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Quarta-feira, 26 de Abril de 1989

II Série-C — Número 20

DIÁRIO

da Assembleia da República

V LEGISLATURA

2.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1988-1989)

SUMÁRIO

Início das comemorações do 15.° aniversário do 25 de Abril:

Palestra pelo Prof. Agostinho da Silva sobre «O 25

de Abril e o futuro»............................ 478

Intervenções de um deputado de cada um dos partidos

com representação na Assembleia da República.... 482

Generalização do debate......................... 488

Constituição da mesa:

Sr. Presidente da Assembleia da República (Vítor Crespo).

Sr. Prof. Agostinho da Silva. Sr. Deputado Reinaldo Gomes (PSD). Sr. Deputado Carlos Coelho (PSD). Sr. Deputado José Apolinário (PS). Sr. Deputado António Filipe (PCP). Sr.* Deputada Isabel Espada (PRD). Sr. Deputado Narana Coissoró (CDS). Sr.* Deputada Maria Santos (Os Verdes).

Lista de oradores:

Sr. Presidente da Assembleia da República (Vítor Crespo).

Sr. Prof. Agostinho da Silva.

Sr. Deputado Carlos Coelho (PSD).

Sr. Deputado José Apolinário (PS).

Sr. Deputado António Filipe (PCP).

Sr.* Deputada Isabel Espada (PRD).

Sr. Deputado Narana Coissoró (CDS).

Sr. Dr. Manuel Monteiro.

Sr.* Deputada Maria Santos (Os Verdes).

Sr. António Sérgio Pinheiro.

Sr. Miguel Fontes.

Sr.* Deputada Natália Correia (PRD). Sr. António José Seguro. Sr. Nicolau Fernandes.

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O Sr. Presidente: — Declaro aberta a reunião. Eram 17 horas e 40 minutos.

Em primeiro lugar, quero cumprimentar os jovens que nos deram o prazer de estar connosco neste princípio das comemorações do 25 de Abril (15.° aniversário) e endereçar uma palavra de muita fraternidade, muita amizade, e um abraço amigo ao Sr. Prof. Agostinho da Silva, que nos vai dirigir a palavra hoje. Vai ser, com certeza, uma intervenção altamente estimulante, que irá suscitar muitas perguntas e muitas questões na parte final, a que o Sr. Prof. Agostinho da Silva, como sempre, está disponível para responder e comentar.

Quero deixar aqui os agradecimentos da Assembleia da República pela disponibilidade do Sr. Prof. Agostinho da Silva, os agradecimentos aos nossos convidados que quiserem hoje acompanhar-nos nesta sessão e que nos querem, porventura, acompanhar na sessão de amanhã. Particularmente cumprimento os jovens que vivem num momento alto da nossa história que são as comemorações do 25 de Abril.

Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Prof. Agostinho da Silva.

Aplausos gerais.

O Sr. Prof. Agostinho da Silva: — Parece que posso começar por citar Napoleão, que dizia, ou se inventou que dizia, que toda a demora é uma derrota.

Vamos começar mais ou menos à hora marcada e devo dizer-vos que venho acostumado do Brasil em que os horários declaram às pessoas que nunca a coisa começa antes dessa hora. Porém, hoje começamos a horas muito razoáveis.

Parece que tenho meia hora para me dirigir sobretudo aos jovens. Tenho o maior respeito e a maior veneração por todas as pessoas que são jovens, mas que já são mais antigas no planeta do que os jovens propriamente ditos, e é a eles que quero, sobretudo, dirigir--me para lhes dizer que, para mim, este dia é talvez o mais fundamental, o mais importante, que eu passei desde que voltei a Portugal, exactamente porque foi o acontecimento extraordinário que hoje se comemora que permite que os jovens, sobretudo eles, estejam sentados nessas cadeiras em que — e por isso a sala tem esse nome, Sala do Senado — se sentavam habitualmente os velhos.

Esta revolução, ao pôr os jovens como senadores, como se fosse os verdadeiros representantes do País com experiência, leva imediatamente a uma reflexão, que é a de que talvez todo o jovem que nasce esteja menos orientado para o passado do que para o futuro. A experiência que têm os velhos é sempre de um presente que vai decorrendo ou de um passado que já foi. A experiência dos jovens, que está em muitos deles ainda com pouco consciência própria, é uma experiência já do futuro. Assim, é muito bom que eles estejam aqui e é muito bom que discutam amplamente tudo o que se disser nesta sala.

E já vos digo — dirijo-me novamente aos jovens — que, se o tempo que temos não chegar para toda a discussão e para todas as perguntas, estou pronto a reunir-me com qualquer número deles para que a conversa continue, seja onde for, haja ou não instalações. Nas

Filipinas fez-se uma vez uma experiência de criar escolas nas esquinas das ruas, pois eu estou pronto a isso, a criar assembleias de encontro na esquina da rua, se não houver mais nenhuma instalação.

Vão surgir muitos problemas no Mundo e vão surgir muitos problemas em Portugal, e é bom que, de vez em quando, nos possamos encontrar, possamos ver o que é que se passa e possamos encontrar um caminho para o futuro, o que nem sempre vai ser fácil. Pelo contrário, vai ser sempre muito complicado, com várias opiniões se encontrando, porque estamos, em todo o Mundo e aqui, naquilo que se chama um período de transição.

De facto, para mim, a data 25 de Abril é, por um lado, uma data universal e, por outro lado, uma data local, uma data nacional.

Permitir-me-ei começar pela data internacional. Até hoje, apesar de todos termos estudado naquele martírio, às vezes produtivo, que se chama escola que houve uma idade clássica antiga, uma idade moderna e uma idade contemporânea e toda essa coisa, realmente, naquilo que vale até hoje no Mundo, só tivemos duas idades, sendo a primeira uma idade de plena liberdade e de plena fraternidade, quando a Humanidade, muito primitiva, de que às vezes ainda encontram vestígios, por exemplo, nalguns grupos de índios do Brasil ou da América do Sul, andava colhendo alimento pelo Mundo. Não havia nenhum lugar de estabilidade, havia apenas uma grande área que um pequeno grupo podia percorrer, de modo que sempre encontrava alimento. E esse grupo, ao que parece, era de uma grande fraternidade e de uma grande liberdade.

Simplesmente, houve, como é natural, um grande desenvolvimento demográfico. Aquela menina de que eu gosto muito — ou de cujo esqueleto gosto muito, porque é a única coisa que dela resta —, chamada Lucy, que deve ter morrido há uns 4 500 000 anos, fazia, naturalmente, parte desses grupos de liberdade, de plenitude e de fraternidade entre todos os membros do grupo.

Depois houve o desenvolvimento demográfico e, naturalmente, o terreno começou a ser escasso, teve que se limitar. Quando um homem se pôs diante da árvore a que os outros costumavam vir e declarou que aquela árvore era dele, que ninguém mais podia colher aquele fruto, podemos dizer que nesse momento começou aquilo que podemos chamar a nossa civilização actual ou, se quiserem, a nossa cultura actual, no significado que cultura tem em antropologia.

Naquela altura começaram os nossos hábitos, realmente tão poderosos que, muitas vezes, quando nos queixamos da natureza humana, apenas nos estamos queixando dos hábitos que um determinado regime nos impôs durante séculos e séculos, durante milhares e milhares de anos.

E não podia ter sido de outra maneira. Com aquela economia primitiva, com aquele vaguear de terra em terra e com aqueles frutos ali à disposição, não podia ter havido, de maneira nenhuma, o desenvolvimento que tem hoje o Mundo, não se podia ter avançado.

Foi preciso, naturalmente, fazer muito sacrifício, adoptar uma economia que é uma economia realmente de caça e de guerra, em que se procura acumular capital de qualquer modo, sabendo-se que, teoricamente,

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esse capital é para investimento e para progresso, mas trazendo consigo muitas dificuldades e muitos conflitos, que dificilmente se poderão ir superando.

Por outro lado, nem se podia falar de escolaridade para essa gente. Nesses grupos primitivos o sucesso escolar era pleno, e o sucesso humano mais pleno ainda, porque, quando hoje falamos do insucesso escolar, de facto, trata-se apenas de uma faixa, de um sector, de uma fatia de insucesso humano, é o insucesso humano observado na classe dos jovens ou na classe das crianças.

Por outro lado, foi preciso que se substituísse a essa fraternidade, a essa camaradagem plena de todos os homens do grupo, uma direcção autoritária, vamos dizer, alguma coisa que demarcasse os rumos e obrigasse todos os membros do grupo a cumprir aquilo que deviam. Mas alguma coisa de mais grave se passou, e é talvez isso que hoje pesa mais sobre todos nós: é que, em lugar de se esperar que cada dia fosse um dia plenamente outro, fosse alguma coisa que parecia inventada na hora, fosse uma criatividade continua de um ser, a que cada um dava o nome que lhe parecia mais conveniente, que estava mais de acordo com a sua maneira de existir e com a sua maneira de viver a vida, esse mundo, em lugar de ser alguma coisa sempre nova em cada dia que raiava, passou a ser, pelo contrário, alguma coisa que leva a maior parte dos homens a cumprir as tarefas que já cumpriram na véspera, que foram ensinados a cumprir, não vendo, de nenhum modo, a possibilidade de ser livres.

Então, para mim, o que parece agora já como sinal é que essa cultura ou essa civilização pode dar lugar a outra, pelas coisas que vão aparecendo no mundo e que, de vez em quando, parecem catástrofes, por exemplo, o desemprego; mas o facto é que há gente que não vai estar desempregada coisa nenhuma, o que acontece é que já não existem os empregos em que eles se podiam pendurar, como se pendura a roupa nos cabides, essa gente o que tem é tempo livre.

Está aparecendo no Mundo o inicio das gerações que vão ter diante de si um tempo livre. E um tempo livre para quê? Um tempo livre, não para aprenderem as receitas que nós todos aprendemos para podermos viver a vida, não tomando cuidado em entender bem e nos prepararmos para que, tendo-nos a vida sido dada de graça, temos de passar o resto dela ganhando-a e com que sacrifício! Então essa gente, que vai ter o sustento garantido, essa gente não vai ser deixada ao abandono e á fome. A economia, que até hoje tem sido, fundamentalmente, uma economia de produzir, vai ser uma economia de distribuir. E vejam lá quantos hábitos nossos têm de mudar quando pensamos que aquilo que produzimos é para ser vendido, é preciso ser dado a troco de qualquer coisa, e amanha vamos ter isso plenamente distribuído a todos.

Por outro lado, cada vez menos ao gosto de governos autoritários e cada vez mais ao gosto de que os governos sejam coordenadores de vontades de grupo ou de vontades individuais, cada um gosta de ver, de algum modo, reflectida nos governos — embora pensando que eles têm que atender a muitas vontades diferentes e a muitos diferentes interesses — alguma coisa do que é reflectido e cumprido. Detesta todo o governo que parece ser inteiramente contra ele, que parece estar governando apenas para o esmagar, apenas para o

levar a morrer sem nunca ter vivido plenamente, sem nunca ter sido, até ao fim, aquilo que nasceu e aquilo para que nasceu.

E, por outro lado, quanto ao que podemos chamar a metafísica, a visão que se pode ter daquela vida que não é garantida pela matemática — mesmo assim falível —, que não é garantida por aquilo a que chamamos a ciência, há gente que está procurando uma existência em que, de novo, o mundo seja imprevisível. E, quando pensamos nisto e olhamos o que foi fundamental na cultura portuguesa da Idade Média, até D. Dinis ou, como um esforço mais, até ao 1.° quartel do século xvi, vamos reparar no que se passa nas ilhas adjacentes, ou vamos reparar no que se passa, ainda com mais força, talvez com menos folclore, em muitas regiões do Brasil, e vemos que essa gente está apaixonada por que apareça para eles todos, para que brote dentro deles, mais do que lhes apareça de fora, uma metafísica que seja do imprevisível.

E, coisa curiosa, quando hoje se pensa na física, no princípio de Heisenberg, é que, depois de estudarmos muito bem como se vai produzir um fenómeno, esse fenómeno aparece sempre de uma forma diversa daquela que se tinha previsto; nessa altura começamos a ter a confiança em que, de facto, o Mundo é imprevisível. E alguma coisa de mais extraordinário ainda é perguntarmos se a nossa presença no fenómeno não faz que ele seja diferente, se não há em nós uma criatividade tão poderosa que, sem a podermos demarcar nitidamente por fórmulas matemáticas, essa nossa presença criativa vai modificar o fenómeno e faz com que ele apareça, o mais possível, com uma beleza que de novo se apresenta diante de nós, tendo estado séculos e séculos oculta.

O aparecimento dessa gente com tempo livre e todos os outros sintomas que encontramos pelo Mundo dão-nos a ideia de que essa cultura de séculos e séculos, em que estamos, mais do que criadores, prisioneiros, vai-se transformar, o que vai dar muito trabalho, vai ser uma navegação extremamente difícil junto da qual as duas navegações portuguesas — quer a navegação por mar, que é a que sempre se comemora, quer a mais extraordinária, a navegação por terra, que levou os limites do Brasil quase até aos Andes — não vão ser nada, quando comparadas com a navegação que nós todos temos de fazer.

Quando perguntamos onde estão os navios e quando perguntamos onde estão os marinheiros, temos de nos voltar realmente para Portugal, para as proezas extraordinárias que ele fez de criar um país que, na realidade, parecia impossível de criar e de o pôr como um cais de partida para a Europa, para o Mundo — já modificou o Mundo por duas vezes, provavelmente, modificará pela terceira, e modificá-lo-á num sentido que, provavelmente, vai ultrapassar a Europa e tudo o que a Europa espalhou pelo Mundo.

Reparai: afinal, toda a Europa se tem desenvolvido sobre dois princípios gregos, que se inventaram numa esquina — e, por isso, torno a falar na possibilidade de nos encontrarmos nas esquinas, talvez venha a ser produtivo, como foi para eles —, onde um filósofo interrogava gente que passava e discutia com os jovens, exactamente (e fez muito bem em discutir, embora isso,

por outro )ado, o tivesse levado à execução pela cicuta),

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e outro traçava riscos no chão e construía a geometria, que deu toda a matemática moderna e possibilitou toda a ciência e toda a técnica de que nos servimos todos.

Alguma coisa, porém, ficou de parte, mais importante que a filosofia, mais importante que a geometria: aquele ideal de vida que o Grego tinha e que ele, por não o poder realizar na Terra, projectava num céu de poetas, num céu imaginário, povoado de deuses e de deusas que faziam o que queriam, com todo o tempo livre, pois que não havia tempo para eles, e todo o espaço percorrivel, porque na realidade, o espaço era apenas para os humanos que o imaginavam ou viam, não para eles próprios, e que Camões recorda aos Portugueses.

Precisamos todos de rever e reler Os Lusíadas de outra maneira, menos preocupados do que estivemos durante anos e anos em dividir as orações, que, provavelmente, o próprio Camões não sabia dividir. Temos de os ver como um poema que põe os Portugueses diante da proeza extraordinária que foi a da construção do País, que os põe perante a outra proeza extraordinária que foi a de levar os homens a terem conhecimento de um mundo no qual todos os continentes, que se julgavam soberanos, eram apenas ilhas de um imenso arquipélago, muito menos grande, no entanto, do que o mar que os rodeava. Apenas, talvez, uma terça parte do Mundo é dessas ilhas, o resto é mar e mar uno, que o Portugês desvendou e que devia ser o seu verdadeiro império.

O Português não nasceu para ter impérios de terra; o império do Oriente faliu, e faliu porque felizmente, o Português não tinha sentido administrativo.

Quando hoje muitos historiadores lamentam que os Portugueses não tenham ganho dinheiro com o império do Oriente, esquecem-se de que isso não era o mais importante para o Português. O mais importante para o Português era a aventura, o mais importante era o sonho e, depois de ter percorrido aquelas terras todas, a possibilidade de, bem abrigado num lugarzinho de Almada, escrever um dos livros mais extraordinários que existem no Mundo. E quantos outros teríamos se eles soubessem escrever como escrevia o Fernão Mendes Pinto? Lembremo-nos de todos os Gil Eanes que houve, de todos aqueles que, logo que podiam, fugiam ao serviço de el-rei, que os tinha enviado por mar e os tinha alimentado e lhes pagava soldo, fugiam ao serviço para correr a sua aventura individual.

Com o Brasil sucedeu diferente. O Brasil não foi uma falência, o Brasil aguentou-se. Os Portugueses, que não tinham capital de maneio nem nunca pensaram nisso para ir para o Oriente, encontraram no ouro de Minas Gerais o suficiente para que o império se aguentasse até à altura de ele ter a sua própria vida. Vida difícil, vida complicada, mas fazendo-se ao mesmo tempo uma política externa, ao que me parece, de toda a segurança, que garante ao mundo que, mesmo que por uma catástrofe extraordinária Portugal desaparecesse, o essencial da cultura portuguesa triunfaria, a começar pelo seu triunfo na América.

Quando falamos no problema ibérico, pensamos sempre que ê um problema que. vai daqui até à Catalunha, mas não é; é todo o problema das duas Ibérias do mundo: a de cá, tão pequena, apesar dos grandes feitos que praticou, e a de lá, toda aquela imensa península que vai do México ao cabo Horn e que só o

Brasil, só ele, tem lugar para que todos os países da

Europa ali possam caber e para que nós ainda, entre eles, tenhamos espaço para passear, contemplar e sonhar um mundo cada vez melhor.

Então parece-nos que, ao passo que essa Grécia, com a sua filosofia e a sua geometria, fez a Europa, lançou-a no Mundo e deu o que deu, apesar de todos os defeitos, Portugal teve uma sorte que a Grécia não teve: conseguiu um herdeiro. A Grécia nunca teve um Brasil, mas Portugal, tem um Brasil, e pode ser que aí haja as condições suficientes e plenas para que os Portugueses — porque o fundamental do Brasil é ainda a cultura portuguesa, apesar de todas as suas adjacências —, todos os portugueses, possam, por aí, ir ao Mundo.

Não se trata de fundar nenhum império, como tanta gente julga quando fala de António Vieira; trata-se de supor, de saber e de crer, acreditando e tendo vontade disso, que a cultura portuguesa é a tal da economia de convivência, que cada vez terá maior peso no Mundo, será cada vez mais poderosa no Mundo!...

Sonho com o dia em que todos os economistas tiverem que fechar os seus escritórios .. .

Risos.

... porque já não é preciso fazer a economia de coisa alguma, ou em que todos os médicos fechem os consultórios, porque a saúde venceu de tal maneira que as pessoas só quando forem atropeladas ou tiverem qualquer coisa dessa espécie é que terão de recorrer a qualquer espécie de medicina, e que haja por aí uma abertura enorme para que os homens se exprimam realmente naquilo que são.

Todos nós somos poetas, mas poetas limitados pela nossa vida, pelos nossos acidentes físicos; porém, temos aquela centelha da poesia extraordinária que faz-com que hoje todos os físicos declarem que o que há de fundamental no Mundo é alguma coisa a que nem podem dar o nome de «incriado criador», aquela coisa milagrosa e extraordinária de que ninguém pode sequer sonhar ver ou contemplar o aparecimento, alguma coisa indefenível que, nunca tenha sido criada ela própria, e a que cada um dará o nome que quiser, é, ela própria, plenamente criadora.

É essa centelha que tem de brilhar em nós, todos nós temos de cumprir o nosso destino de poetas, de criadores, seja do que for. E eu creio que ainda o máximo que podemos ver ao longe não é o criarmos poemas, criarmos esculturas ou criarmos teorias físicas ou místicas, é criarmos, cada um de nós, poemas, e, sendo poemas, sermos tão contagiosos que o Mundo não precise de escrever, nem de esculpir, nem de fazer matemática nenhuma, para que esse ambiente de poesia cubra o Mundo.

E, de todas as nações que me parecem que poderão ir por essa carreira, lembro-me de Portugal, se se conseguir re-instaurar, se se conseguir restituir a si próprio, depois de ter sabido transportar a Europa ao Mundo, no que foi entendido.

A Europa não podia ter chegado às três quartas partes do Mundo, que desconhecia, se não tivesse sido a navegação dos Portugueses, de Portugal, que, efectivamente, se espalhou pelo Mundo. Mas, agora não, para que continuemos sempre com a filosofia e com a geometria.

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Felizmente, a matemática está falindo, ou seja, porque ninguém mediu a cauda do Pi, aquilo que ficou, para apenas nós aproveitarmos um bocadinho e para fazermos facilmente os nossos cálculos, ou porque ainda não conseguimos encontrar, felizmente, a fórmula matemática do acaso, e isso serve muito bem para mascarar a nossa ignorância das leis profundas do Mundo, quando dizemos que por acaso nos sucedeu isto ou aquilo, por acaso encontrámos um amigo com quem queríamos falar ou por acaso escapámos de um grande perigo. Se tivéssemos essa fórmula matemática, saberíamos que nada foi por acaso, ou então chocaríamos de frente, plenamente, com essa ideia de que o importante no Mundo não é aquilo que se chama de determinismo, não é aquilo que se chama fatalidade, não é aquilo que se chama de o «ter de ser», é, efectivamente, o inventar a cada momento uma vida que valha a pena viver.

E, se essa criatividade for acentuada dentro de nós, efectivamente lá chegaremos, e ninguém se esqueça de que foi o povo português — reparem, um povo de analfabetos, de gente que, felizmente, tinha escapado a isso que se chama a instrução, ou, ainda pior, que se chama a educação, quando quase sempre é deseducação e plena —, foi esse povo o primeiro do Mundo a entender que o princípio de Heisenberg iria vigorar. Só séculos depois é que se estabeleceu isso no domínio da física, mas ele, no tal curso do pensamento, punha-o no domínio do realizável, no domínio daquilo que devia ser um dia. E o que devia ser um dia? O que sabeis: a coroação da criança como imperador do Mundo. E não é só da criança pequena, não, é daquela criança que nós matamos, que nunca deixamos ser conhecida pelo adulto.

O mais grave que toda essa educação faz em nós é que deixamos para trás a criança, com imensas saudades dela, mas sem possibilidade alguma de a recuperar. Talvez um dia, no Mundo, possamos avançar, possamos ser adultos sem ter eliminado a criança que havia dentro de nós, e é essa criança, paradoxalmente presente no adulto, que um dia tem de ser realmente o imperador do Mundo, sendo de tal maneira perfeita que não exerça sobre ninguém nem sobre alguma coisa qualquer espécie de império.

A outra ambição dos analfabetos portugueses é que um dia a vida quotidiana seria gratuita. Podia-se passar na boda do Espírito Santo e comer à vontade, sem se ter de pagar nem apresentar sequer uma licença do governo para se poder comer sopa ou bife, inteiramente à vontade, inteiramente gratuito. É evidente que não se trata só de comer —coisa que seria de tão boa prática para tanta gente da nossa terra e na terra do Mundo—, tem de se ter casa, tem de se ter roupa, tem de se ter calçado, tem de se ter toda a possibilidade de se não perder nenhum dos fenómenos que queiramos adoptar na vida.

Ainda por cima, esses portugueses iam à cadeia da terra e abriam as portas de par em par, coisa que o 25 de Abril devia ter feito a toda a gente. Muita gente no Mundo é vítima de revoluções, costuma-se dizer, como, por exemplo, às vezes, as cozinheiras são vítimas de golpes quando estão a preparar as batatas. Isso acontece, mas é uma pena que se não tenha tentado, que se não tenha dado a possibilidade de se reaver esse costume dos portugueses antigos de abrir as cadeias.

Mas como é? Soltar aqueles que se consideram criminosos? É evidente que não! Quando, no nosso tempo, se fala em cadeias abertas, refere-se àquelas casas onde o criminoso que o é, por um defeito genético, por culpa do DNA, digamos, ou por culpa das circunstâncias, se posssa reaver a si próprio e possa ser o poeta que tem de ser para si, para os outros e para o Mundo. Então o 25 de Abril ia ao mesmo tempo reparar situações.

O 25 de Abril é uma data para todo o Mundo, porque todo ele está a passar dessa nossa cultura para outra, que levará séculos e séculos a chegar, nem podemos fazer qualquer cálculo. Só ilimitado é o nosso sonho e, ao mesmo tempo, é preciso é que cada homem sonhe plenamente aquilo que lhe parece desejável no Mundo e, simultaneamente, seja capaz de toda a objectividade da matemática, na medida em que esta é ou pode ser objectiva para isto ou aquilo que queremos calcular.

Por outro lado, essa ligação entre o sonho e a objectividade, a audácia para todo o passo e o cuidado com cada passo, seguindo o exemplo daqueles homens que foram de caravela, milha a milha, légua a légua, ao longo de uma costa, lançando-se ao golfão, passando às terras de ocidente —América do Sul, América do Norte e talvez, segundo parece, à América Central—, e foram, no entanto, olhando isso e navegando sempre com a maior atenção aos instrumentos científicos, àquilo a que se chamava os instrumentos matemáticos, nunca se entregando inteiramente à sua audácia e imaginação, mas levando ao mesmo tempo tudo quanto era preciso de cálculo, de prudência e de gosto de observação, porque nisso se tinha educado, e muito, o Português.

Reparem, foram os analfabetos portugueses, porque olhavam o Mundo em cada um dos seus pormenores e o tomavam no seu conjunto, que conseguiram abater o império de Aristóteles; não me refiro à metafísica, mas sim à física de Aristóteles, e fizeram surgir toda a ciência moderna. Se hoje a Europa ou a América são o que são culturalmente, uma vontade no produtivo Japão, se toda essa gente se lançou nisso, se lançou a esse trabalho de, ao mesmo tempo, ter um sonho e objectividade, é isso o que se tem de fazer para que o mundo futuro possa sorrir.

De nós todos, que somos os mais antigos do planeta, certamente também, porque temos experiência de alguma coisa que foi importante, temos experiência de períodos que se passaram em Portugal. O 25 de Abril terminou —e também para todo o Mundo— com alguma coisa que era dispensável no Mundo.

Sei pouco de história, mas sei ainda menos do que se passa no interior da história. Como é a máquina da história? Quando condenamos tal ou tal acontecimento, sabemos se ele foi ou não produtivo, mas não sabemos, na realidade, o porquê nem o para quê. Então o que apenas podemos dizer é que Portugal passou por um período explicável, talvez. Talvez! O período a que chamamos a ditadura e que termina exactamente a 25 de Abril talvez ele venha na altura em que o príncipe D. João embarca para o Brasil e o único remédio para as pessoas que pensavam mais longe, que estavam mais dentro do futuro do que a maioria dos habitantes de Portugal, foi embarcar com ele e irem fazer no Rio de Janeiro, em São Paulo ou na Baía aquilo que não tinham podido realizar em Portuga).

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Portanto, é preciso que se vá para isso como eles foram, com sonho e com objectividade, e, embora haja toda a experiência dos mais antigos, de que é preciso tomar conta, que é preciso ter dentro de nós, é preciso que também haja toda a imaginação da juventude, que ande o mais depressa possível e se veja livre de ser plenamente científica, não desprezando em nada, em coisa alguma, aquilo que é o domínio da ciência, mas veja que isso não a impede de ser poeta, como efectivamente deve ser.

Esperemos que isso se faça, e esperemos que se faça, não pela aceitação de uma palavra ou de um homem, como se ele fosse um profeta seguro, mas pela discussão e pela crítica contínuas daquilo que ele diz para ver se realmente é assim, por que julgamos que, quando eles regressavam da viagem, eram criticados pelo Infante e pelos seus companheiros, por exemplo, pelo que tinham ou não feito, e só assim é que se pode avançar.

Esperemos, portanto, que os jovens que estão nesta sessão e que vão escutar todos os oradores que se seguem — suponho que a minha meia hora está a chegar ao fim— atendam a tudo quanto eles disserem, estejam prontos à crítica, e que o debate seja tão forte que não o possamos prolongar senão até à tal hora de se jantar com comodidade, mas depois de se jantar, de se cear e de se esgotar o dia, espero que nos tornemos a encontrar e que esta discussão, que não significa briga, que não significa desentendimento entre ninguém, pois discutir é apenas sacudir —o verbo latino garante esta possibilidade de significado— ideias, sacudir acontecimentos, permita sacudir-nos a nós próprios, para que não caiamos em alguma espécie de modorra, o que seria inteiramente fatal.

Aplausos gerais.

O Sr. Presidente: — Muito obrigado, Sr. Prof. Agostinho da Silva.

Vamos agora dar início à segunda parte do nosso programa de hoje, pelo que, em representação do Grupo Parlamentar do Partido Social-Democrata, dou a palavra ao Sr. Deputado Carlos Coelho.

O Sr. Carlos Coelho (PSD): — Sr. Presidente da Assembleia da República, Srs. Deputados, caros Participantes Convidados, Sr. Prof. Agostinho da Silva: Pretendeu-se, em deliberação de conferência de líderes, introduzir entre o testemunho de V. Ex.a, Sr. Professor, e o debate que se vai seguir o testemunho de jovens representativos dos diversos grupos parlamentares representados na Assembleia da República.

Pela minha parte, devo dizer que é com algum embaraço que aceito este encargo, de fazer o intervalo que será a ligação entre os dois momentos, e me julgo, humildemente, com alguma incapacidade para o fazer. Mas vou limitar-me a dar quatro testemunhos, a propósito do 25 de Abril, daquilo que penso que ele não deve constituir e que deve permitir.

Em primeiro lugar, penso que o 25 de Abril não deve constituir oportunidade para ninguém macular o património histórico comum que ele deve constituir para todos os portugueses. Poi \SS0, o 25 de Abril não deve ser pretexto para confrontações partidárias, para manipulações históricas ou para a tentativa de quem quer que seja de se apropriar de um monopólio de uma data histórica que pertence a todos os portugueses.

O 25 de Abril, na opinião dos jovens sociais--democratas, deve ser um ponto de referência e de encontro entre todos os portugueses.

Em segundo lugar, o 25 de Abril não deve ser uma oportunidade para se esvair em actos formais. Não deixa de ter sentido e não é um acto formal que a Assembleia da República, pela primeira vez, tenha decidido não limitar a comemoração do 25 de Abril à sessão solene no plenário da Assembleia da República e tenha convidado para esta sessão um número apreciável e representativo de jovens portugueses, desde o Norte do País até às Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira.

Em 25 de Abril de 1974 eu tinha 13 anos e os jovens que se seguem à minha geração eram então ainda crianças. Para eles as datas fazem parte da história, mas as condições sociais em que hoje vivem e o futuro que os espera são as referências concretas que ficam para julgar este regime.

Uma geração que não viveu a ditadura não sente tanto a liberdade. Não é estranho que assim seja. Quem nunca teve fome não dá tanto valor à comida; quem nunca sentiu frio nunca dá tanto valor ao agasalho; quem nunca esteve preso nunca dá tanto valor à liberdade; quem nunca sentiu a opressão de uma ditadura nunca dá tanto valor à democracia. Não é porque esta geração nunca tenha vivido a ditadura que o valor da pedagogia democrática sobreleva. Em boa verdade, muitas vezes, só damos valor às coisas quando as não temos ou quando as reavemos.

No entanto, todos nós devemos criar condições para lutar a fim de reaver estes valores. Em boa verdade, o momento em que Portugal está e aquele com que estamos confrontados é um momento de aprofundamento e de reafirmação de valores que nos são caros: da liberdade, da igualdade e da solidariedade. De uma liberdade que não seja só a de votar e protestar; de uma igualdade que contemple o valor da diferença e que assente, sobretudo, na igualdade de oportunidades à partida; no valor da solidariedade, que é tanto necessária quanto os projectos políticos têm por raiz o homem.

Sr. Presidente, Srs. Deputados, caros Convidados: A propósito do 25 de Abril e dos jovens do 25 de Abril, é, seguramente, este o momento de reafirmar a necessidade do valor do exemplo na pedagogia da tolerância e na pedagogia do diálogo. Quando falo na pedagogia da tolerância e do diálogo e no valor do exemplo, não estou só a falar do paternalista, daquele das gerações mais velhas, que legam sempre um exemplo às gerações mais novas, mas também a dar o exemplo dos jovens que ajudam a fazer essa pedagogia.

Seja-me permitido nesta cerimónia realçar dois exemplos: um, que se passou há vinte anos, em 1969, na Universidade de Coimbra, quando um jovem estudante se levanta e, perante as figuras mais significativas do regime, desencadeia uma crise política porque diz «Sr. Presidente da República, em nome dos estudantes de Coimbra, quero ter o direito de dizer qualquer coisa em nome dos jovens».

Aplusos.

Vinte anos mais tarde, em 1989, são centenas de milhares de jovens, em todo o Pais, que afirmam a vontade férrea de, com as direcções associativas estudan-

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tis legitimamente representadas, prosseguir os seus objectivos em prol dos estudantes que os acreditaram e legitimaram.

São esses jovens que protestam quando os conselhos directivos, por razões que não interessam agora aqui discutir ou apronfundar, tentam cercear e limitar a actividade das direcções associativas. E foi por força desses jovens, que há muitos anos vêm lutando para que fosse dada consagração legal aos direitos das associações de estudantes, que não só a Assembleia da República, e particularmente a Comissão de Juventude, aprovou, por unanimidade, a Lei das Associações de Estudantes, como ainda, há escassas semanas, a Procuradoria-Geral da República fez aprovar um parecer vinculativo que determina que se trata de um acto ilicito toda a ingerência dos conselhos directivos das escolas, particularmente das escolas secundárias, quando tentam interferir na vida interna das associações de estudantes.

São exemplos de persistência, de pedagogia democrática e do valor do exemplo, não aquele que se faz pelo discurso, mas aquele que faz com que a acção concreta na sociedade desenvolva situações que merecem seguramente o nosso aplauso.

No entanto, este valor do exemplo e os desafios que temos à nossa frente já não são só para dentro das fronteiras de Portugal. De alguns anos a esta parte já estamos noutra aventura, em que os Portugueses não têm só de se identificar perante si próprios, têm de marcar a sua identidade e a sua personalidade perante todos os que se encontram na mesma aventura colectiva, que é a da integração europeia.

Quero aqui reafirmar que o 25 de Abril também permitiu este desafio: o desafio da integração na Europa. Queremos uma Europa mais coesa, onde possamos continuar a ser portugueses; uma Europa das culturas, e não uma Europa da cultura; uma Europa dos cidadãos, e não apenas uma Europa dos Estados; uma Europa que seja uma comunidade, e não apenas um mercado comum.

Sr. Presidente, para terminar, quero dizer-lhe que o 25 de Abril foi uma oportunidade que nos foi dada para questionar, para tentar saber porquê, para avançar respostas, para dizer «presente», e nesta conjuntura, com os jovens que foram convidados e que estão à nossa frente, seja-me permitido dar os parabéns por esta iniciativa ao Presidente da Assembleia da República e à conferência de líderes, porque na encruzilhada histórica em que Portugal hoje se encontra, na Europa, com os desafios da ciência e da tecnologia, com os desafios que a modernidade nos coloca a todos, os desafios do futuro colectivo, estamos a construir a sociedade do amanhã, onde todos iremos viver, e com todo este cenário é mesmo preciso dar voz à juventude.

Aplausos gerais.

O Sr. Presidente: — Em representação do Grupo Parlamentar do Partido Socialista, tem a palavra o Sr. Deputado José Apolinário.

O Sr. José Apolinário (PS): — Também eu, depois da estimulante intervenção do Sr. Professor Agostinho da Silva, sinto algum embaraço no início desta intervenção. Contudo, não quero deixar de destacar que a intervenção do Prof. Agostinho da Silva é, no fundo,

o exemplo de que ser jovem é um estado de espírito e não se limita apenas à data de nascimento constante do bilhete de identidade.

Sr. Presidente da Assembleia da República, Srs. Vice--Presidentes, Srs. Representantes do Presidente da República, Srs. Deputados, Ilustre Conferencista, Prof. Agostinho da Silva, Jovens e Organizações de Juventude Congregadas no Conselho Nacional de Juventude, Sr.85 e Srs. Convidados, Caros Amigos: em nome do Grupo Parlamentar do Partido Socialista, começo por saudar os jovens presentes nesta sessão inovadora e salientar o significado de assinalarmos o 25 de Abril com uma iniciativa dirigida às novas gerações, dentro do quadro de um parlamento que abre as portas aos mais jovens.

Quis a direcção do meu grupo parlamentar confiar-me a honra de vos dirigir algumas palavras. Numa época em que muito se fala de juventude, em que se valoriza ao exagero a institucionalização da condição social de ser jovem, não quero, porém, deixar de alertar para as contradições reais desse comportamento e dizer-vos que a minha intervenção, mais do que a intervenção de um jovem, é a intervenção de um cidadão, até porque a reaproximação entre os jovens e os valores do 25 de Abril não é apenas um problema da juventude.

Os novos tempos obrigam-nos ao reassumir da esperança, do sonho e até da ilusão trazida com o 25 de Abril. Ao longo de quinze anos algumas esperanças foram defraudadas, alguns sonhos desfeitos, houve ilusões que se esfumaram e também uma viagem a um 25 de Abril que, cada vez mais, surge aos olhos dos jovens como algo de mais distante, enformam hoje um progressivo divórcio entre as novas gerações e o 25 de Abril e constituem um estado de espírito sobre o qual vale a pena reflectir.

Por outro lado, alguma da classe política dominante, sem passado de luta pela democracia e sem identificação com a institucionalização do regime democrático, foi legitimando e tem legitimado um discurso de subversão dos valores e dos ideais de Abril de 1974. Para um jovem nascido após o 25 de Abril de 1974 ou para aqueles que como eu esta fase representou uma fase de crescimento, de passagem da adolescência à maioridade, o 25 de Abril surge como uma névoa, descaracterizado, sem um significado muito claro. Está por fazer a batalha da pedagogia pela democracia. Está por concretizar a plena inserção social do jovem na sociedade em que vivemos. Está por valorizar o contributo do 25 de Abril para o nosso viver actual. É necessário, é urgente recolocar a batalha dos valores na ordem do dia, dignificar a nossa memória colectiva, sem complexos e sem tabus.

Hoje, em Portugal, podemos votar e decidir o futuro comum a partir dos 18 anos de idade. Votar livremente, escolhendo entre as diferentes propostas e os diversos projectos. Não era assim no passado. Antes do 25 de Abril um só partido considerava-se detentor da verdade absoluta, congregador dos anseios de todos os portugueses.

Hoje, em Portugal, adquirimos a maioridade aos 18 anos. Nem sempre assim foi. Antes do 25 de Abril de 1974 a maioridade só era alcançável aos 21 anos.

Hoje, em Portugal, discutimos o sentido, a prática, o conteúdo da prestação do serviço militar. Os nossos

pais, os nossos irmãos mais velhos, não tiveram esse

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ensejo: na guerra colonial ficaram muitos jovens e outros ficaram marcados como deficientes para toda a vida.

Hoje, em Portugal, vivemos em liberdade: liberdade de opinião, liberdade de expressão, liberdade de manifestação. E, se nalguns momentos esta dimensão da liberdade nos parece posta em causa, é porque o poder dominante começa a dar sinais de perigosa esquizofrenia, de uso da repressão, de tentação tentacular, de limitação da própria sociedade civil.

Hoje, em Portugal, as associações de estudantes, as juvenis têm consagrados os seus direitos. A universidade conquistou a sua carta de alforria através da Lei de Autonomia Universitária.

No plano dos direitos individuais, as leis procederam ao seu reconhecimento e são hoje a chave do Estado de direito.

Vivemos agora numa outra dimensão, o desafio europeu. A integração de Portugal na Europa, numa Europa social e política, é consequência directa do 25 de Abril. Sem o 25 de Abril de 1974, portanto sem a restauração da democracia em Portugal, não estaríamos perante o desafio da integração europeia. Somos por uma Europa dos cidadãos, não por uma Europa mercantilista, pugnamos pela coesão social e económica da Europa, não apenas por uma visão restrita às regras da concorrência comercial.

Outros e novos desafios estão ainda lançados. Novos temas e preocupações mobilizam os cidadãos, especialmente as novas gerações, dos consumidores ao ambiente e qualidade de vida, do património às novas tecnologias, da genética às novas engenharias. A identidade cultural assume novos contornos e novos interesses, e novas formas e novos espaços de intervenção cultural vão surgindo. As populações dão novo realce, maior atenção aos tempos livres, ao tempo social disponível, ao direito do lazer, ao direito ao desporto.

No plano do Estado, e enquanto não se supre o défice democrático regional pela não criação das regiões no continente, e alguns transformam mesmo 89 000 km2 e suas diversidades numa única região — qual acto único regional —, redefine-se o papel do Estado na sociedade, na economia, na relação com o mundo. Sobretudo os temas da paz e do ambiente vieram ultrapassar os limites da soberania e globalizar a sua apreciação e caminhos de solução.

Para terminar, quero ainda, nesta ocasião e perante uma audiência com muitos jovens, trazer-vos uma outra reflexão.

Nós, jovens e menos jovens, nós, cidadãos portugueses, temos sido, por vezes, injustos para com os militares de Abril de 1974. Não vou aqui citar nomes, nem casos especiais, porque não é essa a minha intenção. Sob a capa da recusa de tentações totalitárias que alguns talvez tivessem julgado possíveis, sob o álibi do ataque ao PREC, tem-se, têm, procurado colocar tudo no mesmo saco. Gente que não teve sequer a coragem de um dedo levantar, em algum dos momentos difíceis coloca-se agora na posição de juiz arbitro sobre o comportamento político dos militares de Abril. Não que defendamos o seu endeusamento, que eles próprios, es-tou certo, também não desejariam, mas porque entendemos dever recusar-se o «bode expiatório», a justificação fácil. A nossa memória colectiva tem de ser reconstruída pelo estudo, pelo conhecimento, pela análise sem tabus da nossa história mais recente. Porque,

Sr. Presidente, Srs. Deputados, minhas Senhoras e meus Senhores, precisamos de compreender o passado, viver o presente sem tabus para podermos ganhar o futuro.

Aplausos gerais.

O Sr. Presidente: — Em representação do Grupo Parlamentar do PCP, tem a palavra o Sr. Deputado António Filipe.

O Sr. António Filipe (PCP): — Sr. Presidente da Assembleia da República, Sr. Prof. Agostinho da Silva, Srs. Deputados, caros amigos presentes: As minhas primeiras palavras, em nome do Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português, são de congratulação pela presença e participação de jovens de todo o País, de vários quadrantes ideológicos, inseridos em diversas áreas de participação juvenil, aqui na Assembleia da República e precisamente nas comemorações do aniversário da Revolução de Abril.

Esta participação não acontece por acaso. Significa o reconhecimento por parte da Assembleia da República do papel de relevo que a acção da juventude, o movimento e o associativismo juvenil desempenham hoje na sociedade portuguesa. Do papel relevante das numerosas formas, hoje reconhecidas, de participação juvenil, através de centenas de associações, formais ou informais, e de milhares de iniciativas juvenis que traduzem uma forma jovem de estar na vida e de participar na sociedade intimamente ligada à Revolução de Abril, ao seu espírito, aos valores que encarna, às novas realidades a que deu origem, que subsistem e que decerto se desenvolverão no futuro.

O 25 de Abril inscreve-se com letras maiúsculas na nossa história, mas é uma data que ainda não passou à história.

A instauração das liberdades, a democratização do poder politico, a conquista do regime democrático, a erradicação de um passado colonial, as transformações democráticas na economia, o projecto de uma sociedade mais justa, não são meras referências simbólicas. Mudaram a face do nosso país perante o Mundo e abriram novos horizontes de justiça e liberdade aos jovens e ao povo português.

Para nós, comunistas, o espírito do 25 de Abril projecta-se na sociedade que defendemos para Portugal, na concretização das aspirações que compartilhamos com a juventude portuguesa. Para o PCP o 25 de Abril é, no presente, mais do que uma data a comemorar. É um projecto de futuro a defender e a prosseguir, de liberdade, de democracia, de justiça social, de uma sociedade aberta à juventude e à sua plena realização humana.

Os valores da Revolução de Abril, de liberdade e participação democrática, foram ensombrados por acontecimentos recentes que não podem passar em claro nestas comemorações. A triste imagem que desfilou perante o País e o Mundo no Terreiro do Paço é um sério motivo de reflexão para todos os jovens e para todos os democratas. Os canhões de água, os cães enfurecidos, as cargas com bastões e viseiras, que encobriam o Sol na passada sexta-feira e que acometeram contra os profissionais da PSP que, digna e pacificamente, expunham as suas razões e, indiscriminadamente, contra simples transeuntes lembram, arrepiantemente, os métodos usados pela ditadura fascista. Com

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métodos destes não vamos a nenhum futuro, mas regressamos a um passado ignominioso que o País sofreu durante décadas. Também contra isto se fez o 25 de Abril. Para que cenas como estas nunca mais se repetissem.

Ao assinalar na Assembleia da República o aniversário do 25 de Abril, o Grupo Parlamentar do PCP manifesta o seu repúdio pela repressão exercida contra os profissionais da PSP e contra a população em geral.

Comemorar o 25 de Abril implica reflectir nas lições do passado, na repressão das pessoas, das ideias, dos hábitos, da liberdade de pensar e agir. Implica pensar que factos tão naturais como conviver e falar sem constrangimentos, assumir opções diversas, opiniões livres, foram factos proibidos e reprimidos. O 25 de Abril, para os jovens, quebrou os altos muros que nos liceus de então saparavam rapazes e raparigas como seres antagónicos, tornou respirável o ar nas escolas, nas empresas e nas ruas, trouxe à luz do dia as associações de estudantes, tornou possível que muitas mais se criassem livremente, libertou a juventude do pesadelo que foi a guerra colonial, conferiu o direito de voto universal aos maiores de 18 anos, deu corpo à vontade dos jovens de participar, de construir, de moldar os tempos com as suas próprias mãos, em associações de estudantes, de moradores, de trabalhadores, nas autarquias, em associações juvenis locais, em clubes juvenis, em grupos de iniciativas do mais diverso tipo, na participação democrática que marcou e marca o tempo novo começado em Abril. A Revolução de Abril criou uma nova geração de jovens portugueses, diferente das anteriores, sem o estigma da guerra e da repressão, com um sentido diferente das realidades, mas com um longo caminho para percorrer e imensas dificuldades para superar, em direcção a uma sociedade mais justa e fraterna.

O 25 de Abril representa o início de um processo que trouxe enormes alterações ao nosso viver individual e colectivo. Consagrou a democracia política, assente no sufrágio universal, na representação proporcional, na participação dos cidadãos na vida pública. Consagrou amplos direitos e deveres sociais. Consagrou a protecção especial da juventude para a efectivação dos seus direitos económicos, sociais e culturais. Conduziu a grandes transformações democráticas na economia nacional. Abriu caminho às nacionalizações e à reforma agrária. Consagrou direitos dos trabalhadores, liberdades democráticas, de expressão, de reunião, de associação, de imprensa, de pluralismo na comunicação social e de liberdade de criação cultural. Consagrou transformações profundas, que, com a aprovação da Constituição de Abril de 1976, passaram a integrar a lei fundamental, como traves-mestras da democracia.

Porém, qualquer balanço do que significou o 25 de Abril e a sua projecção na sociedade portuguesa tem de compreender que se trata de uma revolução profunda, mas inacabada, interrompida, política, económica e socialmente subvertida. Tem sido desmantelado 0 sector público e a reforma agrária. Têm sido negados na prática direitos sociais fundamentais dos jovens. Tem-se procurado introduzir limitações à democracia política, governamentalizando os grandes meios de comunicação, projectando distorcer a representação da vontade popular. A própria Constituição tem sido alvo

de ataques e de projectos que procuram distorcê-la, adaptando-a às realidades que se opõem à efectivação prática do seu conteúdo.

Tem-se culpabilizado o 25 de Abril e a Constituição por promessas não cumpridas. Tenta-se virar os jovens contra o 25 de Abril, utilizando-os como suporte da liquidação dos seus próprios direitos. Tenta esvaziar de conteúdo o regime democrático e simbolizar o 25 de Abril, torná-lo efeméride, apagá-lo da memória, para afirmar que os jovens não sabem, não se interessam, não se lembram. Nós, comunistas, recusamos esse caminho. As grandes criações do regime saído do 25 de Abril correspondem a interesses vitais da juventude. As adulterações dos valores e da mensagem de Abril é que originam problemas, dificuldades e decepções com que se debate a juventude e o povo português.

O 25 de Abril projecta-se no presente em valores e realidades que importa defender e prosseguir, porque correspondem aos interesses da juventude, porque dão corpo a um regime democrático, cuja defesa e desenvolvimento são indispensáveis para responder aos desafios deste final de século e ao embate do mercado único de 1992.

Para o PCP o futuro de Portugal é inseparável do aprofundamento das transformações democráticas que, na matriz de Abril, configuram uma verdadeira democracia política, económica e social. Isto exige que não só não deixemos perder as reformas que já têm consagração constitucional, mas obriga a que lhe demos plena execução na vida. Obriga a encarar e a realizar, com audácia e determinação, novas reformas no ensino, no trabalho, na habitação, na saúde, na justiça e essa reforma fundamental, que hoje se quer bloquear, a regionalização.

Para o PCP os valores do 25 de Abril, o seu projecto de uma sociedade mais justa e fraterna, terão de constituir as alamedas do futuro da sociedade democrática que defendemos e da sociedade socialista a que aspiramos. Mas para que essas alamedas se rasguem no nosso futuro colectivo é necessário que os jovens, como garantes e construtores desse devir, alcancem a estabilidade no emprego, vejam assegurado o direito a uma carreira profissional realizadora, ao ensino, ao sucesso escolar, ao acesso à universidade sem limitações artificiais. Tenham direito a uma habitação condigna, à cultura, ao desporto, a viver em paz.

São ideais e valores profundos, que alguns consideram longínquos e utópicos. Mas, porque fazem parte integrante do sonho milenário do homem e porque Abril franqueou as portas ao sonho, hão-de ser os jovens os construtores desse futuro.

Aplausos gerais.

O Sr. Presidente: — Em representação do Grupo Parlamentar do PRD, tem a palavra a Sr.a Deputada Isabel Espada.

A Sr.a Isabel Espada (PRD): — Sr. Presidente, Sr.as e Srs. Deputados, Sr.as e Srs. Convidados, amigos, Sr. Prof. Agostinho da Silva: Não posso começar a minha intervenção sem antes —e utilizando as palavras do sr. Deputado José Apolinário— dizer que o Sr. Prof. Agostinho da Silva fez aqui aquilo que se chama a pedagogia da democracia, a visão globalista e a dimensão histórica que deu a este acontecimento. É a única que nos permite avaliar, em relação ao 25

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de Abril, aquilo que é e foi fundamental e que, em relação à Revolução, é acessório e conjuntural. Por isso,

bem haja, Prof. Agostinho da Silva!

Sobre o dia 25 de Abril passaram já quinze anos,

houve uns melhores, houve outros piores. Já muitos portugueses, em alturas de maior desalento, se questionaram sobre a validade das suas esperanças, das suas alegrias, no dia 25 de Abril. É sempre fundamental, para que não restem quaisquer dúvidas, fazer o cômputo geral daquilo que nos foi legado pela democracia e pela Revolução, daquilo que é para continuar, definindo as responsabilidades de que cada cidadão, desde essa data até hoje, ficou investido. Nesse sentido, saudamos a iniciativa da reflexão que hoje fazemos. Hoje reafirmamos, para quem já não se lembra, para quem já não sabe e para quem já não acredita, que o 25 de Abril devolveu Portugal aos cidadãos, entregando nas mãos do povo e seus representantes a soberania e a liberdade.

Avaliando hoje, com a objectividade que o tempo já nos permite, tendo em conta que, sem dúvida, a Revolução de Abril merece as flores com que a distinguimos. Independentemente das diferenças ideológicas e partidárias que nos informam, temos de reconhecer que a história de Portugal moderno e a história da democracia deu o seu salto mais qualitativo no dia 25 de Abril de 1974, e nunca depois desse dia.

No entanto, a herança de liberdade, de esperança e de tolerância que a Revolução a todos legou está longe de perfeita e completamente cumprida. Há uma canção, algo antiga, mas que todos temos presente, que dizia que só haveria liberdade e democracia quando houvesse paz, pão, habitação e educação.

Na verdade, a liberdade vai-se perdendo se o exercício dos direitos se contrapõe ao medo de perder o posto de trabalho ou de nem sequer o vir a obter.

A esperança vai-se perdendo se a pobreza persiste nas famílias e o subdesenvolvimento económico, social e cultural se mantém cronicamente no País.

A tolerância vai-se perdendo se nos pequenos e grandes centros de decisão, todos os dias e pouco a pouco, se despreza o diálogo, se degrada o debate, vinga a arrogância, triunfa o maniqueísmo e a radicalização da sociedade.

Minhas Senhoras e meus Senhores: Da assumpção total dos valores fundamentais da democracia e da Revolução serão julgados os jovens de ontem pelos jovens de hoje e de amanhã.

Não raras vezes se ouve dizer que os jovens não sabem, não têm consciência da diferença que existe entre o Portugal do 25 de Abril e o Portugal que teriam se o 25 de Abril não tivesse sido feito. Queremos afirmar aqui que rejeitamos liminarmente estas acusações.

Se é verdade que os jovens já se não referenciam tanto aos ideais que eram o imaginário dos jovens de há vinte anos e já não são revolucionários, é caso para lembrar que foi precisamente o 25 de Abril que permitiu que valores fundamentais, como sejam a democracia, a paz e a liberdade de expressão, se tornassem dados definitivamente interiorizados e aceites na consciência colectiva da juventude portuguesa.

Os jovens não sentem a nostalgia dos pais da Revolução porque são filhos dela. Os jovens hoje já não lutam pelos grandes ideais, mas rebelam-se quando os valores da democracia são violados. E é por isso que

os jovens hoje não acreditam em escolas e em grandes linhas ideológicas, mas juntam-se, associam-se por pequenas causas e para concretizar objectivos. O grande desafio dos jovens de hoje é a Europa e

o aprofundamento das raízes antigas. E um desafio que só foi possível aceitar graças ao 25 de Abril e ao ree-quacionamento internacional que ele nos permitiu obter. À sua maneira, no seu devido tempo, os jovens de hoje estão a continuar o 25 de Abril.

Mas, se queremos que os jovens amem e valorizem o 25 de Abril tão convictamente como aqueles que viveram o anterior regime, há que fazer do dia de hoje a efectiva concretização dos objectivos mais profundos da Revolução. Será justo culpar jovens indiferentes quando o legado democrático se não cumpriu para eles? Quando os próprios educadores e os pais enfrentam o desânimo perante a injustiça social e, inevitavelmente, transmitem esse desalento às novas gerações?

Não há melhor nem mais eficaz forma de provar aos jovens que o 25 de Abril é o maior marco da história de Portugal contemporâneo do que oferecendo-lhes aquela parte da Revolução ainda por conquistar. Como dizia o meu muito amigo e companheiro Marques Júnior, «o 25 de Abril, tal como ontem, mas principalmente mais do que ontem, é, sobretudo, o amanhã».

Aplausos gerais.

O Sr. Presidente: — A intervenção do Grupo Parlamentar do CDS vai ser feita pelo Sr. Deputado Na-rana Coissoró e pelo Sr. Dr. Manuel Monteiro.

Tem a palavra o Sr. Deputado Narana Coissoró, a que se seguirá imediatamente o Sr. Dr. Manuel Monteiro.

O Sr. Narana Coissoró (CDS): — Sr. Presidente da Assembleia da República, Srs. Deputados, Sr. Prof. Agostinho da Silva, jovens convidados: Dizem os sociólogos que os jovens neste final do século XX são os homens ou mulheres de todas as épocas. A resistência quase perfeita a todas as influências do meio, quer natural, quer social, a libertação de todos os constrangimentos que os torna aptos a enfrentar todas as coações externas, com menos remorsos que os seus antecessores e, por isso, com menos sentimento de culpa, são eles senhores de si mesmos, capazes de escolher e perfilhar esta ou aquela crença, esta ou aquela ideologia.

Apesar disso, a vida de cada um de nós depende de uma equação entre o nosso passado e o futuro. Como disse hoje o Prof. Agostinho da Silva, a tentativa de determinar esta equação — expressamente o que é o passado e o que é o futuro — é que permite a cada um de nós alcançar a nossa própria realidade mais íntima.

Se o passado é o que possuímos e o que detemos nas nossas mãos, o futuro é, por definição, uma coisa que não podemos aprisionar. Esta ocupação antecipada com o que ainda não é, mas que se prepara para ser de um momento para outro, representa a nossa autêntica aventura do espírito, mesmo na época, que certamente não é a nossa, em que o futuro se apresenta relativamente claro e prefiguravel nas suas linhas gerais.

A Revolução de Abril começou como um grande momento social, com a erupção da energia, impaciência e esperança do Povo. Decorridos quinze anos, a idade de reposição de uma geração, estabelecida firmemente

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a democracia, com os seus controlos políticos e legais, nenhuma dúvida existe de que ela lançou os alicerces de uma ordem melhor e superior para o nosso país e forjou as alavancas do progresso que há-de vir no futuro. Seria um verdadeiro suicídio que este enorme e esperançoso desígnio nacional degenerasse numa autocracia estreita e fria, ainda que de fachada democrática.

Seria o anticlímax do feito heróico de 1974.

Um dia o nosso ilustre convidado de hoje, Sr. Prof. Agostinho da Silva, contou-nos o seguinte: «No dia 25 de Abril encontrei na rua um amigo que me disse: 'É uma revolução.' Depois acrescentou: 'Esta revolução não tem horizonte.' Nunca percebi», disse o Sr. Prof. Agostinho da Silva, «por que é que ele tinha dito aquilo. Na altura pensei: 'Havemos de ver no que isso dá.'»

Não se pode imaginar tarefa mais deliciosa para a juventude do que esta de inventar e sonhar a revolução de 1974.

Pois bem, rapazes e raparigas que estais aqui presentes, vamos a isso!

Aplausos gerais.

O Sr. Manuel Monteiro: — Sr. Presidente da Assembleia da República, Sr. Prof. Agostinho da Silva, Srs. Deputados: Antes de mais, os meus sinceros agradecimentos por terem permitido à Juventude Centrista poder também associar-se a esta manifestação e a esta iniciativa.

Para nós, e depois de tudo quanto já foi dito, mais importante do que analisar sistematicamente o passado é tentar ter uma ideia daquilo que deve ser o futuro. Para nós, mais importante do que encontrar culpados ou culpas é pensar Portugal. Para nós, mais importante do que estar sistematicamente a relembrar este dia, aquela hora, aquele minuto, aquele segundo, é, fundamentalmente, saber que Portugal queremos nos anos futuros, em que Europa, em que condições, em que necessidades para o nosso pais.

É que, na nossa perspectiva, não faz sentido pedir--se a participação dos jovens quando aqueles que a representam, apenas e só, fazendo fé e uso das suas tribunas, se limitam a repetir discursos, a repetir frases, a repetir ideias, tantas e tantas vezes ouvidas, como não faz sentido pedir sistematicamente a participação dos jovens no País quando não se lhes dá a liberdade total para que eles o possam fazer, quando a participação dos jovens é claramente condicionada e cada vez mais regulamentada, quando, afinal de contas, não se tenta perguntar a cada jovem, de norte a sul, nas ilhas ou aos emigrantes: o que é para ti Portugal? Que ideia tens tu de Portugal? O que queres de Portugal?

E, não tendo nós os meios e as capacidades de outros, aproveitamos, mais uma vez, a oportunidade que V. Ex.a nos quis dar para, à semelhança do que outrora dissemos, repetir, aqui e agora, que o 25 de Abril, para nós, é uma data importante, que o 25 de Abril permite, afinal, que pessoas de credos políticos diferentes se possam sentar e conversar lado a lado, possam dialogar, independentemente das barreiras ideológicas que as separam e distinguem, independentemente das profundas diferenças que, eventualmente, possam ter e querer para o nosso país.

É isso, para nós, que tem de ser jovem e foi também para isso que o 25 de Abril teve de ser feito. Mas não haverá verdadeiro 25 de Abril se, sistematicamente,

o evocarmos apenas no papel e nas datas históricas. Não haverá verdadeiro 25 de Abril se apenas e só o relembrarmos em sessões solenes e se em cada dia, em cada momento, em cada hora, não tivermos a necessidade e a vontade de dar a mão a todos os jovens que, como também foi dito, independentemente da idade, têm, querem e sentem Portugal!

Aplausos gerais.

O Sr. Presidente: — Em representação do Grupo Parlamentar Os Verdes, tem a palavra a Sr." Deputada Maria Santos.

A Sr.a Maria Santos (Os Verdes): — Sr. Presidente, Sr. Prof. Agostinho da Silva, caros colegas e convidados: Há quem tente manter presente o 25 de Abril considerando que o processo iniciado não se cumpriu. Há quem tente cristalizá-lo no passado, temendo que o processo iniciado se possa vir a cumprir. E há quem o dia 25 seja uma mera folha de calendário, um pouco mais notável que tantas outras.

Seja qual for a maneira como nos posicionemos relativamente aos acontecimentos desse dia, não podemos esconder que eles criaram ruptura no quotidiano de então, fazendo tombar um regime como folhas putrefactas de um Outono tardio.

Os olhos dos homens e das mulheres que viram esse dia, o que eles viram foi a Primavera, e festejaram--na, e dela se apropriaram, e dela fizeram um projecto. Um projecto!

Hoje, aqui, uma comemoração: que é um modo de pôr o passado no presente e dar fugazes cores de actualidade à nossa história.

No entanto, a verdade é que o processo iniciado no dia 25 é muito mais que uma data a comemorar. O conflito desencadeado entre as forças político-sociais opressivas e esse processo libertador prossegue: mesmo se silenciado, em formas que baixam o tom da reivindicação ao tom dos discursos em surdina.

Gerações foram silenciadas por vontades individuais e pela «razão» do terror.

Outras houve que romperam com esses limites cerceadores e quiseram legar as potencialidades de uma vivência social plenamente assumida.

Estas gerações possuíram (e possuem ainda) a certeza do que quiseram e querem construir.

Depois as novas gerações...

Vocês, aqui sentados, olhando-me e eu olhando-os, vocês, que não precisam da liberdade política, porque já a têm, que não receiam os cárceres, a tortura, a guerra, porque tudo isso foi abolido, vocês, a geração de hoje e de amanhã, qual é a vossa revolução? Qual é o sonho que vos possui? Qual é o destino que querem tomar nas vossas mãos? Qual é o mundo novo que querem construir?

E os vossos problemas?

Limitações no ensino, falta de habitação, emprego temporário dado como uma esmola e recebido como um favor!

E o resto?!

E a falta de espaço à expressão, a impossibilidade de actuar autonomamente, a mistificação permanente dos vossos anseios e os sonhos sonhados em frente de um muro sem portas?

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Qual é o direito desta sociedade em vos fechar na condição de «jovens», de vos colocar na lista de espera para que possam viver plenamente?!

Vocês... Por que é que vos tentam reduzir à situação de uma geração entre parêntesis, uma geração colocada em situação permanente de espera, a quem negam o presente e a quem impõem um futuro?

As dádivas, que com hipocrisia esta sociedade vos dá, são ou não são o canto de uma sereia, que esconde uma submissão alienante de valores, que a juventude, que todas as juventudes de sempre recusaram, como mercadorias impróprias?

Será que vos querem, jovens, no silêncio político? Será que vos querem, jovens, no silêncio social? Mas vocês sabem o que querem, quem são e para onde vão!

E é esse o fascínio, o vosso fascínio, que tendes de trazer ao contexto da nossa vivência sócio-política, estimulando a geração de uma nova ética, para que a democracia portuguesa leve, de facto, a uma participação real de todos os indivíduos na resolução dos pequenos e grandes problemas da nossa sociedade, da nossa terra, da nossa grande casa: o planeta.

Vós, sois vós, precisamente vós que tendes, mais do que ninguém, que recusar os assépticos hinos à democracia, a uma linguagem tecnocrático-política, que só serve para reforçar o actual estado de apatia de grande parte da população portuguesa para a tornar abúlica, apática e indiferente. Nós, vocês não são isso, nem abúlicos, nem apáticos: são a liberdade ondulante do espírito, a libertação sensitiva de um corpo em movimento...

Nós não somos, vocês não. são PEDAP, nem PE-DIP, nem FAOJ, nem OPJ, nem institutos, e não sei mais o quê!...

Vocês são pessoas que vivem, que têm um corpo, um pensamento livre a fazer crescer...

Vocês não pedem a integração no mundo cinzento que já nos cerca. Vocês querem o caminho desimpedido para construírem, não os nossos, mas os vossos anseios!

Eu vi o 25!

Num dia do mês de Abril...

Mas não estamos aqui para recordar a minha história, mas sim a nossa história colectiva!

Estamos aqui porque queremos o presente.

Porque não perdemos a esperança e a vontade! Porque não esquecemos nem negamos! Porque temos a força e sabemos com o saber dos olhos, do coração e do pensamento.

Nós sabemos o caminho que queremos trilhar: as emoções e as liberdades de Abril são também as nossas.

As cores do arco-íris, todas as cores do arco-íris pertencem-nos...

O futuro é de quem sabe sonhar, como dizia o Prof. Agostinho da Silva!

Eu vi o 25 de Abril!

Mas agora gostava muito de ver o vosso!

Aplausos gerais.

O Sr. Presidente: — Vamos dar início à terceira parte àa nossa sessão áe hoje, que, como compreenderão, vai ser a mais difícil de organizar. Temos de terminar os nossos trabalhos às 19 horas e 55 minutos, o jantar terá lugar no claustro e o sarau, para que todos estão convidados, será nesta sala.

Depois de uma breve troca de impressões com o Prof. Agostinho da Silva, acordámos numa primeira fase em receber cinco inscrições de jovens não deputados dispersos pela sala, em seguida falava o Prof. Agostinho da Silva e íamos continuando assim por processos interactivos.

Visto não conhecermos os nomes dos jovens que pretendem usar da palavra, estes devem identificar-se.

O Sr. António Sérgio Pinheiro: — Sou representante da Organização de Juventude do Partido Ecologista Os Verdes, ECOLOJOVEM, e gostava de comunicar algumas das nossas propostas, que pensamos serem úteis.

Na continuação do que aqui foi dito e da saudação que foi feita por esta ser a primeira sessão deste tipo aberta a novas presenças de jovens, deixamos a seguinte proposta: que esta iniciativa se repita em dias como sejam o Dia da Juventude, o Dia do Estudante, etc. Pensamos que isso poderia ser importante.

Por outro lado, foi também aqui falada a questão da pedagogia da democracia. Pensamos que essa pedagogia é necessária e que as comemorações do 25 de Abril e do Dia da Juventude não a acabam e não se esgotam aqui. Precisamente por isso, somos também da opinião de que seria útil abolir uma situação que, quanto a nós já está um pouco ultrapassada e que é a de o segredo de Estado dos documentos ter um período de 50 anos. Isto é, propomos que seja possível a todos os jovens e a todas as pessoas interessadas investigar e vir a conhecer agora os documentos que são considerados segredo de Estado até Abril de 1974, permitindo, assim, comparar aquilo que são os documentos históricos, ou que se tornarão históricos, por relatarem a realidade social antes de Abril de 1974, com as pessoas que viveram essas mesmas realidades.

Como incentivo a essa mesma investigação e ao aprofundamento do que foi a realidade histórica antes do 25 de Abril, propomos a criação de prémios para produções literárias e de investigação acerca da realidade social antes do 25 de Abril.

O Sr. Miguel Fontes: — Tenho 18 anos e quando foi o 25 de Abril já não sei bem se unha 3 ou 4 anos.

Ao contrário do que por vezes se diz, embora tendo apenas 3 ou 4 anos, tenho bem fresco na minha memória o que foi o 25 de Abril — há outras coisas que não me ficaram na memória, se calhar, porque ela sabe relativizar o que é ou não importante.

O que senti na altura foi uma grande emoção por parte das pessoas que viviam a meu lado — se calhar, fui privilegiado, se calhar, não — ao sentirem que, finalmente, poderiam expressar livremente o que vinha de dentro delas, o que era mais profundo. Isso foi, de facto, o mais importante que para mim aconteceu no 25 de Abril.

Depois, uma série de coisas aconteceram, aquilo a que chamo «as tricas político-partidárias», que, infelizmente, continuam a existir.

Vou fazer um apelo, um apelo sincero, e gostaria que não me julgassem com uma certa ingenuidade, se calhar, tenho-a, mas não creio que me fique mal, e que é o seguinte: por vezes, libertem-se de uma certa, não sei como chamar-lhe, talvez tecnocracia.... enfim, dêem azo ao que ainda resta de juventude nesta gente toàa

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que aqui está, sejam mais sinceros, saibam ver o que é ou não importante e não falem apenas em nome dos jovens nas campanhas eleitorais.

Aplausos gerais.

O Sr. Presidente: — Em face da experiência — a experiência é a mãe de todas as coisas —, não levantamos objecção a que, além de jovens não deputados, outros elementos façam breves perguntas ao Sr. Prof. Agostinho da Silva.

A Sr." Natália Correia: — Sou poetisa... Aplausos gerais.

... e quero começar por saudar o Sr. Prof. Agostinho da Silva por consagrar, na novidade das suas ideias, propostas alternativas que, efemeramente, fluíram na espontaneidade que se soltou do 25 de Abril. Essas vozes logo se apagaram, o que é natural, porque todas as revoluções têm o seu Thermidor.

Mas é importante que essa poética da diferença, que brevemente chispou no 25 de Abril, renasça na visão inovadora de Agostinho da Silva, no seu fascinante contributo para a comemoração do 25 de Abril.

Tem de ser tudo a correr porque nós, deputados, parece que não temos aqui muito tempo para falar, pois hoje é o dia dos jovens...

Estou de acordo com aquilo que o Sr. Prof. Agostinho da Silva disse quanto à questão do trabalho, que é um novo tipo de escravatura criada pelo produtivismo e que a conquista do tempo livre é uma libertação do homem. Mas será que essa libertação do homem proporcionada pelos tempos livres só será possível quando os economistas fecharem os seus escritórios — como muito bem disse — para que a poesia entre na vida?

Ora, o caso é que em Portugal, que nisso não é diferente dos outros países, o economicismo dominante cada vez mais afasta a possibilidade da realização do poético da vida. Que fazer então para conjurar os novos tempos da poetização da vida? Por mim penso que essa obra só pode resultar do entendimento dos poetas e da juventude, uma aliança que consagra a inocência de uma certa juventude que ainda não se deixou seduzir pelos que a promovem para lhe neutralizar a insubmissão do sonho.

Mas é claro que essa aliança dos poetas e da juventude exige uma revolução espiritual, e espiritual, sublinho-o, no que essa revolução se distingue das que a precederam, pois realiza-se no quotidiano, nos comportamentos, no dia-a-dia da vida e na assunção plena dos sentimentos e da paixão.

Aplausos gerais.

O Sr. António José Seguro: — Em primeiro lugar, quero agradecer à Assembleia da República e ao Conselho Nacional de Juventude o facto de terem ajudado na co-organização destas comemorações.

Gostava de fazer a seguinte pergunta ao Sr. Prof. Agostinho da Silva: perante uma sociedade onde se nota uma certa falência das ideologias e onde se começa a assumir que um conjunto de direitos fundamentais, naturalmente nos jovens, não são possíveis de ser concretizados, como é que é possível conciliar o sonho, o direito à felicidade, o direito a ser um cidadão de

corpo inteiro, com esta necessidade, com que nos confrontamos, de termos que nos retardar na nossa participação na sociedade?

O Sr. Nicolau Fernandes: — Venho da Região Autónoma da Madeira a convite da Comissão de Juventude.

Sabe bem, no duplo sentido da palavra, saber e sa-borerar, estar aqui nesta Casa e ouvir uma voz de esperança no Portugal de hoje, como é a voz do Sr. Prof. Agostinho da Silva.

Gostaria apenas de levantar duas questões suscitadas pela intervenção do Sr. Prof. Agostinho da Silva — muitas outras haverá que, certamente, poderiam dar azo a uma discussão. O Sr. Professor falou na origem da propriedade, hoje fala-se do direito à propriedade privada, há tribunais para defender a propriedade privada, há toda uma série de instituições que defendem essa mesma propriedade, sobretudo defendem aqueles que a têm. No parecer do Sr. Professor, gostaria que dissesse para quando os tribunais para os que nada têm.

Outro problema que o Sr. Professor levantou foi o da escolarização ou da instrução. Quanto a mim, não basta discutirmos se há insucesso escolar, importa também pensar que tipo de sucesso escolar existe.

Aproveito esta oportunidade para, publicamente, convidar o Sr. Prof. Agostinho da Silva a ir ali, àquela esquina de Portugal chamada Região Autónoma da Madeira, «sacudir» ideias, discutir acontecimentos, porque os há lá muitos para discutir, para «sacudir».

Aplausos gerais.

O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Prof. Agostinho da Silva.

O Sr. Prof. Agostinho da Silva: — Mesmo aquilo que se não formulou como pergunta, pergunta foi. Todos os comentários que se fizeram aqui são uma interrogação a todos nós e ao futuro. De nós sabemos apenas que possuímos uma capacidade de entender e uma capacidade de vontade. Do futuro do Mundo sabemos pouco. Então tudo o que fizermos é um jogo, uma aposta para que qualquer coisa se realize.

Dois ou três pontos concretos foram aqui levantados. Um deles, que me tem preocupado muito — e devo dizer que esta palavra «preocupar» que aqui emprego nunca significa «pré-ocupar»; penso nas coisas só na altura de me ocupar, o «pré-ocupar» pouco me interessa —, é exactamente a questão da propriedade da terra.

Cada vez mais me interrogo a mim mesmo sobre como seria possível que Portugal fosse restituído a Portugal. Em tempos longínquos toda a propriedade estava nas mãos do rei; fora da propriedade pessoal que ele tivesse, ele possuía a propriedade do reino. Podia dar as terras por este ou aquele mérito, por uma ou outra vida, e tirar as terras sempre que entendesse que aquele que as ocupava não estava a cumprir aquilo que devia.

Então tenho-me perguntado como é que era possível tentar isso. E, como sempre, julgo que a primeira coisa a fazer não é queixarmo-nos dos outros, mas sim de nós próprios, porque não fazemos isto ou aquilo. Eu, se tivesse os meios necessários para o realizar — felizmente, não tenho, porque a pior coisa que poóe

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acontecer, quando se tem fortuna, é ser-se possuído pela própria fortuna e perder-se uma grandíssima parte da Uberdade —, o que faria em primeiro lugar seria ir a uma aldeia (e eu próprio cresci numa aldeia e sei bem como é que é aquela vida), reunir os moradores, os habitantes, e expor-lhes a seguinte questão: para que esta aldeia possa viver com melhor economia, e supondo que essa economia depende da terra, o que é que vocês proporiam?

Vou referir-vos um caso concreto: numa aldeia que conheço, um grupo de mulheres, bastante grande, está interessado em fazer a cultura do linho. Fizeram experiências que me deram ideia de como ainda permanece no íntimo do povo o tal espírito de economia de convivência, de economia comunitária, de economia de solidariedade. Cada uma dispôs um pouquinho da sua terra, que habitualmente dá feijão ou batata, para cultivar linho. Mas houve uma, com mais imaginação, mais audácia — ou maior imprudência, se quiserem —, que pôs toda a sua terra à disposição dessa experiência. Então as outras, aflitas com a possibilidade de ela não vir a ter que comer, foram criando um depósito de batata e feijão para, se por acaso a experiência não desse certo, ela ter com que se aviar para a vida e tornar a repetir a experiência, se quisesse.

Como elas acharam que deviam ter um campo muito maior para que a cultura do linho desse pleno resultado, eu chegaria e perguntar-lhes-ia qual a terra que elas desejavam e faria com que se comprasse essa terra, sempre com o maior respeito e a maior obediência às leis vigentes, de modo que tudo se pudesse fazer sem violência.

Lembro-me, por exemplo, de outro caso que envolve uma analfabeta minha amiga. Devo dizer que tenho muitos amigos analfabetos e que, por isso, quando me convidam para lutar contra o analfabetismo, fico sempre muito atrapalhado, porque sinto que se vai perder uma grande força cultural em Portugal e que se pode vir a criar uma classe mais poderosa, daqueles que, sabendo ler, não entendem o que lêem. Além de tudo, a noção de analfabetismo tem de ir muito mais longe: não é apenas analfabeto o que não sabe juntar as letras para lê-las, é-o também aquele que, tendo lido no jornal, ouvido na rádio ou visto na televisão alguma ideia sobre química, física, zoologia, política ou economia, não sabe o que isso significa. Ele deveria ter possibilidade de imediatamente se dirigir a algum lugar para se esclarecer, para acabar com aquela espécie de analfabetismo em que está mergulhado quanto a tal ou tal assunto.

Mas, voltando à propriedade económica, eu poria exactamente esse problema: que me dissessem qual a terra que era preciso comprar e, tanto quanto possível, eu negociaria com o proprietário para que essa terra fosse adquirida, vendo ainda se ela realmente era própria para a cultura do linho, para o que teria de chamar toda a gente que percebe de culturas, toda a gente de agronomia, toda a gente dedicada a esses estudos, para dizerem, a cada momento, se a tal terra em Portugal convinha para tal ou tal cultura.

Em segundo lugar, tinha de chamar um jurista, porque de leis eu não percebo nada. Apesar do latim, fiquei sempre desconfiado de que o romano era muito menos inteligente do que parecia, que servia para fazer pontes, mas que nunca entendeu direito a filosofia

grega — e daí fez o código penal — ou nunca entendeu direito a noção de beleza que o grego tirava da geometria, que apenas lhe serviu para construir pontes. .., e muito atrapalhado ficou quando chegou ao mar e não havia ponte que o pudesse atravessar!... Até que o Português inventou o navio, que é a ponte e a estrada por onde eles caminharam sobre o mar, e daí se espalhou tudo isso, toda essa herança antiga.

Então eu perguntaria ao jurista qual era a fórmula para que essa terra pudesse ser cultivada, pudesse ser tratada na tal economia de convivência, na tal economia comunitária, que é fundamental em Portugal, como o foi em Espanha.

Não nos esqueçamos de que, quando Carlos V, que acho que foi um dos primeiros a querer fundar a CEE,

Risos.

... tomou conta do trono de Espanha, mas com uns «manos» alemães que repugnaram ao povo espanhol, o povo espanhol levantou-se para lutar contra ele, teve a coragem de se erguer contra aquele homem que era grande na arte militar e que possuía excelentes guerreiros, e o nome que tomaram foi o de comuneros. O que eles queriam defender contra Carlos V era que se continuasse com esse costume da comunidade em Espanha, Com sus fueros v costumbres, como diziam, e as mulheres — D. Maria de Toledo, por exemplo, a par de outras — tiveram nisso uma parte importante.

Foram batidos por Carlos V, como não podia deixar de ser, mas, curiosamente, em Valência, aparece, como esperança fundamental de que um dia Carlos V seria vencido, por muito que demorasse a vingança, a figura do Encoberto, que veio caminhando no sentido oeste, bateu à porta do Bandarra e alertou todos os Portugueses, que também já estavam enjoados com tanta Europa que ia invadindo o País e que procuravam defender-se o mais possível, como, por exemplo, o Sá de Miranda e outros... e até Camões.

Quando Camões fala da «austera, apagada e vil tristeza», o que é isso? É a invasão da Europa, é a economia capitalista que bate a economia comunitária, é o governo autoritário que bate o governo de coordenação, é a metafísica do previsível que bate a metafísica do imprevisível e é alguma coisa de mais terrível, é a educação pelo livro, que bate a educação pela experiência, a educação de viver plenamente a vida que se oferece a todos nós.

Então, esse Encoberto, curiosamente, só vai ter uma identidade, só vai ter um nome com a batalha de Alcácer-Quibir e eu a mim próprio ponho o problema de saber se ele tem essa identidade, isto é, se o Encoberto passa a chamar-se D. Sebastião por causa da derrota, ou seja, por aparecer aquele rei que, depois de uns reis meio melancólicos, meio sinistros e meio atra-palhantes que tinha havido em Portugal, era louco de aventura, atacando o urso na serra de Sintra ou metendo-se ao mar quando havia tempestade, louco decerto, tão louco que foi atravessar o deserto de África em Agosto, quando podia perfeitamente ter navegado quase até ao campo de batalha, ou se, como que inconscientemente, como que sentindo por dentro alguma coisa diferente (o que, às vezes, não sentem os historiadores! ...), o povo português deu ao Encoberto o nome de D. Sebastião porque viu o que havia de positivo na batalha de Alcácer-Quibir. Viu como as armas

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que os Portugueses tinham abandonado no solo do campo de batalha serviram para armar colunas que foram destruir os impérios negros do Níger, impérios extraordinários, porque não tinham fronteiras fixas — os impérios africanos aumentavam ou diminuíam conforme a vontade de tal ou tal tribo ou de tal ou tal povo.

De facto, quando depois a Europa lançou sobre a África toda aquela rede de fronteiras, a régua e esquadro, dificultou a vida da África para o futuro. Eles não tinham essa ideia de fronteiras nem tinham essa ideia de impérios. De qualquer maneira, esses impérios foram destruídos e, como era costume em África — não foi o Português quem inventou a escravatura —, os prisioneiros foram tratados como escravos, levados para a costa e vieram abastecer as plantações do Brasil, tal como mais tarde foram ensinar os Portugueses a minerar o ouro de Minais Gerais ou de Goiás.

Por outro lado, evitou-se talvez que os Turcos tivessem invadido a Europa por Gibraltar, colocando toda a Europa numa situação difícil, porquanto já tinham invadido do lado oeste e estavam batendo os cristãos às portas de Viena.

Então, realmente, o que parece que houve foi a ideia de que talvez fosse já uma emigração necessária, que talvez se tivessem de transportar todos a outro lado, mesmo que fosse a esse reino do sonho, para que em Portugal, um dia, se viesse a reinstaurar e, provavelmente, começar essa reinstauração por perguntar se a terra e o mar de Portugal, devidamente cultivados, devidamente tratados, juridicamente certos, sempre sem a menor violência, sempre respeitando os direitos dos outros...

E agora me recordo da minha amiga analfabeta, que passou uma vida duríssima no Alentejo; até aos 4 ou 5 anos, de vez em quando, tinha de ir à taverna buscar o pai, que se embebedava, porque era talvez a única maneira de esquecer a vida terrível que estava levando; depois, aos 10 anos, começou a servir; tem 60 anos e até agora não tem feito outra coisa senão servir patrões, que podem ser excelentes..., mas essa relação entre servo e quase dono dificilmente pode ser a verdadeira, dificilmente pode ser a solução redentora.

Uma vez veio a Portugal um grande amigo meu para assistir à reeleição do general Eanes, um grande jornalista americano, que, quando ouviu falar dela e da sua aventura, me perguntou se a podia entrevistar, ao que eu disse que sim. Ele falava espanhol e eu disse--lhe que, se ela não entendesse alguma coisa, talvez eu fosse capaz de traduzir. Ele fez-lhe a entrevista e ela contou-lhe a vida com uma franqueza, de uma maneira tão directa, que o jornalista estava tão impressionado, tão comovido, que disse-lhe: «Bom, mas agora todos esses males acabam. Houve a reforma agrária, os proprietários não têm mais as terras, tudo isso vai mudar. A senhora não acha?» E ela disse-lhe: «Não acho, não senhor!, pois se a terra era deles, para quê essa violência de lhes tirar a terra?» Ela o que queria era que qualquer coisa tivesse sido inventada para não se ter ofendido nenhum direito, para que realmente não se tivesse usado de nenhuma violência e para que, de facto, ela ou as outras elas, em que ela se multiplicava pelo Alentejo, pudessem, efectivamente, vir ter uma vida nova.

Até agora, segundo parece, tem sido difícil encontrar isso; até agora apenas se tem notado que o Alentejo se desertifica, desertifica-se no que respeita à cultura da terra e desertifica-se na presença dos jovens da terra. O Alentejo envelhece a cada passo.'...

Também parece que se notou já que, enquanto as ordens religiosas dominavam o Alentejo, que, em grande parte, tinham conquistado, a economia era satisfatória e a população se mantinha. Haveria talvez de procurar, no que respeita ao Alentejo, por exemplo, se haveria agora alguma entidade que, de algum modo, pudesse representar o melhor das ordens religiosas. E lembrei-me eu, talvez por ser ingénuo, que talvez a própria Universidade de Évora pudesse começar a pensar nisso. O que é uma universidade? A meu ver, é uma ordem contemplativa, é aquela que contempla todas as espécies de ciências, mas que, ao mesmo tempo, tem dentro de si os intrumentos jurídicos e as máquinas práticas para passar dessa contemplação à realidade.

Não sei, mas parece que, muitas vezes, as universidades contemplam muita outra coisa diferente disso e, parece, não estão dando pela realidade do Alentejo e de tudo o resto.

Mas pouco me importo, de facto —se resolver agir por mim e tiver os meios para isso—, com o que pensem as universidades ou não pensem, excepto naquilo em que eu as possa interrogar e elas possam, efectivamente, dar resposta às perguntas às quais não sei responder. Mas, é evidente, tratar eu de uma aldeia, mesmo que o conseguisse, não resolveria o problema — perdõem-me ... Era preciso que experimentássemos tudo isso em todas as aldeias de Portugal, e não só no que respeita à propriedade da terra ou à propriedade de qualquer outra coisa que pudesse dar rendimentos à população; era preciso pensar também no que dignifica a cultura ou a educação dos Portugueses.

Aí o que penso é que Portugal será inteiramente culto quando nenhum português fizer mais nenhuma pergunta para satisfazer a sua curiosidade. Logo que cheguemos a esse grau de cultura, é preciso introduzir no Mundo uma quantidade de gente que seja bastante mal educada para fazer perguntas e obrigar toda a gente a ter novos problemas e a fazer novas perguntas, porque o Mundo nunca avançou pelas respostas, nunca chegou ao terraço apenas porque galgou um degrau, mas porque se lhe apresentou outro degrau, que o obrigou a subir, a andar, a cima, até chegar onde pudesse contemplar toda a paisagem.

Então o que eu faria não era nenhuma espécie de escola, o que eu faria era a receita que me deu uma outra analfabeta, vejam só! Nenhuma universidade, nem aqui, nem fora, me ensinou coisa alguma que fosse tão poderosa como aquilo que me ensinaram as analfabetas.

Uma delas deu-me a boa receita de escola: «É ter uma casa aberta», dizia ela, «para eu entrar lá e perguntar o que não sei.» Então o que eu poria em cada terra seria exactamente «uma casa aberta» para que a população pudesse entrar e perguntar o que não sabia. Se a pessoa dentro tivesse o gosto de estudar e estivesse munida de, por exemplo, alguma enciclopédia razoável e de um telefone para perguntar o que não sabia a outro alguém, íamos fazendo a educação do País.

Só isso?! Não, porque para fazer coisas é preciso estar vivo, é preciso estar forte, é preciso estar seguro

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ào seu corpo para que a alma possa desenvolver-se plenamente, como é preciso estar com a alma bem ampla para que, desenvolvidamente, o corpo possa avançar. É preciso as duas coisas ao mesmo tempo.

Numa aldeia dessas eu procuraria que houvesse alguém, não que tratasse os doentes, mas que evitasse que a população estivesse doente — a medicina preventiva é muito mais barata e muito menos quimica do que qualquer medicina curativa. Então eu digo: é preciso que cada jovem, associando-se a outros jovens, se possível, e escapando-se também, logo que possa, do ambiente da cidade, em que toda a gente está desintegrada do seu verdadeiro meio cultural, físico e ético — do meio cultural, numa palavra—, para que possa cumprir essa missão, de aldeia em aldeia, de ponto a ponto do País, por muito tempo que isso demore, sempre dentro da lei, sempre procurando ...

Atendendo ao que tanto as fundações têm feito em Portugal, suponhamos que nos parecia que era um ponto importante esse desenvolvimento das fundações, que são ao mesmo tempo públicas e privadas ... E até vou mais além: quem sabe se poderíamos começar a ver o Governo, a máquina administrativa do País, apenas como se fosse uma fundação, até já me lembrei do nome, já propus que se chamasse Fundação Afonso Henriques e que se visse toda a história como a história dos conselhos de administração que se foram sucedendo na Fundação Afonso Henriques e que os jovens, procurando criar coisas semelhantes, entrassem em comunicação com essa fundação até que um dia se pudesse fazer de Portugal uma federação de federações, que fosse vendo a parte económica do País, na sua terra e no seu mar, que fosse vendo a parte cultural, a parte de saúde e que por aí pudesse dar exemplo ao Mundo.

É escusado pensar que é a CEE ou qualquer coisa de parecido que nos vai dar o exemplo. Somos nós que temos de tomar esse exemplo e essa vontade nas nossas mãos e salvar da ruína a coitada da CEE, em que já nem nascem meninos, em que a natalidade é negativa — está com menos não sei quantos, quase dois, de natalidade negativa, quando, por exemplo, o Chade, está com 4,3 de natalidade positiva ... —, e parece que até pensam em defender as fronteiras para morrerem de velhos sozinhos, como se pusessem um muro à volta da Europa — que não é a Europa, é apenas a CEE; a Europa é muito mais vasta, é muito mais interessante do que a CEE —, como se isso fosse possível!... A Europa vai ser uma grande região de emigração, desde emigrantes latino-americanos — do Peru já estão saindo 10 000 pessoas por mês que se dirigem para a Europa ou para outros países onde possam viver — até africanos e orientais.

Quando isso estiver feito, quando daqui a 500 ou 1000 anos, tanto me faz (o tempo para mim não conta), pudermos dizer que a Europa é uma grande região pluriétnica e pluricultural, sabeis no que é que se tornou a Europa? Num novo Brasil!

O que é o Brasil? É uma região enorme, pluriétnica, pluricultural, que fala português ..., mas pode haver regiões pluriétnicas e pluriculturais que não falem português. O importante que passou pela cabeça do Albuquerque e que não deu certo na índia — e não deu certo porque havia uma grande diferença entre a incultura dos Portugueses que chegavam e a cultura das mulheres que estavam lá e que poderiam casar com

eles, além disso, ele não pensou no problema das castas!—, o que não deu certo na índia, repito, deu certo no Brasil.

Formou-se ali um pais pluriétnico e pluricultural, que está procurando, com todas as dificuldades — e sei bem quais são!—, uma cultura humana tão ampla que abrace todas as outras culturas, sem impedir, de modo algum, a cultura de cada indivíduo em si próprio, porque isso é que é verdadeiramente cultura.

Quando se fala em cultura geral e em provas de cultura geral, pergunto que coisa é essa. Não há! Só há cultura pessoal de cada homem. A cultura geral é apenas aquilo que tiver de substrato comum da cultura dos homens, uns com os outros, e não alguma coisa que paire sobre eles e que eles têm de aprender como se fosse alguma coisa que lhes vai dar todas as espécies de salvação.

Mas, se assim for, se um dia a Europa for pluriétnica e pluricultural, e agora torno a dizer, a Europa para mim não é só tudo aquilo que vai acima dos Pirinéus ou acima dos Alpes .... há uma Europa que é formada também pelos Estados Unidos da América e Canadá ..., há outra Europa, a da tal classe de samurais, do Japão, que foi com ímpeto guerreiro para a indústria e está agora com má consciência, porque são ao mesmo tempo budistas e ricos, coisas que eles acham incompatíveis e que, provavelmente, o são!

Mas então, dizia eu, teremos uma coisa curiosíssima, e é pena que o Padre António Vieira, que era sacerdote e que, portanto, estava instalado na eternidade, tivesse tanta pressa de construir esse império de cultura portuguesa que até julgou capaz de dirigir o próprio D. Afonso VI. Não, bastava que deixasse correr o tempo da tal eternidade para ver que nos vamos aproximando disso e que todo o nosso gosto será que a Europa seja pluriétnica e pluricultural.

Sabeis às vezes o que me parece? É que muitas das nossas dificuldades vão desaparecer se houver dificuldades maiores que de vez em quando alguém é favorecido por aquilo que é uma desgraça. Se olho a minha própria vida — e quantas vezes me tenho lembrado agora, aqui, que se fala da ditadura —, pergunto-me quanto eu devo à ditadura, às perseguições. Nada tinha feito se me tivessem tratado bem, e, se não tivesse sido extinguida a Faculdade de Letras do Porto, eu devia ser hoje um pobre velho aflito por não saber bastante grego, andando passeando e desejando não encontrar quem soubesse grego melhor do que eu, passeios melancólicos à volta da estátua de D. Pedro IV.

Depois de terem extinguido a Faculdade, se não me tivessem demitido do ensino secundário, em Aveiro, também aí eu seria hoje um sujeito, um velho refugiado num café, chupando um cigarrinho triste e achando que a vida não tinha servido para nada.

Foram as perseguições, foi aquilo que foi contra que me levou a uma vida que, felizmente, foi muito mais interessante e satisfez o meu desejo mais profundo, que é o de ser vagabundo de todos os lugares, de todas as especialidades, vagabundo conhecedor e amigo de todos os homens e desejando, do fundo do coração, com toda a minha vida, que eles um dia resolvam todos esses problemas, sabendo eu que eles não se resolvem de cima para baixo: tem de começar-se pelos alicerces, pela

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mais humilde das escavações, para se chegar ao zimbório e, como já disse uma vez, se o nosso reino é o do sonho, então o nosso palácio tem de ser o do concreto e do concreto bem seguro e bem firme.

Aplausos gerais.

O Sr. Presidente: — Julgo que a ciência nos legou um instrumento perfeitamente horrível que se chama o relógio.

Depois de duas brilhantes intervenções do Sr. Prof. Agostinho da Silva, depois de sete intervenções dos grupos

parlamentares e de cinco intervenções extremamente curiosas de jovens que aqui vieram acompanhar-nos, julgo que nos poderemos dar por felizes, particularmente, dado o brilho do Sr. Prof. Agostinho da Silva. Uma vez que já temos tanta coisa para pensar, creio que poderíamos fazer agora um pequeno intervalo antes do jantar. Após o jantar, convido-vos para nos continuarmos a deleitar com alguns fados de Coimbra. Está encerrada a reunião.

Eram 19 horas e 40 minutos.

As Redactoras: Maria Amélia Martins — Cacilda Nordeste.

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DIÁRIO

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