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Quarta-feira. 31 de Outubro de 1990

II Série-C — Número 2

DIÁRIO

da Assembleia da República

V LEGISLATURA

4.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1990-1991)

SUMÁRIO

Provedor de Justiça:

Parecer sobre as deficiências e reformulação preco-nizável do actual sistema legislativo em matéria de colheitas e transplantações de órgãos (Decreto-Lei n.° 553/76, de 13 de Julho)(fl).................. 6

(a) Publicado ao abrigo da alínea b) do n.° 1 do artigo 18.° da Lei n.° 81/77, de 22 de Novembro, e do artigo 262.° do Regimento da Assembleia da República.

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PROVEDOR DE JUSTIÇA Parecer I

O artigo 5.° do Decreto-Lei n.° 553/76. Posição do Provedor de Justiça e acórdão do Tribunal Constitucional (1988).

1.1 — Em 1986, o Provedor de Justiça suscitou perante o Tribunal Constitucional a questão da inconstitucionalidade (material) do artigo 5.° do Decreto-Lei n.° 553/76, de 13 de Julho, que define os termos em que poderão ser colhidos no corpo de pessoa falecida tecidos ou órgãos necessários para transplantação e outros fins terapêuticos.

A posição então assumida pelo Provedor de Justiça baseou-se no excelente parecer elaborado pelo assessor Dr. Carlos Soares de Brito, depois publicado na Revista da Ordem dos Advogados, ano 48.°, Abril de 1988, pp. 239-266.

1.2 — Dispõe aquele artigo 5.° do Decreto-Lei n.° 553/76:

Os médicos não podem proceder à colheita quando, por qualquer forma, lhes seja dado conhecimento da oposição do falecido.

1.3 — Em síntese, era esta a argumentação aduzida no parecer, adoptada pelo Provedor de Justiça:

Reconhece o artigo 5.° o direito de oposição do falecido; só que não viabiliza o seu exercício.

A vontade do falecido, eventualmente contrária à colheita, apenas poderá ser comunicada aos médicos por terceiros. Mas para isso necessário se torna que eles tenham conhecimento da morte; assim, pelo menos, os parentes mais próximos.

Não tem a família, ela própria, um direito de oposição, não lhe cabendo autorizar a colheita. Mas deve ter o direito a conhecer da morte, para poder transmitir aos médicos a vontade expressa ou tácita do falecido.

Ao omitir a notificação do óbito ao círculo de pessoas capazes de fazer essa transmissão de vontade, compromete o artigo 5.° o exercício do direito de personalidade à disposição do corpo e, por decorrência, viola o n.° 1 do artigo 25.° da Constituição (direito à integridade pessoal), o n.° 1 do artigo 26.° (outros direitos pessoais), os n.os 1 e 2 do artigo 37.° (liberdade de expressão e informação) e, reflexamente, o n.° 1 do artigo 41.° (liberdade de consciência).

Acresce que o artigo 5.° do Decreto-Lei n.° 553/76 deveria fixar um prazo para ser comunicada aos médicos a oposição do falecido e, simultaneamente, para a formação do silêncio a partir do qual os médicos ficariam habilitados a efectuar a colheita.

2.1 — No Acórdão n.° 130/88, de 8 de Junho de 1988 (Diário da República, 2.a série, n.° 205, de 5 de Setembro de 1988, a p. 8101), entendeu o Tribunal Constitucional, embora com três votos dissidentes, não ser de declarar a inconstitucionalidade.

Considerou, desde logo, ser liminarmente de afastar a invocação dos artigos 37.° (liberdade de expressão e informação) e 26.°, n.° 1, da Constituição. Isto porque a liberdade de expressão e informação tem a ver

com o direito de manifestar publicamente ideias e factos e não com declarações de vontade ou de ciência entre simples particulares; por outro lado, nenhum dos direitos pessoais elencados no artigo 26.°, n.° 1, pode assumir relevo directo na hipótese.

Quanto ao direito à integridade pessoal (artigo 25.°, n.° 1), não sendo já o cadáver uma «pessoa», tem de se excluir a possibilidade de a colheita atentar contra a integridade «pessoal» de um cadáver.

2.2 — Problematizou, no entanto, o Tribunal Constitucional a questão noutro plano. Enquanto viva tem a pessoa o direito a opor-se à utilização do seu próprio cadáver para recolha de tecidos ou órgãos, «ao menos quando fundado em razões éticas, filosóficas ou de carácter religioso». A esse direito é de reconhecer relevo constitucional, num sistema radicado na dignidade da pessoa (artigos 1.° e 2.° da Constituição).

Só que o défice de regulamentação que o artigo 5.° denota, não instituindo formalismos ou mecanismos desburocratizados para captar a vontade do falecido, poderá ser suprido por um ónus de zelo da pessoa enquanto viva, tomando então providências para que a sua oposição seja conhecida em tempo oportuno. E a imposição de um prazo somente a partir do qual os médicos ficariam habilitados a efectuar a colheita inviabilizaria muitas intervenções determinadas por interesses sociais em igual plano merecedores de tutela.

3.1 — Na sua declaração de voto dissidente acompanha o conselheiro Raul Mateus o acórdão enquanto este atribui relevo constitucional ao direito de oposição à colheita. Mas assinala uma vertente que, a seu ver, confere maior premência ao eficaz exercício do direito. É que os órgãos ou tecidos transplantados não morrem, em termos biológicos, com a pessoa a cujo corpo originariamente pertenciam. Sobrevivem-lhe, continuando a desempenhar as funções que lhe são típicas, embora integrados nos sistemas vitais do corpo do beneficiário do transplante. Essa mescla de duas individualidades corporais não poderá ocorrer à revelia da pessoa de cujo cadáver se irão colher os órgãos ou tecidos.

Ora se é certo que para assegurar plenamente o exercício do direito fundamental de oposição bastaria à lei impor às pessoas o ónus de, em vida, declararem essa vontade, não menos certo é que à declaração de vontade produzida teria de ser assegurada pelo menos uma provável eficácia prática — por exemplo, determinando a lei a armazenagem das declarações em computador central cujo banco de dados fosse susceptível de consulta através de terminais existentes nos diversos estabelecimentos hospitalares. Mas nada disto sucede. Não é facultado o exercício efectivo do direito de oposição. «De que serviria, na verdade, que uma pessoa trouxesse permanentemente na carteira uma declaração de proibição de colheita — recurso porventura típico e próprio de um cidadão prudente, face ao apontado vazio legal — se os médicos não tivessem, de maneira alguma, o dever de aí a procurar?» Aliás, este sistema resultaria altamente falível, já que as pessoas de cujos cadáveres se recolhem órgãos ou tecidos para transplantes são, por regra, as vítimas de acidentes. Ora será comum a perda, por parte dos acidentados, da documentação que lhes respeita.

Daí que, na realidade das coisas, o facto de o artigo 5.° do Decreto-Lei n.° 553/76 não obrigar os médicos, previamente à colheita de órgãos ou tecidos, a

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qualquer contacto com pessoas do círculo mais íntimo do falecido, com vista à captação da vontade deste (único meio verdadeiramente possível e eficaz) afecta o direito à disposição do próprio cadáver.

Quanto à fixação de um lapso de tempo para a transmissão, por parte de familiares e amigos, da vontade do falecido, não impediria, na prática, muitos transplantes, se a lei estabelecesse um período muito curto para o efeito e permitisse que as consultas se iniciassem no decurso da fase de observação para accertamento da morte.

3.2 — Para o conselheiro Messias Bento, o artigo 5.°, ou qualquer outra norma do aludido diploma, não impõe aos médicos qualquer dever de diligenciar o conhecimento de qualquer eventual oposição do falecido. É um regime laxista, que nem se preocupa em garantir, com um mínimo de eficácia, que as colheitas se façam só depois de haver a certeza da morte: «revogou a Portaria n.° 156/71, de 24 de Março, e nada dispôs sobre a verificação do óbito».

A inconstitucionalidade promana de os médicos poderem fazer a colheita sem diligenciarem em averiguar a eventual oposição do falecido. É ilegítimo — salvo, naturalmente, em casos muito graves e urgentes — que tais colheitas se possam fazer contra a vontade do falecido. Dai a afectação do direito à integridade física e moral (artigo 25.°, n.° 1), do direito à reserva da intimidade da vida privada (artigo 26.°, n.° 1) e da liberdade de consciência, de religião e de culto (artigo 41.°, n.os 1, 3 e 6).

O artigo 5.°, integrado no conjunto normativo do Decreto-Lei n.° 533/76, arrasta à desvalorização do direito de dispor do próprio cadáver, à sua trivialização ou inutilização.

3.3 — Reitera o conselheiro Monteiro Dinis que o artigo 5.° e todo o sistema do diploma criam a objectiva possibilidade de os médicos efectuarem colheitas sem que diligência alguma, efectiva e real, haja de por eles ser feita no sentido da averiguação de uma eventual oposição por parte do falecido. Não está instituído um sistema minimamente credível que impeça a imediata oposição dos médicos em oposição à vontade do falecido. Aliás, a ausência de um regime que imponha critérios legais, com base em padrões científicos, para a determinação da morte permite, pelo menos no plano das hipóteses, que possam ser recolhidos órgãos em indivíduos não cadáveres. Todos os cidadãos estão transformados em potenciais dadores forçados. Está consentido o desenvolvimento de iniciativas comerciais privadas directamente relacionadas com os transplantes.

3.4 — O conselheiro Cardoso da Costa, tendo votado o acórdão, não deixou de, em declaração de voto, reconhecer que a disciplina legal da colheita de órgãos e tecidos apresenta «consideráveis deficiências ou insuficiências». Lembrou, no entanto, que do artigo 5.° já se extrairá um certo dever de diligência ou de cuidado dos médicos — embora de conteúdo imperfeitamente determinado — em ordem a evitar-se a realização de colheitas contra a vontade do falecido.

II

As deficiências do Decreto-Lei n.° 553/76

4.1 — São patentes as deficiências detectáveis no Decreto-Lei n.° 553/76, de 13 de Julho.

Desde logo, versa apenas sobre a colheita de órgãos e tecidos em cadáveres, omitindo por completo o enquadramento legal da extracção de tecidos e órgãos de pessoas vivas.

A Lei n.° 1/70, de 20 de Fevereiro, diz somente respeito à colheita de «produtos biológicos humanos» (como, por exemplo, sangue e leite — este nas «condições especiais» a fixar por portaria), e não de órgãos e tecidos.

4.2 — O escasso apuro técnico do Decreto-Lei n.° 553/76 poderá ser consequência da intencionalidade expedita que o determinou: a de substituição, quase que em «estado de necessidade», do sistema do Decreto--Lei n.° 45 683, de 25 de Abril de 1964, em ordem a facultar soluções mais praticáveis no tocante às trans-platações.

Dizia respeito este diploma de 1964, de igual modo, à colheita no corpo de pessoa falecida de tecidos ou órgãos de qualquer natureza, «nomeadamente ossos, cartilagens, vasos, pele, globos oculares e sangue», quando eles fossem necessários «para fins terapêuticos ou científicos», e essa intervenção, para ser útil, não pudesse aguardar «o decurso do prazo legal de prevenção contra a morte aparente» (artigo 1.°).

Podia a colheita ser efectuada em «bancos gerais especializados em olhos ou outros órgãos ou tecidos» ou em bancos instalados por entidades particulares autorizadas por alvará passado pelo Ministério da Saúde e Assistência — e ainda em clínicas e institutos universitários e hospitais públicos ou privados e casas de saúde autorizados por portaria do Ministério da Saúde e Assistência (artigo 3.° e § único do artigo 2.°).

4.3 — Na execução das colheitas deveria observarle rigoroso respeito pelo decoro do cadáver e evitarle mutilações ou dissecações não necessárias para a recolha dos tecidos ou órgãos e para as verificações indispensáveis à utilização destes e por forma a, quanto possível, não prejudicar a realização da autópsia, se viesse a mostrar-se necessária. Depois da operação deveria ser restabelecida a morfologia do corpo, podendo usar-se para esse efeito elementos de prótese (artigo 13.°).

5 — A verificação da morte era objecto de detalhada regulamentação, complementada depois pelas Portarias n.os 20 688, de 27 de Julho de 1964, e 156/71, de 24 de Março.

6 — A gratuitidade da colheita — em relação ao dador ou a quem tivesse autorizado (a família) — era regra (artigo 8.°), apenas sendo válida a disposição pela qual o falecido tivesse imposto ao serviço que, por ele autorizado, determinasse a colheita o encargo de custear o seu funeral, até ao limite que fosse fixado em despacho ministerial (§ único desse artigo 8.°).

7 — Ainda que autorizadas pelo falecido, as colheitas não poderiam efectuar-se quando contrárias «à moral ou aos bons costumes» (§ 1." do artigo 1.°).

Significava isto que não poderiam ser efectuadas, por exemplo, transplantações do cérebro ou das glândulas sexuais, já que violadoras da dignidade humana (assim, v. g., Lei italiana n.° 644, de 2 de Dezembro de 1975).

8 — Ora, o Decreto-Lei n.° 553/76, embora mantendo em vigor, em tudo o que o não contrarie, as Portarias n.os 20 799 e 20 800, ambas de 10 de Setembro de 1964, e 24 217, de 2 de Agosto de 1969 (que reula-mentaram, respectivamente, a criação e funcionamento dos bancos de órgãos ou tecidos, gerais ou especializados, que vierem a ser criados em estabelecimentos oficiais, e a criação do banco de olhos dos Hospitais Civis de Lisboa, e que autorizou os Hospitais da Uni-

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versidade de Coimbra a procederem à colheita de tecidos ou órgãos), deu causa a uma certa indefinição quanto aos «estabelecimentos hospitalares» autorizados a proceder às colheitas (artigo 2.°).

É, por outro lado, ambíguo quanto à gratuitidade ou não da colheita, se bem que o parecer n.° 35/52 da Procuradoria-Geral da República, de 27 de Novembro, referenciado no preâmbulo, se tivesse pronunciado no sentido da gratuitidade.

9.1 — O Decreto-Lei n.° 45 683 previa que a colheita se efectuasse para «fins terapêuticos ou científicos» (artigo 1.°).

Já o Decreto-Lei n.° 553/76 fala apenas em colheitas «para transplantação ou outros fins terapêuticos».

Será esta última formulação redutora em relação à primeira, significando a primeira a efectivação de colheitas para «experimentação científica»?

No respeitante às colheitas em pessoas vivas, tudo aponta para que elas se destinem exclusivamente a fins curativos imediatos e personalizados.

Já no tocante às colheitas em cadáveres, poderão elas ter fins terapêuticos imediatos ou diferidos, através da sua armazenagem em bancos de órgãos ou tecidos.

Mas quanto às colheitas para fins puramente experimentais, quer de investigação, quer didácticos?

Não serão elas de arredar, em bem contados e prudentes casos, e sempre, claro está, no corpo de pessoas falecidas.

A resolução (78) 29 do Comité de Ministros do Conselho da Europa (11 de Maio de 1978) sobre a harmonização das legislações dos Estados membros relativamente às extracções, enxertos e transplantações de substâncias de origem humana, nas regras que aprova, prevê expressamente a extracção ou colheita para fins terapêuticos e de diagnóstico em benefício de outras pessoas que não o dador e para fins de investigação (n.° 1 do artigo 1.°).

9.2 — Curioso é assinalar que a Lei espanhola 30/1979, de 27 de Outubro, sobre extracção e transplantes, dispõe no artigo 1.° que se aplicará «à cessão, extracção, conservação, intercâmbio e transplante de órgãos humanos, para serem utilizados para fins terapêuticos».

Mas, sendo certo que abrange a colheita em pessoas vivas e em cadáveres, vem no n.° 2 do artigo 5.° preceituar que «a extracção de órgãos e outras peças anatómicas de falecidos se poderá realizar com fins terapêuticos ou científicos [...]». Trata-se de uma aparente contradição com a moldura do artigo 1.°, como refere Ramón Martín Mateo (Bioética y Derecho, 1987, p. 110), que, aliás, considera a lei um texto jurídico «de excepcional qualidade» (ob. cit., p. 109).

Está-se em crer que a finalidade científica nominalmente referenciada não vai além da finalidade terapêutica ou curativa, embora com utilização diferida, mediante o seu armazenamento em bancos.

E daí que neste aspecto a formulação do Decreto--Lei n.° 553/76 ganhe vantagem, por não consentir dúvidas, em relação ao diploma de 1964.

Os transplantes são uma excepção como solução terapêutica, mas quando determinados por essa finalidade será forçado afirmar-se que se inserem, necessariamente, no campo da «investigação terapêutica», como argumenta Romeo Casabona em «Por una ética de transplantes» (em El País, de 25 de Novembro de 1984).

As modulações das finalidades prosseguidas melhor serão analisadas a propósito do tipo de consentimento prévio à extracção ou à colheita.

III

O consentimento do dador

10.1 — Dispõe o artigo 5.° do Código Civil italiano que os actos de disposição do próprio corpo são proibidos quando conduzirem a uma diminuição permanente da integridade física (ou quando forem contrários à lei, à ordem pública ou aos bons costumes).

Só que o preceito não tardou em ser ultrapassado pelas realidades. Pensado, realmente, para situações como os transplantes de córneas, cartilagens, etc, dificultava ou poderia mesmo impedir transplantes depois usualmente praticados, como os do rim. E daí a sua intepretação correctiva, logo intuída, por exemplo, por Calógero Gangi (Persone Fisiche e Persone Giuri-diche, 1948, p. 175) e Adriano de Cupis (I Diritti delia Personalità, 1950, pp. 61-69) e, depois, a sua derrogação, por força da Lei n.° 458, de 16 de Junho de 1967 (a que se seguiram as Leis n.os 644, de 2 de Dezembro de 1975, e 409, de 16 de Julho de 1977). Neste sentido, Santossousso, vox «Trapianti» (em Novíssimo Digesto Italiano, vol. xix, 1973, reimpressão de 1980, p. 508) e Fernando Montovani, / Trapianti e la Sperimen-tazione Umana nel Diritto Italiano e Straniero, 1974, p. 143.

10.2 — Que a pessoa não é dona do seu corpo é evidenciado pela condenação, de inspiração cristã e prevalentemente ética, do suicídio e da automutilação. Nesta linha de posicionamento sublinhou J. Diez Diaz que a pessoa não é plenamente proprietária do seu corpo, mas apenas como que sua usufrutuária («El de-recho a la disposición dei cuerpo», na Aev. Gen. de Leg. y Jurisp., 1967, i, p. 714).

Os corolários deste pressuposto são óbvios: a colheita terá de ter uma finalidade terapêutica imediata, com probabilidades de êxito, não podendo pôr em risco sério e objectivo a vida do dador, nem prejudicar de modo irremissível a sua integridade física global. A doação de um rim, por exemplo, não afectará essa totalidade física e humana.

Não é de pôr de lado que a aludida Resolução (78) 29 do Conselho da Europa dá uma certa abertura.

Assim, no artigo 4.° prevê que a extracção de substâncias não susceptíveis de regeneração, embora em regra limitada às transplantações entre pessoas geneticamente aparentadas, possa ser feita quando existam hipóteses sérias de êxito.

E o artigo 5.° estabelece que a extracção de substâncias de que desponte um risco previsivelmente grave para a vida ou a saúde do dador possa ser excepcionalmente admitida quando justificada por motivações do dador, pelas relações familiares que o ligam ao beneficiário e pelas exigências médicas do caso. O Estado poderá, no entanto, proibir uma tal extracção.

10.3 — Em síntese, poder-se-á dizer que o princípio da inviolabilidade do corpo humano se opõe por regra à extracção de um órgão ou tecido não regenerável. Qualquer excepção fundar-se-á como que num estado de necessidade (Grenouilleau, «Commentaire de la Loi 76-1181, du 22 décembre 1976», Recueil Dalloz, 1977, p. 214).

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Daí que antes de qualquer extracção para fins terapêuticos o dador deva ser informado sobre todas as consequências previsíveis de ordem física e psicológica da extracção, assim como sobre todas as repercussões eventuais desta sobre a vida pessoal e profissional do dador (Decreto 78-501, de 31 de Março de 1978).

Entretanto, alguns autores põem reservas quanto a esta posição, se os riscos forem graves: o ânimo de salvar uma vida não poderá justificar a extracção de um órgão que afecte a integridade física (Dausset, «Le don d'organes: un geste de solidarité», na Rev. FORUM, «Dossier Santé», Maio de 1987, p. 14).

Tudo parece estar na procura de um ponto de equilíbrio, de uma solução de proporcionalidade (Michèle Harichaux, «Le corps objet», em Bioéthique et Droit, ed. P. U. F., 1988, maxime p. 133).

11.1 — E quanto à dação por menores?

A aludida Resolução (78) 29 de Conselho da Europa prevê-a expressamente (n.° 1 do artigo 2.°): quando se tratar de um menor ou de outro incapaz (no ponto de vista jurídico), o seu representante legal deve ser informado, de modo adequado, antes da extracção, das possíveis consequências desta, designadamente médicas, sociais ou psicológicas, assim como do interesse que a extracção representa para o beneficiário.

Este ónus de informação vale também em relação ao dador maior e não incapaz; só que, obviamente, será ele próprio a ser informado.

Estabelece ainda o artigo 6.° da mesma resolução:

1 — No que respeita aos juridicamente incapazes, as extracções de substâncias susceptíveis de regeneração devem ser excepcionais. Tais extracções serão possíveis quando necessárias por razões terapêuticas ou de diagnóstico. Só poderão ser efectuadas com o consentimento do representante legal do incapaz, salvo oposição do próprio incapaz. Se as extracções apresentarem um risco para a saúde do incapaz, será também necessário obter a autorização de uma entidade (pública) competente.

2 — São proibidas as extracções de substâncias não susceptíveis de regeneração em juridicamente incapazes. No entanto, um Estado pode prever que, em casos excepcionais, justificados por razões terapêuticas e de diagnóstico, uma extracção (dessa natureza) seja possível se o dador tiver discernimento e tiver dado o seu consentimento, se o representante legal e uma entidade (pública) competente a autorizarem e se o dador e o beneficiário estiverem estreitamente aparentados geneticamente.

3 — As extracções de substâncias que impliquem um risco previsivelmente grave para a vida ou a saúde do dador, quando este for um juridicamente incapaz, são proibidas.

11.2 — Realmente, a ideia nuclear que subjaz ao consentimento do dador vivo é que ele seja pessoal, livre e expresso. Ora, para que o consentimento seja verdadeiramente livre, necessário se torna que, em princípio, o dador tenha pleno discernimento, isento de pressões e com inteiro conhecimento de causa.

Daí que, a exemplo do que acontece com a legislação italiana, a Lei espanhola 30/1979 expressamente imponha (artigo 4.°) que o dador seja maior de idade e que esteja no gozo de plenas faculdades mentais. Não se prevê qualquer excepção a esta regra.

11.3 — A Lei francesa de 1976 prevê a dação feita por menores, desde que o beneficiário seja um irmão ou uma irmã e que seja obtida a autorização de três peritos médicos, podendo, em qualquer caso, o menor opor-se à extracção, quando for possível obter o seu consentimento.

11.4 — É duvidoso que não se deva seguir a solução italiana ou espanhola.

IV

O artigo 5.° da Lei n.° 553/76

12.1 — Quanto à colheita de órgãos e tecidos post mortem não resta dúvida de que no confronto do interesse «integridade» do corpo e projecção da dignidade da pessoa para além da sua morte e do interesse da protecção da saúde dos vivos, beneficiários do transplante, deverá, como regra, prevalecer este último.

Parece precipitado falar, sem mais, no risco da «nacionalização» ou da «socialização» do cadáver.

É inegável que o cadáver não é uma coisa, como asseverava, por exemplo, Dias Ferreira (Código Civil Português Anotado, i, 2.a ed. 1984, p. 6), partindo da divisão rígida e conceptualizante entre pessoas e coisas, concluía ele que o cadáver, não sendo já uma pessoa, teria de ser uma coisa. E mesmo nesta perspectiva, nem haveria um direito real sobre o cadáver, susceptível de transmissão sucessória: o cadáver sempre seria uma coisa fora do comércio.

A dignidade humana postula que o destino normal do cadáver, no qual se projecta a essência da pessoa viva, seja «o de ser dado à paz da sepultura», na frase, de De Cupis. Mas esse destino não se desfigura quando contribua para promover a solidariedade, em benefício dos vivos.

Como já assinalava Cunha Gonçalves (Tratado de Direito Civil, I, 1929, p. 304), se pela morte a personalidade jurídica fica extinta, o cadáver, como rema-nescência ou invólucro dessa personalidade, é ainda objecto de respeito.

Gomes da Silva foi mais além: «Sobre (o cadáver) projecta-se [...] a dignidade da pessoa de quem fez parte e, por isso mesmo, logo que, por exigência da moral e do direito natural, ele deve ser respeitado e venerado, em homenagem a essa mesma dignidade. (Isto porque) só pode ser tomado pelo direito como acessório ou extensão das pessoas» (em Esboço de uma Concepção Personalista do Direito, 1965, p. 185).

12.2 — Precisamente por assim ser, um acto de disposição em vida do cadáver não fere a dignidade da pessoa. É um acto que radica no respeito da pessoa pelos outros, que sobreleva o poder autónomo que pudesse ser reconhecido aos familiares, designadamente para prestar qualquer autorização; esta apenas poderia ser entendida como, no caso de não ser conhecida a vontade do falecido, uma transmissão ou uma «interpretação» dessa vontade, tácita ou explicitada.

13.1 — Só que a intervenção dos familiares pode não contribuir para o conhecimento da vontade do falecido. A tendência natural será a de que a vontade declarada seja a sua própria vontade, expressa em momento de natural perturbação emocional, que resvalará no ímpeto de assegurar, à outrance, a incolumidade do cadáver.

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Ou então, poderá ser uma vontade gerada pela mira de lucratividade — o que por completo desfigura o sistema.

13.2 — Não existindo uma declaração positiva do falecido, emitida em vida, no sentido da vontade de dar, ou uma declaração negativa, no sentido de não dar, não colide com qualquer regra de ética que estabeleça a presunção (probabilis conjectura) da vontade de dar.

13.3 — O que se afigura é de distinguir bem claramente entre as extracções para fins terapêuticos e as extracções para fins científicos.

As primeiras são feitas ad vitam ou ad vitalitatem, e nelas se poderá fazer um subdistinção entre as que têm fins curativos apenas mediatos, para aprovisionamento de bancos de órgãos (e ai o carácter ad vitam ou ad vitalitatem esbater-se-á a um ponto significativo), e as que são determinadas por fins curativos imediatos. A estas é que poderá aproveitar a ideia de um genuíno «estado de necessidade».

14.1 — É a Lei espanhola 30/1979 paradigmática da orientação que valeu para o diploma português de 1976 (artigo 5.°):

Dispõe, com efeito, o n.° 2 do artigo 5.° daquela Lei 30/1979:

A extracção de órgãos ou outras peças anatómicas de falecidos poderá realizar-se com fins terapêuticos ou científicos, no caso de estes não terem feito constar expressamente a sua oposição.

E acrescenta o n.° 3 desse mesmo artigo 5.°:

As pessoas presumivelmente sãs que falecerem em acidente ou como consequência ulterior deste considerar-se-ão, mesmo assim, como dadores, se não constar oposição expressa do falecido. Para tal, deve constar a autorização do juiz a quem caiba o conhecimento do processo, o qual a deverá conceder naqueles casos em que a obtenção dos órgãos não dificulte a instrução do inquérito por estarem devidamente justificadas as causas da morte.

Corresponderá, de certo modo, o n.° 3 da lei espanhola ao artigo 4.° da lei portuguesa.

14.2 — Tem a solução espanhola sido objecto de reparo quanto à extracção de órgãos para fins científicos — por demasiado simplificadora (assim, Antonio Gordillo Canas, Transplantes de Órganos: «Pietas» o Familiar y Solidaridad Humana, 1987, p. 77).

Essa critica não colhe quanto à lei portuguesa, uma vez que respeita apenas à colheita para fins terapêuticos.

No que a lei portuguesa (o artigo 5.°) falhará é na total ausência de regulamentação quanto aos meios de o dador, em vida, manifestar a sua oposição com eficácia post mortem.

A Lei n.° 30/1979, ao invés, foi complementada pelo Decreto n.° 426/1980, de 22 de Fevereiro, que prevê a existência em todos os centros hospitalares autorizados a fazer a extracção de órgãos em cadáveres de um livro-registo de declarações de vontade, quer positivas, quer negativas (artigo 8.°).

Em termos práticos, o regime espanhol funciona assim:

Não se exige declaração expressa da vontade de efectuar a dação post mortem, ou o consentimento formal à futura extracção. Considera-se que este existirá se não existir oposição expressa. Como refere Gordillo Canas, haverá então uma fixação (juridicamente relevante) de consentimento.

A solução, ao que sublinha o mesmo autor, tem em vista facilitar os transplantes — na mesma linha da adoptada na Dinamarca, França, Grécia, Itália, Noruega, Suécia, etc. (ob. cit., p. 82).

14.3 — A lei espanhola pretendeu prescindir por completo da intervenção dos familiares do falecido.

O certo é que, como ainda informa Gordillo Canas (ob. cit., p. 84), «os médicos, não obstante, temem a reacção desses familiares perante o facto consumado de uma extracção que não autorizaram».

E isto, em certa medida, porque, sem derrogar o sistema da lei que regulamenta (como é óbvio), o artigo 9.° do Decreto n.° 426/1980 prevê que, «se as circunstâncias não o impedirem [o médico] informará os familiares presentes no centro sanitário sobre a necessidade, natureza e circunstâncias da extracção, bem como da consequente recomposição [do corpo], conservação e práticas de sanidade mortuária».

Trata-se de um critério ambíguo em termos de realidade, porque permite de facto a intervenção decisória dos familiares, «os quais poderão manifestar a sua própria vontade fingindo uma oposição do falecido praticamente inverificável» (Gordillo Canas, p. 87).

14.4 — Estamos em crer que o sistema do artigo 5.° do Decreto-Lei n.° 553/76, que confina a utilização do cadáver a fins meramente terapêuticos, apenas claudica enquanto não viabiliza que, em vida, o dador se oponha à utilização do seu corpo, depois da morte, para extracção de órgãos ou tecidos.

A intervenção dos familiares quer no uso de um direito próprio, quer como transmitentes da vontade do falecido, dará sempre lugar a dúvidas, imprecisões e riscos — sobretudo para os médicos, que se poderão ver confrontados com a imputação da omissão de um dever de diligência só aferível em termos de razoabilidade, e não de objectiva segurança.

15 — Não deve ser, no entanto, esquecido que a intervenção dos familiares como transmitentes da vontade expressa ou tácita do falecido não deixa de ter qualificados defensores.

Fala-se mesmo no seu direito de defesa e custódia do cadáver (Totensorgerecht), em ordem a evitar qualquer agressão indevida e a exigir a sua incolumidade e respeito.

Nessa perspectiva, os familiares não poderiam dispor do cadáver, nem exercer em relação a ele qualquer direito próprio: meros Treuhander, apenas lhes seria facultado opor-se a que ao cadáver fosse dado outro qualquer destino que não o da sepultura.

16.1 — E, como é sabido, em alguns sistemas jurídicos (assim em Inglaterra), os familiares podem mesmo usar de um direito próprio, opondo-se à utilização do cadáver, mesmo que o falecido, em vida, a tenha consentido.

Não deixa também de se observar que na Dinamarca se opera, neste momento, um inflexão ao regime vigente.

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Em Outubro de 1987 o Governo submeteu ao Parlamento um projecto de lei sobre transplantes que prevê que a autorização da família seja uma condição para que eles se efectivem, se o falecido não tiver dado o

seu consentimento em vida (cf. Bulletin d'information sur les activités juridiques, publicação do Conselho da Europa, n.° 29, Fevereiro de 1989, p. 56).

V

A prestação do consentimento em vida

16.1 — Bem apuradas as coisas, não creio que a solução de fazer impender sobre os médicos um intensificado dever de diligência, no sentido de reconstituir — designadamente através de contactos com familiares ou amigos íntimos do falecido— a vontade do falecido, resultasse producente.

Como já referi, e como é óbvio, a omissão desse dever de diligência seria alvo previsivelmente fácil de possíveis responsabilizações, distorcendo por completo a limpidez dos objectivos do legislador.

16.2 — Não será de arredar a criação de um registo central de dados respeitante a colheitas, enxertos e transplantações, até porque, centralizando os dados a nível nacional, propiciará um fácil acesso. Ponto é que ele exista — o que em Portugal não se tem como fácil, pelo menos em prazo avistável.

Solução alternativa será a de inscrever no bilhete de identidade a opção feita pelo potencial dador, em vida.

Propenderei, no entanto, com todas as reservas que ela possa suscitar (e que suscitou, efectivamente, nas declarações de voto do aludido acórdão do Tribunal Constitucional), para a criação de um cartão sanitário, padronizado, «onde, para além de outras menções (como, por exemplo, a do grupo sanguíneo), se incluiria) a opção sobre a colheita post mortem» (assim, meu Despacho n.° 60/86, de 9 de Junho, como Ministro da Justiça).

Redarguir-se-á que será um sistema falível, já que, designadamente em caso de acidente, o cartão sanitário tendencialmente será destruído ou extraviado.

Só que o óptimo é inimigo do bom e, por certo necessariamente inimigo do possível.

17 — A ideia de que os médicos deverão diligenciar pelo apuramento ou reconstituição, através de contactos com os familiares do falecido, da vontade deste induzirá nos já justificados riscos de insegurança para os médicos. E dificilmente propiciará uma correcta indagação. É conhecida a veemência, quase que tabelar, com que os familiares, em transe emocional, se opõem à autópsia, investindo todos os esforços para que ela seja dispensada.

Como figurar que, com objectividade, viessem a transmitir a vontade (expressa) do falecido ou a reconstituir a sua vontade tácita?

VI

A certificação da morte

18.1 —Preceitua o artigo 3.° do Decreto-Lei n.° 553/76:

1 — A colheita pode fazer-se imediatamente após a morte, a qual terá de ser certificada por dois médicos, não pertencentes à equipa que a ela

proceda, devendo, pelo menos, um deles ter mais de cinco anos de exercício profissional.

2 — Sem prejuízo do disposto no número anterior, o cirurgião e a respectiva equipa médica que procederam à colheita dos tecidos ou órgãos devem, igualmente, certificar a ocorrência do óbito.

18.2 — Não se estabelece qualquer critério para o preenchimento do conceito de «morte» nem quaisquer regras de semiologia médico-legal a adoptar.

Entretanto, o diploma de 1976 revogou expressamente a Portaria n.° 156/71, de 24 de Março, que, no âmbito da vigência do Decreto-Lei n.° 45 683, regulava tal matéria.

Daí o ter sido solicitado parecer ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (n.° 74/85, in Diário da República, 2.a série, n.° 272, de 26 de Novembro de 1985).

18.3 — Não está hoje em dúvida que o critério da «morte» é o da morte cerebral (por exemplo, Gerber, «Brain Death, Murder and the Law», em Medicai Journal of Australia, n.° 140/9, p. 536).

«Constitui hoje um dado adquirido que a inequívoca verificação da paragem irreversível da função do tronco cerebral basta para demonstrar o facto — morte da pessoa.» (Despacho n.° 60/86, de 9 de Junho, do Ministro da Justiça.)

Já a referida Resolução (78) 29 do Conselho da Europa apontava para que, se a morte (cerebral) tivesse ocorrido, «a extracção poderia ser efectuada, mesmo que as funções de certos órgãos, que não o cérebro, estivessem artificialmente mantidas» (n.° 1 do artigo 11.°).

Caberá à Ordem dos Médicos fixar o conjunto de regras de semiologia médico-legal a observar. Trata-se, com efeito, fundamentalmente, de um problema de deontologia médica, a analisar à luz da evolução da ciência. De qualquer modo, tais regras deverão ser como que «oficializadas» por portaria para que resultem vinculantes.

19 — Supõe-se que ao sistema vasado no artigo 3.° do Decreto-Lei n.° 553/76 não haverá que fazer substancial reparo. Dá-se mesmo a circunstância de ele ser mais rigoroso que o previsto no n.° 3 do artigo 12.° da Resolução (78) 29.

Quando muito poderá figurar-se que da equipa que verifica o óbito faça parte um neurocirurgião ou um neurologista. Não é de esquecer, na verdade, que o diagnóstico da morte cerebral é um processo clínico extremamente complexo.

VII

Onde se poderá efectuar a extracção ou colheita de órgãos ou tecidos para transplantações ou enxertos?

20.1 —Dispõe o artigo 2.° do Decreto-Lei n.° 553/76 que a colheita se deve efectuar em «estabelecimentos hospitalares».

Tais estabelecimentos hospitalares poderão, pois, ser públicos ou privados, nada se dizendo sobre se deverão estar ou não especificamente autorizados para o efeito, como se preceituava no artigo 3.° do Decreto--Lei n.° 45 683.

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II SÉRIE-C — NÚMERO 2

Tudo aponta para que tal deverá acontecer: uma excessiva liberalização envolveria o risco de permissividade. Não se ignora que a essa liberalização se apegam alguns médicos de inquestionável reputação e idoneidade.

Só que o controlo, neste caso, nem será burocratizante, já que a autorização constará de um diploma normativo simplificado e expeditamente susceptível de ser publicado.

Aliás, a Resolução (78) 29 — à qual não pode ser imputado o «pecado» de um intervencionismo demasiado pesado — exige que, quer as extracções, quer os enxertos e transplantações, se processem, respectivamente, «em locais e condições apropriados» (n.° 1 do artigo 12.°) e «em estabelecimentos públicos ou privados que possuam equipamentos e pessoal apropriados» (n.° 2 desse artigo 12.°).

20.2 — Problemática diversa terá a ver com a colheita de homo-enxertos em cadáveres (com o coração a não bater), não contemplada no actual diploma.

Ora é hoje prática corrente a colheita de produtos em cadáveres em depósito nos laboratórios de anato-mopatologia ou nos institutos de medicina legal.

Recordo, por exemplo, que em 1985, ao que creio ainda no IX Governo Constitucional, foi posta ao Ministro da Justiça essa questão, no sentido da criação de um banco de homo-enxertos tímpano-ossiculares na Faculdade de Medicina de Coimbra — HUC.

É que se dava o caso de, estando formalmente contra-indicada a colheita em indivíduos que houvessem falecido por doenças infecto-contagiosas, cancro, etc, seria naqueles cuja morte tivesse resultado de causa violenta (em que o traumatismo não afectasse o osso temporal) que deveria ser efectuada a exerese do osso temporal e consequente colheita do homo-enxerto tímpano-ossicular.

Só que como a morte teria sido violenta (normalmente em consequência de acidentes), os cadáveres teriam dado entrada nos institutos de medicina legal, para autópsia médico-legal.

Mas tais institutos não são estabelecimentos hospitalares, não se enquadrando, pois, na previsão do artigo 2.° do Decreto-Lei n.° 553/76.

Sugeriu-se então a hipótese de, em portaria conjunta dos Ministérios da Justiça e da Saúde, se equipararem os institutos de medicina legal, para o efeito, a estabelecimentos hospitalares.

Colidia, no entanto, tal solução com a expressa injunção daquele artigo 2.° Foi ainda aduzido que ela implicaria também a atribuição de novas competências aos institutos de medicina legal, não legalmente previstas.

Outra razão acrescia, porém: é que estava então em estudo a reformulação dos institutos de medicina legal, sendo hipotizado que as autópsias clínicas, pelo menos quando não houvesse suspeita de que a morte tivesse resultado de acção criminosa, se realizassem em estabelecimentos hospitalares públicos, até para se evitar a saturação da capacidade de resposta dos serviços de tanatologia dos institutos. Claro está que as autópsias, assim realizadas nos hospitais, seriam efectuadas por peritos médico-legais: a interligação entre os serviços médico-legais e os estabelecimentos hospitalares está a ser, de resto, adoptada nas grandes cidades inglesas, norte-americanas, canadianas e de outros países.

Outra ideia foi então encarada no âmbito da reforma dos serviços médico-legais: a da criação de gabinetes médico-legais a funcionar em permanência nos gran-

des hospitais públicos. Tratava-se de aproximar os serviços médico-legais (descentralizando-os) dos hospitais.

A questão ficou, todavia, em aberto e só depois de resolvida, no plano da reformulação do sistema médico--legal, poderá ter incidência na matéria agora especificamente em análise.

VIII

A gratuitidade das dações

21.1 — Princípio que se pode considerar dominante é o da gratuitidade — quer no caso de colheitas em vida, quer post mortem.

Quanto a estas últimas nada dispõe o Decreto-Lei n.° 553/76.

Mais detalhado, o Decreto-Lei n.° 45 683 regulava a questão (artigo 8.°):

É ilícito e nulo o acto pelo qual alguém receba ou pretenda adquirir para si ou para outrem direito de receber alguma remuneração pelo facto de autorizar ou de não se opor a que se façam colheitas de órgãos ou tecidos no cadáver próprio ou no de outra pessoa.

Era válida, no entanto, «a disposição pela qual o falecido tenha imposto ao serviço que, por ele autorizado, determine a colheita de tecidos ou órgãos do seu corpo, o encargo de custear o seu funeral, até ao limite que for fixado em despacho ministerial» (§ único desse artigo 8.°).

21.2 — Na resolução (78) 29 o critério da gratuitidade (no caso de extracção de órgãos ou tecidos em pessoas vivas) é expressamente acolhido (artigo 9.°). Ressalva, porém, o preceito ser admitido o reembolso das perdas de capacidade de ganho e os encargos dimanados da extracção e dos exames prévios. E acrescenta:

O dador ou o dador potencial, para além do direito a indemnização por eventual responsabilidade médica, deve receber uma indemnização na hipótese de dano consequente a uma extracção ou aos exames prévios, por via do sistema de segurança social ou de outro sistema de seguro.

Será, pois, de excluir o propósito de lucro. A Lei italiana n.° 644, de 2 de Dezembro de 1975 (na linha da anterior Lei n.° 458, de 26 de Junho de 1967), exclui mesmo, categoricamente, qualquer forma de compensação económica (artigos 19.° e 20.°).

Uma solução intermédia, próxima da acolhida na Resolução do Conselho da Europa, será, ao que se crê, a mais certa.

«Não é de afastar por princípio qualquer compensação económica. É certo que podem surgir graves abusos se for exigível uma retribuição-, mas seria exagerado considerar ilícita [...] qualquer retribuição [..•!» (Javier Hervada, «Los trasplantes de órganos y el de-recho a disponer dei propio cuerpo», em Persona y De-recho. Revista de Fundamentación de ias instituciones jurídicas, n, 1975, p. 251).

Quer isto dizer que é de repudiar por completo a comercialidade, o relevo patrimonial do próprio órgào ou tecido.

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A intencionalidade da dação deve ser a do altruísmo ou da solidariedade humana.

Só que não se pode levar esta regra a um ponto excessivo.

Estabelece a Lei espanhola 30/1979 (artigo 2.°): Não se poderá receber qualquer compensação

pela dação de órgãos. A.rbitrar-se-ão (no entanto) os meios para que a realização destes actos não seja em caso algum gravosa para o dador vivo nem para a família do falecido. Em nenhum caso existirá qualquer compensação económica para o dador, nem se exigirá ao beneficiário qualquer preço peio órgão transplantado.

E a regulamentação da lei (Decreto n.° 426/1980, de 22 de Fevereiro) reitera e explicita no artigo 5.°:

Não se poderá receber qualquer compensação pela dação de órgãos nem existirá qualquer compensação para o dador, nem se exigirá ao beneficiário qualquer preço pelo órgão transplantado. Não obstante, deverá garantir-se ao dador vivo a assistência necessária para o seu restabelecimento, assim como para cobrir qualquer despesa efectuada por ocasião da dação ou intervenção.

22 — De salientar será, no entanto, que, para alguns autores, sobretudo em França, haverá que distinguir entre a dação de órgãos regeneráveis e não regeneráveis.

Quanto a estes o dogma da não retribuição é absoluto, porque contrário à ordem pública. Apenas o altruísmo poderá justificar uma tão grave agressão ao corpo humano.

No que respeita aos órgãos regeneráveis, se a gratuitidade continua a ser o pressuposto de base, não é de excluir, nalguns casos, uma compensação económica — sobretudo quando se trata da dação de órgãos ou tecidos para fins terapêuticos não imediatos (armazenamento em «bancos») ou para fins científicos (experimentação ou investigação). Não se tratará, no entanto, de um preço, mas de uma indemnização, como advertiu o Comité Nacional da Ética em Outubro de 1984.

IX

Conclusões

1) Quer no ponto de vista de técnica legislativa, quer no da compreensibilidade das soluções que apresenta, carece o Decreto-Lei n.° 553/76 de ser revisto e completado.

2) Pelo que se deixou sumariamente exposto, não contém o regime da colheita de órgãos e tecidos em pessoas vivas, para transplantações ou enxertos.

3) Não estabelece, quer para este caso, quer para o da colheita em cadáveres, o princípio da gratuitidade, embora mitigado com as compensações económicas que acessoriamente podem ser atribuídas ao dador, designadamente pelos prejuízos sofridos ou encargos suportados.

4) Ainda no que respeita à colheita em dadores vivos, não faz, como é óbvio, uma opção sobre se ela deverá apenas ter como protagonistas maiores ou se, também, menores (ou outros incapazes no ponto de vista jurídico).

5) Não toma posição sobre o critério da morte e sobre as regras de semiologia médico-legais aplicáveis.

6) É omisso quanto ao problema nuclear da prestação, em vida, do consentimento ou da oposição do dador para a colheita post mortem e não estabelece meios, dotados de praticabilidade mínima, para o conhecimento da eventual oposição.

7) Se a «filosofia» subjacente ao diploma (viabilização das colheitas em cadáveres) é a preconizável, e não colidente com os princípios ético-jurídicos invocáveis, a sua textualizaçâo não é clara, comportando essenciais dúvidas de interpretação e de aplicação.

8) Por assim ser, e pelo mais que neste parecer se ponderou, o Provedor de Justiça, no uso da competência consignada na alínea è) do n.° 1 do artigo 18.° da Lei n.° 81/77, de 22 de Novembro, assinalando as aduzidas deficiências legislativas, recomenda a reformulação do Decreto-Lei n.° 553/76, de 13 de Julho.

9) É essa reformulação da competência (relativa) da Assembleia da República, por estarem em causa matérias que têm a ver com direitos, liberdades e garantias [alínea fe) do n.° 1 do artigo 168.° da Constituição] e, complementarmente, com a definição de crimes e penas [alínea c) do mesmo n.° 1].

Lisboa, 23 de Outubro de 1990. — O Provedor de Justiça, Mário Raposo.

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