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Sábado, 13 de agosto de 2022 II Série-B — Número 29
XV LEGISLATURA 1.ª SESSÃO LEGISLATIVA (2022-2023)
S U M Á R I O
Inquérito Parlamentar n.º 2/XV/1.ª (CH):
Comissão Eventual de Inquérito Parlamentar sobre a credibilidade dos Relatórios Anuais de Segurança Interna que o Governo apresenta à Assembleia da República.
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INQUÉRITO PARLAMENTAR N.º 2/XV/1.ª
COMISSÃO EVENTUAL DE INQUÉRITO PARLAMENTAR SOBRE A CREDIBILIDADE DOS
RELATÓRIOS ANUAIS DE SEGURANÇA INTERNA QUE O GOVERNO APRESENTA À ASSEMBLEIA DA
REPÚBLICA
Exposição de motivos
De acordo com o disposto no artigo 7.º, n.º 3, da Lei de Segurança Interna (Lei n.º 53/2008, de 29 de
agosto), tem o Governo a obrigação de apresentar à Assembleia da República, até 31 de março de cada ano,
um relatório sobre a situação do País em matéria de segurança interna, bem como sobre a atividade das
forças e dos serviços de segurança desenvolvida no ano anterior.
É o Gabinete Coordenador de Segurança que procede à recolha, análise e divulgação dos elementos
respeitantes aos crimes participados e demais elementos necessários à elaboração do Relatório Anual de
Segurança Interna (RASI), tarefa essa que é da competência do Secretário-Geral do Sistema de Segurança
Interna, a quem compete igualmente submetê-lo à apreciação da Assembleia da República.
Não é raro constatarmos que o RASI é objeto de alterações metodológicas em anos consecutivos, que
interferem na forma como a atividade criminal é contabilizada e o resultado da atividade operacional é
apresentado.
E nem sempre por razões percetíveis.
Foi o caso do RASI de 2008, que omitiu os dados da evolução da delinquência juvenil, da delinquência
grupal e da criminalidade grave por distrito, que só vieram a ser tornados públicos por via de uma iniciativa de
um partido com representação parlamentar, que forçou a respetiva revelação pelo Secretário-Geral do Sistema
de Segurança Interna1. A falta dos dados da criminalidade grave por distrito foi particularmente sentida, pela
sua importância para orientar a ação policial no combate à criminalidade prevalente. A explicação dada pelo
Governo nada esclareceu, justificando a omissão com uma alegada alteração do critério do local do crime por
parte daquela polícia.
No RASI de 2017 – outro exemplo –, o Governo asseverava uma descida de 8,7% da criminalidade grave e
violenta, mas esse anúncio não convenceu a Juiz Desembargador da Relação de Guimarães, Maria Matos,
que afirmou perentoriamente a existência de manipulação dos dados estatísticos constantes do RASI, com o
intuito de sustentar a referida conclusão2. A manipulação consistiu em classificar como criminalidade geral um
conjunto de crimes de assalto a máquinas Multibanco que deveriam ser classificados como criminalidade
grave, pelo facto de serem cometidos com recurso a explosivos e praticados em associação criminosa,
causando grande alarme social. Acresce que tais crimes tinham registado um aumento de 76%, impossível de
esbater na contabilidade da criminalidade violenta e grave.
A existir manipulação dos resultados apresentados no RASI, ela constitui um meio para atingir um fim, o de
criar uma imagem sustentada de Portugal como um País seguro: qualquer descida da criminalidade,
principalmente da criminalidade grave, é muito importante para a procura turística e para a perceção de
segurança dos portugueses.
Mas não deixa de ser uma ilusão: Portugal é um País em que o respeito pela autoridade policial decresce
na mesma proporção em que decresce a visibilidade dessa autoridade nas ruas das nossas cidades e nas
estradas do nosso País.
E essa visibilidade tem decrescido pela falta de efetivos, ano após ano.
Na GNR, desde 2015 que o efetivo militar desce todos os anos, conforme dados constantes do Plano de
Atividades para 20223 daquela força de segurança:
— Em 2015 – 22 676 efetivos;
— Em 2016 – 22 608 efetivos;
— Em 2017 – 22 423 efetivos;
1 https://www.dn.pt/portugal/cds-acusa-governo-de-esconder-dados-1197272.html 2 https://rr.sapo.pt/noticia/pais/2018/04/07/criminalidade-juiza-diz-que-ha-manipulacao-de-dados-oficiais/110166/ 3 https://www.gnr.pt/InstrumentosGestao/2022/PA_GNR_2022.pdf
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— Em 2018 – 22 345 efetivos;
— Em 2019 – 21 904 efetivos;
— Em 2020 – 21 553 efetivos.
Na PSP, o panorama é ainda pior, como se pode ver dos vários Balanços Sociais4 desta força de
segurança:
— Em 2015 – 20 465 efetivos;
— Em 2016 – 20 580 efetivos;
— Em 2017 – 20 217 efetivos;
— Em 2018 – 20 087 efetivos;
— Em 2019 – 19 662 efetivos;
— Em 2020 – 19 832 efetivos.
Foi com o anterior Governo do PS que a PSP baixou dos 20 000 efetivos com funções policiais, pela
primeira vez, e a GNR vai pelo mesmo caminho, não sendo evidente que os planos quadrianuais de
recrutamento de efetivos para as forças e serviços de segurança, anunciados pelo anterior Ministro da
Administração Interna e replicados pelo atual, constituam uma solução.
Paradoxalmente, durante todo o período temporal atrás referido, à diminuição dos efetivos das forças de
segurança não correspondeu um aumento da criminalidade geral, muito menos, da criminalidade violenta e
grave.
Bem antes pelo contrário:
— A criminalidade geral desce 7,1% de 2015 para 2016, regista uma pequena subida de 3,3% de 2016
para 2017, desce novamente (2,6%) de 2017 para 2018 e regista uma última descida acentuada (11%) de
2019 para 2020;
— A criminalidade violenta e grave, por seu turno, com a exceção de uma pequena subida de 3%, de 2018
para 2019, desce consistentemente durante todo este período.
O RASI apresenta, por vezes, estatísticas dificilmente compreensíveis.
Por exemplo, o RASI de 2018 deu conta de que a criminalidade violenta e grave desceu mais de 40%,
entre 2008 e 2018; no entanto, nesse ano, os homicídios voluntários consumados aumentaram 34,1%: como
explicar este contrassenso?
É difícil aceitar que os números relatados sejam inteiramente fiéis à realidade.
E é difícil porque a realidade que as notícias transmitem em nada se coaduna com o chavão de que
Portugal é o terceiro país mais seguro do mundo, segundo o Global Peace Index: na verdade, e após ser
conhecido o RASI de 2021, passámos para o sexto lugar5.
A realidade é bem diferente dessa mítica classificação, bastando atentar nas notícias que, todos os dias,
nos reportam novos casos de violência:
— Em 7 de março, um jovem morreu após ter sido agredido à porta de uma discoteca, em Famalicão6;
— Em 11 de março, um grupo, com cerca de 50 elementos, envolveu-se em cenas de pancadaria à porta
de uma discoteca no Funchal7;
— Em 21 de março, como é sobejamente conhecido, morreu o agente Fábio Guerra, na sequência de
violentas agressões sofridas quando fazia trabalho policial, acompanhado de três outros polícias, à porta de
um espaço de diversão noturno, em Lisboa;
— Nos últimos nove dias do mês de maio, ocorreu uma vaga de mortes violentas com armas de fogo em
4 https://www.psp.pt/Pages/sobre-nos/documentacao/instrumentos-gestao.aspx?RootFolder=%2FDocuments%2FInstrumentos+de+Gest%C3%A3o%2FBalan%C3%A7o+Social&FolderCTID=0x0120000FA25636A4BBCE4F912DF67BA0D4E3E6&View=%7B69045F72-8C0E-49CD-B399-9F6480502D67%7D 5 https://www.dn.pt/politica/somos-o-3-pais-mais-seguro-diz-costa-mas-ontem-caimos-para-6-14960650.html 6 https://www.jn.pt/justica/ha-aqui-muita-gente-que-esta-a-chorar-pelo-hugo-14662050.html?target=conteudo_fechado 7 https://www.jn.pt/justica/adeptos-do-vitoria-de-guimaraes-em-cena-de-pancadaria-na-madeira-14675800.html
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todo o País, em espaços de diversão noturna ou nas suas imediações8.
O Chega considera imperativo perceber se esta realidade não «passa» para o RASI, ou se nele é retratada
de forma a criar uma perceção diferente da realidade, mais amenizada, para contento dos cidadãos nacionais
e para funcionar como isco para turistas. E, em caso positivo, perceber qual a responsabilidade do Primeiro-
Ministro e do Governo nesse processo.
Um segundo aspeto a ter em conta prende-se com o facto de o RASI transmitir apenas um lado da
realidade da criminalidade em Portugal, o das estatísticas do sistema de justiça criminal.
Sucede que uma parte importante da criminalidade é desconhecida, precisamente porque não é participada
às autoridades policiais: são as chamadas cifras negras, correspondentes à criminalidade não participada.
É do conhecimento comum que os crimes mais graves são aqueles que são mais facilmente relatados, ao
passo que, com os menos graves – como o pequeno furto, por exemplo – passa-se exatamente o contrário.
Por outro lado, a confiança nas autoridades é fator determinante para a apresentação de queixa.
Estatisticamente, Portugal tem uma taxa de criminalidade muito mais baixa do que a da Suécia, não por ter
menos crimes do que aquele país, antes, porque os suecos reportam mais pela confiança que têm nas
autoridades, de que não deixarão de investigar.
As metodologias que permitem colmatar esta insuficiência do sistema de justiça criminal são os inquéritos
de vitimização e os inquéritos de delinquência autorrevelada: só com estes três instrumentos é possível traçar
um panorama fiel da criminalidade que, em cada ano, ocorre em território nacional.
A realização de inquéritos de vitimização, de resto, tem sido um ponto em que os responsáveis pelo
Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT) têm insistido, em várias
ocasiões:
⎯ «Constituiria um instrumento útil para definir as políticas de segurança mais eficazes», observou RUI
PEREIRA a propósito do RASI de 2013, quando era Presidente do OSCOT9;
⎯ António Nunes, Presidente do OSCOT, a propósito do RASI de 2017, defende que «é preciso estudar
melhor a realidade portuguesa», porque o retrato feito pelo relatório anual de segurança «não é completo»,
dado que «só regista a criminalidade participada»10.
Tanto quanto se sabe, em Portugal foram realizados apenas três inquéritos de vitimação, através do
Gabinete de Estudos e Planeamento do Ministério da Justiça (GEPMJ): em 1988 na área metropolitana de
Lisboa, em 1992 em território continental português, e em 1994 à escala nacional, sendo ainda de referir o
inquérito de vitimação relativo ao stalking, no âmbito do projeto «Stalking em Portugal: Prevalência, Impacto e
Intervenção», conduzido pela Universidade do Minho, em 2011.
Os apelos do OSCOT têm caído, portanto, em saco roto, o que equivale a dizer que os sucessivos
Governos se contentam com este palimpsesto que anualmente produzem, em vez de procurarem conhecer a
realidade da criminalidade, de quem a previne e combate e das respetivas vítimas.
Em terceiro lugar – mas não último! –, cumpre referir que em Portugal não existe coincidência entre a
definição de criminalidade violenta prevista no Código de Processo Penal (CPP) – ali denominada
criminalidade violenta e criminalidade especialmente violenta – e a que é utilizada em sede de RASI –
criminalidade violenta e grave –, sendo certo que é com base nesta última que tem sido feita a medição da
criminalidade violenta desde 1998.
A definição de criminalidade violenta (e especialmente violenta) do CPP compreende 32 crimes previstos
no Código Penal, e reflete uma perspetiva jurídico-penal do conceito de criminalidade violenta, ao passo que a
definição de criminalidade violenta e grave adotada para os fins do RASI compreende apenas 25 crimes, nem
todos do Código Penal, e traduz uma vertente sociológica da análise da realidade criminal, para a qual
relevam apenas o sentimento de insegurança e alarme social provocado pelos crimes.
Em consequência destas diferenças de objeto quanto ao retrato da criminalidade grave, em qualquer RASI
que se queira analisar haverá um conjunto substancial de crimes que ficam fora do radar das estatísticas do
8 https://www.cmjornal.pt/portugal/detalhe/violencia-na-noite-faz-5-mortos-em-9-dias-no-pais 9 https://www.noticiasaominuto.com/pais/196060/observatorio-de-seguranca-defende-inquerito-de-vitimizacao 10 V. nota 2.
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sistema de justiça criminal, assim fomentando uma imagem de descida sustentada da criminalidade grave que
tudo tem de artificial e forçada – precisamente aquilo que o Chega pretende expor publicamente através da
presente comissão eventual de inquérito.
Esta definição de criminalidade violenta adotada para o RASI e a respetiva metodologia de medição
aplicam-se, inalteradas, desde 1998, salvo pequenos ajustes como, por exemplo, os decorrentes da
implementação da legislação de combate ao terrorismo, ou da desagregação das várias categorias do roubo.
Assim:
⎯ Considerando que compete ao Parlamento escrutinar os atos do Governo e da Administração e que as
Comissões Parlamentares de Inquérito são o instrumento mais adequado para esse fim;
⎯ Considerando que os Deputados têm o dever de procurar a verdade e os portugueses têm o direito de a
conhecer;
⎯ Considerando que o escrutínio dos atos do Governo e da Administração é um direito inalienável e um
dever dos Deputados;
Os Deputados abaixo assinados do Grupo Parlamentar do Chega requerem, ao abrigo do disposto na
alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 5/93, de 1 de março, republicada pela Lei n.º 15/2007, de 3 de abril, a
constituição imediata de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, que deverá funcionar pelo prazo de 120
dias, com o seguinte objeto:
— Averiguar a forma como o Secretário-Geral do Sistema de Segurança Interna concretiza a recolha,
análise e divulgação dos elementos respeitantes aos crimes participados e de quaisquer outros elementos
necessários à elaboração do relatório anual de segurança interna;
— Averiguar a forma como é feito o tratamento dos dados comunicados pelos órgãos de polícia criminal,
relativos às ocorrências que contabilizaram no decurso da sua atividade;
— Averiguar a adequação do enquadramento dos vários fenómenos criminosos em cada uma das grandes
categorias criminais;
— Conferir, relativamente aos relatórios referentes aos últimos 6 anos, se os valores manifestados
correspondem aos que foram comunicados pelos vários órgãos de polícia criminal.
Palácio de São Bento, 28 de julho de 2022.
Os Deputados do CH: André Ventura — Bruno Nunes — Diogo Pacheco de Amorim — Filipe Melo —
Gabriel Mithá Ribeiro — Jorge Galveias — Pedro dos Santos Frazão — Pedro Pessanha — Pedro Pinto —
Rita Matias — Rui Afonso — Rui Paulo Sousa.
A DIVISÃO DE REDAÇÃO.