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II SÉRIE-B — NÚMERO 48

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Em síntese: acautelada a possibilidade de, nos termos no novo n.º 2 do artigo 178.º, o Ministério Público

desencadear oficiosamente o processo em nome do interesse da vítima, a manutenção da natureza

semipública destes crimes de coação sexual, violação e abuso sexual de pessoa incapaz de resistência

praticados contra vítimas maiores de idade parece a única solução coerente com o recorte dado ao bem

jurídico que é a liberdade sexual e com o entendimento de que constitui inaceitável forma de vitimização

secundária a imposição de um processo criminal indesejado por uma vítima de um destes crimes que tão

flagrantemente contendem com a sua intimidade.

Na doutrina portuguesa, este é o entendimento sustentado nomeadamente por Pedro Caeiro, muito crítico

quanto «à expropriação de direitos da vítima», com o Estado a arrogar-se «o direito de se substituir às vítimas

em decisões com alto potencial lesivo para as respetivas vidas». O autor pronuncia-se expressamente contra

projetos de lei que «propõem certas soluções que representam objetivamente uma perda de direitos por parte

da vítima, na medida em que – no intuito de a protegerem contra si própria – lhe retiram o poder de decidir

sobre a instauração do procedimento penal nos crimes de Coação sexual e de Violação (…). Subjacente a

estas soluções está a pressuposição – fundada – de que a vítima destes crimes se encontra muitas vezes

fragilizada, quando não pressionada ou coagida, e que, portanto, o Estado não deve deixar totalmente nas

suas mãos direitos cujo exercício, em último termo, pode impedir a administração da justiça e ser prejudicial

para a própria. Todavia, a forma como o Estado pretende arrogar-se o direito de se substituir às vítimas em

decisões com alto potencial lesivo para as respetivas vidas contrasta flagrantemente com o discurso de

empoderamento das mesmas e de promoção da sua autonomia. Na verdade, estas propostas não nos

parecem necessárias, nem legítimas». Por outro lado, sob o enfoque dos compromissos internacionais e da

avaliação a que a legislação portuguesa é objeto no âmbito do GREVIO, sublinha-se que «parece seguro que

a lei portuguesa cumpre perfeitamente o segmento do artigo 55.º, n.º 1, da Convenção de Istambul, na parte

em que impõe aos Estados o dever de garantir que o procedimento pelos crimes de Coação sexual e de

Violação não dependa inteiramente da queixa da vítima», na medida em que, por força do novo n.º 2 do artigo

178.º do Código Penal, «a vítima nunca tem, em caso algum, um poder absoluto de impedir o início de um

procedimento penal por estes crimes, e é precisamente isso que a Convenção pretende» – aduzindo-se

enfaticamente que «a transformação da Coação Sexual e da Violação em crimes públicos não só não é

exigida pelo direito internacional como criará desnecessariamente casos de vitimização secundária, que

obrigarão a vítima a participar, eventualmente muitos anos depois dos factos, de um procedimento formal que

ela não deseja, e, no limite, a iniciar procedimentos penais em casos em que a própria vítima – ao invés do

Ministério Público – não se autorrepresenta como tal»6.

Já se considera pertinente, porém, o apelo feito pelos peticionários no sentido de se reforçar a proteção

das vítimas de crimes de violação, devendo ser ponderadas eventuais alterações legislativas no sentido de se

alargar o prazo durante o qual a queixa pode ser apresentada (o prazo de seis meses pode ser exíguo face às

especificidades da vitimização sexual); facilitando o acesso ao direito (nomeadamente através da garantia de

aconselhamento jurídico célere); revisitando a norma penal incriminadora para avaliar a necessidade de

colmatar lacunas de punibilidade.

Nos termos antes expostos, a relatora signatária do presente relatório entende que:

1. Acautelada a possibilidade de, nos termos no novo n.º 2 do artigo 178.º, o Ministério Público

desencadear oficiosamente o processo em nome do interesse da vítima, a manutenção da natureza

semipública destes crimes de coação sexual, violação e abuso sexual de pessoa incapaz de resistência

parece a única solução coerente com o recorte dado ao bem jurídico que é a liberdade sexual e com o

entendimento de que constitui inaceitável forma de vitimização secundária a imposição de um processo

criminal indesejado por uma vítima de um destes crimes que tão flagrantemente contendem com a sua

intimidade.

2. Devem ser ponderadas eventuais alterações legislativas no sentido de se reforçar a proteção das

vítimas de crimes de violação, nomeadamente (i) alargando o prazo durante o qual a queixa pode ser

apresentada (o prazo de seis meses pode ser exíguo face às especificidades da vitimização sexual); (ii)

6 Cfr. Pedro CAEIRO, Observações sobre a projectada reforma do regime dos crimes sexuais e do crime de violência doméstica, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 29, n.º 3, 2019, p. 668 ss (a publicação tem na base as observações enviadas ao Grupo de Trabalho — Alterações Legislativas — Crimes de Perseguição e Violência Doméstica, da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, da Assembleia da República, como complemento da audição que teve lugar a 31 de Maio de 2019.

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