normalizada – mantendo por isso a
incriminação da morte a pedido e da ajuda ao suicídio para a generalidade dos casos – mas reconhecendo
igualmente existirem situações mais ou menos típicas em que a aquela pode ser justificada – e já hoje deve
ser desculpada – terá o legislador, por via do referido artigo 2.º, n.º 1, procurado excluir a punibilidade da
mesma em situações que se lhe afiguravam mais gravemente contrárias à autonomia individual da pessoa em
sofrimento, relativamente à adoção e concretização de uma decisão central na existência de qualquer ser
humano e, por conseguinte, também relevante quanto à sua dignidade como pessoa. Por outras palavras, o
autor do Decreto n.º 109/XIV optou por tentar a generalização de soluções casuísticas consideradas justas e
razoáveis, disciplinando-as normativamente (sem prejuízo de, mesmo para além dos limites materiais
previstos no artigo 2.º, n.º 1, continuar a ser possível invocar causas de justificação e de exculpação quanto a
casos não previstos).
32. Sucede que a atuação dessa autonomia pessoal reconhecida pelo legislador implica a mencionada
colaboração (voluntária) de terceiros. Aliás, um aspeto decisivo de tal reconhecimento consiste precisamente
em não sujeitar o terceiro disponível para ajudar outrem a morrer – independentemente da modalidade
concreta que a assistência revista: mera ajuda ou prática do ato causador da morte – à perseguição e punição
criminal, que, não fora a cláusula excludente, deveria ocorrer. Com efeito, estão em causa situações em que
só por via de tal exclusão é possível assegurar uma efetiva possibilidade de escolha a quem pretende decidir
como e quando termina a sua vida.
Mas a colaboração de um terceiro na disposição da vida de alguém é problemática, na medida em que
converte essa disposição no resultado de uma interação social; já não está em causa apenas uma atuação
individual de quem põe termo à sua própria vida (cfr. supra o n.º 29). Por isso aquela disposição da vida ganha
relevância jurídica e entra em conflito com a indisponibilidade e a inviolabilidade da vida humana – dimensão
objetiva do direito à vida consagrado no artigo 24.º, n.º 1, da Constituição e fonte do dever estadual de
proteção deste bem jurídico. Recorde-se que «a interferência do terceiro converte o facto num facto pertinente
ao sistema social, estando como tal, exposto aos seus códigos e valorações» (v. Costa Andrade cit. supra no
n.º 29), que, no caso português, e em homenagem à inviolabilidade da vida humana, impõem, em regra, a
punição do terceiro por ilícitos próprios (concretamente: o homicídio a pedido da vítima e a ajuda ao suicídio).
Ora, a opção do autor do Decreto n.º 109/XIV foi a de afastar os casos previstos na norma do respetivo
artigo 2.º, n.º 1, de tais regras punitivas. Ciente da tensão entre o dever de proteção da vida e o respeito da
autonomia pessoal em situações-limite de sofrimento, aquela opção funda-se numa conceção de pessoa
própria de uma sociedade democrática, laica e plural dos pontos de vista ético, moral e filosófico. De acordo
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com tal conceção, o direito a viver não pode transfigurar-se num dever de viver em quaisquer circunstâncias.
O contrário seria incompatível com a noção de homem-pessoa, dotado de uma dignidade própria, que é um
sujeito autoconsciente e livre, autodeterminado e autorresponsável, em que se funda a ordem constitucional
portuguesa. Isto porque, como referem Rui Medeiros e Jorge Pereira da Silva, «a absolutização da vida,
traduzida na incriminação indiferenciada de todas as condutas eutanásicas, redundará inevitavelmente no
esmagamento da autonomia de cada ser humano para tomar e concretizar as decisões mais centrais da sua
própria existência. Ora, da circunstância de um direito fundamental como o direito à vida constituir uma
conditiosine qua non de todos os demais direitos, não decorre de forma necessária a sua permanente
superioridade axiológica sobre os restantes direitos […]» (Autores cits. Constituição…, cit., anot. XXXI ao
artigo 24.º, p. 540).
Nesta mesma linha de abertura à salvaguarda da capacidade de autodeterminação inerente à dignidade
humana de quem sofre, ou seja, de quem se encontra numa posição de vulnerabilidade, a Corte Costituzionale
sustentou que, se um paciente é considerado capaz de tomar a decisão de pôr fim à própria existência através
da interrupção de tratamentos de suporte à vida, não se compreenderia por que razão já deveria ser sujeito a
uma proteção contra a própria vontade, quando essa decisão depende da ajuda de terceiros de forma a
proporcionar uma alternativa que o paciente considera mais digna face à interrupção desses tratamentos. Daí
a conclusão de que «a proibição absoluta da ajuda ao suicídio acabaria, assim, por limitar a liberdade de
autodeterminação do paciente na escolha das terapias, incluindo aquelas destinadas a libertá-lo do sofrimento
[…], impondo-lhe, em última análise, uma única forma de se despedir da vida, sem que tal limitação possa
considerar-se preordenada à tutela de um outro interesse constitucionalmente relevante, com a consequente
lesão do princípio da dignidade humana» (v. a Ordinanza n.º 207/2018, de 24 de outubro de 2018, n.º 9;
posteriormente confirmada pela Sentenza n.º 242/2019, de 25 de setembro de 2019, n.º 2.3, in fine).
A vulnerabilidade de uma pessoa originada pela situação de grande sofrimento em que se encontre pode
criar uma tensão relativamente ao artigo 24.º, n.º 1, da Constituição devido à vontade livre e consciente de não
querer continuar a viver em tais circunstâncias. E a uma tal tensão, a proteção absoluta e sem exceções da
vida humana não permite dar uma resposta satisfatória, pois tende a impor um sacrifício da autonomia
individual contrário à dignidade da pessoa que sofre, convertendo o seu direito a viver num dever de
cumprimento penoso. Por isso mesmo, o legislador democrático não está impedido, por razões de
constitucionalidade absolutas ou definitivas, de regular a antecipação da morte medicamente assistida.
33. No entanto, na conformação de tal regulação, o legislador tem de observar limites, designadamente os
que decorrem dos deveres de proteção dos direitos fundamentais que estão em causa na antecipação da
morte medicamente assistida a pedido da própria pessoa.
Para além da salvaguarda da voluntariedade da colaboração dos terceiros, maxime a possibilidade de os
mesmos invocarem objeção de consciência, impõe-se a proteção da autonomia e da vida da própria pessoa
que pretende antecipar a sua morte. Esta encontra-se numa posição vulnerável, razão acrescida por que deve
ser defendida contra atuações precipitadas ou determinadas por pressões sociais, familiares ou outras. Está
em causa a adoção de uma decisão cuja concretização se traduz num resultado definitivo e irreversível, pelo
que a mesma só deve ser atendida desde que existam garantias suficientes de se tratar de uma genuína
expressão da autodeterminação esclarecida de quem a toma. Ora, é no quadro da definição de tais garantias
que assume relevância a importância objetiva do bem vida.
Com efeito, o Estado, nas suas diversas expressões institucionais e funcionais, não pode ser neutro no que
à vida humana diz respeito: tem de a proteger e promover. No caso do acesso à morte medicamente assistida,
esse esforço de proteção tem de partir da consideração da situação de vulnerabilidade e de sofrimento das
pessoas que se decidem por tal prática. Além disso, do ponto de vista constitucional, a morte voluntária não é
uma solução satisfatória e muito menos normal, pelo que não deve ser favorecida. O que deve promover-se é
antes a vida e a sua qualidade, até ao fim. Daqui decorre, com fundamento na dimensão objetiva do direito à
vida consagrado no artigo 24.º, n.º 1, da Constituição, a imposição de adotar um sistema legal de proteção
orientado para a vida.
Independentemente da questão de saber se o direito ao livre desenvolvimento da personalidade do artigo
26.º, n.º 1, da Constituição constitui, atenta a sua necessária articulação com a importância e a consequente
proteção qualificada devida à vida humana em função do artigo 24.º, n.º 1, do mesmo normativo (cfr. supra os
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n.os
24, 25 e 26), fonte para um hipotético direito a uma morte autoconformada, na linha da jurisprudência
Haas do TEDH ou, porventura, ainda mais radicalmente, na linha do decidido pelo Bundesverfassungsgericht
(decisão de 26 de fevereiro de 2020) ou pelo Verfassungsgerichtshof (decisão de 11 de dezembro de 2020), é
seguro que na ordem constitucional portuguesa o apoio de terceiros à morte, mesmo que autodeterminada,
não representa um interesse constitucional positivo, salvo na medida em que esteja em causa a dignidade de
quem, pretende (ser auxiliado a) morrer, isto é, a sua atuação como sujeito autorresponsável pelo seu próprio
destino num momento já próximo do final. Trata-se de casos em que uma proibição absoluta da antecipação
da morte com apoio de terceiros determinaria a redução da pessoa que pretende morrer, mas não consegue
concretizar essa intenção sem ajuda, a um mero objeto de tratamentos verdadeiramente não desejados ou,
em alternativa, a sua condenação a um sofrimento sem sentido face ao desfecho inevitável.
Como linha de princípio orientadora – como diretriz – para a determinação dessas situações, dir-se-á que
não está em causa uma escolha entre a vida e a morte, mas, mais rigorosamente, a possibilitação da escolha
entre diferentes modos de morrer: nomeadamente, um processo de morte longo e sofrido versus uma morte
rápida e tranquila. Em conformidade, e tendo em conta a inutilidade do sofrimento – ao menos da perspetiva
de quem sofre – perante um desfecho certo, desde que verificado o pressuposto de uma decisão tomada em
consciência, verdadeiramente livre de todas as pressões, e previamente informada do diagnóstico, do
prognóstico e das alternativas disponíveis no domínio das terapias ou no âmbito dos cuidados paliativos, perde
relevância saber quem detém o «domínio do facto» no momento final, o mesmo é dizer, recorrendo aos termos
do Decreto n.º 109/XIV, se o ato de antecipação da morte se concretiza por via da autoadministração
(ajudada) ou da heteroadministração de fármacos letais.
Assim sendo, o dever de proteção da vida (e, bem assim, da autonomia) de quem pretende antecipar a sua
morte por se encontrar doente, numa situação de grande sofrimento e sem perspetivas de recuperação, impõe
uma disciplina rigorosa quanto às situações – os casos típicos – que justificam, segundo a opção legislativa, o
acesso à morte medicamente assistida e garantias procedimentais robustas e adequadas a salvaguardar a
liberdade e o esclarecimento do paciente e, outrossim, a assegurarem o controlo da verificação concreta dos
casos previstos. Só desse modo se cumprem as exigências de certeza e de segurança jurídica próprias de um
Estado de direito democrático, garantidoras de que a antecipação da morte medicamente assistida se contém
dentro dos limites que a justificam constitucionalmente, face ao dever de proteção decorrente da
inviolabilidade da vida humana: a salvaguarda do núcleo de autonomia inerente à dignidade de cada um,
enquanto sujeito, ou seja, um ser autodeterminado e autorresponsável.
As situações em que a antecipação da morte medicamente assistida é possível têm, por isso, de ser claras,
antecipáveis e controláveis desde o momento em que aquela prática se encontre estabelecida
normativamente, devendo o procedimento assegurar a determinabilidade controlável das inevitáveis
indeterminações conceituais. Incumbe ao legislador, por esta via, prevenir a possibilidade de indesejáveis e
imprevistas «rampas deslizantes».
O mérito do sistema legal de proteção deverá, assim, ser objeto de uma avaliação global, que considere as
possibilidades de interação entre as condições materiais relativas ao paciente e sua condição e o
procedimento, na sua vertente clínica e administrativa. Não é de descurar que o segundo, além das finalidades
que lhe são próprias, também possa desempenhar uma função de compensação de insuficiências ao nível das
primeiras.
E) A insuficiente densificação normativa dos conceitos descritivos dos critérios de acesso à morte
medicamente assistida questionados pelo requerente face ao princípio da legalidade criminal
34. Os vícios concretos apontados pelo requerente ao Decreto n.º 109/XIV prendem-se com a indefinição,
insuficiente densificação ou indeterminabilidade dos conceitos ou fórmulas verbais utilizados para recortar as
hipóteses em que não é punível a morte medicamente assistida (cfr. o requerimento, pontos 6.º a 9.º e supra o
n.º 10) de que resultaria «cabe[r] aos clínicos, no âmbito do procedimento, a definição do preenchimento dos
pressupostos para o exercício da antecipação da morte medicamente assistida, sendo depois tal verificado e
confirmado pela Comissão de Verificação e Avaliação.» (requerimento, ponto 11.º; v. também os seus pontos
6.º, 7.º e 10.º). Esta indeterminação, segundo o requerente, é suscetível de contender com os princípios da
legalidade e da tipicidade criminal, consagrados no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição; e a consequente
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delegação do poder de interpretar esses conceitos, que ao legislador competiria densificar, seria vedada pelo
artigo 112.º, n.º 5, da Constituição.
35. Preliminarmente, importa recordar que a antecipação da morte medicamente assistida não punível
prevista no artigo 2.º, n.º 1, do citado Decreto só pode ocorrer na sequência de um procedimento clínico e
legal formalizado em que intervém com poder autorizativo a CVA. Substancialmente, o seu parecer favorável
corresponde a uma autorização permissiva que, como tal, possibilita a passagem à fase de concretização da
decisão do doente (cfr. os artigos 7.º, n.º 4, e 8.º). O direito à antecipação da morte preexiste nas condições
definidas no referido artigo 2.º, n.º 1; não é conferido por tal parecer (que, por isso, não corresponde a uma
«licença para matar»). Assim, caso não se encontrem reunidas as condições previstas nesse preceito, os
pareceres – todos eles, incluindo o da CVA – não podem ser favoráveis; caso contrário, os mesmos pareceres
devem ser favoráveis. Perante um parecer favorável da CVA, os profissionais de saúde que efetivamente
antecipem ou colaborem na antecipação da morte de alguém deixam de poder ser perseguidos criminalmente
apenas com base nesse facto, a menos que violem alguma norma respeitante à concretização da decisão do
doente ou à administração dos fármacos (v., respetivamente, os artigos 8.º e 9.º do Decreto n.º 109/XIV). Seria
o caso, por exemplo, de não respeitarem a vontade expressa do doente ou de prosseguirem com o
procedimento mesmo depois daquele ter ficado inconsciente antes da data marcada para a antecipação da
morte.
Deste modo, a não punibilidade prevista nos novos n.os
3 aditados aos artigos 134.º e 135.º do Código
Penal pelo artigo 27.º do Decreto n.º 109/XIV deve ser apreciada em função das condições para a emissão
dos pareceres previstas no artigo 2.º, n.º 1, do mesmo normativo (sendo certo que é em relação a algumas
dessas condições que a conformidade constitucional daquela norma é questionada pelo requerente); e não
inversamente (cfr. supra o n.º 21). Aliás, no respeitante ao artigo 27.º do citado Decreto, a
inconstitucionalidade imputada é meramente consequencial.
Os pressupostos da emissão dos diferentes pareceres, constam do artigo 2.º, n.º 1. E, como mencionado, é
relativamente à determinabilidade dos conceitos utilizados para enunciar alguns desses pressupostos que o
requerente levanta dúvidas. Significa isto, que tais dúvidas devem ser esclarecidas por referência aos
parâmetros constitucionais aplicáveis às normas disciplinadoras da atividade restritiva ou reguladora de
direitos fundamentais – e que constitui matéria de reserva de lei formal, nos termos do artigo 165.º, n.º 1,
alínea b), da Constituição –, e não à luz dos parâmetros aplicáveis às regras de definição, positiva mas
também negativa, dos crimes – e que também integra a reserva de lei formal [cfr. os artigos 29.º, n.º 1, e 165.º,
n.º 1, alínea c), ambos da Constituição].
Por outro lado, no que se refere especificamente à invocação do artigo 112.º, n.º 5, da Constituição,
cumpre ter presente o respetivo âmbito material, relativo aos atos normativos (conforme é indicado pela
própria epígrafe do preceito) e a proibição nele estatuída não só de a lei – qualquer lei, seja em que domínio
for – criar outras categorias de atos legislativos para além dos tipificados naquele artigo, como admitir, ela
própria, por via de um reenvio para atos de outra natureza, e com eficácia idêntica à da própria lei (a «eficácia
externa»), a interpretação, modificação, suspensão ou revogação de qualquer dos seus preceitos. Está em
causa a proibição de a lei abrir a disciplina normativa que constitui o seu conteúdo à intervenção modificativa
de atos (normativos) que não tenham natureza legislativa e, portanto, desprovidos da força de lei formal
positiva. É um problema que releva das relações recíprocas que se podem estabelecer entre atos normativos.
O problema colocado pelo requerente, diferentemente, respeita à segurança e certeza na aplicação do
artigo 2.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIV, ou seja, à capacidade prescritiva da norma contida nesse preceito,
isto é, à sua força normativa entendida como suscetibilidade de efetivamente dirigir e conformar as condutas
dos seus destinatários. Em causa está, por conseguinte, atendendo à matéria de que se trata e à circunstância
de se prever a emissão por uma entidade administrativa de um parecer que autoriza uma determinada prática,
a reserva de lei enquanto reserva de densificação normativa: o grau de determinação do artigo 2.º, n.º 1,
enquanto norma habilitante para a emissão daquele parecer com um dado conteúdo e, bem assim, para
orientar as condutas e juízos dos médicos que o mesmo também deve controlar. Ou seja, o que cumpre
avaliar é o próprio conteúdo normativo do preceito em causa à luz das exigências constitucionais,
nomeadamente aquelas que decorrem do princípio da determinabilidade das leis, enquanto corolário do
princípio do Estado de direito democrático e da reserva de lei parlamentar, decorrentes das disposições
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conjugadas dos artigos 2.º e 165, n.º 1, alínea b), da Constituição. Neste caso, o que está em causa é a
distribuição de tarefas entre o autor da norma e aquele que a tem de aplicar ou executar.
36. Sem prejuízo das considerações anteriores, cumpre ter presente em relação ao princípio da legalidade
criminal, que é, desde logo, muito duvidoso que o mesmo pudesse conceder respaldo seguro para qualquer
juízo de censura constitucional quanto às normas do artigo 2.º do Decreto n.º 109/XIV, designadamente no
que se refere aos dois segmentos (e critérios) especificamente sindicados pelo requerente. Sobretudo, se para
essa censura se apontar como critério relevante o nível de determinabilidade imposto às leis que diminuem o
nível de proteção concedido através do direito penal – ou, conforme se afirma no requerimento, às leis que
relevam da «amplitude da liberdade de limitação do direito à vida, interpretado de acordo com o princípio da
dignidade da pessoa humana» –, e não, como é próprio da exigência de lei certa, o grau de concretização
típica necessário para proteger o indivíduo do direito penal (neste sentido, sobre o princípio da legalidade
criminal, Claus Roxin, Strafrecht. Allgemeiner Teil. Grundlagen. Der Aufbau der Verbrechenslehre, C.H. Beck,
Munique, 1992, p. 67).
Enquanto garantia pessoal de não punição fora do âmbito de uma lei escrita, prévia, certa e estrita, o
princípio da legalidade criminal opera como um princípio defensivo, que constitui, por um lado, «a mais sólida
garantia das pessoas contra possíveis arbítrios do Estado» no âmbito do exercício do ius puniendi (cfr.
Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, Coimbra: Coimbra Editora, 1974, p 96., e Acórdão n.º 324/2013) e
se apresenta, por outro, como uma condição de previsibilidade e de confiança jurídica, no sentido em que
permite a cada cidadão dar-se conta das condutas humanas que relevam em cada momento no âmbito do
direito criminal (v. Acórdãos n.os
41/2004, 587/2004 e 606/2018).
Compreende-se, assim, que a exigência de lei certa se dirija direta e centralmente à lei que cria ou agrava
responsabilidade criminal, impondo-lhe a suficiente especificação dos factos que integram o tipo legal de crime
(ou que constituem os pressupostos da aplicação de uma pena ou medida de segurança) e a definição das
penas (e das medidas de segurança) que lhes correspondem. E, inversamente, que tal exigência possa não
encontrar rigorosa simetria no domínio da descriminalização ou da atenuação da mesma responsabilidade,
sob pena de, tal como explica Figueiredo Dias, «o princípio passar a funcionar contra a sua teleologia e a sua
própria razão de ser: a proteção dos direitos, liberdades e garantias do cidadão face à possibilidade de arbítrio
e de excesso do poder estatal.» (Autor cit., Direito Penal – Parte Geral, tomo I, 3.ª ed., Gestlegal, Coimbra,
2019, p. 216).
A este respeito, o Tribunal entendeu reiteradamente que também a competência para delimitar pela
negativa a intervenção penal do Estado recai no âmbito da reserva de lei formal consagrada na alínea c) do n.º
1 do artigo 165.º da Constituição (v., entre outros, os Acórdãos n.os 56/1984, 173/1985, 254/1986, 427/1987,
158/1988, 349/1993, 592/1993, 797/1993, 663/1998, 596/1999). Mas, no que respeita à exigência de
determinabilidade, já teve ocasião de afirmar categoricamente que a precisão ou determinabilidade é «exigida
ao nível constitucional e legal mais para a definição do crime do que para a descrição das causas de exclusão
de ilicitude ou de culpa, como é sabido por todos aqueles que se dedicam a estes problemas.» (cf. o Acórdão
n.º 25/84, VII, 3).
Ora, o artigo 2.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIV reporta-se à antecipação da morte medicamente assistida
não punível, mas é por efeito do artigo 27.º do Decreto que opera a despenalização do homicídio a pedido da
vítima (previsto e punido no artigo 134.º do Código Penal) ou do incitamento ou ajuda ao suicídio (previsto e
punido no artigo 135.º). Conforme previsto nessa disposição do Decreto, passaria a constar dos artigos 134.º e
135.º do Código Penal uma hipótese de exclusão da punibilidade das condutas aí tipificadas. Quer se entenda
tratar-se de uma causa de exclusão da tipicidade baseada na «diferença de conteúdo de sentido social da
ação» (Figueiredo Dias, «A ‘ajuda à morte’: uma consideração jurídico-penal», cit., p. 212) ou antes de uma
causa de justificação integrada pelo consentimento, do que não há dúvida é que está em causa uma medida
legislativa que restringe ou limita a responsabilidade jurídico-penal e que, portanto, se situa fora do âmbito
nuclear próprio do princípio da legalidade da intervenção penal do Estado.
É certo que a determinabilidade da norma incriminatória assegura, como também esclarece Figueiredo
Dias, «que a descrição da matéria proibida e de todos os outros requisitos de que dependa em concreto uma
punição seja levada até a um ponto em que se tornem objetivamente determináveis os comportamentos
proibidos e sancionados e, consequentemente, se torne objetivamente motivável e dirigível a conduta dos
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cidadãos.» (v. ob. cit., pp. 218-219). Poderia, pois, argumentar-se que a determinabilidade das causas de
exclusão da responsabilidade jurídico-penal pode ser – como parece ser na situação em análise – igualmente
relevante quando se trate de estabelecer os pressupostos cuja verificação determina a subtração de
determinada conduta ao universo dos comportamentos puníveis, especialmente em domínio tão sensível como
o que está em causa.
Parte deste pressuposto a argumentação desenvolvida no requerimento, que conflui para a conclusão de
que é ainda o princípio da legalidade criminal que demanda «que o legislador forneça ao médico interveniente
no procedimento um quadro legislativo minimamente seguro que possa guiar a sua atuação» (cfr. o ponto 8.º).
Mas, não se vê que esta exigência possa, sem mais, ser reconduzida ao princípio da legalidade da
intervenção penal do Estado. A indeterminação conceitual, quando aplicada a qualquer condição de exclusão
da responsabilidade jurídico-penal, tende a alargar – e não a restringir – as possibilidades de, em concreto, um
comportamento não ser punido. Nessa medida, agirá, em regra, a favor de uma maior proteção dos cidadãos
contra a atuação punitiva do Estado – ainda que aja em prejuízo da tutela penal dos bens jurídicos em
questão.
Se a indeterminação conceitual criticada pelo requerente deve ser, na verdade, censurada, não na medida
em que desprotege os destinatários da norma incriminadora – isto é, por aquilo em que compromete a
possibilidade de compreensão e controlo pelos potenciais agentes do crime do desvalor que continua a
expressar-se no tipo legal –, mas, primacialmente, os bens jurídicos que nela se tutelam, então o juízo
reclamará a convocação do princípio da determinabilidade das leis – não já (ou, pelo menos, principalmente)
enquanto dimensão do princípio consagrado no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição – mas como corolário do
princípio do Estado de direito democrático, e da reserva de lei parlamentar, decorrentes das disposições
conjugadas dos artigos 2.º e 165, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa, por referência ao
direito à vida consagrado no artigo 24.º do mesmo normativo (interpretado, segundo o requerente, de acordo
com o princípio da dignidade da pessoa humana).
37. Ainda que pretendesse reconduzir-se a exigência de determinabilidade invocada no pedido ao princípio
da legalidade criminal, sempre se imporia indagar se, em face do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, e 27.º, ambos
do Decreto n.º 109/XIV, pode realmente afirmar-se que o diploma vota os profissionais de saúde intervenientes
no procedimento ou habilitados a «praticar ou ajudar ao ato de antecipação da morte» (identificados no artigo
17.º, n.º 1, do mesmo Decreto) a uma situação de insuperável incerteza quanto aos pressupostos de que
depende em concreto a punição.
A este respeito, recorde-se que este Tribunal tem reiteradamente afirmado que «[s]em que isso signifique
qualquer espécie de renúncia à função de garantia desempenhada pelo tipo legal […], do princípio da
legalidade não decorre para o legislador penal qualquer ónus de, ao definir o universo das ações e omissões
criminalmente relevantes, se socorrer sempre e só de formulações normativas integralmente descritivas e
fechadas.» (v. o Acórdão n.º 606/2018 – II, 18). Por conseguinte, tem admitido com alguma amplitude a
utilização de conceitos indeterminados (v. o Acórdão n.º 20/2019, n.º 16, e a jurisprudência aí citada) bem
como o recurso à «técnica remissiva subjacente às normas penais em branco [que] apresenta a vantagem de
assegurar a permanente sincronização do direito penal com a evolução registada em áreas específicas de
conhecimento ou atividade, desiderato este não concretizável através de uma preferência por enumerações
descritivas e fechadas, por inerência tendencialmente incompletas e estáticas.» (Acórdão n.º 606/2018, II, 18).
Coerentemente, tem-se considerando que as disposições incriminadoras são conciliáveis com as exigências
do princípio da tipicidade sempre que a sua redação, «ainda que indeterminada e aberta, for materialmente
adequada e suficiente para dar a conhecer quais as ações ou omissões que o cidadão deve evitar» (v. o
Acórdão n.º 76/2016, II, 6) – designadamente quando os conceitos materialmente indeterminados se tornem
determináveis por via da remissão para outras disposições legais, regulamentares ou até para pronúncias
administrativas de diversa ordem, e bem assim por apelo às leges artis ou a regras técnicas que os
destinatários das normas devam conhecer (v. entre muitos outros, os Acórdãos n.os
545/2000, 115/2008,
146/2011, 698/2016).
O Decreto em apreço, como se referiu já, propõe que sejam introduzidos preceitos no Código Penal que
determinem a não punibilidade de condutas, por remissão para as condições estabelecidas na Lei a que viria a
dar origem. Com efeito, a formulação adotada pelo legislador, seja para o n.º 3 do artigo 134.º, seja para o n.º
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3 do artigo 135.º, é a de que a «conduta não é punível […] quando realizada no cumprimento das condições
estabelecidas na Lei n.º xxx». Tomado o texto da lei no seu sentido mais natural, não pode entender-se que o
legislador, ao referir-se às «condições estabelecidas na Lei n.º xxx» pretendeu referir-se (apenas) às
«condições estabelecidas no n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º xxx». Deste modo, não se vê que um destinatário
minimamente diligente venha a ser induzido em erro quanto à interpretação dos preceitos em questão: a
remissão introduzida no n.º 3 do artigo 134.º e no n.º 3 do artigo 135.º deve ter-se por feita para todo o
conjunto, articulado e complexo, de condições materiais, procedimentais e formais estabelecidas no Decreto
n.º 109/XIV. Torna-se, assim, claro que a não punibilidade das condutas tipificadas nos artigos 134.º e 135.º
do Código Penal não prescinde da verificação de todas essas condições, no momento e pela forma
estabelecidos para a respetiva comprovação, tal como a responsabilidade disciplinar só pode ser excluída, nos
termos do artigo 21.º do mesmo Decreto, quando seja possível demonstrar o cumprimento de «todas as
condições e deveres estabelecidos na presente lei». A argumentação é válida também no que respeita ao
novo n.º 2 do artigo 139.º do Código Penal, que determina a não punibilidade da conduta «de acordo com o n.º
3 do artigo 135.º».
Seja enquanto pressuposto de exclusão da tipicidade da conduta, com base no seu diferenciado significado
social, seja enquanto condição da eficácia do consentimento, no plano da exclusão da ilicitude, a
caracterização da situação clínica daquele que formula o pedido de antecipação de morte medicamente
assistida constitui um dos requisitos de que depende o afastamento da responsabilidade criminal, que de outra
forma impenderia sobre os profissionais de saúde intervenientes no procedimento.
Até porque o consentimento exigido é um consentimento qualificado – não apenas por assumir
necessariamente a forma de um pedido sério e livre, mas porque sujeito ele próprio a exigências intensificadas
de esclarecimento e de reiteração –, tais requisitos encontram-se sujeitos a um procedimento formal de
averiguação, que culmina no parecer da CVA.
Com efeito, e como se referiu já, a verificação dos pressupostos materiais essenciais de não punibilidade
da conduta (os elementos da previsão da norma), estabelecidos no n.º 1 do artigo 2.º depende de um
procedimento complexo (artigos 3.º a 7.º), vertido no RCE, em que deve figurar o acervo documental – o
processo administrativo – de suporte de todas as etapas procedimentais relevantes (cfr. o artigo 15.º) e que
contém, entre outros elementos, a expressão escrita e reiterada da vontade da pessoa; as pronúncias emitidas
pelos intervenientes no procedimento quanto ao cumprimento dos requisitos estabelecidos no n.º 1 do artigo
2.º, incluindo o parecer emitido pela CVA a que se refere o artigo 7.º do Decreto n.º 109/XIV; e ainda a
declaração escrita quanto ao dia, hora, local e método a utilizar para a concretização da decisão do requerente
(cfr. o artigo 8.º, n.os
1 e 3). Por sua vez, os artigos 9.º, 12.º e 17.º, n.º 2, estabelecem condições adicionais
que devem ser observadas no momento da administração dos fármacos letais – entre as quais ressalta, pela
sua relevância, a confirmação da vontade do doente na presença de testemunhas, a que se refere o n.º 2 do
artigo 9.º.
Uma vez emitido parecer favorável pela CVA, a exclusão da responsabilidade criminal dos profissionais de
saúde que diretamente intervenham no momento da concretização da decisão do doente passará a depender
exclusivamente da observância das normas que regulam a conduta que produz ativa e diretamente a morte do
paciente – caso do homicídio a pedido da vítima – ou que auxilia o paciente a produzi-la por ato seu – caso da
ajuda ao suicídio. Tais normas encontram-se previstas nos artigos 8.º, 9.º, 12.º e 17.º, n.º 2, do Decreto.
Assim, na primeira situação, a responsabilidade penal será afastada se o ato que provoca a morte for
praticado por profissional de saúde e consistir na administração de fármacos letais no dia, hora e local
previamente combinados entre o doente e o médico orientador, desde que: o primeiro, depois de esclarecido
pelo segundo sobre os métodos disponíveis para a antecipação da sua morte, tenha optado, através de escrito
datado e assinado pelo próprio, pela heteroadministração das referidas substâncias; imediatamente antes de
esta se ter iniciado, o primeiro tenha confirmado junto do segundo a vontade de antecipar a sua morte, na
presença de, pelo menos, uma testemunha; e a administração dos fármacos letais tenha sido realizada pelo
médico orientador ou com o mesmo presente.
Já na segunda hipótese, a ajuda ao suicídio não será punível se levada a cabo por profissional de saúde
através da disponibilização de fármacos letais no dia, hora e local previamente combinados entre o doente e o
médico orientador, desde que: o primeiro, depois de esclarecido pelo segundo sobre os métodos disponíveis
para a antecipação da sua morte, tenha optado, através de escrito datado e assinado pelo próprio, pela
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autoadministração das referidas substâncias; imediatamente antes de esta se ter iniciado, o primeiro tenha
confirmado junto do segundo a vontade de antecipar a sua morte, na presença de pelo menos uma
testemunha, devidamente identificada; e a cedência e autoadministração dos fármacos letais tenha sido,
respetivamente, realizada pelo médico orientador ou na presença deste.
Do exposto resulta assim que, na parte em que estabelece os pressupostos da ação causadora ou
auxiliadora da morte que tem lugar após procedimento formal de verificação das condições previstas no artigo
2.º do Decreto n.º 109/XIV, a causa de exclusão da punibilidade prevista no mesmo Decreto é integrada
apenas por elementos descritivos e conceitos determinados, o que coloca o autormaterial do facto em
condições de poder motivar e dirigir a sua atuação. Este – que só pode ser, como vimos, um profissional de
saúde – dispõe, pois, e em suma, dos meios necessários para orientar a sua conduta de modo a evitar a
punibilidade das condutas tipificadas nos artigos 134.º e 135.º do Código Penal, em termos que satisfazem as
exigências de determinabilidade, conforme vêm sendo delineadas pela jurisprudência deste Tribunal.
F) A insuficiente densificação normativa dos conceitos descritivos dos critérios de acesso à morte
medicamente assistida questionados pelo requerente face ao princípio da determinabilidade das leis
38. De todo o modo, a conclusão anterior não permite responder às dúvidas e questões colocadas pelo
requerente (cfr. supra o n.º 10). Para o fazer, e uma vez que está em causa uma norma destinada a permitir a
avaliação da existência de um direito no âmbito de um procedimento regulado pela lei e em que intervém com
poder autorizativo uma entidade administrativa independente – a CVA –, justifica-se convocar o princípio da
determinabilidade das leis, enquanto corolário do princípio do Estado de direito democrático e da reserva de lei
parlamentar, decorrentes das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 165, n.º 1, alínea b), da Constituição
(cfr. supra o n.º 35), por referência ao direito à vida (artigo 24.º da Constituição), interpretado de acordo com o
princípio da dignidade da pessoa humana.
Saliente-se que a exigência de um especial cuidado em matéria de determinabilidade da lei ou de
densificação normativa pode resultar não só de se estar no âmbito de domínio abrangido pela reserva de lei
parlamentar, mas igualmente das exigências do princípio da legalidade administrativa (v., em especial, o artigo
266.º, n.º 2, da Constituição), na sua vertente da precedência da lei. Como se afirmou no Acórdão n.º
296/2013 (II, 46), «a norma legal habilitante da atuação administrativa tem de apresentar um mínimo de
densidade, i.e., tem de conter uma disciplina suficientemente precisa (densa, determinada), de forma a, no
mínimo, poder representar um critério legal orientador da atuação para a administração, permitindo o respetivo
controlo por juízos de legalidade e a defesa dos direitos e interesses dos cidadãos. A falta de um critério legal
efetivo, garantindo a imparcialidade e evitando a arbitrariedade, priva a função administrativa de parâmetro de
atuação)». Tal preocupação faz todo o sentido no presente contexto, uma vez que os segmentos normativos
questionados no requerimento, por força do procedimento clínico e legal instituído pelo Decreto n.º 109/XIV
também se dirige – como decorre da argumentação do requerente – à atuação da própria Administração,
nomeadamente a CVA, a qual não pode ficar subtraída ao controlo judicial da legalidade da sua atuação.
Assim, cumpre apreciar se os dois concretos segmentos normativos, contidos no n.º 1 do artigo 2.º do
Decreto n.º 109/XIV, identificados pelo requerente – o critério de antecipação da morte por decisão da própria
pessoa, maior, quando «em situação de sofrimento intolerável» e o subcritério relevante para o mesmo efeito
de antecipação da morte medicamente assistida não punível, «lesão definitiva de gravidade extrema de acordo
com o consenso científico» – cumprem as exigências do princípio da determinabilidade da lei.
39. Estando em causa a proteção do direito à vida, consagrado no artigo 24.º, n.º 1, da Constituição e, bem
assim, o mínimo imposto pela dignidade humana quanto à liberdade de ação e de autodeterminação pessoal,
enquanto dimensão do direito ao desenvolvimento da personalidade (artigo 26.º, n.º 1, em articulação com o
artigo 1.º, ambos da Constituição), dúvidas não restam de que o diploma em análise se situa no âmbito da
reserva de competência legislativa da Assembleia da República, por força da alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º
da Constituição, convocando de modo especialmente intenso – atenta a relevância da matéria para um bem
jurídico fundamental como a vida humana e o caráter definitivo e irreversível das decisões que prevê quanto
ao mesmo – as exigências de determinabilidade que decorrem do princípio do Estado de direito democrático.
Conforme a jurisprudência deste Tribunal tem entendido – v., por exemplo, o Acórdão n.º 225/2018 (n.º 53)
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–, a disciplina legislativa em matéria de direitos, liberdades e garantias, que é matéria de reserva de lei
parlamentar, em especial quando restritiva daqueles – mas idêntica exigência vale, por identidade ou até por
maioria de razão, quanto às condições legais de admissibilidade de condutas que possam lesar definitiva e
irreversivelmente os bens jurídicos por eles protegidos, como sucede in casu relativamente à vida humana, e
às condições legais de exercício da autonomia pessoal que tornam possível tal lesão –, deve obedecer a
critérios de precisão ou determinabilidade, decorrentes do princípio do Estado de direito democrático,
consagrado no artigo 2.º da Constituição. Como referido no Acórdão n.º 285/92, e foi reiterado em
jurisprudência posterior:
«[A] questão da relevância do princípio da precisão ou determinabilidade das leis anda associada de perto
à do princípio da reserva de lei e reconduz-se a saber se, num dado caso, o âmbito de previsão normativa da
lei preenche ou não requisitos tidos por indispensáveis para se poder afirmar que o seu conteúdo não
consente a atribuição à Administração, enquanto executora da lei, de uma esfera de decisão onde se
compreendem elementos essenciais da própria previsão legal, o que, a verificar-se, subverteria a ordem de
repartição de competências entre o legislador e o aplicador da lei. […]
Reconhece-se, sem dificuldade, que o princípio da determinabilidade ou precisão das leis não constitui um
parâmetro constitucional «a se», isto é, desligado da natureza das matérias em causa ou da conjugação com
outros princípios constitucionais que relevem para o caso. Se é, pois, verdade que inexiste no nosso
ordenamento constitucional uma proibição geral de emissão de leis que contenham conceitos indeterminados,
não é menos verdade que há domínios onde a Constituição impõe expressamente que as leis não podem ser
indeterminadas, como é o caso das exigências de tipicidade em matéria penal constantes do artigo 29.º, n.º 1,
da Constituição, e em matéria fiscal (cfr. artigo 106.º da Constituição) ou ainda enquanto afloramento do
princípio da legalidade (nulla poena sine lege) ou da tipicidade dos impostos (null taxation without law).
Ora, atento o especial regime a que se encontram sujeitas as restrições aos direitos, liberdades e
garantias, constante do artigo 18.º da Constituição, em especial do seu n.º 3, e em articulação com o princípio
da segurança jurídica inerente a um Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição), forçoso se torna
reconhecer que, em função de um critério ou princípio de proporcionalidade a que deverão estar obrigadas as
aludidas restrições […], o grau de exigência de determinabilidade e precisão da lei há-de ser tal que garanta
aos destinatários da normação um conhecimento preciso, exato e atempado dos critérios legais que a
Administração há-de usar, diminuindo desta forma os riscos excessivos que, para esses destinatários,
resultariam de uma normação indeterminada quanto aos próprios pressupostos de atuação da Administração;
e que forneça à Administração regras de conduta dotadas de critérios que, sem jugularem a sua liberdade de
escolha, salvaguardem o ‘núcleo essencial’ da garantia dos direitos e interesses dos particulares
constitucionalmente protegidos em sede de definição do âmbito de previsão normativa do preceito
(Tatbestand); e finalmente que permitam aos tribunais um controlo objetivo efetivo da adequação das
concretas atuações da Administração face ao conteúdo da norma legal que esteve na sua base e origem.»
Ou seja, conforme sintetizado no Acórdão n.º 474/2013:
«Incumbe ao Estado inscrever na lei critérios claros, precisos e seguros de decisão, em termos de conferir
à atuação da Administração espaço concretizado de vinculação – e não de volição primária – através da
identificação de um núcleo relevante para legitimar a intervenção restritiva do direito, liberdade e garantia
afetado. Como, igualmente, permitir o controlo judicial da (eventual) ausência de critérios de gestão e a
proporcionalidade das suas consequências face à lesão profunda [daquele] direito […].»
No mesmo sentido, afirma Jorge Reis Novais «[e]m Estado de Direito, baseado na dignidade da pessoa
humana e nos direitos fundamentais, o reconhecimento da inevitabilidade de a autonomia, liberdade e bem-
estar individuais constitucionalmente protegidos poderem ser restringidos vem a par da necessidade de o
sentido e o alcance da restrição, bem como a medida concreta da sua potencial aplicação, serem
determináveis com suficiente precisão, possuírem um conteúdo normativo suficientemente denso e, como tal,
identificável pelos destinatários e afetados, virem estritamente recortados em função dos fins que os justificam
e serem, portanto, necessários, reconhecíveis no seu conteúdo e previsíveis nos seus efeitos.» (v. Princípios
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Estruturantes de Estado de Direito, Almedina, Coimbra, 2019 [reimpr.], p. 267).
Exige-se, assim, ao legislador, e apenas do legislador, que forneça aos intervenientes no procedimento
administrativo que culmina com a emissão do parecer da CVA critérios com um grau de precisão e
determinabilidade tal, que viabilize a adoção de decisões fundamentadas, congruentes e sindicáveis. O grau
de precisão e de determinabilidade é tanto mais importante quanto se trata de normas que, estabelecendo
critérios ou pressupostos (elementos de previsão da norma) a montante das condutas (futuras, subsequentes
à sua previsão) dos seus destinatários, se destinam a orientar as mesmas no exercício da competência que
lhes é cometida, num quadro procedimental instituído pelo Decreto n.º 109/XIV, sejam destinatários com
natureza pública ou destinatários do sector privado ou social que atuam no quadro de normas jurídico-
públicas.
40. O n.º 1 do artigo 2.º do Decreto em análise contempla diversos pressupostos (elementos de previsão da
norma) cuja formulação não suscita dúvidas – decisão daprópria pessoa; maior; vontade atual, reiterada,
séria, livre e esclarecida; praticada ou ajudada por profissionais de saúde. Mas remete para o médico
orientador, para o médico especialista e para os demais intervenientes no procedimento, com particular
destaque para a CVA, a verificação em concreto do preenchimento dos requisitos de situação de sofrimento
intolerável; lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico e doença incurável e
fatal – pressupostos que, afinal, e na ótica do próprio legislador, são fundamentais para que se justifique, à luz
do dever de proteção da vida humana, a não intervenção punitiva do Estado.
O legislador estabelece uma conexão entre estes elementos através do recurso sequencial à preposição
com, seguida da conjunção disjuntiva ou, tornando claro que o sofrimento intolerável é um pressuposto
fundamental, mas apenas quando conjugado com um dos pressupostos seguidamente enunciados, seja a
lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico, seja a doença incurável e fatal.
Aliás, a generalidade dos projetos de lei apresentados – ainda que com variações quanto aos conceitos
adotados – optou por uma articulação de dois pressupostos, associando um diagnóstico a um estado, o que
consiste já num primeiro patamar de densificação da previsão normativa [cfr. os projetos de lei do Bloco de
Esquerda (artigo 1.º), do PAN (artigo 3.º), do Partido Socialista (artigo 2.º, n.º 1), do PEV (artigo 3.º) e da IL
(artigo 1.º)].
Noutras disposições, ainda que de índole procedimental, é possível encontrar referência a outros
elementos, que os especialistas intervenientes no procedimento deverão ter em conta na elaboração e
fundamentação dos respetivos pareceres, reveladores dos juízos que destes são esperados. Assim, por
exemplo, no n.º 3 do artigo 3.º, refere-se que o médico orientador se encontra obrigado a consultar e assumir o
historial clínico do doente como «elemento essencial do seu parecer»; no n.º 1 do artigo 4.º, refere-se que ao
doente deve ser prestada informação sobre o prognóstico relativo à situação clínica que afeta o requerente (e
que essa informação deve constar do RCE, nos termos do n.º 2 do artigo 4.º); no n.º 1 do artigo 5.º,
estabelece-se que o médico especialista deve confirmar o diagnóstico e prognóstico da situação clínica; e no
artigo 6.º, admite-se a possibilidade de intervirem outros médicos especialistas (psiquiatras) e psicólogos aptos
a avaliarem a condição psicológica do doente.
Embora não constando do n.º 1 do artigo 2.º, e servindo um propósito primacialmente procedimental, estas
disposições não deixam de assegurar que algumas informações, relevantes para a verificação do
preenchimento em concreto dos pressupostos constantes da previsão daquele preceito, seguramente constam
do processo: entre estas destacam-se, pela sua relevância, o historial clínico do doente e o juízo de prognose
sobre a expectável evolução da sua condição física.
Apesar de impor, como etapa procedimental insuperável, exercícios de retrospeção e de prognose que se
encontram ao serviço de uma análise dinâmica do historial clínico do doente e da densificação de
qualificações como definitiva, incurável e fatal, o Decreto n.º 109/XIV abstém-se de fazer constar do regime um
elenco de definições (análogo, v.g., ao que consta da base II da Lei de Bases dos Cuidados Paliativos – Lei n.º
52/2012, de 5 de setembro – ou semelhante ao que é previsto no artigo 3.º da proposicion de Ley orgánica de
regulación de la eutanasia recentemente aprovada em Espanha). Ademais, aquele Decreto diverge de opções
adotadas em outros países, ao não fazer constar da norma exigências como o «carácter duradouro, constante,
permanente ou insuscetível de ser aliviado» do sofrimento sentido (presente na legislação belga e
luxemburguesa, por exemplo) ou a «ausência de perspetivas de melhoria» (presente, v.g., na legislação
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holandesa e luxemburguesa) e não impõe, expressamente, que fatores deste tipo devam ser ponderados nos
pareceres a elaborar durante o procedimento.
No que em especial respeita aos segmentos normativos identificados no requerimento, outros problemas
emergem da indeterminação conceitual que os caracteriza e que justificam um tratamento autónomo.
G) Cont.: a insuficiente densificação normativa do conceito «em situação de sofrimento intolerável»
41. Com referência aos diversos pressupostos da antecipação da morte medicamente assistida não
punível, o requerente exprime dúvidas relativamente ao elemento situação de sofrimento intolerável –
expressamente qualificado como primeiro critério (requerimento, ponto 5.º).
Começa por apontar ao conceito de «sofrimento» uma forte dimensão de subjetividade, decorrente de o
Decreto n.º 109/XIV omitir quer a sua definição, quer a indicação de critérios para a sua interpretação,
preenchimento ou mensuração pelo médico orientador e pelo médico especialista, opções legislativas essas
que seriam geradoras de insegurança jurídica, afetando todos os envolvidos: peticionante, profissionais de
saúde, membros da CVA e cidadãos em geral (cfr. requerimento, ponto 6.º).
Contudo, a mobilização pelo legislador do conceito de sofrimento não é nova.
Encontra-se, por exemplo, na definição do crime de homicídio qualificado, integrando a previsão de dois
dos exemplos-padrão em que se estrutura o tipo: é suscetível de revelar especial censurabilidade ou
perversidade do ato de produzir a morte a circunstância de o agente empregar tortura ou ato de crueldade
para aumentar o sofrimento da vítima [alínea d) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal]; ou ser determinado
pelo prazer de causar sofrimento [alínea e) do mesmo preceito]. Constitui, igualmente, elemento do regime
jurídico-penal das intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, sendo a intenção de minorar o sofrimento
uma das finalidades terapêuticas que o legislador penal exclui das incriminações das ofensas corporais,
quando, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, tais intervenções ou tratamentos
se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou pessoa
legalmente autorizada (cfr. o artigo 150.º, n.º 1, do Código Penal).
Para além do ordenamento penal, o conceito de sofrimento encontra lugar – e lugar central – noutras
disciplinas jurídicas, de evidente proximidade e conexão com aquela aqui em apreço.
Assim, a Lei n.º 52/2012, de 5 de setembro, a Lei de Bases dos Cuidados Paliativos, acolhe o conceito na
definição e âmbito dos «cuidados paliativos», com referência a «doentes em situação de sofrimento decorrente
de doença incurável ou grave, em fase avançada ou progressiva» e à «prevenção e alívio do sofrimento físico,
social e espiritual», que associa não apenas à «dor e outros problemas físicos», mas também a outros
problemas «psicossociais e espirituais» [alínea a) da base II e n.º 1 da base III]; na definição de «obstinação
diagnóstica e terapêutica», enquanto fonte, por si própria, de «sofrimento acrescido» [alínea d) da base II]; na
adstrição da Rede Nacional de Cuidados Paliativos à prestação de cuidados paliativos aos doentes que,
independentemente da idade e patologia, estejam numa situação de sofrimento decorrente de doença grave
ou incurável, com prognóstico limitado e em fase avançada e progressiva [n.os
1 e 2, alínea a), da base IX].
Mais recentemente, a Lei n.º 31/2018, de 18 de julho, que estabelece um conjunto de direitos das pessoas
em contexto de doença avançada e em fim de vida, toma como objeto a consagração do direito das pessoas
nessa condição «a não sofrerem de forma mantida, disruptiva e desproporcionada» (artigo 1.º); veda a
distanásia, através de obstinação terapêutica e diagnóstica que prolongue ou agrave de modo
desproporcionado o sofrimento (artigo 4.º); e acolhe o direito do doente à recusa de suporte artificial das
funções vitais e a prestação de tratamentos que não visem exclusivamente a diminuição do sofrimento (artigo
5.º, n.º 3), assim como o direito dos doentes com prognóstico vital estimado em semanas ou dias, que
apresentem sintomas de sofrimento não controlado por medidas de primeira linha, a receber sedação paliativa,
através de fármacos «ajustados exclusivamente ao propósito de tratamento do sofrimento, de acordo com os
princípios da boa prática clínica e da[s] leges artis» (artigo 8.º, n.º 1).
Decorre dessa normação que o conceito de sofrimento, embora muitas vezes tenha na sua génese a dor
física, somática, provocada por alteração de tecidos corporais, não se confunde com o conceito de dor,
relacionando-se com outros fatores, para além dos problemas estritamente fisiológicos do sujeito.
Como emerge da reflexão de Eric J. Cassell, pode haver dor sem sofrimento, pois nem todas as dores são
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vividas pela pessoa como geradoras de perturbação ou angústia existencial, por não significarem uma doença
ou disfunção, dando como exemplo a dor da parturiente (The Nature of Suffering and the Goals of Medicine,
2nd ed., Oxford University Press, 2004, p. 34). Por outro lado, são frequentes os fenómenos de sofrimento
sem dor física, de que é exemplo o luto patológico, podendo inclusivamente envolver apenas a antecipação de
um evento futuro, tido como profundamente desagregador para a pessoa, ao invés do que sucede com os
processos decorrentes de estímulos nervosos gerados por algum lugar ou lugares do corpo. Para o autor, o
sofrimento pode ser definido genericamente como um estado de aflição severa, associado a acontecimentos
que ameaçam a integridade de uma pessoa. Exige consciência de si, envolve tanto as sensações como as
emoções, sofre uma influência profunda das representações sociais e das relações interpessoais. Enquanto
situação existencial de aflição grave, assume inevitavelmente uma dimensão holística, sofrendo a pessoa
como um todo, mesmo que o estado de sofrimento possa ter como sua raiz mais funda uma particular vertente
do ser-pessoa (emocional, fisiológica, espiritual ou outra).
Essa mesma visão do sofrimento transparece do Parecer n.º 107/CNECV/2020 do Conselho Nacional de
Ética para as Ciências da Vida, quando refere que «[o] sofrimento inclui experiências várias e polimórficas
(impotência, angústia, vulnerabilidade, perda de controlo, ameaça à integridade do projeto existencial).
Compõe-se de muitos elementos, somáticos e psicológicos, que são indissociáveis entre si e deterioram a
qualidade de vida, de modo tal que alguém pode mesmo sentir que não vale a pena viver» (p. 4).
Por assim ser, não parece haver dúvida de que a noção de sofrimento, eleito como pressuposto da
descriminalização de condutas agora compreendidas na previsão dos crimes previstos nos artigos 134.º e
135.º do Código Penal, e como critério de acesso à antecipação da morte medicamente assistida, assume
uma natureza eminentemente subjetiva, estando estreitamente associado à identidade pessoal de cada um,
ao modo como se organiza na sua vivência interior. E que, na respetiva identificação, o elemento informativo
mais relevante para o médico orientador e para o médico especialista, não pode deixar de ser o modo como o
doente manifesta e verbaliza o seu sofrimento, ou seja, a perspetiva individual do doente, podendo
estabelecer-se aqui uma analogia com a anamnese médica em contexto terapêutico, enquanto procedimento
fundamental para fazer o diagnóstico preciso e instituir as práticas terapêuticas mais adequadas às condições
clínicas do paciente, bem sedimentado nas leges artis. Recorde-se que o conceito de sofrimento é igualmente
acolhido no âmbito dos cuidados paliativos e em fim de vida, numa perspetiva de atuação mitigadora do
sofrimento, que pressupõe justamente a avaliação constante e criteriosa do mesmo, sem o que não será
possível aferir das possibilidades de assistência médica e medicamentosa.
42. Feito este percurso, demonstrada a forte dimensão de subjetividade do conceito de sofrimento, poderá
perguntar-se qual o sentido da exigência qualitativa que decorre do adjetivo intolerável. De facto, para
preencher o critério normativo complexo do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto n.º 109/XIV, não basta que o
peticionante sofra; é necessário que esteja em estado de sofrimento intolerável. Como, então, avaliar se o
sofrimento assume essa propriedade?
Argumenta o requerente que essa questão não encontra a devida resposta no sistema normativo instituído
pelo citado Decreto, ficando a concretização do conceito largamente dependente da decisão do médico
orientador e do médico especialista, privados de uma qualquer bússola orientadora, razão por que não se
mostraria satisfeito, nesse ponto, o teste da determinabilidade da medida legislativa.
Não é isso, todavia, o que sucede.
Afirmar que o sofrimento é um fenómeno privado – idiossincrático, único ao sujeito – não significa que
esteja à margem de qualquer objetivação, ou que seja inapreensível por terceiros, cingidos à aceitação acrítica
– meramente empática – do relatado na primeira pessoa pelo paciente.
Sem colocar em crise o essencial da visão personalista de Eric Cassell sobre as finalidades da medicina,
um conjunto importante de autores que se dedica à problemática do sofrimento, perspetivando os critérios de
elegibilidade para o acesso aos cuidados paliativos, com particular relevo para a sedação paliativa, e, também,
para a antecipação da morte assistida introduzida nos Países Baixos (em que é requisito o convencimento do
médico de que o sofrimento do doente é insuportável), aponta algumas limitações à orientação estritamente
subjetivista do autor. Contrapõe-lhe uma visão que não dispensa um referencial analítico de índole objetiva
(mesmo que negando a possibilidade de medir o sofrimento, ou estabelecer rigidamente diversos estalões, em
termos similares ou aproximados ao que sucede com a determinação do quantum doloris no âmbito da
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responsabilidade civil), construído a partir do estado do conhecimento e da experiência da medicina, idóneo a
despistar tanto os casos em que a vontade não seja séria ou esclarecida, como aqueles em que a avaliação
do próprio sobre o sofrimento, tido como intolerável ou insuportável, assenta em premissas erradas ou em
enganos. Nessa orientação, que aceita espaços de juridicidade na avaliação do sofrimento, podem apontar-se,
entre outros, Henri Wijsbek, «The subjectivity of suffering and the normativity of unbearableness» in Stuart J.
Youngner (ed.), Physician-assisted death in perspective: Assessing the Dutch experience, Cambridge
University Press, 2012, pp. 319-332; Govert den Hartogh, «Suffering and dying well: on the proper aim of
palliative care» inMedicine Health Care and Philosophy, 2017, 20, pp. 413-424; Tyler Tate e Robert Pearlman,
«What We Mean When We Talk About Suffering – And Why Eric Cassell Should Not Have The Last Word»,
PerspectivesinBiology and Medicine, Volume 61, 1, 2019, pp. 95-110; Claudia Bozarro e Jan Schildmann,
«‘Suffering’ in Palliative Sedation: Conceptual Analysis and Implications for Decision Making in Clinical
Practice» inJournal of Pain and Symptom Management, vol. 56, 2, agosto de 2018, pp. 288-294; e Clara
Costa Oliveira, «Para compreender o sofrimento humano» inRevista Bioética, 2016, 24 (2), pp. 225-234.
O reconhecimento de que o sofrimento, ainda que fortemente subjetivo, permanece heteroavaliável e
verificável, usando para tanto, nas suas expressões não estritamente fisiológicas, ferramentas desenvolvidas
por ramos da ciência médica como a psiquiatria ou a psicologia, suporta o entendimento de que o critério
normativo situação de sofrimento intolerável, pese embora amplo e interminável, desprovido da definição de
situações concretas, não é, em si mesmo, indeterminável. A sua interpretação e aplicação é confiada a
profissionais de saúde qualificados, sujeitos ao cumprimento das leges artis, desde logo em função do
conhecimento científico relativo à concreta patologia do doente, de incontornável natureza objetiva, com a qual
o sofrimento intolerável forma uma unidade de sentido na teleologia do sistema normativo de antecipação da
morte medicamente assistida não punível que o Decreto n.º 109/XIV pretende instituir.
É certo que poderia o legislador ter escolhido outros caminhos, seguindo, por exemplo, o modelo adotado
pela Lei de Bases dos Cuidados Paliativos, que dedica toda a base II à definição de um conjunto de conceitos.
Todavia, não é menos certo que, face à rápida evolução do conhecimento médico, uma excessiva
aproximação às expressões concretas da vida comportaria, por sua vez, um elevado risco de perda de
consistência lógico-categorial. Como refere Costa Andrade, a propósito do artigo 150.º do Código Penal – que,
como se viu, inclui no seu enunciado a intenção de minorar o sofrimento – «[n]ão havendo, neste domínio, dois
casos verdadeiramente iguais […], falecem os momentos de comunicabilidade suscetíveis de emprestar
sentido e conteúdo rígido às categorizações legais ou doutrinais» (v. Consentimento e Acordo em Direito
Penal, Coimbra Editora, Coimbra, 1991, p. 466).
43. Resta, assim, concluir que o conceito de «sofrimento intolerável», embora amplo, não deixa de ser
adequado para desempenhar a função a que se destina no contexto da norma do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto
n.º 109/XIV, podendo e devendo ser objetivado e comprovado em cada caso concreto mediante uma correta
aplicação das leges artis. Nessa medida, apesar de indeterminado, o conceito em apreço não é
indeterminável, mas antes determinável. Acresce que a sua abertura se mostra adequada ao contexto clínico
em que terá de ser aplicado por médicos. Estas duas razões justificam suficientemente o grau de
indeterminação em causa, não permitindo, no domínio particular da antecipação da morte medicamente
assistida, a conclusão de que aquele grau contrarie as exigências de densidade normativa resultantes da
Constituição.
H) Cont.: a insuficiente densificação normativa do conceito «lesão definitiva de gravidade extrema
de acordo com o consenso científico»
44. Cumpre, de seguida, analisar o segundo segmento normativo questionado – em que é de exigir do
legislador especial cuidado, precisamente, por não estar em causa uma doença fatal (como, aliás, o
requerente não deixa de sublinhar): o conceito descritivo de um dos subcritérios do segundo critério, a lesão
definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico (requerimento, pontos 7.º e 8.º).
Esta formulação terá tido origem nos projetos de lei apresentados pelo Bloco de Esquerda (artigo 1.º), bem
como do Partido Socialista (artigo 2.º, n.º 1), os quais se referem de igual modo a «lesão definitiva» enquanto
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critério (ou subcritério) relevante para o acesso à antecipação da morte medicamente assistida por decisão da
própria pessoa e de eutanásia não punível. O artigo 2.º do que viria a ser o Decreto n.º 109/XIV – e, assim, a
versão final do enunciado do subcritério que se reporta à «lesão definitiva» – foi aprovado na reunião de 6 de
janeiro de 2021 da Comissão competente, na redação da proposta apresentada pelo Grupo Parlamentar do
Bloco de Esquerda, com a introdução do seguinte inciso no n.º 1, por proposta oral do mesmo partido: «lesão
definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico» (cfr. a nota sobre os trabalhos
preparatórios do Decreto n.º 109/XIV, anexo à resposta do autor da norma, p. 8 – cfr. supra o n.º 5).
Está em causa uma condição cumulativa, a tratar como condição objetiva, que pressupões um diagnóstico
consolidado. A lesão, enquanto traumatismo ou alteração patológica de um tecido, podendo ou não ser
incapacitante, é verificável e suscetível de heteroavaliação.
45. A expressão adotada pressupõe o diagnóstico de uma «lesão definitiva».
Se o adjetivo definitiva não suscita especiais dúvidas, o problema coloca-se a montante, desde logo,
quanto à noção de lesão, uma vez que esta pode corresponder a condições de gravidade muito díspar
(podendo ter na sua origem ou causa malformação, doença ou acidente traumático).
O legislador qualifica-a, é certo, como definitiva, o que parece pressupor um juízo sobre o seu caráter
permanente e irreversível [cf. a «irreversível lesão» a que se refere a alínea a) do n.º 1 do artigo 142.º do
Código Penal]. Mas, de modo a cingir o universo de lesões definitivas prefiguráveis, impôs que a lesão seja de
gravidade extrema de acordo com o consenso científico (qualificação esta aditada, como se referiu, já na
discussão dos projetos de lei, por iniciativa do Bloco de Esquerda).
O segundo problema que se coloca é o de apreender o sentido de tal gravidade extrema, quando reportado
a uma lesão definitiva, já que o legislador não concede qualquer indício do que se deva entender, para este
efeito, como extremamente grave, nem é possível considerar que, por remissão para os conhecimentos da
ciência médica, a norma se torne facilmente determinável pelos seus destinatários.
De resto, como o requerente salienta, a propósito do subcritério lesão definitiva de gravidade extrema,
«sendo o único critério associado à lesão o seu carácter definitivo, e nada se referindo quanto à sua natureza
fatal, não se vê como possa estar aqui em causa a antecipação da morte, uma vez que esta pode não ocorrer
em consequência da referida lesão» (requerimento, ponto 8.º). Este aspeto – a possibilidade do subcritério em
análise «permit[ir] uma interpretação, segundo a qual a mera lesão definitiva poderia conduzir à possibilidade
de morte medicamente assistida» (v. idem, ibidem) –, adquire uma relevância acrescida, em razão das
exigências colocadas pela imposição de proteção da vida humana relativamente a situações em que o recurso
à colaboração voluntária de terceiros para antecipar a morte de uma pessoa, mesmo a seu pedido, pode
considerar-se constitucionalmente admissível (cfr. supra o n.º 33).
A indeterminação do conceito gravidade extrema, associado a uma lesão definitiva, torna-se ainda mais
patente, quando confrontada com a falta de consenso relativamente ao caráter fatal das situações clínicas
suscetíveis de legitimarem o acesso a um procedimento de antecipação da morte medicamente assistida no
horizonte do direito comparado: enquanto os ordenamentos jurídicos europeus em que a eutanásia se
encontra prevista (concretamente, o holandês, o belga e o luxemburguês) admitem que a morte assistida
possa ocorrer sem que o doente sofra de uma doença fatal ou em fase terminal, a exigência inversa é feita nos
ordenamentos jurídicos do continente americano (concretamente, no canadiano, no colombiano e nos Estados
federados dos Estados Unidos da América que despenalizaram o suicídio assistido – Oregon, Washington,
Vermont, Califórnia, Colorado, Havai, Nova Jérsi, Maine e Distrito da Colúmbia). Esta diversidade de soluções
normativas reflete a diferença de valoração e de ponderação atribuída às mencionadas exigências de natureza
objetiva relativas à proteção da vida humana em confronto com a autodeterminação individual do doente. Ora,
a opção legislativa neste domínio tem de ser clara, de modo a permitir um juízo igualmente claro quanto à
respetiva legitimidade constitucional, nomeadamente à luz da inviolabilidade da vida humana consagrada no
artigo 24.º, n.º 1, da Constituição.
46. Sem prejuízo destas considerações, a verdade é que o legislador poderia ter mobilizado outros
conceitos, muito mais comuns na prática (médica ou jurídica), que, sem perder plasticidade, seriam
prontamente apreensíveis quando associados ao pressuposto relativo ao sofrimento intolerável. Pense-se, por
exemplo, na lesão incapacitante ou que coloque o lesado em situação de dependência, que a Lei de Bases
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dos Cuidados Paliativos define na base II, alínea i), como «a situação em que se encontra a pessoa que, por
falta ou perda de autonomia física, psíquica ou intelectual, resultante ou agravada por doença crónica,
demência orgânica, sequelas pós-traumáticas, deficiência, doença incurável e ou grave em fase avançada,
ausência ou escassez de apoio familiar ou de outra natureza, não consegue, por si só, realizar as atividades
da vida diária» (aliás, os projetos apresentados pelo PAN e pelo PEV faziam menção, respetivamente, a
«situação clínica de incapacidade ou dependência absoluta» ou a «lesão amplamente incapacitante» – cfr., o
artigo 3.º, n.º 1, de ambos os projetos de lei). Solução próxima consta da alínea b) do n.º 3 da já citada Ley –
ainda em processo de aprovação – orgânica deregulación de la eutanásia (espanhola), em que se define
«[p]adecimiento grave, crónico e imposibilitante» por referência ao impacto que a condição física da pessoa
assume «sobre su autonomía física y actividades de la vida diaria, de manera que no pueda valerse por sí
misma, así como sobre su capacidad de expresión y relación, y que llevan asociado un sufrimiento físico o
psíquico constante e intolerable para la misma, existiendo seguridad o gran probabilidad de que tales
limitaciones vayan a persistir en el tiempo sin posibilidad de curación o mejoría apreciable. En ocasiones
puede suponer la dependencia absoluta de apoyo tecnológico.».
Em qualquer caso, não cabe dúvida de que seria possível ao legislador encontrar uma formulação
alternativa, que se traduzisse numa maior densificação do elemento normativo que se pretende consagrar
enquanto pressuposto da não punição da antecipação da morte medicamente assistida. Existem, com efeito,
lugares paralelos no sistema normativo que – seja perante normas que atuam a montante ou normas que
atuam a jusante – constituem exemplos de uma mais cuidada e fina densificação dos conceitos
(indeterminados) que, em si mesmos, não são a priori constitucionalmente desconformes. Tome-se como
exemplo o direito penal e o direito civil (v.g., no que se refere à avaliação de incapacidades por acidentes de
trabalho ou doença profissional e à avaliação da incapacidade e do dano corporal em direto civil, para
efetivação do direito à reparação, em casos de sinistro, doença ou lesão).
No âmbito do Direito Penal, o legislador não se limitou a estabelecer uma consequência diferenciada (pena
mais severa) para as ofensas à integridade física graves (artigo 144.º do Código Penal). Forneceu também
critérios mínimos para caracterização de uma lesão como grave, tendo-o feito de um duplo ponto de vista. Em
primeiro lugar, deixou claro que, a par do perigo para a vida [alínea d)], são suscetíveis de integrar tal
categoria quer as lesões corporais, quer as lesões funcionais, quer ainda as lesões da saúde. Em segundo
lugar, especificou, dentro de cada uma destas subcategorias, o tipo ou tipos de lesões suscetíveis de atingir
esse patamar de gravidade: no primeiro caso, as lesões que privem a pessoa de um importante órgão ou
membro ou que a desfigurem grave e permanentemente [alínea a)]; no segundo caso, as lesões que eliminem
ou afetem, de maneira grave, a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais, de procriação ou de
fruição sexual, ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem [alínea b)]; e, no terceiro
caso, as doenças particularmente dolorosas ou permanentes, bem como a anomalia psíquica grave e
incurável [alínea c)].
Parecendo certo que o conceito de lesão de gravidade extrema incorpora, relativamente às lesões graves,
um diferenciador essencialmente qualitativo – no sentido em que nem todas as lesões graves serão
qualificáveis, nas suas manifestações mais severas, como lesões de gravidade extrema –, verifica-se que o
Decreto n.º 109/XIV não fornece quaisquer pontos de referência com base nos quais aquele deverá operar.
No quadro do direito civil, o Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de outubro, reconhecendo que «a avaliação
médico-legal do dano corporal, isto é, de alterações na integridade psicofísica, constitui matéria de particular
importância, mas também de assinalável complexidade», aprovou uma tabela (indicativa) para a avaliação de
incapacidades permanentes em direito civil, destinada a «ser utilizada exclusivamente por médicos
especialistas em medicina legal ou por especialistas médicos de outras áreas com específica competência na
avaliação do dano corporal […], constituindo assim um elemento auxiliar que se reputa de grande utilidade
prática para a uniformização de critérios e procedimentos» (v. o preâmbulo do diploma). Serviu de base à
elaboração deste instrumento uma tabela análoga adotada na União Europeia denominada Guide Barème
européen d’évaluation des atteintes à l’intégrité physique et psychique (Guide Barème Européen d’évaluation
médicale des atteintes à l’intégrité physique et psychique, de 2006, www.ceredoc.eu), enriquecida pela
experiência do Instituto de Medicina Legal, com vista a facultar aos especialistas uma base sólida para
«observações médicas precisas e especializadas» (ibidem). Cuida-se aqui, é certo, de responder ao delicado
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problema da quantificação económica de danos corporais para efeitos de cômputo da justa reparação dos
danos não materiais sofridos, segundo princípios que não são transponíveis para a verificação dos
pressupostos da morte medicamente assistida não punível. Contudo, constitui um exemplo de densificação de
critérios de avaliação adotados com o propósito de assegurar a uniformização de procedimentos. De igual
modo, o referido decreto-lei aprovou igualmente a nova Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de
Trabalho e Doenças Profissionais, a qual constitui igualmente um exemplo de densificação de critérios de
avaliação com aquele intuito uniformizador no domínio do direito laboral.
Este tipo de instrumentos desempenhou ainda uma função auxiliar relevante no desenvolvimento da
jurisprudência civil, facilitando a comparabilidade entre casos concretos. Assim, neste contexto, a avaliação do
grau de gravidade das lesões baseia-se num lastro jurisprudencial muito relevante, observando-se que as
referências a lesões graves, extremamente graves ou fortemente incapacitantes na jurisprudência do Supremo
Tribunal de Justiça é reservada a quadros de especial sensibilidade, tais como:
– «[S]sofre lesões graves, dores atrozes, intervenção cirúrgica, internamento hospitalar, tratamento
posterior prolongado, algaliamento, traqueostomização, infeções respiratórias e urinárias, tetraplegia motora e
sensitiva, movimentação em cadeira de rodas com ajuda, tratamento ambulatório, crises de incontinência,
impotência funcional, dependência de outrem na satisfação das necessidades básicas, depressão profunda e
persistente desgosto» (Acórdão de 13 de julho de 2004, Processo n.º 04B2616);
– «[L]lesões múltiplas, nomeadamente gravosas lesões ortopédicas, insuficientemente ultrapassadas, face
às sequelas permanentes para a capacidade de movimentação da lesada […]; afetação relevante e
irremediável do padrão de vida de sinistrado […], associada, desde logo, ao grau de incapacidade fixado
(suscetível de, em prazo não muito dilatado, alcançar os 22%) – com repercussões negativas, não apenas ao
nível da atividade profissional, mas também ao nível da vida e afirmação pessoal; […] internamentos e
tratamentos médico-cirúrgicos muito prolongados, com imobilização e períodos de total incapacidade do
doente e envolvendo dores e sofrimentos físicos e psicológicos muito intensos.» (Acórdão de 10 de outubro de
2010, Processo n.º 632/2001.G1.S1)
– «[L]esões múltiplas, nomeadamente gravosas lesões cerebrais e neurológicas, que implicaram – para
lesado com cerca de 40 anos – um estado clínico persistente e irreversível de coma vegetativo, prolongado
por quase 6 anos, abrangendo, quer os 3 anos de internamento hospitalar, quer o período posterior, em que o
lesado teve alta e permaneceu em casa dos seus familiares, acamado e totalmente dependente para as mais
elementares atividades da vida diária e de subsistência física, até acabar por sucumbir às gravíssimas
sequelas das lesões causadas pelo acidente – não ficando demonstrado que o lesado, nesse prolongado
estado de coma, tivesse – face à inconsciência profunda e perda de funções cognitivas – efetiva consciência
do estado de total incapacidade em que se encontrava» (Acórdão de 28 de fevereiro de 2013, Processo n.º
4072/04.0TVLSB.C1.S1 – que contém referências a diversos quadros de gravidade extrema).
Afigura-se, em suma, ser ainda possível, desejável e exigível uma maior densificação quanto à «gravidade
extrema» da lesão, designadamente por referência às lesões corporais e às lesões funcionais [cfr. o artigo
144.º, alíneas a) e b), respetivamente, do Código Penal], ou, quanto à afetação da capacidade, temporária ou
permanente para o trabalho (cfr. o artigo 19.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro). Esta conclusão é ainda
reforçada por o contexto em que ocorre a antecipação da morte medicamente assistida não punível – que é
totalmente novo – em nada poder contribuir para uma maior concretização do significado da expressão em
causa.
47. Por outro lado, a circunstância de, quer a gravidade extrema da lesão, quer o seu carácter irreversível
ou definitivo deverem ser estabelecidos à luz do «consenso científico» não aumenta nem diminui, de forma
relevante, o grau de indeterminabilidade que a escassa densificação do referido conceito projeta sobre a
norma em apreciação.
Apesar de não ser fornecida qualquer indicação sobre como deve ser apurado ou identificado tal
«consenso científico» – trata-se de um consenso nacional, europeu, internacional, entre pares de uma
especialidade médica, ou de especialidades médicas relacionada com a «lesão definitiva de gravidade
extrema», ou simplesmente dos pares médicos em geral? –, não é menos verdade que o dito «consenso
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científico» representará, em regra, a posição geralmente aceite num dado momento pela maioria de cientistas
especializados em certa matéria.
Tendo em conta a natureza dos intervenientes no procedimento – médico orientador, médico especialista
[cfr. os artigos 75.º e 97.º do Estatuto da Ordem dos Médicos, aprovado pela Lei n.º 117/2015, de 31 de
agosto, e o artigo 3.º, alínea a), do Regulamento n.º 628/2016] e CVA, também integrada por um médico
indicado pela Ordem dos Médicos –, o consenso científico referenciado na norma tenderá, pois, a reportar-se
ao consenso científico médico, tanto mais quanto certo é que as intervenções do médico orientador e do
médico especialista, destinadas a verificar o cumprimento daquele requisito, se referem a uma «situação
clínica» que afeta o doente e ao respetivo prognóstico, isto é, o «prognóstico da situação clínica» (cfr., em
especial, o n.º 1 do artigo 4.º e o n.º 1 do artigo 5.º, ambos do Decreto n.º 109/XIV) – tratando-se, pois, de atos
médicos (cfr. o artigo 6.º, n.º 1, do Regulamento n.º 698/2019, da Ordem dos Médicos – o normativo que
define os atos próprios dos médicos).
Em tal contexto, o significado geral do «consenso científico» médico pode ser em certa medida
descortinado, tomando-se como referência, por exemplo, o conceito de «consenso médico» decorrente da
Recomendação Rec(2001)13 do Comité de Ministros aos Estados-Membros sobre o desenvolvimento de uma
metodologia para elaborar linhas de orientação (guidelines) sobre as melhores práticas médicas (adotada pelo
Comité de Ministros do Conselho da Europa, em 10 de outubro de 2001 na 768.ª sessão de representantes
ministeriais) e o seu Memorando explicativo (disponível em www.coe.int). Como explicitado em literatura
médica, em domínio especializado, mas valendo como asserção geral:
«According to the Council of Europe a ‘medical consensus’ is a public statement on a particular aspect of
medical knowledge that is generally agreed upon as an evidence-based, state-of- the-art knowledge by a
representative group of experts in that area […]. Its main objective is to counsel physicians on the best possible
and acceptable way to address a particular decision-making area for diagnosis, management or treatment.
Consensus statements synthesize new information, largely from recent or ongoing medical research that may
have implications for re-evaluation of routine medical practices. Consensus statements however do not provide
specific algorithms or guidelines for practice because these depend on cost, available expertise and
technology, and local practice circumstances.
There are different ways of producing medical consensus. Typically, an independent panel of experts is
convened, either by a medical association or by a governmental authority. Both the Council of Europe and the
US National Institutes of Health organize conferences that produce consensus statements on important and
controversial topics in medicine. The consensus constitutes the expression of the general opinion of the
participants and does not necessarily imply unanimity. Since consensus statements provide a «snapshot in
time» they must be re-evaluated periodically.
A specific consensus method which does not need to bring experts together for a physical meeting is the
Delphi process (…). The method involves sending out questionnaires of statements, aggregating and
anonymizing feedback and sharing them within the group in a number of cycles. The experts can adjust their
answers in subsequent rounds. The theory behind the Delphi method is that the unidentified comments may
facilitate inter- action between experts and reduce individual bias.» (v. K. De Boeck, C. Castellani e J.S. Elborn
[on behalf of the ECFS Board], «Medical consensus, guidelines, and position papers: A policy for the ECFS»,
Journal od Cystic Fibrosis 13 (2014) 495-498, p. 495).
Na referida Recomendação Rec(2001)13, encontram-se, pois, diversas referências ao consenso,
nomeadamente ao «consenso entre pares», que se traduz na elaboração de linhas de orientação que
funcionem como standards auxiliares para os tribunais decidirem casos de má prática médica (p. 25), linhas de
orientação elaboradas a partir de «um grupo de peritos baseadas no consenso» (p. 35) ou «consenso de
peritos, obtido por um dos métodos formais, como o de Delfos» para elaboração de linhas sobre cuidados
essenciais na falta de prova (evidence) ou existindo prova conflituante (p. 64).
Todavia, ainda que assim seja – i.e., ainda que se possa descortinar o significado de consenso científico
médico –, não são fixados elementos suficientemente seguros, certos, quer sobre a metodologia ou
metodologias possíveis para o atingir (existindo várias possíveis), quer em relação ao universo dos peritos
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médicos segundo cujo consenso certa lesão deve ser considerada «definitiva» e «de gravidade extrema».
Mas mais: entendido nos termos referidos, o consenso científico à luz do qual deverão ser estabelecidas a
irreversibilidade e a extrema gravidade da lesão acaba por assumir, no âmbito do enunciado normativo em que
se inscreve, um significado essencialmente tautológico ou redundante.
Na verdade, a intervenção do médico orientador e do médico especialista destinada a verificar o
preenchimento dos pressupostos ou condições de que depende a antecipação da morte medicamente
assistida não punível constitui, conforme referido já, um ato médico, com uma dupla componente: de
diagnóstico – que se caracteriza pela «identificação de uma perturbação, doença ou do estado de uma doença
pelo estudo dos seus sintomas e sinais e análise dos exames efetuados» (artigo 6.º, n.º 1, do Regulamento n.º
698/2019) – e de prognóstico, tendo por base a situação clínica do requerente. Como ato médico que é, tal
verificação encontra-se sujeita às leges artis, que corporizam o conjunto das regras que o médico está
obrigado a respeitar em cada ato clínico.
Ora, correspondendo as leges artis às «regras generalizadamente reconhecidas da ciência médica»
(Bockelmann, apud Costa Andrade, Comentário Conimbricense…, cit., p. 470) ou ao «complexo de regras e
princípios profissionais, acatados genericamente pela ciência médica, num determinado momento histórico,
para casos semelhantes, ajustáveis, todavia, às concretas situações individuais» (Álvaro da Cunha Gomes
Rodrigues, Responsabilidade Médica em Direito Penal, Estudo dos Pressupostos Sistemáticos, Almedina,
Coimbra, 2007, p. 54), pode dizer-se que a respetiva observância pelos médicos intervenientes no
procedimento pressupõe já a consideração dos standards de atuação consensualizados na comunidade
científica.
Deste ponto de vista, a remissão para o consenso científico constante do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto n.º
109/XIV assemelha-se à referência ao «estado dos conhecimentos e da experiência da medicina» que até à
revisão operada pela Lei n.º 16/2007, de 17 de abril, constava do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal: por se
tratar, aqui como ali, de um padrão de avaliação inerente à observância das leges artis, a exigência de que a
verificação das indicações que excluem a punibilidade da interrupção voluntária da gravidez fosse levada a
cabo «segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina» acabou por ser suprimida, por
«redundante e mesmo supérflua», na revisão de 2007, já que se afigurava em tal contexto «evidente» que «a
verificação das indicações de índole terapêutica» deve «atender ao estado dos conhecimentos e da
experiência da medicina» (Figueiredo Dias e Nuno Brandão, Comentário Conimbricense…, cit., p. 271).
48. As anteriores considerações, quer em relação à «lesão definitiva», quer relativamente à sua «gravidade
extrema», quer, finalmente, no tocante à exigência de um «consenso científico» tendo por objeto lesões
definitivas de gravidade extrema, evidenciam a manifesta insuficiência da densificação normativa da respetiva
previsão legal, tornando, por isso, o artigo 2.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIV inapto, por indeterminação, para
disciplinar em termos previsíveis e controláveis as condutas dos seus destinatários. Neste segmento, aquele
Decreto não satisfaz o princípio da determinabilidade das leis e contende com a alínea b) do n.º 1 do artigo
165.º da Constituição, por referência ao seu artigo 24.º, interpretado de acordo com o princípio da dignidade
da pessoa humana previsto no artigo 1.º de tal normativo.
I) As normas sindicadas a título de inconstitucionalidade consequente constantes dos artigos 4.º,
5.º, 7.º e 27.º do Decreto n.º 109/XIV
49. O juízo de inconstitucionalidade quanto à norma do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto n.º 109/XIV formulado
no número anterior importa um juízo de inconstitucionalidade consequente das demais normas mencionadas
no requerimento – as que constam dos artigos 4.º, 5.º, 7.º e 27.º –, na medida em que se referem àquela,
expressamente ou por remissão, para o cumprimento dos requisitos ou das condições previstos no mesmo
Decreto. Este é um efeito inelutável justificado pela «centralidade» do referido artigo 2.º, n.º 1, na economia de
todo o diploma (cfr. o Acórdão n.º 793/2013, n.º 27).
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III. Decisão
Pelo exposto, o Tribunal decide, com referência ao Decreto n.º 109/XIV da Assembleia da República,
publicado no Diário da Assembleia da República, Série II-A, número 76, de 12 de fevereiro de 2021, e enviado
ao Presidente da República para promulgação como lei:
a) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade da norma constante do seu artigo 2.º, n.º 1, com fundamento na
violação do princípio de determinabilidade da lei enquanto corolário dos princípios do Estado de direito
democrático e da reserva de lei parlamentar, decorrentes das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 165,
n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa, por referência à inviolabilidade da vida humana
consagrada no artigo 24.º, n.º 1, do mesmo normativo; e, em consequência,
b) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 4.º, 5.º, 7.º e 27.º do mesmo
Decreto.
Lisboa, 15 de março de 2021.
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ANEXO
Declarações de voto
Processo n.º 173/21
Plenário
Relator: Conselheiro Pedro Machete
(Conselheira Maria José Rangel de Mesquita)
Declaração
Afasto-me da conclusão alcançada no n.º 43 do presente Acórdão segundo a qual o critério sofrimento
intolerável, embora amplo, não deixa de ser adequado para desempenhar a função a que se destina no
contexto da norma do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIV, uma vez que pode e deve ser objetivado e
comprovado em cada caso concreto mediante uma correta aplicação das leges artis.
Em meu entender, assiste razão ao requerente quando afirma que aquele critério não resulta «inequívoco
das leges artis médicas» e que, em qualquer caso, o grau de indeterminação que o caracteriza não se
conforma com «as exigências de densidade normativa resultantes da Constituição na matéria sub judice»
(requerimento, ponto 6.º), em particular com o princípio da determinabilidade das leis. Com efeito, a
apreciação do critério em análise feita nos n.os
41, 42 e 43 do Acórdão desconsidera, em larga medida, o
dever de proteção da vida humana constitucionalmente consagrado – que também é reconhecido no Acórdão
– e as exigências que do mesmo decorrem quanto à admissibilidade constitucional da morte autodeterminada
com apoio de terceiros, mormente no quadro de um procedimento de natureza administrativa tendente à
prática de um ato correspondente a uma autorização permissiva – como é o caso do parecer da CVA. Acresce
que as insuficiências do citado critério no plano linguístico e conceptual também não se mostram
compensadas por garantias procedimentais robustas (como eventualmente, e a título meramente
exemplificativo, poderia resultar da intervenção obrigatória de um psiquiatra e, ou, de um psicólogo).
Em suma, tal como está formulado, e tendo em conta o contexto procedimental em que será aplicado, o
critério de acesso à morte medicamente assistida correspondente ao «estado de sofrimento intolerável»
presta-se a interpretações (e aplicações) subjetivas e amplas, não controláveis, mostrando-se incapaz de
prevenir eficazmente uma deriva no sentido da «rampa deslizante», a qual é absolutamente contrária aos
limites apertados em que, de acordo com a Constituição portuguesa, aquela prática pode ser admitida.
Esta conclusão fundamenta-se na seguinte ordem de razões:
1. A circunstância de o conceito de «sofrimento» já ser mobilizado noutros contextos normativos – como,
por exemplo, os que são referidos no n.º 41 do Acórdão – justifica a opção do legislador de o utilizar com a
finalidade de estabelecer um critério de acesso à antecipação da morte medicamente assistida que possa
funcionar como condição necessária, mas não suficiente, de modo a não desproteger totalmente o dever de
proteção da vida humana. Mas tal utilização em contextos normativos próximos no que ao sofrimento diz
respeito e com conexões com doenças terminais e com o fim da própria vida, nomeadamente os cuidados
paliativos (Lei n.º 52/2012, de 5 de setembro) e o contexto de doença avançada e em fim de vida (Lei n.º
31/2018, de 18 de julho) faz ressaltar imediatamente as diferenças ao nível dos enunciados legais.
Por isso mesmo, é incompreensível a omissão de referência a um nexo de causalidade entre as condições
médicas de lesão ou de doença – parecendo bastar a simples associação – em contraste com o que sucede
no âmbito dos cuidados paliativos [v.g. Lei n.º 52/2012, bases II, alínea a), IX, n.º 1, e XVII, n.º 1, alínea b), e
Lei n.º 31/2018, artigo 2.º]. De resto, sem a existência de tal nexo não se compreende o fundamento da
afirmada «unidade de sentido na teleologia do sistema normativo de antecipação da morte medicamente
assistida não punível que o Decreto pretende instituir» entre a concreta patologia do doente e o sofrimento
intolerável (cfr. o n.º 42).
A importância da relação causal entre a condição médica ou clínica e o sofrimento para efeitos de
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apreciação no caso concreto de um pedido de antecipação da morte medicamente assistida é reconhecida em
diversos ordenamentos: por exemplo, nos Países Baixos, na Bélgica e no Canadá.
Por outro lado, o nexo de causalidade encontrava-se previsto no artigo 3.º, n.º 1, do Projeto de Lei n.º
67/XIV/1.ª, apresentado pelo PAN («casos de doença ou lesão incurável, causadora de sofrimento físico ou
psicológico intenso, persistente e não debelado ou atenuado para níveis suportáveis e aceites pelo doente»); e
no artigo 3.º, n.º 1, Projeto de Lei n.º 168/XIV/1.ª, apresentado pelo PEV («doente que, estando em situação
de profundo sofrimento decorrente de doença grave e incurável e sem expectável esperança de melhoria
clínica»).
O abandono da referência a tal nexo na redação final que consta do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIV
não pode, por isso, deixar de suscitar dúvidas quanto a saber se, afinal, o mesmo é ou não exigível. Abre-se,
deste modo, um espaço de indeterminação não negligenciável, atentas as consequências quanto ao sentido e
alcance do critério em causa, competindo o esclarecimento de tal questão exclusivamente ao legislador.
2. Por outro lado, os lugares normativos paralelos, porque pressupõem conhecimentos e práticas médicas
e clínicas especiais, evidenciam não só a necessidade de algum tipo de formação específica do médico
orientador (de modo a que este fique habilitado a aplicar as leges artis mais específicas e próprias desta
abordagem em fim de vida, nomeadamente para avaliar «o que é dito», «como é dito» e a própria linguagem
corporal do indivíduo) – já que, em relação ao médico especialista referido no artigo 5.º do Decreto n.º
109/XIV, o mesmo não tem obrigatoriamente de examinar o doente, pelo que, em relação à sua apreciação, a
ideia de «analogia com a anamnese médica em contexto terapêutico» nem sequer tem as suas condições
objetivas de aplicação legalmente garantidas –, como também a possibilidade de se fixarem padrões de
atuação em vista da avaliação do sofrimento.
Como referem Paula Encarnação, Clara Costa Oliveira e Teresa Martins, «[o] sofrimento não pode ser
cuidado ou aliviado, a menos que seja reconhecido e diagnosticado» (Autoras cits., «Dor e sofrimento
conceitos entrelaçados – perspetivas e desafios para os enfermeiros» inRevista Cuidados Paliativos, vol. 2,
n.º 2, outubro 2015, p. 27). Ou seja, a intervenção dos profissionais de saúde – médicos e enfermeiros –,
designadamente em situações de fim de vida, depende, também, da sua capacidade de avaliar o sofrimento:
(i) quer a sua existência, (ii) quer as dimensões em causa no caso concreto; (iii) quer, ainda, a sua
intensidade. Só assim se compreende que a Organização Mundial de Saúde tenha vindo redefinir o conceito
de «cuidados paliativos», em 2002, passando a considerar como primordial o alívio do sofrimento.
Existe, na verdade, muita pesquisa e existem também novos instrumentos de avaliação desenvolvidos, em
vista de se conseguir rastrear e diagnosticar o sofrimento. «Krikorian et al. (2013) num artigo intitulado
Suffering Assessment: A Review of Available Instruments for Use in Palliative Care cujo objetivo foi identificar e
descrever os instrumentos existentes desenvolvidos para avaliar o sofrimento em cuidados paliativos, bem
como comentar as suas propriedades psicométricas, referem que, de acordo com os resultados dessa revisão,
cerca de 10 (dez) instrumentos para avaliar o sofrimento estão disponíveis, tanto para fins clínicos, como de
investigação, nomeadamente: Initial Assessment of Suffering (IAS); Perception of time; Single-item Numeric
Rating; Pictorial Representation of Illness and Self Measure (PRISM); Structured Interview for Symptoms and
Concerns in Palliative Care (SISC); Mini-Suffering State Examination (MSSE); Suffering Assessment Tool
(SAT); SOS-V; Suffering scale e The Suffering Scales. Segundo Krikorian et al. (2013), dos dez instrumentos
analisados na sua revisão, os dois que apresentam as propriedades psicométricas mais consistentes são o
PRISM e o SISC, para além de serem os instrumentos conceptualmente mais coerentes. Ambos permitem
uma abordagem não-diretiva, proporcionam uma medida quantitativa e podem ser utilizados por doentes com
dificuldade na comunicação oral e escrita» (cfr. Paula Encarnação, Clara Costa Oliveira e Teresa Martins, ob.
cit., pp. 28-29).
Pode discutir-se a maior ou menor fiabilidade dos resultados destes instrumentos de heteroavaliação.
Porém, não pode sustentar-se a inexistência de meios capazes de proceder a uma heteroavaliação, ainda que
com uma margem inelutável de subjetividade associada. Em boa verdade, nem sequer pode excluir-se, em
absoluto, a possibilidade de gradação objetivável do sofrimento. A circunstância desta realidade, na sua
essência, corresponder a uma experiência subjetiva multidimensional – uma «situação existencial de aflição
grave [que] assume inevitavelmente uma dimensão holística» – não impossibilita o seu diagnóstico nem uma
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avaliação de diferentes graus de sofrimento. Cumpre, isso sim, recorrer aos instrumentos de avaliação
utilizados nesse tipo de diagnóstico, o que, de resto acaba por ser reconhecido no n.º 42 do Acórdão (até com
referência expressa à necessidade de a determinação do sofrimento intolerável ser «confiada a profissionais
de saúde qualificados», e não um qualquer «médico escolhido pelo doente», conforme previsto no artigo 3.º,
n.º 2, do Decreto).
Este aspeto é importante, uma vez que a própria função atribuída pelo legislador ao «critério» sofrimento
intolerável exige uma objetivação da apreciação realizada, quer em termos de fundamentação da mesma (cfr.
o artigo 4.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIV), quer para efeitos do respetivo controlo pelos outros médicos e pela
própria CVA (cfr. os artigos 5.º, n.º 1, e 7.º, n.º 1, do mesmo normativo). Ora, como resulta da leitura que o
próprio Acórdão faz do enunciado do critério em análise, o mesmo é insuficiente para vincular o médico
orientador a uma predefinição da metodologia que irá seguir na avaliação do sofrimento intolerável afirmado
pela pessoa que se lhe dirige em vista do pedido de antecipação da morte medicamente assistida,
documentando os passos essenciais da avaliação feita segundo o ou os métodos por si escolhidos. Um
médico orientador, que até pode carecer da necessária formação específica neste domínio, poderá, assim,
bastar-se com o autorrelato do doente e a impressão com que tenha ficado do mesmo para formar a sua
opinião e elaborar o subsequente parecer fundamentado (o qual, nestas condições, poderá acabar por ser
fundamentado apenas numa impressão subjetiva e incontrolável do clínico).
Acresce que num domínio como o que está em causa, e em que as várias decisões têm consequências
definitivas e irreversíveis, não podem subsistir dúvidas sobre o que é realmente exigido pelo legislador e o que
preveem as leges artis interpretadas pelos médicos aplicadores da lei. Na verdade, a não clarificação
expressa, por parte do legislador, da responsabilidade última pela avaliação do sofrimento, nomeadamente se
é suficiente o autorrelato ou se é necessária a heteroavaliação pelo médico – ainda que o Acórdão assuma
expressamente que deve ser exigida a heteroavaliação médica –, tem potencial para criar uma situação de
insegurança jurídica e até de desigualdade, pois médicos orientadores diferentes podem fazer uma
interpretação distinta do critério, bastando-se uns com o autorrelato, enquanto outros considerarão a sua
própria avaliação.
Por outras palavras, subsiste, também neste aspeto, uma indeterminação não admissível do critério em
análise, que o legislador pode e deve clarificar, não sendo suficiente, atento o caráter definitivo e irreversível
das decisões em causa, uma remissão implícita e vaga para as leges artis de certas especialidades médicas,
as quais nem sequer têm uma correspondência necessária com a especialidade do médico orientador.
3. Segundo o Acórdão, o caráter «intolerável» do sofrimento corresponderá a uma «exigência qualitativa»:
«não basta que o peticionante sofra; é necessário que esteja em estado de sofrimento intolerável» (n.º 42).
Sem necessidade de entrar em especulações sobre o caráter dinâmico da realidade e as leis da dialética,
constitui uma experiência comum, e é do conhecimento geral, que mudanças quantitativas de uma realidade
suscitam mudanças qualitativas e vice-versa. Assim também com o sofrimento, o qual não corresponde a algo
de estático. Significa isto que, sob pena de se anular a função de critério ou condição que a lei pretende
atribuir ao sofrimento, o médico orientador tem de recorrer a estratégias ou instrumentos que não só permitam
despistar situações agudas ou meramente pontuais, como também avaliar (e distinguir) um sofrimento mais
grave e menos grave.
Com efeito, no contexto da admissibilidade constitucional da antecipação da morte medicamente assistida,
a lei deve sinalizar algumas características desse sofrimento, na perspetiva da sua correspondência a um
estado mais ou menos permanente (por exemplo, «sofrimento persistente», «sofrimento continuado ou
permanente», «falta de perspetivas de melhoria», etc.). Do mesmo modo, também seria exigível sinalizar a
necessidade de objetivar o juízo quanto ao caráter intolerável. Neste particular, e seguindo a abordagem feita
no n.º 42 do Acórdão, tudo se tornaria mais simples e, sobretudo, mais objetivo e controlável, se: i) o médico
especialista, a que se refere o artigo 5.º do Decreto, também tivesse de examinar o doente, em ordem a
avaliar o impacto neste da patologia concretamente em causa; ii) tal especialista e o médico orientador
tivessem alguma formação específica no domínio do sofrimento e das terapêuticas para o diminuir ou mitigar
(conforme já resulta do anteriormente referido supra no n.º 2); e iii) se a intervenção do especialista e, ou do
psicólogo, não fosse meramente facultativa, mas obrigatória, pois, como bem se refere no Acórdão, «o
sofrimento, ainda que fortemente subjetivo, permanece heteroavaliável e verificável, usando para tanto, nas
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suas expressões não estritamente fisiológicas, ferramentas desenvolvidas por ramos da ciência médica como
a psiquiatria ou a psicologia» (n.º 42).
Contudo, não é isso que se encontra previsto, pelo que os enunciados linguísticos deveriam ser muitíssimo
mais exigentes, por forma a garantir um mínimo de objetividade na sua aplicação concreta e a possibilidade de
controlo, que segundo a lei, é indispensável à garantia de todo o procedimento em causa.
(Pedro Machete)
——
Processo n.º 173/2021
Plenário
Declaração de voto
(apresentada pelos Conselheiros Maria José Rangel de Mesquita, Maria de Fátima Mata-Mouros,
Lino Rodrigues Ribeiro e José António teles Pereira)
I
1. Expressa o presente voto a discordância dos quatro subscritores relativamente à não formulação de um
juízo positivo de inconstitucionalidade, por violação do Direito à vida consagrado no artigo 24.º, n.º 1, da
Constituição da República Portuguesa (CRP), quanto à norma do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto n.º 109/XIV, ao
definir a figura da «[a]ntecipação da morte medicamente assistida não punível», pretendida introduzir na nossa
ordem jurídica pelo diploma em causa.
O entendimento que a este respeito sustentamos foi o proposto pela primitiva relatora do processo, a
primeira subscritora deste voto, no memorando apresentado à consideração do colégio de juízes, nos termos
do artigo 58.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional (LTC). Na expressão do nosso desacordo seguiremos,
pois, o essencial da argumentação constante do referido memorando ao qual aderimos. Existem neste voto e
no Acórdão, enquanto memória/património comum desse memorando, algumas referências partilhadas. Estas,
todavia, no sentido substancial que expressam, só permitiram essa partilha até ao ponto em que os
subscritores deste voto divergiram da maioria formada no Tribunal quanto ao espaço de (in)compatibilidade
entre o que se pretende criar através do Decreto n.º 109/XIV (a legalização da eutanásia ativa) e o artigo 24.º
da CRP (cfr. ponto 1.1.2., infra).
1.1. Precisamente por isso, introdutoriamente, para compreensão da posição defendida nesta declaração
de voto, situá-la-emos no roteiro decisório traçado pelo Tribunal, confrontado que foi com os termos do pedido
de fiscalização preventiva da constitucionalidade apresentado pelo Presidente da República, referido a
determinadas normas integrantes do Decreto n.º 109/XIV.
1.1.1. Num primeiro momento, ocupou-se o Tribunal da fixação do exato objeto da fiscalização preventiva
desencadeada, face às particularidades que a construção da pretensão do requerente apresentava.
A este respeito o Tribunal Constitucional – num elemento que alcançou uma maioria decisória para a qual
concorreram os subscritores deste voto – fixou esse objeto nos exatos termos que aqui se transcrevem: «[…]
a norma sindicada a título principal, tal como compreendida pelo Tribunal, é a que consta do artigo 2.º, n.º 1,
do Decreto n.º 109/XIV, com todo o seu conteúdo prescritivo (designadamente aquele que lhe é projetado a
partir do número 3), enquanto norma completa, ao considerar antecipação da morte medicamente assistida
não punível a que ocorre por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria,
livre e esclarecida, em situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva de gravidade extrema de
acordo com o consenso científico ou doença incurável e fatal, quando praticada ou ajudada por profissionais
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de saúde e concretizada mediante pedido que obedece a procedimento clínico e legal (previsto no Decreto)»
(ponto 12. do Acórdão).
1.1.2. Assente esta enunciação, posicionou seguidamente o Tribunal a antecipação da morte
medicamente assistida não punível à luz, como parâmetro exclusivo de ponderação, do artigo 24.º da CRP,
concluindo – formando-se nessa parte uma outra maioria na qual não nos integramos – o que expressou na
seguinte asserção (contida no final do ponto 32.): «[a] vulnerabilidade de uma pessoa originada pela situação
de grande sofrimento em que se encontre pode criar uma tensão relativamente ao artigo 24.º, n.º 1, da
Constituição devido à vontade livre e consciente de não querer continuar a viver em tais circunstâncias. E a
uma tal tensão, a proteção absoluta e sem exceções da vida humana não permite dar uma resposta
satisfatória, pois tende a impor um sacrifício da autonomia individual contrário à dignidade da pessoa que
sofre, convertendo o seu direito a viver num dever de cumprimento penoso. Por isso mesmo, o legislador
democrático não está impedido, por razões de constitucionalidade absolutas ou definitivas, de regular a
antecipação da morte medicamente assistida».
É nesta parte que os subscritores da presente declaração se afastam decididamente do entendimento
maioritário do Tribunal, expressando a sua divergência através deste voto.
1.1.3. Finalmente, num elemento decisório ao qual os subscritores desta declaração também aderem em
parte, como outro problema que a ultrapassagem pela maioria da anterior questão não deixou de colocar,
abordou o Tribunal «[a] insuficiente densificação normativa dos conceitos descritivos dos critérios de acesso
à morte medicamente assistida questionados pelo requerente face ao princípio da legalidade criminal […] [e]
face ao princípio da determinabilidade das leis», aferindo esses desvalores quanto aos conceitos, alojados
no artigo 2.º, n.º 1 do Decreto n.º 109/XIV, «[…] ‘em situação de sofrimento intolerável’ […]» e «[…] ‘lesão
definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso cientifico’ […]», considerando evidenciar este
último uma «[…] manifesta insuficiência da densificação normativa da respetiva previsão legal, tornando, por
isso, o artigo 2.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIV inapto, por indeterminação, para disciplinar em termos
previsíveis e controláveis as condutas dos seus destinatários», não satisfazendo esse segmento do Decreto
«[…] o princípio da determinabilidade das leis [contendendo] com a alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da
Constituição, por referência ao seu artigo 24.º, interpretado de acordo com o princípio da dignidade da
pessoa humana previsto no artigo 1.º de tal normativo[…]» (ponto 48. do Acórdão), gerando esta conclusão o
dispositivo exarado na parte III do Acórdão – em consonância com a fixação do objeto do recurso supra
enunciado –, que os subscritores desta declaração também subscrevem. A posição que subscrevemos e se
explicitará implica todavia que nos afastemos da fundamentação alcançada nos pontos 41. a 43. do Acórdão.
Percorrido o roteiro decisório do Tribunal, cumpre, pois, explicitar a nossa divergência.
II
2. A palavra eutanásia, embora ausente do texto do Decreto n.º 109/XIV (mas que o requerente não deixou
de referir no pedido), expressa com total exatidão (e fidelidade ao pensamento legislativo) o propósito do
diploma com o qual somos confrontados. Este, regulando a eutanásia, o que verdadeiramente faz é criar um
espaço de legalidade condicionada relativo à sua prática. De facto, embora um efeito ou consequência dessa
legalização – a cessação da punibilidade penal da correspondente conduta dos terceiros intervenientes – surja
destacada na enunciação do objeto do diploma – «[a] presente lei regula as condições especiais em que a
antecipação da morte medicamente assistida não é punível e altera o Código Penal» (artigo 1.º) –, a leitura
sistematizada do mesmo – e prescindimos até de referir o sentido óbvio do debate que o originou e justificou –
evidencia o que se pretendeu criar: um quadro jurídico de permissão (por via de um procedimento
administrativo especial de autorização) da prática da chamada eutanásia ativa por profissionais de saúde. É
assim que pouco relevo substancial apresenta a circunstância de a concretização final da situação originada
pelo pedido do doente, de que tenha lugar a sua morte antecipada, ocorrer por autoadministração dos
fármacos letais produtores desse resultado, ou por heteroadministração dessas substâncias, já que as duas
alternativas previstas nos artigos 8.º, n.º 2, e 9.º, n.º 2, do Decreto, no quadro geral que se criou, apenas
permitem descrever o ato eutanásico em termos que configuram, de um ponto de vista prático, uma distinção
muito ténue (parecendo acentuar-se, no caso da autoadministração, a ideia de prestação de assistência a um
suicídio) que pouco adianta quanto à substância do problema que a este respeito nos interpela. Qualquer
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dessas formas de concretização da morte decorre, numa linha de total sobreposição de situações, da
introdução no nosso ordenamento jurídico, como elemento desencadeador da morte a pedido do próprio (sob
o controlo do Estado), dos requisitos desse evento contidos no artigo 2.º do Decreto n.º 109/XIV, estando
sempre em causa investir o Estado – ironia das coisas: por força do nosso direito à «autonomia individual» e
da nossa «dignidade» enquanto pessoas – do poder de fixar circunstâncias de elegibilidade de alguém para a
concretização do propósito de pôr fim à sua vida, que passa a valer como fator de legitimação do Estado,
mediante um procedimento especial, a controlar a verificação dessas circunstâncias e a participar ativamente
na consecução desse resultado.
Constitui, pois, objetivo precípuo do diploma aprovado pelo Parlamento a opção de legalizar, em certas
condições, a prática da eutanásia ativa, sendo que com a expressão eutanásia ativa estão em causa os casos
em que o «médico ou profissional de saúde devidamente habilitado para o efeito mas sob supervisão médica»
(nas palavras do artigo 8.º, n.º 2, do Decreto) realiza o último passo causal diretamente determinante da morte
do paciente, administrando-lhe os fármacos letais, como também estão em causa – sem que, em rigor,
signifiquem algo de substancialmente diferente da eutanásia, e até de a podermos qualificar como ativa – as
situações em que esses profissionais realizam o penúltimo passo causal da morte, conducente à
autoadministração do fármaco letal pelo próprio paciente. Em qualquer dos casos – embora sempre possamos
«jogar» com as palavras e os conceitos – existe, por banda dos mesmos profissionais, o controlo da situação
diretamente causal da morte do paciente.
A perspetivação desta situação pelo lado do Direito Penal, antepondo uma consequência à causa,
expressa tão-somente um deliberado viés na abordagem do tema central, a eutanásia, ele próprio, aliás,
referenciado no Decreto através de uma expressão indireta – antecipação da morte medicamente assistida –,
não isenta até de ambiguidade (quiçá intencional e tributária de algum propósito persuasivo). É que existem na
prática médica procedimentos clínicos – coisa que a causação intencional e direta da morte, mesmo realizada
por um médico, não é – que podem envolver, designadamente num quadro de duplo efeito, algum tipo de
antecipação da morte1, mas que em nada correspondem ao que está em causa na eutanásia ativa.
Ou seja, pressuposto «[…] que a construção dogmática do conceito de crime é afinal […] a construção do
conceito de facto punível»2, regulamenta-se a eutanásia – adjetiva-se o ato de produzir, em ambiente médico,
a morte de alguém a seu pedido –, afirmando-se a exclusão, relativamente à situação que a consubstancia, da
punibilidade («[q]uem matar outra pessoa é punido […]», artigo 131.º do Código Penal), no quadro de um
procedimento administrativo especificamente destinado, em última análise, a esse resultado, sendo certo que
a punibilidade do facto que se expressa num dos resultados possíveis a culminar tal procedimento (autorizar a
morte de alguém a seu pedido), não fora a opção de legalizar a prática da eutanásia em certas condições,
permaneceria, digamo-lo assim, sob a alçada do Direito Penal. Com efeito, isso sucederia nos casos de
privilegiamento que tematicamente são próximos da eutanásia ou da ajuda ao suicídio (dois dos tipos visados
pelo artigo 27.º do Decreto n.º 109/XIV), como é o caso do homicídio a pedido da vítima (artigo 134.º do
Código Penal), que não deixa de «[reproduzir] o núcleo essencial do ilícito típico do crime de homicídio (‘matar
outra pessoa’)»3. Aliás, se naqueles casos, no «pedido da vítima» (para ser morta ou ajudada a morrer), se
puder vislumbrar uma qualquer expressão de autonomia e autodeterminação pela morte, a irrelevância desse
«consentimento» como causa de justificação (ou de exclusão de ilicitude) não deixa de traduzir a cedência
daquela perante o valor protegido da vida humana, enquanto bem jurídico no seu todo indisponível – e que o
legislador, a pretexto da existência do mesmo «consentimento», do mesmo «pedido», vem inverter, definindo
ele próprio as «condições» – da prática da eutanásia – em que a vida humana passa a ser disponível,
condições essas que, desse modo definidas, não constituem, em rigor, expressão de qualquer autonomia.
É, pois, a legalização da eutanásia – o propósito legislativo que se materializou na aprovação do Decreto
n.º 109/XIV, designadamente por via do artigo 2.º deste –, a questão central que confronta a inviolabilidade da
vida humana, que com uma ênfase muito particular é afirmada no artigo 24.º, n.º 1 da CRP. E é nessa
perspetiva que a opção legislativa expressa nesse Decreto deve ser, desde logo, abordada.
2.1. O Direito à vida, enunciado na epígrafe desse artigo 24.º, não foi criado pelo texto constitucional, não 1 Rui Medeiros, Jorge Pereira da Silva, comentário ao artigo 24.º, in Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Vol. I,
2.ª ed. revista, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2017, pp. 389-390. 2 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, 3,ª ed., Tomo I, Gestlegal, Coimbra, 2019, p. 275.
3 Manuel da Costa Andrade, anotando o artigo 134.º, inComentário Conimbricense do Código Penal, dirigido por Jorge de Figueiredo
Dias, Tomo I, Parte Especial, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2012, p. 96.
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existindo, identitariamente, em função da maior ou menor expressividade que o seu reconhecimento – porque
de um reconhecimento ou consagração de um valor preexistente se trata – assuma nesse texto. Essa
expressividade – a qual, não obstante, é intencionalmente forte na Constituição da República Portuguesa – o
que faz é reconhecer algo que lhe é anterior, um princípio essencial do Direito, um arquétipo civilizacional4,
cujo significado profundo projeta dimensões valorativas mais amplas que as diretamente sugeridas pela
simples consideração do seu exato conteúdo normativo, quando este é procurado desfasadamente da sua
essência5.
Aliás, essa precedência do valor intrínseco da vida humana relativamente ao seu reconhecimento ou
consagração num texto constitucional revela-se, desde logo, por via da sua inclusão, no quadro das normas de
Direito Internacional, nos princípios de jus cogens que, segundo a doutrina, estando «[…] para além da
vontade ou do acordo de vontades dos sujeitos de Direito Internacional […,] desempenham uma função
eminente no confronto de todos os outros princípios e regras [e] têm uma força jurídica própria, com os
inerentes efeitos na subsistência de normas e actos contrários»6 ou «[…] uma posição e estatuto superior em
relação às demais normas da comunidade internacional […]» [rank and status superior to those of all other
rules of the international community]7. Valerá pois, quanto ao direito à vida, mutatis mutandis, a ideia de que
«[…] o ‘jus cogens’ […] constitui uma ‘qualidade’ particular (imperativa) de certas normas, que podem ser de
origem seja costumeira, seja convencional […]»8 podendo afirmar-se, também, que as normas substantivas de
Direito Internacional dos Direitos Humanos que consagram o direito à vida se integram «no bloco qualificado
das normas de ‘ius cogens’»9.
2.1.1. Não obstante, o legislador constituinte em 1975 – sendo que o texto do artigo 24.º (até 1982, artigo
25.º) se mantém inalterado – pretendeu destacar uma força significativa especialmente qualificada – «[a] vida
humana é inviolável.» (frase na qual vislumbramos um ponto de exclamação latente) –, reforçada pela
afirmação incondicionada contida no n.º 2 – «[e]m caso algum haverá pena de morte.» –, procurando-se
através deste, algo mais do que a tradicional referência, nas Constituições portuguesas desde 1911, à
proibição da pena de morte, afastar operações de redução da força da afirmação contida no n.º 1, através da
projeção do que, a par da guerra, historicamente identificava, no pensamento judaico-cristão, uma exceção
ao imperativo moral de não matar10
.
O que ora interessa ter presente é que a formulação do que viria a corresponder ao artigo 24.º, n.º 1,
apresentou uma originalidade apelativa, que recolheu o voto unânime dos constituintes11
, gerando uma
4 «[h]á que mergulhar mais fundo, para descobrir a essência das regras adoptadas e aplicadas duma maneira uniforme nas várias ordens
jurídicas, que é como quem diz, para descobrir a essência ou arquétipo jurídico escondido na variedade das suas representações positivas, para reconduzir, em suma, essas regras ‘aos seus aspectos mais gerais e únicos verdadeiramente universalizáveis» (José Manuel Moreira Cardoso da Costa, Os Princípios Gerais de Direito como Fonte de Direito Internacional, Coimbra, 1963, p. 86, sublinhados no original). 5 «Quando uso o termo ‘arquétipo’, refiro-me a uma disposição particular num sistema de normas que tem um significado que vai além do
seu conteúdo normativo imediato, uma significação que deriva do facto de ela resumir ou tornar vivo, para nós, o sentido, o propósito, o princípio ou a política de toda uma área do direito» [Jeremy Waldron «Torture and Positive Law: Jurisprudence for the White House», in Columbia Law Review, Vol. 105, No. 6 (Oct., 2005), p. 48]. 6 Jorge Miranda, Curso de Direito Internacional Público, 6.ª ed., Princípia, Cascais, 2016, p. 125, que enquadra o direito à vida no
princípio, atinente à pessoa humana, da garantia dos direitos inderrogáveis enunciados no artigo 4.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (idem, p. 132); no mesmo sentido, considerando pertencerem já ao ius cogens pelo menos os mais importantes dos direitos e das liberdades consagrados na DUDH e nos Pactos de 1966, André Gonçalves Pereira, Fausto de Quadros, Manual de Direito Internacional Público, 3.ª ed., reimpr., Almedina, Coimbra, 1995, p. 284; no sentido de deverem ser consideradas normas de Ius Cogens as normas costumeiras de Direito Internacional Público dos Direitos Humanos, Eduardo Correia Baptista, Direito Internacional Público, Vol. I, 1998 (reimpr.), AAFDL Editora, Lisboa, 2015, p. 171 e Direito Internacional Público, Vol. II, 2004 (reimpr.), AAFDL, Lisboa, 2015, pp. 431 e ss., em especial, quanto ao direito à vida, pp. 439-440. 7 Antonio Cassese, International Law, 2.ª ed., Oxford University Press, Oxford, 2005, p. 199.
8 Ngyuen Quoc Dinh†, Patrick Daillier, Mathias Forteau, Alain Pellet, Droit International Public, 8.ª ed., L.G.D.J, Paris, 2009, p. 225.
9 Assim, Manuel Diez de Velasco, Instituciones de Derecho Internacional Público, 17.ª ed., Tecnos, Madrid, p. 650.
10 Ao mandamento «não matarás» consagrado no Livro do Êxodo (20:13) e repetido no Livro do Deuteronómio (5:17) (cfr. Nahum M.
Sarna, The JPS Torah Commentary, Exodus, The Jewish Publication Society, Philadelphia, Jerusalem, 1991, p. 113; Jeffrey H. Tigay, The JPS Torah Commentary, Deuteronomy, The Jewish Publication Society, Philadelphia, Jerusalem, 1996, pp. 70-71; «The Christian Judge and the Taint of Blood: The Theology of Killing in War and Law, James Q. Whitman, the Origins of Reasonable Doubt. Theological Roots of the Criminal Trial, Yale University Press, New Haven, Londres, 2008, pp. 28-49). Permanece a pena de morte, para quem a aceite, como um paradoxo relativamente à inviolabilidade da vida humana [veja-se a «complexa» tentativa de afastamento desse paradoxo empreendida por Neil M. Gorsuch («[t]o be clear from the outset, I do not seek to adress publicly auhorized forms of killing like capital punishment and war. Such public acts of killing raise unique questions all their own […] I seek only to explain and defend an exceptionless norm against the intentional taking of human life by private persons.»), The Future of Assisted Suicide and Euthanasia, Princeton University Press, Princeton, Oxford, 2009, p. 157 e p. 272, nota 2]. 11
O Deputado constituinte, José Ribeiro e Castro, em texto de opinião recente (02/02/2021), publicado no jornal onlineObservador, aludiu à força extraordinária desta fórmula, em comparação com as outras propostas de texto então apresentadas: «[a] generalidade dos projetos de Constituição, em 1975, continha formulações jurídicas habituais na proteção do direito à vida. O projeto do CDS dizia:
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fórmula cuja força nos permite referir a afirmação de inviolabilidade como particularmente qualificada –
porventura situada, se alguma referência foi procurada na Lei Fundamental da República Federal da
Alemanha, algures a meio caminho entre a intangibilidade (unantastbar) da dignidade da pessoa humana12
e a
inviolabilidade (unverletzlich) afirmada no artigo 2.º (2) desse texto constitucional13
. Daí que, uma maior
proximidade ao legislador histórico (ao contexto histórico da construção dessa disposição) tenha conduzido J.
J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, na 1.ª edição (1978) da Constituição Anotada, à afirmação de uma
natureza absoluta da proteção do direito à vida: «[o] valor do direito à vida e a natureza absoluta da proteção
constitucional traduz-se no próprio facto de se impor mesmo perante a suspensão constitucional dos direitos
fundamentais, em caso de estado de sítio ou de estado de emergência […]»14
. E continue, na edição mais
recente da Obra, a suportar a caraterização do direito à vida como «[n]ão se [tratando] apenas de um ‘prius’
lógico […]», sendo antes, «[…] material e valorativamente[,] o ‘bem’ (localiza-se, logo, em termos ontológicos
no ter e ser vida, e não apenas no plano ético-deontológico do valor ou no plano jurídico axiológico dos
princípios) mais importante do catálogo de direitos fundamentais e da ordem jurídico-constitucional no seu
conjunto. Precisamente por isso é que o direito à vida coloca problemas jurídicos de decisiva relevância nas
comunidades humanas.»15
.
E, enfim, essa mesma especial qualificação do artigo 24.º é sublinhada por Rui Medeiros e Jorge Pereira
da Silva: «[a] Constituição portuguesa não se limita, ao contrário de outros textos fundamentais e da própria
DUDH, a dizer que ‘todos os homens têm direito à vida’, afirmando antes, numa fórmula normativa muito mais
forte e expressiva, que ‘a vida humana é inviolável’ [ênfase no original]. O artigo 24.º desempenha, entre os
direitos fundamentais, um papel absolutamente ímpar. Membro do ‘clube restrito’ dos direitos insusceptíveis de
suspensão (n.º 6 do artigo 19.º), o direito à vida surge consagrado […] não apenas na sua dimensão
puramente subjectiva, como primeiro dos direitos fundamentais – mais do que um direito, liberdade e garantia,
ele constitui o ‘pressuposto fundante’ de todos os demais direitos fundamentais –, mas como valor objetivo e
como princípio estruturante de um Estado de Direito alicerçado na dignidade da pessoa humana (artigo 1.º)»16
.
A vida humana, naquela dimensão objetiva, enquanto valor cuja proteção é (não só consagrada em função
da vontade individual e interesses próprios do seu titular mas também) consagrada em função de valores
comunitários que lhe estão associados em razão da sua natureza de bem supremo da comunidade –
confirmada pela insusceptibilidade de suspensão – convoca e legitima, quanto ao Estado, deveres de respeito
e de proteção – de cada vida e na sua articulação com as demais – mas tão-só da própria vida, não operando
aqueles quanto – não permitindo – [a]o direito à morte. Como afirmam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira,
«A Constituição não reconhece qualquer ‘vida sem valor de vida’ nem garante decisões sobre a própria
vida.»17
.
O texto constitucional, quanto à insusceptibilidade de suspensão do direito à vida (de afetação pela
declaração do estado de sítio ou do estado de emergência, como o que vigora no presente) não deixa de
transparecer a influência e a axiologia valorativa do Direito internacional, em que, como sublinha a doutrina, o
direito à vida já integra o «muito reduzido» «núcleo duro dos direitos do homem» comum a três das principais
convenções em matéria de proteção de direitos humanos (todas anteriores à Constituição de 1976), enquanto
«direitos intangíveis», insuscetíveis de derrogação (ou suspensão) e suscetíveis de elevação à posição de
‘Constituem direitos e liberdades individuais do cidadão português (…) o direito à vida e à integridade física.’ [artigo 12.º, 1.º]. O do PS: ‘É garantido o direito à vida e integridade física.’ [artigo 11.º, n.º 1]. O do MDP/CDE e da UDP nada diziam. O do PPD afirmava: ‘O Direito à vida e à integridade pessoal é inviolável’ [artigo 17.º]. Foi o do PCP a propor a proclamação consagrada: ‘A vida humana é inviolável’ [artigo 30.º, n.º 1] […]» (os textos dos projetos constitucionais em causa estão disponíveis em: https://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dac/01/01/01/016S1/1975-07-11). 12
«A dignidade da pessoa humana é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo o poder público.» [artigo 1.º (1)]. 13
«Todos têm o direito à vida e à integridade física. A liberdade da pessoa é inviolável. Estes direitos só podem ser restringidos em virtude de lei.» (Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, versão alemã de 23 de maio de 1949, última atualização em 28 de março de 2019, texto disponível em www.bundestag.de). 14
Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, Coimbra, 1978, p. 92. 15
J. J. Gomes Canotilho, Vital Moreira, CRP. Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 447 – «[j]urídico-constitucionalmente, não existe o direito à eutanásia activa […,] [r]elativamente à ‘ortotanásia’ (‘eutanásia activa indirecta’) e ‘eutanásia passiva’ – o direito de se opor ao prolongamento artificial da própria vida – em caso de doença incurável (‘testamento biológico’, ‘direito de viver a morte’), podem justificar regras especiais quanto à organização dos cuidados e acompanhamento de doenças em fase terminal (‘direito de morte com dignidade’), mas não se confere aos médicos ou pessoal de saúde qualquer direito de abstenção de cuidados em relação aos pacientes (cfr. Resolução sobre a Carta dos direitos do doente do Parlamento Europeu, de 19/01/84). A Constituição não reconhece qualquer ‘vida sem valor de vida’, nem garante decisões sobre a própria v ida.» (ibidem, p. 450). 16
Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Vol. I, 2.ª ed., cit., p. 365. 17
CRP. Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª ed., cit., p. 450.
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61
normas imperativas de direito internacional18,19
.
2.2. Esta muito peculiar feição do direito à vida, traduzida em «[apresentar-se] em regra como um direito de
tudo ou nada – no sentido de que não são concebíveis ataques parcelares à vida sem perda dessa mesma
vida […]», torna-o, pela sua própria natureza, «[…] avesso a operações de concordância prática e cujo
conteúdo tende a coincidir com o seu conteúdo essencial […]»20
. Ora, prestar-se muito pouco – ser
intrinsecamente avesso – a operações de relativização do seu conteúdo, reduz fortemente a respetiva
suscetibilidade de acomodação a outros valores (que não oponham o seu próprio valor intrínseco a um mesmo
outro valor21
). Daí que o dever de respeito que quanto a ele a todos é imposto – e ao legislador muito em
particular é exigido – apresente uma expressiva natural propensão à absolutização, gerando quanto a esta
caraterística de alguns direitos, pese embora a ela não corresponder exatamente, uma grande proximidade. É
que, não existindo a este respeito possibilidade de limitação, constitucionalmente expressa ou autorizada, a
viabilidade de um espaço – de uma estreita e excecionalíssima margem – de ponderação radicar-se-á,
enquanto regra geral, numa apreciação a posteriori de concretas situações22
, podendo ser quando muito,
consideradas, todavia, não obstante essa tendencial «imunidade» à apreciação a priori, respostas em concreto
que comportem algum grau de generalização de procedimentos ancorados em fortes intuições morais que
sejam congruentes com o imperativo ético de não matar, e com o grau superior de qualificação da
inviolabilidade da vida humana, quando colocados (quando testados) em situações de tensão que postulem ou
exijam escolhas dilemáticas com algum grau de interferência com esse valor cimeiro. O ponto central destas
questões, e da resposta que a elas fornece uma ética de respeito pelo valor intrínseco da vida humana – o
que, enfim, distingue tais situações daquelas em que a resposta é a eutanásia –, reside na diferenciação,
eticamente significativa, entre o ato de matar e o ato que envolva deixar morrer, fora de qualquer atuação
intencionalmente dirigida a esse resultado, num quadro de luta contra o sofrimento físico.
2.2.1. Com efeito, ser a vida humana inviolável não exclui, desde logo, a legítima defesa (como causa de
exclusão da ilicitude) cujo exercício legítimo pode confrontar o valor vida humana, «[…] como meio
necessário para repelir a agressão atual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de
terceiro» [artigos 31.º, n.os
1 e 2, alínea a), e 32.º do Código Penal], sendo que o exercício desta nem estará
18
Frédéric Sudre, Laure Milano, Hélène Surrel, Droit européen et international des droits de l’homme, 14.ª ed., PUF, Paris, 2019, p. 195 e p. 196 – cf., quanto ao direito à vida, cronologicamente, os artigos 2.º e 15.º, n.º 2, da Convenção Europeia para a Salvaguarda dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, de 4 de novembro de 1950; os artigos 6.º e 4.º, n.º 2, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, de 16 de dezembro de 1966; e, ainda, os artigos 4.º e 27.º, n.º 2, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 22 de novembro de 1969. 19
Acresce, também numa ótica internacionalista, que o direito à vida integrava já o «mínimo humanitário garantido» pelo artigo 3.º comum às quatro Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949 que, segundo o Tribunal Internacional de Justiça, contém regras que correspondem a «considerações elementares de humanidade» [caso Estreito de Corfu (Reino Unido c. Albânia), Mérito, 9.4.1949, Recueil, 1949, p. 22, retomado no parágrafo 218 (e parágrafo 215) do caso Atividades Militares e Paramilitares na Nicarágua (Nicarágua c. E.U.A), Mérito, 27.6.1986 Recueil, 1986]. 20
Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Vol. I, 2.ª ed., cit., p. 366. 21
«Por vezes é impossível salvar toda a gente. Os políticos têm que tomar decisões que implicam questões de vida ou de morte. O mesmo sucede com os responsáveis por estruturas de saúde. Os recursos nessa área não são ilimitados. Sempre que uma estrutura de saúde é confrontada com a escolha entre alocar fundos à aquisição de um medicamento que se estima salvará X vidas, ou alocá-los a outro que salvará Y, estão os seus responsáveis a ser confrontados, com efeito, com variações, não ficcionadas, do chamado ‘trolley problem’ […]» (David Edmonds, Would You Kill the Fat Man? The Trolley Problem and What Your Answer Tells Us about Right and Wrong, Princeton University Press, Princeton, Oxford, 2014, p. 11; correspondem os ditos «trolley problems» a cenários experimentais de ética aplicada, envolvendo a ficção de dilemas éticos estilizados, que pressupõem, na sua forma mais simples, o sacrifício, num hipotético ramal de linha de comboio, de uma pessoa para salvar um número maior, sendo alguém confrontado com a possibilidade de desviar o comboio para um ou outro ramal, «salvando» ou «condenando» alguém: «[n]a verdade, para um observador exterior, estes curiosos incidentes com comboios podem parecer uma brincadeira inofensiva – uma espécie de palavras cruzadas para ocupantes de longa duração da ‘Torre de Marfim’. Porém, na sua verdadeira essência, tratam da questão de saber o que está certo e o que está errado e qual deve ser o nosso comportamento. E o que é que pode ser mais importante que isso?» – ibidem, p. 12). 22
O que corresponde, quanto à temática aqui em causa, ao caminho apontado por Jorge de Figueiredo Dias: «[…] nos casos – que a medicina afirma serem hoje pouco frequentes – em que o mortalmente enfermo manifeste a sua vontade séria e esclarecida (ou ela se deva presumir, quando aquela manifestação não seja possível) de que ponham termo à sua vida, um acompanhamento compreensivo e humano da morte, aliado a uma terapia da dor tão eficiente quanto possível (mesmo que atinja a natureza de ajuda à morte activa indirecta) conforma uma actuação que, devendo ainda ser considerada como ‘tratamento’, cabe precipuamente na função do médico e tem vantagens de toda a ordem sobre a permissão jurídica, ainda que sob os mais rigorosos pressupostos procedimentais, da ajuda à morte activa directa. […] O que pode, tendo-se isto em conta, ficar ainda para a permissão, ainda que absolutamente excepcional, da ajuda à morte activa directa no plano ‘de lege ferenda’? Em nossa opinião […] que ao preceito sobre o homicídio a pedido se acrescentasse um novo número com a seguinte redacção: ‘O tribunal pode isentar de pena quando a morte servir para pôr termo a um estado de sofrimento insuportável para o atingido, que não pode ser eliminado ou atenuado por outras medidas’.» («Nótula antes do artigo 131.º», Comentário Conimbricense do Código Penal, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, Tomo I, Parte Especial, 2.ª ed., cit., pp. 33-34, ênfase no original; texto também publicado na Revista de Legislação e de Jurisprudência – «A ‘ajuda à morte’: uma consideração jurídico-penal» –, Ano 137, março-abril, 2008, n.º 3949, p. 215).
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limitado por uma exigência de proporcionalidade relativa aos bens sacrificados, com uma substancial
relativização dessa exigência contida no trecho final do artigo 337.º do Código Civil23
. Pressupõe a legítima
defesa, todavia, uma situação atual de «ingerência» de natureza qualificada (uma agressão) interferente com
uma situação de incolumidade tutelada pelo Direito, que não origina qualquer paralelo significativo, quanto à
essência do valor vida humana, com a problemática da eutanásia. Não geram, pois, as duas situações,
argumentos válidos de comparação, não pressupondo qualquer identidade de razão, que não assente numa
construção totalmente artificial. Aliás, situando as coisas no plano da adjetivação, a consideração da legítima
defesa projeta-se fundamentalmente em apreciações a posteriori.
2.2.2. Da mesma forma, também não fornecem à opção legislativa subjacente ao Decreto n.º 109/XIV
qualquer argumento de respaldo, referido à justificação da construção de restrições à inviolabilidade da vida
humana nos termos em que esta é afirmada no artigo 24.º, n.º 1 da CRP, situações específicas que
postulem, ou exijam mesmo, escolhas – seguramente dilemáticas – interferentes com o valor vida humana.
A atividade médica, como o tempo presente se encarregou de demonstrar à saciedade, gera situações
desse tipo, e não podemos dizer que o sentido poderoso da afirmação da inviolabilidade da vida humana –
da exaltação do valor desta – esteja, em tais casos especiais, a ser postergado…
«[…]
São decisões muito objetivas. Claro que se tivéssemos recursos ilimitados de cuidados intensivos, se
calhar tínhamos critérios mais amplos de admissão do que numa situação em que há muito menos recursos
do que candidatos. Aí, temos de ser mais selectivos. De qualquer modo, mesmo que tivesse cem camas de
cuidados intensivos livres, e houvesse um doente com imensas dependências, num estado quase terminal
da sua vida, era má prática, era obstinação terapêutica, admiti-lo em cuidados intensivos. Uma coisa é
prolongar a vida, que é o que fazemos. Outra é prolongar a morte. Para um doente que está a chegar ao fim
da vida, um ventilador prolonga-lhe, não a vida, mas a morte. Está numa dependência total. Não morre hoje,
mas morre daqui a 15 dias, totalmente dependente. […]»
[entrevista com o Dr. António Sarmento, Diretor do Serviço de Infeciologia do Hospital de S. João]24
.
…, valendo essa asserção (são compatibilizáveis com o princípio da inviolabilidade da vida humana), para
nos centrarmos na temática que nos ocupa, decisões médicas guiadas pelo princípio do bem-fazer, de não
prolongamento artificial da vida através de terapias fúteis; o encarniçamentoterapêutico, contra toda a
esperança de uma melhoria real da situação do paciente; o respeito pela autonomia deste expressa na
vontade – desde logo através das directivas antecipadas de vontade em matéria de cuidados de saúde,
designadamente sob a forma de testamento vital (cf. artigo 1.º da Lei n.º 25/2012, de 16 de julho) –, de não
ser sujeito a determinadas terapias, ou de determinar a sua suspensão, não obstante serem necessárias ao
prolongar da vida (tais situações projetam o respeito pela autonomia do doente quanto à modelação
decisória dos atos médicos25
a que pretende ser sujeito26
, acomodam até ao limite possível os valores que a
este respeito se impõem ao legislador27
); a adoção de terapias antagonistas da dor e do sofrimento, que
tenham como efeito (secundário, indireto, não visado mas a que não se pode obviar) o encurtar da vida do
paciente, valendo nestes casos a chamada Doutrina do Duplo Efeito, distinguindo entre procurar causar um
resultado desvalioso, e a previsão da ocorrência deste, como eventualidade, quando essa ação é só guiada
23
Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, cit., pp. 511-514, e António Menezes Cordeiro, anotando o artigo 337.º do CC, in Código Civil Comentado, I – Parte Geral (coord. António Menezes Cordeiro), Almedina, Coimbra, 2020, pp. 958-960 e 963-965. 24
E, ainda, com menção à eutanásia: «O que mais o perturba? É que sei que vai morrer gente e a nós médicos custa-nos sempre imenso. Nunca nos habituamos a ver morrer os doentes. Nunca. Nunca. Fomos formatados para a vida. Não para a morte. Ver morrer pessoas é a grande carga de tudo isto. Por muitos anos de médico que tenhamos, nunca nos habituamos. Nunca. E nos cuidados intensivos a taxa de doentes que nos morrem no dia a dia é muito grande. Mas nunca me habituei. Nem nenhum médico se habitua. É por isso que quando se discute a questão da eutanásia, nós não estamos formatados para isso. Estamos formatados para aliviar o sofrimento, prolongar a vida quando é possível prolongar. Quando não é possível, devemos proporcionar uma morte sem sofrimento, ou com o menor sofrimento possível. O que me perturba é os doentes que vão morrer.» Expresso Revista de 27/12/2020, p. 56, https://expresso.pt/coronavirus/2020-12-27-O-coronavirus-esta-a-assustar-mais-do-que-a-sida-a-entrevista-ao-primeiro-vacinado-quando-a-covid-ainda-estava-no-comeco. 25
Cf. artigo 6.º, n.º 1, do Regulamento n.º 698/2019 da Ordem dos Médicos, que define os atos próprios dos médicos (DR, 2.ª Série, n.º 170, de 5 de setembro de 2019). 26
«A provocação direta da morte nunca poderá ser encarada ou construída como uma ‘opção terapêutica’ para reagir ao sofrimento» (George P. Smith, II, Palliative Care and End-of-Life Decisions, Palgrave Macmillan, Nova York, 2013, p. 23). 27
Ou seja, na relação entre o valor vida e o valor autonomia, não fazem prevalecer a autodeterminação em detrimento da vida, não dando lugar à inversão dos valores constitucionais que o acolhimento da eutanásia necessariamente implica.
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pela procura do efeito valioso28
.
2.2.3. Num outro plano, algumas vezes convocado a este debate, ocorre sublinhar que a não punição do
suicídio (do suicídio tentado) não aporta argumentos cogentes quanto à legalização da eutanásia (ou do
suicídio assistido), sendo intuitiva a diferença radical que vai da intranscendência social do ato de quem põe
termo à sua vida, e a passagem para o nível da organização social. Como afirma Gustavo Zagrebelsky
(antigo Juiz e Presidente do Tribunal Constitucional italiano), em entrevista realizada em 201129
:«[s]e alguém
se mata, isso é considerado um facto, um mero facto que […] permanece dentro da sua esfera jurídica
pessoal. Porém, entrando em jogo outra pessoa, isso transforma a situação num facto social, mesmo que
isso envolva apenas duas pessoas: quem pede para morrer e quem a ajuda. Mais ainda se entrar nesse
processo uma organização, seja ela pública ou privada, como na Suíça ou na Holanda. […] Se a maioria dos
casos de suicídio deriva da injustiça, da depressão ou da solidão, o suicídio, como facto social, levanta uma
outra questão. A sociedade pode dizer, está bem, desaparece do caminho [va bene, togliti di mezzo], e nós
até te ajudamos a fazê-lo? Não é muito fácil? Mas o dever do Estado não é o contrário: dar esperança a
todos? O primeiro direito de cada pessoa é poder viver uma vida com sentido, correspondendo à sociedade
o dever de criar as condições. […] Uma coisa é o suicídio como facto individual; outra coisa é o suicídio
socialmente organizado. A sociedade, com as suas estruturas, tem o dever de cuidar, se possível; se não for
possível, tem, pelo menos, o dever de aliviar o sofrimento. […]»30
.
2.3. Encontramos, pois, no fulcro da opção legislativa instituída pelo Decreto n.º 109/XIV, a criação de um
procedimento geral de enquadramento de pretensões de morte medicamente assistida, em função do qual é
criado um grupo de destinatários – aqueles que preencham as condições definidas no n.º 1 do artigo 2.º –
elegíveis para a prática, sob tutela do Estado, da eutanásia. Caracterizamos esse grupo de pessoas como
aquelas que passam, diferenciadamente de outras pessoas, a dispor, por via do procedimento criado pelo
Legislador, dessa opção.
Ora, dispor de uma determinada opção – e usamos aqui a expressão no sentido de uma variável sujeita ao
controlo de alguém que, por isso, pode afetar, moldando-as de determinada forma, as tomadas de decisão
dessa pessoa31
–, ou seja, dispor de alternativas, cria diferentes possibilidades de condução de um processo
decisório, cria, enfim, uma (outra) «arquitetura de escolha» para quem dela(s) dispõe, com tudo o que isso –
consideremo-lo vantajoso ou não – possa implicar.
Com efeito, «[o]ferecer a alguém uma alternativa ao ‘status quo’ existente em determinada situação implica
que dois resultados passem a ser possíveis para essa pessoa. Só que, daí em diante, nenhum desses
resultados será ainda o que era possível anteriormente ao aparecimento da alternativa. Depois desta, passa-
se a poder escolher o ‘status quo’ ou a escolher a alternativa oferecida, mas não pode mais usufruir-se do que
representava o ‘status quo’ sem que isso se configure nos termos que passou a representar: uma escolha
[…]»32
. E, ter só o que correspondia ao status quo como padrão – como dado fixo que atua como que por
defeito –, pode configurar, em certos casos, uma situação vantajosa, evitando toda uma nova problematização
28
David Edmonds, Would You Kill the Fat Man?…, cit., pp. 28-34. 29
«Il diritto di morire non existe», Il Fatto Quotidiano di Silvia Truzzi, 14 Dicembre 2011, acessível na ligação seguinte: https://www.ilfattoquotidiano.it/2011/12/14/piazza-grande-il-diritto-di-morire-non-esiste/. 30
Em novembro de 2018, já no quadro do debate aberto em Itália pelo caso Cappato, o mesmo Juiz, em debate oral realizado a 25 desse mês («A chi appartiene la tua vita? L’eutanasia come diritto umano», disponível em https://www.youtube.com/watch?v=3riFXa3QDwl), afirmava (trata-se de transcrição de linguagem oral): «[…] Se querem a minha opinião, eu não sou favorável ao facto de o Estado… (o Estado nasceu historicamente para proteger a vida dos cidadãos: o Estado moderno, o Estado soberano, existe, diz-se classicamente, para defender os bens últimos dos cidadãos: a propriedade e a vida). Assim, eu penso que o Estado deve, antes de mais, fazer tudo o que seja possível para que um indivíduo não se encontre na situação de querer tomar uma decisão última deste género. Isto vale, em especial para o sofrimento moral. Porque, depois, se se dissesse que havia um direito, o que é que deveria acontecer? As nossas estruturas hospitalares deveriam fornecer as prestações para se exercer este direito, e assim despender dinheiro …, subtraindo os recursos necessários para as suas utilizações que deveriam ser primárias, prioritárias, isto é, as destinadas à cura, e ao apoio, também psicológico, das pessoas. Direi isto, acrescentando, todavia, que a solução baseada na compaixão, a que se pratica normalmente nas nossas estruturas operativas, deve ser aquela favorecida. Favorecida, com um único limite: evitar que a morte procurada seja determinada por interesses patrimoniais de potenciais herdeiros, ou seja, deve haver um cordão sanitário que exclua a especulação sobre estas coisas. Mas francamente, não sei se é um pensamento particularmente rigoroso de um ponto de vista jurídico. Para mim, se o Estado organiza as suas estruturas sanitárias públicas para determinar a morte, naturalmente que uma vez que se dá este passo, também se tem de permitir as estruturas privadas, por uma óbvia razão de igualdade, estruturas convencionadas, e por isso sobre esta faceta da morte procurada poder-se-ia construir um sistema substancialmente comercial. Vejam quantas dificuldades. […]». 31
Cfr. Thomas C. Schelling, The Strategy of Conflict, Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, ed. de 1980, pp. 3-4 e 158-160). 32
J. David Velleman, Beyond Price. Essays on Birth and Death, Open Book Publishers, Cambridge UK, 2015, p. 10.
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decorrente da introdução de variáveis desvaliosas («perigosas», ao «poluir» a tomada de decisão) no
processo decisório que se venha a desencadear. Algo paradoxalmente, «[d]ispor de escolhas pode, em última
análise, privar alguém de resultados desejáveis, cujo caráter vantajoso dependa da circunstância de não
serem escolhidos, por inexistir a opção deles […,] em suma, uma vez oferecida uma nova possibilidade de
escolha cuja essência é problemática, a situação do destinatário já se alterou, e alterou-se para pior: mesmo
escolhendo o que valorativamente é melhor não pode, na realidade, remediar o que a nova situação criada
tem de inconveniente, comparativamente à situação anterior. Escolher o que é melhor nesses casos
representa apenas uma forma de evitar perdas.»33
.
2.3.1. A pergunta que se impõe é a seguinte: o que é que isso envolve quando a opção (a nova opção)
que se coloca à disposição de alguém (do universo das pessoas elegíveis, no quadro do Decreto n.º
109/XIV) é a eutanásia ou o suicídio assistido?
No que tem o sentido de uma resposta, recorremos a uma observação de Thomas Schelling, através da
qual exemplifica a manifestação do paradoxo da vantagemestratégica: «[q]ue a posição de alguém pode ser
dolorosamente enfraquecida pela existência de novas opções legais é fortemente sugerido, de forma
impressivamente pungente, por um dos argumentos apresentados contra a legalização da eutanásia:
concedendo a enfermos incuráveis e desesperados o direito de autorizar a sua própria morte: ‘[q]ual … seria
o efeito dessa opção sobre pessoas idosas com doenças incuráveis e fortemente limitadoras, que já
suspeitam que as pessoas ao seu redor querem livrar-se delas?’ […]»34
. Fugindo à crueza da pergunta final,
diremos que a opção da própria morte (legalmente enquadrada, socialmente organizada), passando a
integrar o leque de alternativas disponíveis, passa a estar presente na ponderação das alternativas que os
desafios da doença grave coloquem ao paciente. E isso sucederá, tanto para quem (no papel, algo
idealizado, construído por algumas jurisdições constitucionais a este respeito) configure essa ponderação
como um espaço de liberdade e de autodeterminação na condução da sua vida, como para quem, na dura
realidade do fim da vida, ou da vida dependente e sem esperança aparente, o que realmente pondere, e o
que realmente o motive, seja o que lhe aporta a angústia e o desespero criados por fatores exógenos de
pressão. Efetivamente, a transposição da situação antes caraterizada para o processo da tomada de
decisões quanto ao fim da vida de quem, encontrando-se em situação de grande vulnerabilidade física e
psíquica – em situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o
consenso científico ou doença incurável e fatal –, em nada nos garante a presença, para quem encare as
coisas nesses termos, da «vantagem» de uma escolha livre – do respeito que é devido a uma escolha livre –
permitindo uma relativização tão expressiva – ao ponto da intolerabilidade – da inviolabilidade da vida
humana, conduzindo, enfim, à quebra da barreira protetiva erigida pelo artigo 24.º da CRP em torno do valor
da vida.
O problema é que essa relativização da vida humana – a diminuição do valor intrínseco desta – atua
frequentemente de forma insidiosa, criando, em situações de grande dependência, uma espécie de ónus
subliminar de justificar a própria existência – «[o] ónus de justificar a própria existência pode tornar a
existência insuportável e, consequentemente ‘injustificável’.»35
. Ora, e é este o problema central com o qual
nos confronta a existência de uma regulamentação legal da morte a pedido, «[…] oferecer a opção de morrer
a alguém [estamos a falar de pessoas gravemente doentes e dependentes] pode corresponder a dar-lhe
novas razões para morrer.»36
. Aliás, olhando para o procedimento criado pelo Decreto n.º 109/XIV, não deixa
de ser pertinente a interrogação: «[q]uem pode saber ao certo se o pedido, mesmo formulado por escrito [da
antecipação da morte], é ou não o resultado de uma aceitação resignada de um desejo pressentido nos
familiares e noutras pessoas próximas do paciente? Como é possível ter certeza de que a solicitação não
resulta de uma depressão remediável ou se baseia numa visão irreal do diagnóstico ou do prognóstico?
Todas estas questões podem surgir nestas situações [ – vamos confiar que os intervenientes serão exatos
nas respostas que derem ao longo do processo na perceção da realidade – ], importando não esquecer que
a morte de um paciente será determinada pelas respostas.»37
.
33
Ibidem, p. 11. É a este respeito que Thomas Schelling, fala de um «paradoxo da vantagem estratégica» que expressa, na realidade, uma desvantagem que desvirtua, poluindo-o, o processo decisório (The Strategy of Conflict, cit., pp. 158-160). 34
Ibidem, p. 160, nota 30. 35
J. David Vellman, Beyond Price…, cit., p. 13. 36
Ibidem, p. 15. 37
Sissela Bok, «Euthanasia», in Euthanasia and Physician-Assisted Suicide, Gerald Dworkin, R. G. Frey, Sissela Bok, Cambridge
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Mas não são os cuidados paliativos (artigo 6.º da Lei n.º 31/2018, de 18 de julho) a resposta adequada a
estas situações, e não uma mera hipótese de escolha (artigo 3.º, n.º 5, do Decreto) numa espécie de
catálogo em que a opção do Estado organizar a morte a pedido aparece destacada? E o mesmo não
sucederá com a sedação paliativa (artigo 8.º da Lei n.º 31/2018)? É convicção firme dos signatários da
presente declaração, alicerçada no próprio direito à vida e nos deveres de proteção que dele decorrerem,
que a resposta a qualquer destas interrogações só pode ser positiva. Assim como tal resposta positiva
sempre se afiguraria, numa hipotética ótica de admissibilidade de conflito de direitos ou de ponderação de
diferentes valores – que a indisponibilidade da vida humana e do correspondente direito tomado como um
todo, em qualquer caso, não suscita ou consente –, a única solução de equilíbrio que, precavendo a
eliminação irreversível do bem jurídico em causa, colocaria ainda a ênfase na vida, aliviando a dor e o
sofrimento, físico ou psicológico, ainda que eventualmente sobrevenha um resultado desvalioso – o evento
natural da morte, mas não antecipada. Em qualquer caso, o que nunca configurará uma alternativa – desde
logo porque para tanto não dispõe o legislador de qualquer credencial constitucionalmente válida – é a
autorização ao Estado para fixar critérios, ditos médicos, da medida em que uma vida atingiu um ponto
suficiente de deterioração física que torne «razoável» atender um pedido de ser morto formulado pelo
próprio, conduzindo à sua irreversível eliminação. Se isto corresponde a um novo paradigma da liberdade e
da autonomia individual, não deixa de ser paradoxal que ele se manifeste nesta espécie de apoteose do
paternalismo do Estado, criado e procedimentalizado pelo Decreto n.º 109/XIV.
2.4. Neste contexto – que é o da existência de um enquadramento legal da morte a pedido, referido a um
grupo delimitado por critérios de elegibilidade fixados nos termos decorrentes do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto
n.º 109/XIV – tem sentido, ademais, convocar o plano referencial da dignidade humana (artigo 1.º da CRP),
como princípio-guia conducente a outros valores constitucionais. Exige-se nesse plano, «[…] respeito pela
autonomia, mas também preocupação em face da vulnerabilidade […]»38
. Ora, sendo a manifestação de uma
decisão de ser sujeito a um procedimento de antecipação da morte medicamente assistida inseparável dos
efeitos das condições médicas (de um ‘prognóstico da situação clínica’, nas palavras do artigo 5.º, n.º 1, do
Decreto) que legalmente enquadram esse pedido – aqui, seguramente, «[…] o medo da dependência e da
perda de controle, da incontinência e da demência, enfim, do medo da deficiência [ – ] [e]mbora isso seja
expresso como um desejo de ‘morrer com dignidade’, não deixa de implicar que viver em certas condições é,
per se, uma indignidade»39
. É este, com efeito, o sinal que o Estado a todos dá.
Ora, o plano da decisão individual em que esta questão se suscita expressa motivações subjetivas onde
intervêm as múltiplas razões, muitas delas fonte de inaceitável descaso da ideia de inviolabilidade da vida
humana. A tudo isso soma-se, porém, o sinal que o comportamento do Estado não deixa de expressar
relativamente à condição deficiente, à vulnerabilidade que ela acarreta e à proteção especial que ela exige.
Dir-se-á que isso é matéria de outra legislação, porventura responsabilidade «de outro departamento». Porém,
o que fica da opção aqui em causa é precisamente esse poderoso sinal que se dá, criando uma classe de
pessoas cuja condição física e psíquica depauperada as torna elegíveis num quadro de atuação do Estado
que lhes faculta a opção da própria morte. Não é, aliás, de afastar a inclusão daquelas pessoas, desde logo
aquelas «com lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico ou doença incurável
e fatal», na noção de pessoas com ‘deficiência’, sendo aquelas elegíveis para antecipar a sua própria morte40
.
Vale esta situação, pois, por via do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIV, também, para além da ofensa
direta ao artigo 24.º, n.º 1 da CRP, como desvirtuamento do princípio da dignidade da pessoa humana, por
referência aos artigos 1.º, n.º 1 e 13.º, n.º 1, da CRP.
2.5. A admissão da eutanásia – e particularmente a admissão nestes termos – conduz inelutavelmente ao
seguinte encadeamento de asserções caraterizadoras de um novo paradigma de «convivência» com o
princípio da inviolabilidade da vida humana decorrente do artigo 24.º, n.º 1 da CRP: (A) O direito à vida inclui o
University Press, Cambridge, 1998, p. 109. 38
Jorge Miranda, António Cortês, anotando o artigo 1.º, in Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Vol. I, 2.ª ed., cit., p. 65. 39
David Albert Jones, «Is Dignity Language Useful in Bioethical Discussion of Assisted Suicide and Abortion?», inUnderstanding Human Dignity (Ed. Christopher McCrudden), Oxford University Press, Oxford, 2014, p. 531. 40
«[…] aquelas que têm incapacidades duradouras físicas, intelectuais ou sensoriais, que em interação com várias barreiras podem impedir a sua plena e efetiva participação na sociedade em condições de igualdade com os outros […]» – cf. artigo 1.º da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de 13 de dezembro de 2006 (aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 56/2009, de 30 de julho e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 71/09, de 30 de julho).
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direito de não ser morto; (B) Esse direito envolve, todavia, enquanto opções protegidas do próprio titular, a
opção de viver e a opção de morrer, com as quais (no caso da segunda opção, nas condições fixadas pelo
Estado) os outros não podem legitimamente interferir; (C) Assim, se alguém decide morrer, está a renunciar,
no quadro das suas opções válidas, ao direito à vida. E, ao renunciar a esse seu direito – este é o problema
central criado pelo Decreto n.º 109/XIV –, está a libertar outros (especificamente está a libertar o Estado) do
dever de não o matar. E o Estado está a afastar a proibição/a punibilidade de matar nesse caso41
.
Afastando-se decisivamente daquele paradigma, entendem os subscritores deste voto existirem matérias
que estão «fora do alcance de maiorias» (beyond the reach of majorities)42
, sendo esse o caso da legalização
da eutanásia, não dispondo o legislador, como antes dissemos, de credencial constitucional para esse efeito.
Daí considerarmos que o artigo 2.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIV viola o artigo 24.º, n.º 1, da Constituição da
República Portuguesa (e também consideramos que o viola, nos termos indicados em 2.4., supra, em
conjugação com os seus artigos 1.º, e 13.º, n.º 1).
Neste aspeto divergimos, como referimos no ponto 1.1.2, do percurso argumentativo do Acórdão.
(Maria José Rangel de Mesquita)
(Maria de Fátima Mata-Mouros)
(Lino Rodrigues Ribeiro)
(José António Teles Pereira)
——
Processo n.º 173/2021
Preventivo
Declaração de voto
Votei o presente Acórdão essencialmente pelas razões seguintes:
1. Para responder à questão de saber se o regime de antecipação da morte medicamente assistida não
punível estabelecido no Decreto é ou não compatível com o artigo 24.º, n.º 1, da Constituição, tomado para o
41
Adaptámos aqui a formulação do problema por J. David Vellman, Beyond Price…, cit., p. 28. 42
Tomando de empréstimo a expressão que, 1943, o Supremo Tribunal Federal dos Estados Unidos, empregou na decisão West Virginia State Board of Education v. Barnett [319 U.S. 624 (1943)], relatada pelo Juiz Robert Jackson, num dos chamados ‘flag-salute cases’, ao afirmar que «A finalidade de uma Declaração de Direitos [Bill of Rights] foi retirar certas matérias das vicissitudes da controvérsia política, e colocá-las fora do alcance das maiorias … e consagrar os mesmos [Direitos] como princípios jurídicos a serem aplicados pelos tribunais. […]».
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efeito como critério-medida da «amplitude da liberdade de limitação do direito à vida, interpretado de acordo
com o princípio da dignidade da pessoa humana», a primeira premissa de que parto baseia-se no princípio da
unidade da Constituição. Isto é, no entendimento segundo o qual, representando a Constituição uma
ordenação unitária da vida política e social de uma determinada comunidade estadual, cada uma das suas
normas deve ser encarada, não exclusivamente a partir de si mesma, destacada da unidade em que se
inscreve ou nela isolada, mas enquanto parte integrante de um conjunto de elementos em interação e
dependência recíprocas, de cuja atuação global deriva – e só dela pode derivar – a concreta conformação da
coletividade que é dada (e assegurada) pela ordem jurídico-constitucional (neste sentido, Konrad Hesse,
Escritos de Derecho Constitucional (Selección), Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1983, pp. 18 e
48).
A segunda premissa assenta na ideia de que a Constituição, sendo embora uma unidade, está longe de ser
uma unidade qualquer. É uma unidade que, expressando um pacto de vida comum entre os membros da
comunidade, se baseia no princípio da dignidade da pessoa humana, sendo este o referente axiológico que
relaciona e congrega, enquanto partes do todo, os elementos que integram o conjunto, conferindo-lhes um
sentido teleológico próprio e unificador. Sentido que, assentando no respeito, não apenas pela dignidade
inerente à condição que exprime a pertença à espécie humana, mas ainda (e decisivamente) pela dignidade
humana do ser-pessoa, tem, numa sociedade democrática e aberta, uma propensão necessariamente
abrangente e inclusiva, exprimindo um «consenso constitucional em que as várias correntes e convenções
próprias de um pluralismo razoável do nosso tempo se possam rever» (Jorge Reis Novais, A dignidade da
Pessoa Humana, Volume I., 2015, Almedina, p. 25).
A terceira premissa – que constitui, na verdade, uma decorrência lógica das duas anteriores – prende-se
com a função que o princípio da dignidade da pessoa humana desempenha na interpretação das disposições
constitucionais. Na medida em que constitui o elemento em torno do qual a unidade se compõe e agrega, o
princípio da dignidade da pessoa humana intervém nessa interpretação: i) como antecedente (ou prius), no
sentido em que a interpretação de qualquer norma constitucional deve ser sempre orientada para a máxima
realização do seu todo e este baseia-se na dignidade da pessoa humana; e ii) como consequente (ou
posterius), no sentido em que, se a unidade axiológica da Constituição é dada pelo princípio da dignidade da
pessoa humana, é através da interpretação de cada disposição constitucional como elemento integrante dessa
unidade, na sua relação de interdependência com os demais, que o princípio da dignidade da pessoa humana
se revela, materializa e obtém concretização.
Relativamente ao problema central para que remete o pedido, as três premissas expostas permitem
alcançar a seguinte primeira conclusão: sem prejuízo da especial força normativa inerente à proclamação de
que a «vida humana é inviolável», o n.º 1 do artigo 24.º da Constituição não pode ser isoladamente
interpretado, destacado e segregado da unidade em que se insere, de um modo tal que naquela fórmula deva
procurar-se (e possa encontrar-se), sobretudo com apoio em argumentos extraídos do respeito devido pela
dignidade da pessoa humana, tanto o princípio como o fim da resposta à questão de saber se a ordem
jurídico-constitucional admite ou proscreve qualquer regime de antecipação da morte medicamente assistida
não punível, designadamente aquele que se encontra previsto e explicitado no Decreto. Embora pressuponha,
desde logo no plano ontológico, a inviolabilidade da vida humana que lhe dá suporte, a dignidade do ser-
pessoa, na exata medida em que permanece indissociável da conceção do indivíduo como sujeito moral e
autónomo, não se reduz ou esgota nela, designadamente ao ponto de poder amparar uma resposta de tipo
invariavelmente binário ao problema da conformidade constitucional da renúncia à tutela penal da vida
humana perante quaisquer formas de autolesãoe deheterolesãoconsentidas. Assente na autonomia ética e
no valor intrínseco da pessoa como fim em si mesma, o princípio da dignidade da pessoa humana pressupõe
o reconhecimento de um espaço de liberdade decisória inerente à conceção da pessoa como sujeito
intelectual e moralmente capaz, de que é expressão direta o direito à autodeterminação individual e à livre
conformação da vida que a Constituição acolhe, enquanto projeção do direito fundamental ao desenvolvimento
da personalidade, no seu artigo 26.º. Direito cujo sentido é o de assegurar a cada indivíduo a faculdade de
continuamente se autodesignar, realizando as suas próprias escolhas e traçando através delas o seu destino,
e em cujo âmbito por isso se integra «o direito de uma pessoa decidir de que modo e em que momento a sua
vida deve terminar, desde que esteja em condições de formar livremente a sua vontade a esse respeito e de
agir em conformidade» (jurisprudência do TEDH citada no ponto 28 do Acórdão).
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2. Ao afirmar que a vida humana é inviolável, o artigo 24.º, n.º 1, da Constituição, vincula o Estado de uma
dupla forma: negativamente, impondo-lhe uma proibição de agressão ou de ingerência; positivamente,
exigindo dele a criação e manutenção dos pressupostos de facto e de direito necessários à defesa ou à
satisfação do direito fundamental que lhe corresponde. Uma vez que a proclamação constitucional da
inviolabilidade da vida humana compreende o direito a não ser morto tanto pelo Estado como pelos demais
membros da comunidade, cada cidadão terá, frente ao Estado, o direito a que este proteja a sua vida perante
intervenções arbitrárias de terceiros. O cumprimento do imperativo constitucional de tutela da vida humana
vincula o Estado à realização de prestações tanto fácticas como normativas, nestas se incluindo a proteção
através da edição de normas de direito penal ou da criação de normas de organização e de procedimento
(Robert Alexy, Teoria dos Direitos Fundamentais, Tradução de Virgílio Afonso da Silva, Malheiros Editores,
2008, pp. 196 e ss. e 442). Embora a escolha do tipo de proteção que deve de ser em concreto realizada seja
«algo que ‘em primeira linha’, ‘em grande medida’ ou ‘em essência’, cabe ao legislador» ordinário (idem, p.
463, referindo-se às formulações recorrentemente adotadas pelo Bundesverfassungsgericht), a liberdade de
conformação que lhe assiste é sempre exercida no interior de uma espécie de moldura cujo limite máximo é
dado pela proibição do excesso de proteção – medido pelo nível de afetação a que o instrumento de proteção
escolhido sujeita certo (outro) direito fundamental – e cujo limite mínimo corresponderá à proibição da proteção
deficitária ou insuficiente.
No domínio da proteção penal da vida humana perante formas de autolesão e de heterolesão consentidas,
o limite máximo correspondente à proibição do excesso é traçado a partir do direito à autodeterminação
individual e à livre conformação da vida. A primeira função que tal limite desempenha é a de vedar ao
legislador uma compreensão de tal forma radical do seu mandato constitucional de proteção e promoção da
vida humana, que pudesse originar a eliminação de qualquer espaço para o exercício da liberdade e da
capacidade de autodeterminação individual dos respetivos titulares ou, como se afirma no Acórdão, conduzir
ao esmagamento da «autonomia de cada ser humano para tomar e concretizar as decisões mais centrais da
sua própria existência». Dele decorre para o legislador a impossibilidade do recurso a mecanismos de
promoção e proteção a um tal ponto orientados para a defesa da vida humana em oposição à vontade
autodeterminada do sujeito que a titula que acabem não só por desligar a vida protegida da proteção do sujeito
que é seu titular, como ainda, na relação que estabelecem entre aquela e este, por converter ou reduzir a
pessoa a um «instrumento para a preservação da vida como valor abstrato» (Tribunal Constitucional da
Colômbia, Sentencia C-239/97). A segunda função desempenhada pelo limite máximo situa-se no plano da
intervenção causal ou concorrente de terceiros no processo de concretização da decisão de antecipação da
morte. Se o direito à autodeterminação inerente à condição da pessoa como sujeito moral e autónomo é
contrário à ideia de que cada indivíduo se encontra obrigado a aguardar resignadamente pelo sobrevir natural
do seu fim, o limite que a partir dele se traça não só exclui a possibilidade de punição dos atos de renúncia
praticados pelo próprio titular – ao qual assiste o «indeclinável direito de dar à sua vida o destino que quiser,
como e quando quiser» (Jorge de Figueiredo Dias, «A ‘ajuda à morte’: uma consideração jurídico-penal» in
Revista de Legislação e de Jurisprudência, n.º 137.º, Ano 2007-2008, n.º 3949 (março-abril de 2008), pp. 202
e ss., p. 205) –, como abre ainda espaço ao reconhecimento de situações em que, ao menos por estar em
causa um efetivo direito a morrer com dignidade, a proteção da vida humana não poderá mais efetivar-se
através do nível de redução das possibilidades de concretização da decisão de antecipação do seu termo que
deriva da proibição penal de todo o tipo de intervenções consentidas de terceiros.
Se o limite máximo colocado pelo direito à autodeterminação, enquanto expressão direta da dignidade da
pessoa humana, tem como primeira função, segundo vimos, vedar ao legislador uma compreensão
transpersonalista do mandato constitucional de proteção da vida humana – legitimadora, em última instância,
da incriminação da própria tentativa de suicídio –, o limite mínimo da moldura de discricionariedade legislativa,
que se traça diretamente a partir do artigo 24.º da Constituição, tem por efeito o afastamento da compreensão
oposta. Isto é, da compreensão segundo a qual a decisão pela qual cada um opta por pôr termo à sua vida lhe
pertence em termos de tal modo exclusivos, soberanos e absolutos que o Estado deverá pura e simplesmente
abster-se de criar qualquer tipo de obstáculo ou condicionamento prático à sua concretização, em especial
aqueles que derivam da limitação da liberdade de atuação de quem se ofereça para causar ou ajudar a causar
a morte de outrem em face de um pedido livre, esclarecido e sério. Ao declarar que a vida humana é inviolável,
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a Constituição não só consagra o direito à vida com a impressividade correspondente à sua condição de
«pressuposto fundante de todos os demais direitos fundamentais» (ponto 30. do Acórdão), como vincula o
Estado ao compromisso permanente de o defender em termos que podem dizer-se avessos à opção por uma
ordem jurídica que conferisse a cada membro da comunidade permissão para provocar ou colaborar na morte
de qualquer outro, desde que capaz, com base na existência de um pedido sério, instante e expresso. Um
compromisso que se funda, é certo, na proteção e promoção da vida humana como um bem, enquanto valor
objetivo e princípio estruturante do Estado de Direito, mas na base do qual derradeiramente se encontra a
conceção da pessoa não apenas como um ser-aí – o eu isolado e solitário –, mas também como um ser-com-
os-outros – alguém que, sendo filho(a), pai/mãe, irmão(ã), amigo(a) e ou companheiro(a), também existe e
vive nos outros. É a partir desse compromisso, que impõe ao legislador a adoção de um «sistema legal de
proteção orientado para a vida» e o inibe de se posicionar neutralmente perante esta, que se traça também, no
domínio das autolesões e heterolesões consentidas, o limite mínimo da discricionariedade legislativa imposto
pela proibição do défice ou da insuficiência.
Nos pontos seguintes, procurarei explicar como, em minha opinião, estes dois limites, mínimo e máximo, se
articulam – e, sobretudo, qual o juízo a que deverão conduzir – em face do regime de antecipação da morte
medicamente assistida não punível constante do Decreto.
3. Perguntar qual é o bem jurídico protegido através da incriminação do homicídio a pedido da vítima (artigo
134.º do Código Penal) e da ajuda material ao suicido (artigo 135.º do mesmo Código) é o mesmo que
perguntar pela razão que determina a ineficácia justificativa do consentimento no âmbito dos crimes contra a
vida: independentemente da sua firmeza, do seu grau de convicção ou do nível de reflexão que lhe esteja
subjacente, o consentimento constitui, até hoje, uma condição sem qualquer tipo de projeção ou relevância no
plano das dirimentes da responsabilidade pela lesão do direito à vida.
A primeira razão para que assim seja prende-se com a objetiva impossibilidade de, mesmo através da
exigência de um consentimento qualificado – isto é, aquele que se expressa na formulação de um pedido
instante –, reconhecer na decisão de quem procura a colaboração de terceiros para concretizar a antecipação
do fim da vida um grau de verdade, de resolução e de firmeza congruente com a irreversibilidade do resultado
consentido. Sabendo-se que a decisão de pôr termo à vida é as mais das vezes determinada por uma
condição psicologicamente relevante – a mais frequente das quais a depressão –, que compromete a
capacidade para consentir na sua lesão (Bundesverfassungsgericht, decisão de 26 de fevereiro de 2020,
parágrafo 245), pode dizer-se que a incriminação tanto do homicídio a pedido da vítima, como do auxílio
material ao suicídio, assentam, ainda que em diferente medida, na «presunção legal de precipitação e falta de
‘amadurecimento subjetivo’» por parte do respetivo titular (neste sentido, ainda que a propósito apenas do
crime de homicídio a pedido da vítima, Manuel da Costa Andrade, «Comentário ao artigo 134.º», § 15, p. 104,
in Figueiredo Dias (dir.), Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora,
Coimbra, 2012). Embora tal presunção seja mais forte no primeiro caso do que no segundo, ambos os tipos
legais relevam do «propósito de prevenir o perigo (abstrato) de uma decisão apressada e precipitada pelo
termo da vida» (idem, «Comentário ao artigo 135.º», § 12, p. 139).
A segunda razão prende-se com o próprio compromisso a que a Constituição vincula o legislador no
sentido da proteção e promoção da vida humana, mesmo perante decisões refletidas e ponderadas. Ainda que
na opção pela antecipação da morte motivada pelo simples cansaço de viver fosse possível identificar, com
infalibilidade máxima, um nível de determinação congruente com a irreversibilidade do resultado gerado pela
sua concretização, a legitimidade material da incriminação do homicídio a pedido da vítima e do auxílio
material ao suicídio continuaria a poder afirmar-se por referência ao valor da vida humana, mantendo na
ligação a este bem o seu imprescindível referente axiológico. Do ponto de vista da necessidade de tutela
penal, o sentido da proibição penal quer da ablação consentida da vida de outrem, quer da colaboração no ato
suicidário do seu titular, continuaria a poder discernir-se na diminuição das possibilidades de concretização da
decisão de antecipação do fim que deriva da exclusão da liberdade de qualquer ação causal ou colaborativa
de terceiros.
4. Do ponto de vista jurídico-penal, a principal novidade do regime de antecipação da morte medicamente
assistida não punível consiste na atribuição de eficácia ao consentimento no âmbito dos crimes contra a vida.
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Se o consentimento – «decisão da própria pessoa» – constituía até agora uma condição sempre e em todos
os casos irrelevante no plano da justificação da conduta ou da exclusão da punibilidade, o regime constante do
Decreto atribui-lhe eficácia nas condições que para o efeito define e para a comprovação das quais, como se
explica no Acórdão, estabelece um procedimento formal de averiguação próprio. Trata-se, portanto, de uma
eficácia condicionada, na medida em que dependente da verificação de um conjunto, complexo e articulado,
de condições, que devem ser atestadas no momento e pela forma a que, de acordo com a conjugação do
modelo médico de antecipação da morte não punível com um mecanismo de controlo ex ante baseado na
intervenção de uma entidade pública, o Decreto sujeita a respetiva comprovação.
As circunstâncias materiais aptas a converter o consentimento do titular do direito à vida em dirimente da
responsabilidade penal a que continua sujeita a ablação da vida a pedido e o auxílio material ao suicídio são
recortadas a partir da «situação de sofrimento intolerável» decorrente de «lesão definitiva de gravidade
extrema de acordo com o consenso científico ou de doença incurável e fatal». Comprovadas ambas as
circunstâncias nos termos estabelecidos no Decreto, o legislador suprime a proibição penal a que de outro
modo se encontraria sujeita a intervenção causal ou coadjuvante do médico orientador e demais profissionais
de saúde e, concedendo total primazia à decisão tomada pelo doente, desde que «atual e reiterada, séria, livre
e esclarecida», permite a concretização, no momento, lugar e pelo modo por este escolhidos, da antecipação
do fim da vida em ambiente controlado e próprio, possibilitando dessa forma o recurso à colaboração de
terceiros por parte de quem, por força do carácter insuportável do sofrimento que carrega, reconheça naquela
antecipação uma opção preferível à dor da sobrevivência na irreversibilidade das suas penosas e não
aligeiráveis circunstâncias.
A razão que explica a supressão, neste contexto, do mandamento jurídico-penal de não dar a morte em
quaisquer circunstâncias constitui, a meu ver, o princípio da resposta à questão de saber se a renúncia à tutela
penal da vida humana nas circunstâncias estabelecidas no Decreto, concretizada na regulação (e
consequente legalização) da prática de antecipação do fim de vida no âmbito de um «procedimento
administrativo autorizativo e de execução» instituído e superintendido pelo Estado, coloca o direito
infraconstitucional, no seu funcionamento conjunto, aquém do limiar fixado pelo princípio da proibição da
insuficiência.
Se na génese da incriminação do homicídio a pedido da vítima e do auxílio material ao suicídio se
encontra, como vimos, quer o acautelamento do risco de decisões precipitadas de fim de vida, quer o próprio
compromisso com a defesa da vida da pessoa humana, no sentido atrás exposto, a comprovação de uma
situação de sofrimento extremo em razão de uma condição clínica irreversível e radical não só consubstancia
um fundamento legítimo para retirar plausibilidade à presunção legal de irreflexão e de falta de
amadurecimento subjetivo que subjaz a ambos os tipos – permitindo reconhecer na antecipação da morte o
resultado de um exercício responsável da vontade autodeterminada do doente –, como constitui base
suficiente para que a promoção e proteção da vida humana deixe de condicionar-se, ou até de medir-se, pela
dimensão do indivíduo enquanto ser-com-os-outros, para passar a guiar-se fundamentalmente pela dimensão
da pessoa enquanto ser-aí, tornando-se no essencial dependente da decisão a que esta, enquanto sujeito
autónomo e moralmente capaz, livremente sujeite as suas próprias circunstâncias.
É certo que a supressão da responsabilidade criminal do médico orientador e demais profissionais de
saúde pelo ato que causa ou ajuda a causar a morte do doente cria, no domínio das autolesões e heterolesões
consentidas, um espaço livre de direito penal. Mas daí não se segue que dê origem a um espaço de vazio de
direito. De acordo com o sistema de controlo prévio em que assenta o regime constante do Decreto –
congruente, aliás, com a posição do Comité de Direitos Humanos da ONU referida no Acórdão –, a tutela da
vida humana é assegurada através do conjunto das normas de organização e de procedimento que fixam as
condições em que a antecipação da morte medicamente assistida pode ter lugar, estabelecem o momento e o
modo da sua comprovação e disciplinam a atuação do médico ou profissional de saúde que concretiza a
decisão do doente através da cedência para autoadministração ou da heteroadministração de fármacos letais.
Tendo em conta essa sua função, todas estas normas encontram-se sujeitas, como se afirma no Acórdão, a
particulares exigências de determinabilidade, devendo comportar um grau de densificação congruente, quer
com o especial valor inerente à vida humana, quer com a irreversibilidade do resultado a que esta passa a
poder ser sujeita mediante decisão autodeterminada do doente. É esta exigência de determinabilidade
decorrente do princípio do Estado de direito, neste domínio particularmente intensa, que, partilhando a posição
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da maioria, creio não ser satisfeita pelo conceito de «lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o
consenso científico». Tendo por certo que não só o sofrimento intolerável decorrente de doença incurável e
fatal pode constituir objeto de uma ponderação diferenciada da antecipação do fim da vida em face do
desvalor que continua a exprimir-se nos tipos legais do homicídio a pedido da vítima e do auxílio material ao
suicídio, creio também caber ao legislador o dever de densificar o mais possível o universo das condições
clínicas não letais situáveis no mesmo plano, designadamente por referência ao tipo e ao nível de
incapacitação que produzem e ao grau de dependência ou de perda de autonomia que impõem ao doente,
tanto mais quanto certo é que, de acordo com o modelo de controlo ex ante perfilhado no Decreto, se trata
aqui de normas que estabelecem pressupostos de atuação, e não apenas critérios de apuramento, sempre
retrospetivo, de responsabilidade.
Neste contexto, aliás, em que as hipóteses de antecipação da morte medicamente assistida não punível
são recortadas a partir de uma condição clínica radical, não é, em meu entender, determinante o facto de a
renúncia à tutela penal da vida humana nas condições estabelecidas no Decreto se fazer através da
paralisação tanto do tipo legal do auxílio material ao suicídio como do tipo legal do homicídio a pedido da
vítima. Apesar de entre uma atuação e outra interceder em geral a diferença que se funda no «domínio sobre
o ato que de forma imediata e irreversível produz a morte» (ponto 17 de Acórdão), a verdade é que, num
contexto de antecipação da morte medicamente assistida não punível que tem por referência a situação de
sofrimento intolerável gerada por determinada condição clínica extrema e que assegura, através das garantias
inerentes ao procedimento, que a decisão de pôr termo à vida constitui expressão verdadeira e genuína da
autodeterminação esclarecida do doente, qualquer distinção que a esse título se pretendesse introduzir outro
significado não teria, senão o de sujeitar a pessoa que se decidiu pelo termo da vida à provação final de ser
autora material da sua própria morte.
5. Nos pontos anteriores procurei expor as razões pelas quais um regime de antecipação de morte
medicamente assistida recortado a partir do carácter insuportável do sofrimento provocado por uma condição
clínica extrema, assente num procedimento baseado na conjugação de um modelo médico de comprovação e
de execução com um sistema de controlo ex ante, capaz de assegurar o exercício esclarecido da
autodeterminação do doente e cuja explicitação observe um grau de determinabilidade compatível com a
especial natureza do direito à vida, enquanto bem fundante de todos os demais direitos fundamentais, não é
incompatível com o limiar mínimo de proteção da vida humana que se traça a partir do artigo 24.º da
Constituição.
Neste último ponto, tentarei explicar a razão pela qual entendo que, quando se trate de pessoa com doença
fatal em fase terminal – situação que o Acórdão isola e singulariza – , tal regime é, não só constitucionalmente
viável, como constitucionalmente imperativo.
Para o doente que se encontra em processo longo e sofrido de uma morte próxima, a decisão de como
enfrentar o final da sua vida assume uma importância capital. Reconhecer-lhe, neste caso, a faculdade de,
com recurso à prática de atos médicos, escolher o momento em que a morte deverá produzir-se e, sobretudo,
na companhia de quem deverá produzir-se, é a diferença entre sujeitá-lo a aguardar resignadamente pelo
instante, sempre contingente e as mais das vezes solitário, em que de súbito se dá a chegada do fim, ou
permitir-lhe encarar e viver essa chegada com a paz e o amparo só proporcionados pela presença, terna e
próxima, de uma mão conhecida. É, em suma, reconhecer à pessoa fatalmente doente o direito a atribuir um
sentido pessoal ao termo da vida e, por essa insubstituível via, respeitá-la até ao fim na sua eminente
dignidade.
(Joana Fernandes Costa)
——
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Processo n.º 173/2021
Plenário
Relator: Conselheiro Pedro Machete
(Conselheira Maria José Rangel de Mesquita)
Declaração de voto
Vencidos, pelas seguintes razões fundamentais:
1. O Acórdão viola, no nosso entender, o princípio do pedido.
A nossa posição diverge da maioria, em primeiro lugar, quanto ao sentido e extensão da pronúncia do
Tribunal, considerando a delimitação do pedido efetuada no requerimento inicial.
No âmbito do presente pedido de fiscalização preventiva, o objeto do processo foi delimitado no
requerimento dirigido ao Tribunal Constitucional, tendo o Presidente da República afirmado assumir como boa
a opção do legislador, a quem cabe, nos termos da Lei Fundamental, «permitir ou proibir a eutanásia, de
acordo com o consenso social, em cada momento». Neste sentido, ao pronunciar-se, nos termos em que o fez
na alínea a) do dispositivo, pela inconstitucionalidade da totalidade da norma constante do artigo 2.º, n.º 1, do
Decreto n.º 109/XIV da Assembleia da República, o Tribunal está a manifestar uma posição de princípio que, a
nosso ver, ultrapassa o alcance do objeto do processo definido no requerimento inicial que lhe foi submetido.
Para este efeito, o Tribunal, alegando que o requerimento identifica «as normas, cuja apreciação é pedida
ao Tribunal em termos não unívocos» e que «a referência na fundamentação do pedido apenas a certos
segmentos da norma constante de tal artigo, por si só, não é suficientemente clarificadora nem decisiva»,
entendeu que «à completude estrutural da norma corresponde, por força do sentido prescritivo que a mesma
encerra, uma unidade teleológica impeditiva de uma segmentação», alargando, por isso, o enunciado da
norma jurídica sindicada à norma «que consta do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIV, com todo o seu
conteúdo prescritivo (designadamente aquele que lhe é projetado a partir do número 3), enquanto norma
completa». Partindo deste recorte, considerou-se estar legitimada a aferição da conformidade das normas
sindicadas a título principal com o parâmetro constitucional do direito à vida, consagrado no artigo 24.º, n.º 1
da CRP.
Recorde-se que o n.º 1, do artigo 2.º, do Decreto n.º 109/XIV da Assembleia da República, considera
antecipação da morte medicamente assistida «… não punível a que ocorre por decisão da própria pessoa,
maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento intolerável, com
lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico ou doença incurável e fatal, quando
praticada ou ajudada por profissionais de saúde». Esta previsão normativa comporta diversas dimensões,
desde logo, requisitos subjetivos – atributos da vontade –, e ainda requisitos objetivos (os pressupostos da
autorização). A não punibilidade da prática da ou da ajuda à antecipação da morte, por profissional de saúde,
depende da verificação dos ditos elementos objetivos – e apenas dois segmentos desta dimensão normativa
objetiva foram questionados pelo Presidente da República. Ora, ao contrário do entendimento resultante do
Acórdão, consideramos que esses elementos são lógica e normologicamente autonomizáveis – cindíveis – do
todo que compõe a norma. Assim, perante o pedido que foi submetido, o Tribunal, não sendo, evidentemente,
um mero autómato de silogismos, deve revelar uma compreensão adequada do seu específico lugar no
sistema jurídico-constitucional, limitando-se a confrontar a solução legislativa questionada com a Constituição,
em particular tratando-se de um processo de fiscalização abstrata preventiva da constitucionalidade. O que, a
nosso ver, é perfeitamente possível.
Sustenta o Acórdão, a este propósito, que redução do pedido conduziria a que a «linha divisória da esfera
ilícito-lícito não só passaria a ser outra – nomeadamente em função do pressuposto ou critério que tivesse sido
eliminado –, como, sobretudo, passaria a obedecer a uma diferente teleologia. Ora, tal como não seria
concebível em sede de fiscalização abstrata sucessiva que, na eventualidade de um juízo positivo de
inconstitucionalidade parcial incidente sobre apenas um desses critérios ou condições, a norma pudesse
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continuar a vigorar expurgada do critério então considerado inconstitucional – sob pena de ser o Tribunal a
redesenhar ele próprio, por via da sua decisão, uma nova fronteira e, assim, uma nova norma –, nesta sede de
fiscalização preventiva, a apreciação a realizar pelo Tribunal também não pode deixar de considerar a norma
na sua unidade teleológica e a consequente união incindível dos elementos da sua previsão». Ora, acontece
que, no nosso entender, não só o requerente quis efetivamente – e disse-o com clareza – que a linha divisória
fosse outra (quis questionar parte do como, mas não o se), como também o paralelismo com a fiscalização
abstrata sucessiva da constitucionalidade nem sequer se afigura feliz. Na fiscalização preventiva, um juízo de
inconstitucionalidade sempre implica, nos termos do n.º 1 do artigo 279.º da CRP, o veto (neste caso) do
Presidente República. A normação do Decreto não entrará, pois, em vigor, sem uma reapreciação da mesma
por parte do legislador, e o expurgo da norma julgada inconstitucional ou sua reconfirmação por maioria de
dois terços dos Deputados.
Resumindo: onde o Presidente da República afirmou explicitamente que o pedido não visa enfrentar «a
questão de saber se a eutanásia, enquanto conceito, é ou não conforme com a Constituição», tendo
restringido, de forma expressa e consciente, a avaliação requerida a este Tribunal à «questão de saber se a
concreta regulação da morte medicamente assistida operada pelo legislador no presente Decreto se conforma
com a Constituição», numa matéria que «se situa no core dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos,
por envolver o direito à vida e a liberdade da sua limitação, num quadro de dignidade da pessoa humana», o
Tribunal escolheu ir muito mais longe. Tendo-lhe sido solicitado que se limitasse a analisar aspetos concretos
do regime jurídico aprovado pelo legislador democrático, o Tribunal entendeu fazer uma análise prévia da
constitucionalidade da eutanásia ou do auxílio ao suicídio, em si mesmos considerados. Não devia, nem
precisava, de o ter feito. Não devia, porque uma compreensão adequada das exigências dos princípios do
pedido e da separação de poderes a isso mesmo conduz. E, mais ainda, não necessitava de dar esse passo,
já que, não sendo dono do pedido, o Tribunal é dono do parâmetro. Evidentemente, as dimensões
paramétricas constituídas pelo direito à vida, ao livre desenvolvimento da personalidade, à autonomia e
liberdade pessoais, sempre poderiam ser mobilizadas para a fundamentação da decisão, ainda que não
tenham sido invocadas pelo requerente, no pedido.
2. O Acórdão faz, no nosso entender, uma leitura errónea da norma constante do artigo 24.º, n.º 1,
da CRP (a vida humana é inviolável).
Importa evidenciar aquela que é, apesar de tudo, e no nosso entender, a mais importante linha
jurisprudencial decorrente do presente juízo: a que sustenta a não inconstitucionalidade de um regime
jurídico regulador das possibilidades de morte medicamente assistida, face ao parâmetro do artigo
24.º, n.º 1, da CRP, isoladamente considerado. Ou seja, nos termos da presente decisão, a priori e em
abstrato, as exigências axiológicas e jurídico-constitucionais impostas por aquela norma não impedem o
legislador democrático de legalizar a antecipação da morte medicamente assistida e introduzir na ordem
jurídica causas de exclusão da responsabilidade criminal em sede de auxílio ao suicídio ou de homicídio a
pedido da vítima; partilhamos, sem qualquer dúvida, esta conclusão. Aliás, cremos que não poderia ser de
outra maneira, pelas razões que em seguida se apresentarão e que, por este motivo, ao admitir a possibilidade
(o se), não deve o Tribunal Constitucional transformá-la numa mera hipótese teórica, através de um juízo de
tal forma estrito sobre o procedimento (o como), que este resulte inoperável no plano prático.
Todavia, o Acórdão faz, no nosso entender, uma leitura errónea da norma do artigo 24.º, n.º 1, da CRP (a
vida humana é inviolável), que protege a vida humana e a sua inerente dignidade, em todas as formas e todas
as fases do percurso vital da pessoa, enquanto sujeito de direitos. Vejamos porquê.
2.1A leitura que o Acórdão faz acerca do lugar constitucional do direito à vida e da vida enquanto
valor constitucionalmente protegido revela-se errónea, desde logo, ao divergir, de forma substancial,
daqueles que são os standards constitucionais comuns, nesta matéria, no espaço europeu (e até fora
dele). Efetivamente, mal se compreende a premissa, subentendida na decisão, segundo a qual o nosso
ordenamento jurídico-constitucional se afasta, de forma irremediável, de vários dos seus congéneres,
porquanto nestes se reconhece um direito fundamental ao suicídio, afastado, em termos absolutos, no caso
português, pelo reconhecimento da vida como valor objetivo, intangível, e a proteger pelo Estado. Não nos
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parece que assim seja. Não existe diferença substancial entre o fundamento constitucional dos direitos à vida,
ao livre desenvolvimento da personalidade e à autodeterminação e liberdade pessoais, consagrados na CRP,
e as disposições normativas em que se baseiam densificações e leituras jurisprudenciais muito distintas da
que a maioria acolhe. Sustentar o inverso – fundando na letra da norma constitucional um paradigma distinto –
equivale, no nosso entender, a reconhecer que, então, bastaria uma alteração da formulação constitucional
concreta plasmada na CRP, que explicitasse a dimensão jus-subjetiva da vida (substituindo a norma vigor por
outra que afirme que todos têm direito à vida), em detrimento da sua dimensão axiológico-valorativa, para que
estivessem ultrapassadas parte das objeções levantadas pela maioria às normas questionadas no presente
processo. Não é assim. O que se passa é que, numa matéria difícil e sensível como esta, com implicações
éticas, filosóficas e religiosas, e na qual estão em causa a vida e a morte, a liberdade, a dignidade e a
solidariedade humanas, mundividências distintas conduzem a leituras opostas das normas constitucionais.
Contudo, julgamos que é maior a solidez dogmática da nossa visão, e que ela se enquadra melhor naquele
que é, hoje, o panorama de direito comparado. Isto é tanto mais importante quanto, como acima se deu nota,
não está em causa uma qualquer idiossincrasia constitucional, fruto de um espaço e de um tempo particulares,
e caraterística inelutável de uma identidade constitucional distinta, mas sim as pedras-de-toque de um
património constitucional partilhado, os direitos fundamentais que constituem o pilar de um direito
constitucional comum europeu, em sentido Häberliano.
Uma digressão pelo direito comparado revela, aliás, uma óbvia e notória evolução quanto às questões aqui
tratadas. Mostra também uma crescente convergência, fruto de uma reflexão e de um diálogo jurisprudencial
de décadas (veja-se a significativa jurisprudência do TEDH a este respeito), bem como da evolução das
conceções sociais sobre vida, fim de vida, e qualidade de vida, e também sobre a morte e o processo de
morrer. Estas reflexão e evolução foram impulsionadas pela necessidade de uma resposta jurídico-normativa
sobre o tempoeo modo de morrer, em particular em situações para as quais a evolução científica e
tecnológica gerou possibilidades de prolongamento da vida que até há pouco o curso das leis da natureza
impossibilitava. Tal não implica qualquer diminuição da importância ou do sentido ético, filosófico, político,
social e jurídico da existência humana. Implica, sim, uma determinada compreensão do significado de ser
pessoa e da centralidade da autodeterminação da vontade e do consentimento individuais, na modelação do
caminho entre a vida e a morte.
Assim, recordem-se as questões – diversas entre si, mas com uma linha comum – com as quais foram
confrontados distintos tribunais constitucionais europeus e que se reconduzem exatamente ao oposto do
problema que hoje se coloca a este Tribunal Constitucional. Enquanto que aqui se questiona se são
constitucionalmente conformes o se (tendo em conta o alargamento do objeto operado) e o como (problema
em que se centra o pedido do requerente) da legalização (mediante a introdução de causas de justificação de
certas condutas médicas, no domínio penal, e de uma procedimentalização da expressão pública da vontade
do paciente em sofrimento intolerável, que atuam no sistema normativo que o Decreto institui como faces da
mesma moeda), decidida pelo legislador democrático, da morte medicamente assistida (nas modalidades de
auxílio ao suicídio e de homicídio a pedido da vítima), noutras geografias colocou-se a questão de saber se é
admissível, à luz das respetivas constituições, a criminalização total do auxílio ao suicídio. A essa pergunta,
responderam os tribunais constitucionais alemão, austríaco e italiano em sentido negativo. Fizeram-no com
alcances e fundamentações distintas, quanto a pontos importantes. No entanto, isso não justifica o
afastamento, sem mais, que no Acórdão se faz da relevância da construção de standards comuns nesta
matéria. Desde logo, porque a decisão do legislador português de manutenção da regra de incriminação do
auxílio ao suicídio e do homicídio a pedido da vítima em nada desmente que a reflexão em torno da importante
tensão entre vida e autonomia que está na base das decisões de outros tribunais seja mobilizada, com enorme
utilidade, para a presente decisão. Uma coisa é discordar, fundamentadamente, das decisões de tribunais que
o Tribunal Constitucional português habitualmente toma em consideração. Outra é afastá-las, com
simplicidade, quase de plano, dizendo que não está em causa o mesmo problema. Está. Ainda que sob
enquadramento jurídico-penal distinto (naturalmente, as incriminações vigentes nos vários ordenamentos não
são iguais, colocando do lado da dogmática penal inquietações próprias a cada um), a problemática
jusfundamental de fundo é exatamente a mesma.
Assim, o Bundesverfassungsgericht (BVerfG, Acórdão de 26 de fevereiro de 2020 – 2 BvR 2347/15)
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reconheceu, em termos amplíssimos, o direito fundamental a uma morte autodeterminada, entendido como
expressão de liberdade pessoal, sublinhando que essa decisão de forma alguma acarreta uma compressão da
dignidade da pessoa (constituindo, pelo contrário, a expressão final da prossecução da autonomia pessoal
inerente à dignidade humana). Na mesma linha, o Tribunal Constitucional da Áustria (G 139/2019-71, de 11 de
dezembro de 2020) considerou que, tendo em consideração a importância, no quadro do respetivo
ordenamento jurídico, da autodeterminação e da vontade da pessoa quanto à admissibilidade de tratamentos
médicos, mesmo nos casos em que estes são indispensáveis para assegurar a vida, não se justifica, em face
dos direitos constitucionais em jogo, proibir, sem exceção e em quaisquer circunstâncias, o auxílio ao suicídio.
Por seu turno, o Tribunal Constitucional italiano (Sentenza 242/2019, de 25 de setembro de 2019), ainda que
numa posição menos expansiva, julgou, também, inconstitucional, uma indiscriminada repressão penal da
ajuda ao suicídio, em circunstâncias delimitadas, entendendo que se o fundamental «relevo do valor da vida
não exclui a obrigação de respeitar a decisão do doente de pôr fim à própria existência, através da interrupção
de tratamentos médicos – mesmo quando tal exija uma conduta ativa, pelo menos no plano naturalístico, da
parte de terceiros (como o desligamento de equipamentos, acompanhado do subministro de sedação profunda
contínua e de terapia da dor) – não há razão pela qual o mesmo valor deva traduzir-se num obstáculo
absoluto, penalmente sancionado, ao acolhimento do pedido do doente de uma ajuda que permita subtraí-lo
ao decurso mais lento – tido como contrário à própria ideia de uma morte digna – que decorra da dita
interrupção dos mecanismos de suporte vital.» Não é, pois, necessário, um reconhecimento do direito
fundamental ao suicídio (que implicaria, no mínimo, a inconstitucionalidade da incriminação do auxílio ao
suicídio e, no limite, deveres estaduais positivos no sentido de garantir o seu exercício), para entender que a
absolutização da defesa da vida por parte do Estado, contra a vontade do titular do direito é, hoje, muito
dificilmente compaginável com as exigências jurídico-constitucionais decorrentes dos direitos à autonomia e
autodeterminação individuais. Por outro lado, a declinação da questão, no plano do direito comparado, não
tem partido, como faz o presente Acórdão, da consideração da assistência na morte como uma restrição do
direito à vida, ou da dimensão objetiva do bem vida. Dadas as premissas base das orientações que acima
descrevemos, a conceção acolhida no Acórdão merece-nos viva recusa, posto que se defende, precisamente,
uma (re)compreensão daquele direito, em termos que permitam articulá-lo, de modo côngruo, com a liberdade
e dignidade pessoais, reconhecendo que o direito à vida não equivale a um dever de viver em quaisquer
circunstâncias.
Por seu turno, o TEDH, no quadro da sua específica competência de garante dos standards mínimos de
proteção dos direitos consagrados na CEDH, tem vindo a traçar um caminho de progressiva permeabilidade
da Convenção às conceções favoráveis à descriminalização da morte assistida, conferindo uma importante
margem de apreciação aos Estados em matéria de regulamentação jurídica do fim da vida e na busca de
mecanismos de concordância prática entre «a proteção do direito à vida dos pacientes e a proteção do seu
direito à intimidade da vida privada e autonomia pessoal» (vejam-se, neste sentido, o Acórdão do TEDH
Lambert v. França, de 5 de junho de 2015).
2.2. Ora, é precisamente à luz das ideias de concordância prática entre direitos fundamentais em tensão,
em termos análogos àqueles que motivaram as decisões dos tribunais constitucionais congéneres do nosso, e
da margem de conformação do legislador democrático que entendemos que o juízo geral, no presente
processo, deve ser de não inconstitucionalidade. O mesmo parece, aliás, entender o próprio requerente, tendo
em atenção a delimitação que temos como correta do pedido.
Assim, no plano da dogmática constitucional, e situando-nos na análise do ordenamento jurídico-
constitucional nacional, cabe assinalar, antes de mais, que não existe, relativamente a esta questão, qualquer
caderno de encargos constitucional; ou seja, a Constituição não impõe aqui, ao contrário de outras matérias,
um programa concreto, deixando – de maneira propositada – um amplíssimo espaço de conformação ao
legislador ordinário. Este facto é, aliás, facilmente compreensível, por razões históricas, sociais e políticas.
Nestes termos, a Constituição admite que o legislador democrático possa ser chamado a dirimir a tensão que
emerge, em determinadas situações, entre vida biológica e vida biográfica (ou, para quem assim o prefira,
entre a sacralidade da e a qualidade de vida), encontrando soluções que salvaguardem a dignidade da pessoa
humana e todos os direitos e valores jurídico-constitucionais em conflito, e que façam sentido numa sociedade
secularizada e plural (neste sentido, veja-se A. Schillacci, «Dalla Consulta a Campo Marzio (e ritorno?): il
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difficile seguito dell’ord. n. 207/2018», in S. Cacace, A. Conti e P. Delbon (a cura di), La Volontà e la Scienza,
G. Giappichelli Editore, Torino, 2019).
Sobre o artigo 24.º da CRP, importa destacar que este protege a vida humana, em todo o momento e em
todas as circunstâncias. A vida – uma vida digna – é, pois, tutelada em todas as fases do percurso humano,
desde as menos autónomas (como a infância ou a terceira idade) às de maior autonomia; em estado saudável
ou de doença; no quadro da integridade plena de faculdades físicas, motoras ou intelectuais ou de deficiência,
leve ou profunda, congénita ou superveniente. Nesse sentido, a norma protege os seres humanos que não
têm, por diversas razões, plena capacidade de autodeterminação, como os menores, os incapazes, as
pessoas com anomalia psíquica, ou as que se encontram em estado vegetativo. Protege igualmente, e como é
evidente, a pessoa com absoluta autonomia e liberdade de autodeterminação. Essa proteção impõe-se, desde
logo, ao Estado, em relação ao qual impendem importantes deveres de proteção e tutela. Tendo, aliás, em
atenção a génese da norma constitucional, e a que era a memória então recente dos atentados contra a vida
por parte do Estado Novo, a ideia fundante do artigo 24.º, n.º 1, da Constituição era simples: o Estado não
mata, por razão alguma, pessoas que querem viver.
No entanto, nada disto tem como consequência necessária que esta proteção tenha de ter sempre a
mesma extensão e intensidade e, ainda, que a consideração daquela que é, hoje, a densificação de outros
direitos fundamentais – designadamente, do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, nas dimensões
de liberdade e autodeterminação – e das suas consequências em planos específicos, como o dos tratamentos
médicos e dos processos de fim de vida, não permita (ainda que também não obrigue a) que o legislador crie
soluções jurídico-normativas e práticas para viabilizar aquele que entende ser o modo mais logrado de
concordância prática entre os valores em conflito.
A ideia, expressa no Acórdão, segundo a qual se estará, no presente caso, num plano muito distinto, e
alheio a esta tensão entre direitos fundamentais, porquanto «não está em causa a conduta isolada de alguém
que quer pôr termo à própria vida, mas a assistência de profissionais de saúde, num quadro de atuação
regulado e controlado pelo Estado, à antecipação da morte de uma pessoa a pedido desta» constitui um
artifício, por certo engenhoso, mas infundado, para fugir à questão fundamental que a problemática do auxílio
ao suicídio e do homicídio a pedido do paciente em situações de sofrimento intolerável convoca: a da definição
de um espaço de equilíbrio entre o direito à vida (artigo 24.º, n.º 1, da CRP) e o direito ao livre
desenvolvimento da personalidade, expressão de uma irrenunciável autodeterminação pessoal e da
autonomia da vontade (artigo 26.º, n.º 1, da CRP). Rejeitamos a ideia de que essa autonomia, que configura
um verdadeiro direito fundamental, só possa, à luz da Lei Fundamental, ser exercida no quadro da mais
absoluta solidão. Por isso, impunha-se a este Tribunal ter afrontado este problema central e, com coerência
dogmática, ter retirado as devidas conclusões acerca da questão difícil que tem em mãos. Mesmo que se
exclua a emergência, no nosso ordenamento jurídico, do direito fundamental a uma morte autodeterminada,
subsiste a questão de saber até que ponto é lícito ao legislador reconhecer prevalência crescente ao direito ao
livre desenvolvimento da personalidade em face de um direito à vida que é, antes de mais um direito subjetivo
fundamental. Assim, se é indesmentível que «a interferência do terceiro converte o facto num facto pertinente
ao sistema social, estando como tal, exposto aos seus códigos e valorações» (v. Costa Andrade, cit. no
Acórdão), isso não implica que os mesmos códigos e valorações do sistema social permaneçam cristalizados,
presos numa espécie de cápsula do tempo, imunes a qualquer evolução e vento de mudança, impedindo
soluções que viabilizem, em certas circunstâncias, a morte medicamente assistida; soluções estas que se
conformam com o quadro constitucional em vigor, justamente porque fundadas numa certa conceção de
equilíbrio hodierno entre direitos em tensão. Ora, se a esta mesma conclusão chega o Acórdão – a de que «a
proteção absoluta e sem exceções da vida humana não permite dar uma resposta satisfatória, pois tende a
impor um sacrifício da autonomia individual contrário à dignidade da pessoa que sofre, convertendo o seu
direito a viver num dever de cumprimento penoso» – a verdade é que o faz a partir de uma conceção da
dimensão objetiva do bem vida que quase a absolutiza. Admitindo o se (a possibilidade de morte medicamente
assistida, nas suas várias modalidades), esta decisão olha o como com indisfarçável desconfiança, reduzindo-
o às situações em que «não está em causa uma escolha entre a vida e a morte, mas, mais rigorosamente, a
possibilitação da escolha entre diferentes modos de morrer: nomeadamente, um processo de morte longo e
sofrido versus uma morte rápida e tranquila». Um tal entendimento, levado às últimas consequências,
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excluiria, a priori, a constitucionalidade de muitas das situações hipotéticas para as quais o legislador
democrático claramente quis, agora, abrir a possibilidade de morte medicamente assistida: desde logo, todas
aquelas em que não se trate de escolher apenas um processo de morte, mas de renunciar a uma vida que se
projeta como não plena, e em sofrimento extremo, ainda que a morte não esteja num horizonte próximo. Por
esta razão, reiteramos que o Acórdão parte de uma compreensão errónea, e quase absolutizada, da norma do
artigo 24.º, n.º 1, da CRP.
Assim – é importante dizê-lo com clareza, dado o percurso argumentativo percorrido, que parte desta
quase absolutização do valor objetivo da vida -, a discussão sobre a amplitude da possibilidade de resolução,
pelo legislador democraticamente legitimado, das situações de conflito entre a sacralidade da e a qualidade de
vida, em favor de um maior espaço de autonomia da pessoa não foi, verdadeiramente, travada, e não pode
ser considerada fechada.
3. O Acórdão ignora a relevância do direito ao livre desenvolvimento da personalidade (n.º 1 do
artigo 26.º, da CRP), e a sua densificação no quadro das questões especificamente em causa.
No que respeita à densificação da norma do artigo 26.º, n.º 1, da CRP, o Acórdão abstém-se de considerar
a relevância e a especificidade do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, à autodeterminação e à
liberdade, bem como as exigências que decorrem da ideia de consentimento, em situações de doença ou
lesão.
Ora, a verdade é que, quer no plano da ordem jurídica internacional, quer no plano da ordem interna, a
relevância da vontade e do consentimento em todas as matérias relacionadas com a disposição do corpo tem
vindo a crescer. Recorde-se o artigo 5.º da Convenção de Oviedo (Convenção para a Proteção dos Direitos do
Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina: Convenção sobre os
Direitos do Homem e a Biomedicina, de 4 de abril de 1997), nos termos da qual «qualquer intervenção no
domínio da saúde só pode ser efetuada após ter sido prestado pela pessoa em causa o seu consentimento
livre e esclarecido. Esta pessoa deve receber previamente a informação adequada quanto ao objetivo e à
natureza da intervenção, bem como às suas consequências e riscos. A pessoa em questão pode, em qualquer
momento, revogar livremente o seu consentimento». No plano interno, vejam-se a Lei de Bases dos Cuidados
Paliativos (Lei n.º 52/2012, de 5 de setembro) e a Lei dos Direitos das pessoas em contexto de doença
avançada e em fim de vida (Lei n.º 31/2018, de 18 de julho). A norma do n.º 3 do artigo 5.º desta última lei
prevê expressamente que «as pessoas em contexto de doença avançada e em fim de vida, desde que
devidamente informadas sobre as consequências previsíveis dessa opção pelo médico responsável e pela
equipa multidisciplinar que as acompanham, têm direito a recusar, nos termos da lei, o suporte artificial das
funções vitais e a recusar a prestação de tratamentos não proporcionais nem adequados ao seu estado clínico
e tratamentos, de qualquer natureza».
Estas disposições normativas são tributárias de uma conceção que, atribuindo um relevo central ao direito
fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade, consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da CRP, justifica que
hoje se tenham por legítimas as recusas de tratamento, em quase todas as circunstâncias, sem que a pessoa
tenha sequer uma obrigação de fundamentação da sua decisão. Reconhece-se, pois, a cada um, o direito de
decidir sobre a sua vida e a sua morte, exigindo respeito pela sua dignidade em ambos os processos (já que
de processos se trata, e não de momentos), de acordo com as suas próprias valorações éticas, morais e/ou
religiosas, a sua conceção do que é uma boa vida, que não pode deixar de ser diversificada, numa sociedade
complexa e plural. O consentimento compreendido nestes termos implica, pois, uma disponibilidade de cada
um sobre si mesmo, sobre o seu corpo, que o acompanha na vida e se assume, igualmente, como regra
fundamental da morte. Além disso, a ideia de proporcionalidade entre as intervenções médicas para prolongar
a vida e a qualidade de vida da pessoa prefigura-se, também, como princípio geral de atuação nestas
matérias, limitando a atividade terapêutica.
É certo que a problemática em causa no presente processo vai um passo além. Contudo, a verdade é que
uma consideração dogmaticamente coerente da densificação do direito ao livre desenvolvimento da
personalidade (ergo, à autodeterminação) que resulta do que foi dito conduz a que exigências jusfundamentais
e até de igualdade exijam o reconhecimento de um amplo espaço de conformação para o legislador, no
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sentido de regular o fim da vida. De facto, se nas situações em que uma pessoa depende de apoios externos
para sobreviver pode fazê-los cessar sem ter, sequer, que se explicar, o que justifica que alguém que se
encontre em circunstâncias de idêntico (e extremo) sofrimento, mas tenha o infortúnio de sobreviver
naturalmente, não o possa fazer? Há (ou deve haver) uma diferença inultrapassável, em situações
determinadas, entre deixar morrer e ajudar a morrer? A resposta – e a linha divisória – não deve caber senão
ao legislador democrático.
S. Rodotà (inLa Vita e le Regole, 1.ª edição online, G. Feltrinelli Editore, Milano, 2018), considerando a
transformação do auxílio ao suicídio ou do homicídio a pedido da vítima num facto social (questão a que é
dada grande relevância no Acórdão) fala-nos da redescoberta «de uma condição humana e de uma
sensibilidade difusa e profunda, de uma empatia entre o morrente e as pessoas que o acompanham no tempo
extremo da vida, com a assunção da responsabilidade de tornar possível a morte, ditada não pela piedade,
mas por afeto. A condição humana e a partilha de um destino encontram aqui uma das suas manifestações
mais intensas». Neste sentido, alerta-se para o facto de as figuras do suicídio e do homicídio se revelarem
manifestamente desadequadas, neste plano, já que se trata de situações existenciais, éticas e jurídicas
totalmente distintas do que aqui se trata – que é das condições extremas de quem pede uma morte que vê
como digna e do exercício de autodeterminação e autonomia no final de um percurso vital. É nestes momentos
difíceis, em que as regras jurídicas encontram a vida, que o direito cumpre o seu papel racionalizador,
equalizador e garantístico (designadamente, estabelecendo firmes e rigorosas garantias procedimentais de
expressão e verificação da vontade). No entanto, a condição das pessoas em processo de fim de vida deve
ser «tomada em consideração na sua inteireza e complexidade, sem que no seu interior se admitam distinções
que alterem a igualdade de cada um diante da morte. A dimensão constitucional conjuga-se com a dimensão
existencial, suportando-a» (S. Rodotà, cit.).
4. O Acórdão estabelece um standard de determinabilidade, em sede de causas de justificação, no
plano penal, divergente do até aqui aceite como constitucionalmente conforme.
Por último, o Acórdão estabelece, no nosso entender, um standard de determinabilidade, em sede de
legislação penal que se afigura não só divergente do que até aqui tem sido aceite como
constitucionalmente conforme, como, ainda, potencialmente problemático.
Partimos, nesta matéria, de uma premissa fundamental, até aqui sempre afirmada pelo Tribunal, em inteira
sintonia com a doutrina: a Constituição não impõe obrigações constitucionais de criminalização. Ou seja, não
há nenhum bem jurídico constitucionalmente protegido que a CRP entenda que deve necessariamente ser
protegido através da legislação penal. Esta, configurando uma solução de ultima ratio, deve ser mobilizada
sempre que o legislador entenda que não existe outra maneira de proteger adequadamente o bem ou direito
em causa. Mas não tem que o ser, por imposição do legislador constituinte.
Contudo, a verdade é que o legislador português entendeu manter a criminalização do auxílio ao suicídio e
do homicídio a pedido da vítima, condutas tipificadas e punidas nos artigos 134.º e 135.º do Código Penal, e
para as quais se prevê idêntica moldura penal, revelando terem, na ótica legislativa, idêntico desvalor. Trata-
se, como o Acórdão bem reconhece, de crimes de perigo abstrato, justificados pela necessidade de proteger a
vida contra decisões apressadas, precipitadas ou condicionadas. Mas, também, de tipos privilegiados face ao
crime (central) de homicídio. Seguindo a reflexão de Costa Andrade ali citada, entendeu o legislador haver
situações concretas em que – face a uma perda irreversível de sentido na continuação da vida, motivada pela
proximidade incontornável da morte ou pelo caráter incontrolável e insuportável do sofrimento suportado –
deve prevalecer o exercício da autodeterminação no sentido de pôr termo à vida, por se afigurar, no sentir
comunitário, como «objetivamente razoável». Situamo-nos, pois, do ponto de vista penal, no âmbito da criação
de uma causa de justificação, complexa, que exclui a ilicitude de tais condutas (e não a culpa do agente,
sendo desajustado o paralelo com a figura do estado de necessidade desculpante, acolhida no artigo 35.º do
Código Penal, que se procura estabelecer no Acórdão), em circunstâncias estritas e pré-determinadas.
Neste quadro – e após esclarecer que a norma em causa deve ser fiscalizada «por referência aos
parâmetros constitucionais aplicáveis às normas disciplinadoras da atividade restritiva ou reguladora de
direitos fundamentais», designadamente «o princípio da determinabilidade das leis, enquanto corolário do
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princípio do Estado de direito democrático e da reserva de lei parlamentar, decorrentes das disposições
conjugadas dos artigos 2.º e 165, n.º 1, alínea b), da Constituição», parâmetro com o qual concordamos – o
Acórdão dedica-se a examinar a determinabilidade dos dois segmentos normativos identificados como
problemáticos pelo recorrente (e só esses), concluindo pela inconstitucionalidade, por violação do mencionado
princípio da determinabilidade, da referência a «lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o
consenso científico». Entende a maioria que se imporia, sem qualquer dúvida, ao legislador, para manter as
suas opções num espaço de conformidade constitucional «encontrar uma formulação alternativa, que se
traduzisse numa maior densificação do elemento normativo que se pretende consagrar enquanto pressuposto
da não punição», adiantando mesmo que aquele «poderia ter mobilizado outros conceitos, muito mais comuns
na prática (médica ou jurídica), que, sem perder plasticidade, seriam prontamente apreensíveis quando
associados ao pressuposto relativo ao sofrimento intolerável». Ora, a questão que aqui se coloca não é se o
legislador poderia (ou deveria) ter feito diferente, ou melhor. Como nem todo o mau direito é direito contrário à
Constituição, e como o legislador não estava, aqui, no nosso entender, obrigado a remeter a conceitos mais
comuns na prática médica ou jurídica, a única questão a que o Tribunal deve responder é se o conceito que o
legislador democrático efetivamente mobilizou corresponde aos standards mínimos de determinabilidade
aceites como conformes à CRP, no âmbito das causas de justificação em matéria penal. Basta, porém, abrir o
Código Penal para encontrarmos, em domínios paralelos, conceitos igualmente indeterminados que não
mereceram, até hoje, censura, por se entender que eles são determináveis, na prática, no quadro de um
processo de diálogo entre médico e paciente, análogo ao que aqui está em causa. Vejam-se, a título de
exemplo, as alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, nas quais se preveem situações não
punibilidade da interrupção da gravidez efetuada por médico, com o consentimento da mulher grávida, com
recurso a conceitos como «grave e irreversível/duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou
psíquica da mulher grávida» e «grave doença ou malformação congénita». A utilização destes conceitos
assume tanto mais relevância quando também neste caso, e à semelhança da morte medicamente assistida,
se trata não só de descriminalizar, em certas condições, certas condutas, mas «de as regular – e, assim, de as
legalizar – no quadro (e apenas no quadro) de um procedimento administrativo autorizativo e de execução que
o próprio Estado institui e regula em todas as suas fases e com intervenção (não apenas, mas sempre) de
entidades de natureza pública». Não se vê, pois, que o segmento normativo questionado se afaste,
irremediavelmente, deste standard, ou que se coloquem, quanto a ele, quaisquer outras objeções
incontornáveis atinentes ao princípio da determinabilidade.
O problema – que o Acórdão não enfrenta explicitamente, embora devesse fazê-lo – não é, pois, o da
determinabilidade do conceito de «lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso
científico». O conceito é determinável, sem dificuldades inultrapassáveis, no específico contexto institucional e
procedimental em que deve operar. A questão é que a prefiguração dessa mesma determinação leva a
concluir que o legislador quis incluir no leque de possibilidades de acesso a uma morte medicamente assistida
casos em que, por não estar em causa uma lesão de «natureza fatal, não se vê como possa estar (…) em
causa a antecipação da morte, uma vez que esta pode não ocorrer em consequência da referida lesão».
Assim, o que fundamenta a decisão de inconstitucionalidade não é, verdadeiramente, um problema de
indeterminabilidade. É um problema que radica na amplitude do âmbito subjetivo das situações efetivamente
abrangidas pela norma fiscalizada. A maioria do Tribunal entende que ela é de tal modo grande que isso a
situa fora do espaço de conformidade constitucional. No entanto, se é esse o problema, deveria ter sido
especificamente analisado.
Tendo em conta tudo o que se afirmou, cremos que se aplica, por maioria de razão, ao requisito de «lesão
definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico» o que se disse no Acórdão quanto ao
requisito de «sofrimento intolerável»; ou seja, que «apesar de indeterminado, o conceito em apreço não é
indeterminável, mas antes determinável. Acresce que a sua abertura se mostra adequada ao contexto clínico
em que terá de ser aplicado por médicos. Estas duas razões justificam suficientemente o grau de
indeterminação em causa, não permitindo, no domínio particular da antecipação da morte medicamente
assistida, a conclusão de que aquele grau contrarie as exigências de densidade normativa resultantes da
Constituição».
O que será mais desejável, até por quem mais receia as denominadas rampas deslizantes? «Amarrar» o
intérprete a noções estreitas e sempre discutíveis (pois essa é a indeclinável natureza do método científico,
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permanentemente em busca da confirmação/infirmação do conhecimento tido como adquirido) ou proporcionar
ao aplicador uma maior fecundidade heurística na apreciação das concretas situações da vida, associada à
garantia que a necessidade de fundamentação empresta ao juízo?
——
Processo n.º 173/2021
Plenário
Declaração de voto
Tendo subscrito a declaração de voto feita em conjunto com os Conselheiros Mariana Canotilho, Assunção
Raimundo e Fernando Vaz Ventura, onde se enunciam as razões fundamentais por que divergimos do
Acórdão, em termos com que me identifico por inteiro, adito agora esta declaração individual, não contraditória
com aquela, antes na mesma lógica, de algum modo complementando-a com algo que julgo importante dizer
sobre a lei cuja fiscalização foi pedida a este Tribunal.
A conclusão principal da decisão votada é – reafirmo aqui a nossa declaração conjunta – a de que, em
abstrato, o artigo 24.º, n.º 1, da CRP não impede o legislador «de introduzir na ordem jurídica causas de
justificação atendíveis em sede de auxílio ao suicídio ou de homicídio a pedido da vítima». A Constituição
outorga-lhe uma margem de conformação nesta matéria, para poder encontrar soluções que realizem a
necessária concordância prática entre direitos fundamentais e valores jurídico-constitucionais em tensão. De
facto, há que reconhecer, sem que tal implique qualquer diminuição da importância ou do sentido ético,
filosófico, político, social e jurídico da existência humana, que a absolutização da defesa da vida pelo Estado,
contra a vontade do seu titular é, hoje, muito dificilmente compaginável com as exigências jurídico-
constitucionais decorrentes dos direitos à autonomia e autodeterminação individuais. Tal como escrevem Rui
Medeiros e Jorge Pereira da Silva, numa anotação ao artigo 24.º, a circunstância de o direito à vida ser
condição sine qua non de todos os restantes direitos não implica necessariamente a sua «permanente
superioridade axiológica sobre os demais direitos»: apenas a vida compatível com a liberdade é objeto de
pleno reconhecimento constitucional.
Dentro dessa margem de conformação, entendo que a AR, por uma maioria muito expressiva, e cumprindo
o que entendeu ser um imperativo de humanidade (creio que os trabalhos preparatórios, v.g., os debates
parlamentares, demonstram a importância desta ideia para a mens legislatoris), fez uma lei que, de forma
equilibrada e muito cuidadosa, respeita tanto quem quer viver como a natureza o ditar até ao último dia, como
quem quer escolher o momento da sua morte com a assistência de terceiros em circunstâncias delimitadas
pelo quadro constitucional. A lei procurou conciliar o mais possível as diversas visões da sociedade sobre o
tema e estabelecer todas as cautelas, fazendo tudo o que estava ao seu alcance para evitar, por exemplo, o
perigo das chamadas rampas deslizantes. A sua preocupação bem visível foi limitar a morte assistida a
situações muito excecionais (e invariavelmente assentes na vontade livre, esclarecida e informada do
paciente, com todo um procedimento garantístico muito exigente, a garantia de acesso a cuidados paliativos, a
objeção de consciência dos profissionais de saúde, etc.).
Uma última referência, a propósito do argumento relativo à dimensão social – e não meramente individual –
do suicídio, muito esgrimido e particularmente enfatizado por Gustavo Zagrebelsky: «dever do Estado não é o
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contrário: dar esperança a todos? O primeiro direito de cada pessoa é poder viver uma vida com sentido,
correspondendo à sociedade o dever de criar as condições. […] Uma coisa é o suicídio como facto individual;
outra coisa é o suicídio socialmente organizado A sociedade, com as suas estruturas, tem o dever de cuidar,
se possível; se não for possível, tem, pelo menos, o dever de aliviar o sofrimento». O problema maior desta
argumentação é que não vivemos nessa sociedade perfeita ou, pelo menos, mais próxima daquela sociedade
mais justa, mais fraterna e mais livre de que fala o preâmbulo da nossa Constituição. Se temos todos, como
pessoas e cidadãos, um dever indeclinável de lutar por ela, a verdade é que ela (ainda) não existe – e aí a
necessidade da nossa solidariedade e da nossa humanidade, enquanto comunidade, para com aqueles que,
em circunstâncias extremamente difíceis, que ninguém pode julgar, optam por tomar a decisão dramática de
pedir para lhes ser dada a morte. É verdade que todas as vidas são dignas – aí todos estamos de acordo, pelo
que não é esse o problema (e, aliás, como salienta Ronald Dworkin, «a dignidade – que significa respeitar o
valor inerente às nossas próprias vidas – constitui o cerne de ambos os argumentos», pró e contra a
eutanásia), mas também é verdade que não há paliativos para tudo e há sofrimentos a que nada consegue pôr
cobro. O sofrimento, mesmo atroz, pode aguentar-se quando há esperança, mas o sofrimento atroz, quando
não há esperança, não faz sentido se o próprio já não vir nele nenhum sentido. O que torna o sofrimento
insuportável não é a doença ou a lesão de que a pessoa sofre, é a sua incapacidade em adaptar-se e assim
não conseguir alívio, é a perspetiva de viver em constante sofrimento sem qualquer expectativa de alívio. É
por isso que entendo estar aqui em causa, sobretudo, esse imperativo de humanidade, de não tratar como
criminoso quem ajuda alguém, «em situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva de gravidade
extrema de acordo com o consenso científico ou doença incurável e fatal» a antecipar a sua morte, movido
apenas pela compaixão face ao seu pedido consciente e informado, repetido e inequívoco. Com esta lei, cada
um continua a ter o direito a sofrer o seu próprio sofrimento e a morrer a sua própria morte, mas a
criminalização deixará de poder ser usada para impor o sofrimento a outros, nos limitadíssimos casos em que
se encontra previsto que o homicídio a pedido da vítima e a ajuda ao suicídio deixam de ser crime.
Também por estas razões (a acrescer às que constam da declaração conjunta que subscrevi) divergi do
Acórdão e entendo que o juízo deste Tribunal deveria ter sido de não inconstitucionalidade.
(José João Abrantes)
——
Processo n.º 173/2021
Plenário
Relator: Conselheiro Pedro Machete
(Conselheira Maria José Rangel de Mesquita)
Declaração de voto
Vencido quanto ao fundamento da decisão.
1. A morte medicamente assistida regulada no Decreto n.º 109/XIV constitui uma exceção aos regimes
gerais da incriminação do homicídio a pedido da vítima e da ajuda ao suicídio, constantes do n.º 1 –
respetivamente − dos artigos 134.º e 135.º (segunda parte) do Código Penal. Desde que praticada nas
condições e nos termos previstos no decreto, a conduta em causa deixa, não apenas de ser «punível», como
se afirma no artigo 1.º, como em rigor passa a ser lícita, permitida pela lei − em boa verdade, passa a ser
protegida pela lei, uma vez que o cumprimento de todas as etapas do procedimento de verificação confere ao
«doente» o direito de morrer com assistência médica. Ora, sempre que o legislador pune uma conduta,
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restringe severamente a liberdade de a praticar, só podendo fazê-lo com fundamento no dever de proteger um
bem jurídico com expressão constitucional; e sempre que legaliza uma conduta até aí punida, alarga a esfera
de liberdade dos agentes, seja por reconhecer que a incriminação era ilegítima ou desnecessária, não
correspondendo a nenhum dever efetivo de proteção, seja por atribuir, nas circunstâncias em que deixa de
punir a conduta, maior peso à liberdade individual do que ao dever de proteção. Por isso, para se
compreender o regime da «antecipação da morte medicamente assistida», é indispensável perguntar pelo
fundamento constitucional da punição dos factos previstos no n.º 1 dos artigos 134.º e 135.º (segunda parte)
do Código Penal.
São essencialmente três as respostas possíveis a tal questão.
2. A primeira resposta é a de que a punição do homicídio a pedido da vítima e da ajuda ao suicídio se
baseia no dever estatal de proteção da vida como valor objetivo e bem indisponível. Ao contrário dos direitos
de liberdade – diz-se −, como a liberdade de expressão ou o direito de deslocação, o direito à vida não admite
o exercício negativo. Trata-se de uma forma elíptica de dizer que o n.º 1 do artigo 24.º da Constituição impõe
ao titular do direito, nos casos em que este queira morrer, um dever de viver – que a vida não é um bem
disponível, mas um valor objetivo confiado à curadoria do portador. Por isso, o consentimento do lesado não
pode em caso algum operar como causa de justificação nos crimes contra a vida. O legislador pode abster-se
de incriminar a tentativa de suicídio, por razões de política criminal, mas tem toda a legitimidade – senão
mesmo a obrigação – de incriminar o auxílio prestado por terceiros na execução da decisão pessoal de pôr
termo à vida. E está-lhe absolutamente vedada a legalização da morte assistida, ou seja, a previsão de
circunstâncias em que o ato de disposição da vida própria corresponde ao exercício de um direito. Esta
posição implica, como é bom de ver, a proscrição constitucional do suicídio medicamente assistido e da
eutanásia voluntária ativa.
Há dois argumentos comuns a favor desta tese, nenhum dos quais me parece convincente.
O primeiro baseia-se no teor do enunciado constitucional deste direito («[a] vida humana é inviolável»),
supostamente indicativo de uma decisão constituinte no sentido do valor absoluto − ou, pelo menos, do
carácter absolutamente indisponível – da vida humana. Ora, ainda que se aceitasse a conceção da
interpretação constitucional subjacente a este argumento – a que me oponho de modo enfático, pelas razões
constantes da declaração de voto que subscrevi no Acórdão n.º 464/2019 −, conceção essa levada aqui ao
extremo insólito de se supor que a norma constitucional que consagra o direito fundamental como um todo tem
o alcance que resulta das palavras escolhidas pelo legislador constituinte para o expressar e não o que releva
do conteúdo do direito humano homólogo − ainda assim, dizia, me parece um argumento manifestamente
inviável. Basta atentar em que no n.º 1 do artigo 25.º se usa de idêntica semântica a respeito do direito à
integridade pessoal («[a] integridade moral e física é inviolável»), sem que ocorra a ninguém retirar daí o
argumento bizarro de que o corpo é um bem absolutamente indisponível, e que por isso é inválido o
consentimento prestado pelos cidadãos aos barbeiros, esteticistas, fisioterapeutas, cirurgiões e outros
profissionais cujos serviços interferem regularmente no gozo da sua integridade física. Tenho por certo que do
notabilíssimo enunciado no n.º 1 do artigo 24.º não se pode retirar nenhuma consequência relevante quanto ao
conteúdo do direito fundamental.
O segundo argumento é o de que o consentimento do lesado, nos casos de destruição da vida, é por
natureza nulo, seja porque a vida é um pressuposto necessário da liberdade – de tal modo que a liberdade de
dispor da vida contradiz o seu próprio pressuposto −, seja porque, nas circunstâncias em que é praticado,
mormente uma situação de sofrimento intolerável, o ato de disposição da vida não pode ser verdadeiramente
livre. Creio que ambos os argumentos são falaciosos. O primeiro baseia-se no uso ambíguo do termo
«pressuposto»: a vida é seguramente um pressuposto empírico da liberdade – como são, se bem que em
medida relativa, a saúde, a instrução, a habitação e o rendimento −, mas não é, como se pretende firmar
através deste argumento, um pressuposto transcendental. É possível que as declarações de vontade,
«renuncio à minha liberdade», «obrigo-me a ser escravo» ou «alieno a minha pessoa», encerrem contradições
performativas – por negarem o fundamento último da sua validade (a personalidade do declarante) −, mas
nada há de contraditório nas declarações de vontade, «renuncio a viver» ou «quero morrer». A
indisponibilidade da vida não é nenhuma necessidade lógica. E não o sendo, resta saber por que razão este
direito fundamental – e apenas ele − compreende um entranho dever de exercício, corolário da sua resistência
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a toda e qualquer ponderação com a liberdade geral de ação que releva do direito ao livre desenvolvimento da
personalidade (artigo 26.º, n.º 1) do seu titular.
Por outro lado, a noção de que o pedido para morrer não é «livre», independentemente da condição
psicológica do autor, baseia-se numa confusão dos conceitos de coação física e moral: quando a pessoa atua
constrangida por uma ameaça ilícita, ao contrário do que ocorre quando a ação é constrangida pela força, a
sua conduta corresponde a um exercício de vontade pessoal; a razão de ser da invalidade do ato não é a
ausência de vontade, mas o vício na sua formação. A mesma liberdade se verifica na decisão pessoal de pôr
termo à vida, com a diferença de que neste caso não há nenhum vício na formação da vontade, porque a
pessoa não decide condicionada por ameaça ilícita de terceiro, mas pelo desejo de evitar o prolongamento de
uma existência insatisfatória. A decisão só não seria livre se o agente tivesse perdido o discernimento; e a
formação da vontade só seria viciada se a lei negasse ao agente o exercício de um outro direito atual e
definitivo de que resultasse ou pudesse resultar um aumento por si julgado relevante de qualidade de vida. De
resto, não vejo como é que esta posição possa evitar a seguinte consequência: se o pedido do doente para
morrer não é por natureza um exercício de liberdade, como pode sê-lo a recusa de um tratamento necessário
para manter ou prolongar a vida? Se a vida é um bem indisponível, porque a liberdade não pode valer contra a
vida ou porque a liberdade contra a vida é meramente aparente, parece-me inevitável concluir que a eutanásia
voluntária passiva também é inconstitucional, condenável em todos os casos, sendo particularmente salientes
aqueles em que a recusa de tratamento implica uma ação − a interrupção de um meio de suporte da vida.
Aceitar esta consequência implicaria aceitar um verdadeiro terramoto no quadro legal e deontológico vigente,
subversivo do atual paradigma do consentimento na relação entre médico e paciente.
3. A segunda resposta possível quanto ao fundamento constitucional da punição do homicídio a pedido da
vítima e da ajuda ao suicídio é a de que se trata de uma ponderação do dever de estatal de proteção da vida –
como valor eminentemente objetivo – com o direito ao livre desenvolvimento da personalidade do titular.
Segundo esta posição, há muito que o legislador pune a colaboração de terceiros na morte autodeterminada
porque entende que o dever de proteger a vida prevalece em geral sobre a autonomia individual; mas aprova
agora um regime de morte medicamente assistida por entender ainda que, em determinadas circunstâncias, o
peso relativo destes valores constitucionais altera-se a favor da liberdade. A tese – timidamente subscrita no
acórdão − é a de que tal decisão é em princípio tolerável, sem prejuízo da margem de conformação política do
legislador poder ser mais ou menos ampla, consoante o juízo sobre o grau de abertura da ordem
constitucional ao sacrifício da vida em nome da liberdade.
Não creio que seja uma posição defensável.
A ponderação de valores constitucionais só pode alterar-se, sob pena de violar a exigência de
universalidade dos juízos, se o seu peso relativo ou outra consideração de relevo variar em função das
circunstâncias. Por outras palavras, só faz sentido admitir exceções a uma regra se for possível defender que
as circunstâncias específicas daquelas justificam um juízo de ponderação diverso do que incide sobre a
generalidade dos casos. Daqui resulta que a morte medicamente assistida só pode ser compatibilizada com a
incriminação geral do homicídio a pedido da vítima e da ajuda ao suicídio, sempre com fundamento na
ponderação entre o dever de proteção da vida e o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, se for
legítimo ajuizar que, nas condições previstas no n.º 1 do artigo 2.º do decreto, o valor objetivo da vida é menor
ou o valor da liberdade é maior – ou, a fortiori, ambas as coisas − do que nas demais circunstâncias em que
se verificam os pressupostos dos tipos incriminadores constantes dos artigos 134.º e 135.º do Código Penal.
Ora, tal juízo é obviamente ilegítimo, pelas razões aduzidas recentemente pelo Tribunal Constitucional
Federal da Alemanha, no aresto prolatado em 26 de fevereiro de 2020 sobre o direito a uma morte
autodeterminada. Por um lado, se a permissão da morte medicamente assistida evidenciasse o juízo do
legislador de que a vida em determinadas circunstâncias − «lesão definitiva de gravidade extrema» ou
«doença incurável e fatal» − tem um valor diminuído, e por isso cede perante o valor da liberdade (cujo peso,
por hipótese, se mantém constante em todos os casos de morte a pedido ou suicídio assistido), admitir-se-ia a
graduação do valor da vida plenamente formada como princípio geral, precisamente aquele princípio que
sempre orientou as políticas eugénicas, homicidas e genocidas dos regimes que se caracterizaram pela
negação da dignidade da pessoa humana – pela noção, quer isto dizer, de que a dignidade não é do ser
humano, sem declinações ou reservas, mas daqueles que exibem uma origem, pertença ou excelência
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dignificante. Pelo contrário, no modo de convivência política a que chamamos democracia constitucional, a
vida humana não tem mais ou menos valor em razão das condições em que é vivida, do carácter de quem a
vive ou da sua duração expectável. Por outro lado, se fosse o peso da liberdade a aumentar nas
circunstâncias em que a lei vem a admitir a morte medicamente assistida, o legislador arrogar-se-ia o direito
de sindicar, julgar e discriminar as convicções existenciais e a identidade pessoal dos cidadãos, fazendo
depender o reconhecimento das suas decisões, não do respeito que lhe merece o exercício da liberdade, mas
do mérito que atribui a determinadas motivações e projetos individuais. Desse modo, ao estabelecer um
regime de «eutanásia com indicações» − condicionada a certas causas objetivas do foro somático −, o
legislador não estaria a respeitar a liberdade de ação do indivíduo, mas a assumir uma função dirigente no
desenvolvimento da sua personalidade. É evidente que isto seria contraditório com o princípio liberal em que
repousa o regime da morte medicamente assistida.
4. A terceira resposta possível – aquela que subscrevo – parte de uma premissa diversa: a disponibilidade
de princípio da vida como bem jurídico. A vida é juridicamente disponível mesmo que se conceda a ideia –
evidentemente controvertida numa sociedade pluralista – de que se trata de um valor incondicional, que ao
destruir a sua vida o agente está a desrespeitar a sua essência moral ou a violar o dever ético de conservação
do bem. Assim é porque não é possível coagir ninguém a respeitar a sua dignidade ou a comportar-se
eticamente: os valores interiores − como a bondade, a retidão, o respeito ou a caridade – não podem, por
natureza, ser realizados através da força, visto que esta atua sobre o agente como mero objeto, simples meio
para realizar um estado de coisas exterior considerado desejável. É uma contradição nos próprios termos
tratar alguém como simples meio em razão da sua condição de fim em si mesmo. Ao coagir o devedor a
cumprir a obrigação contratual, o empregador a não despedir sem justa causa ou o lesante a indemnizar os
prejuízos que causou, a autoridade pública garante os direitos do credor, do trabalhador ou do lesado. Estes
podem ser garantidos pela força. Mas a força não pode ser usada para garantir a dignidade do seu objeto: ao
negar a liberdade do agente, nega a condição sine qua non do seu êxito. Isto vale, quer para a coação no
sentido mais estrito – a execução forçada −, quer para sanções e outras formas mais ou menos subtis de
restrição da liberdade de escolha, como a proibição do auxílio prestado por terceiros. Por isso, numa ordem
constitucional baseada na dignidade da pessoa humana, todos os direitos fundamentais se têm de articular
com o direito mais geral e radical ao livre desenvolvimento da personalidade. A vida é objeto de um verdadeiro
direito de liberdade.
Pode pensar-se que este argumento prova de mais. A lei não manda punir a tentativa de suicídio, nem dela
se pode retirar que o suicídio seja um ato ilícito. Só que também não o concebe como um direito subjetivo. O
suicídio é permitido no sentido amplo, trivial e tautológico de que não é proibido. É legítimo que uma pessoa
tente impedir outrem de cometer suicídio e suponho que seja pacífico que um agente da autoridade tenha o
dever de o fazer. Mas se a vida é um bem disponível, se é objeto de um direito de liberdade, pode perguntar-
se se o legislador não estará obrigado a consagrar um direito ao suicídio e a admitir o consentimento como
causa de justificação nos crimes contra a vida, com a consequência inevitável de que os tipos incriminadores
constantes dos artigos 134.º e 135.º do Código Penal se devam ter por inconstitucionais. Pela mesma ordem
de razões, a intervenção de terceiro que dificulte o suicídio deveria ser caracterizada como conduta ilícita e a
autoridade pública, confrontada com uma tentativa de suicídio, deveria ter-se por vinculada a um simples
dever de abstenção. São consequências abomináveis.
Porém, este raciocínio baseia-se numa conceção redutora de liberdade. A liberdade geral de ação
compreendida no direito ao livre desenvolvimento da personalidade não se esgota na dimensão negativa. Na
cultura moral, política e jurídica ocidental o conceito de liberdade admite duas interpretações ou conceções
distintas. A liberdade no sentido negativo do termo é a liberdade de escolha, o arbítrio individual, a ação
desimpedida, a ausência de obstáculos: liberdade é o indivíduo fazer o que muito bem entender, sem prestar
contas a ninguém. É-se tão mais livre, neste sentido, quanto menor a resistência externa – e sobretudo de
terceiros, sejam eles particulares ou entes públicos – à ação individual. Esta liberdade negativa é anómica, na
medida em que não obedece a nenhuma norma objetiva, resumindo-se ao poder arbitrário do agente sobre um
determinado objeto – a vida, o corpo, uma coisa, a imagem, a intimidade, a comunicação, a saúde, entre
muitos outros.
A liberdade no sentido positivo – a segunda grande conceção – desenvolve-se a partir da interiorização da
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negação paradigmática da liberdade: a escravatura. O escravo está na dependência absoluta da vontade de
terceiro, o seu proprietário; por isso, não tem nenhum direito a ser livre no sentido negativo do termo – goza da
liberdade negativa concedida pelo arbítrio do seu amo. De forma aparentemente paradoxal, Epicuro afirmou
que a liberdade se encontra apenas na submissão total do indivíduo ao saber – um estado compatível com a
condição social dos escravos que frequentavam a sua escola. E Platão pôs Sócrates a defender em vários dos
seus diálogos que os tiranos e demagogos, considerados pelos seus interlocutores como os mais poderosos,
são os que menos podem e os mais infelizes. Assim é – explica − porque não fazem o que realmente querem,
antes o que as suas paixões, inclinações, apetites e tentações os compelem inexoravelmente a fazer. O
verdadeiro dependente, neste sentido, é o indivíduo incapaz de exercer autocontrolo, autodomínio,
autodisciplina – aquele, em suma, que não se governando pela razão e gozando da maior licença para agir, é
escravo dos seus impulsos. A liberdade positiva é normativa, na medida em que se consubstancia na vivência
de acordo com a regularidade racional, que pode resultar tanto da aquisição individual da sabedoria, como da
sujeição a um governo de virtuosos.
Nas suas versões extremadas, liberdade negativa e positiva não são apenas diferentes – são perfeitamente
antagónicas. Entre a liberdade negativa de um Hobbes, que «significa propriamente a ausência de (…)
impedimentos externos ao movimento, e aplica-se tanto a criaturas irracionais como irracionais», e a liberdade
positiva de um Rousseau, segundo o qual «quem quer que recuse obedecer à vontade geral a isso será
coagido por todo o corpo: o que significa apenas que será forçado a ser livre», não há reconciliação possível.
No primeiro sentido, os seres humanos são livres na medida em que possam comportar-se como uma pedra
que rola pela ladeira abaixo sem obstáculos; é a submissão total do indivíduo, do ponto de vista da liberdade
positiva. No segundo sentido, os seres humanos são livres na medida em que observem uma lei
racionalmente justificada, se necessário imposta pela coletividade organizada; é o triunfo do despotismo, na
perspetiva da liberdade negativa. Ora, a democracia constitucional é um modo de vida coletivo que se baseia
na prioridade da liberdade negativa – nos compromissos fundamentais de que a liberdade e a força se
excluem mutuamente; de que toda a restrição da liberdade de escolha carece de um fundamento legítimo; que
em caso de dúvida sobre o alcance das leis se presume a favor da liberdade de ação; e que todo o indivíduo é
senhor de uma esfera de decisão insuscetível de ingerência pela autoridade pública e em que pode agir sem
prestar contas a ninguém. Precisamente aqui reside o ethos liberal dos regimes democráticos
contemporâneos.
5. A liberdade positiva não deixa ainda assim de ter um lugar relevante na nossa ordem constitucional,
numa versão compatível com os argumentos da interioridade e do pluralismo.
Em primeiro lugar, trata-se de conceder que o valor ético ou a virtude moral não podem impor-se pela
força. A liberdade que se realiza através da obediência a uma norma de conduta ou ao reconhecimento de
uma necessidade objetiva implica a liberdade de escolha do sujeito – realiza-se apenas como expressão de
autodeterminação pessoal. Por isso, embora a ordem constitucional de uma democracia liberal procure a sua
legitimidade no consentimento dos destinatários, como sujeitos livres e iguais, não usa da força para garantir a
liberdade positiva dos indivíduos que submete, antes a liberdade negativa dos indivíduos que seriam por
aqueles de outro modo submetidos; a obrigação não é executada para libertar o devedor do mal, mas para
tutelar o direito do credor. Ninguém pode ser forçado a ser livre no sentido positivo do cumprimento do que é
devido: essa liberdade não é realizável de outra forma que não a autonomia, a submissão voluntária do sujeito
a uma norma de conduta que interiorizou. O direito – escreve Kant, o filósofo que mais longe levou a ideia de
liberdade como obediência a um imperativo categórico – assegura as «condições sob as quais o arbítrio de
cada um pode conciliar-se com o arbítrio de outrem segundo uma lei universal de liberdade.» A coação só
pode ser usada para garantir a liberdade negativa; o «reino dos fins» inscreve-se exclusivamente no domínio
da consciência.
Em segundo lugar, trata-se de reconhecer que os modos próprios de reflexão e comunicação numa
sociedade aberta não geram nenhum consenso ético ou religião cívica – nenhuma conceção única de virtude
moral, do sentido da existência ou dos mistérios da vida. A pluralidade irremediável de lealdades
mundividenciais determina que uma ordem de convivência justa só é possível se a autoridade pública invocar
razões que merecem o assentimento de todos os cidadãos, no pressuposto de que estes se respeitam
mutuamente como sujeitos livres e iguais. «A Constituição – lê-se na célebre declaração de voto de Oliver
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Wendell Holmes Jr. em Lochner v. New York − é feita para pessoas com visões fundamentalmente diversas
(…)». Ora, como a generalidade das conceções éticas – religiosas ou seculares – não satisfaz esta exigência
de reciprocidade política e razão pública, a única norma de conduta universal é a que devolve ao indivíduo
dotado da capacidade para tanto um poder de governo sobre a sua existência, ao livre desenvolvimento da
sua personalidade, através da garantia de uma esfera de liberdade negativa compatível com a igual garantia
concedida aos demais indivíduos. Todos os direitos fundamentais na tradição do constitucionalismo têm esse
sentido profundo: têm-no de modo evidente os direitos de liberdade, que protegem o titular da interferência
pública e fundam deveres estatais de proteção contra a interferência de terceiros; mas têm-no ainda os direitos
sociais, que incidem sobre determinadas condições materiais para o gozo efetivo dos direitos de liberdade.
Com o reconhecimento da interioridade e do pluralismo dos valores, a ideia de liberdade positiva não
desaparece, mas altera-se profundamente. Deixa de constituir uma norma material que orienta a conduta no
sentido de um correto desenvolvimento da personalidade e passa a constituir uma norma processual que se
traduz na exigência de que o exercício dos direitos deve satisfazer condições, observar trâmites e revestir
forma comensuráveis com os seus efeitos no desenvolvimento da personalidade do agente. Uma das
principais razões pelas quais a lei onera de modo muito diverso os mais variados atos e negócios da vida
quotidiana – um passeio na via pública, a compra de uma passagem aérea, a aquisição de um imóvel, a
constituição de uma associação, a celebração de um testamento – prende-se com a magnitude e a
reversibilidade das suas consequências na vida do autor. A oneração de um ato constitui sem dúvida uma
restrição da liberdade geral de ação na dimensão negativa de arbítrio individual ou ausência de
constrangimento – de agir como muito bem se entender, sem ter de prestar contas a ninguém. Mas pode
constituir uma forma de tutela da liberdade geral de ação na dimensão positiva de garantia de
autodeterminação pessoal – de formação de uma decisão adequadamente informada, ponderada e firmada.
Assim, a liberdade geral de ação compreende duas dimensões distintas e carecidas de concordância prática: o
direito de agir sem impedimentos ou obstáculos criados pelo poder público e o direito à proteção das
condições de formação de uma decisão autónoma. O primeiro é um direito defensivo, correlativo de um dever
estatal de abstenção; o segundo é um direito positivo, correlativo de um dever estatal de prestação. É deste
modo – numa tensão permanente mediada pelo princípio da proporcionalidade − que liberdade negativa e
positiva coexistem na ordem constitucional das democracias liberais.
6. O exercício negativo do direito à vida tem a singularidade de ser indistinguível de uma declaração de
renúncia ao direito, tornada definitiva pela circunstância de ser impossível a sua revogação futura. Tal reclama
máxima exigência quanto aos requisitos de validade desse exercício: tendo em conta a natureza
absolutamente irreversível e irremediável da decisão, o dever de proteção fundado na dimensão positiva da
liberdade geral de ação justifica restrições severas da sua dimensão negativa. O legislador tem de ter uma
convicção fundada na ponderação e firmeza da decisão de morrer para poder tomá-la como expressão de
autodeterminação pessoal e, nos casos de homicídio a pedido ou ajuda ao suicídio, outorgar validade ao
consentimento prestado a terceiro. Ora, esse grau de convicção não se verifica na generalidade das
circunstâncias em que alguém deseja pôr termo à vida. A experiência comum diz-nos que a vontade de morrer
é por norma irracional – irrefletida, precipitada ou desesperada −, uma vez que a vida é um pressuposto
empírico absoluto dos demais bens mundanos, que a existência pessoal é radicalmente indeterminada e que
os seres humanos não são omniscientes. Na esmagadora maioria dos casos, a tentativa de suicídio diz menos
sobre a ponderação que o sujeito faz sobre a sua existência do que sobre a sua incapacidade transitória para
formar uma decisão ponderada. E este dado da experiência comum é amplamente corroborado pelos estudos
que indicam que uma percentagem elevadíssima das pessoas que tenta suicidar-se – cerca de 90% − vem a
arrepender-se da sua decisão.
Creio ser este o verdadeiro fundamento constitucional da negação de um direito ao suicídio e da
incriminação da morte assistida. O legislador presume razoavelmente que a decisão de morrer não é
autodeterminada na proporção das suas consequências – irreversíveis e irremediáveis – no desenvolvimento
da personalidade do agente. A carência de proteção da dimensão positiva da liberdade de ação é tão grande
nestas circunstâncias que torna razoável a restrição mais severa da liberdade negativa – a negação absoluta
de um direito a pôr termo à vida e a incriminação geral da colaboração de terceiro na execução da decisão de
morrer. Mas não é única solução possível do ponto de vista constitucional. Tratando-se de um juízo de
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ponderação complexo e controverso, parece-me seguro que o legislador democrático não pode deixar de
gozar de liberdade de conformação política numa significativa região intermédia entre a proibição do défice de
proteção da autonomia pessoal e a proibição do excesso de restrição da liberdade de escolha. Por isso, as
ordens jurídicas de outras democracias constitucionais europeias contêm regimes muito variados neste
domínio. A solução originária dos artigos 134.º e 135.º do Código Penal, que preveem tipos incriminadores que
cobrem todo o fenómeno da morte assistida, é relativamente conservadora, distinguindo-se, quer das ordens
jurídicas que permitem a eutanásia ativa e o suicídio assistido em determinadas condições, como a holandesa
e a belga, quer daquelas em que a ajuda ao suicídio não é um facto punível, sendo mesmo uma prática social
tolerada, como a alemã e a suíça.
É no uso desta liberdade de conformação política para ponderar as dimensões negativa e positiva da
liberdade geral de ação que o legislador vem agora aprovar um regime excecional de morte medicamente
assistida. Considera-se que, nas condições previstas no n.º 1 do artigo 2.º do decreto, há razões fundadas
para inverter a presunção que informa a incriminação do homicídio a pedido da vítima e a ajuda ao suicídio –
nessas condições, por outras palavras, justifica-se tomar a decisão do indivíduo de pôr termo à vida como
expressão da sua autonomia. Em parte, tal deve-se ao facto de o procedimento administrativo instituído para
verificar as condições em que a morte assistida é permitida assegurar, numa medida que pela sua
onerosidade e morosidade se pode reputar genericamente aceitável, que o pedido é informado, ponderado e
definitivo, sendo de salientar a este respeito a exigência de sucessiva reiteração e a proteção da liberdade de
revogação. Tudo isto pertence ao domínio estritamente processual do regime, visto que está em causa a
formação da decisão individual de morrer; obedece, pois, ao princípio geral de que os requisitos de validade
para o exercício de um direito deverão ser tanto mais exigentes quanto mais significativas forem as suas
consequências no desenvolvimento da personalidade do titular.
Porém, exige-se ainda que o requerente padeça de uma «doença incurável e fatal» ou de uma «lesão
definitiva de gravidade extrema» e que se encontre, em qualquer dos casos, numa situação de «sofrimento
intolerável». O fundamento genérico destas exigências, se bem vejo as coisas, é no essencial o seguinte: se a
presunção de irracionalidade da decisão de dispor da vida repousa no reconhecimento de que a vida é a
condição empírica absoluta dos demais bens mundanos, que a existência pessoal é radicalmente
indeterminada e que os seres humanos não são omniscientes, há razões fundadas para inverter essa
presunção nas situações – aquelas que o legislador procurou isolar com noções qualificadas de «doença» e
«lesão» − em que se verifica uma redução dramática da qualidade de vida, um esmagamento das
possibilidades existenciais e a irreversibilidade ou definitividade do quadro clínico. É compreensível que para
alguns a vida deixe de ter sentido nestas circunstâncias, e esse facto torna a sua vontade de morrer
suficientemente inteligível para que a lei, invertendo a presunção geral que informa a incriminação da morte
assistida, a tome então como expressão da autodeterminação pessoal. É esta inteligibilidade da decisão que
fundamenta o reconhecimento de um direito a morrer com assistência médica; o legislador entende que
nesses casos a proteção da autonomia basta-se com a garantia de que o pedido é informado, ponderado e
definitivo, devendo então prevalecer a liberdade de escolha do requerente. Trata-se de uma opção
constitucionalmente legítima.
7. Se assim é em termos gerais, a solução concreta adotada no n.º 1 do artigo 2.º do decreto não deixa de
merecer uma objeção constitucional: a exigência de verificação administrativa de uma «situação de sofrimento
intolerável». Creio que este requisito restringe excessivamente o direito ao livre desenvolvimento da
personalidade do «doente», desde logo por ser manifestamente inidóneo como meio de tutela da liberdade
geral de ação na sua dimensão positiva.
Importa distinguir sofrimento de dor. Por ser uma sensação, a dor é seguramente subjetiva, no duplo
sentido de ser um evento que ocorre na consciência do sujeito e que é diretamente cognoscível apenas pelo
sujeito. Porém, nem por isso deixa de ser passível de algum grau de objetivação – presente nos atuais
métodos de diagnóstico e na construção de escalas – e de ser mitigada ou debelada através do tratamento
das suas causas ou da administração de anestésicos. Já o sofrimento pressupõe a capacidade de um sujeito
valorar a sua existência segundo uma norma que interiorizou. Só por comodidade de expressão se pode falar
de «sofrimento físico» ou «sofrimento psicológico» − o sofrimento é por natureza um estado holístico e um
fenómeno de ordem existencial; as suas «causas» são necessariamente mediadas pela reflexão e referidas a
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determinados valores. Daí que a relação entre dor e sofrimento seja contingente: a dor pode ser uma «causa»
determinante de sofrimento, mas pode haver dor sem sofrimento – regularmente testemunhada por
parturientes, desportistas e missionários – e pode haver sofrimento sem dor, nomeadamente «causada» pelo
fim de uma relação valiosa, pela morte de uma pessoa querida ou pela dependência total de terceiros. Não
impugno que o sofrimento possa ser objeto de uma terapêutica própria – no quadro de uma conceção
interdisciplinar de cuidados paliativos −, mas dou por certo que não se trata de algo de tão prosaico como
tratar uma dor de dentes ou uma contratura muscular, sintomáticos de causas objetivamente identificáveis e
suscetíveis de alívio através da administração de fármacos. Parece-me sobretudo que o sofrimento é uma
realidade profundamente subjetiva, incindível da mundividência pessoal e insuscetível de simples
«verificação».
Por tudo isto, não creio que o sofrimento possa ser «verificado» ou «falsificado» por terceiros,
nomeadamente médicos e comissões administrativas, e ainda menos creio que o possa ser a respetiva
«intolerabilidade». A questão pode ser rigorosamente colocada, do ponto de vista constitucional, nos seguintes
termos. Ao impor como condição da antecipação da morte medicamente assistida uma «situação de
sofrimento intolerável» verificada através do procedimento administrativo regulado no decreto, o legislador
restringe a liberdade geral de ação do «doente», na sua dimensão negativa de liberdade de escolha, presume-
se que com a finalidade – a única que se pode reputar legítima – de proteger a sua autodeterminação pessoal,
a dimensão positiva da liberdade. Sucede que confiar a uma instância heterónoma a verificação de um estado
radicalmente subjetivo é um meio inidóneo e até nocivo de prosseguir essa finalidade – é uma forma insidiosa
de atribuir a terceiros a decisão final sobre a razoabilidade do sofrimento relatado pelo «doente», submetendo
a existência deste a valorações fundadas numa norma exterior incompatível com a sua autonomia. A
desadequação é ainda mais evidente – entrando em contradição ostensiva com o fundamento do regime – se
atentarmos em que a lei não se basta com a verificação do sofrimento, antes exigindo a intolerabilidade do
sofrimento. Em termos práticos, do que se trata é de devolver aos especialistas o poder de julgar se uma
pessoa em determinadas condições, nomeadamente uma doença grave e incurável ou uma lesão definitiva de
gravidade extrema, tem boas razões para deixar de viver. Um regime destes gera dois perigos imensos: por
um lado, o de que as condições em que se pode antecipar a morte passem a depender mais das
mundividências dos profissionais de saúde e das orientações da Comissão de Verificação e Avaliação do que
da vontade contingente e das conceções de vida dos requerentes; por outro lado, o de que a verificação
sucessiva da «situação de sofrimento intolerável» nominalize a liberdade do «doente» revogar o pedido no
último momento, atendendo ao carácter de aquisição progressiva dos atos que integram o procedimento,
conjugado com o facto de o médico ser tomado pelo paciente, o mais das vezes, como uma figura de
autoridade. São perigos demasiado graves num regime que procura servir o exercício da liberdade individual a
respeito da vida e da morte.
Admito que a lei possa ser interpretada, à semelhança do que vem ocorrendo na generalidade dos
sistemas que admitem a morte medicamente assistida, de modo a que este requisito seja integralmente
subjetivado, transfigurando-se na mera exigência protocolar de que o requerente, ao formular o pedido para
morrer, se expresse no sentido de que se encontra numa «situação de sofrimento intolerável». Porém, nada
na lei impõe ou mesmo sugere tal interpretação − a expressão «situação» tem uma conotação fortemente
objetiva − e o Tribunal Constitucional, mesmo que se admitisse em abstrato a sua legitimidade para impor uma
interpretação constitucionalmente conforme da lei, não teria forma de garantir, num sistema de controlo que
não admite a queixa constitucional e em que a jurisprudência é pouco acessível e mal estudada, que tal
interpretação fosse perfilhada pelos destinatários. Penso, assim, que a norma constante do n.º 1 do artigo 2.º
do decreto é inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da
Constituição – por outras palavras, por constituir uma restrição excessiva do direito ao livre desenvolvimento
da personalidade.
8. Resta-me fazer algumas observações sobre a posição que fez vencimento.
Tenho as maiores reservas quanto ao modo como se delimitou o objeto do processo, que me parece
descaracterizar a distinção – firmada em décadas de jurisprudência constitucional – entre o conceito
metodológico de norma, matéria que há muito vem ocupando a teoria jurídica, e o conceito funcional de
norma, delimitado tendo em vista a missão específica da justiça constitucional. Mas mesmo dando de barato a
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noção de «norma completa» acolhida na decisão – sem deixar de notar que a questão da individuação das
normas é objeto de uma intensa e antiga controvérsia académica que o Tribunal Constitucional faria bem em
evitar −, não vejo como se possa afirmar que a decisão de inconstitucionalidade incide sobre uma única norma
extraída do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto, nem que «não seria concebível em sede de fiscalização abstrata
sucessiva que (…) a norma pudesse continuar a vigorar expurgada do critério então considerado
inconstitucional.» Atendendo ao facto de a maioria ter votado a inconstitucionalidade por o conceito de «lesão
definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico» ser excessivamente indeterminado, é
evidente que, se se tratasse de fiscalização abstrata sucessiva, manter-se-ia em vigor a norma que permite a
antecipação da morte medicamente assistida em caso de «doença incurável e fatal» − ou, se quisermos ser
totalmente rigorosos, das normas que permitem a antecipação da morte praticada, a primeira, ou ajudada, a
segunda, por profissionais de saúde, em caso de «doença incurável e fatal», desde que verificados os demais
pressupostos legais. Tudo isto teria ainda implicações quanto ao alcance das inconstitucionalidades
consequenciais. É claro que, tratando-se de fiscalização preventiva, o problema é destituído de relevância
prática – segundo o disposto no n.º 1 do artigo 279.º da Constituição, deverá o Presidente da República vetar
o diploma e devolvê-lo à Assembleia da República.
A decisão admite em termos muito restritivos a disponibilidade da vida, afirmando-se que – ao contrário do
que estranhamente se concede poder ser o caso noutras ordens constitucionais, como a alemã e a austríaca,
que não se distinguem no essencial da nossa em matéria de direitos fundamentais, e até no contexto do
sistema regional de proteção de direitos humanos sob a CEDH – «na ordem constitucional portuguesa o apoio
de terceiros à morte, mesmo que autodeterminada, não representa um interesse constitucional positivo». A
exceção a esta ideia de um dever geral «qualificado» de «proteção e promoção» da vida são os «casos em
que uma proibição absoluta da antecipação da morte com apoio de terceiros determinaria a redução da
pessoa que pretende morrer, mas não consegue concretizar essa intenção sem ajuda, a um mero objeto de
tratamentos verdadeiramente não desejados ou, em alternativa, a sua condenação a um sofrimento sem
sentido face ao desfecho inevitável.» Nesses casos – diz-se − «não está em causa uma escolha entre a vida e
a morte», mas entre «um processo de morte longo e sofrido» e «uma morte rápida e tranquila». Para além de
me parecer que esta posição é essencialmente indefensável – pelas razões que aduzi a respeito da ideia geral
de uma ponderação entre a vida como valor objetivo e o direito ao livre desenvolvimento da personalidade −,
não consigo vislumbrar como é que, dadas estas premissas, que aliás se diz consubstanciarem uma «linha de
princípio orientadora» e até uma «diretriz», a permissão da antecipação da morte nos casos de «lesão
definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico» não é inconstitucional por força da
inviolabilidade da vida humana. Com efeito, excluídas as situações de «doença incurável e fatal», decorre da
«diretriz» fixada na decisão que a antecipação da morte só poderia ser admitida em caso de lesão definitiva e
fatal – um conceito claramente menos extenso do que o que consta do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto.
Ao afirmar simultaneamente a necessidade constitucional de uma delimitação restritiva dos casos de
antecipação da morte medicamente assistida – no quadro de um «sistema legal de proteção orientado para a
vida» − e a «insuficiente densificação normativa» do conceito de «lesão definitiva de gravidade extrema»,
dando como exemplos conceitos legais ostensivamente mais extensos (como «lesão incapacitante» ou
«situação de dependência»), creio que a maioria impõe ao legislador um ónus demasiado pesado. Embora
acompanhe a ideia de que o «consenso científico» para o qual a lei remete a concretização do conceito de
«lesão definitiva de gravidade extrema» é perfeitamente espúrio – a decisão sobre a suficiente gravidade da
lesão deve ser informada pela ciência, mas em última análise é de natureza judicativa −, tenho a maior
dificuldade em entrever que outros conceitos o legislador poderia ter usado «sem perder plasticidade». Com
esta decisão de inconstitucionalidade, a aprovação de um regime satisfatório neste domínio, para além dos
casos de doença incurável e fatal – uma delimitação que julgo ser arbitrária −, será um desafio de dificuldade
comparável a fazer passar um camelo pelo buraco de uma agulha. Acresce que o uso de conceitos mais
precisos, ainda que porventura vantajoso no plano da segurança jurídica, pode bem suscitar delicados
problemas de igualdade e de proporcionalidade, que não deixarão de convocar o escrutínio do juiz
constitucional. O legislador será forçado a navegar entre Cila e Caríbdis.
Por fim, creio que com esta decisão o princípio da determinabilidade das leis transforma-se num
significante à deriva na jurisprudência, aliado conveniente na administração de uma justiça constitucional
refugiada no casuísmo. A distância real entre a presente decisão e um juízo de inconstitucionalidade com
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fundamento na violação do n.º 1 do artigo 24.º da Constituição, interpretado como norma que protege a vida
como valor objetivo, é bem mais pequena do que numa primeira análise se poderia supor. A grande diferença,
no meu entender, é que só nesta última conceção – que merece a minha oposição – se pode discernir uma
verdadeira posição de princípio, congruente com a ideia básica, de especial relevância quando se trata de uma
questão fraturante, de que a missão da jurisdição constitucional num regime democrático é a de civilizar o
exercício do poder político através do uso da razão pública. Por isso, considero muito insatisfatória uma
decisão baseada numa conceção largamente impressionista de determinabilidade das leis extraída do éter do
artigo 2.º da Constituição, ademais estranha aos imperativos constitucionais específicos de tipicidade penal e
fiscal, ao regime das restrições de direitos de liberdade e de natureza análoga, e ao domínio essencial da
reserva de lei parlamentar – as três regiões do direito constitucional, no fim de contas, em que o conceito
indeterminado de «determinabilidade» é razoavelmente determinável.
(Gonçalo de Almeida Ribeiro)
A DIVISÃO DE REDAÇÃO.