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Sexta-feira, 26 de julho de 2019 II Série-C — Número 16
XIII LEGISLATURA 4.ª SESSÃO LEGISLATIVA (2018-2019)
S U M Á R I O
Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias:
Relatório elaborado pela Subcomissão para a Igualdade e não Discriminação sobre racismo, xenofobia e discriminação étnico-racial em Portugal.
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COMISSÃO DE ASSUNTOS CONSTITUCIONAIS, DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS
Relatório elaborado pela Subcomissão para a Igualdade e não Discriminação sobre racismo,
xenofobia e discriminação étnico-racial em Portugal
Constituição da República Portuguesa
«Artigo 13.º
Princípio da Igualdade
1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer
dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou
ideológicas, instrução, situação económica ou condição social.»
Índice
I – Nota Introdutória ...................................................................................................................................... 3
II – Audições Públicas ..................................................................................................................................... 9
a) Participação Política ..................................................................................................................................... 9
b) Justiça e Segurança ................................................................................................................................... 10
c) Educação ................................................................................................................................................... 13
d) Habitação .................................................................................................................................................. 15
e) Trabalho/Emprego ..................................................................................................................................... 18
f) Saúde ....................................................................................................................................................... 20
III – Audições a Especialistas ...................................................................................................................... 22
a) Audição a Especialistas - Afrodescendentes e Comunidade Brasileira .................................................... 22
b) Audição a Especialistas - Comunidades Ciganas ...................................................................................... 35
IV – Audição de EntidadesPúblicas ........................................................................................................... 44
V – Audição a Membros do Governo .......................................................................................................... 55
VI – Seminário Final ..................................................................................................................................... 62
VII – Visitas .................................................................................................................................................... 69
VIII – Conclusões .......................................................................................................................................... 77
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I – Nota Introdutória
O Racismo é um fenómeno de discriminação social, baseado no princípio de que há várias raças humanas,
assente numa hierarquização com base em características físicas como a cor da pele ou outras características
étnico-raciais, sem quaisquer fundamentos científicos de suporte.
Acresce ainda em muitas sociedades fenómenos de xenofobia, que consiste em discriminação social com
base na nacionalidade.
Portugal, tal como todas as sociedades, tem uma matriz cultural e social da comunidade maioritária que
assume comportamentos diversos perante as minorias étnico-raciais e que, independentemente de um quadro
legal assumidamente igualitário para todos os cidadãos e cidadãs, como refere a Constituição da República
Portuguesa nos n.os 1 e 2 do seu artigo 13.º: «Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais
perante a lei», e «Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento
de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções
políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social». Tem na sua organização e interação
comportamentos etnocêntricos, ou seja, em que as representações e os valores com que avaliamos as minorias
culturais e étnico-raciais são entendidos como prevalecentes e dominantes.
Esta realidade, não pode, contudo, em nenhuma circunstância, justificar violência ou limitações nos direitos,
liberdades e garantias dos cidadãos e cidadãs que pertencem a grupos das comunidades minoritárias, que se
traduzem muitas vezes na perturbação e limitação na igualdade de direitos e na igualdade de oportunidades.
Em Portugal, por razões históricas de muitos séculos, a sociedade portuguesa e as suas instituições têm sido
constantemente confrontadas com a diferença e a diversidade étnico-racial e cultural. Esta diversidade tem sido
acompanhada por narrativas e comportamentos sociais diversificados ao longo do tempo, com motivações e
decisões de caráter político que têm feito um caminho que nos traz ao século XXI.
Nos anos de 2017 e 2018 houve um conjunto de acontecimentos em Portugal que chamaram a atenção para
este fenómeno no país e que o incluíram de forma mais presente na agenda política nacional, nomeadamente,
os ataques incendiários ao património de cidadãos da comunidade cigana e o incitamento ao ódio e ameaças
espichadas nas paredes da Freguesia de Santo Aleixo da Restauração, no Concelho de Moura; o caso Urban
Beach, em que há um espancamento por parte dos seguranças desta conhecida discoteca de Lisboa de um
jovem negro, por alegadas motivações racistas; o início do julgamento de vários agentes da esquadra de
Alfragide sob suspeita de terem detido sem razão para tal, e, no âmbito da detenção, insultado com ditos de
caráter racista e agredido jovens negros do Bairro da Cova da Moura, na Amadora e o espancamento por parte
de um segurança de uma jovem colombiana, após ter sido impedida de entrar num autocarro na cidade do Porto.
É na sequência destes acontecimentos que é apresentado pelo Partido Socialista a 26 de setembro de 2018,
discutido e aprovado por unanimidade na 1.ª Comissão Parlamentar – Assuntos Constitucionais Direitos,
Liberdades e Garantias – um requerimento que instituiu que, no âmbito da Subcomissão para Igualdade e Não
Discriminação, fosse incluído no respetivo plano de atividades um conjunto de audições, audiências e visitas,
sobre a temática do racismo, xenofobia e discriminação étnico-racial em Portugal, devendo ser elaborado um
relatório.
Para este efeito foi designada Relatora a Deputada Catarina Marcelino do Grupo Parlamentar do Partido
Socialista e foi definida uma agenda de trabalho com os seguintes pressupostos:
a. Definir o objeto de análise – sobre que grupos deve incidir o relatório.
b. Ouvir as entidades representativas dos grupos escolhidos ou do fenómeno identificado, através de
audições públicas a organizações de auto representantes e/ou antirracistas e de direitos humanos.
c. Ouvir especialistas ou individualidades que tenham conhecimento aprofundado sobre esta realidade
através de audições parlamentares.
d. Ouvir os/as dirigentes da Administração Publica dos setores em que existem mais problemas identificados
de discriminação através de Audição Parlamentar.
e. Ouvir o Governo em audição parlamentar.
f. Realizar visitas a territórios e instituições tendo em conta uma cobertura territorial abrangente do país.
Neste contexto, para definir de forma criteriosa os grupos sobre os quais se iria debruçar o Relatório foi tido
por base os dados da CICDR – Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial, constituída em
1999, através da Lei n.º 134/99, de 28 de agosto, e que tem hoje novo enquadramento legal na Lei n.º 93/2017,
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de 23 de agosto, cuja redação aumentou significativamente os poderes da Comissão e alargou a sua
composição atual, integrando, entre outros, representantes de todos os Grupos Parlamentares.
Tendo em conta os dados do Relatório Anual da CICDR de 2018 – Igualdade e Não Discriminação em razão
de origem racial e étnica, cor, nacionalidade, ascendência e território de origem1, foram apresentadas 346
queixas, sendo a sua classificação, nas 3 primeiras posições, por fator de discriminação: 21,4% etnia cigana;
17,6% cor da pele negra; 13% nacionalidade brasileira.
Assim sendo, tendo por base a classificação por fator de discriminação do relatório suprarreferido e
identificadas as principais causas das queixas apresentadas, definiu-se como objeto de análise para o impacto
do racismo, da xenofobia e da discriminação étnico-racial os seguintes grupos: as comunidades ciganas,
afrodescendentes e a comunidade brasileira.
Analisando estes três grupos concluiu-se que, por razões históricas, socioculturais e territoriais, dever-se-ia
dividir estes grupos em duas categorias: 1) comunidades ciganas; e, 2) afrodescendentes e a comunidade
brasileira, de modo a garantir que não haveria uma sobrevalorização de um grupo sobre o outro na auscultação,
avaliação e análise da informação recolhida.
A história das Comunidades Ciganas em Portugal remonta ao Séc. XV, tendo esta minoria étnica
permanecido na Península Ibérica desde então, sendo hoje a única minoria étnica autóctone, tanto em Portugal
como em Espanha, não havendo, contudo, o reconhecimento legal desse estatuto. Têm uma história de práticas
socioculturais diferentes da comunidade maioritária, tendo um histórico de exclusão social associado.
Quanto à comunidade afrodescendente, a sua história está fortemente ligada ao colonialismo português,
sendo hoje constituída, na sua larga maioria, por descendentes de pessoas naturais das ex-colónias ou, mais
recentemente, dos PALOP – Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa. É ainda de referir que um elevado
número de pessoas afrodescendentes em Portugal são portuguesas, muitas delas nascidas em Portugal, e
muitas outras obtiveram a nacionalidade portuguesa, sobretudo entre 2007 e 2017, em que cerca de meio milhão
de pessoas (449.691) adquiriram a nacionalidade devido às alterações produzidas pela Lei Orgânica n.º 2/20062.
No que diz respeito à comunidade brasileira, são imigrantes de um país pertencente à Comunidade de Países
de Língua Portuguesa (CPLP) da América do Sul, sendo a língua uma das principais razões apontadas para a
escolha de Portugal como país europeu de destino, bem como o facto de haver uma relação histórica profunda
e um acordo bilateral de reciprocidade em direitos de cidadania entre os dois países. É, hoje, a maior
comunidade imigrante em Portugal, correspondendo a 20,3% do seu total, segundo dados do Serviço de
Estrangeiros e Fronteiras mencionados no Relatório do Observatório das Migrações, Imigração em Números –
Relatório Estatístico Anual 2018.
Com o objetivo de auscultação, foi aprovado em dezembro de 2018, em reunião da Subcomissão para a
Igualdade e Não Discriminação o mapa das entidades a ouvir entre fevereiro e julho de 2019:
Data Audição Entidades
8 de fevereiro
Audição pública às comunidades Afrodescendentes e Brasileira, no âmbito da preparação do Relatório a elaborar sobre racismo, xenofobia, e discriminação étnico-racial em Portugal Link:http://www.canal.parlamento.pt/?cid=3633&title=audicao-publica-a-comunidade-de-afrodescendentes-e-comunidade-brasileira
Casa do Brasil – Cyntia de Paula
Amnistia Internacional Portugal – Susana Silva
Associação DJASS – Associação de Afrodescendentes – Beatriz Dias
Associação Cabo-verdiana – Filipe Nascimento
Associação Cultural Moinho da Juventude – Flávio Almada e Jakilson Pereira
1 Link: www.acm.gov.pt/documents/10181/0/Relatorio+Anual+2018+-+VERS%C3%83O+FINAL.pdf/f6f79b56-a696-4983-959e-b2c97d467c92 2 Observatório das Migrações, Imigração em Números, Relatório Estatístico Anual de 2018. Disponível no link: https://www.om.acm.gov.pt/documents/58428/383402/Relat%C3%B3rio+Estat%C3%ADsti%20co+Anual+2018+%E2%80%93+Indicadores+de+Integra%C3%A7%C3%A3o+de+Imigrant%20es.pdf/00de4541-b1ad-42ed-8ce9-33056321ecdb
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Data Audição Entidades
Deputados(as): Catarina Marcelino, PS (Relatora); Elza Pais, PS (Presidente Subcomissão igualdade e Não Discriminação); Sandra Pereira, PSD; Isabel Alves Moreira, PS; José Manuel Pureza, BE; Vânia Dias da Silva, CDS-PP; Hélder Amaral, CDS-PP; Rita Rato, PCP
Outras intervenções durante o debate:José Semedo Cristina Roldão – Investigadora Anabela Rodrigues – Teatro do Oprimido Flora Silva – Associação Olho Vivo Maria João – ADA – Unidos de Cabo-Verde
19 de março
Audição pública às comunidades ciganas, preparatória do relatório a elaborar sobre Racismo, Xenofobia e Discriminação Étnico-Racial em Portugal Link: http://www.canal.parlamento.pt/?cid=3774&title=audicao-publica-a-comunidade-cigana
Letras Nómadas - Associação de Investigação e Dinamização das Comunidades Ciganas – Olga Mariano e Bruno Gonçalves
SOS Racismo – José Falcão
AMEC - Associação de Mediadores Ciganos em Portugal – Prudêncio Canhoto
EAPN Portugal/Rede Europeia Anti Pobreza – Maria José Vicente
Associação Sílaba Dinâmica - Luís Romão
Deputados(as): Catarina Marcelino, PS (Relatora); Elza Pais, PS (Presidente Subcomissão igualdade e Não Discriminação); Laura Magalhães, PSD; Isabel Alves Moreira, PS; Maria da Luz Rosinha, PS; José Manuel Pureza, BE; Vânia Dias da Silva, CDS-PP.
Outras Intervenções durante o debate: Adérito Montes - APODEC, Associação Portuguesa de Desenvolvimento da Etnia Cigana Susana Silveira – Associação Costume Colossal – Associação para a Integração das Comunidades Ciganas
30 de abril Audição conjunta a especialistas em comunidades ciganas, no âmbito da preparação do Relatório a elaborar sobre racismo, xenofobia, e discriminação étnico-racial em Portugal Link: http://www.canal.parlamento.pt/?cid=3956&title=audicao-conjunta-de-especialistas-das-comunidades-ciganas
Olga Magano – Professora da Universidade Aberta
Mirna Montenegro – Educadora de Infância
Maria do Rosário Carneiro – Professora da Universidade Católica
Daniel Seabra Lopes – Professor do ISEG
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Data Audição Entidades
13 de maio Audição conjunta a especialistas em afrodescendentes e na comunidade brasileira, no âmbito do Relatório sobre racismo, xenofobia e discriminação étnico-racial em Portugal Link: http://www.canal.parlamento.pt/?cid=4007&title=audicao-conjunta-a-especialistas-das-comunidades-afrodescendentes-e-br
Catarina Reis Oliveira – Observatório das Migrações
Mamadu Bá – Ativista/SOS Racismo
André Costa Jorge – Serviço Jesuítas aos Refugiados
Cristina Roldão – Professora do ESSE Setúbal
Miguel Vale de Almeida – Professor do ISCTE
Marta Araújo – Professora da Universidade de Coimbra
Deputados(as): Elza Pais, PS (Presidente), Catarina Marcelino, PS (Relatora); Isabel Alves Moreira, PS
31 de maio Audição conjunta a entidades públicas, no âmbito do Relatório sobre racismo, xenofobia e discriminação étnico-racial em Portugal Link: http://www.canal.parlamento.pt/?cid=4067&title=audicao-conjunta-no-ambito-do-relatorio-sobre-racismo-xenofobia-e-d
Alto-comissário para as Migrações – Pedro Calado
Presidente do IRUH – Isabel Dias
Subinspetor da IGAI – Paulo Ferreira
Diretor-Geral da DGRSP – Rómulo Mateus
Inspetora-Geral da ACT – Luísa Guimarães
Subdiretora-Geral da DGE – Eulália Alexandre
Subdiretora-Geral da DGEstE – Florbela Fernandes
Tenente-General da GNR (Guarda Nacional Republicana) – Rui Clero
Superintendente-Chefe da PSP (Polícia de Segurança Pública) – Luís Farinha
Deputados(as): Elza Pais, PS (Presidente), Catarina Marcelino, PS (Relatora), José Pureza, BE, Rita Rato, PCP
26 de junho
Audição conjunta aos Secretários de Estado Adjunta e da Administração Interna, do Emprego e Formação Profissional, e da Educação Link: http://www.canal.parlamento.pt/?cid=4154&title=audicao-conjunta-dos-secretarios-de-estado-da-educacao-adjunta-e-da-a
Secretária de Estado Adjunta e da Administração Interna – Isabel Oneto
Secretário de Estado do Emprego e Formação Profissional – Miguel Cabrita
Secretário de Estado da Educação - João Costa
Deputados(as): Elza Pais, PS (Presidente), Catarina Marcelino, PS (Relatora), Sandra Pereira, PSD, Isabel Moreira, PS, Carla Tavares, PS, Maria Augusta Santos, PS, Sandra Cunha, BE
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Também neste contexto foram aprovadas as visitas a realizar entre fevereiro e julho de 2019:
Data Visita Entidades
11 de fevereiro Bragança (comunidades ciganas)
• Acampamento dos Formarigos • Bairro da Mãe d´Água • Acampamento do Cruzamento de Donai • Comunidade de Sortes
Serviço da Pastoral das Migrações e Minorias Étnicas da Diocese de Bragança-Miranda Câmara Municipal de Bragança
Deputadas: Ângela Guerra (PSD) Sandra Pereira (PSD) Catarina Marcelino (PS) Helena Roseta (PS) Maria Manuel Rola (BE)
14 de abril Coimbra (comunidades ciganas)
• Centro de estágio habitacional de Coimbra • Escola EB1 do Ingote • Associação Cigana de Coimbra • Bairros do Planalto e do Ingote • Projeto Escolhas Trampolim
Associação Cigana de Coimbra Câmara Municipal de Coimbra Junta de Freguesia da União de Freguesias de Eiras e São Paulo de Frades Alto Comissariado para as Migrações (ACM)
Deputados(as): Ana Oliveira (PSD) Elza Pais (PS) Catarina Marcelino (PS) Pedro Coimbra (PS) José Manuel Pureza (BE)
6 de maio Moura (comunidades ciganas)
• Escola EB2 de Moura • Acampamento do Largo da Feira Velha • Bairro do Girassol • Projeto Escolhas – ADC Moura (Associação para o Desenvolvimento do Concelho de Moura)
Associação Sílaba Dinâmica Associação Letra Nómadas Câmara Municipal de Moura Alto Comissariado para as Migrações (ACM)
Deputados(as): Catarina Marcelino (PS) Nuno Sá (PS) João Dias (PCP)
14 de junho Amadora – Cova da Moura (afrodescendentes)
• Escola Secundária Dr. Azevedo Neves • Bairro do Alto da Cova da Moura • Associação Cultural Moinho da Juventude
Associação Cultural Moinho da Juventude
Deputadas: Catarina Marcelino (PS) Rita Rato (PCP)
28 de junho Loures (afrodescendentes)
• Casa da Cultura de Sacavém • Bairro da Quinta do Mocho • Reunião com associações e entidades locais
START.SOCIAL – Cooperativa Socioeducativa para Desenvolvimento Comunitário, C.R.L. U.J.A.P.-União de Juventude Angolana em Portugal Associação Mocho + Prosaudesc - Associação De Promotores De Saúde Ambiente E Desenvolvimento Socio – Cultural Capacitare Plataforma para a Reflexão Cívica dos Afrodescendentes Agrupamento de Escolas Eduardo Gageiro Câmara Municipal de Loures
Deputada: Catarina Marcelino (PS)
1 de julho Península de Setúbal (afrodescendentes e comunidades ciganas)
• Bairro da Bela Vista e Quinta da Parvoíce – Setúbal • Vale da Amoreira e Associação Cabo Verdiana do Vale da Amoreira - Moita • Projeto da Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas (AMUCIP) – Seixal
Associação Cabo Verdiana do Vale da Amoreira Junta de Freguesia da União das Freguesias da Baixa da Banheira e Vale da Amoreira Câmara Municipal da Moita Deputados(as): Catarina Marcelino (PS) Joana Mortágua (BE) Bruno Dias (PCP)
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Data Visita Entidades
2 de julho Cascais – Estabelecimento Prisional de Tires
• Reunião com a direção • Visita à Casa das Mãe e contacto com reclusas
Diretora do Estabelecimento – Dr.ª Maria de Fátima Andrade Corte Diretor-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) – Dr. Rómulo Mateus
Deputadas: Elza Pais (PS) Catarina Marcelino (PS)
8 de julho Reunião com a direção
Visita às instalações e contacto com reclusos
Diretora do Estabelecimento – Dr.ª Maria da Conceição Duarte Fernandes Gralha Diretor-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) – Dr. Rómulo Mateus
Foram entregues os seguintes documentos pelas entidades ouvidas, que se encontram depositados nos
Serviços da Comissão:
Iniciativa Data Documentação entregue
Audição pública às comunidades afrodescendente e brasileira
8 de fevereiro Não foi entregue documentação
Audição pública às comunidades ciganas 19 de março Fotografias do orador José Falcão
Audição conjunta a especialistas em afrodescendentes e da comunidade brasileira
13 de maio Não foi entregue documentação
Audição conjunta a especialistas em comunidades ciganas
30 de abril Apresentação - Olga Magano [formato PDF]
Audição conjunta a entidades públicas 31 de maio
Apresentação – Alto-comissário para as Migrações [formato PDF]; Acesso à nacionalidade portuguesa: 10 anos da lei em números; Migrações e Saúde em números: O caso português; Indicadores de Integração de Imigrantes – Relatórios Estatístico Anual 2018
Audição conjunta dos Membros do Governo 26 de maio Não foi entregue documentação
Visita a Bragança10 e 11 de fevereiro
Serviço da Pastoral das Migrações e Minorias Étnicas | Diocese de Bragança-Miranda [formato DOC]
Visita a Coimbra15 de abril A apresentação do Projeto Escolhas Trampolim não foi enviada apesar de solicitada.
Visita a Moura 6 de maio
Observatorio_Escolhas [formato PDF] Apresentação de consórcio - Despertarte I [formato PDF] Apresentação de consórcio - Despertarte II [formato PDF]
Visita a Amadora 14 de junho Não foi entregue documentação
Visita a Loures 28 de junho Não foi entregue documentação
Visita a Setúbal, Moita e Seixal1 de julho Kit pedagógico Romano Atmo (Alma Cigana) - AMUCIP
Visita ao Estabelecimento Prisional de Tires 2 de julhoInformação - Estabelecimento Prisional de Tires [formato PDF]
Visita ao Estabelecimento Prisional do Linhó 8 de julhoInformação - Estabelecimento Prisional do Linhó [formato PDF]
Conferência Final 9 de julho Apresentação de Rossalina Latcheva [formato PDF]
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Iniciativa Data Documentação entregue
Dados FRA - Portugal [formato PDF] Subgroup on Equality Data - FRA [formato PDF] Apresentação de Alexandra Castro - Políticas de Habitação e Comunidades Ciganas em Portugal [formato PDF] Apresentação de Rui Pena Pires [formato PDF] Apresentação de Juliana Santos Wahlgren [formato PPT] [formato PDF] Apresentação de Maria José Casa-Nova [formato PPTX] [formato PDF] Intervenção - Deputado Duarte Marques (PSD) [formato PDF]
II – Audições Públicas
As audições públicas foram definidas como os primeiros trabalhos para a produção do relatório, porque foi
considerado fundamental que aqueles e aquelas que são alvo do racismo, da xenofobia e da discriminação
fossem ouvidos em primeiro lugar, trazendo a sua perspetiva e a sua experiência para o conteúdo que se
traduzirá no texto final do relatório.
Às entidades que foram ouvidas nas audições públicas foi solicitado que se debruçassem sobre 1 de 6 áreas
temáticas:
a) Participação Política
b) Justiça e Segurança
c) Educação
d) Habitação
e) Trabalho/Emprego
f) Saúde
a) – Participação Política
A participação política é um tema muitíssimo relevante, uma vez que no sistema de democracia
representativa português há uma ausência acentuada de pessoas afrodescendentes, imigrantes e das
comunidades ciganas. A título de exemplo, no Parlamento Português, em 230 Deputados(as) apenas 2 são
negros, não havendo eleitos(as) das comunidades ciganas ou das comunidades imigrantes com acordo de
reciprocidade política como são os casos do Brasil e de Cabo Verde.
Para falar sobre este tema, na audição pública a afrodescendentes e à comunidade brasileira, foi convidada
a Casa do Brasil que se fez representar pela sua Presidente, Cyntia de Paula, e na audição pública às
comunidades ciganas, foi convidada a Associação Letras Nómadas que se fez representar pela sua Presidente,
Olga Mariano, e pelo seu Vice-Presidente, Bruno Gonçalves.
Falta de representatividade das minorias étnico-raciais no quadro político nacional.
A democracia representativa em Portugal não espelha a representação das minorias étnico-raciais, havendo
um sentimento por parte destes grupos de exclusão da esfera do poder de decisão sobre as suas próprias vidas
que os impede da possibilidade de serem agentes de mudança e transformação nas suas comunidades.
Esta ideia é expressa pelo e pelas intervenientes, e espelha com clareza que as pessoas afrodescendentes,
brasileiras e ciganas não se sentem representadas pelo poder político.
Cyntia de Paula refere, - “Uma questão que consideramos muito importante é a falta de interesse dos partidos
políticos em ter pessoas imigrantes nos papéis principais. Sentimos que as comunidades imigrantes – e aqui
vou falar da minha, a brasileira, que é a maior de Portugal - não estão representadas no poder (…). Quantas
pessoas temos nas Juntas de Freguesia, nas Câmaras Municipais e nesta Casa que nos recebe hoje? Quantas
pessoas imigrantes estão de facto no poder de decisão? (…) Acho que há aqui um caminho muito grande a
desconstruir em relação aos partidos políticos, e isso é urgente”.
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No mesmo sentido, diz Olga Mariana: “Os ciganos, como todos sabemos, ainda não estão representados
quer a nível local, quer a nível nacional. Basta ver no Parlamento quantas pessoas ciganas existem. Se falarmos
em minorias, verificamos que não é só a representação cigana que não está representada, mas também a
população afrodescendente. Onde é que ela está? (…) Relativamente à nossa representação política nas listas,
quando nos são endereçados convites pelos partidos, é praticamente só um «faz de conta». É importante dar-
nos voz, porque nós fazemos a mudança”.
Ao que Bruno Gonçalves acrescenta, “Gostaria de salientar que cada vez mais temos portugueses ciganos
com consciência política e vontade de participar politicamente. (…) Precisamos só de grandes oportunidades e
que não tenhamos um papel secundário nesta questão da participação política. Acho que muitos de nós somos
também capazes de construir, de melhorar e de enriquecer as nossas cidades a nível local, mas também temos
alguns portugueses ciganos com capacidade para enriquecer a nível nacional e fazer política”.
Défice de informação/formação destes grupos.
Há, claramente, por parte das comunidades afrodescendente, brasileira e ciganas, uma compreensão de que
para uma maior participação política é necessária informação sobre os processos políticos e a capacitação para
a intervenção política, porque partem em desvantagem relativamente à comunidade maioritária e é necessário
reforçar conhecimento e competências.
Refere Cyntia de Paula “A questão que identificámos para os poucos que podem exercer os seus direitos,
tem a ver com a falta de informação. Consideramos que a informação e a divulgação que tem havido – e eu até
reconheço algum esforço do ACM (Alto Comissariado para as Migrações) que criou, há dois ou três anos, o
Gabinete de Apoio ao Recenseamento – é, ainda, muito, muito pequena e é preciso, do meu ponto de vista,
enquanto ativista também, criar um mecanismo para que essas informações possam chegar às poucas pessoas
que têm esse direito”.
Quanto às comunidades ciganas, Olga Mariano acentua: “Enquanto Letras Nómadas, temos um projeto, que
é a Academia de Política, em que convidamos vários partidos representados no Parlamento e falamos
exatamente sobre política e damos ferramentas sobre política aos nossos cidadãos e às nossas comunidades
ciganas. Já levámos quase todos os partidos representados no Parlamento para falar sobre o que é a política,
para darmos essas ferramentas. Portanto, nós estamos aptos para intervir, para participar e para fazer a
mudança”.
Estas duas referências, quer ao Gabinete de Apoio ao Recenseamento do ACM, quer à Academia de Política
promovida pela Associação Letras Nómadas em parceria com o Conselho da Europa, são exemplos, a que se
poderiam juntar outros, de associações de afrodescendentes e imigrantes, para estimular a participação política,
passiva e ativa, destas comunidades. Contudo, fica patente, pelas intervenções, que é necessário que os
partidos políticos se consciencializem da necessidade de representação destas comunidades nas listas que
apresentam a eleições locais, nacionais e europeias, e que desenvolvam mecanismos de envolvimento dos
cidadãos e das cidadãs destas comunidades nas suas estruturas e atividades.
Podemos afirmar que há uma autorreflexão sobre a necessidade de participação política e de
representatividade das próprias comunidades visadas por este relatório. A ideia que mais trespassa das
intervenções sobre o tema da participação política nas duas audições públicas é a da necessidade de fazerem
parte dos processos de decisão sobre as suas vidas e sobre as suas comunidades.
Diz Cyntia Paula, “Se não me vejo representada nas pessoas que decidem a mudança da minha própria vida,
que interesse vou ter em votar ou em procurar saber?”
Acrescenta Bruno Gonçalves: “Nós fazemos política todos os dias, mas a política que queremos fazer é
também estar representados. Isso faz-nos falta, porque só assim é que também podemos ser os indivíduos ou
os próprios condutores do nosso próprio processo. (…) Entendo que era importante que também pudéssemos
participar, porque acho que mesmo a política não é para, mas é com”.
b) – Justiça e Segurança
A justiça e a segurança são áreas em que referir a existência de ações ou atos que têm pressupostos de
racismo, xenofobia e discriminação étnico-racial é sensível do ponto de vista institucional e social. Esta realidade
tem sido evidenciada por um conjunto de acontecimentos que têm criado tensões em determinados territórios,
com casos como o julgamento dos polícias da esquadra de Alfragide e os acontecimentos do Bairro da Jamaica.
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É também importante referir que algumas Organizações Internacionais têm levantado questões sobre
acontecimentos ocorridos em Portugal nos seus relatórios, como referiu a representante da Amnistia
Internacional na audição pública a afrodescendentes e à comunidade brasileira, e, como está vertido nas
recomendações e sugestões do Grupo de Trabalho do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, a
Portugal - no âmbito da sua Revisão Periódica Universal, que decorreu entre 6 e 17 de maio de 20193-, no último
Relatório do Comité Europeu para a Prevenção da Tortura e das Penas ou Tratamentos Desumanos ou
Degradantes4, e no Relatório da Comissão Europeia Contra o Racismo e a Intolerância5.
Para abordar esta temática, estiveram presentes, na audição pública a afrodescendentes e à comunidade
brasileira, a Amnistia Internacional Portugal, representada pela perita Susana Silva e na audição pública às
comunidades ciganas, o SOS Racismo, representado pelo dirigente, José Falcão.
Necessidade de maior concretização e resultados face às queixas e melhoria na classificação
processual
Há uma identificação da representante da Amnistia Internacional de uma discrepância entre o número de
queixas apresentadas à CICDR- Comissão Para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial e as condenações
daí resultantes, denotando que há dificuldades processuais que levam a estes resultados. Também na IGAI –
Inspeção Geral da Administração Interna-, há um número reduzido de processos sobre práticas discriminatórias
por parte de agentes de segurança. Contudo, no que respeita a abusos de autoridade e a ofensas à integridade
física, há um número mais elevado de denúncias, que não se sabe se têm alguma motivação de discriminação
ou de racismo associada. Segundo a oradora, estes problemas – discrepância entre o número de queixas e de
condenações na CICDR e a classificação das queixas na IGAI - estão identificados e necessitavam de ser
avaliados e esclarecidos.
Refere Susana Silva, “Para dar um contexto dos números da CICDR, recordo que, de acordo com o seu
último relatório, de 2017, a CICDR recebeu 179 queixas, das quais 44 deram origem a processos de
contraordenação, queixas estas que são apresentadas por discriminação, sendo que 38% tiveram por base a
origem racial e étnica, 22,3% a nacionalidade, e 21,8% a cor da pele - são dados de 2017, recolhidos na vigência
da lei anterior à Lei n.º 93/2017. Gostaria de dizer porque é relevante que, em face de todas estas queixas,
poucas são aquelas que chegam a condenação. No site da CICDR, conseguimos verificar que, no ano de 2018,
existiram cinco condenações. Não sabemos se são processos que transitaram do ano anterior, mas, de facto,
existe uma taxa de condenação pequena relativamente aos casos denunciados, e importa- como já foi
recomendado e precisarei adiante -, conhecer o motivo pelo qual estas condenações não existem”.
Diz, ainda, Susana Silva: “O Comité para a Eliminação da Discriminação Racial, das Nações Unidas, refere
que, no que diz respeito a esta disparidade, é necessário apurar o motivo por que há menos condenações.
Considera que terá de ser feito um levantamento sobre essa situação, mas que este implica uma melhor
informação das pessoas, implica que os processos administrativos sejam menos morosos e implica uma série
de situações que é importante combater”.
No que diz respeito aos processos administrativos por alegadas denúncias e queixas de violação de direitos
fundamentais abertos pela IGAI, a representante da Amnistia Internacional refere: “Seis destes processos
administrativos respeitam a denúncias de práticas discriminatórias (…) 10 dos referidos processos
administrativos respeitam a denúncias de abuso de autoridade, e, 262 a ofensas à integridade física por parte
de forças de segurança sob a alçada do MAI (Ministério da Administração Interna), desconhecendo-se se,
eventualmente ou não, baseados em racismo, xenofobia e discriminação”.
É ainda referido que há denúncias frequentes de uso excessivo da força por parte das autoridades sobre os
afrodescendentes relatadas por entidades internacionais, nomeadamente pelo Comité para a Prevenção da
Tortura, do Conselho da Europa.
Susana Silva conta, “as denúncias que foram feitas pela Comissão Europeia Contra o Racismo e a
Intolerância (ECRI), referem, entre outras situações, o uso excessivo da força, particularmente, sobre pessoas
das comunidades afrodescendentes. Esta situação não é nova, já havia sido reportada no início de 2018 pelo
Comité para a Prevenção da Tortura, do Conselho da Europa, quando referiu que a maior parte das pessoas
com quem tinha falado alegava situações de maus tratos por parte das autoridades, adiantando que um elevado
3 Link: https://www.amnesty.org/download/Documents/EUR3802232019ENGLISH.PDF 4 Link: https://rm.coe.int/168078e1c8 5 Link: https://rm.coe.int/fifth-report-on-portugal-portuguese-translation-/16808de7db
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número de pessoas das comunidades afrodescendentes tinham mais probabilidade de virem a ser afetadas por
este tipo de tratamento”.
Aumento do discurso de ódio em Portugal.
O aumento do discurso de ódio é um problema identificado ao nível da Europa por várias entidades tais como
o Conselho da Europa e a União Europeia, sendo as redes sociais e os órgãos de comunicação social veículos
destas mensagens de racismo e xenofobia. Em Portugal, em particular ao nível das redes sociais, temos vindo
a assistir a uma escalada de ódio no discurso racista contra pessoas imigrantes, refugiados, afrodescendentes
e, muito em particular, contra as pessoas das comunidades ciganas, as quais já deram origem a queixas na
CICDR, sendo, da análise das queixas feitas, o grupo étnico-cultural mais visado e vitimado, algumas,
inclusivamente, apresentadas por associações das comunidades ciganas6.
Segundo Susana Silva, “Em face do relatório da Comissão Europeia Contra o Racismo e a Intolerância
(ECRI), a preocupação relativamente ao discurso de ódio em Portugal levou à recomendação para a sua
sensibilização, prevenção e erradicação, particularmente quando o veículo é a Internet. É uma preocupação
atual e que se refletiu, principalmente na última semana, com a Comissão para a Igualdade e Contra a
Discriminação Racial (CICDR) a convidar órgãos da comunicação social para combater o fenómeno. É uma
realidade que tem de ser combatida e importa reconhecer”.
A propósito do caso relatado pelo José Falcão sobre a situação de Santo Aleixo da Restauração, em que
houve um conjunto de atos de agressão ao património da comunidade cigana, bem como frases de apelo ao
ódio escritas nas fachadas dos edifícios, exemplifica o orador “Mostro-vos este caso, com fotografias deste
estilo: «Morte aos ciganos. Não queremos cá ciganos», «Morte», «Morte», «Morte», «Ladrões», «Porcos»,
«Morte»“.
Esta é uma matéria que requer especial atenção e para a qual é necessária uma estratégia de prevenção e
combate ao fenómeno.
Sentimento de impunidade da comunidade face aos comportamentos racistas e discriminatórios
O SOS Racismo, através de José Facão, optou por trazer casos concretos para ilustrar o que entende por
injustiça e insegurança, havendo na sua intervenção uma chamada de atenção para o sentimento de impunidade
por parte das pessoas e das comunidades visadas. Também Susana Silva, da Amnistia Internacional Portugal,
refere a questão da impunidade, apesar de o fazer de forma indireta quando refere a classificação das queixas
da IGAI.
Um dos casos a que se refere o representante do SOS Racismo na audição às comunidades ciganas é uma
situação que remonta a Janeiro de 2018, na cidade de Portimão, na Escola EB1 Major David Neto, relatando o
seguinte: “Recebo um telefonema de uma mãe (…) a dizer-me o seguinte: «A escola da minha miúda, primária,
4ª classe, tem uma turma com portadores de deficiência, ciganos, africanos e gente que vem de fora…» (…)
Essa turma era sempre barrada à porta do refeitório para que todas as outras turmas entrassem primeiro,
independentemente da ordem de chegada. Esses meninos eram barrados, ficavam à espera que todos
entrassem, e eram colocados ao lado dos caixotes do lixo, no refeitório, e acabavam por ter de dividir a comida
que lhes tocava (…)”.
Diz José Falcão, “Esta mãe denuncia-me isto. Já tinha falado com a direção da escola, já tinha falado com a
direção do agrupamento, já tinha falado com a Direção Regional do Algarve, já tinha mandado para o Ministério,
e nada!”
Também sobre a situação em Santo Aleixo da Restauração, José Falcão volta a referir o sentimento de
impunidade: “Eu não me canso de falar deste caso, porque é paradigmático da incompetência e da impunidade
com que estas coisas se fazem”.
Filipe Nascimento, da Associação Caboverdeana, refere as dificuldades de acesso ao apoio jurídico - “A
proteção jurídica que existe… se não sabem como funciona, direi que, eu, na minha experiência profissional,
tive muitos casos em que aconselhava as pessoas a pedir proteção jurídica, e já lá vão meses ou anos — depois,
deixei de exercer essa atividade —, e não há resposta da segurança social quanto a essa proteção. Dizer que
existe uma lei para prever essa proteção quando um cidadão é alvo de discriminação e, na prática, ela não
6Link:www.om.acm.gov.pt/documents/58428/207737/Queixas+Discrimina%C3%A7%C3%A3o+Racial+CICDR+entre+2000+e+2015.pdf/3fd45296-2b94-455b-b866-c8dcec14fb77
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acontecer, é o mesmo que estarmos aqui a iludir os observadores, as grandes instituições que acompanham o
desenvolvimento da integração dos estrangeiros e dos afrodescendentes, e a própria sociedade”.
É necessário que, na avaliação da existência ou não de impunidade daqueles que são presumíveis agentes
de discriminação na sociedade portuguesa, seja considerado o sentimento e perceção dessa mesma
impunidade por aqueles e aquelas que são alvo de discriminação e racismo. É fundamental que os cidadãos e
cidadãs confiem no Estado enquanto garante da segurança e da justiça, sendo para tal fundamental que não
exista uma perceção de impunidade e que as pessoas confiem no mecanismo de proteção e apoio.
c) – Educação
Quando falamos de educação numa sociedade democrática com um sistema de ensino público universal,
falamos de vários fatores que são fundamentais para uma sociedade que promove a igualdade de oportunidades
para todas as crianças. A educação, através da escola enquanto espaço de socialização, é um fator
determinante para a inclusão e para a educação enquanto ferramenta de conhecimento e saber, sendo esta
crucial para o desenvolvimento das crianças, para o progresso curricular e para a mobilidade social ascendente.
Contudo, é preciso olhar para o nosso sistema de ensino e avaliar se existem fatores de segregação. O
diagnóstico é a primeira etapa para que possamos encontrar soluções.
O tema da educação foi abordado, na audição pública a afrodescendentes e à comunidade brasileira, pela
Beatriz Dias da Associação DJASS, e, na audição pública às comunidades ciganas, pelo Luís Romão da
Associação Sílaba Dinâmica.
Diz Luís Romão, “A questão que se coloca é a seguinte: imaginemos que se juntam as pessoas que têm
poder de decisão e identificam o problema. Qual é o problema? O problema é a assiduidade, é o absentismo e
é o insucesso das comunidades ciganas. Isso é um problema. Definiu-se o problema”.
Parafraseando Beatriz Dias, “Portanto, nós temos que olhar para as escolas como um local onde ainda
podemos ter políticas públicas de justiça e de equidade que possam incluir estes alunos nos seus sonhos, nos
seus desejos, no que eles pretendem fazer enquanto cidadãos”.
Segregação étnico-racial na rede escolar e nos percursos curriculares
Havendo um défice estatístico significativo sobre a origem étnico-racial em Portugal, tem havido algum
levantamento de informação por parte do Ministério da Educação, nomeadamente, o levantamento sobre o
número de crianças ciganas a frequentar os diferentes níveis de ensino, investigação e alguns estudos que nos
permitem compreender de forma mais aprofundada a realidade da diversidade étnico-racial nas escolas e os
percursos educativos com base neste critério. Um dos estudos citados na intervenção de Beatriz Dias, na
audição pública a afrodescendentes e à comunidade brasileira, é o trabalho de investigação da autoria de Pedro
Abrantes e Cristina Roldão do CIES – Centro de investigação de Estudos de Sociologia, com base em dados
do Ministério da Educação sobre crianças imigrantes, que conclui que há “segregação”.7
Diz Beatriz Dias com base no estudo de investigação referido, “O que é que os dados nos mostram? Mostram-
nos que as taxas de reprovação e de retenção são superiores para os afrodescendentes (…). No 1.º ciclo, é de
16%, contra 5% para os portugueses; no 2.º ciclo é de 28%, contra 11% para os portugueses; no 3.º ciclo é de
32%, contra 15% para os portugueses; e, no ensino secundário, é de 50%, contra 20% para os portugueses.
Também verificamos que há maior encaminhamento para os cursos profissionais. Isto acontece: é o dobro no
ensino básico e o triplo no ensino secundário e há um menor acesso ao ensino superior. Estes jovens acedem
cinco vezes menos ao ensino superior do que os jovens portugueses brancos ou não brancos, neste caso não
temos separação”.
Diz Luís Romão, sobre o mesmo assunto, na audição pública às comunidades ciganas, “Onde há um maior
número de ciganos é no 1.º ciclo. Desde o norte ao sul do país, no 1.º ciclo há sempre muitos. Acontece poderem
ter 14, 15 ou 16 anos e andarem na 4.ª classe. Não existia sucesso. Depois, temos o 2.º e o 3.º ciclos em que
havia duas ou três crianças e, no ensino secundário — estamos a falar no 10.º, 11.º e 12.º anos — era
impensável, principalmente para uma menina cigana”.
Beatriz Dias acrescenta, “O que é que isto quer dizer? Que estes estudantes são percecionados como
estudantes que têm características diferentes dos outros estudantes. Que características são estas? São
estudantes problemáticos, indisciplinados, com pouco sucesso, nos quais não vale a pena investir tanto ou,
7 ABRANTES, PEDRO; ROLDÂO, Cristina. Old and new faces of segregation of Afro-descendant population in the Portuguese education system: a case of institutional racism? In: CONFERÊNCIA INTERNACIONAL DA SEÇÃO DE EDUCAÇÃO COMPARADA DA SOCIEDADE PORTUGUESA. Edições Universitárias Lusófonas, Lisboa, 2016.
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então, vamos encaminhá-los para um curso profissional, porque assim vamos criar-lhes a possibilidade de terem
sucesso. (…) Quando verificamos que, em Portugal, um em cada três jovens que termina o ensino secundário
acede ao ensino superior - portanto, só 33% dos jovens que acabam o ensino secundário acede ao ensino
superior -, quando fazemos o recorte da raça, verificamos que este número baixa drasticamente. Portanto, é
preciso olhar para isto, é preciso olhar para esta diferença”.
Luís Romão reforça esta ideia de segregação no sistema de ensino: “São as turmas que ainda existem nas
escolas, só de ciganos. Mas a isto consegue-se dar a volta. Não são turmas só de ciganos, são os PIEF
(Programa Integrado de Educação e Formação), são os POC (Programa de Ocupação para Carenciados) …
Não são turmas só de ciganos. Ele já repetiu duas vezes o ano, não vai repetir mais uma vez, então vamos
coloca-lo aqui. Só que o problema é que são todos ciganos!”
Evidentemente que a segregação nas escolas se prende também com o contexto social e cultural, quer das
crianças das minorias étnico-raciais, quer da comunidade maioritária. Luís Romão expressa-o da seguinte forma:
“Crianças habituadas à liberdade – um bairro social é mesmo isto – até à meia-noite ainda é hora de brincar, só
vão a casa para almoçar e para jantar, de resto, é para brincar, e depois chegar a uma sala de aula e estar duas
horas sentado numa cadeira, é quase impossível. Depois chegam as queixas porque o cigano se porta mal (…),
enfim”.
Acrescenta: “Depois é o relacionamento com as outras crianças. Vejamos o quanto seria difícil para um filho
vosso chegar a casa e dizer uma coisa como esta: 20 alunos numa turma. Dois alunos dessa turma são da
comunidade cigana e há um menino que faz anos. Os convites são distribuídos à frente de todos os meninos,
mas os meninos da comunidade cigana não são convidados. Eu estou a dizer isto com alguma emoção, porque
aconteceu com um familiar, e custou-me muito”.
Os aspetos focados pelos oradores indiciam uma segregação indireta de crianças afrodescendentes e das
comunidades ciganas que precisa de ser avaliada no contexto do sistema de ensino, partindo do princípio de
que a escola tem que ter a capacidade de se adaptar às crianças que a frequentam, integrando na sua
organização e nos seus modelos pedagógicos a diversidade social e cultural, em vez de excluir as crianças que
não se adaptam a um determinado modelo que é tido como aquele que é o de sucesso.
Conteúdos dos currículos e dos manuais escolares
A necessidade de uma abordagem diferente do ponto de vista curricular dos contributos e da interação dos
portugueses com outros povos, nomeadamente com o Continente Africano, que retire a carga colonial
associada, foi referido pela Beatriz Dias, na audição a afrodescendentes e à comunidade brasileira, reforçando
a necessidade de trazer para as escolas uma perspetiva de diversidade cultural positiva que influencia o
conhecimento sobre os outros e sobre nós próprios enquanto comunidade portuguesa.
Citando Beatriz Dias: “Quando falei da nossa herança colonial, desta ideia luso-tropicalista humanista, do
modo português de estar no mundo, esse modo exclui toda a história de civilizações e civilizações que deram
contributos importantíssimos para a sociedade em geral. Para além de terem dado um contributo para toda a
riqueza e desenvolvimento económico das nações europeias, deram um contributo fundamental para o que é a
civilização europeia hoje, e este contributo é completamente negligenciado, é retirado dos currículos, é uma
história que não é contada, é completamente invisibilizada e deve ser incluída nos currículos e na forma como
a história é contada, por uma questão de justiça. (…) É preciso revisão curricular, é preciso incluir estes assuntos
nos currículos, é preciso acabar também com a segregação territorial”.
Para que haja uma perspetiva de igualdade e não discriminação na sociedade é necessário que o sistema
de ensino tenha a capacidade de transmitir uma visão da história capaz de abordar diferentes pontos de vista e
que permita um pensamento critico sobre os diferentes acontecimentos e os diferentes momentos históricos.
Papel e Estatuto do Mediador Sociocultural
A experiência da mediação sociocultural tem vindo a revelar, em Portugal e noutros países europeus, que é
eficaz na inclusão de minorias étnicas e de imigrantes. A existência de uma pessoa em quem o grupo confia e
que faz a mediação com as instituições tem trazido resultados muito positivos na educação, no que diz respeito
ao combate ao absentismo e abandono escolar, e na saúde, no que diz respeito a uma melhor compreensão,
por parte dos profissionais, da cultura dos utentes, e, por parte dos utentes, a uma melhor compreensão do
funcionamento do sistema e dos cuidados de saúde, para dar alguns exemplos.
A experiência, em Portugal, de contratação de mediadores socioculturais, na maior parte dos casos, tem
estado dependente de programas de financiamento dirigidos a Municípios e Organizações Não Governamentais.
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Acresce o facto de a profissão não ter estatuto próprio o que leva a que os mediadores sejam contratados como
assistentes operacionais, categoria profissional em que cabem as funções mais indiferenciadas e menos
qualificadas da Administração Pública.
Sobre este tema diz Luís Romão, “O mediador escolar é extremamente importante para o sucesso das
comunidades ciganas na educação. É extremamente importante! Isto que fique bem claro, e vou explicar o
porquê. Eu sou mediador ou sou assistente operacional, como lhe queiram chamar, há 17 anos. Eu, quando fui
trabalhar para a escola, lembro-me que não havia ninguém no jardim de infância. Não era hábito. Os pais de
crianças com 8 anos pensavam que os miúdos ainda eram pequeninos e com três anos diziam: «O meu filho
ainda é um bebé para ir para a escola». Isto acontece na comunidade cigana. Mas, depois, ao terem um
mediador na escola, a confiança começou a ser outra. Não quer dizer que os ciganos sejam menos do que os
outros. Se os outros vão porque é que os ciganos também não têm que ir? Mas, se existe este problema e se
se consegue resolvê-lo com um mediador, por que é que não se coloca um mediador?”
Diz ainda, referindo-se ao Concelho de Elvas, “De há 17 anos para cá, nós conseguimos que o jardim de
infância,hoje, esteja cheio de turmas onde existem muitos meninos ciganos. O jardim de infância da Escola de
Santa Luzia, por exemplo, tem duas turmas e, se calhar, 15 miúdos são ciganos, o que é uma luta que se
conseguiu ganhar. No 4.º ano, continuamos a ter muitos, mas agora já têm sucesso. Temos cerca de 30 crianças
a frequentar os 5.º ao 9.º anos, e nos 10.º, 11.º e 12.º anos, temos uma grande vitória, temos cerca de 15
crianças a estudar. Ou seja, isto foi trabalho do mediador”.
Refere por fim “Eu trabalhei 17 anos como assistente operacional, não é vergonha nenhuma. Eu fiz o meu
trabalho, mas eu não desempenhava funções de assistente operacional, desempenhava funções de mediador
quando convinha à escola, porque durante as férias eu era assistente operacional. Mas pronto! A minha luta foi
esta e acho que é uma luta que todos nós travamos há muitos e muitos anos, por isso, de uma vez por todas —
que se oiça, por favor —, que o estatuto de mediador passe a fazer parte do Ministério da Educação”.
Há, de facto, o reconhecimento dos resultados da mediação sociocultural, em particular, no trabalho com as
comunidades ciganas, sendo identificados como problemas a ausência de um estatuto profissional e a
continuidade contratual, atualmente dependente da aprovação de candiaturas a verbas dos Fundos
Comunitários.
d) – Habitação
O Direito à habitação condigna é um princípio constitucional. Contudo, segundo dados de um diagnóstico
realizado pela Secretaria de Estado da Habitação sobre as necessidades de habitação em Portugal, há mais de
26 mil famílias que vivem em habitações precárias em Portugal. Também num estudo do IHRU – Insituto de
Habitação e Reabilitação Urbana, foram corroborados esses dados8.
Através destes dados, sabemos que há um número elevado de famílias das comunidades ciganas a viver
em habitação social e em habitação não clássica, a que no caso das comunidades ciganas é dado o nome de
“acampamento” quando se tratam de bairros de barracas que do ponto de vista territorial estão disseminados
por todo o país, com especial incidência no interior, uma vez que o PER – Programa Especial de Realojamento,
se destinou apenas às Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto.
Quanto à comunidade afrodescendente, não há dados disponíveis sobre a habitação, mas há bairros sociais
e de génese ilegal na Área Metropolitana de Lisboa que são maioritariamente habitados por pessoas negras.
Estes aglomerados habitacionais, habitação social, habitação não clàssica e bairros de génese ilegal, onde
vivem afrodescendentes e/ou comunidades ciganas, são muitas vezes locais que têm associados fatores como
a pobreza, a exclusão e a segregação étnico-racial.
Outro aspeto relevante prende-se com o mercado de arrendamento, onde há uma grande dificuldade das
minorias étnico-raciais em arrendar casa. Há estratégias por parte dos senhorios para não darem de
arrendamento as suas casas a pessoas afrodescendentes, e, ainda mais, a pessoas das comunidades ciganas,
apesar da lei proibir a inviabilização do arrendamento com base na origem étnico-racial e de haver sanções
previstas no Código Civil, o que, evidentemente, prejudica a inclusão social das pessoas destas comunidades,
mantendo-se um comportamento de segregação.
8 «Levantamento Nacional das Necessidades de realojamento Habitacional», IHRU, 2018. Link: www.portaldahabitacao.pt/opencms/export/sites/portal/pt/portal/habitacao/levantamento_necessidades_habitacionais/Relatorio_Final_Necessidades_Realojamento.pdf
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Citando Flávio Almada “Quanto à habitação, as pessoas tentam alugar as casas e é-lhes dito: «Não posso
alugar a casa, porque, sabe, o último negro que esteve aqui causou problemas»“.
Territorialização periférica de bairros e “acampamentos”
A localização territorial dos bairros de habitação social, de habitação não clàssica e de habitação de génese
ilegal, situa-se, na maior parte dos casos, na periferia da malha urbana das localidades. Nas Áreas
Metropolitanas de Lisboa e do Porto, a maioria destas realidades habitacionais encontram-se em concelhos
periféricos das cidades de Lisboa e do Porto, mas também nas periferias desses mesmos concelhos, longe das
centralidades. Realidade que também se observa noutras cidades do país, como, por exemplo, em territórios do
Algarve e em Coimbra.
No interior do país, em zonas menos urbanas, estes aglomerados populacionais estão normalmente
afastados das localidades, muito em particular os “acampamentos das comunidades ciganas”.
Esta organização territorial tem em si mesma fatores de segregação associados, porque afasta as pessoas
que aqui vivem dos centros urbanos habitados pela comunidade maioritária, promove o isolamento destas
comunidades e o surgimento de “culturas de bairro” com códigos e vivências próprias, isola as crianças e
concentra-as em determinadas escolas mais próximas, e, reproduz modelos de pobreza e de exclusão.
Muitas vezes, no que diz respeito à qualidade dos meios e serviços que servem estes bairros, há um
decréscimo de qualidade e acesso, nomeadamente, nas acessibilidades, há pouca resposta de transportes
públicos e o acesso ao mesmo é mais dificultado, por vezes não há transporte escolar e as crianças distam
alguns kms das escolas que frequentam, e, na maioria destes locais, sobretudo quando estão longe das
centralidades urbanas, não há serviços públicos e comércio disponível.
Diz Flávio Almada sobre este tema: “Ainda em relação à habitação, por exemplo, quando se faz o
realojamento, nós chamamos àquilo de arquitetura policial ou urbanização policial, porque tem uma saída e uma
entrada e, quando a polícia as fecha, é para toda a gente, e transformando-os em guetos. Não é apartheid
jurídico, mas é um apartheid de facto, porque é segregação. A partir das nove e meia, 10 horas da noite, quase
não tens transporte, estás muito longe e como é que uma pessoa vai sair? Estamos a falar da questão da
mobilidade. Para além disso, na periferia, o transporte é mais caro, e estes são problemas concretos”.
Acrescenta: “Também assistimos a várias outras coisas, porque estão interligadas. Tem a ver com a
educação, com a forma como se organiza o território, com as políticas de educação, com a criminalização da
juventude negra neste país, porque as pessoas, se ficam nos bairros (…) é porque quando cinco jovens negros
vêm para o centro de Lisboa, são perfilhados de criminosos. Isso é um facto, são coisas a que assistimos
diariamente, é uma coisa sistemática, uma dominação estrutural. Se for para resolver coisas concretas, que
sejam palpáveis, que alterem a condição material e de vida das pessoas, sim; o resto pode ser manobra política”.
Ainda na audição a afrodescendentes e à comunidade brasileira, diz Jakilson Pereira, “Mas as pessoas
socialmente, dentro do tecido social, estavam melhor quando viviam na Pedreira dos Húngaros do que em Porto
Salvo. Isto porque, as pessoas estavam no centro, tinham acesso a muitas coisas, a relação com as instituições
era muito mais fácil, e agora colocam as pessoas em sítios onde, a partir das 9 da noite, não há transporte. Isso
aconteceu no período da crise, por exemplo, em Mira-Sintra, que é um exemplo tão claro. Em Mira-Sintra,
chegou-se a um momento em que a CP teve que tomar decisões. Ao sábado e ao domingo não há comboio, as
pessoas têm comboio só de segunda a sexta para virem limpar no centro. As pessoas não têm direito ao lazer
e a outro tipo de acessos, e isso tem repercussões na saúde mental da nossa comunidade”.
Sobre o Alentejo e a realidade das comunidades ciganas, refere Prudêncio Canhoto, “Falando do distrito de
Beja, tenho comigo fotografias que, depois, posso mostrar, dos acampamentos. Este distrito tem muitos
acampamentos ciganos, onde há muitas barracas e panos de lona. Temos o Bairro das Pedreiras, que se fez
para os ciganos. Fez-se um gueto, está ali, fora do perímetro urbano, onde só lá vai quem tem interesse, por
exemplo, para procurar votos. Quanto ao resto, ninguém passa por lá. E vocês sabem que este bairro foi
construído, são 50 habitações que têm mais de 500 ciganos. Só vêem que há ali um acampamento. É do
conhecimento de várias pessoas, mas, para terem uma noção, no acampamento que está ao lado desse bairro,
já estão mais pessoas fora do que dentro das casas”.
E acrescenta, “As câmaras estão limitadas, não têm dinheiro — é o que eles dizem. O Governo tem dois
programas — e eu pensei, no ano passado, «Agora é que é!»: o 1.º Direito e o Porta de Entrada. Pensei: «Agora
é que vai ser feita qualquer coisa». Já passou um ano e o que foi dito na Câmara Municipal de Beja é que vão
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recuperar nove casas para pôr nove famílias, e nem todas são ciganas, porque também não queremos que seja
só para ciganos. Os não ciganos também têm falta de habitação e esta também tem de lhes ser atribuída”.
Há, de facto, um paradigma de realojamento, dos anos 70 e 80, do século passado de construção de bairros
sociais nas periferias das cidades que concentrou milhares de pessoas, nomeadamente, através do Programa
PER. Este programa teve e tem uma dificuldade acrescida que se prende com o recenseamento para
realojamento que, em alguns casos, dista mais de 20 anos entre o recensemaneto e o realojamento, o que
significa que há pessoas que já não vivem no bairro no momento do realojamento, e, outras que lá habitam mas
que não estão recenseadas e não podem ser realojadas.
Hoje, os novos programas na área da habitação, como o 1.º Direito, obrigam os municípios a terem Planos
Municipais de Habitação para poderem aceder a financiamneto, priviligiam a reabilitação à nova construção, e
prevêm o realojamento de forma disseminada pelas malhas urbanas, como já foi inciado com o Bairro da
Jamaica, no Seixal.
Contudo, este é um problema de larga escala, com diferenças territoriais entre as Áreas Metropolitanas e o
interior do país, sendo a política de habitação no interior muito pouco consistente com a falta de capacidade
financeira das autarquias, mas, também, com tensões sociais fortes entre a comunidade maioritária e as
comunidades ciganas, que determinam, muitas vezes, a não solução do problema, e, até, o afastamento de
“acampamentos” que existiram durante décadas nos centros urbanos para zonas periféricas.
Falta de condições de habitabilidade
A falta de condições de habitabilidade nas habitações não clàssicas, vulgo barracas, armazéns, construções
abandonadas, atenta contra o princípio da habitação digna para todos os cidadãos e cidadãs e tem implicações
extremamente graves na vidas das pessoas.
É frequente, nestas situações, não haver pontos de água nas imediações, não haver qualquer sistema de
saneamento bàsico e não haver eletricidade. As construções têm infiltrações de água, não protegem do frio e
do calor, e estão expostas a animais rastejantes.
Estas situações são um dos principais fatores de segregação e afetam, em grande medida, as comuniddes
ciganas, mas também muitas pessoas afrodescendentes e brasileiras, particularmente, imigrantes que vivem
em situação irregular, em Portugal.
Prudêncio Canhoto descreve esta realidade:“No inverno, é só lama, frio, as crianças vão geladas para a
escola e todos enlameadas. Entram no autocarro e o motorista diz logo: «Eh pá, sujam-me o autocarro todo!».
Normal! No verão, é o sol, o calor (…) E, depois, claro, estão num descampado, o esgoto corre para baixo e
fica ali com muitos bichos, cobras, ratazanas, baratas, há de tudo. Como sou o mediador municipal e estou no
terreno, recolho as informações, levo-as à Câmara e esta, depois, diz que não tem verbas, diz «vamos ver» e a
situação vai-se arrastando ano após ano. E estamos nesta situação”.
“E, quando falo de Beja, falo de Pias, uma aldeia com mais de 300 ciganos, com barracas e terra batida. As
crianças têm de ir para a escola, onde lhes exigem aproveitamento escolar, limpeza, e não há uma habitação
adequada para estas famílias. Claro que os pais vivem numa situação muito complicada. Há pais que se
levantam, agora no inverno, às 7 da manhã para fazer uma fogueira para os filhos se levantarem, aquecerem
as mãos, lavarem a cara — estes lavam a cara mal, porque estão cheios de frio — porque o autocarro já está à
espera para os levar à escola. Ora, esta criança vai para a escola à força, desmotivada”.
“(…) Foi posta uma torneira no ano passado, no verão, quando houve os 47.º para mais de 300 pessoas.
Claro, faziam fila para ir buscar água. E, depois, eles vivem numa situação muito complicada: aqueles terrenos
têm muitas covas e são lá postos os entulhos. Ainda no outro dia, uma rapariga disse-me: «Vêm trazer o resto
dos cemitérios, ossos e tudo, para aqui.», ao que respondi: «Não me digas!». Fui ver e vi, realmente, as flores
do cemitério. Ossos, não vi, mas eles confirmam que lá viram. Isto para verem que a zona onde eles estão é
uma zona de lixo, é uma zona de aterros (…)”
Há uma necessidade urgente de resolver a situação das pessoas que vivem em habitações não clássicas de
modo a criar condições mínimas de decência para estes cidadãos e cidadãs. Acresce o facto de viverem nestas
situações muitas crianças e pessoas idosas.
A inexistência de condições de habitabilidade interfere com todas as outras dimensões, nomedamente, com
a saúde, com a educação das crianças e as condições mínimas para terem aproveitamento escolar e com o
acesso ao trabalho e a obtenção de rendimentos.
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São necessárias políticas específicas para estas situações extremas, que promovam o realojamento destas
pessoas, mas, também, o acompanhamento da inclusão na habitação clássica, de modo a promover uma
adaptação positiva às novas casas que auxilie o processo de inclusão e a diminuição de tensões com a
comunidade maioritária.
e) – Trabalho/Emprego
O acesso ao mercado de trabalho é um fator essencial para a inclusão dos cidadãos e das cidadãs em idade
ativa. Para que haja inclusão e mobilidade ascendente na socieade é necessário que o emprego seja promotor
de rendimento e fator de integração e de promoção de um estatuto social.
Contudo, quando falamos de trabalho e emprego no contexto dos afrodescendentes, da comunidade
brasileira e das comunidades ciganas, há um conjunto de aspetos que se evidenciam enquanto fatores de
impedimento, quer no acesso ao mercado de trabalho, quer no posicionamento e na evolução profissional destas
comunidades.
As queixas apresentadas à CICDR, relativamente a 2018, têm uma percentagem elevada de casos ligados
ao mercado de trabalho, e as intervenções nas audições públicas sobre esta temática – Filipe Nacimento, pela
Associação Caboverdeana e Maria José Vicente pela EAPN (Rede Europeia Anti-Pobreza) Portugal - colocam
a discriminação no centro, como factor de exclusão social.
Acesso ao mercado de trabalho
O acesso ao mercado de trabalho é o primeiro passo para que uma pessoa contribua para o esforço coletivo
da economia nacional, tenha condições de se desenvolver enquanto trabalhador, possa ter uma carreira
profissional digna e possa auferir um rendimento proveniente do trabalho no final do mês.
Contudo, há fatores que condicionam algumas pessoas a aceder ao mercado de trabalho. Essas
circunstâncias prendem-se, muitas vezes, com a baixa escolaridade ou com a falta de documentação, no que
diz respeito a pessoas imigrantes que não estão legalizadas, mas há fatores mais subjetivos que importa
abordar, intimimante ligados com a origem étnico-racial.
Maria José Vicente aborda a dificuldade de acesso ao emprego, “Essas dificuldades prendem-se, sobretudo,
com comportamentos discriminatórios e a não sensibilização, por parte de algumas entidades empregadoras,
para a contratação de pessoas de etnia cigana. Posso dizer-vos que estas situações de discriminação começam,
muitas vezes, no próprio processo de seleção, quando as pessoas de etnia cigana são convocadas para as
entrevistas. Durante a entrevista, os entrevistadores, por conhecimento, às vezes, por viverem em meios mais
pequenos, sabem que a pessoa é de etnia cigana e é logo colocada de lado, não valorizando as competências
e as capacidades da pessoa em questão. São comunidades ciganas, são logo colocadas de lado. E nós temos
de combater essas questões”.
E acrescenta “Muitas pessoas disseram: «Eu trabalho num determinado sítio, mas ninguém sabe que sou
cigana. Tenho receio de que, a partir do momento em que integre este projeto, os meus colegas e, mesmo, a
minha entidade patronal comece a olhar para mim de outra forma e eu possa mesmo ser despedida»“.
Olga Mariano, na audição pública às comunidades ciganas, contribuiu com um caso concreto: “Muito
rapidamente, gostaria de vos contar uma passagem que se passou com um filho meu, a nível de emprego. Ele
tinha um curso de mesa e bar e um curso de turismo e candidatou-se a um emprego num cruzeiro. As pessoas
que o estavam a entrevistar perguntaram, porque ele tem a tez escura: «Tu és indiano?» e ele disse: «Não, não
sou indiano, sou português. «Então, tens origem afro?» e ele disse: «Não, não, eu sou português». Ele contou-
me isto, depois de ter vindo de lá. E lá conseguiu. Ele tinha as competências e lá conseguiu entrar no cruzeiro
e fazer o trabalho dele. Quando ele veio e me esteve a contar essa situação, disse-me: «Ó mãe, só em alto-mar
é que eu me assumi como cigano, porque eles aí não me iam deitar borda fora».
Também Filipe Nascimento aborda o tema do acesso ao mercado de trabalho. “Não basta sabermos quantos
é que estão a trabalhar, se não nos preocuparmos em saber como, em quê, de que modo é o tratamento, qual
é o salário — onde também vou chegar — e de que modo é feito o rastreio desses interessados, dos candidatos,
que muitas vezes passaram uma juventude e uma adolescência a preparar-se para aceder ao mercado de
trabalho, muitas vezes em condições de igualdade a nível dos currículos — como aqui já foi muito bem
evidenciado — e que, sem um critério objetivo, essas pessoas vêem-se, infelizmente, obrigadas a refugiar-se
nos tais trabalhos, não é novidade para ninguém, da limpeza, da construção civil, da fiscalização do
estacionamento (…)”.
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No que diz respeito às comunidades ciganas o acesso ao mercado de trabalho é-nos relatado como
extremamente difícil, independentemente da função a que se candidatam, e, por isso, como diz Maria José
Vicente, “ainda estão muito ligadas às ditas «atividades tradicionais», que são as feiras e a venda ambulante.
De acordo com o último Estudo Nacional sobre as comunidades ciganas, de 2014, 14% da população vivia da
venda ambulante, também devido a esta questão de terem dificuldade em integrar o mercado de trabalho e de
algumas comunidades ainda apresentarem níveis de escolaridade baixos”.9
Quanto aos afrodescendentes e à comunidade brasileira, esta última como imigração através de pessoas
sem grande capacidade financeira, o acesso ao mercado de trabalho existe, mas, condicionado a determinadas
funções indiferenciadas e em determinados setores, tais como, a limpeza, a construção civil e a segurança,
independentemente das suas habilitações académicas, o que pressupõe um estereótipo profissional associado
à origem etnico-racial.
Desadequação da Formação Profissional
A formação profissional tem como objetivo dar ferramentas e conhecimentos aos formandos e formandas
para que fiquem melhor preparados para aceder ao mercado de trabalho. Por isso, pressupõe que as
competências individuais e as características culturais e sociais sejam tidas em conta, em conjugação com as
habilitações académicas e a experiência profissional.
O que é relatado pelas comunidades ciganas é uma desadequação da formação profissional a este grupo da
população.
Diz Maria José Vicente sobre a adaptação da oferta formativa aos níveis de escolaridade: “Temos de ter
presente que a oferta das ações formativas não está adaptada ao nível de escolaridade que as pessoas de etnia
cigana apresentam. Estamos a falar de pessoas que, muitas vezes, não possuem o 1.º ciclo completo e temos
necessariamente de ter respostas para estas pessoas. Eu aqui estou a falar das comunidades ciganas, mas
quanto ao resto da população portuguesa ainda temos situações deste género, que ficam fora das políticas
ativas de emprego e, sobretudo, da formação profissional. Os requisitos para participar nestas ações formativas
colocam muito ênfase no grau académico e no nível de escolaridade e não tanto na motivação e nas
competências reais que as pessoas possuem”.
De seguida, a oradora fala-nos dos horários:“Depois, estamos perante a inadaptação da oferta de formação
relativamente aos horários, à duração e à situação socioeconómica e familiar desta população. Muitas vezes,
as pessoas de etnia cigana querem frequentar formação profissional, mas, ao mesmo tempo, também
desenvolvem atividades de feiras e da venda ambulante que não querem deixar. Isto relativamente ao acesso
à formação profissional”.
Refere ainda a permanência das pessoas ciganas na formação, “Depois, temos desafios na permanência da
formação profissional, que se prende com pouca ou nenhuma informação e ausência de formação por parte dos
formadores relativamente às comunidades ciganas, e, aqui, não especificamente a uma cultura, mas, sim, a
uma abordagem intercultural. Sentimos que os formadores não têm esta sensibilidade. A ausência de
metodologias participativas ligadas a uma aprendizagem ativa mais prática, e, ainda, ao nível da permanência
na formação, existe um défice de recursos de formação/emprego que articulem, de forma intensiva, a formação
teórico-prática e a integração profissional. Muitas vezes, as ações de formação são muito teóricas e, depois,
não existe uma componente prática que leve a que as pessoas permaneçam na formação”.
Podemos concluir que há de facto desafios de adequação a este grupo que têm de ser tidos em conta nas
políticas de formação profissional, de modo a responder ao objetivo da formação profissional na qualificação e
adequação desta população ao mercado de trabalho.
Trabalhadores das minorias étncio-raciais no setor público
Se constatamos que na representação política há um défice de representatividade das pessoas
afrodescendentes e das comunidades ciganas, também é verdade que no emprego público, apesar de não haver
dados disponíveis, a perceção que temos é a de que há um défice de trabalhadores das minorias étnico-raciais.
9MENDES, Manuela, MAGANO; Olga, CANDEIAS, Pedro, «Estudo Nacional sobre as Comunidades Ciganas», 2014, desenvolvido pelo CEMRI-UAb (Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais, da Universidade Aberta) e pelo CIES-IUL (Centro de Investigação e Estudos de Sociologia, do Instituto Universitário de Lisboa), no âmbito de projeto do ACM financiado pelo POAT-FSE. Link: https://www.acm.gov.pt/documents/10181/52642/estudonacionalComunidades.pdf/f4aa9b13-797d-40bb-a3b3-1c4011b05760
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A origem étnico-racial é, na maior parte dos casos, um fator visível que se observa pela cor da pele. Se
olharmos para os Cargos de Direção da Administração Pública, Diretores e Subiretores Gerais e Conselhos
Diretivos dos Institutos Públicos a presença de pessoas negras é praticamente inexistente, assim como a sua
presença em repartições públicas. Evidentemente que, há nesta ausência uma história insitucional na
administração pública portuguesa que devia ser avaliada, tendo por base a idade média dos trabalhadores em
funções públicas, e, também, o histórico da seleção de pessoas na adminstração pública.
Refere Filipe Nascimento, sobre este tema, “Acho que o próprio Estado também não dá muito exemplo nesta
matéria. Se verificarmos, como disse há pouco, onde é que temos os nossos lugares reservados no mercado
de trabalho — e o próprio Estado é o maior empregador do país — e, se formos a ver dentro das estruturas do
Estado, tanto na administração pública como nas empresas estatais, penso que não podemos fingir que essa
realidade dos afrodescendentes e dos estrangeiros, de modo geral, não existe. Podemos ter uma exceção ou
outra, e aqui não posso fugir a esta realidade e tocar com a política e dizer: «Bom, temos um Deputado
afrodescendente ou africano», mas é uma exceção da exceção. Podemos ter uma apresentadora de televisão
não portuguesa ou não de raça branca — desculpem ser muito frontal a usar esses termos —, mas é uma
exceção da exceção”.
Acrescenta, introduzindo o tema das quotas, “Há vozes que, às vezes, dizem: «Não! Temos de começar a
falar em quotas para os negros na integração nas empresas do Estado ou, mesmo, em empresas privadas, ou
na política». Eu diria que sou contra as quotas para os negros, porque isto é sinal de que a consciência da
sociedade é, no fundo, isto: se colocarmos quotas, estamos a reconhecer que a sociedade não está
consciencializada para aquilo que é a realidade. Temos que admitir que o Estado tem de ser o primeiro a dar o
exemplo”.
A Administração Pública Portuguesa é também um espelho da estrutura do mercado de trabalho em Portugal.
Tal como nas empresas privadas, as pessoas ciganas são praticamente inexistentes, ou, tal como as pessoas
negras, estão mais presentes nas profissões menos qualificadas, são assistentes operacionais, empregadas de
limpeza e operários, e é necessário olhar para esta realidade e diagnosticá-la para depois se poder discutir em
torno de medidas positivas que possam diminuir estas assimetrias.
Maria José Vicente dá como exemplo um projeto que visa a desmistificação dos estereótipos sobre as
comunidades ciganas, “Por último, também existem desafios no acesso ao mercado de trabalho. Um deles, já
referi aqui, é o comportamento discriminatório por parte das entidades empregadoras. Só a título de exemplo,
queria apresentar-vos um projeto que a EAPN desenvolveu em 2016, (…) Pegámos em 20 cidadãos que
estivessem a estudar ou a trabalhar em atividades que saíssem daquela ideia que a sociedade em geral tem de
que só vivem das feiras. Posso-vos dizer que estão aqui 20, mas podiam estar muito mais. (…) as pessoas
tiveram receio de mostrar a cara. Quem tiver oportunidade de, depois, conhecer a publicação, verificará que tem
uma fotografia, a pessoa apresenta-se, a pessoa expõe-se. Muitas pessoas disseram: «Eu trabalho num
determinado sítio, mas ninguém sabe que sou cigana. Tenho receio de que, a partir do momento em que integre
este projeto, os meus colegas e, mesmo, a minha entidade patronal comece a olhar para mim de outra forma e
eu possa mesmo ser despedida»“.
O trabalho e o emprego são uma dimensão estruturante na vida das pessoas que condiciona a sua
capacidade de arrendar ou adquirir uma casa e de dar aos filhos as condições necessárias para estudar e
usufruir de um contexto sociocultural com valorização do seu crescimento e da aquisição de competências
pessoais e sociais.
É fundamental que haja consciência das necessidades de adaptação formativa ao público-alvo por um lado,
e o combate à discriminação laboral por outro, onde estão incluídos o setor privado e o setor público.
f) – Saúde
Em matéria de saúde as questões que foram levantadas nas audições públicas referem-se
fundamentalmente às condições de saúde das pessoas afrodescendentes e das comuniddes ciganas as quais
são reflexo das suas condições de vida, nomeadamente, das condições de habitabilidade de muitas das pessoas
e da necessidade de prevenção primária junto das comunidades. Quanto ao acesso a cuidados de saúde, é
referido, enquanto problema para pessoas imigrantes que estão em Portugal ao abrigo de protocolos com os
seus países de origem ou que estão indocumentadas.
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Condições de Saúde
As condições de saúde das pessoas estão intimamente ligadas às condições de habitabilidade, aos hábitos
alimentares e ao sedentarismo. As condições de vida das pessoas estão enquadradas pelo contexto
sociocultural em que se encontram, as quais têm reflexo sobre a sua saúde, física e psicológica.
Diz Maria José Vicente, na audição às comunidades ciganas, sobre o tema da saúde:“Em 2009, a EAPN
Portugal, no âmbito de um projeto transnacional, desenvolveu um estudo sobre a situação atual das
comunidades ciganas em Portugal10. A principal conclusão é que, realmente, as doenças que as comunidades
ciganas apresentavam na altura estavam diretamente relacionadas com as condições de habitação e, sobretudo,
com uma situação de pobreza e de exclusão, que caracteriza estas comunidades. Estamos a falar, sobretudo,
de doenças respiratórias”.
Dificuldades de acesso ao sistema de saúde
Em Portugal, todas as pessoas, independentemente de estarem legais ou ilegais no país, têm acesso a
cuidados de saúde, mas no caso de pessoas imigrantes ilegais esse direito de acesso não implica a gratuitidade
dos cuidados. Contudo há dificuldades que surgem no atendimento dos serviços de saúde que importa observar,
muitas vezes por dificuldades de comunicação que não se prendem apenas com questões linguísticas mas
também devido a iletracia.
Diz Jakilson Fernandes a propósito da saúde, “Para ir mais a fundo quanto à questão da saúde, que
tradicionalmente vimos que é a questão dos acessos, apesar de achar que o nosso sistema de saúde é bom
(…) Posso criticar muitas coisas que têm que se mudar em Portugal, mas o sistema de saúde, a mentalidade,
os funcionários (…) Estou a falar do acesso de imigrantes ao sistema de saúde. Quando os imigrantes vêm, por
exemplo, de países que têm protocolo, chegam ao hospital ou ao centro de saúde - e há países tipo Cabo Verde
que nós, constantemente, na Associação, temos de enviar protocolo para as pessoas serem atendidas (…) Essa
não é uma realidade que passe muitas vezes, mas ainda há pessoas a quem é recusado o acesso ao sistema
de saúde, em Portugal. Diariamente, imigrantes são recusados e, muitas vezes, com aquele discurso que não
pode ser tolerado na nossa função pública, que é dizer: «Eh pá, se não estás contente, vai para a tua terra!», e
isso, nós estamos a normalizar. Essa parte de tirar o tapete, quando reclamamos o nosso direito, e dizer: «Vão
para a vossa terra!», esse discurso, o Estado tem um papel fundamental de não aceitar. Não podemos tolerar.
Acho que deve haver tolerância zero para com aqueles que dizem aos cidadãos que vão reclamar os seus
direitos para irem para as suas terras”.
Prevenção Primária
Os hábitos culturais e sociais têm implicações na vida das pessoas. Determinado tipo de alimentação que
inclui muitas gorduras e sal, a ingestão de álcool em quantidade, o tabagismo e a falta de exercício físico, são
condicionantes negativas para a saúde.
O Estado tem apostado em realizar estratégias e campanhas preventivas que melhorem os hábitos saudáveis
das populações, mas é necessário que estas medidas de prevenção cheguem a toda a população. Estima-se
que as pessoas das comunidades ciganas têm, em média, cerca de menos 15 anos de vida que a comunidade
maioritária, o que tem uma justificação multissetorial, mas, os hábitos culturais são um fator a considerar.
Maria José Vicente refere, “Uma outra conclusão é que, realmente, não existe ainda, por parte das
comunidades ciganas, educação para a saúde. Quando digo «educação para a saúde», falo na questão de
práticas de prevenção, que depois também tem reflexos no estado de saúde destas comunidades. Também
verificamos que, muitas vezes, estas comunidades estão ausentes das campanhas de saúde existentes a nível
nacional. Associado a isto, existe ainda um grande desconhecimento sobre a cultura cigana por parte dos
profissionais de saúde, que muitas vezes, depois, também condiciona a relação de confiança que era necessário
estabelecer entre o doente e o profissional”.
Acrescenta ainda, “Se para o resto da população portuguesa é difícil, muitas vezes, a linguagem usada
nestes meios, quando falamos de algumas comunidades ciganas, ainda é mais difícil, porque estamos a falar
de comunidades que apresentam baixos níveis de escolaridade e, muitas vezes, também não entendem aquilo
que os profissionais de saúde pretendem transmitir. Por isso, há aqui algumas questões que devemos ter
presente quando estamos a falar da saúde e, sobretudo, quando estamos a falar do acesso das comunidades
ciganas à saúde”.
10 «Guia para a Intervenção com a Comunidade Cigana nos Serviços de Saúde». Link: https://www.eapn.pt/projeto/58/reducao-das-desigualdades-de-saude-nas-comunidades-ciganas
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Interseccionalidade e Género
Quando falamos de dicriminação, é fundamental que se cruzem diferentes àreas e que se compreenda que
há multidiscriminações que são potencidas entre si, como acontece entre as questões étnico-raciais e as
questões de género, mas a que se juntam as questões de classe. Hoje a interseccionalidade é fundamental para
uma melhor compreensão deste fenómeno que hierarquiza socialmente e culturalmente as pessoas e limita as
suas oportunidades.
Diz Cyntia de Paula sobre este tema “(…) quando falamos de discriminação da comunidade brasileira, não
posso deixar de falar da questão de género e olhar especificamente a questão da discriminação sofrida pelas
mulheres imigrantes brasileiras e com as suas especificidades. Sinto que, quando falamos de discriminação, e
quando olhei para o painel, falta olharmos para a imigração no feminino. Acho que temos que começar a olhar
para as questões das mulheres imigrantes nas suas mais diversas especificidades. Aqui trago a questão da
mulher brasileira, mas poderia falar de outras mulheres — cada uma com a sua interseccionalidade: uma mulher
imigrante branca, altamente qualificada, não tem as mesmas opressões, não vive as mesmas expressões de
discriminação e racismo do que uma mulher imigrante negra, por exemplo, de uma classe social mais baixa.
Quando falamos de discriminação, surpreende-me olhar e não ver as mulheres imigrantes aqui, com o seu
espaço de fala especificamente. Deixo também essa recomendação para o relatório — acho que é fundamental”.
Também Beatriz Dias refere, “Portanto, temos de olhar para esta situação com toda a sua profundida, sem
nunca esquecer o racismo como moldura de análise. Não podemos continuar a pensar que os problemas que
temos vão ser resolvidos se implementarmos políticas públicas que resolvam a questão de classe, e não
implementarmos políticas públicas que olhem para o racismo como um fator fundamental de discriminação”.
III – Audições a Especialistas
As audições a especialistas tiveram como objetivo ouvir, após as audições púbicas, entidades e
personalidades que têm comprovado pensamento e reflexão sobre o tema do relatório. Não houve uma opção
por especialistas da academia, ou por especialistas do ativismo, aquilo que se pretendeu foi ouvir uma reflexão
crítica e aprofundada sobre o tema, bem como a concretização de propostas que possibilitem melhorar a
resposta ao racismo, à xenofobia e à discriminação étnico-racial.
Foi realizado um conjunto alargado de convites, com base no mapa aprovado pela Subcomissão para a
Igualdade e Não Discriminação, ao qual nem todas as entidades e personalidades responderam
afirmativamente, tendo havido o esforço de incluir aquelas e aqueles que não foram ouvidos nestas audições,
no Programa do Seminário final (nomeadamente, Rui Pena Pires, Alexandra Castro, Maria José Casa-Nova e
Sérgio Aires).
Estas audições não seguiram um modelo de temas previamente acordados com as entidades e
personalidades, razão pela qual a organização dos temas e das intervenções destas audições não são uniformes
na sua estrutura.
a) – Audição a Especialistas sobre Afrodescendentes e Comunidade Brasileira
Catarina Reis Oliveira, Coordenadora do Observatório das Migrações (OM)
A primeira intervenção na audição de especialistas sobre afrodescendentes e sobre a comunidade brasileira
foi da responsabilidade da Coordenadora do Observatório das Migrações, Catarina Reis Oliveira, que nos
apresentou dados disponíveis sobre diferentes temas e áreas, salientando-se o facto da grande maioria da
informação se referir a imigrantes e não a nacionais afrodescendentes ou às comunidades ciganas, uma vez
que não existe recolha de dados étnico-raciais.
Diz Catarina Reis Oliveira “Já sabemos que, em relação a muita da informação que se pretende aprofundar
aqui, não há dados oficiais. Sem prejuízo, os dados que temos, desagregados por nacionalidade, trazem-nos
aqui alguns apontamentos de desigualdade, que é importante salientar”.
“Em Portugal, temos o desafio de, efetivamente, estarmos a falar da integração de imigrantes, quando, na
realidade, o que os dados nos dão dizem respeito a estrangeiros — portanto, estamos a falar de nacionalidade.
No fundo, é este apontamento, desde já metodológico, relativamente àquilo que temos de informação estatística
e aquilo que, às vezes, queremos efetivamente detalhar.
O que vos trago aqui são dados segundo a nacionalidade, embora, quando chegar, por exemplo, aos dados
apurados pela Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR), já se esteja a falar de
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pessoas que reportam situações de discriminação e nada estamos a dizer sobre a sua nacionalidade,
efetivamente a razão pela qual declaram ter sido discriminados”.
Na informação disponibilizada, Catarina Reis Oliveira dá-nos, como a própria refere, “alguns apontamentos
sobre a distribuição da população estrangeira no território, referindo que há sobre concentração na Área
Metropolitana de Lisboa, e um maior impacto no sul, com especial destaque para o Algarve.
Diz a oradora “Devo explicar, também, que a população estrangeira residente não é um todo homogéneo e,
efetivamente, a sobre representação está na população brasileira, cabo-verdiana e ucraniana. Estamos aqui a
falar em ordens de importância, em que a brasileira, em 2017, ainda representa 20% da população estrangeira
residente”.
“Volto a realçar que não estamos a falar de origem, mas de nacionalidade. Já sabemos que muitos dos
africanos residentes em Portugal já têm nacionalidade portuguesa e, portanto, não estão nestes números que
vos estou a mostrar”.
Catarina Reis Oliveira dá-nos alguma informação setorial que importa reter:
Trabalho/Emprego
“Nos grupos profissionais em que os estrangeiros estão, por comparação aos nacionais, também há
contrastes. Sabemos que, durante anos, tivemos uma sobre representação da população estrangeira nos três
grupos profissionais da base. Nos últimos anos, ainda que se mantenha a sobre representação no grupo
profissional 9, há aqui um atenuar desta concentração nos grupos da base e um aumento que se explica pelo
aumento no grupo 5. Portanto, não estamos a falar dos grupos profissionais mais nobres, se assim puder dizer,
ou de qualificações mais elevadas, os primeiros grupos profissionais. Há aqui, efetivamente, um contraste entre
os nacionais e os estrangeiros”.
“Em termos das habilitações que estes trabalhadores têm, também não é homogéneo. Temos,
essencialmente, os portugueses, quando comparados com os estrangeiros, com uma maior importância relativa
de profissionais com cursos superiores. Quando analisamos a população estrangeira, percebemos que também
não é um todo homogéneo. Uma vez mais, temos os da União Europeia com níveis de habilitação mais elevados
e os asiáticos e africanos com maior percentagem de ensino básico ou secundário”.
“Isto, depois, também acaba por se traduzir em termos de remunerações e, nestas, observam-se grandes
desigualdades, ainda em Portugal”.
“Em 2017, os estrangeiros que tinham remunerações mais distantes da média dos portugueses foram os
nepaleses e os paquistaneses — estamos a falar, essencialmente, de nacionalidades asiáticas —, mas também
muitos africanos. Estão, no fundo, todos os grupos PALOP representados. Por contraste, nas nacionalidades
com remunerações mais altas, temos os cidadãos da União Europeia, com a Bélgica à cabeça, neste ano, com
mais 169% da remuneração do que a média dos trabalhadores portugueses”.
“Quanto ao desemprego também não há um todo homogéneo e também observámos que, nos últimos anos,
foram os estrangeiros que estiveram mais expostos ao desemprego, acabando por ser fácil desconstruir o mito
de que são os estrangeiros que vêm roubar o emprego, em Portugal, porque depois, em situação de crise, são
os primeiros a ficar expostos ao desemprego, sendo algumas das nacionalidades mais sobre representadas no
desemprego. Em concreto, os brasileiros, os ucranianos e os cabo-verdianos, em 2017, foram os que tiveram
maior prevalência de registo no desemprego”.
Quanto às contribuições para a Segurança Social refere, “Por nacionalidade, uma vez mais, há algumas
discrepâncias. Aqueles que contribuem mais para o sistema são aqueles que, efetivamente, estão mais
associados ao mercado de trabalho, e estamos a falar essencialmente dos brasileiros, dos PALOP e dos
asiáticos e, por contraste, os da União Europeia são aqueles que são menos ativos e contribuem menos para o
sistema de segurança social português”.
Acrescentando, sobre o risco de pobreza, “Outro indicador importante tem a ver, por contraposto, com o risco
de pobreza. Os estrangeiros têm-se mostrado mais expostos ao risco de pobreza do que os nacionais, em
particular nos anos de crise. Quando se compara nacionais de países terceiros com cidadãos da União Europeia,
são então os nacionais de países terceiros que têm mais do triplo da prevalência de risco de pobreza do que os
cidadãos da União Europeia, que, na realidade, até têm risco de pobreza menor do que a população portuguesa”.
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Habitação
Em matéria de habitação volta a haver desigualdades entre a população portuguesa e a população
estrangeira oriunda de países terceiros, onde se incluem as pessoas provenientes dos PALOP e do Brasil.
Catarina Reis Oliveira diz, “Relativamente à habitação, mostramos também, através destes indicadores,
ainda que só por nacionalidade, que há bastantes discrepâncias quanto à habitação no nosso país. Em concreto,
são as populações nacionais de países terceiros que têm maior taxa de sobrelotação da habitação e, por
contraste, são os portugueses e os cidadãos da União Europeia que têm a menor taxa de sobrelotação da
habitação”.
Saúde
Os dados relativos à saúde vêm evidenciar que o acesso à saúde é uma dificuldade que subsiste na
comunidade imigrante apesar da legislação portuguesa não vedar o acesso à saúde a nenhum cidadão,
independentemente de ser nacional ou estrangeiro, ou de estar legalmente ou ilegalmente no País.
“Relativamente ao Serviços Nacional de Saúde (SNS) os indicadores que temos usado do Inquérito Nacional
de Saúde e do ICOR (Inquérito às Condições de Vida e Rendimento) sobre as condições de vida, mostram que
há uma tendência efetiva de os estrangeiros mostrarem maiores perceções de saúde do que os nacionais. Têm
essa perceção, a de que são mais saudáveis do que os nacionais. No entanto, quando se analisa, depois,
indicadores mais concretos da utilização do Serviço Nacional de Saúde, são os estrangeiros aqueles que tendem
a utilizá-lo menos, o que não significa que esteja associado à sua saúde. Fizemos um relatório só focado na
questão da saúde e o que ele mostra é que, efetivamente, nos últimos anos, há aqui um efeito da crise na
utilização do Serviço Nacional de Saúde, o receio relativamente aos pagamentos, às taxas, e por aí fora.
Portanto, estes indicadores nem sempre nos dizem a realidade”.
Nacionalidade
A informação refente à aquisição de nacionalidade por parte de cidadãos estrangeiros reforça a necessidade
de mais dados sobre esta população que deixou de constar nos dados sobre imigração. Catarina Reis Oliveira
diz que nestas pessoas que adquiriram nacionalidade portuguesa há uma sobre representação de pessoas
provenientes dos PALOP e do Brasil. “Quando analisámos por nacionalidade de origem, portanto, antes da
aquisição da nacionalidade portuguesa, vimos uma sobre representação efetiva de cidadãos que eram falantes
de português. Estamos a falar de brasileiros e de cidadãos dos PALOP, principalmente quem adquiriu a
nacionalidade nos últimos anos”.
Participação Política
Um dos temas abordados nas audições públicas foi a participação política das minorias étnico-raciais e dos
imigrantes, em particular da comunidade brasileira, e os dados acompanham a perceção de deficit de
participação, nomeadamente, na comunidade brasileira, que é aquela com mais direitos de participação política
e a maior comunidade imigrante em Portugal, mas que não tem correspondência, neste caso, na sua
participação enquanto eleitores.
Diz a oradora “Outro indicador que também gostaria de vos deixar tem a ver com o recenseamento eleitoral
de estrangeiros. Se, efetivamente, o recenseamento eleitoral não é, ainda, um direito universal em Portugal para
todas as nacionalidades, ainda assim, conseguimos perceber, para aqueles que efetivamente têm este direito,
que há aqui bastantes discrepâncias relativamente ao recenseamento”.
“Sabemos que os brasileiros são aqueles que têm mais direitos em termos políticos. Ainda assim, quando se
analisa por nacionalidades, verifica-se que, nos últimos anos, diminuiu o recenseamento dos nacionais de países
terceiros e, se considerarmos o número de recenseados por total de residentes com mais de 20 anos — é o
indicador possível de apurar —, temos uma taxa de recenseamento de 30% para os cabo-verdianos, enquanto
para os brasileiros estamos na ordem dos 6%. Aqui, há um grande salto relativamente ao direito versus a efetiva
prática desse direito”.
Catarina Reis Oliveira traz-nos, por fim, a informação disponível sobre discriminação, referindo para além
dos dados da CICDR, dados de eurobarómetros especiais da FRA (Agência da União Europeia para os Direitos
Fundamentais)
“Relativamente às perceções, nos últimos anos, através destes eurobarómetros, é possível ver que a maioria
da população acredita que existe discriminação com base na origem étnica em cada um dos Estados da União
Europeia, tendo, na realidade, aumentado não só em Portugal, mas também na generalidade dos países da
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União Europeia. Neste momento, estamos na ordem dos 65% dos inquiridos que acredita que a discriminação
é comum nos vários países da União Europeia, e Portugal também acompanha esta tendência”.
“Relativamente a este último inquérito da FRA, focado apenas nos imigrantes africanos subsarianos, o que
se nota é que, agora já há experiências reportadas de discriminação e o Reino Unido e Portugal são os que
mostram menor percentagem de pessoas que tiveram experiências de discriminação efetivadas, quando
comparados com outros Estados. Por exemplo, no Luxemburgo, estamos na ordem dos 70% que declarou ter
discriminação efetiva não só nos últimos 12 meses, mas também de 1 a 5 anos antes”.
A Coordenadora do Observatório das Migrações introduz a seguinte reflexão, “Focando-me nos dados da
Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial, nos últimos anos, tivemos um aumento efetivo
tanto no número de queixas, como no número de processos de contraordenação. Isto não significa que tenha
aumentado a prática de discriminação, o que temos é uma mudança na lei a que é preciso atender e que induziu
a este aumento de queixas reportadas. Ainda assim, estes dados administrativos são importantes para nos dar
nota de quais as áreas em que conseguimos identificar maior prevalência da discriminação e as origens que
reportam melhor essas práticas”.
“A mensagem era tentar dizer isto: É certo que ainda não temos dados, em Portugal, sobre a origem étnico-
racial, ainda assim, conseguimos, pelos dados da nacionalidade, mostrar a existência de uma série de
desigualdades sobre as quais importa refletir”.
Mamadu Bá, Dirigente do SOS Racismo
Mamadu Bá, dirigente do SOS Racismo, ativista contra o racismo e discriminação étnico-racial, inicia a sua
intervenção fazendo a destrinça entre o tema da imigração e do racismo, referindo que as duas questões se
cruzam, mas que devem ser tratadas em separado.
Diz Mamadu Bá, “(…) Acho que temos de fazer um esforço, todas e todos, para evitar esta amálgama que
temos na mesa. Não gosto muito de discutir questões raciais misturando-as com questões migratórias. Acho
que tem de haver um esforço cada vez maior em fazer esta distinção, porque a realidade social e política das
questões raciais e migratórias é completamente e cada vez mais distinta e convoca outro tipo de abordagem do
ponto de vista da resposta política. Senão, continuaremos sempre a passar ao lado daquilo que importa. É
preciso dar alguma centralidade política à questão racial e não a misturar com questões migratórias. Isso não
quer dizer que não tenham ligações entre si, mas, para a própria solidez das propostas políticas, é importante
que se faça esta distinção”.
Mamadu Bá destaca três áreas fundamentais na sua intervenção:
Trabalho/Emprego
Na área do trabalho e do emprego, a qual Mamadu Bá identifica como central na vida das pessoas, a sua
intervenção vai no sentido de que os indicadores apontam para a segregação das pessoas negras no mercado
de trabalho, mantendo-as na base da pirâmide.
Diz a este respeito “A primeira, e a mais importante de todas, porque é ela que condiciona a nossa vida, tem
a ver com o emprego. Todos os indicadores mostram, obviamente, que há uma grande discrepância, uma
desigualdade muito mais marcada e que marca, mais evidentemente, as pessoas racializadas, nomeadamente
os negros e as negras. Se formos ver no mercado de trabalho, nomeadamente no trabalho doméstico ou noutras
profissões mais precárias como, por exemplo, trabalhadores que prestam apoio social a determinadas camadas
da nossa sociedade, quase todas são pessoas racializadas. O trabalho doméstico, o apoio ao domicílio, outro
tipo de serviços, nomeadamente, o trabalho mais precário na hotelaria, todos têm pessoas racializadas negras,
mas, elas não aparecem, muitas vezes, nas abordagens políticas, nem através do discurso sindicado e muito
menos no discurso político, porque praticamente não existem.
Justiça11
Em matéria de justiça o orador traz à colação as condenações na justiça por atos de racismo e discriminação,
o sentimento de impunidade face à segurança e à justiça, assim como o acesso à justiça daqueles que são
discriminados.
Neste sentido diz Mamadu Bá, “A segunda área é a da justiça, que não foi aqui aflorada, que é a mais
importante do ponto de vista da solidez democrática do regime. Nos últimos tempos, temos visto vários casos
11 A audição decorreu antes da sentença do caso dos policias da esquadra de Alfragide.
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de violência policial, mas não só, de pessoas que desempenham funções, supostamente, de segurança e que
abusam desta prerrogativa para exercer violência sobre corpos negros e nada acontece relativamente a isto.
Até agora, todos os casos ou foram arquivados ou as pessoas foram condenadas a penas suspensas. Há aqui
um problema sério na justiça, que continua, claramente, inoperante, independentemente dos trâmites que vão
sendo feitos. O certo é que, até agora, não temos tido um único caso de condenação efetiva em pena de prisão
por abuso de violência policial. Não existiu um único, nos últimos tempos. Isto tem de nos interpelar, tem de
interpelar os legisladores que são vocês. Ou algo vai mal no próprio dispositivo legal ou algo vai mal na tradição
da aplicação da própria lei. Se essas duas coisas se combinam, o Estado é que está a falhar, e é preciso olhar
para isto”.
Quanto ao acesso à justiça e referindo o inquérito da FRA sobre discriminação de pessoas de origem africana
subsariana refere, “E isto não tem a ver apenas com a questão da violência, também tem a ver com a condição
em que se encontram os sujeitos racializados no acesso à justiça, porque a justiça é cara. É por isso que, depois,
irei responder à Catarina, relativamente ao estudo da FRA, que me parece uma fraude — com todo o respeito
que tenho para com a FRA — no sentido em que está completamente em dessintonia com a própria evolução
dos dados que temos na Comissão para a Igualdade: a natureza das queixas, o seu volume e a própria perceção
das pessoas que são vítimas e das pessoas que processam essas queixas. Há aqui uma discrepância que não
se percebe. A FRA consegue dizer que os negros têm menos perceção da discriminação quando, na verdade,
todos os casos que têm aparecido no espaço público dizem o contrário, inclusive, os casos que estão, neste
momento, em tramitação judicial também dizem o contrário. Portanto, há aqui algo que não vai bem
relativamente a este estudo”.
Ainda no âmbito da justiça o orador opina sobre a nova legislação da CICDR e fala da necessidade, na sua
perspetiva, de se criminalizar o racismo e de o tornar um crime público.
“Sobre a questão da lei, sou de opinião que não valeu grande coisa. Não porque a sua arquitetura, de per si,
seja ineficaz, mas acho que a filosofia que está por detrás da lei é que não serve. Enquanto continuarmos a
pensar que podemos combater o racismo apenas através de medidas contraordenacionais, o que estamos a
fazer são duas coisas. Primeiro, não estamos a criar uma cultura de persuasão contra a prática do racismo”.
“Segundo, estamos a criar um sentimento de injustiça nas vítimas do racismo, e dou-vos um exemplo: esta
lei deu, efetivamente, mote a que haja um aumento significativo de queixas, mas o instrumento que temos para
tratar desta lei é absolutamente inoperante. Eu faço parte da Comissão Permanente para a Igualdade, como
sabem. Esta Comissão, até agora, só diligenciou quatro casos e a lei é de 2017 e nesses quatro casos, por
exemplo, temos um em que o visado recorreu da nossa sentença (…) “
“O que quero dizer com isto é que não só a lei é, só por si, do ponto de vista instrumental, ineficaz nesse
aspeto, mas também porque não está acoplada com uma outra dimensão, que até resulta de algumas
recomendações internacionais, nomeadamente, da própria ECRE (European Council on Refugees and Exiles),
que diz que, tendencialmente, temos de criminalizar práticas racistas. (…) Ou seja, temos de fazer uma de duas
coisas, na minha opinião: ou alteramos o Código Penal no seu artigo 250.º, por forma a tipificar, com maior
clareza, os crimes que estão previstos – eventualmente desdobrá-lo e com maior clareza fazer uma tipificação
desses crimes -, ou, então, decidimos fazer uma coisa mais ousada, que é criar um dispositivo jurídico que vá
no sentido de criminalizar, de facto, práticas racistas”.
“Sei que é um debate difícil na sociedade portuguesa, mas é preciso alguma ousadia para o fazer. Pelo
menos, há uma coisa que o legislador podia fazer, que é a seguinte: tal e qual como faz na questão da violência
doméstica — e bem —, transformar o racismo num crime público, o que teria duas vantagens. Do ponto de vista
de acesso à justiça, facilitaria muito a vida às vítimas que não têm dispositivos financeiros para recorrer à justiça,
mas também tornaria mais fácil, do ponto de vista geral, que entidades públicas, e não só, pudessem atuar em
caso de existência da prática de crimes racistas”.
Educação
Na educação, o dirigente do SOS Racismo debruça-se fundamentalmente sobre conteúdos curriculares,
manuais escolares e educação para a cidadania, que considera não terem em conta visões alternativas à visão
dominante da história. Quanto à educação para a cidadania defende que as questões raciais deviam ser mais
aprofundadas.
Mamadu Bá refere, sobre os conteúdos curriculares e os manuais escolares, o seguinte: “Nos últimos tempos,
temos vindo a assistir a vários celeumas relativamente aos conteúdos curriculares — notámos claramente uma
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ditadura das editoras relativamente aos conteúdos curriculares — e há uma absoluta inoperância da tutela na
definição do que são os conteúdos curriculares, nomeadamente nas matérias relativas à história, à antropologia,
à sociologia e a outras”.
“Já nos anos 90, houve um início de uma certa alteração deste paradigma, através do Entreculturas e outras
entidades, nomeadamente, com a feitura de fichas alternativas apensas a conteúdos curriculares, que pudessem
ser, elas próprias, uma outra forma de se dispensar a educação antirracista na escola. Posso entender o
argumento que tenho vindo a ouvir nos últimos tempos relativamente à autonomia da feitura dos conteúdos,
mas parece-me que, se o Estado se desresponsabiliza relativamente aos conteúdos curriculares que possam
formar os cidadãos de amanhã, o que está a fazer é a criar um espaço para que outro tipo de narrativa se
enquiste na sociedade. Parece-me que esta é uma das áreas-charneira que tem sido completamente
abandonada, ou, mais ou menos feita aos bocados”.
Quanto à Educação para a Cidadania diz, “Por exemplo, a Educação para a Cidadania não devia ser só
sobre a questão do género, devia ser também sobre a questão racial, e não foi, e ainda não o é, o que mostra
também que o próprio Estado não atribui uma centralidade política à questão racial”.
Há, ainda, uma referência à inexistência de representantes de minorias étnico-raciais no CES - Conselho
Económico e Social. “(…) Há um ano deparei-me com um despacho do Conselho Económico e Social (CES) e
fiquei espantadíssimo (…), e que tem a ver com a tal Comissão Especializada Permanente de Política
Económica e Social, em que está tudo representado, menos a questão racial. Tudo, até os pássaros ali do lado…
está tudo representado. A questão racial está completamente ausente. Num Estado em que há um organismo,
que é o CES, que fala sobre a política permanente, económica e social, em que não há uma vírgula sobre a
questão racial, mostra a falta de interesse que o Estado tem relativamente a esta questão (…)”.
Termina a sua exposição com uma referência à Década Internacional dos Afrodescendentes proclamada
pelas Nações Unidas (2015-2025) “Vou acabar com uma nota de desagrado, que tem a ver com a falta de
empenho do Estado Português relativamente à Década Internacional de Afrodescendentes. Esta Década vai,
agora, acho, no seu quarto ano, e até agora não houve uma única iniciativa do Estado”.
André Costa Jorge, Serviços Jesuítas aos Refugiados (JRS)
A perspetiva do André Costa Jorge prende-se fundamentalmente com questões de discriminação que afetam
os imigrantes e que se cruzam com o tema do racismo, xenofobia e discriminação étnico-racial em Portugal.
Começa por dizer: “O JRS (Jesuit Refugee Service) Portugal, na sua ação, no terreno, desde o início, ou
seja, desde 1992, aquilo que tem feito é, sobretudo, um trabalho de acompanhamento a migrantes — não só
africanos, mas sobretudo africanos. Nos últimos anos, a maioria das pessoas que acompanhamos são de origem
africana, concretamente dos PALOP, e aquilo que temos feito é trabalhar em áreas de apoio social, de apoio
jurídico, formação e apoio à saúde, recorrendo a um conjunto de técnicos e especialistas nestas áreas”.
Diz, sobre a procura do Serviço de Jesuítas aos Refugiados: “De uma maneira geral, em 2018, atendemos,
no nosso centro de atendimento, cerca de 1859 pessoas. Um dado importante é que, cerca de 61%, 1134 dessas
pessoas que atendemos em 2018 vieram pela primeira vez, portanto são newcomers, primeiras chegadas a
Portugal, o que para nós é um dado importante porque estas pessoas estão numa situação particularmente mais
vulnerável, sobretudo do ponto de vista documental. A maioria destas pessoas é de países lusófonos, sobretudo
Guiné-Bissau, São Tomé e também Angola”.
André Costa Jorge destaca dois problemas centrais entre os imigrantes que acolhem: Emprego/Desemprego
e Legalização/Documentação:
“A procura de emprego e a situação de desemprego em que se encontram estas pessoas é um dos aspetos
muito relevantes, uma vez que 71% destas pessoas estão à procura de emprego, o que, de alguma forma,
contraria ideias ou preconceitos sobre a inércia dos migrantes ou que procuram viver à conta de qualquer tipo
de apoio público. Metade destas pessoas, 50%, estão em situação documental irregular, mas, curiosamente, só
20% das pessoas nos procuram por esta razão”.
“Isto é, a primeira preocupação destas pessoas é, sobretudo, encontrar meios de subsistência, entrar no
mercado de trabalho e muitas vezes não têm imediatamente a perceção de que nós podemos também,
sobretudo, dar apoio à sua regularização”.
Tal como Catarina Reis Oliveira, André Costa Jorge, reforça a ideia de que os imigrantes vêm para trabalhar
e não para recorrer a ajudas do Estado Português, sendo a procurar de emprego o seu principal objetivo, posto
à frente da regularização documental.
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Em matéria de discriminação diz o orador “podemos afirmar, de forma fundamentada, que o nosso sistema
jurídico-constitucional proíbe o Estado e os cidadãos de discriminar qualquer cidadão, com ou sem residência
em Portugal, considerando-se sempre discriminatória a diferença de tratamento com base na raça, etnia ou
nacionalidade. No entanto, vemos constantemente, em várias dimensões da nossa realidade, que isto não
sucede desta maneira”.
Saúde
André Costa Jorge debruçasse sobre as dificuldades de acesso à saúde por parte dos imigrantes.
“Atualmente, por exemplo, do ponto de vista legal, os cidadãos, independentemente da sua raça, pertença,
etnia ou nacionalidade, e mesmo independentemente da sua situação documental — como falámos há pouco
— têm o mesmo direito à saúde e à educação. Contudo, ainda há direitos fundamentais cujo acesso é
discriminatório e, mesmo em relação à saúde e à educação, podem existir falhas que devemos suprir”.
“No âmbito da saúde, por exemplo, detetamos uma dificuldade burocrática, sistemática, na inscrição dos
migrantes nos centros de saúde. Isto deve-se, muitas vezes, a obstáculos criados por ação dos funcionários dos
Centros de Saúde. Aquilo que propomos é que não nos cansemos de fazer ações de formação e sensibilização
aos, às vezes, tiranos do balcão, porque legislam, muitas vezes, de modo próprio. Também vimos migrantes
sem a sua situação documental regularizada, ou, indocumentados, que não têm direito a taxas moderadoras.
Sugerimos, por exemplo, que se façam as alterações necessárias à lei, ou, que se adote uma nova circular da
saúde que dê uma interpretação mais lata às regras de acesso a taxas moderadoras. Por exemplo, em 2018, a
maior parte da população assistida pelo JRS foi, sobretudo, cidadãos oriundos da Guiné-Bissau e de São Tomé
e Príncipe em idade ativa e de sexo feminino, população que tem forte incidência e necessidades de cuidados
médicos”.
Trabalho/Emprego
Mais uma vez, na área do emprego surgem matérias que devem ser consideradas na situação dos
imigrantes, uma vez que a sua situação documental cria barreiras no acesso ao emprego, mas também promove
a precariedade e a discriminação.
“Na área do emprego, por exemplo, uma das maiores barreiras à integração dos migrantes prende-se com a
sua situação documental. Embora se permita que os migrantes se regularizem através da celebração de
contratos de trabalho, não se permite que as entidades empregadoras contratem migrantes sem a sua situação
documental regularizada. Aquilo que sugerimos, por exemplo, é que se faça uma alteração ao Código do
Trabalho que afaste a aplicação de uma coima nos casos em que se demonstre que os direitos dos
trabalhadores são respeitados - salário, horário de trabalho e férias -; que exista contrato de trabalho; que são
feitos os descontos para a segurança social; e, que exista um processo de regularização pendente. Caso
contrário, andamos aqui numa situação em que o mais vulnerável, o mais frágil é sempre o migrante, e os
empregadores que não querem arriscar, não os contratam, naturalmente”.
Legalização
Outras áreas são abordadas por André Costa Jorge de forma muito específica na área da imigração e que
acarretam situações de discriminação de pessoas, maioritariamente, dos PALOP, designadamente na área da
Administração Interna, onde o SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) acusa falta de recursos. Diz o orador:
“Uma situação que me parece preocupante é esta: o investimento que o Estado vai fazer na contratação para o
SEF de funcionários no contexto do Brexit, poderia também ter sido feito em relação aos migrantes.
Perguntamos, porque é que isto não aconteceu também no caso dos migrantes, cujas situações de
irregularidade, de centenas de pessoas — para não dizer milhares, não temos os números —, se avolumaram.
A informação que nos chega é a de que vai ser feito este esforço, que é importante, atendendo à sua
necessidade — provavelmente, acontecerá no futuro — de resolver a situação dos cidadãos britânicos, mas,
também podia ter acontecido com os cidadãos dos PALOP”.
André Costa Jorge, no final da audição, dá a sua opinião sobre a integração da área das minorias étnico-
raciais no ACM. “Estou perfeitamente de acordo com a ideia de que todo o Alto Comissariado para as Migrações
(ACM) devia ser muito mais independente do poder político do que é, mas, quando quisermos separar a
Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR) e criar uma outra estrutura, também
devemos pensar. O próprio Programa Escolhas foi integrado no ACM – e este projeto não aborda apenas as
questões dos jovens e dos bairros com migrantes -, o próprio Secretariado do Entreculturas foi integrado no
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ACM – e a interculturalidade não é só para os migrantes -, e, ao mesmo tempo, fez-se um afunilamento e criou-
se o ACM só para as migrações, mas, não se mexeu nos conteúdos do ACM. Portanto, vale a pena pensar não
só na CICDR, mas em tudo o resto, ou seja, nas próprias comunidades ciganas e outras questões transversais
que ultrapassam as migrações, (…) sendo que em relação às questões das migrações, ao mesmo tempo, e,
curiosamente, durante anos, anos e anos, o Alto Comissariado para as Migrações nunca tratou das questões
dos refugiados e da sua integração e inclusão, o que é uma coisa curiosa. Este foi sempre um assunto do SEF.
Vale a pena repensar tudo isto. Vamos pegar numa ponta e, a minha sugestão é, vamos pensar em tudo isto”.
Cristina Roldão, Investigadora do CIES-IUL
A Cristina Roldão inicia a sua intervenção com uma referência à falta de dados e à dificuldade no tratamento
do tema do racismo e da discriminação separado do tema da imigração. “Penso que já foram apresentados
alguns dados, e dados estatísticos não são difíceis de encontrar, se quisermos. Claro que dados sobre a
pertença étnico-racial e que se relacionem com desigualdades étnico-raciais, isso sim, é muito difícil. A própria
forma como temos vindo a desenvolver esta discussão mostra a dificuldade que temos em separar as questões
das migrações das desigualdades étnico-raciais e do racismo na sociedade portuguesa. Esse é, realmente, um
dos grandes desafios na própria conceção de políticas e no próprio olhar sobre os sujeitos racializados”.
Cristina Roldão refere 5 desafios/problemas que temos que enfrentar:
Distinção entre políticas de imigração e políticas de combate ao racismo
Diz Cristina Roldão a propósito deste desafio “Invocando aqui a minha posição enquanto mulher negra, estar
sistematicamente a ouvir questões que me dizem respeito, como questões sobre imigração (…) faz-me sentir
que estou sempre a ficar fora deste debate. Portanto, acho que esse é um dos grandes desafios. Só que isso
significa realmente uma transformação, quer na forma como nós concetualizamos as questões raciais, quer na
forma como se faz política sobre as questões raciais em Portugal, que é deixar de fingir que não se vê cores —
nós não vemos cores, em termos políticos — e passar a ter uma política muito mais ativa e de reconhecimento
de que estas desigualdades existem. Gostaríamos que não fosse assim, gostaríamos que fossemos
considerados todos humanos, mas não somos — ainda! Precisamos de enfrentar isso. Penso que esse é um
dos grandes desafios, quer do ponto de vista da forma como concetualizamos as desigualdades na sociedade
portuguesa, quer do ponto de vista da formulação de políticas. Temos de fazer uma distinção clara e efetiva
entre políticas de imigração e políticas de combate ao racismo.
Distinção entre combate ao racismo e combate à pobreza
A propósito da necessidade de se distinguir entre, combate ao racismo, e combate à pobreza e a regulação
das relações entre capital e trabalho, refere, “Por outro lado, outra grande dificuldade tem sido conseguir
distinguir o debate sobre o combate ao racismo e as políticas de combate à pobreza – ou, as políticas de
regulação das relações entre capital e trabalho. Muito sinteticamente, as questões de classe, que é outra forma
de este debate ir sendo sempre absorvido por outros, e perde, como dizia o Mamadu Bá, centralidade política,
que é também uma centralidade nas próprias pesquisas e na nossa própria Academia, como muitos de nós
reconhecemos, aqui”.
Reconhecimento histórico
A oradora invoca a necessidade de reconhecimento histórico do racismo: “Por outro lado, implica também —
e isto tudo obriga-nos a olhar de frente e a chamar as coisas pelos nomes — o reconhecimento de que o racismo
não é o medo do desconhecido, de não nos conhecermos uns aos outros. Há um passado colonial, escravocrata,
e Portugal tem a responsabilidade histórica acrescida de ter que lidar com isso quer queira, quer não, tem de
viver com isso. Esse é outro cadáver dentro do armário, que é preciso tirar cá para fora”.
Discriminação racial e intencionalidade
Este é outro aspeto que Cristina Roldão defende que deve ser encarado e que se cruza com o sentimento
de impunidade e com a intencionalidade da discriminação racial na sociedade portuguesa. Diz Cristina Roldão:
“Outro aspeto que me parece de enorme relevância neste debate tem a ver com as questões da discriminação
racial e a da intencionalidade — as pessoas que querem, intencionalmente, discriminar alguém. Vamos sendo
capazes de olhar para isso e por isso é que temos um registo de queixas na Comissão para a Igualdade e Contra
a Discriminação Racial, mas que tem muitas debilidades, porque não só as queixas são poucas, como, também,
são poucas as queixas que depois resultam em sanções. Isso, em si, é revelador da confiança que as pessoas
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têm nas instituições, da capacidade das instituições, realmente, darem resposta a estes problemas. Só que,
claro, como é que eu vou, por exemplo, fazer queixa por viver num contexto segregado? Por viver no Bairro do
Pendão ou por viver na Quinta do Mocho? Isto é segregação étnico-racial!”
Integrando a questão da discriminação estrutural na sua intervenção, refere: “Esse é um aspeto importante,
conseguirmos não só ter políticas que dão conta desta dimensão mais intencional e mais interpessoal, em que
consigo reconhecer imediatamente uma situação em que, intencionalmente, há o desejo de discriminar, mas,
também, ter políticas que conseguem dar conta daquilo a que nós podemos chamar, e a que muitos têm
chamado «racismo estrutural institucional». Nós fizemos isso muito bem para o combate às desigualdades de
género. Não ocorre a ninguém pensar que as desigualdades que existem entre mulheres e homens resultam da
intencionalidade de homens muito maus querem discriminar mulheres. Uma parte, claro que é, mas não é só.
Nós precisamos de introduzir o mesmo tipo de políticas que conseguimos para as questões de género, nas
questões do combate ao racismo. É um reconhecimento de que o racismo não é só individual, ele é estrutural e
interfere no funcionamento das nossas instituições”.
Educação como fator de discriminação
Cristina Roldão refere a organização da rede escolar como um fator de discriminação, não intencional, mas,
que se prende com a própria organização territorial dos bairros de realojamento que levam a uma segregação
indireta das crianças.
Diz Cristina Roldão, “Por outro lado, e falando, por exemplo, das questões da escola, que são aquelas onde
realmente tenho mais trabalho, sabemos que existe — só falando da Área Metropolitana de Lisboa — processos
fortes de segregação racial. A população negra vive na periferia, em bairros de realojamento. A política do PER
(Programa Especial de Realojamento) teve um impacto muito grande nisto (…). A política do PER tem um
profundo impacto na rede escolar. Há escolas que vão surgir para servir especialmente estes territórios. As
famílias brancas de classe média vão retirar os seus filhos desses contextos, não vão ficar lá e, portanto, ainda
mais guetizadas ficam estas escolas. Os professores com maior experiência não vão procurar tanto estas
escolas e cria-se aqui um efeito em cadeia de segregação e de exclusão, que é muito difícil podermos achar
que com um registo de queixas combatemos algo deste género”.
Outro aspeto do sistema de ensino que a investigadora considera ser um fator de exclusão, são os cursos
profissionais, dizendo que, “Por outro lado, também em 2004, começou uma política de incentivo aos cursos
profissionais e de alargamento das vias profissionalizantes ou não regulares no sistema educativo. Elas já
existiam nas escolas privadas, e algumas vias, também nas escolas públicas, mas a partir de 2004, realmente,
dá-se um alargamento. Dos poucos dados que temos — claro, não temos dados sobre a pertença étnico-racial
—, aquilo que sabemos é que quer estudantes negros, quer estudantes ciganos estão a ser fortemente
encaminhados para essas áreas. É claro que existem casos em que psicólogos e professores com pensamentos
discriminatórios encaminham estes alunos para essas vias, mas, é muito mais complexo do que isso. As escolas
que servem estes contextos, que já são segregados de si, fazem uma aposta muito grande nestas vias. Há
escolas, que quase não têm vias regulares que dão acesso ao ensino superior. Portanto, todo o horizonte de
expetativas e a possibilidade de estas crianças frequentarem a escola é por estas vias não regulares. Claro que
existe gente muito bem-intencionada nestas vias, a fazer projetos interessantes, a querer efetivamente
transformar a educação, mas nós sabemos que ela ainda é, infelizmente, uma educação de segunda”.
A oradora acrescenta dados: “Por exemplo, de acordo com dados de 2013/2014, 80% dos alunos de
nacionalidade dos PALOP que chegaram ao ensino secundário — ou seja, quase a sua totalidade — estavam
em vias profissionais, e dos 20% que foram para as vias regulares, metade reprovou ao longo do ensino
secundário. Portanto, estamos a ver as dificuldades que temos a este nível.
Num estudo em que estive envolvida — aí já com dados que não eram de nacionalidade, depois podemos
discutir estas questões metodológicas —, aquilo que vimos foi que, entre os estudantes afrodescendentes em
idade esperada de ingresso no ensino superior, 16% tinham entrado, enquanto para os de origem portuguesa
era o dobro”.
Quanto à escola democrática e à interculturalidade enquanto conteúdo da Educação para a Cidadania,
Cristina Roldão, refere, “Precisamos de pensar o que é a educação intercultural em Portugal, se ela é um neo-
luso-tropicalismo. Recentemente, numa escola de Matosinhos, as crianças mascararam-se, supostamente, de
africanos e o argumento era: «esta é uma oportunidade para as crianças terem contacto com outras culturas».
Esta é uma conceção de interculturalidade que precisa, urgentemente, de mudar (…). Este caso, por acaso,
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veio para os jornais e permite-nos estar aqui a discuti-lo, mas existem n casos destes. Isto não pode acontecer!
O Ministério da Educação sabe que isto acontece, sabe que existem escolas profundamente segregadas, sabe
que existem turmas só de alunos ciganos, por exemplo, ou boa parte constituída por negros. Que ferramenta é
que temos de combate a este tipo de segregação?”
“Isto para não falar da representatividade. Onde é que estão os professores negros? A nossa conceção de
escola democrática inclui uma aposta ativa na representatividade da diversidade da sociedade portuguesa ou
estamos à espera de que ela chegue automaticamente? Nunca vai chegar!”
Na sua intervenção, Cristina Roldão aborda ainda temas como a política linguística e os patrimónios culturais
dos alunos, dando como exemplo o crioulo de Cabo-Verde e o seu ensino na escola pública e aborda a
necessidade de políticas de redistribuição, nomeadamente, a introdução de um sistema de quotas, e a
necessidade de políticas de representação e reconhecimento.
Faz ainda referência à recolha de dados étnico-raciais: 12 “A recolha de dados étnico-raciais nos censos…
Temos, neste momento, um grupo de trabalho, do qual eu e outras pessoas que estão nesta mesa fazemos
parte, em que se procura pensar como é que se pode introduzir essa pergunta nos censos. Mas esse não é um
debate fácil, na sociedade portuguesa. Do ponto de vista da política, parece-me que não se pode criar um grupo
de trabalho que vai fazer isto e depois esperar que produza algum efeito. É preciso criar um debate na sociedade
portuguesa, enquanto isto está a decorrer, antes mesmo de o Conselho Superior de Estatística se pronunciar.
Temos uma responsabilidade”. Acrescenta que, “Precisamos de uma estrutura independente e autónoma da
pasta das migrações e do combate à pobreza, que se debruce especificamente sobre a questão do racismo e
das desigualdades étnico-raciais na sociedade portuguesa, e que seja liderado por pessoas e por representantes
das comunidades que sofrem mais discriminação em Portugal”.
Miguel Vale de Almeida, Professor do ISCTE-IUL
Miguel Vale de Almeida inicia a sua intervenção dizendo “ Da mesma forma que a Cristina, num determinado
momento, falou a partir da sua experiência e da sua existência como mulher negra, eu posso falar a partir da
minha perspetiva, que devo ter — sou obrigado a ter —, de, ia dizer, homem branco mas, na realidade, devia
dizer homem não racializado. Porque, de facto, a minha “branquitude”, pura e simplesmente, não existe
enquanto tal, não existe enquanto racialização. Ela existe enquanto neutralidade e ausência de racialização e
isso não é simétrico com a experiência das pessoas negras, em Portugal. Mas obriga-me, e acho que obriga
todas as pessoas que são identificadas como pertencentes à representação neutra e generalizada do que é um
português — e que é essa representação não racializada — e que têm algum nível de consciência política e
crítica sobre as coisas, a pensar, e eu detesto esta expressão, «nós também» sobre isto, não apenas de forma
reativa, mas de forma propositiva”.
“O que é que quero dizer com isto? Que comunidade, que cidadania é que nós imaginamos para nós, todos
e todas, no futuro?”
Racismo e Imigração
Partindo desta questão macro, Miguel Vale de Almeida refere a separação das questões do racismo e da
discriminação étnico racial da imigração dizendo, “A primeira premissa que precisa de ser esclarecida já foi aqui
repetida várias vezes e tem a ver com a necessidade de nós, conceptualmente, distinguirmos migração de
racismo e distinguirmos as questões que afetam as populações migrantes — e que são questões absolutamente
importantes, nenhum de nós está a diminuir isso — mas que, conceptualmente, separam, embora às vezes se
sobreponham, mas nem sempre, das questões que têm a ver com o racismo na sociedade portuguesa, com a
existência de afrodescendência em Portugal e com o facto de a tal comunidade que imaginamos dever ser
imaginada como uma comunidade que é também afrodescendente”.
“Essa é a primeira questão, ou seja, separar esses conceitos e essas categorias. Concordo com muitos dos
meus colegas no sentido em que isso só se faz de forma performativa, isto é, se efetivamente dissermos as
coisas de forma separada e criarmos instituições e programas políticos de forma separada, mesmo
reconhecendo a sua sobreposição em algumas circunstâncias”.
12 A audição foi anterior à decisão do Conselho Superior de Estatística de não incluir a pergunta sobre dados étnico-raciais nos Censos de 2021.
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História e memória
O Professor aborda outro aspeto que diz central que se prende com a história e a memória, através do
processo educativo “no seu sentido mais lato”, referindo duas vertentes:
“Uma, que está mais do que estudada, nomeadamente pelas pessoas presentes, tem a ver com os manuais
de História e de ensino, em geral — não é só na História — e que precisam ser abordados de forma crítica,
provavelmente sob a forma de recomendações, feitas por uma autoridade que tenha não a capacidade de impor,
legalmente, as mudanças, mas a capacidade de as recomendar, com autoridade moral. Isso seria qualquer
coisa indigitada pelos órgãos de soberania, como é evidente, desde logo pelo Parlamento ou pelo próprio
Governo, em que, efetivamente, haja um livro branco ou uma comissão que faz as recomendações que, em
grande medida, já estão coligidas em trabalhos de muitos colegas — nomeadamente a Marta, aqui presente —
mas que transforme isso numa recomendação sobre como lidar com a nossa História de uma forma mais crítica,
mais plural e que assuma os legados que temos”.
A outra vertente prende-se com, “também a nível da educação, no seu sentido mais geral, tentarmos
ultrapassar um nível basicamente humanista da forma como combatemos o racismo, que é a formação,
nomeadamente aquela que é dirigida às crianças, que tem muito a ver com a crítica da noção de raça, com a
definição da humanidade comum, de todos, com a crítica do racismo interpessoal e com a demonstração de
pluriculturalidade e interculturalidade, entre outros”.
“Temos de ir um pouco mais longe na definição do que é o racismo estrutural e o racismo institucional, como
é que eles se reproduzem e como é que a alteração nessas situações pode, então, ela, sim, levar ao princípio
do fim dos racismos interpessoais. Porque estamos, sistematicamente, a começar pelo fim e não pelo princípio,
e isso parece-me ser um erro que, aliás, acontece em muitos países, mas não tão mal como entre nós”.
Ação positiva
Outro aspeto referido por Miguel Vale de Almeida é a necessidade de ação positiva no âmbito do racismo e
da discriminação étnico-racial. Diz o orador: “Além da questão fulcral da história e da memória, e da educação
não só escolar, mas também da formação antirracista que vá mais fundo no plano estrutural e institucional,
temos a questão da ação afirmativa ou da igualdade de oportunidades, que é uma expressão que sempre se
usou mais em Portugal, e que, pura e simplesmente, não existe ao nível das questões do racismo. Isso é uma
grave falha da democracia portuguesa. Há muitas razões que explicam essa falha, a negação em que, a seguir
ao 25 de Abril, ficámos em relação a estas questões — isto era toda uma outra conversa —, mas, efetivamente,
a ação afirmativa no plano da habitação, do emprego, da educação, da política, entre outros, são questões que
têm de ser discutidas rapidamente, e há dois planos em que isso pode, desde logo, ser feito”.
Refere o primeiro plano em que o tema deve ser discutido: “Um deles, que é começo, o conhecimento da
realidade, tem a ver com esta discussão em torno dos censos e das categorias étnico-raciais. (…) Através de
um processo de reflexão e, sobretudo, contactando as pessoas que têm verdadeiro interesse na questão, que
são as pessoas racializadas, acabei por mudar a minha opinião e creio que uma das primeiras políticas
experimentais de ação afirmativa que poderemos fazer a seguir à inclusão das categoriais étnico-raciais nos
censos, podia ser, justamente, tal como no Brasil, a introdução de quotas no acesso universitário. Os sistemas
de acesso são diferentes, mas é uma instituição, a universidade, onde é possível tentar isto de uma forma menos
problemática ou criadora de menos resistências sociais imediatas e, sobretudo, usando o critério que no Brasil
foi utilizado, que é a justaposição entre critérios socioeconómicos — chamemos-lhe de classe — e critérios de
racialização, sob a forma de autoidentificação”.
Agenda política
Miguel Vale de Almeida diz que há um terceiro nível de intervenção, que é a inclusão do racismo na Agenda
Política de uma forma transversal, “Um terceiro nível, portanto, além da memória e da história, além da ação
afirmativa, é, de facto, a inclusão de tudo isto na agenda política, que é um plano não só, passe o pleonasmo,
político e, nesse sentido, importante, mas também com uma importância simbólica muito grande para a
pedagogia social. Isto é daquelas coisas que, enfim, pode-se apenas recomendar, pedir, e implorar que alguns
partidos políticos incluam, com clareza, prioridade e destaque, nas suas agendas políticas — nomeadamente,
nos programas eleitorais, mas depois, também na sua ação política —, o reconhecimento da existência de um
problema de racismo, bem como o desejo dessa comunidade - imaginada como sendo, também,
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afrodescendente e cigana, obviamente, mas não era essa a categoria que estava aqui em discussão – em o
resolver. Isso é absolutamente fundamental”.
“Há estratégias que vão desde o meramente simbólico, como os dias especiais disto ou daquilo, como mudar
o discurso e o guião dos dias nacionais de celebração disto e daquilo, etc., até àquelas que são efetivamente
políticas, isto é, os partidos tomarem para si a responsabilidade de pensar políticas de ação afirmativa e políticas
de combate ao racismo distinção das politicas de migração e de racismo, e tudo aquilo que referi aqui, até
agora”.
Miguel Vale de Almeida termina a sua intervenção com uma reflexão no domínio da cultura dominante e das
representações deste tema em Portugal, cruzando a herança da ditadura no pensamento que temos sobre o
racismo e a realidade atual a que chama backlash do período das novas direitas na Europa.
“Aquilo que foi o discurso de uma experiência portuguesa única, que é a experiência do colonialismo moderno
e efetivo, isto é, da ocupação de territórios coloniais, do uso de trabalho forçado, da exploração de mão-de-obra,
de matérias-primas, etc., ter sido feita em situação de ditadura, que foi um caso único, e, ao ter sido feita em
situação de ditadura, ter sido capaz de criar um discurso hegemónico a que chamamos luso-tropicalismo, e que
ficou completamente inserido nas mentalidades portuguesas até hoje, e, a negação disso levou a uma espécie
de vazio que a democracia nunca soube substituir por outra coisa, justamente pela imaginação de uma
comunidade verdadeiramente democrática, sobretudo no plano étnico-racial (…) Então, ficámos com um vazio
completo. O luso-tropicalismo subsiste e, depois, quando chegamos à fase das reivindicações em torno do
racismo, como nos últimos anos se tornaram bastante mais fortes, elas estão a apanhar com o backlash do
período das novas direitas, dos novos reacionarismos e das acusações de correção política, entre outros.
Portanto, estamos num momento particularmente delicado, em que precisamos de contra-atacar essas formas
de backlash e de reação e, através de políticas concretas e, sobretudo, de afirmações concretas dessas
políticas, “reimaginar” que comunidade portuguesa é que nós queremos, e que essa comunidade deve ser,
necessariamente, uma que reconhece a existência do racismo e que está apostada em ultrapassá-lo”.
No final da audição, Miguel Vale de Almeida deixa a sua dúvida sobre a criminalização do racismo: “Por
princípio, e mesmo em relação a outras categoriais de discriminação, como quando se debateu a criminalização,
ou não, da homofobia e quando, no próprio Brasil, essa questão foi discutida, recentemente, tenho dúvidas de
fundo, de base, sobre a bondade da ideia e sobre o seu efeito para aquilo que desejamos. Possivelmente, serão
contraditórios os efeitos com aquilo que nós desejamos”.
“Portanto, reservar-me-ia, em termos de opinião, para um debate maior, mas com uma suspeita fundamental
em relação a processos de criminalização dos comportamentos e dos discursos, dado que é muito difícil
criminalizar aquilo que é verdadeiramente problemático, que são as questões estruturais e institucionais. Mas
creio que isso precisa de debate, portanto é a única coisa em que me isolaria, preventivamente”.
Marta Araújo, Investigadora do CES (Centro de Estudos Sociais) da Universidade de Coimbra
Marta Araújo centra a sua intervenção num estudo que coordenou entre 2008 e 2012, financiado pela FCT
(Fundação para a Ciência e a Tecnologia), com uma equipa multidisciplinar, que teve inúmeras publicações.
Desde 2012 que pesquisa sobre o tema. “Vou falar sobre a História em relação, sobretudo, às populações
afrodescendentes. Quero já deixar uma menção: quando fizemos este recorte em termos de pesquisa, a
comunidade cigana não foi alvo de ensino, na História. Aparecem menções no ensino primário, mas, quanto aos
manuais, por exemplo, do 3.º ciclo — que é quando a disciplina é autónoma e é mais desenvolvida —, não há
referências à população cigana portuguesa, portanto o recorte já vem daí”.
Refere que “O trabalho incidiu não apenas sobre os manuais de História — que eram os manuais de História
mais vendidos em Portugal, portanto não são particularmente problemáticos, são os que mais circulam —, além
disso fizemos também entrevistas e grupos de discussão, com uma ampla esfera de atores, na sociedade
portuguesa. Foram analisados debates internacionais sobre o ensino do colonialismo e também as iniciativas
públicas em Portugal, relativamente à questão da interculturalidade e do ensino da História”.
Avaliação dos manuais
Marta Araújo refere que as orientações curriculares e a certificação das entidades avaliadoras dos manuais
escolares são da responsabilidade do Ministério da Educação. “Gostava de salientar a importância dos manuais,
por um lado, porque são verdades sancionadas pelo Estado, na medida em que seguem as diretrizes
curriculares que são emitidas pelo Ministério da Educação, seguem a legislação em vigor, que determina a sua
avaliação e certificação (…) É de dizer que, quando fizemos o projeto, o Ministério da Educação não considerava
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problemáticas as narrativas que encontrámos e, portanto, há aqui um problema que gostava de trazer, sobre a
questão da avaliação dos manuais. São o recurso mais usado no contexto português em sala de aula, tem uma
importância bastante forte e vem representar o conhecimento legítimo pelo Estado e que é avaliado em termos
de exames”.
Conteúdos
Quanto aos conteúdos, diz a Investigadora, “Os grandes resultados, relativamente aos manuais em
circulação até 2014, são: a ideia do continente africano como um continente sem história até à chegada dos
europeus; a despolitização das descobertas e, sim, os manuais continuam a usar a palavra «descobertas» e há
uma abordagem “despolitizadora” do colonialismo, que foi reforçada pelas metas curriculares de 2013, que são
as novas metas curriculares; a visão do racismo como um preconceito daquela altura e que teria, eventualmente,
desaparecido, e, portanto, nunca é explicado como um sistema de opressão e dominação; o apagamento e/ou
a trivialização da resistência negra em relação ao colonialismo português — não há nenhum momento em que
seja elencado qualquer resistência da população escravizada; quanto aos movimentos nacionais de libertação
nacional, são reduzidos, geralmente, a movimentos relativamente violentos, sem uma agenda política concreta,
ao contrário do que se fez, por exemplo, em meados dos anos 70; os limites de uma abordagem positivista (…)
O que temos visto é, além de terem piorado as narrativas durante a década de 2000 a 2010 (…), por exemplo,
o mesmo manual e os mesmos autores, em 2003, falavam que «Foram levados, à força, homens e mulheres
para serem escravizados no continente africano» e em 2008, o «foram levados à força» desapareceu”.
Ainda no que se refere à análise dos conteúdos, na sua intervenção Marta Araújo refere que, “Por um lado,
estão ainda em circulação manuais que constroem e naturalizam a hierarquização de grupos humanos. Nesta
primeira citação, que se vê muito mal, pode ler-se: «A África, a sul do Cabo Bojador, era habitada por povos
negros organizados em reinos. A sua forma de viver era bastante primitiva: andavam seminus, adoravam as
forças da natureza e habitavam em palhotas.» A seguir, vem-se legitimar o colonialismo de África, mas não os
processos coloniais na Ásia, que seriam civilizações mais desenvolvidas”.
Abordagens
Quanto à abordagem do tema, Marta Araújo refere a sua complexidade, “Esta ideia de que podemos
simplesmente corrigir o pequeno estereótipo (…). Dantes chamavam-se «povos primitivos»; hoje em dia, há
outras maneiras de o fazer e também ainda se usa esta designação. Portanto, não é só uma questão de corrigir
pequenos estereótipos, também não é só uma questão de apresentar novas vozes, incluir outras vozes. Por
exemplo, um exercício muito comum é o de apresentar um excerto de um discurso de Amílcar Cabral para
contrapor Salazar, mas, pela maneira como a narrativa é enquadrada, as palavras de Amílcar Cabral são
entendidas como se o nosso colonialismo fosse apenas pouco eficiente, porque nós éramos analfabetos.
Portanto, é preciso repensar as narrativas-mestras da História, é preciso pensar sobre a identidade nacional
que queremos construir, em Portugal. Aqui, outra vez esta distinção entre falar de racismo, populações
racializadas versus imigração. São pessoas que fazem parte do corpo nacional e, portanto, estas narrativas
devem ser repensadas”.
Ainda no contexto das abordagens, refere: “Segundo, a despolitização das descobertas e da escravatura.
Cada vez mais se tem incentivado a compreensão da escravatura como um processo de formação de
sociedades multiculturais. Como eu disse, isto foi reforçado em 2013 pelas metas curriculares. Inclusivamente,
quadros que deveriam ser usados para explicar como se construiu o racismo e a hierarquização de grupos, são
usados para reforçar a tese da mestiçagem da população”.
“Por último, continuam a circular estas ideias sobre os movimentos de libertação nacional africana,
esvaziados de um projeto político e reduzidas à guerra de guerrilha. Também se nota que, normalmente, o
colonialismo português nunca era tido como violento, eles, sim, foram violentos contra nós — esta narrativa está
bem consagrada”.
Interculturalidade
No que diz respeito à abordagem intercultural do sistema de ensino, a investigadora dá a sua perspetiva:
“Nas últimas três décadas, iniciativas de educação intercultural pelo Estado — e a Cristina já mencionou isso —
têm convivido muito bem com este tipo de abordagens. Temos de ver o que é que pensamos quando fazemos
pequenos acrescentos ao currículo ou pequenas transformações fora do ensino formal. Este tipo de ensino da
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História e uma projeção de uma identidade nacional convivem muito bem com pôr negros a dançar em palhinhas,
no palco”.
“Noto também que a interculturalidade não é vivida na escola de uma maneira substantiva em termos de
ensino de outras línguas, de outras culturas, de um ensino religioso em condições, de facto, iguais para todas
as religiões no que se refere à História”.
Marta Araújo refere ainda um caderno de discussão que a sua equipa preparou e que está disponível online
para apoiar os professores no ensino da História, e diz, sobre a evolução dos últimos anos: “Tem havido
mudanças. De facto, na análise dos manuais de 2018, notam-se que leram os nossos trabalhos. Há questões
que estão a ser abordadas. Por exemplo, fazíamos menção, muitas vezes, de que os manuais dos anos 70
faziam menção ao pan-africanismo, ao movimento da negritude e a todos os projetos políticos de contestação
colonial. Essas questões voltaram a aparecer em alguns manuais, muito superficialmente. Portanto, têm sido
mudanças, na maior parte das vezes, cirúrgicas e muito desiguais entre manuais. Temos manuais que estão
completamente iguais ao que eram há mais de 10 anos e outros que mudaram”.
“Portanto, é preciso repensar qual a identidade que queremos construir, através da escola”.
b) – Audição a Especialistas sobre as comunidades ciganas
Olga Magano, Professora da Universidade Aberta
Habitação
Olga Magano inicia a sua intervenção com o tema da habitação e diz “Comecei, precisamente, por selecionar
a questão da habitação. Se já estiveram em Bragança (…) infelizmente, um dos grandes problemas que ainda
existe em relação a muitas famílias ciganas é o problema habitacional. Como sou professora da Universidade
Aberta, tenho a sorte de ter alguns mestrandos que têm feito trabalho sobre ciganos em vários territórios de
Portugal continental e, com a devida autorização desses meus alunos, trouxe algumas fotografias, porque acho
que as fotografias revelam muito melhor a realidade que ainda existe em Portugal (…), estudei precisamente
esses ciganos de Bragança — isto já foi há mais de 10 anos e eles continuam lá —, portanto também os conheço.
Mas estas fotografias são recentes e são de outros locais”.
Olga Magano relata situações de habitação precária em várias comunidades ciganas no país: Aveiro, Santa
Maria da Feira, Évora e Reguengos de Monsaraz.
Diz sobre Évora “Este, se calhar, é o mais grave de todos (…) É em Évora. Agora, em abril de 2019, temos
pessoas a viver nestas condições. Eram famílias que estavam num terreno. A autarquia construiu um parque
para caravanas e as famílias que estavam nesse terreno tiveram de sair. Entretanto, a GNR permitiu que
ficassem noutro terreno. Só que, mais uma vez, são pessoas que não têm dinheiro sequer para construir uma
barraca com caráter mais seguro. Neste caso concreto, não têm acesso a água, têm de ir buscar água, com um
balde, a uma estação de serviço, onde se lavam os carros. Claro que depois são perseguidos, porque não os
querem deixar ir buscar água. Isto para dar conta da situação que existe”.
“Isto serve para traduzir que, em termos de habitação, ainda há problemas graves por resolver”.
Faz ainda uma referência à situação da habitação na cidade do Porto e ao problema da sobrelotação nas
casas de habitação social com que se confrontou “Eu tive, recentemente, o prazer de participar na elaboração
do Plano Local para a Integração dos Ciganos, na cidade do Porto, um documento que ainda está sob reserva
porque a Câmara ainda está, neste momento, a fazer a própria candidatura para o Alto Comissariado para as
Migrações. Tive a possibilidade de andar, durante dois meses no terreno, na cidade do Porto, entre os principais
bairros onde moram mais ciganos e um dos problemas que é indicado — e neste caso, claro, já é uma situação
diferente, porque a maior parte das famílias está alojada, vive em casas municipais — é o da sobrelotação,
porque, neste momento, a Câmara não faz desdobramentos, não aceita entregar novas casas aos elementos
familiares”.
Outro aspeto muito importante ao qual a Professora da Universidade Aberta dá destaque são as dificuldades
e os impedimentos constantes que as pessoas da comunidade cigana encontram quando tentam arrendar casa.
“(…) Depois, temos casais jovens que, do ponto de vista financeiro, até têm possibilidade de arrendar uma casa
no mercado de arrendamento particular, mas debatem-se — e aqui a questão é racismo — com a dificuldade
de os senhorios ou os proprietários não arrendarem as casas a pessoas ciganas. Muitas vezes, quando
conseguem, é através de intermediários, é através de alguém que não é cigano e que faz, no fundo, a mediação.
Depois, muitas vezes, quando descobrem que a família é cigana, o contrato não é renovado e têm que sair”.
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Educação
Olga Magano traz também para a audição a questão da escolarização dos ciganos e o problema do
analfabetismo dentro destas comunidades “Apesar de, desde o 25 de Abril de 1974, a situação se ter alterado
imenso em termos de políticas educativas, o facto é que o número relativo à conclusão da escolaridade das
pessoas ciganas continua a ser muito reduzido. Há taxas de analfabetismo, sobretudo das pessoas mais velhas,
há abandono escolar precoce, há a não conclusão do ensino obrigatório, que é ainda mais dramático no caso
das raparigas, cuja situação se agravou desde 2009 com a alteração do número de anos de escolaridade
mínima, para os 12 anos. Ou seja, o hiato é ainda maior. Por um lado, fazem mais escolaridade, mas, por outro,
continuam a ter dificuldade em a concluir”.
“Trago alguns dados do Estudo Nacional sobre as Comunidades Ciganas, que realizámos em 2014 — um
estudo feito pela Manuela Mendes, por mim e pelo Pedro Candeias, entre outros, mas nós é que coordenámos
o estudo —, e, através do inquérito, por questionário, a 1599 inquiridos, no que se refere à escolaridade,
apurámos o seguinte: 27,1% não sabem ler nem escrever, ou seja, somando estas variáveis, 52% dos inquiridos
não tinham completado ou frequentado o 1.º ciclo do ensino básico. Portanto, estão a ver, mais de 50% não
tinha sequer os primeiros quatro anos de escolaridade”.
Há também referência ao inquérito aplicado pela Direção-Geral de Educação (DGE), que, “No ano passado
(…) lançou uma informação resultante do inquérito que aplicou às escolas públicas relativo ao ano letivo de
2016-2017 e, não entrando muito em pormenor em termos de metodologia, porque, obviamente, esta informação
diz respeito aos diretores de escola que responderam — não é um recenseamento, mas é muito significativo —
, vamos percebendo que, conforme vai aumentando o nível de escolaridade, vai diminuindo o número de
estudantes. Ou seja, se, por exemplo, no 1.º ciclo, tínhamos inscritos naquele ano letivo 5879 alunos, no
secundário tínhamos 256 alunos. É uma diferença gigantesca, não é?”
Ainda no âmbito da educação, Olga Magano fala-nos de um trabalho mais específico que desenvolveu
conjuntamente com Manuela Mendes em vários Bairros da Área Metropolitana de Lisboa e do Porto entre 2013
e 2015. “No caso do Porto, fizemos no Bairro da Biquinha, em Matosinhos, no Bairro do Cerco, em Campanhã,
e no Bairro do Lagarteiro, também em Campanhã. Na Área Metropolitana de Lisboa, fizemos no Bairro da Quinta
da Fonte, no Bairro 2 de Maio e no Bairro Casal do Silva. Também fizemos etnografia em alguns agrupamentos
de escolas, utilizando uma metodologia combinada em que ouvimos técnicos e também pessoas ciganas
residentes nestes territórios”.
Refere sobre os dados recolhidos “Não sei se conseguem ver a imagem, mas acho que dá para perceber
que os 22% correspondem a «Não sabe ler nem escrever» e que os 25% correspondem a «Tem o 1.º ciclo
incompleto». São inquéritos que fizemos a pessoas ciganas que moravam naqueles bairros das Áreas
Metropolitanas de Lisboa e do Porto. Se observarem, verificarão que, no caso de Lisboa, temos,
aproximadamente, quase 75% que têm o 1.º ciclo ou menos e, no caso do Porto, temos cerca de 50% que têm
o 1.º ciclo ou menos. Reparem que estamos a falar de pessoas, cuja escolaridade obrigatória, na altura, era o
4.º ano, mas depois temos pessoas jovens que continuam a não concluir a escolaridade”.
Relevante na intervenção de Olga Magano é a não homogeneização das pessoas e das famílias ciganas e
diz a este respeito: “Depois, entre as próprias famílias ciganas também existem diferenças. Por vezes, há
tendência a considerar-se as pessoas ciganas como todas iguais e, de facto, não são. Temos famílias ciganas
que sempre tiveram, por exemplo, elementos escolarizados, sobretudo nos meios urbanos, mas depois temos
famílias que ainda não têm ninguém escolarizado ou ninguém que estudasse, por exemplo, até ao secundário”.
Conclui a Professora da Universidade Abeta sobre a Educação nas comunidades ciganas, “ainda no século
XXI; persistem os baixos níveis de escolaridade ou, mesmo, o analfabetismo, ou, então, os níveis de iliteracia,
porque há alguns que têm, por exemplo, o 4.º ano ou o 6.º ano, mas, depois, não sabem interpretar ou ler uma
carta, portanto, iliteracia funcional, acho que é assim que se diz. Mais: por parte das escolas, continua a haver
uma grande dificuldade em enfrentar este problema. Parece que somos um país que tem muitas políticas
educativas, mas essas políticas têm ainda pouco impacto na concretização de resultados. Há, por um lado, uma
vontade de alterar — acho que, neste momento, estamos numa situação um pouco diferente por parte da escola
—, mas depois há muitas forças, muitas confluências de necessidades que é preciso ter presente”.
Trabalho/Emprego
A Professora da Universidade Aberta, relativamente aos rendimentos e à inserção no mercado de trabalho
das pessoas ciganas, diz “(…) o acesso ao mercado de emprego, é, de uma forma geral, muito complicado. No
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Estudo Nacional sobre Comunidades Ciganas, verificámos que a principal fonte de rendimento de cerca de 35%
daqueles inquiridos era o RSI (rendimento social de inserção) e muito poucos tinham pequenos subsídios —
subsídio de doença, de desemprego, etc.“
Aborda, neste contexto, o acesso ao trabalho e a dificuldade extrema em conseguir trabalho por conta de
outrem, a que chama racismo institucional ou estrutural. Conta que, “A Isabel Pereira, que é técnica do Centro
de Emprego de São João da Madeira, fez um levantamento das pessoas ciganas inscritas nesse Centro de
Emprego e conseguiu constatar que havia pessoas inscritas há mais de 10 anos que nunca tinham sido
chamadas nem para uma proposta de formação, nem para uma proposta de emprego. Depois, ela também se
interessou por tentar perceber o ponto de vista das entidades patronais e fez algumas entrevistas a alguns
patrões. Sucede que, entidades patronais — e isto é mesmo uma situação de racismo institucional ou estrutural,
não sei como é que podemos chamar — que nunca tiveram uma pessoa cigana a trabalhar para si, dizem, à
cabeça, que não os querem. Dizem que nunca tiveram, nem querem ter, uma pessoa cigana a trabalhar par si,
para além de outros casos. A própria Isabel, quando esteve a fazer o trabalho de campo, chegou a levar um
candidato a uma entrevista e o candidato acabou por não ficar. Depois, alegam que não têm as habilitações ou
não têm o perfil pretendido, entre outros”.
A oradora refere, ainda, a relação de algumas pessoas das comunidades ciganas com o mercado de trabalho
e que não são facilitadoras do processo. “Em algumas famílias, não há memória de ter havido algum elemento
que tenha trabalhado. Nas famílias mais velhas, havia, por exemplo, o avô, que tratava dos animais, que era
ferreiro ou andava na jorna, como se diz lá para o Norte, portanto, no trabalho sazonal. Temos famílias em que
não há um elemento que saiba o que é — e não estou sequer a falar de trabalho formal — trabalho informal.
Portanto, são famílias que não têm contacto com o mundo do trabalho”.
Igualdade de Género
Olga Magano refere a desigualdade de género nas comunidades ciganas, a divisão por género dos papéis
sociais muito vincada, e o condicionamento da liberdade das mulheres pelos homens. “Depois, também há a
questão (…) do condicionamento à liberdade de circulação das mulheres. As mulheres continuam ainda a ter
muitas restrições, por exemplo, para saírem sozinhas do bairro. Normalmente, só podem ir ou aos Centros de
Saúde para levarem os filhos ao médico, ou à Câmara para tratarem da questão da habitação. É ainda
impensável, por exemplo, entrar num carro e aceitar uma boleia, mesmo que seja de alguém conhecido. Uma
situação desse género, ainda continua a ser bastante difícil. Depois, a decisão daquilo que a mulher pode fazer,
ou não, continua a ser uma decisão masculina. Na semana passada, estive num encontro na Esgueira, em
Aveiro, e estava lá uma senhora, a Catarina Vieira, mediadora, uma pessoa muito interessante, sem dúvida, que
disse: «O meu marido é muito moderno, o meu marido, deixa-me ser mediadora». Mesmo algumas mulheres
que neste momento já trabalham, sobretudo, no campo da mediação, acabam por ter permissão para trabalhar
porque o pai o permite ou porque o seu marido é um marido moderno”.
Sobre a violência doméstica que considera existir nas famílias ciganas, mas que é considerado tabu, refere
que “um aspeto que continua a estar muito presente nas famílias ciganas e que, por vezes, é naturalizado, tem
a ver com a questão da violência doméstica, a violência sobre as mulheres. Isto continua a ser um assunto tabu.
Muitas vezes, as mulheres referem: «Ah, foi só um estalo» ou «Não foi muito, não foi com força». Há uma certa
desculpabilização por parte da mulher relativamente às atitudes violentas dos homens. Este aspeto é importante,
continua a ser tabu e está na base de algumas separações de casais. Algumas mulheres conseguem libertar-
se e acabam, por vezes, por ir morar para longe da família, porque, de alguma forma, são banidas. Estas
mulheres vão morar para longe e começam a ter uma vida diferente, porque, normalmente, as crianças são
retiradas às mães quando isto acontece. Achei que este é um aspeto que continua a ser importante e que não
é muito falado, aparece sempre de uma forma camuflada e não diretamente”.
Olga Magano aborda ainda o casamento precoce dentro das comunidades ciganas: “Também decidi
assinalar a questão dos casamentos precoces, que é uma situação que continua a verificar-se. Esta informação,
agora mais recente, através da cidade do Porto, evidencia que nestes últimos anos houve um retrocesso e são
as próprias pessoas ciganas que o dizem. Ou seja, as meninas voltaram a casar mais cedo, voltaram a fazer
ajuntamentos mais cedo”.
Mirna Montenegro, Educadora de Infância e Investigadora
Mirna Montenegro traz para a sua intervenção os temas dos casamentos precoces, a educação, a influência
da Igreja Evangélica nas comunidades ciganas, e como é que as comunidades ciganas se organizam
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estrategicamente nestas dimensões: “Nomeadamente, no Alentejo, em Moura, as famílias, para não perderem
o rendimento mínimo, incentivavam o casamento dos seus filhos aos 14 e aos 15 anos, rapaz ou rapariga, para
estes poderem continuar a ir à escola sem serem malfalados, isto, pessoas da Igreja Evangélica. (…) Naquela
altura, estava na moda esta forma de lidar com a situação de não perderem o rendimento mínimo por faltarem
à escola. Perante o problema que surgiu em 2009 da escolaridade obrigatória — as entrevistas que fiz foram
em junho de 2010 ou 2011 — foi precisamente esta a estratégia que adotaram para poderem andar na escola
até aos 18 anos, casavam-se mais cedo e iam, marido e mulher, para a escola. Os professores lidavam com
este problema com alguma dificuldade, porque, em turmas do 5.º e do 6.º ano, tinham crianças com vida conjugal
e crianças sem vida conjugal.
Religião
A educadora de infância traz para a audição o aspeto religioso e a influência da religião evangélica no seio
das comunidades ciganas, dando como exemplo a violência doméstica, “Por aquilo que me foi possível observar
e constatar nos acampamentos onde fui — e eu trabalhava na animação de rua —, a violência acontecia mais
nas famílias toxicodependentes, seja por droga, seja por álcool. Aí, temos, para debater, um problema de fundo
sobre o impacto da Igreja Evangélicas nas famílias. Em relação às famílias que frequentavam a Igreja
Evangélica, isso não era assim, pelo menos não era tão dramático. No entanto, havia outras coisas que a Igreja
trazia. Por um lado, era uma estratégia das comunidades ciganas para se sentirem integradas, aciganando as
regras da sociedade maioritária, para «disciplinar» as suas comunidades e, depois, há o reverso da medalha,
que é a questão do poder que isso tem sobre as famílias, do novo catequismo (…)“
Refere ainda, integrando a dimensão da relação geracional dentro das comunidades ciganas “Já me lembro
do que queria dizer há pouco, tem a ver com o problema das gerações e da adolescência. Já nessa altura, eu
levantava essa questão de não haver adolescência na comunidade cigana. Era-se criança e era-se adulto, não
havia adolescência. Neste momento, os jovens sabem mais do que os antigos, é um problema de geração com
o qual eles não estão habituados a viver. Isso pode desestruturá-los internamente, de tal forma que depois não
sabem lidar com isto. Há 10 anos eu levantava essa questão, porque os jovens que estavam a tirar os cursos
profissionais, que estavam nos cursos alternativos, escolhiam sempre áreas em que se sentiam mais
competentes do que os seus pais, nomeadamente as informáticas, as eletricidades, as mecânicas, para
poderem singrar no trabalho de outra forma. Depois, isso alterava algumas relações familiares de poder,
permitia-lhes contestar o poder patriarcal lá em casa. Isso faz turbulência, internamente. Os adolescentes e as
crianças - porque agora vê-se aparecer a adolescência que antes não havia -, devido ao facto de frequentarem
a escolaridade obrigatória durante mais tempo… Portanto, a adolescência está a brotar, é uma realidade nova
com que as comunidades ciganas não estão habituadas a lidar. Daí, talvez, a Igreja Evangélica também entre,
para os «domesticar»“.
Participação política
Outro tema abordado pela Mirna Montenegro foi a participação política, fazendo uma análise crítica ao
associativismo cigano e à sua organização, dizendo “Em relação à participação política, já na altura falei, nesse
relatório, da importância de favorecer a criação de associações de pessoas ciganas de preferência mistas, e
não familiares — porque há associações ciganas que são criadas por famílias. Tem que haver uma maneira de
não tornar patriarcal uma associação cigana, tem que se ter cuidado com esse perigo, e favorecer a criação de
associações ciganas mistas, de homens e mulheres, que, entretanto, já se criaram, felizmente, em 10 anos. Por
outro lado, os partidos políticos deviam acolher nas suas listas pessoas ciganas e dar-lhes voz para não serem
só meros consultores. Na altura, também se falou nisso e eu não sei até que ponto é que foi tido em conta. Os
ativistas ciganos fazem parte de uma elite e, como diz a Olga, «candeia que vai à frente alumia duas vezes».
Não sei se se está a utilizar convenientemente esta candeia que pode alumiar os jovens e as novas gerações a
debaterem-se com conflitos geracionais com os quais não estão habituados a lidar”.
Educação
Mirna Montenegro falou também do analfabetismo entre as comunidades ciganas e da necessidade de
adaptação do modelo de ensino ao contexto social das pessoas ciganas. “Em relação à educação, que é a área
em que me sinto mais à vontade, nomeadamente no que se refere ao analfabetismo (…) faz-me confusão que
não se tenha apostado na educação popular à moda de Paulo Freire, que tenham deixado isso de lado. Se
Paulo Freire conseguiu alfabetizar, em três meses, comunidades na Guiné e consciencializar pessoas a ter uma
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voz política — pessoas com consciência da sua condição de subalternos, de fragilizados, pessoas que careciam
de ter poder —, nós podíamos fazê-lo em mais tempo, porque é evidente que temos de ter consciência de que
para alfabetizar adultos é preciso também acolher as crianças. O problema é que nos centros de formação
acolhem-se as mulheres, acolhem-se os homens e esquecem-se as crianças. Mas atrás das mulheres, há
crianças e obrigações, e, as crianças, para as mulheres estarem a frequentar cursos, têm de estar nalgum lado.
Não há acolhimento para a família.
“Eu ainda sou do tempo em que algumas coisas se fizeram nesse sentido, sobretudo no ensino recorrente,
que tinha ainda bebido desta educação popular e da alfabetização, havendo salas em que as mulheres ciganas
tinham alfabetização e salas contíguas em que outras tomavam conta dos filhos umas das outras, enquanto as
primeiras estavam a ser alfabetizadas. Tinham a possibilidade de lá ter os filhos, arranjavam uma maneira
cooperativa de se revezarem, ou seja, de se emanciparem nessa gestão. Agora, já não há isso, isso já foi há
uns anos, há umas décadas, até. Mas eu, se calhar, voltava a pensar nisto. Parece-me que é um déjà vu, vejo
o filme a andar para trás, e fico preocupada”.
A educadora de Infância fala-nos da participação comunitária e do ensino à distância e doméstico, referindo,
“quando eu estava na equipa dos TEIP (Territórios Educativos de Intervenção Prioritária), as salas tinham
paredes de vidro, era aquilo que eu fazia nos mercados, à luz de todos e todos podiam participar, e, ao mesmo
tempo que viam acontecer, questionavam e nós explicávamos porque é que as coisas aconteciam, não estavam
fechadas. É assim que se faz a participação comunitária, à luz de todos, no meio da rua, para toda a gente poder
ver como se faz, porque não temos nada a esconder, e, assim, aprendem o porquê das coisas”.
“(…) Há nove anos, falei sobre isso — do ensino à distância ou do ensino doméstico. Na altura, eu também
estava na DGIDC (Direcção-Geral de Inovação e Desenvolvimento Curricular), estava na escola móvel e com a
base de dados das crianças itinerantes. Por acaso, nessa base de dados não havia nem uma cigana, era tudo
só gente feirante — que não era cigana — ou gente circense. Portanto, na escola móvel não existiam ciganos.
Porquê, fiquei a pensar. Por causa do sistema de internamento que havia uma vez por trimestre. As crianças
iam todas, durante uma semana, em sistema de internamento, e isso era impensável nas comunidades ciganas.
Mas acho que isso foi mudando, mas não sei como é que a escola móvel está neste momento, estou
desatualizada, portanto só digo aquilo que conheço. Mas, o ensino doméstico estava a florescer, porquê? Por
causa do bullying. Na altura, a escola móvel também apanhou alguns jovens do ensino doméstico, aconteceu
na zona de Aveiro. Não eram ciganos”.
Mirna Montenegro aborda também o tema da escolarização das meninas ciganas, revelando as dificuldades
sentidas há uma década: “Naquela altura, (…) eu ajudei num tipo de ensino doméstico, que não era bem ensino
doméstico, enfim, era assim uma coisa… Com a ajuda da Escola de Torras Vedras e da Escola Padre Melícias,
eu e uma amiga, a Ana Cláudio, tentamos fazer com que aquelas escolas recebessem, três vezes por semana,
um conjunto de meninas — quatro ou cinco meninas de uma comunidade — para prosseguirem os seus estudos,
porque a família não queria. As hipóteses eram simples, ou a família as retirava da escola, ou conseguíamos
concretizar esta ideia. Ainda não havia escolaridade obrigatória. A solução foi essa, as crianças iam três vezes
por semana à escola ter aulas com um professor, ou dois, ou três, de cada área disciplinar, depois iam para
casa fazer os trabalhos, e voltavam na semana seguinte. Não sei em que estado é que isso ficou, mas nós
recebemos cartas, fui lá várias vezes reunir com os professores para tentar que estas meninas, pelo menos,
tivessem uma escolaridade equivalente ao 9.º ano, porque depois havia um exame. Tinham aulas particulares,
como as perceptoras, antigamente chamavam-se assim, e depois, no fim, auto propunham-se a exame e
terminavam o 9.º ano. O objetivo era esse”.
Contudo, apesar desta referência à educação específica para raparigas, reconhece que “há um reverso da
medalha no ensino doméstico e no ensino à distância. Por um lado, se não houver outra hipótese naquela região,
naquela comunidade, para poder alfabetizar ou dar instrumentos mais poderosos para as crianças e, sobretudo,
para as mulheres irem à escola, pode haver o inconveniente da ostracização, portanto, de ainda se fecharem
mais sobre si próprios, não haver aquilo que a escola, em princípio, deveria dar, que seria a socialização entre
pares, conhecer outras realidades, e por aí fora. No guião que o Ministério da Educação lançou foi feita essa
advertência, esse alerta: as coisas podem ser implementadas com a condição de que sejam muito bem avaliados
os prós e os contras, para não favorecer ainda mais a discriminação e a ostracização destas famílias. Ou seja,
se para os ricos o ensino doméstico é aceite socialmente, está tudo muito bem, porque é que nos pobres não
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pode também ser assim? Por outro lado, é evidente que uns têm mais capacidade de socialização do que outros.
Portanto, o que parece ser uma medida igualitária pode ser discriminatória”.
No final refere a educação para a cidadania e a necessidade de “seduzir” os professores, e diz “Em relação
ao kit que fiz com a AMUCIP — o kitRomano Atmo —, ele carece de formação e de sedução — de um processo
de sedução como eu fiz com as crianças de rua. O processo de sedução não pode ser impingido, tem de ser
um processo de sedução dos professores, porque às crianças, «tudo o que lhes é dado com embrulho de
rebuçado elas engolem». É preciso saber que a formação dos professores, nesta área, ficou muito penalizada
desde que a formação passou a estar centrada nos créditos da matemática, da língua portuguesa e das ciências.
A cidadania (…) Pronto! Isso ficou… Essas formações não são acreditadas pelo Ministério da Educação, só é
acreditado o que é disciplinar. Antigamente, nós fazíamos formação, pelo menos o ICE (Instituto das
Comunidades Educativas) fazia formação, nessa linha da cidadania, da participação, da interculturalidade, e
isso era creditado. Neste momento não é. Logo, por mais que queiramos fazer as coisas, temos este calcanhar
de Aquiles pela frente. Porque, para seduzir para a formação intercultural é preciso que os professores queiram
participar e, em troca, só o fazem se têm créditos para subir na carreira. É assim que está a funcionar o mercado
da educação”.
Maria do Rosário Carneiro, Professora da Universidade Católica
No início da sua intervenção, após uma referência ao trabalho desenvolvido na Assembleia da República no
qual esteve envolvida, em que abordou o antes e o após acontecimentos de Vila Verde em 1995, diz sobre as
comunidades ciganas “Aquilo que eu continuo a constatar é que nós continuamos a saber muito pouco sobre
uma comunidade que é portuguesa. De facto, são objeto de discriminação racial, mas são portugueses, não são
estrangeiros”.
Refere ainda, sobre a recolha de dados “(…) nós não sabemos quantos ciganos portugueses vivem em
Portugal. Nós só conhecemos os ciganos pobres. Estes têm dois tipos de problemas relativamente à sua
discriminação. Em primeiro lugar, a circunstância de serem pobres e, em segundo lugar, o facto de pertencerem
a uma etnia específica. Portanto, isto não está dissociado”.
Diz ainda “Também penso que, relativamente a esta comunidade e à forma como sobre ela intervimos, para
além de não sabermos muito bem quantos são, também não sabemos muito de como são. Penso que
continuamos a fazer intervenções, e não são só intervenções políticas, são também estudos, muitos estudos,
feitas com base em soluções generalistas. Naquilo que eu penso que sei do outro, naquilo que eu penso que o
outro precisa e naquilo que eu penso que o outro é. Nunca o outro. Isto enviesa completamente, porque fazer
uma política ou definir um modelo de intervenção para uma comunidade, sem que ela esteja lá, na presunção
daquilo que ela precisa, com base em estatísticas, é a condenação ao insucesso”.
Pobreza e exclusão social
Maria do Rosário Carneiro introduz na sua intervenção a dimensão da pobreza como fator de exclusão destas
comunidades referindo: “A discriminação de que a população cigana portuguesa é alvo, não tem só a ver com
características culturais ou étnicas. Tem também a ver com a sua circunstância de exclusão socioeconómica.
São pobres, e aqueles que nós conhecemos são os mais pobres dos pobres, porque têm a sua fragilidade
económica acrescida de uma circunstância marcante de diversidade, que é a sua marca étnica, que nós
poderemos dizer — com alguma perspetiva de auto preservação de um grupo que se sente excluído — que se
fecha e que se reforça na sua invocada cultura própria. Portanto, temos aqui um problema muito complicado,
muito complexo. Não se trata de uma mera discriminação de natureza racial e étnica. A verdade é que também
é isso, mas tudo isto acontece porque existe esta outra circunstância da sua extrema pobreza. Isto porque,
relativamente aos ciganos que não são pobres, nós não sabemos nada”.
Reforça esta ideia de que só conhecemos os ciganos pobres dizendo “Quando foi feito o relatório de 2009,
lembro-me que identificámos, para efeitos desta população que era objeto de discriminação e desigualdade,
aqueles que tinham rendimento social de inserção, que tinham problemas de escolaridade e que tinham
problemas com a justiça, e estavam nos 23 000, 24 000, 25 000. Nós sabemos que, de acordo com uma
estimativa estatística que é feita, mais ou menos estável, andará pelos 50 000 ou 60 000. Portanto, onde está a
outra metade? É também bom precisarmos isto. Não é toda uma comunidade que é objeto desta discriminação
e de racismo. É uma comunidade específica, que é pobre, que tem características étnicas e culturais, mas é
pobre, não tem capacidade de autodefesa nem de inclusão”.
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Contexto Institucional
Maria do Rosário Carneiro aborda o contexto institucional e político no âmbito das comunidades ciganas e a
sua integração na área das migrações, chamando a atenção para o facto de as pessoas das comunidades
ciganas serem portuguesas, diz: “E também sempre me surpreendeu a incapacidade de encontrarmos uma
solução institucional para abordar esta questão. Não compreendo como é que as questões das comunidades
ciganas portuguesas estão incluídas no Alto Comissariado para as Migrações. É qualquer coisa que eu não
consigo compreender. Não são estrangeiros, são portugueses. Portanto, as suas questões, a tutela das políticas
públicas que dizem respeito a estas comunidades não podem depender de um organismo que se ocupa com
questões como sejam as das migrações. Não são migrantes! É uma comunidade residente em Portugal há mais
de 500 anos. É portuguesa, não é? É portuguesa!”
A oradora acrescenta, “Donde, há também uma incapacidade nossa, de muitas décadas, institucional, de
lidar com esta questão. Nunca nos colocámos muito bem, houve programas do Secretariado Entreculturas, que
foi iniciado pelo Ministério da Educação na década de 80, que produziu trabalho de campo e definiu metodologias
de intervenção. Depois, foi criado um Alto Comissariado, que teve várias denominações, e esta é a pior de todas
relativamente aos ciganos. (…) Eu digo isto porque falar em políticas públicas, e agora nas questões setoriais
de habitação, etc., para que tenham alguma durabilidade, tem de haver uma visão institucional de longo prazo
orientada para o assunto”.
Dá o exemplo de Espanha como boa prática: “Se olharmos para Espanha, verificamos que — não sei se
serão muito mais porque eles também serão muitos mais do que nós — começaram muito antes de nós a ter
uma política bem delineada relativamente às suas comunidades ciganas. Quando o fizeram, não tiveram medo
de criar um organismo que tutelasse intervenções políticas orientadas para o efeito. Integrar populações que
estão tão isoladas, são intervenções de longo prazo e que requerem avaliação e continuidade. Não podem ficar,
residualmente, num organismo do Estado. Elas têm que ser o grande objetivo.
Acrescenta a sua visão sobre o modelo organizacional afirmando que “É evidente que há muita discussão
que se pode fazer e muita controvérsia relativamente ao tipo de organismo. Eu nem direi que ele tem de ser
definitivo ou permanente, mas tem de haver, pelo menos, para combater esta exclusão que é endémica e
persistente e que não se consegue lidar com ela de forma integrada, uma missão a prazo — 25 anos, 30 anos,
o tempo necessário para que as políticas públicas produzam efeitos intergeracionalmente, porque é disso que
se trata. Só assim é que se consegue a sustentabilidade. (…) Espanha tem muitos organismos, tem fundações,
etc. Suponho que Portugal precisa mesmo de um órgão que tenha a missão de, a prazo, uma geração, uma
geração e meia, pôr em prática as ideias que já tem”.
Diz que deveria existir uma entidade específica “penso que também seria necessário ou conveniente existir
uma entidade própria que tutelasse as questões da discriminação. Tanto quanto sei, está também no ACM,
existe lá um departamento. Penso que questões de violação de direitos fundamentais, como são as da
discriminação, não podem estar residualmente num organismo do Estado, têm de ter uma tutela específica e
concreta. Até porque, se se entende que a discriminação é crime, então que capacidade é que tem este
organismo, que é um departamento residual de um organismo do Estado, de aplicar, por exemplo,
contraordenações?”
“Não tenho qualquer visão nem perceção punitiva da infração. De qualquer das formas, se consideramos que
se trata de um crime, o crime de discriminação com base em fundamentos étnico-raciais, para além de o número
de queixas que tiveram evolução serem muito poucas, são ainda menos as que chegaram aos tribunais, mas,
mais do que transferir esta queixa para o tribunal, qual é a capacidade que tem esta entidade? Penso que seria
importante que se pensasse no reforço das competências de uma entidade que acolhesse as queixas
relativamente a crimes de discriminação”.
Refere ainda sobre a Estratégia Nacional de Integração das Comunidades Ciganas “Nós temos a Estratégia
Nacional de Integração das Comunidades Ciganas, que foi revista há pouco tempo e prolongada até 2022. É
uma Estratégia que reformula e que enfoca mais os objetivos da anterior versão, que já tem indicadores
quantitativos, o que é muito importante para a avaliação das estratégias que se põem em prática. É evidente
que a sua concretização decorre de uma parceria que é feita intersetorialmente, de outra forma não pode ser,
mas eu diria que a fragilidade executiva — não estou a falar de tutela governamental, não é disso que se trata
— do organismo responsável pela articulação de tudo o que está previsto nesta Estratégia, é um resíduo do
ACM (Alto Comissariado para as Migrações). Não pode ser. Não é suficiente. Com todo o respeito que eu tenho
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pela ação do ACM. Eu não estou aqui a fazer qualquer crítica. O que eu estou aqui a tentar refletir é sobre a
necessidade de uma estrutura que seja específica, no sentido de conseguir uma intervenção organizada,
integrada, sobre uma comunidade que tem problemas de natureza multifatorial, porque é uma comunidade
humana”.
A Professora da Católica fala ainda da metodologia de planeamento das políticas públicas e diz “Atualmente,
estão previstos muitos planos locais de intervenção nas comunidades ciganas. Não basta que eles estejam
presentes na execução, eles têm de estar presentes na conceção, na definição do objetivo, na definição da
metodologia. Portanto, há aqui também toda uma alteração. Não é só pensar-se numa estrutura de missão, é
também pensar-se numa forma diferente de conceber as ações específicas que são delineadas”.
Participação Política
Maria do Rosário Carneiro considera que a organização associativa das comunidades ciganas tem ainda
pouca afirmação, e diz, “Gostava só de acrescentar o seguinte, esta comunidade não tem dimensão estatística,
é muito pequena e não está organizada. Começam a surgir jovens líderes, porque, de facto, começa a haver
conhecidos jovens ciganos nas universidades, as bolsas estão a aumentar — este ano, aumentou outra vez —
e há meninas ciganas nas universidades, mas continuam a não estar organizados, estão pouco organizados.
Há alguns líderes, mas estes ainda não falam em nome da comunidade, porque eles próprios estão naquela
transição de não se sentirem exatamente parte de uma comunidade que está tão fechada sobre si própria, nesta
autopreservação de fechamento”.
Uma dimensão abordada pela Professora da Universidade Católica são as mais-valias que as comunidades
ciganas dizem ter para com a comunidade maioritária, “É muito interessante este inquérito que foi feito pelo
Centro de Estudos Sociais, que explicita claramente as mais-valias que a comunidade cigana considera que tem
para a comunidade maioritária: sentimento de família, naturalmente — eu agora não me consigo lembrar de
todos —, capacidade de negócio, capacidade de negociar, competências que consideram que a sociedade
maioritária não tem. Curiosamente, neste estudo, seria interessante ter-se perguntado a esta comunidade o que
pensa da sociedade maioritária, porque nós não nos conhecemos, de facto. Nem nós conhecemos as
comunidades ciganas, nem as comunidades ciganas nos conhecem a nós. Estamos reféns e prisioneiros de
preconceitos que temos uns relativamente aos outros e toda a ação tem sido baseada nestas presunções do
que pensamos que são os outros e daquilo que eles precisam”.
Educação
Maria do Rosário Carneiro introduz o tema da educação numa perspetiva de uma intervenção estrutural que
altere a realidade das comunidades ciganas a médio e longo prazo. Começa por referir as vantagens do ensino
pré-escolar: “É muito interessante verificar que nos concelhos onde foi possível escolarizar massivamente — no
que é possível escolarizar massivamente —, no pré-escolar, o percurso escolar das crianças de etnia cigana é
muito mais longo. (…) Donde, se há capacidade de intervir a longo prazo, os resultados começam a observar-
se. Não pode ser errático. Mas não podemos fazer experiências. Isto é, toda a intervenção relativamente a esta
comunidade minoritária, discriminada e excluída, não pode ser em regime experimental, nem pode ser por
projetos-piloto que funcionam um ano num sítio e dois anos num outro ao lado, sem continuidade. Sobretudo,
não podemos ter, em simultâneo, orientações políticas que dizem alguma coisa relativamente a um setor e
instituições e órgãos de soberania a tomarem atitudes diferentes noutro sentido”.
Sobre a educação das meninas ciganas e a responsabilidade coletiva e institucional, diz que “(…)
relativamente à educação, e no que se refere à educação das raparigas — e não estou aqui a fazer uma
avaliação das decisões dos tribunais, mas neste momento também as posso comentar —, é completamente
incompreensível que os tribunais continuem a decidir que as meninas ciganas podem não ir à escola por razões
de identidade cultural. É um incumprimento claro dos direitos fundamentais e básicos, é um incumprimento claro
da Constituição da República Portuguesa”.
Saúde
Relativamente à saúde, Maria do Rosário Carneiro volta a defender uma estratégia integrada, e diz: “No
entanto, gostava de dizer que, relativamente à saúde, apesar de a comunidade cigana, no seu todo, continuar
a ter uma esperança de vida substancialmente inferior à da comunidade maioritária — lembro-me que, há 10
anos, era de menos 10 a 15 anos do que a da comunidade maioritária (em 2015 era de 15 anos) -, relativamente
à chamada «saúde materno-infantil», de acordo com alguns estudos a que, entretanto, tive acesso, feitos em
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hospitais públicos — portanto, valem o que valem, não têm uma mancha universal —, o que se verifica é que
há jovens mães ciganas que frequentam a saúde materno-infantil e que o seu comportamento, face à fertilidade,
se situa nas três crianças por mulher em idade fértil, o que é uma mudança radical e absoluta em muito poucos
anos. O que significa que, se a intervenção é necessário… eu diria que ela foi obtida através do rendimento
social de inserção, não é verdade? Portanto, trata-se de aplicar a mesma metodologia de intervenção integrada
relativamente a todas as outras áreas. Não é preciso inovar, nem inventar, nem descobrir nada em particular”.
Daniel Seabra Lopes, Professor do ISEG (Instituto Superior de Economia e Gestão)
Daniel Seabra Lopes inicia a sua abordagem com uma referência à falta de reciprocidade do trabalho de
campo e académico que realizou junto de uma comunidade cigana, uma vez que os resultados do seu trabalho
não iam ser apreendidos pela comunidade observada, e refere “Isto corresponde também a uma tendência, é
que o olhar sobre os ciganos é muito o olhar dos não-ciganos, sem que haja uma grande possibilidade de
conhecer a sua perspetiva, inclusivamente a sua perspetiva sobre os não-ciganos, como falava aqui a Rosário,
que é algo que existe — eles têm as suas próprias categorias —, só que não está plasmado, digamos, numa
forma escrita, num livro ou algo assim”.
Habitação
O Professor do ISEG refere, de seguida, a segregação espacial, onde inclui os bairros sociais e a segregação,
ainda que indireta, que acontece por via da localização dos bairros e dos serviços e equipamentos que os
servem. “Obviamente que há ciganos que estão a viver em condições muito precárias, em barracas, em tendas,
etc., mas, mesmo aqueles que tiveram acesso a habitação social, e foram muitos, acho que aqui também
continua a vigorar o princípio da própria ideia de habitação social, do bairro social, que fica em partes muito
específicas da cidade, que é servido por um conjunto de instituições também muito específicas, escolas, mas
também instituições de apoio social”.
Daniel Seabra Lopes introduz uma perspetiva que é por si aliada desta segregação, que diz respeito ao
controlo da própria comunidade sobre si própria, e refere: “Acho que isto acaba por estar na base de muitas
estratégias defensivas da parte da comunidade e também complica muito o acesso a outras oportunidades.
Acho que qualquer pessoa que tenha estado com os ciganos tem uma perceção muito clara de que, para os
ciganos, não é bom estarem a viver ao pé de tantos outros ciganos, porque isto é muito opressivo. Há um
policiamento permanente em torno das questões das identidades. Já aqui foi falada a questão do policiamento
de género, a movimentação das mulheres é obviamente objeto de um controlo muito apertado, mas também
devo dizer que há alguma movimentação masculina — que é a mais livre, não está isso aqui em causa — que
também pode ser controlada”.
Continua, dizendo: “Uma das coisas que eu percebi no meu trabalho de campo foi que havia ciganos que,
por exemplo, estavam a fazer biscates na construção civil ou a trabalhar por conta de outrem - e eu, por acaso,
vi-os - que saiam da carrinha com os outros trabalhadores a quilómetros de distância do bairro onde queriam
chegar para não serem vistos a sair de uma carrinha onde se perceberia que estavam a trabalhar «para os
senhores», digamos assim. Acho que havia aqui muito esta ideia de que o cigano sabe desenvencilhar-se, sabe
fazer negócio, mas não se sabe adaptar muito bem. Claro que isto é uma ideia que pode ser rebatida ou que a
própria comunidade pode reformular, mas é um exemplo de um certo controlo e de um certo cuidado que os
próprios elementos masculinos tinham para que a sua ‘ciganidade’ não ficasse muito comprometida”.
Reforça ainda a ideia, “Portanto, esta ideia de um policiamento que a própria comunidade exerce sobre si
própria, que é opressivo e que é sentido. Pelo menos, foi essa a perceção que eu tive e que é sentido como
opressivo. Ora bem, quando temos medidas de realojamento que são muito concentracionárias — e há muitos
exemplos de edifícios que estão praticamente só ocupados por famílias ciganas, mas mesmo que não fosse
apenas isso… —, em boa parte dos casos, os bairros estão isolados do resto da cidade. Eu tenho um pouco
essa perceção, conhecendo mesmo a história de alguns bairros de realojamento”.
Daniel Seabra Lopes conclui que, do que necessitamos é de apoio à habitação, que pode ser feito fora de
bairros sociais construídos especificamente para este fim, e diz “Sei que pode ser um pouco utópico pensar
assim, mas nós, provavelmente, não precisamos de bairros sociais. Precisamos, obviamente, de apoiar pessoas
no acesso à habitação, mas esse acesso poderia ser feito no mercado imobiliário normal — naturalmente, com
apoio das entidades —, contribuindo, assim, para uma certa disseminação destas pessoas mais desfavorecidas
um pouco por toda a cidade, falando aqui no contexto urbano”.
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Educação
Daniel Seabra Lopes aborda a questão da segregação nas escolas como uma segregação indireta, que afeta
as crianças ciganas e a sua inclusão. Diz o orador “As escolas destes bairros, são normalmente muito
intervencionadas. O que notámos, no projeto mais recente da Olga, foi precisamente que as escolas muito
intervencionadas têm tendência a separar turmas de alunos mais capazes, digamos assim, de turmas que
precisam de mais intervenção, e muito facilmente se cai numa situação em que há turmas só com alunos
ciganos. Não há, digamos, uma intenção explícita, como é óbvio, de criar aqui uma segregação, mas ela depois
acaba por ser inerente ao próprio funcionamento da escola. (…) Mesmo que a sensibilidade para a questão da
segregação aumente, subtilmente ela vai-se acentuando por estas vias. Quer dizer, algumas classes médias
vão-se afastando das escolas públicas porque pode haver o risco de os filhos poderem ter ciganos ou negros
na turma, portanto, criamos aqui um problema que se vai autorreproduzindo”.
O Professor do ISEG introduz a ideia da escola como um espaço de liberdade e de interação que diminui o
desconhecimento entre ciganos e não-ciganos, dizendo: “Mas há uma coisa que a escola cumpre, acho eu, que
é aquela ideia de ser um espaço de liberdade, um espaço de contacto com pessoas diferentes, e eu entendo
que os ciganos têm essa curiosidade. Senti isso no meu trabalho de campo. Penso que eles, hoje, ainda mantêm
a curiosidade pelo modo de vida dos não-ciganos. Assim como, por vezes, também há o contrário, há os não-
ciganos que, através do matrimónio, se vão aproximando destas comunidades”.
Identidade
A dimensão identitária das pessoas ciganas está integrada na reflexão de Daniel Seabra Lopes “Acho que a
invisibilidade dos ciganos mais de classe média tem um pouco a ver com isto. Tem a ver com um jogo que pode
ser feito, em que tão depressa se usa essa etiqueta cigana, quando se está com outros ciganos, como se pode
por isso de parte noutro género de contextos. A minha perceção é a de que os ciganos gostam disto, gostam de
poder estar e não estar. É evidente que sentem que a identidade cigana é, neste momento, muito negativa e,
portanto, não a querem assumir em circunstâncias que sentem como prejudiciais”.
“Não estamos ainda, creio, na fase que se está agora a verificar com os afrodescendentes, que é: temos
vários intelectuais que estão a aparecer e a trazer questões muitíssimo interessantes e a assumir positivamente
essa identidade. (…) Efetivamente, enquanto a questão da identidade for sentida pelos próprios ciganos como
uma coisa que os prejudica e que eles preferem esconder, é necessário poderem ter este espaço, poderem sair
um pouco de si próprios, digamos assim, o que nem sempre é fácil com estas segregações de que aqui falei”.
Saúde
Daniel Seabra Lopes refere a boa integração das comunidades ciganas nos serviços de saúde: “Uma última
nota sobre a questão da saúde. Eu também acho que a questão da saúde é um exemplo feliz. E nós podemos
refletir sobre isso. Claro que o rendimento mínimo teve muito a ver com o acesso dos ciganos aos Centros de
saúde, mas, enquanto nas escolas há uma série de problemas que estão aqui associados, e que a Olga
identificou — até porque as próprias habilitações estão muito aquém do que seria esperado —, no caso da saúde
não é tanto assim. A “medicalização” da gravidez e do parto foram completamente pacíficas. Na minha própria
perceção no terreno e tendo lido o que outros investigadores também fizeram, foi pacífico, ou seja, não lhes
colocou problemas ir ao médico — obviamente que, isto é, uma vez por outra, não é sistematicamente, como
acontece na escola ou no trabalho —, mas é um caso onde me parece evidente que há uma integração. É
evidente que a esperança de vida ainda é distante, mas também creio que aqui a diferença não deve ser muita
de outras populações do mesmo tipo de meio. O que me parece é, neste campo da saúde, não há aqueles
pruridos que se notam, por exemplo, em relação à escola e um pouco em relação ao trabalho”.
IV – Audição de entidades públicas
Pedro Calado, Alto-comissário para as Migrações
Pedro Calado iniciou a sua intervenção salientando a sua atuação no combate aos fenómenos do racismo e
da xenofobia no Alto Comissariado para a Migrações (ACM), tendo referido a coordenação do Programa
Escolhas e a presidência da Comissão Para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial. Recordou, também,
que a sua atuação está balizada por dois diplomas estruturantes: o Plano Estratégico Para as Migrações e a
Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas.
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O Plano Estratégico para as Migrações, destacou, “tem tido um impacto muito importante na integração das
pessoas estrangeiras e também dos seus descendentes em Portugal, mas, cada vez mais, também, numa lógica
de governança multinível, o trabalho que apoiamos e financiamos através dos Planos Municipais para a
Integração de Migrantes - hoje com 38 planos a serem implementados em variadíssimos concelhos deste país
-, aos quais se associam, depois, dinâmicas também locais como o Programa de Mediadores Municipais
Interculturais — temos, hoje, 42 mediadores, dos quais 20 são pessoas das comunidades ciganas —, o
Programa Mentores, o Projeto Família do Lado e, naturalmente, destaco um projeto que tem um peso muito
importante — sei, inclusivamente, que os Srs. Deputados já visitaram alguns dos projetos — o Programa
Escolhas, que acaba por ser aqui um alicerce muito importante, a nível local, desta garantia de que a igualdade
de oportunidades chega às comunidades”.
Ainda dentro do supracitado Plano Estratégico, sublinhou a importância de desconstruirmos mitos,
assentando as nossas avaliações e ações em factos e em processos científicos, tendo destacado: “o
Observatório das Migrações, o Observatório das Comunidades Ciganas, o trabalho que fazemos junto dos media
e campanhas, no fundo toda esta dimensão”.
No campo da educação, enfatizou a importância da Rede para a Educação Intercultural, referindo: “Permitam-
me também destacar um projeto aqui em parceria com os nossos colegas da Direção-Geral de Educação, que
é a Rede para a Educação Intercultural, garantindo que neste momento cerca de 120 escolas estão a trabalhar
também para garantir essa abertura, essa tolerância. Começando pela tolerância, mas caminharmos para uma
sociedade intercultural”.
Em especial, relevou o que tem sido desenvolvido dentro da Estratégia Nacional para a Integração das
Comunidades Ciganas para contribuir para um maior empoderamento desta comunidade, “(…) compete a nós
gerir a Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas, onde temos, desde 2013 — agora
numa nova versão aprovada em novembro do ano passado - , (…) não só o Programa OPRE (Programa
Operacional Para a Promoção da Educação), onde temos bolsas de estudo para os estudantes ciganos que
estão no ensino superior - este ano com 32 bolsas - , (…)mas também, o Programa de Apoio ao Associativismo
Cigano e o Programa ROMED (Mediação para os ROMA) - que, tendo nascido no Conselho da Europa, é hoje
uma política pública -, e, numa lógica local, também os Planos Locais para a Integração das Comunidades
Ciganas; e, novamente, quer os mediadores, quer o Programa Escolhas, têm um foco muito claro nas
comunidades ciganas”.
Seguidamente, aflorou o quadro evolutivo das queixas na CICDR, “(…) a situação, nos últimos anos, diríamos
que tem revelado uma tendência crescente para a apresentação de queixas. Se em 2014, quando tomei posse,
a CICDR tinha recebido 60 queixas nesse ano, terminámos o ano de 2018 com 346 queixas, sensivelmente, um
pouco mais do que cinco vezes mais que este ano de referência de 2014 (…). Também dar-vos nota deste
primeiro quadrimestre de 2019, durante o qual recebemos 154 queixas, portanto a tendência, muito
provavelmente, também neste ano de 2019, será para um número sem precedentes, até em comparação com
o ano anterior, onde já foi um ano também muito significativo, desse ponto de vista. Isto parece-nos revelar
vários sinais. Temos discutido também na comissão esses sinais. Por um lado, uma maior consciencialização
para a problemática e esta dimensão da discriminação racial e étnica. Acreditamos que há hoje uma literacia
que está a chegar nomeadamente às alegadas vítimas. Por outro lado, alguns casos mais mediatizados, do
ponto de vista da comunicação social, têm aumentado a discussão pública e o envolvimento da sociedade civil
(…)”.
As queixas apresentadas à CICDR foram alvo de caracterização, nomeadamente a sua distribuição espacial,
a sua distribuição por género, o meio de utilização e suporte da queixa e a categoria de cada uma delas - “Alguns
dados muito rápidos do relatório anual de 2018. Quanto à origem das queixas, verifica-se que o correio eletrónico
e o site da CICDR são hoje a principal fonte de reporte das queixas. Desde logo, o correio eletrónico corresponde
a 44% do total das queixas; maioritariamente, as queixas são iniciadas pelas próprias vítimas, 61,8% são as
pessoas — elas próprias — a direcionar-se à CICDR, naturalmente não negligenciando, nem desvalorizando, o
papel de muitas associações de base comunitária local, que também nos fazem chegar muitas queixas 64,2%
das queixas dizem respeito a pessoas singulares, a indivíduos em situações muitas vezes intrapessoal de algum
tipo de conflito e, curiosamente — e sei que a Sr.ª Deputada é muito sensível a estes temas —, não há diferenças
significativas em razão do sexo. A diferença é de 2% para os homens, portanto, não é propriamente muito
significativo, diria que aqui não há grandes diferenças. (…) Apenas em quatro distritos de Portugal não
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recebemos queixas, portanto, há uma distribuição, ainda assim, por quase todo o território nacional. Se é
verdade que é em Lisboa que mais queixas recebemos — estamos a falar do local onde acontece a alegada
prática, correspondendo a 32,7% —, a verdade é que, se os meios de comunicação social e a internet fossem
considerados um território, teríamos aqui um segundo território onde acontecem as alegadas situações. Para
concluir, a maioria das práticas discriminatórias acontecem em situações de comércio — 28,3% —, logo seguido,
lá está, da internet e dos “média” social. Também em termos de fator de discriminação, ou seja, a característica
protegida, alegadamente ofendida, destaca-se, em primeiro lugar, a origem racial e étnica, com 22,5% das
queixas, seguida da nacionalidade, 19,1%, e, em terceiro lugar, a cor da pele, 17,9%. Nestas três categorias
apenas, temos representadas, um pouco mais de 50% do total das queixas. Os outros fatores já são um pouco
mais difusos. Gostaria de vos dar nota que, com a aplicação da nova lei, começamos a ter as primeiras
condenações. No ano passado, em 2018, tivemos sete condenações: situações muito relacionadas com o
arrendamento — acaba por ter aqui um peso importante nas queixas —; situações no contexto do desporto—
uma das vantagens da nova lei é que ela nos veio permitir comunicar melhor com outros organismos de
igualdade, que também rececionam, fazem instrução de queixas e condenam, o que nos permite, hoje em dia,
ter esta compilação global —, e, também, como aqui já foi dito, situações de comércio, portanto, em lojas — no
ano passado, acabámos por ter aqui, também, algumas condenações.
No que compete à articulação com as forças de segurança, destacou: “(…) temos protocolos de colaboração
que têm permitido formar, quer os agentes da PSP, quer os guardas da GNR. Deste protocolo já formámos
praticamente 1500 polícias e guardas, em temas que procuram exatamente salvaguardar uma abordagem a
grupos etnicamente e racialmente diferenciados, nomeadamente, os princípios e direitos fundamentais e os
direitos humanos. Também estamos, agora, a trabalhar nesse sentido com a Direção-Geral de Serviços
Prisionais (DGRSP) e com a Polícia Judiciária”.
Isabel Dias, Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU)
Isabel Dias centrou a sua intervenção no papel que o IHRU tem tido no desenvolvimento de vários programas
e estratégias nacionais para o combate ao racismo e a xenofobia, desde logo, na Estratégia Nacional para a
Integração das Comunidades Cigana - “(…) inclusive promoveu a elaboração e a publicação de um estudo sobre
a caracterização das condições de habitação da comunidade cigana em Portugal. Isto em 2015, (…) no
Programa 1º Direito, que “(…) não é dirigido a comunidades específicas, é um programa para acesso a habitação
a pessoas que vivem em situação habitacional indigna, mas que tem uma parte especial relativa a situações de
habitação em acampamentos, ou ocupações ilegais de terrenos ou de edifícios e, portanto, que dá um
tratamento especial a esse tipo de ocupação, abrangendo, no fundo, também a comunidade cigana” -; e no
Plano Estratégico para as Migrações - “(…) está a ser desenvolvido um trabalho entre o IHRU e o Alto-
Comissariado, no sentido de serem traduzidos em várias línguas os principais instrumentos da nova geração
que podem ajudar a sua implementação, quer a nível da resolução de Conselho de Ministros que define o que
é que é a nova geração de políticas de habitação, quer a nível dos instrumentos legislativos que estão a ser
publicados no âmbito dessa nova geração de políticas de habitação (…)”.
Especificou as intervenções que o IHRU desenvolveu e está a desenvolver na qualidade de proprietário e de
financiador: “O Instituto promoveu duas operações de alojamento da comunidade cigana e de requalificação de
bairros, com vista a melhorar as suas condições de habitabilidade, em Peso da Régua e em Campo Maior e, no
âmbito da promoção de melhores condições de habitabilidade, para as populações que residem em áreas
problemáticas — e neste caso tem a ver com as situações de cidadãos estrangeiros, muitos deles em ocupações
ilegais —, o Instituto está a promover, em colaboração com o Município do Seixal, um processo de realojamento
da população que reside em Vale de Chícharos, o chamado Bairro da Jamaica (…). Já foram realojadas 62
famílias e irão ser realojadas, no total, 234 (…). Pensamos que correu muito bem, porque o realojamento para
evitar situações de guetos — que é uma das ideias que está agora em cima da mesa e o Instituto está a promover
isso —, portanto, quando as populações estão abertas a soluções de realojamento disperso, evitam-se soluções
de — desculpem a expressão — passar em molho as pessoas de um sítio para o outro”.
Foi descrito o levantamento que o IHRU fez das necessidades de realojamento, de como essa compilação
deu o mote para a construção do Programa 1.º Direito, e de como este vem redefinir o conceito de situação
habitacional indigna.
“(…) O levantamento que o Instituto fez e que ficou concluído em 2017, ainda ao abrigo dos critérios
anteriores dos Programas PER (Programa Especial de Realojamento) e PROHABITA (Programa de
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Financiamento para Acesso à Habitação), foi o das necessidades habitacionais no país em termos de
realojamento. Participaram praticamente todos os municípios. Do levantamento feito com base nesses critérios,
que tinham a ver com a residência em locais abarracados ou edificações precárias, foram identificadas 26 000
famílias (…). Dessas 26 000, o que eu posso dizer é que, no âmbito do novo programa que revogou o PER e
que revogou o PROHABITA — que é o Programa 1.º Direito, criado pelo Decreto-Lei 37/2018 —, o critério
passou a ser o de uma situação habitacional indigna, o que significa que o universo abrangido é mais amplo do
que o que era abrangido pelo PER e pelo PROHABITA (…). Situação habitacional indigna não tem a ver só com
o edificado. O programa é muito dirigido à pessoa e não ao sítio onde mora propriamente. Portanto, situação
habitacional indigna é aquilo que o município sinalizar como uma situação que não corresponde aos critérios
mínimos de dignidade e habitabilidade. Eu posso dar um exemplo: pode ser uma habitação que não é adequada
para a pessoa em causa, como o seria a situação de um idoso que reside num 5.º ou num 4.º andar, sem
elevador, que não tem condições para se deslocar, e que, por causa disso, vive confinado ao seu andar.
Portanto, este universo, provavelmente, será mais numeroso do que aquele que resultou do levantamento”.
Por fim, abordou-se a forma como os municípios estão a aproveitar este programa para fortalecerem as
políticas habitacionais nos seus territórios, construindo estratégias nesse sentido.
“Eu devo dizer que, só até ontem, tínhamos já 71 pedidos de apoio para elaboração de estratégias, porque,
quando os municípios não têm meios técnicos, humanos ou financeiros, para elaborar as estratégias - porque é
um trabalho que exige alguma tecnicidade -, o programa dá-lhes apoio para eles poderem contratar esse tipo
de serviços (…). Em termos de pedidos de apoio, já temos 71 e temos conhecimento que há municípios a
elaborar as suas próprias estratégias também, portanto, este número vai aumentar, substancialmente, daqui
para a frente”.
Paulo Ferreira, Subinspetor-Geral da Administração Interna
Paulo Ferreira, Subinspetor-Geral da Administração Interna, começou por fazer um enquadramento da
entidade que representa no tema em discussão, enfatizando que esta se confunde com as atribuições
prosseguidas pela IGAI: “(…) a salvaguarda dos direitos fundamentais dos cidadãos, através do controlo externo
da atividade policial das forças de segurança e do SEF (…), através de orientações, quer no sentido da adoção
de padrões ético-profissionais de conduta comuns a todos os elementos das forças de segurança, quer no
sentido da melhoria das condições materiais de detenção em estabelecimentos policiais,” sendo essas
atribuições caracterizadoras e diferenciadoras do IGAI face às outras inspeções do Estado.
Descreveu as metodologias de trabalho do IGAI: “Uma das atividades distintivas da IGAI, integrada na sua
competência para fiscalização do cumprimento da legalidade, do bom funcionamento dos serviços e da defesa
dos legítimos interesses dos cidadãos, prende-se com as Inspeções Sem Aviso Prévio — conhecidas por ISAP
— aos postos territoriais da GNR e às esquadras da PSP (…). Os objetivos principais destas visitas centram-se
na verificação das condições gerais dos locais de detenção — vulgo celas — existentes nas unidades apontadas,
e na verificação das condições de detenção das pessoas que, no momento das visitas, estejam sob a custódia
das forças de segurança, quer pela prática de crimes, quer pela necessidade de identificação proactiva”.
Explicou que a IGAI também cumpre uma importante função de provedoria “À IGAI chegam diariamente
queixas escritas, por e-mail, pelo correio, por apresentação nas suas instalações e agora também por via
eletrónica. Estas queixas referem-se a situações relacionadas com alegadas violações de direitos fundamentais
e a situações que podem encorpar ilegalidades ou irregularidades no funcionamento dos serviços. São queixas
ou participações que provêm de particulares, de entidades governamentais, de associações ligadas à área dos
direitos humanos e até do Ministério Público, ou da Direção-Geral dos Serviços Prisionais”.
Em seguida, falou-nos do conceito de maus tratos que a IGAI emprega: “A IGAI optou por empregar um
conceito de maus tratos conforme e circunscrito à sua atuação, na averiguação de todas as notícias de violação
grave dos direitos fundamentais dos cidadãos e define-o do seguinte modo: atuação do agente dotado de
autoridade policial que, em violação ou grave desconformidade com normas dirigidas à tutela dos direitos
fundamentais — vida, liberdade pessoal, integridade física e moral, identidade cultural —, recorra a violência de
ordem física, psicológica ou moral sobre sujeitos não dotados de idêntica autoridade, no contexto daquela
atuação. Para o que nos interessa debater, no conceito de maus tratos ou de violação dos direitos fundamentais
adotado, compreendem-se todas as atuações discriminatórias, sendo também objeto do controlo externo
fiscalizador da IGAI todos os comportamentos de elementos das forças de segurança reveladores de racismo,
de xenofobia e de discriminação étnico-racial”.
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Citou o Professor Pedro Bacelar de Vasconcelos para afirmar que as forças policiais não são ilhas sociais
“Na verdade, nas palavras de Pedro Bacelar de Vasconcelos: «As forças de segurança não são organismos
institucionalmente isolados, imunes às tensões e aos preconceitos dominantes, pelo que não se pode excluir
que possam eventualmente incluir nos seus corpos elementos que podem reforçar a segregação e exclusão
sociais a que estão votados os membros destas comunidades e grupos, em vez de contribuírem positivamente
para as combater»”.
Pegando nessa citação e nessa formulação, desenvolveu o que acredita ser o mais eficaz caminho para que
a IGAI possa diluir essas possíveis tensões e preconceitos dominantes. “No âmbito preventivo, há que apostar
na formação, especialmente na educação para os direitos fundamentais. Antes de mais, há que obedecer à lei
e, ter presente, todos os instrumentos jurídicos que protegem e promovem o gozo dos direitos humanos.
Por outro lado, há que erradicar muitas atitudes racistas não problematizadas que foram incorporadas na
nossa prática social e que ainda têm efeitos na vida diária de muita gente. Para tal, há que refletir junto das
forças de segurança de que a globalização económica e a fragmentação cultural que marcam o mundo
contemporâneo estabeleceram um afastamento de modelos impostos pelos ideários do Estado-Nação, num
contexto em que o discurso de unidade da Nação tem que se recolocar face ao reconhecimento da diversidade
dos indivíduos e grupos, dando maior enfoque à valorização da pluralidade das culturas”.
Terminou sugerindo que “Seria importante — o que vem sendo defendido já há muito pela IGAI — o controlo
e a vigilância eletrónicos. Estamos a lembrar-nos da introdução de áudio gravadores nas esquadras e postos de
polícia, para controlo dos contactos entre a polícia e os suspeitos; da vigilância eletrónica; e, da introdução no
equipamento dos elementos das forças de segurança de uma câmara de vídeo usada na lapela da farda”.
Rómulo Mateus, Diretor-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais
Rómulo Mateus, Diretor-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, começou por sublinhar a importância
destes temas estarem na ordem do dia, afirmando que “(…) se há muitas queixas e muitas críticas a fazer ao
sistema prisional, as questões do racismo e xenofobia não têm, de todo, expressão estatística”.
Abordou as mudanças internas que estão e têm de ser promovidas e na alteração de paradigma que tem de
ser aprofundado. “Estamos a lidar com questões do regulamento interno. Não há uma grande simpatia dos
centros educativos pelos jovens que entram com rastas. Eu acho bonito, gosto de rastas e quero desafiar os
Srs. Diretores dos centros educativos para deixarem os jovens ter a sua identidade (…) Curiosamente, vindo de
uma reunião do Conselho da Europa, chego à conclusão de que onde os modelos são mais liberais — países
escandinavos — é onde há menos problemas de tráfico de telemóveis com toda a criminalidade associada a
essa matéria (…). A lei reconhece aos reclusos o direito à correspondência. Todos os dias recebo, não vou dizer
dezenas, mas muitas cartas com queixas várias dos reclusos. As questões são sempre examinadas,
investigadas, procura-se dar uma resposta às pessoas, porque o recluso tem de saber que, quando está a
escrever, alguém vai ler e alguém vai dar uma resposta”.
Para responder às questões ligados à defesa dos direitos humanos, conexas com as matérias abordadas na
audição, enfatizou a formação dos profissionais como preponderante. “A questão da formação dos guardas
prisionais, porque efetivamente é o elemento da autoridade que está na relação direta com o recluso, no dia-a-
dia, tem preocupado esta casa. Não é de agora, porque isto é já feito há vários anos, mas se me permitirem
aqui um pequeno auxiliar de memória, por exemplo, um curso de 2017 a 400 elementos do Corpo da Guarda
Prisional, teve um seminário de normativos e princípios internacionais relevantes em matéria de direitos
humanos.
Este mesmo curso de guardas teve um outro seminário de multiculturalidade e reclusão. Temos uma
composição heterogénea em razão da nacionalidade dos reclusos, a nossa maior comunidade é de um país
irmão, de Cabo Verde, mas temos reclusos um pouco de todo o mundo e preocupa-nos esta questão da
multiculturalidade e, portanto, a formação dada a guardas prisionais — e não só, nomeadamente às equipas de
reinserção — é também orientada para estes temas.
Demos também recentemente formação a guardas prisionais sobre «Direitos humanos e princípios
internacionais na execução das penas e medidas privativas de liberdade» e também sobre o tema «As pessoas
privadas de liberdade e as organizações de defesa dos direitos humanos»”.
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Luísa Guimarães, Inspetora-Geral da Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT)
Luísa Guimarães, Inspetor-Geral da ACT começou a pôr a tónica na forma como o trabalho contribui, ele
próprio, de forma decisiva, para a integração.
Fez o enquadramento jurídico-laboral da não discriminação e do princípio da igualdade, “Gostava, talvez,
relativamente a este enquadramento jurídico-laboral, de dizer que o código do trabalho, no seu Artigo 4.º,
concretizando o Princípio Constitucional da Igualdade, que vem previsto — como todos sabemos — nos artigos
13.º e 15.º da Constituição da República Portuguesa, estabelece o princípio da igualdade de tratamento dos
trabalhadores estrangeiros e apátridas que, desde que estejam autorizados a exercer a sua atividade
profissional subordinada no território português, gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos
deveres que um trabalhador de nacionalidade portuguesa (…). O próprio Código do Trabalho também
estabelece no artigo 24.º, o princípio da igualdade no acesso ao emprego e ao trabalho, de uma forma
relativamente ampla, compreendendo um conjunto de fatores que podem gerar desigualdade, entre os quais
estão incluídas as questões da nacionalidade, origem étnica ou raça (…). Para terminar, as referências ao nosso
ordenamento jurídico-laboral, referia ainda o artigo 25.º. Também como todos sabemos, este artigo proíbe a
discriminação direta ou indireta, em função de vários fatores, entre os quais se inclui a discriminação em função
da nacionalidade, raça ou etnia”.
Concluiu que, o nosso enquadramento jurídico-laboral prevê a defesa de uma igualmente material: “Como
dizia há pouco, penso que este conceito de igualdade é um conceito relativamente amplo e que contempla não
só uma noção de igualdade formal, mas também uma noção de igualdade material ou real — pelo menos para
nós —, no sentido de que as oportunidades devem estar abertas a todos e não podem ser apenas uma igualdade
meramente formal.
Para terminar esta nota, diria só que o combate à discriminação foi eleito pela ACT como um dos quatro
objetivos estratégicos da ACT, juntamente com o combate ao trabalho não declarado, a prevenção dos acidentes
de trabalho e doenças profissionais, e um outro objetivo estratégico que está relacionado com a organização
dos tempos de trabalho, a duração de trabalho e a retribuição”.
Seguidamente abordou as iniciativas da ACT no âmbito da temática da audição, nomeadamente a sua função
inspetiva, as suas iniciativas preventivas e a formação dos seus recursos humanos. “(…) A nossa atividade,
nesta área, não se cinge apenas à atividade inspetiva. Nós, aliás, temos vindo a promover e a privilegiar
fortemente uma ação com um pendor preventivo, quer a nível da informação, quer a nível da sensibilização para
os direitos e deveres laborais. Fazemos, todos os anos, várias informações com este foco das discriminações e
da igualdade, umas vezes mais focados para determinados tipos de discriminação que outros, mas, é uma
prática que temos, queremos desenvolver ações de sensibilização, quer através dos nossos canais normais,
nomeadamente, a nossa página da Internet - a qual tem um nível de acessos muito elevado, cerca de 8 800 000
pessoas acedem à nossa página -, quer a nível dos nossos serviços de atendimento presencial, ou da nossa
linha de atendimento telefónico e temos desenvolvido um conjunto de ações com este foco específico da não
discriminação.
Desenvolvemos, também, vários materiais informativos com o objetivo específico de chegar aos
trabalhadores, designadamente aos trabalhadores estrangeiros, imigrantes, como sejam panfletos em várias
línguas, respostas a perguntas frequentes e kits de informação — vamos lançar, este ano, um kit de empresas
e um kit de trabalhador, que tem como objetivo geral facilitar a informação a novas empresas e a novos
trabalhadores.
Depois, temos também uma segunda vertente que, do nosso ponto de vista, é muito importante, que é uma
vertente mais virada para os nossos próprios recursos, que é a vertente de formação dos nossos recursos, não
só de inspetoras e inspetores, mas também de técnicos superiores, sobre estas temáticas específicas, porque
são temáticas complexas que exigem uma atualização constante, uma formação contínua e, portanto, temos
vindo a desenvolver algum trabalho também com a CITE (Comissão para a Igualdade no Trabalho e no
Emprego), nessa área da formação contínua, assim como a formação inicial dos nossos inspetores tem estas
matérias integradas.
Finalmente, a nível da atividade inspetiva (…) foram realizadas, em 2018, cerca de 360 ações inspetivas no
âmbito da igualdade e não discriminação. Globalmente falando, 282 visitas inspetivas especificamente dirigidas
a trabalhadores estrangeiros, abrangendo mais de 2000 trabalhadores estrangeiros, e 65 visitas inspetivas no
âmbito da deteção e combate a situações de tráfico de seres humanos”.
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Para finalizar, fez um apanhado dos desafios que neste âmbito se colocam à ACT “Um primeiro desafio
penso que está relacionado com a complexidade que normalmente envolve a informação e a verificação de
situações de discriminação e penso que esse desafio, essa complexidade, obriga-nos a uma constante reflexão
e melhoria das nossas metodologias de intervenção, ao nível da informação e ao nível da sensibilização.
O segundo grande desafio penso que é o desafio de conhecermos melhor a realidade sobre a qual estamos
a atuar. Se calhar, isto até devia ter sido o primeiro desafio a identificar. Para melhorar este conhecimento,
estamos a trabalhar, na ACT, num novo sistema de informação, que penso que nos permitirá uma recolha de
informação, não só resultante da nossa atividade, mas também resultante de outros subsistemas da
Administração Pública, que nos permitirá seguramente analisar de uma forma mais rigorosa e definir indicadores
de risco e setores de intervenção mais finos, para planearmos e tornarmos mais eficazes as nossas
intervenções.
Finalmente, penso que devemos prosseguir e intensificar a atividade inspetiva em setores onde se verifica a
necessidade de intensificação de mão-de-obra, por força de sazonalidade das atividades desenvolvidas em
determinados setores que nós temos identificados, assim como é importante prosseguirmos o trabalho que
temos vindo a desenvolver de combate ao trabalho não declarado e à precariedade, que são fenómenos também
muito importantes (…)”.
Eulália Alexandre, Subdiretora-Geral da Direção-Geral da Educação (DGE)
Eulália Alexandre, Subdiretora-Geral da Direção-Geral da Educação, interveio para sistematizar as cinco
áreas que considera relevantes no campo da educação para as temáticas em apreço.
Começou por salientar dois diplomas legais que considera fundamentais para que cada escola, com a sua
autonomia, possa encontrar soluções adaptadas aos seus contextos “Temos dois Decretos-Lei importantes, que
são o Decreto-Lei n.º 54 e o Decreto-Lei n.º 55. Isto para dizer que o Decreto-Lei n.º 54 prevê e promove uma
escola inclusiva. É uma escola de qualidade para todos. Nós passámos de uma perspetiva em que deixamos
de ter alunos com necessidades educativas especiais e passámos a ter alunos. Estes alunos, depois, podem
ter diferentes tipos de medidas e essas medidas podem ser universais — quase todos precisam, em algum
momento, de algum apoio, de alguma ajuda —, podem ser seletivas, podem ser adicionais, dependendo daquilo
que aquele aluno precisa e de acordo com o caso.
Este Decreto-Lei cruza com o Decreto-Lei n.º 55, que é o Decreto-Lei da autonomia e flexibilidade curricular
que nos dá e, para aqui, para este nosso objetivo, a grande diferença é que nós deixamos de ter uma escola só,
para ter cada escola. Cada escola ganha a sua autonomia para trabalhar no seu contexto, e só trabalhando no
seu contexto é que a escola se apercebe da vulnerabilidade do público que a frequenta, que tipo de público é
que tem, e de que medidas precisa de desenvolver.
Estamos a apoiar as escolas que constroem o seu projeto, e estas medidas têm um referencial, que é o perfil
dos alunos à saída da escolaridade obrigatória. Os alunos, ao fim dos 12 anos, têm neste perfil aquilo que nós
queremos que atinjam. É um perfil de base humanista. No centro, tem os princípios, tem os valores e esses
valores são valores como a responsabilidade e a integridade, a liberdade, são valores de todos nós enquanto
cidadãos e, depois, têm áreas de competência que os alunos têm de atingir”.
Dissecou, de seguida, a importância de cruzar as várias ações desenvolvidas e a desenvolver com a
Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania “Em conjunto com este perfil, foi também aprovada uma
Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania, e esta estratégia, feita em colaboração com a Secretaria de
Estado para a Cidadania e Igualdade, tem 17 domínios. Os domínios obrigatórios têm muito a ver com as
questões dos direitos humanos, da igualdade de género, da interculturalidade e, portanto, acrescentou-se no
currículo a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento dos 2.º e 3.º ciclos. No 1.º ciclo e no Secundário é
transversal, e nos 2.º e 3.º ciclos é uma disciplina com tempo próprio.
Cada escola tem de construir a sua estratégia de cidadania, e é uma estratégia que se constrói numa
cidadania «mãos na massa» e uma cidadania de todos. Tem de ter parcerias com entidades em torno do
contexto da escola, tem de envolver os pais, tem de envolver organizações não governamentais e tem de
envolver as entidades que as escolas elegerem como fundamentais”.
Abordou a questão do currículo e a construção nele de conteúdos “A Direção-Geral da Educação é, por
excelência, a casa do currículo. Somos responsáveis pelo currículo do pré-escolar ao 12.º ano. Podia dizer-vos
que, desde o pré-escolar, há uma perspetiva de inclusão de todas as crianças (…).
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Na disciplina de História, é sempre falada a questão da submissão violenta de outros povos, é falada a
questão da escravatura, é falada a questão da colonização, é falada a questão do tráfico de seres humanos,
portanto, todos esses conceitos são trabalhados a partir do 1.º ciclo e começa-se a trabalhar com os conceitos,
rigorosamente assim, a partir do 5.º ano de escolaridade.
Depois, nas línguas, numa perspetiva mais intercultural e multicultural; na Filosofia; no Português, enfim,
tudo aquilo que entenderem, depois, que vos possa enriquecer e ajudar para o vosso relatório, mas sempre
nesta perspetiva dos direitos humanos e da diversidade, como forma de aprendizagem para todos.
Ofertas curriculares, temos o que todos conhecemos, mas temos também — se calhar, dá-nos jeito, aqui
neste âmbito — a questão do Ensino para a Itinerância no 1.º ciclo e o Ensino à Distância nos 2.º e 3.º ciclos e
no secundário, porque são ofertas que permitem, por exemplo, dar resposta a famílias nómadas, nomeadamente
com itinerância de cariz cultural e outras crianças que, de outra forma, não poderiam estar na escola e que,
desta forma, têm o seu tutor e estão acompanhadas
Desde a primeira lei, de 2006, que existe esta preocupação com a não discriminação e com a diversidade
social e cultural para os alunos a quem se destinam os manuais, a pluralidade. Voltou-se agora, no Despacho
n.º 4947/2019, de 16 de maio de 2019, a reiterar a necessidade de critérios que promovam a educação para a
cidadania, não apresentando discriminações de carácter cultural, étnico, racial, religioso e sexual, combatendo
estereótipos, valorizando a diversidade e a interculturalidade, assim como o princípio da igualdade de género,
não podendo os manuais constituírem-se como veículo de propaganda ideológica, política ou religiosa (…)”.
Falou, depois, das iniciativas e medidas tomadas e a tomar: “Nas medidas ou iniciativas, destacava aqui o
estudo que foi feito do perfil escolar da comunidade cigana. Conseguiu-se fazer um questionário, um inquérito,
que foi depois trabalhado pela Direção-Geral das Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC), que nos
caracterizou e nos trouxe as preocupações que nós conhecíamos já existirem, e que viemos, depois, a confirmá-
las nos dados – 65% das crianças e jovens ciganos que frequentavam a escola pública, tinham o escalão mais
elevado de ação social escolar, e, o abandono escolar — isto só para vos dar dois dados — nas raparigas era
significativamente maior do que nos rapazes. O perfil está disponível no site da DGEEC, conhecê-lo-ão de
certeza, não trago nenhuma novidade. Mas também tínhamos um aspeto positivo: havia já mais crianças ciganas
a frequentar a educação pré-escolar e, como sabemos, uma educação pré-escolar de qualidade é um preditor
de sucesso para as nossas crianças e jovens.
Não é só garantir o acesso, porque o acesso está garantido, o problema é garantir a frequência e a
continuidade e esse é que é o grande desafio. Acesso, temos todos. Depois, continuar e ter condições é que se
torna mais difícil. Então, foi criado este guião para promover a inclusão e o sucesso educativo das comunidades
ciganas, que foi apresentado em Esgueira, em abril de 2019”.
Concluiu com a aposta na formação dos profissionais, “Temos apostado muito na formação de professores,
quer através de formação online, recorrendo aos Massive Open Online Courses (MOOC), com cerca de 5000
professores a frequentar este tipo de formação, quer através de formação presencial no âmbito da estratégia de
educação para a cidadania, com 936 professores formados este ano, e outros; bem como a construção de
referências com parceiros da sociedade civil, com organizações não governamentais e com universidades, que
os professores possam também desenvolver - porque é bom que estejamos todos na mesma página -, utilizando
as mesmas definições e os mesmos conceitos, para que trabalhemos de uma forma que seja produtiva para
todos; e, temos muitas iniciativas no âmbito da prevenção e combate ao discurso do ódio, salientando o Desafios
– SeguraNet, que este ano conta com 40 000 participantes no concurso de combate ao discurso do ódio”.
Florbela Valente, Subdiretora-Geral da Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares (DGEstE)
Florbela Valente, Subdiretora-Geral da Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares, começou por explicar
a missão da DGEstE, passando esta por garantir a concretização regional das medidas de política educativa,
acompanhando, orientando e coordenando a sua implementação. “Isto significa o quê? Isto significa que, na
prática, nós temos um trabalho de proximidade com as escolas, temos um trabalho de conhecimento efetivo do
terreno, daquela que é a realidade, em articulação com aquilo que é a conceção em termos das medidas
educativas e, depois, do acompanhamento efetivo da sua implementação”.
Definiu duas grandes áreas de atuação da DGEstE: “Assim sendo, temos duas grandes áreas: por um lado,
o acompanhamento da implementação das diretivas legais, no fundo, das medidas de política educativa; por
outro, a partilha e a colaboração com as escolas na procura de respostas locais contextualizadas, que melhor
deem resposta àquilo que são realmente os casos e as situações com que as escolas se defrontam diariamente”.
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Referiu-se, depois, à questão das matrículas nos estabelecimentos de ensino: “Uma prende-se com as
matrículas e com a publicação do Despacho Normativo n.º 6 de 2018, de 12 de abril, e a alteração que este
despacho veio introduzir tendo em vista melhorar o sistema ao nível da promoção da igualdade de oportunidades
e ao nível da superação de desigualdades económicas, sociais e culturais - refiro-me à introdução da nova
prioridade dirigida aos alunos beneficiários da ação social escolar que se situam no âmbito da área de residência
ou da área do trabalho dos encarregados de educação.
A este nível, gostava de destacar uma indicação que foi dada às escolas e que nós temos acompanhado,
que é o caso dos alunos indocumentados e da possibilidade de eles serem matriculados sem terem quaisquer
documentos, sem a apresentação de quaisquer documentos. Naturalmente, não poderia ser de outra forma.
Um outro aspeto que gostaria de destacar tem a ver com a organização dos grupos e das turmas, nas
escolas. Até uma determinada altura, era possível as escolas criarem grupos homogéneos. O que é que isto
significa? Significa agrupar, no mesmo espaço e no mesmo contexto educativo, crianças e jovens que têm
problemas idênticos e que, portanto, ficarão nesse grupo e confinados a esse grupo e a esse tipo de dificuldades
e consequentes aprendizagens.
Ora bem, isso agora não acontece, não é possível fazê-lo. Porquê? Porque isso não é um fator de inclusão;
não é, de todo, um fator de integração; pelo contrário, potencia a desmotivação dos alunos, e de alguma forma,
diria aliás, vincadamente, não potencia de todo ou de alguma forma o trabalho entre pares, e, destaca aquilo
que contraria um princípio, que é o de que todos os alunos têm potencialidades e dificuldades e, portanto, por
que razão, então, não agrupá-los pelas potencialidades que têm. Esse é um dos aspetos que destacava aqui”.
Destacou, também, os aspetos relacionados com a constituição de turmas e a integração de alunos
estrangeiros, referindo que “Um aspeto de que também gostaria de vos dar nota tem a ver com a constituição
de turmas e a integração de alunos estrangeiros. No presente ano letivo, chegaram ao sistema educativo, alunos
estrangeiros de variados países de origem. Por norma, estes casos chegam-nos através do atendimento, ou,
são-nos apresentados pelo ACM, e aquilo que fazemos é, em função do local onde o aluno vai residir no país,
identificamos a escola e a turma onde pode ser integrado, e trabalhamos com a escola no sentido dessa
integração.
Dou-vos nota de alguns números e, se assim o entenderem, poderei depois dar outros números. A título
exemplificativo, na região de Lisboa e Vale do Tejo, tivemos até 30 de maio, através dos nossos serviços de
atendimento e através de casos que nos foram reportados pelo Alto Comissariado para as Migrações, 1439
alunos estrangeiros que integrámos em turmas. Também a título exemplificativo, posso dizer-vos que os
concelhos de Lisboa, de Loures, de Odivelas, Sintra e Setúbal destacam-se, claramente, pelo número de alunos
estrangeiros que acolheram neste processo”.
Foi também referida, a propósito das questões da integração, a personalização das ementas: “Um outro
aspeto um bocadinho diverso que também vos trago aqui diz respeito às ementas. Porquê? Parece,
eventualmente, um bocadinho fora de contexto. A verdade é que as escolas puderam passar a ter nas suas
ementas opções vegetarianas, por exemplo, e, quanto a este aspeto, dou-vos nota de que, em 2017/2018 foram
servidas 228 465 refeições vegetarianas, tendo o número aumentado para 256 362 em 2018/2019”.
Referiu, ainda, outros aspetos importantes para a integração, como a ação social escolar e o ensino do
português para falantes de outras línguas. “Dar-vos aqui também nota, muito rapidamente, da situação em
termos de ação social escolar. Há bocadinho, eu referi-me à questão dos alunos indocumentados e à
possibilidade de eles poderem fazer a sua matrícula sem documentos, e eles têm, também, naturalmente,
acesso à ação social escolar sem qualquer condicionante, sem qualquer constrangimento, isto enquanto garante
da prorrogativa de igualdade de direitos para todos os cidadãos e, obviamente, como fator de integração e de
promoção do respeito pelo outro e pela diferença.
Depois, um outro aspeto que também vos queria referir diz respeito ao português para falantes de outras
línguas. É uma oferta que nós temos no sistema educativo. Ela destina-se a indivíduos que têm dificuldade ao
nível da aprendizagem da língua portuguesa, mas tem sobretudo uma dimensão que me parece ser relevante e
de destacar, que é a de que, quando nós investimos na formação dos pais, estamos também a investir na
formação dos filhos, e, na perspetiva da valorização da escola, estamos a investir na formação integral dos
alunos e na sua participação na comunidade e no país. A participação a uma escala mais pequena, ao nível da
escola, assume aqui uma especial relevância. Portanto, eu gostava aqui de exatamente destacar esta oferta,
dando-vos, por exemplo, também em números, a indicação de que nós tivemos em 2017/2018, 187 grupos
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formados, e em 2018/2019, tivemos 243. São números com expressão a nível nacional, embora com especial
incidência no Algarve e na região de Lisboa e Vale do Tejo, mas com dispersão por variadíssimos concelhos.
Aliás, na região de Lisboa e Vale do Tejo temos formação em 25 concelhos; no Algarve em 8 e no Norte também
com uma expressão significativa, o que significa que estamos a chegar a um número muito considerável de
alunos, por via da família também.
Concluiu a sua intervenção com uma alusão à Agenda Europeia para as Migrações: “Por último, referir a
Agenda Europeia para as Migrações, e referir porquê? Porque, em 2016, ela foi criada e implementada, e foram
desenvolvidas algumas medidas, em Portugal, para alunos detentores do estatuto de refugiados e de
requerentes de asilo, como a criação do guia de acolhimento para a educação pré-escolar e ensino básico e
ensino secundário contendo o elenco de medidas a implementar no sistema educativo. Eu não vou aqui entrar
mais em detalhe, apenas apontar como medidas educativas extraordinárias: a concessão de equivalências
através de um processo mais célere; o ensino do português língua não materna no apoio à aprendizagem da
língua portuguesa; e a ação social escolar no acesso a todas as medidas e todas as ações que também se
aplicam aos restantes alunos”.
Tenente-General Rui Manuel Carlos Clero, 2.º Comandante-Geral da Guarda Nacional Republicana
O Tenente-General Rui Manuel Carlos Clero, 2.º Comandante-Geral da Guarda Nacional Republicana
começou por sistematizar os domínios de intervenção da GNR nestas matérias: “(…) A da sensibilização e
prevenção; uma segunda de registo de ocorrências, queixas e denúncias; e uma terceira de controlo da atuação
dos nossos próprios militares”, acrescentando que, “(…) A Guarda tem demonstrado o seu firme compromisso
na implementação da nova Estratégia Nacional para a Igualdade e Não-Discriminação”, salientando que, “A este
propósito, destaco que, hoje mesmo, terminou o primeiro curso de especialização em direitos humanos
ministrado em Portugal às forças e serviços de segurança. Foram formados 30 dos 360 militares da Estrutura
de Prevenção Criminal e Policiamento Comunitário”.
Explorou, de forma mais detalhada, a preocupação de formar os guardas nestes temas: “Saliento a especial
atenção que tem sido dada no reforço da componente formativa, quer no âmbito da formação inicial do nosso
pessoal, quer na formação contínua, na formação de promoção a posto superior e na formação de
especialização em áreas mais técnicas. Estas ações de formação são ministradas a todos os elementos da
Guarda, com particular incidência na defesa e garantia dos direitos, e no combate a situações de discriminação,
clarificando, inequivocamente, os limites da atuação, o regime disciplinar e as consequências punitivas de uma
errada atuação policial”.
Continuou, realçando que “O novo estatuto da vítima foi vertido para normativos internos, visando difundir
instruções internas orientadoras relativamente à proteção e promoção dos direitos das vítimas de criminalidade”.
Falou dos vários projetos nos quais a guarda está envolvida “Em consonância com o regime normativo
vigente, realço o Projeto de Investigação e de Apoio a Vítimas Específicas, tendo como universo da intervenção
prioritária as vítimas especialmente vulneráveis. Com este projeto, a Guarda Nacional Republicana reconhece
os crimes cometidos contra as mulheres, as crianças, os idosos, as pessoas com deficiências, as pessoas
LGBTI, e outras vítimas especialmente vulneráveis como um dos mais delicados desafios que se colocam, hoje
em dia, à investigação criminal, no âmbito das suas atribuições legalmente fixadas”.
“Em 31 de dezembro do ano passado, a Guarda Nacional Republicana contava com um total de 534 militares
afetos ao Projeto de Investigação e Apoio a Vítimas Específicas. Destes efetivos, 437 são homens e 97 são
mulheres, sendo que 98 destes efetivos estão afetos aos Núcleos de Investigação e Apoio a Vítimas Específicas,
e 436 às seções de inquérito nos postos territoriais”.
“Destaco, ainda, o reforço à componente preventiva da nossa atuação, em cumprimento dos objetivos gerais
de política criminal para o biénio de 2017 a 2019, com especial incidência nos crimes praticados contra crianças
e jovens, idosos e outras pessoas vulneráveis, na criminalidade em ambiente escolar e nos crimes motivados
por discriminação racial, religiosa e sexual, intensificando o policiamento de proximidade através de programas
com sucesso reconhecido, como é o caso do Programa Escola Segura, o Programa de Apoio às Pessoas com
Deficiência, o Programa de Apoio ao Migrante e o Programa Idoso em Segurança, onde se inclui a Operação
Censos Sénior que tem permitido identificar em todo o país os idosos em potencial risco de serem vítimas de
crime”
Finalizou, destacando o papel da Guarda na nova geração de Contratos Locais de Segurança: “Por último,
merece também especial destaque a participação da Guarda numa interação entre a administração central,
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autarquias locais, e sociedade civil, no desenvolvimento da nova geração de contratos locais de segurança, que
visam a redução das vulnerabilidades sociais, a prevenção da delinquência juvenil, a eliminação dos fatores
urbanísticos que potenciam o crime e a educação para a cidadania”.
Superintendente-Chefe Luís Manuel Peça Farinha, Diretor Nacional da Polícia de Segurança
Pública
O Superintendente-Chefe Luís Manuel Peça Farinha, Diretor Nacional da Polícia de Segurança Pública
começou por retratar que “Cabe à PSP garantir a segurança da larga maioria — cerca de 95% — das áreas
urbanas com maior incidência de alguns vetores de criminalidade e de sentimento de insegurança em território
nacional, a segurança dos principais grandes eventos de natureza política, cultural ou desportiva que ocorrem
no país, sendo que, simultaneamente, cerca de 73% dos crimes graves e violentos e cerca de 51% da
criminalidade geral registada em Portugal ocorrem na área de responsabilidade desta Polícia”.
Abordou que, por força da abrangência de intervenção da PSP, estão os seus profissionais sujeitos a um
enorme volume de interações, tendo aumentado o número de agressões a estes profissionais “ Em resultado
também do contexto da área de intervenção da Polícia de Segurança Pública, verifica-se uma tendência de
subida do número de casos de agressões cometidas contra polícias, entre 2012 e 2018, num total de 4242
casos, isto de acordo com os inquéritos de vitimação de preenchimento obrigatório (…)”.
“Com efeito, o volume de interações dos polícias da PSP, no dia-a-dia, ultrapassa anualmente e em média
os 2,5 milhões. A PSP é, assim, uma instituição sujeita a um elevado escrutínio do cidadão comum, da sociedade
e de inúmeras instituições com as quais interage, escrutínio com o qual convive de forma confortável e que lhe
acentua um carácter de polícia democrática e de proximidade que pretende ser”.
Mostrou os números de queixas apresentadas contra estes profissionais, os quais, no seu entender,
evidenciam que a ação policial tem refletido sobre a qualidade do seu serviço “Deste volume de interações, em
2018, as queixas contra atuações policiais e as reclamações em Livro de Reclamações representaram 0,049%
do total de interações, resultados que nos parece que refletem claramente a real preocupação com a qualidade
do serviço e da ação policial no respeito pelos princípios legais, deontológicos e éticos que devem nortear a
cultura dos polícias”.
Prosseguiu, mostrando os números sobre processos disciplinares provocados por situações de racismo,
xenofobia e discriminação étnico-racial “No contexto do racismo, xenofobia e discriminação étnico-racial,
permitam-me destacar e em concreto que, entre 2011 e 2019, portanto, em oito anos, foram instaurados 12
processos disciplinares e 6 processos de averiguações. Destes processos, 9 processos disciplinares foram
arquivados sem qualquer pena e 3 processos de averiguações, mantendo-se a instruções de 3 processos
disciplinares e 3 processos de averiguações. Eu realço aqui que estes processos se referem a situações
concretamente identificadas com esta natureza.
Mais uma vez, e apesar de todos os processos concluídos terem sido arquivados sem qualquer aplicação de
pena, ou se consideramos o volume de interações anuais, verifica-se que, em média, o número de processos
disciplinares e de averiguações instaurados pelos motivos indicados, no ano, representam um valor infinitamente
reduzido do total dessas interações, facto que nos parece que ilustra claramente de que a forma geral de atuação
da instituição policial e dos seus profissionais se pauta pelo cumprimento das regras da não discriminação”.
Concluiu que esses bons resultados advieram de um conjunto de medidas tomadas pela PSP “Saliento que
a Escola Superior de Polícia à data, hoje Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna, foi pioneira,
entre os estabelecimentos de ensino superior a consagrar uma disciplina dedicada aos direitos fundamentais e
direitos do homem”.
“A segunda medida prende-se com os limites da atuação policial, de modo a garantir uma permanente
atuação dos procedimentos policiais com o respeito pela integridade física de todo o indivíduo. Neste sentido, o
uso da força por elementos da PSP foi regulamentado por uma norma interna datada de 1 de junho de 2004,
em concordância com o Decreto-Lei n.º 457/99, de 5 de novembro” e que “Complementarmente, o uso da força
por elementos policiais é ainda objeto de rigorosa avaliação teórico-prática bianual e de formação anual.
Continuou defendendo que a natureza cívica da PSP contribuiu para isso” Falo do modelo integrado de
policiamento de proximidade direcionado para públicos-alvo específicos, como sejam as crianças, os idosos, as
vítimas de crimes violentos e de violência doméstica e as pessoas portadoras de deficiência. Neste contexto, a
PSP tem sido também pioneira no estabelecimento de parcerias e de projetos relevantes no contexto da sua
aproximação à sociedade e do respeito pela especificidades identitárias de cada comunidade, sendo disto
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exemplo o protocolo firmado em 1 de julho de 2016 entre a PSP e o Alto-Comissariado para as Migrações, que
criou o Programa Juntos por Todos, tendo como objetivo o de contribuir para a prevenção da conflitualidade em
comunidades multiculturais que possam apresentar algumas vulnerabilidades, e também para a segurança de
todos os cidadãos, independentemente da sua nacionalidade ou pertença cultural.
No âmbito do protocolo em apreço, é competência do ACM ministrar formação aos elementos da PSP sobre
o fenómeno migratório em Portugal, os grupos nacionais e culturais a residir em território nacional, a temática
da diversidade e do diálogo intercultural, estereótipos, discriminação e formas de lidar com a diferença. Do
mesmo modo, é competência da PSP, ministrar formação aos profissionais do ACM sobre o enquadramento
legal que gere a atuação policial. Entre 2017 e 2018, foram formados pelo ACM 1003 polícias da PSP, num total
de 7021 horas de formação divididas por 36 ações”.
Abordou as diversas formas de intervenção da PSP no desenvolvimento da sua atuação junto das diferentes
comunidades minoritárias “(…) a PSP desenvolve a sua atuação com as diferentes comunidades minoritárias
em dois vetores principais: no âmbito nacional, tomando parte ativa na Estratégia Nacional para a Integração
das Comunidades Cigana; no Grupo Consultivo para a Integração das Comunidades Ciganas; no Conselho para
as Migrações participando na definição do Plano Estratégico para as Migrações e outros planos nacionais
orientados para grupos culturais específicos; e ainda na articulação com o Programa Escolhas promovido pelo
ACM, com o qual temos uma colaboração estreita, no âmbito local, em consequência do trabalho em rede com
as diversas instituições de cariz social especializadas na ação junto de comunidades minoritárias, no contexto
do qual materializou diversos protocolos nos últimos anos”
Por fim, concluiu a sua intervenção dizendo que “Não escamoteamos que, pontualmente, possam existir
comportamentos desviantes e não desejáveis da prática instituída do respeito e não discriminação, o qual não
aceitamos e sobre o qual sempre atuaremos como sempre atuámos, mas reiteramos que a PSP é uma
instituição cujos polícias pugnam por uma atuação sem qualquer discriminação e no respeito pelos direitos e
igualdade de todos”.
V) – Audição a Membros do Governo
Após a audição aos e às dirigentes da Administração Pública de vários setores, foram ouvidos, em audição,
a Secretária de Estado Adjunta e da Administração Interna, o Secretário de Estado do Emprego e Formação
Profissional e o Secretário de Estado da Educação. As Ministras da Presidência e da Modernização
Administrativa, e da Justiça, assim como o Secretário de Estado das Autarquias Locais, foram oradores no
seminário final do relatório. Dos convites dirigidos aos membros do Governo, apenas a Secretária de Estado da
Habitação não participou por motivos de agenda já assumidos.
Esta audição no final do processo permitiu compreender a visão do Governo e a integração do combate à
discriminação étnico-racial nestas três áreas setoriais.
Secretária de Estado Adjunta e da Administração Interna (SEAAI), Isabel Oneto
A SEAAI Isabel Oneto iniciou a audição dizendo que iria dividir a sua intervenção “em duas realidades
distintas. Uma relativamente à questão que se prende com as forças e serviços de segurança, portanto aquilo
que é a relação das forças e serviços de segurança no contexto da discriminação, racismo e xenofobia. A outra,
naquilo que é o trabalho que o MAI tem vindo a desenvolver, sempre que estas matérias acabam por resvalar
para questões de segurança ou colocadas em matérias de segurança interna”.
Em termos de formação das forças de segurança em Direitos Humanos diz-nos a SEAAI “(…) Como
sabemos, o curso, ao nível das forças de segurança, existe, quer a nível do curso de oficiais, quer ao nível da
formação na Escola Prática da PSP. O primeiro tem cerca de 1000 horas de formação em direitos humanos, o
segundo tem cerca de 300 horas. Além da renovação ao longo do período de exercício de funções, em que se
procura também fazer vários cursos, não só ao nível da violência doméstica, como também formação específica
para determinadas áreas das forças de segurança.”
Quanto aos mecanismos estabelecidos para situações de abuso policial, Isabel Oneto refere “sempre que há
uma situação por força de abuso policial, além do alarme próprio da população, obviamente, dos órgãos de
comunicação social, das redes sociais que nos alertam para determinadas situações, há três campainhas,
normalmente, que soam imediatamente: uma é a da própria IGAI, outra é da própria força de segurança e outra
é aquela que decorre da competência do Sr. Ministro de mandar imediatamente instaurar um processo de
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averiguações para saber exatamente se houve ou não, em determinadas situações, abusos por parte das forças
de segurança. Há, naturalmente, um mecanismo do próprio Ministério Público, que também, em regra, acaba
por agir nos termos da sua competência própria”.
Diz ainda sobre este tema, referindo como positivo, o número baixo de queixas contra as forças de segurança
na CICDR: “Como todos nós sabemos, quanto aos casos que são conhecidos de excesso de violência e abuso
de poder por parta das forças de segurança, nós, tudo fazemos para que sejam imediatamente averiguados e
apurados. Mas também nos congratulamos com o facto de saber que, das queixas que tem havido junto da
própria Comissão para a Igualdade Contra a Discriminação Racial, não chega a 6% o número das queixas que
têm a ver com abusos das forças de segurança”.
A SEAAI identifica a necessidade de ter pessoas das minorias étnico-raciais a integrar as forças policiais em
Portugal, “Aquilo que pessoalmente noto nas forças e serviços de segurança é a necessidade de termos, no seu
efetivo, pessoas oriundas de minorias que pudessem ser, eles próprios, interlocutores e intermediários junto
dessas minorias. Temos vindo a estudar o fenómeno, por exemplo, da Polícia de Toronto, onde existem várias
comunidades, ou seja, o próprio distrito é formado por várias comunidades. É conhecida pela sua diversidade
cultural, ainda por cima tem o bairro dos italianos, dos portugueses, dos chineses. Tudo aquilo está dividido
dessa maneira. A verdade é que a Polícia de Toronto tem polícias que são oriundos dessas comunidades e que
são interlocutores privilegiados dentro dessas comunidades”.
Identifica as dificuldades neste processo: “A dificuldade está em saber como fazer, - na medida em que, não
creio que seja possível direcionar a abertura de concursos próprios a essas comunidades -, seria interessante
saber como trabalhar, para que possamos ter, no seio das forças de segurança, pessoas oriundas das minorias
que possam também elas ser agentes que possam exercer a sua profissão normalmente, mas que possam
também saber como lidar com determinadas situações”.
Outra dimensão que Isabel Oneto introduz é a dimensão da segurança e do território, referindo que “temos
muitas situações que chegam ao Ministério da Administração Interna, em regra, por autarquias que consideram
o fenómeno que têm no seu município, decorrente de guetização de várias comunidades, um problema de
segurança decorrente da existência de uma comunidade que não está socialmente inserida. O nosso trabalho,
aí, é procurar trabalhar esses territórios. Não na perspetiva policial, naturalmente, porque na nossa perspetiva
só agravaria o problema, mas numa perspetiva de diagnóstico social e no sentido de verificar as vulnerabilidades
sociais, procurar analisar os próprios fatores criminógenos urbanísticos que potenciam determinado tipo de
situações. Nesse âmbito, em algumas zonas, temos tido uma excelente colaboração com as autarquias, no
âmbito dos Contratos Locais de Segurança (CLS)”.
No sentido de intervir no território, Isabel Oneto fala-nos de uma medida de política pública – os Contratos
Locais de Segurança - e refere “Os Contratos Locais de Segurança trabalham em quatro vertentes.
Nomeadamente, a prevenção da delinquência juvenil, a eliminação dos fatores criminógenos urbanísticos, a
redução das vulnerabilidades sociais e a educação para a cidadania e para a igualdade. Isto permite trabalhar
esses territórios, não só a tentar reduzir as vulnerabilidades sociais, como fazer a própria integração do bairro
na malha urbana em que ele se encontra, para precisamente deixar de haver uma guetização associada a
fenómenos criminosos”.
“Trabalhamos, nessas zonas, com várias atividades associadas. A começar, no imediato, em regra, por
termos uma análise das vulnerabilidades do próprio território, em termos urbanísticos. Essa, normalmente, é a
primeira perceção de que a população sente que as coisas estão a mudar. Tem a ver com essa redução dos
fatores criminógenos urbanísticos. Isto significa que, normalmente, esses territórios tendem a ser territórios com
carros abandonados, com uma recolha de lixo deficitária, com ausência de regras de estacionamento, fraca
iluminação, caixas de correio não seguras, portas muitas vezes que não têm fechadura, arbustos que retiram a
visibilidade e criam zonas para pequenos consumos dos jovens”.
Acrescenta a Secretária de Estado a necessidade de diagnóstico social do território: “Há uma vertente
também de redução de vulnerabilidades sociais e, por isso, não em termos nominais obviamente, mas em termos
estatísticos, procuramos saber qual é a caracterização daquela população, em termos de número de habitantes,
número de crianças, procurar ver as taxas de absentismo escolar ali existente, para criar programas de apoio
àquelas crianças, para que tenham ocupação de tempos livres associados à educação para a cidadania”.
Isabel Oneto dá vários exemplos de intervenção no âmbito dos Contratos Locais de Segurança,
nomeadamente, a intervenção no Algarve, com o SEF vai à escola, com o qual legalizaram 280 crianças que
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estavam irregulares; trabalham com a DGEstE – Direção Geral dos Estabelecimentos Escolares, através da
mostra de filmes temáticos sobre cidadania para gerar debate entre as crianças e jovens, e contrataram
mediadores socioculturais para escolas integradas nos Contratos Locais de Segurança em Lisboa, Loulé, Vila
Franca de Xira e Vila Nova de Gaia.
A SEAAI dá ainda como exemplo: “Temos muitas situações, nestes Contratos Locais de Segurança, em que
há uma intensa atividade entre as próprias crianças e jovens e as forças de segurança. Há jovens, em Vila Nova
de Gaia, que estão a aprender a tocar instrumentos musicais com a banda da PSP. Temos as crianças a ajudar
as forças de segurança a fazer operações de segurança rodoviária. Na nossa perspetiva, o importante é que
elas vistam uma farda e vejam o respeito que o condutor tem pela criança e pelo facto de ter uma farda”.
Quanto há necessidade de mais polícia de proximidade a SEAAI refere: “Sobre o policiamento de
proximidade, é feito muito. Hoje em dia, aquilo que se passa nas forças de segurança relativamente ao
policiamento de proximidade e, acima de tudo, é mais visível em pequenas comunidades ou em pequenos
centros urbanos, onde essa proximidade é muito intensa, quer ao nível dos autarcas, quer ao nível das
associações culturais, onde há — como eu há pouco referi — jogos de futebol entre bairros e polícias. Enfim,
entre determinadas urbanizações, entre jovens, há uma interação muito grande, acima de tudo, naquelas
localidades onde o conhecimento da zona já é de tal forma que já há uma interação muito grande. Nós temos
vindo a fazer reuniões com todos os Srs. Presidentes de Câmara e o contato com as forças de segurança, a
identificação dos problemas são de uma proximidade muito grande. Portanto, além do policiamento específico,
do Comércio Seguro, do Idoso em Segurança e da Escola Segura, há um outro tipo de atividade que a própria
PSP e GNR fomentam, a ponto de haver aulas de música conjuntas em determinadas instituições, muito também
com o apoio das próprias bandas da PSP e da GNR a jovens, para que precisamente haja essa relação entre
eles”.
No final Isabel Oneto conclui com a seguinte reflexão: “Relativamente à questão do racismo, da xenofobia e
da violência no seio das forças de segurança. Eu penso que nós temos que não escamotear o problema, mas
quando se discute tem de se discutir com serenidade. É verdade, como disse a Sr.ª Deputada Sandra Cunha,
que nós temos de olhar para estas situações no seio das forças de segurança como na demais Administração
Pública. Só que, na Administração Pública, o direito que é afetado por essa situação tem várias dimensões.
Além da discriminação em si e da situação fática em si, há a questão do uso da violência, que é muito mais
complexo e há a questão da autoridade. Portanto, tudo isto leva a que o assunto seja também discutido com
serenidade, precisamente porquê? Porque nós não podemos escamotear aquilo que há, nem podemos sequer
permitir que os indícios ou as situações que são detetadas nas forças de segurança não tenham imediatamente
um processo de averiguações e que haja uma reação dura relativamente a essas situações, até porque são
situações que comportam precisamente uma dificuldade de compatibilização com o exercício da profissão. Isso
pode não acontecer noutras situações da Administração Pública. Portanto, a resposta tem de ser, de facto,
imediata, em termos de intolerância total relativamente a estas situações”.
“Outra coisa é o impacto que determinadas ocorrências têm no seio da comunidade, o alarme social que elas
criam. O que já é por si muito positivo, no nosso entender, haver a perceção de que uma situação destas é
totalmente intolerável pela sociedade e, portanto, tem um impacto forte, o que não significa, depois, que essas
situações representem uma parte significativa das forças de segurança. Se nós compararmos o número de
intervenções que diariamente as forças de segurança fazem e formos ver o número de situações que dão origem
a queixa, vemos que elas são perfeitamente residuais. Têm é, pela intolerância que já se instalou entre nós, um
impacto que, de facto, nos leva muitas vezes a ter uma perceção errada e que se confunde, às vezes, em certos
discursos, com uma cultura organizacional, ou seja, uma cultura da própria organização. É aí que nós devemos
ter muito cuidado, porque não é uma cultura da organização. Devemos saber separar essas situações”.
“A Direção Nacional da PSP relativamente, por exemplo, a comentários racistas e de outro género no
Facebook de vários agentes faz a investigação, para saber se de facto aquela situação corresponde a um agente
da PSP, ou se é alguém que se faz passar pela PSP para fazer os referidos comentários. Agora, que os casos
que acontecem são lamentáveis, são, mas também revelam que existe uma maior consciência social
relativamente à intolerância a essas situações e também temos que saber dar valor a isso, porque cada vez que
acontece uma situação há, efetivamente, alarme social relativamente a essas situações. Portanto, não é
procurar escamotear a situação, é procurar que ela não atinja a organização e que permita precisamente
continuar a fazer o trabalho de formação, de investigação”.
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“Portanto, tudo isto tem de ser visto, investigado, para sabermos exatamente o que é que estamos a tratar,
precisamente pela delicadeza que pode ser um excesso para um lado, ou um excesso para outro. Nós não
podemos censurar, sem saber se estamos a censurar aquilo que efetivamente corresponde à verdade, ou se é
uma situação criada para levar precisamente a este debate de que quem não condena é contra ou é a favor, e
criar aqui um diálogo de os bons e os maus, como se isso fosse uma questão de, ou se está a favor da polícia,
ou se está contra a polícia”.
Secretário de Estado da Educação, João Costa
O SEE inicia a sua audição afirmando que há problemas de segregação e xenofobia na educação que devem
ser reconhecidos e enfrentados. “Em primeiro lugar no âmbito da educação, o fundamental é afirmarmos que há
problemas de segregação, que há problemas de xenofobia bastante localizados, por vezes, mas eles existem.
Se existem, não vale a pena não falarmos sobre eles. O que é melhor é termos um bom retrato do que acontece
no país, para depois podermos agir como for necessário”.
João Costa refere que a análise do insucesso escolar é realizada com base no contexto socioeconómico,
não fazendo ligação à origem étnico-racial, mas que muitas vezes há uma dupla discriminação, que não é
possível aferir: “Dizer que, quando falamos de problemas de racismo ou xenofobia em contexto educativo, aquilo
que nós vemos como grande preditor de insucesso escolar e de abandono em Portugal, é que não o
conseguimos ligar diretamente a uma determinada minoria étnica ou a alguma proveniência, mas sim à condição
socioeconómica. O que temos aqui, muitas vezes, são efeitos de dupla discriminação, porque como sabemos
que algumas destas comunidades ou grupos são também mais carenciados em termos socioeconómicos, depois
acontece aquilo que é óbvio. Por isso, algumas destas medidas são mais abrangentes, porque se dirigem aos
grupos socioeconómicos mais desfavorecidos”.
Para fazer face a esta situação diz o SEE: “No despacho das matrículas do ano passado, incluímos então a
priorização na escolha da escola aos alunos beneficiários da ação social escolar, aqui com um pressuposto que
foi tentar, ao máximo, diminuir a guetização também na rede escolar. Isso foi aliado também a instrumentos para
o combate às moradas falsas, que sabemos que por vezes têm alimentado que haja algumas escolas com
pessoas que tinham expediente para usar esse tipo de ilegalidade, digamos assim, fazerem escolhas de escolas
que se tornavam um bocadinho escolas de elite e outras, mais periféricas, eram escolas que acabavam por
agregar grupos, ou só de alunos ciganos, ou só de alunos afrodescendentes, fosse o que fosse, e este
instrumento veio regular um pouco estas práticas”.
Acrescenta que o ensino individual e doméstico estavam a ser utilizado para retirar meninas ciganas das
escolas: “Outro instrumento importante, publicado este ano, foi a Portaria do Ensino Individual e Doméstico. Nós
tínhamos reportado por escolas em particular que, em alguns grupos, em algumas minorias étnicas, o ensino
individual e doméstico estava a ser utilizado como um estratagema para o abandono escolar efetivo. Aquilo que
incluímos foi — apesar de alguma contestação que isto gerou por parte de outros grupos — a opção pelo ensino
individual e doméstico ter de ser validada pela direção da escola e ter que ser feito um protocolo de colaboração
entre a escola onde o aluno está matriculado e os que ficam responsáveis pelo ensino individual e doméstico”.
Junta ainda o reforço da ação social escolar e das escolas TEIP: “Temos tido — isto é amplamente conhecido
— um reforço da ação social escolar, com a inclusão de medidas como o apoio às visitas de estudo, a criação
de mais um escalão e a medida dos manuais escolares gratuitos. Todas elas são medidas de apoio que
permitem que alguns grupos, que tendencialmente até iam ficando para trás, porque não tinham os meios para
aceder aos instrumentos básicos de aprendizagem, os possam ter. (…) Estamos a fazer um trabalho com as
escolas que estão nos territórios educativos de intervenção prioritária, para beneficiarem de uma portaria que
foi publicada recentemente, que permite uma intervenção curricular mais aprofundada, para dar resposta a
necessidades específicas de alguns grupos, e também com reforço de meios, com mais professores e mais
técnicos que têm sido colocados nestas escolas”.
O Secretário de Estado acrescenta ainda, a este conjunto de medidas, o apoio tutorial específico e o
alargamento do conceito de inclusão, centrado não só na deficiência, mas em todos os tipos de exclusão.
Quanto à Educação para a Cidadania diz João Costa: “Em termos curriculares, em sentido estrito, criámos a
Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania, que inscreve, como temas obrigatórios a trabalhar na escola,
o multiculturalismo, a igualdade, os direitos humanos, nesta aposta de que os comportamentos de ódio derivam
sempre da ignorância sobre a diferença”.
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Numa referência aos estereótipos negativos dos manuais escolares relativamente aos povos africanos e a
abordagem histórica o SEE defende que o processo de ensino se deve centrar nos currículos e não nos manuais
escolares: “Sobre as questões que foram levantadas pelas duas Deputadas sobre manuais, eu queria apenas
dizer uma coisa muito simples. Quando nós olhamos para o currículo a partir do manual, estamos condenados
ao insucesso e ao fracasso. O que é que eu quero dizer com isto? Sim, há manuais bons, há manuais menos
bons, há manuais que representam melhor ou pior o que está no currículo, há circunstâncias de manuais com
uma linguagem menos adequada. Mas, sobretudo, o que nos interessa é “desmanualizar” isto, ou seja, junto do
Alto Comissariado para as Migrações, em parceria com a Direção-Geral da Educação, têm vindo a ser
produzidos muitos recursos educativos para trabalhar esta área, e para trabalhar — sobretudo através de
instrumentos que a flexibilidade curricular agora potencia — os temas da história em conjunto com os temas da
cidadania. Ou seja, nós temos o tema dos direitos humanos trabalhados também com a aula de história, para
perceber o que é que foi feito.
Estamos também num trabalho com uma equipa de investigadores, que está a preparar um livrinho, que
queremos que chegue às escolas, sobre os descobrimentos contados do outro lado, a partir dos alegados
descobertos, e penso que este vai ser um recurso bom de trabalho para as escolas”.
Quanto aos mediadores socioculturais nas escolas, segundo João Costa, há flexibilidade nas escolas TEIP,
mas não só, para os contratar, mas é uma opção da escola: “Sobre mediadores, o último despacho de
organização do ano letivo, faz uma discriminação positiva das escolas TEIP, com mais horas no cálculo do
crédito, e todas as escolas — sejam TEIP ou não — podem optar, quando recorrem à contratação, por contratar
professores ou técnicos, sejam psicólogos, mediadores, etc. Isto permite às escolas gerir este crédito com muito
mais liberdade, para poderem contratar as pessoas que fazem mais sentido para as necessidades da escola e,
nalguns casos, têm sido contratados mediadores”.
João Costa faz ainda uma referência ao fim do conceito de turmas homogéneas: “Isto é acompanhado de
alguma intervenção legislativa, em que, em particular, erradicámos da legislação um conceito que era muito
usado em outros tempos, que eram as turmas homogéneas, porque turmas de homogeneidade são, na verdade,
o principal instrumento para se poderem criar turmas só de alunos ciganos, ou turmas de nível, ou turmas seja
do que for, quando a evidência que temos é que os alunos progridem muito mais quando estão em conjunto uns
com os outros. Sobretudo os que têm mais dificuldades melhoram os seus resultados quando estão em conjunto
com outros que podem puxar por eles”.
O Secretário de Estado da Educação termina a audição dizendo: “Finalmente, e mesmo para terminar,
apresentámos recentemente um documento de referência para intervenção educativa junto de comunidades
ciganas, que é construído a partir de práticas de escolas, ou seja, contraria o fatalismo que, às vezes, parece
estar associado aos resultados escolares para algumas populações, para alguns alunos, etc., e mostra que é
possível, porque algumas escolas já fazem. Portanto, estamos muito apostados em passar a mensagem às
escolas de que a pobreza, a condição socioeconómica, o grupo a que os alunos pertencem não é um fatalismo
e não tem de predizer, à partida, um baixar de espectativas sobre estes alunos, porque algumas escolas já
conseguem fazer isto muito bem”.
Secretário de Estado do Emprego e Formação Profissional (SEEFP), Miguel Cabrita
Miguel Cabrita começa por referir os instrumentos legais no âmbito da não discriminação: “Eu talvez
começasse a minha intervenção por dizer que, obviamente, nós estamos vinculados a um conjunto de
instrumentos jurídicos, desde logo constitucionais, no âmbito da não discriminação e, portanto, a muitos fatores
de discriminação que estão previstos e vedados por preceito Constitucional. Este ordenamento constitucional,
no que diz respeito ao Código do Trabalho e à regulação do mercado de trabalho em Portugal, tem uma tradução
concreta nos seus artigos 24.º e 25.º, onde são tratadas as questões da não discriminação, não de maneira
paralela, mas, no fundo, a somar de modo específico a todos aqueles que são os direitos fundamentais
irrenunciáveis e as disposições aplicáveis a todos os trabalhadores. Isto já para não falar — também não falarei
nisto, como é evidente — de todas as convenções e instrumentos internacionais, nomeadamente, Diretivas
Europeias, Convenções da OIT (Organização Internacional de Trabalho), enfim, há um amplo aparelho jurídico
a que Portugal está vinculado voluntariamente. Em muitos casos, como é o caso das Convenções da OIT, estão
subscritas e ratificadas por Portugal”.
O SEEFP levanta de seguida a questão da aplicação da lei e o papel de todos os parceiros sociais neste
desígnio: “Depois, temos uma dimensão que me parece também particularmente relevante discutir aqui, que é
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a questão da dimensão de efetivação destas disposições, do ponto de vista da sua concretização prática. Em
primeiro lugar, o papel que todas as instituições do mercado de trabalho podem desempenhar, não apenas do
ponto de vista pedagógico, diria, do ponto de vista informativo, enfim, de vários pontos de vista, mas não apenas
as entidades públicas. Também os parceiros sociais e as instâncias de diálogo social. Desde logo, naquilo que
é a dinâmica da contratação coletiva. Há muitos contratos coletivos que transpõem para as suas disposições,
por vezes até repetindo a lei. Há aqui uma dimensão simbólica, nesta transposição de disposições de não
discriminação, de inclusão, que estão previstas na lei — provavelmente não de modo explícito — das questões
étnico-raciais. Eu, pelo menos, não conheço nenhum caso. Admito que possa existir, mas duvido que exista,
num contrato coletivo. Como digo, não tenho conhecimento. Mas, além da dimensão dos instrumentos de
relação coletiva de trabalho, há a própria atuação dos parceiros sociais, por si, no seu papel de representação,
de enquadramento, quer dos trabalhadores, quer dos empresários”.
Quanto ao papel da ACT diz o Secretário de Estado: “Há aqui diferentes dimensões de atuação. Algumas de
âmbito mais preventivo e a montante, se quisermos. Portanto, tudo o que diz respeito à prevenção, à
sensibilização, ações de formação. Nesse âmbito, a promoção não apenas em abstrato, com campanhas, com
formação, com discussões, com participação em debates públicos, mas também em momentos concretos e em
intervenções concretas em empresas. Porque há muito a ideia de que a ACT só faz sensibilização através de
campanhas mais genéricas ou em colóquios. Não. Muitas vezes, a ACT faz parte das inspeções não policiais,
ou seja, é uma inspeção social, tal como a da Segurança Social e algumas outras. O que significa que o objetivo
primordial do contacto da ACT com as empresas e com os trabalhadores não é apenas detetar ilegalidade, nem
apenas aplicar coimas ou contraordenações, ou o que quer que seja que esteja do lado, digamos, mais
repressivo”.
Relativamente ao trabalho da ACT no âmbito dos trabalhadores imigrantes que tem sido de grande valia
refere Miguel Cabrita “Eu queria aqui fazer uma referência, um disclaimer quase evidente. Obviamente que a
questão das migrações e da nacionalidade não têm uma sobreposição com a questão etnicidade e, portanto,
queria aqui deixar claro. Mas é também verdade que, nestes casos, há porventura uma percentagem maior de
trabalhadores que pode estar em situação de ter alguma pertença étnica, ou grupos étnicos específicos. Creio
que era importante fazer essa referência”.
Também no âmbito do combate ao Tráfico de Seres Humanos a ACT tem tido um papel importante “No
âmbito da atuação inspetiva da Autoridade para as Condições do Trabalho, queria ainda referir também a
questão do tráfico de seres humanos e de trabalhadores. Foram detetados mais de 200 trabalhadores nesta
situação. Como digo, não temos informação sobre a dimensão étnico-racial, por razões evidentes, porque aqui
estão em causa casos concretos de pessoas, mas houve uma atuação também neste âmbito e, não me referindo
obviamente ao trabalho forçado, porque aqui não há lugar à correção de situações que têm obviamente uma
componente até criminal, que vai muito para além da atuação da ACT, mas de modo genérico a intervenção da
ACT, no que diz respeito às questões da igualdade e não discriminação, deu origem a um número muito
significativo: mais de 1500 notificações para a tomada de medidas”.
Ainda sobre a ACT e o aprofundamento das questões da discriminação étnico-racial na sua ação diz: “Agora,
creio que é evidente, por prática de muitos anos e por política não exclusiva desta entidade, mas porventura dos
serviços públicos em geral e também de todo aquele que é o nosso enquadramento institucional mais amplo, de
facto, nós não temos muita informação específica sobre aqueles casos que, sabendo nós que são sobre a
problemática da não discriminação e igualdade, quais são aqueles que têm como fundamento por parte dos
queixosos as questões étnico-raciais. Portanto, estou perfeitamente aberto — e creio que é algo que deve ser
discutido — a que haja, de alguma forma, uma tentativa. Quer dizer, a ACT não faz propriamente estatísticas
muito detalhadas sobre cada um dos grandes subgrupos de ações que desenvolve, mas não me parece mal,
honestamente, até porque se isso ajudar a produzir mais informação, e eu já lá ia também à questão da
informação, creio que poderia ser útil que viesse a existir algum tipo de tratamento, para no fundo esmiuçar as
subcategorias de igualdade e de não discriminação de que estamos a falar, quando falamos neste núcleo de
ações concretas, ações inspetivas de casos que foram acompanhados a este respeito.
No que respeita ao acesso ao emprego, uma das questões mais relatadas por quem é discriminado, Miguel
Cabrita abre a possibilidade de haver mais intervenção ao nível das regras de seleção e concursos de
emprego:”(…) esse é o típico aspeto em que só mediante denúncia de alguém que se sinta lesado, como aliás
se passa nos casos de discriminação, porque — enfim, também sei que vários dos presentes acompanham de
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muito perto essas questões — quando falamos de questões de discriminação, até no seu sentido jurídico mais
estrito, a prova tem sempre uma componente casuística e de aplicação num caso em concreto e de ações
concretas que levam a essa discriminação. Portanto, tem sempre de partir daí, mas creio que, no âmbito da
regulação do mercado de trabalho, estamos a falar, não de um contrato de trabalho, mas de um comportamento
de um empregador perante potenciais candidatos de emprego. Portanto, estamos genericamente a falar de
relações laborais, porque há algumas normas sobre os concursos de emprego, os anúncios e creio que por aí
poderá haver alguma margem para trabalhar também”.
Quanto a políticas ativas de emprego e formação o SEEFP refere: “Eu creio que, deste ponto de vista, mesmo
que possam não existir muitas ações destinadas à problemática étnico-racial ou da discriminação nesse plano,
e ainda menos a grupos específicos que estejam identificados ou que possam ser circunscritos de alguma forma
em diferentes contextos geográficos, eu conheço talvez poucas instituições em Portugal cuja ação, por definição
e pela sobreposição dos mecanismos de desigualdade que muitas vezes fazem com que a desigualdade e a
pertença étnico-racial estejam associadas também a desigualdades sociais, desigualdades de rendimento,
dificuldades perante o emprego, baixas qualificações, enfim, todo o ciclo de reprodução também da pobreza e
da exclusão que conhecemos, poucas entidades terão porventura uma atuação tão — diria — transversal ou
com impactos tão transversais e tão profundos, perante públicos muito desfavorecidos e também perante
situações que estão em situações de desfavorecimento, em parte ou em todo, também por via do seu
enquadramento no quadro desta temática de discriminação que aqui tratamos hoje”.
“No que diz respeito à dimensão do emprego, das políticas ativas. O facto de elas estarem a ser cada vez
mais focalizadas nos públicos mais afastados do mercado de trabalho — desempegados de longa duração,
desempregados de muita longa duração, pessoas que não têm contribuições durante muitos anos, o que nem
sempre significa que estejam exatamente desempregadas, podem eventualmente estar em trabalhos informais
totalmente desprotegidos numa economia informal e paralela —, este crescente recentrar neste tipo de públicos
tem como consequência, infelizmente e se partirmos do pressuposto que se verifica — creio eu — de que a
discriminação étnico-racial se reflete também nas desigualdades, então, haverá aqui um efeito claramente muito
positivo ou potencialmente muito positivo sobre esta realidade”.
O Secretario de Estado do Emprego refere medidas de política pública positivas para estes grupos mais
segregados: “Não queria deixar de referir um aspeto essencial nas temáticas que aqui tratamos, que tem a ver
com o trabalho em estreita parceria com o Programa Escolhas e com os mediadores do Escolhas, porque há,
ao nível local, um trabalho de rede, que eu diria que está já internalizado. Obviamente que corre melhor em
alguns sítios, pior noutros. Eu, honestamente, não tenho de memória se há avaliações do Programa Escolhas
que permitam identificar de alguma forma como é que corre esta parceria com os Centros de Emprego do IEFP
(Instituto do Emprego e da Formação Profissional) e com os Gabinetes de Inserção Profissional em particular.
Mas posso dizer com segurança que, do lado do IEFP, há uma perceção positiva das vantagens desse trabalho
de terreno, de mediação e de proximidade com pessoas, com grupos, com bairros. Seja individualmente, seja
nestes contextos, como digo, que podem envolver alguma segregação ou discriminação até mais coletiva”.
Miguel Cabrita termina a sua intervenção referindo: “Como digo, não temos dados discriminados por
pertenças ou outro tipo de indicador étnico-racial. Nem podemos tê-los, porque aqui estão em causa casos
concretos de pessoas. Mas é uma temática à qual temos naturalmente que estar atentos. Portanto, terminando
como comecei: não havendo aqui, exatamente, uma competência específica nesta área, este é um dos fatores
que, dentro do campo das discriminações, é uma forma particularmente grave de discriminação, pelas razões
que todos compreendemos e, portanto, é uma área em relação à qual tem de haver uma atenção e uma atuação,
também neste âmbito. (…) As ações da ACT, por exemplo, parecem-me que é um caminho possível. Não quero
aqui assumir nenhum compromisso sobre isso, até porque não posso. Mas penso que é um bom exemplo de
como progredir, no âmbito da informação que temos sobre discriminação. Com base numa melhor contabilização
quer dos casos concretos, quer das ações concretas que são feitas, pode ser um caminho talvez mais prudente
e mais equilibrado, do que partir para uma categorização de toda uma população numa pergunta censitária. Mas
aqui é a minha opinião. Já que me foi perguntada, deixo-a também”.
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VI – Seminário final
Programa
Conferência final Relatório Racismo, Xenofobia e Discriminação Étnico-racial em Portugal
9 de julho 2019 – Auditório Almeida Santos
9.30 – Sessão de abertura
Vice-Presidente da AR – Jorge Lacão
Presidente da Subcomissão para a Igualdade e Não Discriminação – Elza Pais
Ministra da Presidência – Mariana Vieira da Silva
10.30 – Perspetiva das Organizações Internacionais
FRA – Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia– Rossalina Latcheva
Conselho da Europa – Duarte Marques em representação da Delegação Parlamentar Portuguesa no
Conselho da Europa
ENAR – Rede Europeia Antirracismo – Juliana Santos Walgren
Moderação: Deputada Carla Tavares
11.30 – Comunidades Ciganas
– Carlos Miguel – Secretário de Estado das Autarquias Locais
– Maria José Casa-Nova – Professora da Universidade do Minho, Coordenadora do Observatório das
Comunidades Ciganas do Alto Comissariado para as Migrações e do Núcleo de Educação para os Direitos
Humanos do Instituto de Educação da Universidade do Minho
– Sérgio Aires – Sociólogo e Peritos em áreas de pobreza, exclusão e políticas sociais
– Alexandra Castro – Investigadora da DINÂMIA’CET-IUL – Centro de Estudos sobre a Mudança
Socioeconómica e o Território
Moderação: Deputado José Manuel Pureza
13.00 – Almoço
14.30 – Comunidades Afrodescendentes e Brasileira
– Rui Pena Pires – Professor Departamento de Sociologia do ISCTE-IUL e Investigador do CIES-IUL–
Centro de Investigação e estudos de Sociologia em matéria de desigualdades, migrações e territórios
– José Semedo Fernandes – Advogado
– Manuel Morais – Antropólogo e Vice-Presidente da Associação 100 Violência e da IPA – International
Police Association
– Cyntia de Paula – Presidente da Casa do Brasil de Lisboa
Moderação: Deputada Catarina Marcelino
16.00 – Intervenção da Relatora
– Deputada Catarina Marcelino
16.30 – Encerramento
Presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias – Pedro Bacelar de
Vasconcelos
Ministra da Justiça – Francisca Van Dunem
***
O Seminário teve como objetivo uma avaliação transversal da versão preliminar do Relatório, destacando-se
de cada intervenção os seguintes aspetos:
A Ministra da Presidência e da Modernização Administrativa, Mariana Vieira da Silva, iniciou a sua
intervenção na sessão de abertura do Seminário, referindo que o racismo, a xenofobia e a discriminação étnico-
racial é um dos maiores desafios com que o país se confronta. É um combate às desigualdades estruturais e
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persistentes nas suas diferentes formas. Refere que o combate deve estar orientado para duas dimensões:
reforçar os direitos sociais e o acesso ao bem-estar, diminuindo as assimetrias, mas também garantindo a
igualdade de oportunidades para todos. Há uma centralidade particular na desigualdade étnico-racial,
nomeadamente no que diz respeito a pessoas afrodescendentes e ciganas.
Diz que não é apenas um imperativo constitucional e civilizacional, mas que é um tema que requer uma
resposta de consciencialização relativamente à desigualdade desta natureza. Dá como exemplo o número de
queixas apresentadas na CICDR, 346 em 2018, 96% acima das queixas de 2017. Este é um exemplo da
desocultação da discriminação, e diz que estamos a fazer o caminho da desolcultação do racismo.
Acrescenta que este debate é um contributo muito relevante para uma intervenção integrada, e defende que
a Assembleia da República é a casa certa para o fazer, ainda mais no final da legislatura em que os Partidos
Políticos se preparam para apresentar os seus programas.
Diz que Portugal ser um país de portas abertas para o acolhimento não significa que não devamos fazer este
debate. Reforça a premissa de que é necessária informação, que seja consistente sobre a realidade étnico-
racial do país. Informa que o Governo nomeou um Grupo de Trabalho para discutir se os Censos são a melhor
forma para recolha de dados, mas que o INE (Instituto Nacional de Estatística) decidiu não incluir a pergunta
nos Censos, contudo o Governo está empenhado para que esta recolha seja feita através de um inquérito.
Reforça ainda a importância das melhorias jurídicas que têm sido feitas, a revisão da Estratégia Nacional de
Integração das Comunidades Ciganas, o Programa Escolhas na sua 7.ª Geração e a Estratégia Nacional de
Educação para a Cidadania.
Termina afirmando que o País precisa de fazer este debate e que está a fazê-lo.
No 1.º painel, Rossalina Latcheva da FRA defende a necessidade de recolha e desagregação de dados,
destaca na sua intervenção um conjunto de dados estatísticos que confirmam por um lado a perceção de
discriminação por parte daqueles e daquelas que são discriminados, sendo os dados relativos às pessoas
ciganas ainda mais expressivos do que os dados relativos a afrodescendentes, quer em Portugal quer
comparando a média portuguesa com a média europeia, como se pode constatar quer na apresentação feita
pela oradora durante a conferência quer pelo documento de suporte que foi disponibilizado.13
Duarte Marques faz a sua intervenção em representação da Delegação Portuguesa que representa o
Parlamento Português na Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa. Diz que o Conselho da Europa olha
para o nosso país como um exemplo da integração, de estrangeiros, refugiados e de minorias étnicas e
religiosas. Diz que Portugal não pode ser apontado num dia como país da Europa onde a população melhor
aceita a chegada de refugiados e imigrantes e no dia seguinte ser apelidado de país de racistas e, acrescenta,
a situação não é dramática, mas que o racismo existe e é preciso ser combatido. Refere “Em Portugal há
episódios de racismo, de xenofobia? Sim, infelizmente há. Mas isso não faz nem de Portugal nem dos
portugueses racistas, da mesma forma que um afrodescendente ou português de origem brasileira ou ucraniana
que prevarica não pode fazer da sua comunidade um conjunto de prevaricadores como alguém bem
recentemente quis fazer-nos crer”. Neste âmbito e assume que se deve combater o racismo e a discriminação,
mas também quem apela ao ódio e à divisão e saúda o relatório por referir no texto que “é muito importante que
não haja radicalização do discurso étnico-racial, quer da comunidade maioritária, quer dos que são alvo de
discriminação, para que todos possam ser e sentir-se parte da construção”.
Diz estar de acordo com as seguintes recomendações do relatório: recolha de dados étnico-raciais,
separação das questões do racismo e da discriminação étnico-racial das migrações, apostar numa escola menos
segregadora reforçando o orador as questões do combate ao abandono escolar e a defesa da igualdade de
oportunidades em terminar o ensino obrigatório e poder seguir para o ensino superior. Faz ainda uma referência
ao sentimento de revolta que causa situações indignas na habitação e na obtenção de escolaridade mínima dos
afrodescendentes e das pessoas das comunidades ciganas. Reforça a ideia de que é importante derrubar
barreiras que impeçam o acesso, devido ao racismo e à discriminação, à universidade, a empregos na
administração pública e nas empresas, no acesso ao topo das carreiras.
13 Link: http://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063446f764c324679626d56304c334e706447567a4c31684a53556c4d5a5763765130394e4c7a464451554e455445637655306c4f5243394562324e31625756756447397a51574e3061585a705a47466b5a554e7662576c7a633246764c7a637a4f54557a5a44677a4c5459314e574d744e4745304e7930355a4445314c5749354e6a4e6859324d305a6a4e684e6935775a47593d&fich=73953d83-655c-4a47-9d15-b963acc4f3a6.pdf&Inline=true
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Quanto a quotas na política diz que não resolve o problema da falta de representatividade, mas que se deve
apostar na eliminação de barreiras para que todos possam votar e ser eleitos, reforçando a sua participação na
sociedade. Termina saudando o processo que levou ao relatório, ouvindo muitos que nunca tinham sido ouvidos
e vistos como sujeitos de discriminação.
Juliana Santos Walgren trouxe uma crítica construtiva ao relatório, referindo a necessidade de uma
perspetiva interseccional que integre transversalmente as discriminações do sistema que não preveem
igualdade de oportunidades. Faz referência à importância positiva deste relatório, ao facto de propor a separação
institucional das questões do racismo das migrações e a recolha de informação e desagregação de dados. No
que diz respeito á participação política de afrodescendentes e pessoas ciganas, defende a ideia de programas
de empoderamento e de quotas. Critica a falta de uma análise da legislação e dos pacotes de políticas no
relatório e termina propondo a implementação de um Plano Nacional Contra o Racismo, com base numa
perspetiva interseccional, com estratégias transversais e em diálogo com a sociedade civil.
No 2.º painel, dedicado às comunidades ciganas, Carlos Miguel explicita que a sua intervenção é feita
enquanto cidadão português cigano que faz parte do XXI Governo do país. Destaca duas áreas do relatório:
Habitação e Mediação Sociocultural.
No âmbito da habitação reforça a ideia de que é necessária política de habitação para pessoas carenciadas,
porque sem ela não há inclusão. Critica positivamente a implementação de estratégias locais de habitação para
que, após o retrato das necessidades, se procurem os programas a aplicar. Contudo vê como negativo alguma
incapacidade de resposta dos programas e dá como exemplo a situação que aconteceu na sequência do ciclone
em Faro com a comunidade cigana do Cerro do Bruxo (voltaram ao acampamento porque não houve solução)
e a situação do incêndio no paiol no Bairro da Antiga Quinta do Mocho em Loures que teve realojamento por
parte da Câmara Municipal porque não foi possível aplicar o programa 1º Direito. Faz uma crítica a este programa
porque defende que o programa não pode colocar sobre os Municípios a responsabilidade de dois terços do
financiamento para construção de habitação. Diz que tem de haver mais equilíbrio entre Orçamento Municipal e
Orçamento de Estado.
Sobre a Mediação Sociocultural defende que tem que haver regras e definições claras quanto à profissão,
nomeadamente quem contrata, com que estatuto, qual o vencimento, que tipo de contrato se aplica, quem
acompanha o desempenho.
Por fim defende a recolha de dados e a sua desagregação, entendendo que ao não caracterizar as
comunidades ciganas – como são, onde estão e onde vivem (fala na primeira pessoa) – diz que o estado está
a discriminar as pessoas ciganas.
Maria José Casa-Nova inicia a sua intervenção definindo o conceito de minoria como grupos sociais
destituídos do poder que é socialmente valorizado – económico, cultural e académico, entre outros.Faz
referência à Estratégia Nacional de Integração das Comunidades Ciganas, que foi realizada na sequência de
uma recomendação da UE e que foi alargada até 2022 com metas mais ambiciosas e mais abrangentes.
Usando a educação como exemplo, defende que é necessário encontrar medidas políticas que respondam
aos problemas. Refere que, em 1997/98 frequentavam o 1.º ciclo, 374 crianças ciganas e no ano de 2016/17
eram já 3078, e que no ensino secundário a diferença foi de 16 para 256. Perante estes resultados referentes
ao ensino secundário foi estabelecido um projeto de bolsas para 100 crianças ciganas no ano letivo de
2019/2020. Defende ainda a mediação sociocultural, a desconstrução de estereótipos junto dos professores e a
inclusão de mães e pais ciganos nas associações de pais.
Quanto à recolha de dados refere que na sua opinião é mais importante conhecer a realidade do que recolher
informação estatística. Reconhece ainda a importância de os partidos incluírem pessoas das minorias étnico-
raciais nas listas eleitorais. Faz uma referência à necessidade de integrar as forças de segurança na decisão de
utilizar câmaras nas lapelas das fardas, e no que diz respeito a um melhor conhecimento da população prisional
na perspetiva das minorias étnico-raciais. Chama a atenção para o facto de ser importante compreender porque
é que os seus percursos os levaram até ali.
Sérgio Aires começa por salientar o facto de este relatório vir trazer um conjunto de situações e problemas
que são os mesmos de há 30 anos e reforça a ideia de que o papel do poder local nesta equação é muito
importante no que diz respeito à inclusão das comunidades ciganas, muito em particular em matéria de
habitação, utilizando a expressão “os ciganos são terra de ninguém”.
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Quanto á separação do Alto Comissariado para as Migrações das políticas relacionadas com as comunidades
ciganas, concorda, mas chama a atenção para o risco de se perder o legado e o trabalho positivo que tem sido
feito por esta entidade. Defende ainda que as questões do racismo e da não discriminação deveria estar dentro
e uma agência independente, e que mesmo um observatório deve estar debaixo de entidades independentes
do Estado.
Faz uma referência ao debate sobre a recolha de dados, referindo que todos os dias há recolha e tratamento
de dados e que o debate da legitimidade da recolha é “esdrúxulo” porque todos nós utilizamos dados recolhidos
pela educação, pela habitação, pelos municípios.
Reforça a ideia de que a pobreza e a exclusão entre estas comunidades são gravíssimas e são um fator
potenciador da discriminação. Refere ainda a falta de qualidade na construção da habitação social e a
culpabilização das comunidades ciganas pela deterioração de um património de duvidosa qualidade que
dificilmente pode ser mantido nas devidas condições. Dá vários exemplos no país, mas refere em particular o
Bairro das Pedreiras, em Beja, que diz que poderia ter intervenção humanitária das Nações Unidas, como
acontece na Síria. Termina com uma referência aos fundos comunitários sublinhando a sua incompreensão
relativamente ao facto de Portugal não ter um Programa Operacional para a Intervenção nas Comunidades
Ciganas.
Alexandra Castro refere que não basta que estruturas de âmbito internacional, europeu ou nacional
imponham que é preciso intervir para combater os fenómenos de discriminação e de exclusão nas comunidades
ciganas, e reforça a ideia de que tem que haver vontade e intervenção política ao nível local porque a prevalência
de um clima de intolerância cria obstáculos significativos para a implementação de programas nacionais bem
estruturados e, muitas vezes, inovadores.
Quanto à habitação diz que a proposta de recomendação no relatório é demasiado vaga – “Envidar todos os
esforços para acabar com as situações habitacionais indignas em Portugal até 2024, mediante meta proposta
pelo Governo” – e no sentido de a reforçar propõe incluir no relatório as seguintes recomendações: Promover a
transparência nos processos de acesso à habitação social, nomeadamente, em termos de critérios de
elegibilidade e de atribuição; produzir, centralmente, orientações claras para a elaboração de regulamentos de
acesso e atribuição de alojamentos sociais, exigindo-se a publicação das listas de candidatos a habitação social
e, monitorizar a implementação das políticas de habitação, evitando práticas de segregação socio-espacial.
Traz ainda para a sua avaliação do relatório um aspeto que não está focado, a referência a um nomadismo
cigano que tem servido como desculpa para a não atribuição de habitação a famílias destas comunidades,
porque não é contemplada a possibilidade de concorrer a habitação social sem uma permanência regular e
efetiva no território, que nestes casos não tem sido considerada.
No início do 3.º painel, dedicado aos afrodescendentes e à comunidade brasileira, Rui Pena Pires refere que
o preconceito é transformar as pessoas no outro, enquanto a discriminação é o tratamento desigual, e afirma
que a melhor forma de combater a discriminação é não compactuar com essas situações. Diz ainda que a
reprodução do preconceito é feita a partir da pior história que possamos construir sobre o outro e por isso é
necessário ter uma atenção crítica permanente à forma como os “média” as noticiam.
Diz ainda que discriminação, racismo e xenofobia têm graus variáveis. A pior forma é quando se traduz na
ordem jurídica, como foi o caso do apartheid, não sendo Portugal, nesta perspetiva, um país racista. Mas
também se revela nas práticas sociais, e a discriminação está dependente das assimetrias fortes entre os que
são discriminados e os que discriminam. A eficácia do combate à discriminação pode ser feita pela ordem jurídica
e pela afirmação no espaço público de quem é discriminado. Em Portugal, há uma hegemonia branca na
Assembleia da República e nos noticiários televisivos.
Sobre desigualdades, Rui Pena Pires diz que há uma racialização das desigualdades. Um dos argumentos
para credibilizar o racismo é a utilização das desvantagens socioeconómicas e da segregação habitacional das
pessoas alvo do racismo, para dizer que não conseguem.
Termina dizendo que as nações em geral e as europeias em particular, têm uma identidade étnica que exclui.
Essas identidades têm um mito de origem e um mito da idade de ouro, que no caso português são os
descobrimentos. Na perspetiva do orador é muito difícil compatibilizar esta realidade com a perspetiva inclusiva
que toca a questão de uma narrativa nova nos manuais escolares, este é um aspeto de difícil solução que
necessita de período transitório. Quanto à luta contra a discriminação, defende que se deve atacar a hegemonia
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branca no espaço público, e, por fim, no que diz respeito às desigualdades, preconiza novas políticas de
habitação e de desguetização.
José Semedo Fernandes introduz o tema da nacionalidade e propõe que o mesmo seja incluído no relatório.
Fala especificamente daqueles e daquelas que nasceram em Portugal entre 1981 e 2006 e que são estrangeiros
no seu próprio país. Segundo o orador esta realidade tem consequências terríveis pois muitas destas pessoas
só se confrontaram com o facto de não serem portuguesas aos 15 anos quando foram tratar do Bilhete de
Identidade ou do Cartão de Cidadão, e questionam-se, então, quem realmente são. Dá como exemplo os jovens
que praticam desporto federado e onde só 2 estrangeiros podem jogar por equipa, muitos ficam de fora, o que
não aconteceria se fossem portugueses.
Diz que a lei, desde 2006, tem sido facilitadora, mas que não entende porque é que não se cria um
mecanismo, como foi feito para os descendentes dos judeus sefarditas, para repor a justiça histórica àqueles
que foram prejudicados entre 1981 e 2006 e que não têm a nacionalidade do país onde nasceram. Refere ainda
os casos em que estas pessoas cometem pequenos delitos, a quem a legislação retira e obstaculiza o acesso
à residência, ficando sem acesso ao mercado de trabalho, à educação e à habitação. Termina, reafirmando que
a lei da nacionalidade requer uma reposição histórica para os que nasceram entre 1981 e 2006 em Portugal, a
quem deveria ser reconhecido o direito à nacionalidade originária.
Manuel Morais começa por referir que falar de racismo em determinados meios ainda é tabu. Há muita gente
que “encolhe os ombros” e acredita que há um determinismo instituído, que é tradição. Diz que não são os
racistas assumidos que mais o preocupam, mas sim os outros que dizem que não o são e que se tornam cativos
de uma tolerância redutora e que educam as gerações seguintes da mesma forma, reforçando o modelo. Diz
que este fenómeno tem uma dimensão assustadora, que é uma dimensão coletiva que afeta todos. Afirma ser
necessário desconstruir este preconceito que tem atravessado impunemente as gerações desde o 25 de abril.
Refere ainda como o etnocentrismo foi a causa do nazismo e do extermínio de judeus, ciganos e negros, como
o genocídio dos arménios pelos turcos ou o dos tutsis pelos hútus, o que demonstra que a cor da pele não é
uma característica determinante.
Quanto aos serviços públicos e aos agentes públicos que são preconceituosos será muito difícil serem
isentos na sua atuação. Quanto à PSP, diz ser importante remodelar os professores da escola de agentes da
polícia e da escola superior de polícia, por especialistas externos sobre estas matérias. Também considera
importante selecionar melhor os agentes e não permitir a entrada a quem não comunga de valores e princípios
sólidos. Diz ainda que é necessário monitorizar nas redes sociais os agentes que colocam mensagens de ódio
pelos outros. Estas pessoas não devem exercer este tipo de funções e diz “Eu pertenço a uma das melhores
polícias do mundo (…) mas temos muito espaço para melhorarmos”.
Cyntia de Paula questiona se faz sentido a comunidade brasileira ser objeto do relatório, uma vez que as
comunidades ciganas e os afrodescendentes são abordados na perspetiva de serem portugueses, pelo que
existe o risco de ao juntar-lhes uma comunidade imigrante, se voltar a lançar o debate sobre a imigração,
invisibilizando as outras comunidades nacionais.
De seguida refere a falta da perspetiva de género no relatório, uma vez que as mulheres sofrem a opressão
do machismo e do patriarcado, a que se soma a etnia, a nacionalidade e a classe social. Esta visão interseccional
deveria ser o ponto de partida do relatório.
No que diz respeito à participação política, questiona se o sistema quer que estas pessoas abordadas pelo
relatório sejam incluídas e que tipo de representação as pessoas querem ter. Refere os dados do recenseamento
dos brasileiros, 6%, e pergunta porquê? Porque é que não participam? Diz que há falta de informação sobre os
seus direitos políticos, falta de mecanismos de participação nos partidos políticos e afirma a defesa de quotas.
Reforça a ideia que mesmo em lugares para os quais não são precisos acordos de reciprocidade, continuam a
não estar representados. Diz que o relatório deve questionar se se quer mecanismos de representação, e até
onde temos ido?
Quanto à xenofobia e discriminação dos brasileiros, refere os serviços de saúde e a desinformação existente
sobre os direitos das pessoas e fala da necessidade de sensibilizar os funcionários públicos. Refere também a
xenofobia nas universidades, contra a comunidade brasileira, praticada por docentes e alunos. A universidade,
em vez de ser um espaço de construção, tem sido um espaço de opressão. Também no mercado de trabalho
os brasileiros estão confinados aos serviços e aos cuidados associados a tarefas e à precariedade.
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Por fim volta à perspetiva de género, referindo que a comunidade brasileira é a que tem mais mulheres, 60%
da comunidade, e onde a discriminação de género está muito associada a uma híper sexualização e híper
erotização das mulheres brasileiras. Termina referindo que o relatório deve assentar no combate às múltiplas
discriminações, e deve ser construído com as comunidades numa perspetiva interseccional.
A sessão de encerramento do seminário contou com a intervenção da Ministra da Justiça, Francisca Van
Dunem, cujo discurso aqui se reproduz:
“Senhor Vice-Presidente da Assembleia da República
Senhor Presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias
Senhora Presidente da Subcomissão de Igualdade e Não Discriminação
Senhores Deputados
Senhores Oradores
Senhores Participantes
Minhas Senhoras e Meus Senhores
Excelências,
Pensar, ponderar, analisar e, acima de tudo, realizar estudos sobre os fenómenos do racismo, da xenofobia
e da discriminação étnico-racial em Portugal, constitui uma necessidade imperiosa de uma sociedade que
cresceu e se diversificou no plano étnico, no plano racial, no plano cultural.
Felicito, por isso, a 1.ª Comissão e, em particular, a subcomissão para a igualdade e não discriminação por
esta feliz e tão oportuna iniciativa.
Sem informação obtida através de estudos, inquéritos e análises aprofundadas e sérias sobre estas temáticas
nunca chegaremos a conhecê-las na sua dimensão integral, sendo incontornável que estes fenómenos existem
e atravessam, transversalmente todos os estratos da sociedade.
O relatório agora apresentado evidencia claramente essa necessidade de obtenção de informação
estruturada, detalhada e atualizada.
É redutor e pode ser indutor de erros que cada um de nós fundeie a sua opinião, apenas, em perceções e
na análise da realidade limitada que conhece.
Tenho a perceção – que julgo partilhada por muita gente –, de que na população racial ou etnicamente
diferenciada se inscrevem:
Os economicamente mais desfavorecidos;
Os que possuem os empregos com posições de mais baixa qualificação e consequentemente mais mal
pagos;
Os estudantes que apresentam taxas de reprovação e de retenção escolar mais elevadas e revelam maior
abstenção escolar;
Os cidadãos com taxas de inserção no ensino superior mais baixas;
Os que registam uma maior taxa de encarceramento criminal;
Os que residem na periferia da periferia, juntando-se em bairros que tendem a transformar-se em guetos,
não só económico-sociais, mas também culturais.
Tenho, de igual modo, a perceção que essa realidade não é idêntica para as várias comunidades étnico-
raciais que residem em Portugal. A discriminação é hierarquizada – existirão uns que estão mais no fim da
cadeia do que outros. Ou seja, que o vivenciado pela comunidade negra, ou cigana, não é semelhante ao
vivenciado, por exemplo, pelas comunidades de nepalesa, paquistanesa, da europa de leste, brasileira ou
chinesa. No que diz respeito a estas últimas, a ideia que parece transparecer é a de que a sua inclusão, pelo
menos do ponto de vista social e económico, mostra-se um pouco menos difícil, apesar de não deixarem de
pertencer a grupos étnicos diferenciados.
Mas, será esta perceção correta ou ela resultará, tão só, do desconhecimento sobre a vivência destas
comunidades?
O que se passará em relação à islamofobia e ao antissemitismo? Qual a medida da sua existência e que
repercussões têm na sociedade portuguesa?
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A verdade é que, confesso, não gosto de formar juízos com base em perceções. Confio em factos e não
simpatizo com presunções.
Também por esta razão, me regozijo pela promoção e realização do trabalho que originou o relatório hoje
aqui se apresentado e, mais ainda por a iniciativa partir dos eleitos do povo.
Sobre estas temáticas relacionadas com o racismo, a xenofobia e a discriminação étnico-racial tende a recair
um enorme manto de silêncio.
Tanto quanto me é dado a conhecer, são realizados alguns estudos sectoriais, mas não se encontra
disponível informação ampla e abrangente, suscetível de ser cruzadas e trabalhada, com base na qual se possa
extrair conclusões seguras sobre a realidade.
Perguntas tão simples como as de saber quantos são os membros destas comunidades; que idades têm;
quantos nasceram em Portugal; quantos aos que não nasceram, há quantos anos aqui residem, onde e como
vivem, quanto auferem, que graus de escolaridade detêm, que acesso a empregos, a habitação, a cuidados de
saúde ou a bens e serviços lhes são negados?
Estas questões não têm hoje resposta.
No entanto, se não conhecemos as várias vertentes do problema, nem tão pouco a sua dimensão, como é
que poderemos atuar de forma integrada e eficaz?
Parafraseando James Baldwin – uma das vozes mais influentes do movimento dos direitos civis, nos Estados
Unidos, “nem tudo o que enfrentamos pode ser mudado. Mas nada pode ser mudado enquanto não for
enfrentado. O confronto nem sempre traz uma solução para o problema, mas enquanto não enfrentarmos o
problema, não teremos solução”.
Durante décadas, apregoar a inexistência de fenómenos racistas na sociedade portuguesa tornou-se um
quase lugar-comum.
A repetição incessante da ideia não teve, contudo, a virtualidade de a converter em verdadeira.
A maior expressão de preconceito racial consiste, precisamente, na negação deste preconceito.
Porque, como escreveu Sofia de Mello Breyner, – «Vemos, ouvimos e lemos, Não podemos ignorar».
Falando na primeira pessoa, eu acrescentaria que se para além de vermos, ouvirmos e lermos, também
sentimos - essa ideia da inexistência de fenómenos racistas na sociedade portuguesa foi, paulatinamente,
perdendo solidez.
Um número não despiciendo de pessoas passou então a acreditar, na sequência de uma corrente de
pensamento que já emerge do século XIX, que a escola, o conhecimento e a cultura se encarregariam de
resolver a questão.
Bastaria esperar pelo decurso do tempo e pela emergência das novas gerações que, progressivamente, mais
escolarizadas teriam, necessariamente, uma abordagem e uma estar diferenciado e iminentemente inclusivo.
Claro que importa acreditar na educação e na escolarização, mas não há evidência de que essa seja, a
solução para os problemas do racismo e da xenofobia nas nossas sociedades.
Ninguém duvida que hoje, não só em Portugal, mas também na Europa, a população, principalmente a mais
jovem, alcançou um grau de escolarização muito superior relativamente às gerações que a precederam.
Mas esse facto determinou que tivesse diminuído, por exemplo, o discurso de ódio ou a reação perante a
diferença racial ou étnica?
Diria que não.
Pelo contrário, parece ter-se refundado, em pleno século XXI, um discurso de ódio ao diferente, com óbvio
recrudescimento das sociedades xenófobas e racistas.
É esta constatação que conduz à conclusão de que, relativamente a estas temáticas, bem como em relação
a outras, infelizmente a educação, o conhecimento e a cultura não consubstanciam a magia do Santo Graal.
Um grau de escolaridade mais elevado poderá tornar as reações mais subtis, menos primárias ou grosseiras,
mas não tem a faculdade de as eliminar.
Quantas e quantas vezes ouvimos, proferida pelas pessoas mais diversas e diferenciadas: não sou racista,
mas, sendo certo que após a adversativa se segue um cometário que, seguramente, exemplifica ou demonstra
um qualquer estereótipo negativo que marcará a diferença entre “nós e os outros”.
Inúmeras pessoas afirmarão, sem hesitar – que o racismo é estúpido.
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No entanto, algumas dessas pessoas provavelmente não admitirão, nem sequer perante si próprias, que a
diferença os incomoda ou mesmo que lhes causa aversão e lhes determina a reações hostis.
Como já alguém afirmou, o racismo é o crime perfeito – quem o comete acha sempre que a culpa é da vítima.
Relativamente a estes fenómenos não há uma solução ou a solução.
Existirão, ao invés, inúmeros ângulos que necessitam de ser abordados sendo que, entre estes, os mais
prementes se prendem com a desigualdade e com a exclusão.
Como intervir perante o medo da diferença?
Como agir e o que fazer para a diferença não se transmute em desigualdade?
Mais: como intervir na sociedade atual onde a coberto do anonimato potenciado pelas redes sociais floresce
o sentimento anti-imigrante e onde grande parte dos males do mundo é imputado a um outro que, por qualquer
razão, nos seja dissemelhante?
Creio que uma das chaves – claro está que integrada numa miríade de outras – será a da inclusão.
O receio, o medo e a hostilidade serão, creio, tanto menores, quanto mais o diferente nos seja próximo,
quanto mais convivermos, repartirmos, e estabelecermos cumplicidades com esses outros.
Essa inclusão apenas se alcançará se os que aparentemente não são iguais frequentarem as mesmas
creches, o mesmo ensino pré-escolar, as mesmas escolas, forem vizinhos ou colegas de trabalho. Se tiverem
os mesmos estímulos.
Esta será, creio, uma das vias que possibilitará que a diferença deixe de convulsionar ou inquietar e se
converta em normalidade. Essa normalidade poderá então criar a oportunidade para, fazendo minhas as
palavras do Papa Francisco, «viver com a cultura do outro» e, ao vivê-la, a vermos e sentirmos como natural.
Importa, todavia, que não tenhamos ilusões: a estrada que importa percorrer é imensa e, não raras vezes, o
caminho parece infinito. Não obstante, acredito, firmemente, que um dia virá que todos concordarão, sem
reserva, com Gabriel Garcia Marques: uma pessoa só tem direito de olhar outra de cima para baixo no momento
de a ajudar a levantar-se.
Temos de construir sobre bons valores partilhados e ver na diversidade, não uma ameaça, mas antes uma
riqueza: Portugal não merece, nem espera de nós, outra atitude.
Termino felicitando mais a primeira Comissão por ter decidido iniciar um debate esclarecido sobre questões
subalternizadas no pensamento e discurso institucionais. Nesta matéria o negacionismo, a persistência na
desvalorização do fenómeno conduz ao desastre e à radicalização de posições.
Muito obrigada”.
VII – Visitas
Os trabalhos do relatório integraram 10 visitas, passando pela Região Norte, Bragança, concelho selecionado
porque no estudo do IHRU sobre habitação das comunidades ciganas é o território identificado com mais
situações de habitação não clássica. Na Região Centro, selecionámos Coimbra porque tem uma experiência,
que é única no país, um Centro de Estágio Habitacional para a Comunidade Cigana, de transição entre a
habitação não clássica e a habitação social. Na Região Sul, a visita realizou-se em Moura, porque tem famílias
ciganas a viver em diferentes contextos habitacionais e porque se estima (porque não há dados oficiais) que é
o concelho do país com maior percentagem de população das comunidades ciganas em relação à população
total.
As restantes visitas realizaram-se na Área Metropolitana de Lisboa, com visitas a bairros historicamente
relacionados com a comunidade afrodescendente, nas margens norte e sul do Tejo – Bairro do Alto da Cova da
Moura na Amadora; Bairro Terraços da Ponte antiga Quinta do Mocho em Loures; Bairro da Bela Vista e Quinta
da Paciência em Setúbal, Vale da Amoreira na Moita e uma Associação de Mulheres Ciganas, AMUCIP, no
Seixal.
Estas visitas foram sempre organizadas através de instituições da sociedade civil de auto representantes de
afrodescendentes e das comunidades ciganas ou outras Associações que desenvolvem trabalho com estas
comunidades, sendo sempre comunicadas as visitas aos Municípios e Freguesias para que acompanhassem a
deslocação.
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Visitas realizadas no âmbito do relatório
Local Programa Delegação Aspetos mais relevantes:
Bragança
10 e 11 de fevereiro
Acampamento dos Formarigos
Bairro da Mãe d´Água
Acampamento do Cruzamento de Donai
Comunidade de Sortes
Poder Local: Câmara Municipal de Bragança
Dr. Hernâni Dinis Venâncio Dias, Presidente Dr.ª Fernanda Maria Fernandes Morais Vaz Silva – Vereadora Associações e entidades locais: Serviço da Pastoral das Migrações e Minorias Étnicas da Diocese Bragança-Miranda
- Ana Margarida Eiras Preto Fernandes, - Cristina Conceição Ferreira Vidal Figueiredo, - Isabel Maria Fernandes Gonçalves, - Luís Pinto Castanheira - Raúl Aurélio Brás Gomes Deputados:
Ângela Guerra (PSD) Sandra Pereira (PSD) Catarina Marcelino (PS) Helena Roseta (PS) Maria Manuel Rola (BE)
Acampamento dos Formarigos
- Indignidade habitacional muito grave (barracas muito precárias e sujas) -Escola exclusivamente com crianças ciganas - Idosa cigana em condições muito precárias Bairro da Mãe d’Água
- Casas de ocupação ilegal onde vivem famílias da comunidade cigana Acampamento do Cruzamento de Donai (Antiga Lixeira) - Bairro de barracas com puxada de
luz ilegal, processo da EDP em tribunal para corte da eletricidade, que estava eminente Comunidade de Sortes
- Comunidade cigana integrada, com emprego numa fábrica de castanhas e trabalho sazonal agrícola. - Problemas na legalização das casas, por dificuldades processuais e custos de legalização
Coimbra
15 de abril
Centro de estágio habitacional de Coimbra
Escola EB1 do Ingote
Associação dos Ciganos de Coimbra
Bairros do Planalto e do Ingote
Projeto Escolhas Trampolim
Poder Local:
Câmara Municipal de Coimbra
Dr. Carlos Manuel Dias Cidade, Vice-Presidente Dr. Jorge Alves, Vereador Dr. Francisco Queirós, Vereador Eng.ª Rosa Santos, Diretora do Departamento de Desenvolvimento Social e Ambiente Junta de Freguesia da União de Freguesias de Eiras e São Paulo de Frades
Dr. Fernando Abel, Presidente Entidades Públicas Alto Comissariado para as Migrações (ACM) Dr.ª Luisa
Malhó, Diretora do Departamento de Apoio à Integração e Valorização da Diversidade Associações e entidades locais:
Centro de Estágio Habitacional
- Experiência de habitação temporária de transição. Em 16 anos passaram por lá 12 famílias o que denota pouca transição para outras habitações. Local periférico da cidade com poucos transportes. Casas de madeira com condições precárias Escola EB1 do Ingote
- Escola EB1 e Jardim de Infância com bons resultados escolares integrada no Agrupamento de Escolas Rainha D. Isabel, frequentado por cerca de 80 crianças ciganas Associação dos Ciganos de Coimbra
- Associação no Bairro do Ingote com um trabalho de acompanhamento das famílias do bairro e atividades de ocupação das mulheres ciganas, artesanato Projeto Escolhas Trampolim
- Projeto da 7.ª geração do Escolhas, está integrado no Bairro do Planalto, no Ingote e acompanha crianças e jovens entre as quais ciganos. Tem
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Local Programa Delegação Aspetos mais relevantes:
Associação dos Ciganos de Coimbra
- Osvaldo Grilo - Maria João Pais Deputados:
Ana Oliveira (PSD) Elza Pais (PS) Catarina Marcelino (PS) José Manuel Pureza (BE)
monitores da comunidade que foram eles próprios utentes do projeto.
Moura
6 de maio
Escola EB2 de Moura
Acampamento do Largo da Feira Velha
Bairro do Girassol
Projeto Escolhas – ADC Moura
Poder Local: Câmara Municipal de Moura
Dr.ª Lurdes Balola, Vereadora Entidades Públicas Alto Comissariado para as Migrações (ACM) Dr.ª Luisa
Malhó, Diretora do Departamento de Apoio à Integração e Valorização da Diversidade Associações e entidades locais: Associação Sílaba Dinâmica
- Luís Romão - Adérito Oliveira - José Rodrigo Associação Letras Nómadas
- Olga Mariano Deputados:
Catarina Marcelino (PS) Nuno Sá (PS) João Dias (PCP)
Escola EB2 de Mora
- Escola integrada num Agrupamento com 35% de crianças de etnia cigana - Escola TEIP com 2 mediadores, uma Assistente Social e 1 Psicóloga - Diminuição do abandono escolar nos últimos anos, mas mantem-se o absentismo - Casamentos precoces de raparigas com 13/14 anos (4 jovens grávidas a frequentar a escola neste ano letivo) - Baixa frequência do ensino pré-escolar por crianças ciganas. Identificado problema de transporte. Acampamento do Largo da Feira
- Bairro de barracas muito precárias onde vive uma comunidade com muitas crianças (cerca de 6 famílias) -Bairro do Girassol
- Bairro de habitação social com necessidade de obras nos prédios. Há casas ocupadas sem água e com puxada de luz e pessoas a viver em espaços de lojas. - Há uma resposta municipal de ATL que apoia as crianças do bairro - As pessoas que ali vivem na sua grande maioria estão desempregadas Projeto Escolhas Despert@art ADC Moura
- Projeto Escolhas de 7.ª geração está no território desde a 3.ª geração (2009-2011) - Desenvolve-se em 2 localidades: Póvoa de S. Miguel (35 famílias- 69 adultos e 68 crianças) e Sobral da Adiça (32 famílias – 63 adultos e 56 crianças) - Aposta no sucesso escolar, na promoção da cidadania e no combate à iliteracia
Amadora
14 de junho
Escola Secundária Dr Azevedo Neves
Bairro do Alto da Cova da Moura
Associação Cultural Moinho da Juventude
Poder Local:
(não esteve presente, nem se fez representar) Escola Dr. Azevedo Neves:
- Diretor da Escola- Professor Bruno Santos - Professora Adelina Piteira
Escola Secundária Dr. Azevedo Neves
- A escola faz parte do agrupamento Dr. Azevedo Neves que tem 1400 alunos(as) (2 JI; 2 EB1; 1 EB2/3 e secundária) - 3 turmas SEF; 1 turma PIEF; 1 turma PCA
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Local Programa Delegação Aspetos mais relevantes:
Associações e entidades locais: Associação CulturalMoinho da Juventude
- Flávio Almada - Jakilson Pereira Deputados:
Catarina Marcelino (PS) Rita Rato (PCP)
- Ensino secundário:21 turmas de Ensino Profissional e 2 turmas de Ensino Regular 75% dos(as) alunos(as) são afrodescendentes 70% dos(as) alunos(as) têm apoio da Ação Social Escolar Bairro Alto da Cova da Moura
- Bairro com forte vivência e organização comunitária (ex. recolha do lixo) - Há pessoas idosas a viver no bairro que têm dificuldades em sair do território - Projetos de índole cultural fortes, com influência das origens culturais dos moradores(as) - Simultaneidade linguística entre português e crioulo de cabo-verde - Tensão com as forças de polícia - Dificuldade de mobilidade e de entrada para a estação de comboios que serve o bairro, que encerra às 21h e ao fim-de-semana Associação Cultural Moinho da Juventude
- Associação muito importante na comunidade com serviços à população - Projetos na área do Emprego que apoiam 500 pessoas – GIP em parceria com o IEFP e Projeto Incorpora, com método de trabalho apoiado, financiado pela Fundação La Caixa - Respostas na área da infância – 85 crianças em JI e 68 na creche, têm creche familiar com 14 amas
Loures
28 de junho
Casa da Cultura de Sacavém
Bairro Terraços da Ponte antiga Quinta do Mocho
Reunião com associações e entidades locais
Poder Local: Câmara Municipal de Loures
Dr. Gonçalo Filipe Vintém Caroço, Vereador Dr. Duarte Nuno Morgado – Secretário do Sr. Vereador Dr.ª Carla Barra - Diretora Departamento de Coesão Social e Habitação (DCSH) Dr.ª Amélia Teodoro - Chefe da Unidade de Igualdade e Cidadania Associações e entidades locais: START.SOCIAL – Cooperativa Socioeducativa para Desenvolvimento Comunitário, C.R.L. - Lurdes Gonçalves
- Sérgio Teixeira - Ana Luísa Gomes
Paiol militar da Quinta do Mocho
- Zona de barracas com condições de habitabilidade muito precárias, maioritariamente habitadas por imigrantes dos PALOP, em que algumas barracas foram destruídas por um incêndio recente. - Houve realojamento das famílias das barracas ardidas, mas as restantes continuam a viver em condições de grande precariedade. Bairro Terraços da Ponte, antiga Quinta do Mocho
- O bairro organizou-se por nacionalidades – Cabo-Verde, Angola, Moçambique, Guiné e São Tomé e Príncipe - Forte sentido comunitário e identitário - Galeria de arte urbana com 112 obras de arte nas fachadas dos prédios - Espaços comunitários criados pelos moradores – ex. “sentada” espaço de
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Local Programa Delegação Aspetos mais relevantes:
- Rita Cordeiro - Rute Fortes UJAP – União de Juventude Angolana em Portugal– Adriano Pedro e
José Rodrigues Alves Associação Mocho + -
Hélder André e Evânia VembaProsaudesc - Associação de Promotores de Saúde Ambiente e Desenvolvimento Socio - Cultural – Virgínia Neto Capacitare – Dr.ª Carla
Santos Plataforma para a Reflexão Cívica dos Afrodescendentes – Dr.ª
Carla SantosAgrupamento de Escolas Eduardo Gageiro
Prof. Lúcia Madeira Prof. Danisa Passos Deputados:
Catarina Marcelino (PS)
convívio debaixo de uma árvore gerida por uma moradora - Estendal comunitário Reunião com associações no espaço da Associação Start.Social, dentro da Casa da Cultura
- Falta de representatividade política das comunidades na Junta de Freguesia e nos Órgãos Municipais e não há negros a trabalhar na Administração Pública. - Vontade de terem um papel mais ativo na resolução dos problemas do bairro e da comunidade. - Educação:
Agrupamento com elevada percentagem de crianças africanas e afrodescendentes – na EB1 n.º 3 todas as crianças são africanas ou afrodescendentes; Crianças com português como língua não materna; Famílias que trabalham muitas horas por dia e as crianças ficam sozinhas e brincam muito na rua; Muitas não terminam percursos regulares de ensino por razões financeiras; A entrada na universidade é rara; As crianças têm desvantagens de partida e baixas espectativas, muitas crianças acreditam que não são capazes, há um forte estigma “não vale a pena, somos sempre nós”. - Emprego: Maioritariamente as mulheres trabalham em limpezas e os homens na construção civil Muitos jovens ex-reclusos e saem sem documentos porque nas cadeias não tratam da renovação dos documentos dos presos - Muitos jovens indocumentados e irregulares, em particular aqueles que nasceram entre 1981 e 2006.
Setúbal Moita Seixal
1 de julho
Bairro da Bela Vista e Quinta da Parvoíce – Setúbal
Vale da Amoreira e Associação Cabo-Verdiana do Vale da Amoreira - Moita
Projeto da Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas (AMUCIP) – Seixal
Câmara Municipal de Setúbal
(não esteve presente nem se fez representar) Câmara Municipal da Moita Dr. Rui Manuel Marques Garcia, Presidente
Dr.ª Cármen Mafra, Deputada Municipal Junta de Freguesia da União das Freguesias da Baixa da Banheira e Vale da Amoreira - Dr. Nuno Cavaco, Presidente
Bairro da Bela Vista:
- Projetos municipais para requalificação dos prédios com a participação dos moradores - Muito esforço das pessoas da comunidade cigana para integrarem o mercado de trabalho - Cultura enraizada entre os jovens de desconfiança e medo da polícia - Projeto Escolhas no Bairro gerido pela APP e frequentado por crianças de diferentes proveniências étnico-raciais. - As crianças frequentam na sua maioria o ensino regular nas escolas EB1 Peixe Frito e EB1 Bairro da Conceição e Bela Vista
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Local Programa Delegação Aspetos mais relevantes:
Associações e entidades locais: Associação Cabo Verdiana do Vale da Amoreira
Dr.ª Luísa Barbosa Deputados:
Catarina Marcelino (PS) Joana Mortágua (BE) Bruno Dias (PCP)
- Associação Cabo-Verdiana apoia imigrantes e tem nas suas instalações a “Casa do cidadão de Cabo-Verde” para emissão de documentação, como o registo criminal e a certidão de nascimento. ATL em parceria com o Alto Comissariado para as Migrações. Principal procura – processos de nacionalidade Quinta da Parvoíce/Paciência
- Bairro de casas precárias ou barracas onde vive maioritariamente a população Cabo-Verdiana. Muita imigração recente. Novas casas a serem construídas Associação Cabo-Verdiana do Vale da Amoreira
- Situações de imigrantes indocumentados (muitas são pessoas nascidas entre 1981-2006) - Pessoas idosas irregulares sem proteção social - Doentes evacuados da Guiné e de São Tomé e Príncipe em situações muito precárias, há acordo bilateral para RSI com Cabo-Verde - O aumento do número de pedidos de nacionalidade - Nova imigração brasileira no Bairro - Dificuldades com a inscrição das crianças nas escolas e no acesso à saúde (cobram para lá das taxas moderadoras) - Bairro muito estigmatizado, jovens muito revoltados quando não têm documentos. Custas muito elevadas para obtenção da nacionalidade - Há Projeto Escolhas no bairro desde a 1.ª Geração - 90% das crianças do bairro têm direito a ação social escolar - Elevada taxa de desemprego, economia paralela e precariedade laboral - Desvantagem social relativamente a quem não é negro - Cultura entre os jovens de desconfiança e medo da polícia - A relação com a PSP não é conflituosa, há agentes afrodescendentes na esquadra da Baixa da Banheira e é referido como fator positivo na relação com comunidade, mas é referido que entre os polícias há quem seja racista AMUCIP
- 60 mulheres ciganas em formação e 22 mulheres jovens no programa Qualifica na Escola Secundária da Amora a fazer curso B1 (competências básicas), Formação em patchwork através de projeto FAP
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Local Programa Delegação Aspetos mais relevantes:
do ACM, critica ao período do projeto ser de 9 meses que retira capacidade de implementação, propõem que passe para 3 anos - 10 mulheres com formação de mediadoras que podem ser colocadas a trabalhar - Importância do Kit Pedagógico, lançado com o Ministério da Educação, sobre cultura cigana- Romano Atmo - Há cada vez mais jovens ciganos a trabalhar como motoristas na UBER e uma referência à impossibilidade das pessoas ciganas conseguirem alugar uma casa
Estabelecimento Prisional de
Tires
2 de julho
Reunião com a Direção
Visita à Casa das Mãe e contacto com reclusas
Diretora do Estabelecimento – Dr.ª
Maria de Fátima Andrade Corte Diretor-geral de Reinserção e Serviços Prisionais – Dr.
Rómulo MateusDeputados:
Elza Pais (PS) Catarina Marcelino (PS)
EP Tires
Prisão feminina Lotação – 667 Ocupação – 420 reclusas -141 mulheres estrangeiras (51 brasileiras) maioritariamente detidas por serem correios de droga. - Não há dados étnico-raciais, mas há perceção de muitas mulheres ciganas e afrodescendentes. - O DG da DGRSP afirmou que há uma desproporção dos grupos étnicos na população prisional.
Estabelecimento Prisional do
Linhó
8 de julho
Reunião com a Direção
Visita às instalações e contacto com reclusos
Diretora do estabelecimento – Dr.ª
Maria da Conceição Duarte Fernandes Gralha Diretor-geral de Reinserção e Serviços Prisionais – Dr.
Rómulo MateusDeputados:
Catarina Marcelino (PS)
EP Linhó
Estabelecimento Prisional de segurança alta. Reclusos – maioritariamente jovens adultos com condenações a prisão efetiva de mais de 6 anos - 427 reclusos (420 condenados e 7 preventivos) - Grande maioria dos reclusos são nacionais portugueses (343), mas 55 são de Cabo Verde, 23 de Angola, 17 do Brasil e 16 da Guiné. Entre os reclusos de nacionalidade portuguesa não sabemos a origem étnico-racial, mas a Diretora do EP refere que há muitos afrodescendentes. O DG da DGRSP diz que nos tribunais há uma cultura pouco amigável relativamente à permissão de permanência em Portugal, quando se pode aplicar a pena acessória de expulsão. Dentro do EP do Linhó como as penas são longas e a população jovem, há um forte investimento na educação. Quanto ao trabalho dentro do EP, o valor pago pelo trabalho dos reclusos é muito baixo e nunca foi definido o regime jurídico do trabalhador recluso.
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VIII – Conclusões
No âmbito do Relatório sobre Racismo, Xenofobia e Discriminação Étnico-racial, ouvimos, em audição, 31
entidades e personalidades, nas visitas que realizámos estiveram envolvidas 28 organizações, e em todos os
trabalhos, em diferentes momentos, 18 Deputadas e Deputados de todas as forças políticas, tendo sempre como
princípio, em primeiro lugar, dar voz àqueles e àquelas que são alvo da discriminação e de seguida às entidades
e organizações que trabalham com estes públicos.
Este princípio, que norteou os trabalhos do Relatório deve-se ao facto de não ser possível avaliar
politicamente uma realidade sem compreender como é que as pessoas que a vivem a percecionam, e, o que
querem para si próprias.
Esta perspetiva aplica-se não só à avaliação política, mas também à concretização de políticas públicas
eficazes e eficientes para responder às necessidades das cidadãs e dos cidadãos afetados pelo fenómeno social
da discriminação étnico-racial.
Partindo da voz das pessoas que são alvo da discriminação nas audições públicas, passámos às audições
com especialistas que têm reflexão sobre o tema e que nos ajudam a compreender os factos de forma mais
conceptual e mais reflexiva.
Por fim, sendo um dos objetivos deste relatório avaliar a intervenção do Estado no âmbito das políticas
públicas, na promoção de igualdade de oportunidades para as pessoas que pertencem a minorias étnico-raciais
e no combate ao racismo, à xenofobia e à discriminação, ouvimos Dirigentes da Administração Pública em áreas
que consideramos chave, assim como Membros do Governo também em áreas determinantes.
Há ainda a necessidade de partir de uma perspetiva interseccional que cruze as diferentes discriminações,
étnico-raciais, género, identidade, classe, que permita compreender as origens da discriminação nos modelos
sociais vigentes, na organização social e como estas dimensões da discriminação se potenciam entre si. A
dimensão de género é muito evidente quando falamos dos estereótipos profissionais das pessoas
afrodescendentes, ou, da híper sexualização das mulheres brasileiras, ou dos casamentos e da maternidade
precoce das meninas ciganas. Quanto às desigualdades de rendimento e de classe, estão patentes nos bairros
sociais e nos acampamentos das comunidades ciganas, onde a pobreza é uma marca sempre presente.
Tendo em conta as audições que foram realizadas, podemos afirmar que há da parte das Associações de
afrodescendentes, da comunidade brasileira e das comunidades ciganas uma evidente consciência do racismo,
da xenofobia e da discriminação a que estão sujeitas. No que diz respeito à academia e ao ativismo existe
pensamento crítico e informado sobre o tema.
Quanto aos e às dirigentes da Administração Pública há consciência de que existem assimetrias com base
na discriminação étnico-racial, mas existe ainda uma ação muito centrada nas questões da imigração sem fazer
a destrinça do ponto de vista da intervenção. Os membros do Governo ouvidos reconhecem a discriminação
étnico-racial nas suas áreas de intervenção, havendo uma preocupação em ir mais longe nas políticas públicas
de combate a este fenómeno.
Em simultâneo com o calendário das audições foram realizadas 10 visitas, que incidiram em territórios com
forte expressão das comunidades ciganas – Bragança, Coimbra, Moura e Seixal – e das Comunidades
Afrodescendentes – Cova da Moura/Amadora, Quinta do Mocho/Loures, Bela Vista e Quinta da
Parvoíce/Setúbal e Vale da Amoreira/Moita. Foram ainda realizadas duas visitas a Estabelecimentos Prisionais
– Tires e o Linhó.
Estas visitas permitiram um contacto direto com as comunidades e com a realidade habitacional e territorial
em que vivem, compreendendo melhor as condições de precariedade habitacional em Bragança, Moura, Loures
e Setúbal, a experiência de segregação dos Bairros Sociais ou Bairros de Génese Ilegal em Coimbra, Amadora,
Loures, Setúbal e Moita e nos contextos escolares, de mobilidade e de trabalho associados.
É de referir que um Relatório desta natureza realizado em 5 meses, não permitiu que fossem ouvidas, em
audição, todas as entidades e personalidades que poderiam dar contributo para os trabalhos, nem visitados
todos os locais que nos trariam um melhor conhecimento da realidade no território. Contudo, procurámos que
os trabalhos nos proporcionassem uma visão equilibrada e abrangente da realidade das pessoas e de como a
realidade se traduz no território nacional.
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Contexto das Políticas
A Sociedade Portuguesa tem uma longa História de relação com comunidades etnicamente e culturalmente
diversas. Séculos de colonização, a descolonização e a imigração dos Países Africanos de Língua Oficial
Portuguesa após 1974, levou a que hoje existam muitas pessoas portuguesas afrodescendentes que não são
imigrantes. Entre 2007 e 2017, com a alteração à lei da nacionalidade de 2006, cerca de meio milhão de pessoas
tornaram-se portuguesas, entre elas muitas de origem africana e brasileira.
Às legítimas expectativas de igualdade de oportunidades das pessoas afrodescendentes, juntam-se as
necessidades imperiosas de inclusão, em áreas como a habitação, educação e emprego, das comunidades
ciganas, a única minoria étnica autóctone, radicada em Portugal desde o século XV.
Acresce ainda o facto do atual contexto social e político, nacional e europeu, diferenciar-se daquele que se
vivia na década de 90 do século XX, quando em Portugal foi desenvolvido um forte investimento nas políticas
de integração de imigrantes.
A realidade atual das minorias étnico-raciais, nomeadamente a existência de cada vez mais pessoas
afrodescendentes portuguesas e de haver uma maior consciência por parte destas pessoas, mas também das
comunidades ciganas da sua condição de discriminação com base na sua origem étnico-racial, exige da parte
das políticas públicas uma diferenciação clara entre imigração e estas comunidades de portugueses e
portuguesas.
Esta perspetiva esteve muito presente nas audições a especialistas.
Diz Miguel Vale de Almeida, Professor do ISCTE, “A primeira premissa que precisa de ser esclarecida já foi
aqui repetida várias vezes e tem a ver com a necessidade de nós, conceptualmente, distinguirmos migração de
racismo e distinguirmos as questões que afetam as populações migrantes — e que são questões absolutamente
importantes, nenhum de nós está a diminuir isso — mas que, conceptualmente, se separam, embora às vezes
se sobreponham, mas nem sempre, das questões que têm a ver com o racismo na sociedade portuguesa, com
a existência de afrodescendência em Portugal e com o facto de a tal comunidade que imaginamos dever ser
imaginada como uma comunidade que é também afrodescendente”.
Cristina Roldão, Professora da ESE (Escola Superior de Educação) de Setúbal afirma, “Acho que esse é um
dos grandes desafios, quer do ponto de vista da forma como concetualizamos as desigualdades na sociedade
portuguesa, quer do ponto de vista da formulação de políticas. Uma distinção clara e efetiva entre políticas de
imigração e políticas de combate ao racismo. (…) Precisamos de uma estrutura independente e autónoma da
pasta das migrações e do combate à pobreza, que se debruce especificamente sobre a questão do racismo e
das desigualdades étnico-raciais na sociedade portuguesa e que seja liderado por pessoas e por representantes
das comunidades que sofrem mais discriminação em Portugal”.
Maria do Rosário Carneiro, Professora da Universidade Católica, diz: “Não compreendo como é que as
questões da comunidade cigana portuguesa estão incluídas no Alto Comissariado para as Migrações. É
qualquer coisa que eu não consigo compreender. Não são estrangeiros, são portugueses. Portanto, as suas
questões e a tutela das políticas públicas que dizem respeito a esta comunidade não pode depender de um
organismo que se ocupa com questões como sejam as das migrações. Não são migrantes! É uma comunidade
residente em Portugal há mais de 500 anos. É portuguesa, não é? É portuguesa!”
O Alto-comissário para as Migrações, Pedro Calado, na sua intervenção, refere programas e políticas no
âmbito do racismo, da discriminação étnico-racial e da interculturalidade na estrutura orgânica do Alto
Comissariado e que se foram perdendo, ao longo dos anos, no seu nome, as referências a esses contextos,
sendo hoje designado Alto Comissariado para as Migrações.
Este aspeto, não é só relevante para uma melhor eficácia das políticas públicas, mas é também um fator
muitíssimo importante para que não haja radicalização do discurso étnico-racial, quer da comunidade maioritária,
quer dos que são alvo de discriminação, e que todos possam ser e sentir-se parte da construção de uma
sociedade inclusiva e tolerante.
Durante as audições realizadas há um aspeto recorrente em todas elas, o facto de não haver dados
estatísticos de caracterização étnico-racial em Portugal e de estarmos a trabalhar com dados de imigração que
não incluem as e os nacionais que fazem parte destes grupos da população.
Esta constatação foi muito evidente, não sobre a forma como os dados devem ser recolhidos, apesar de
haver referências a este tema, - uma vez que os trabalhos do relatório foram coincidentes com o Grupo de
Trabalho que estudou a opção de inclusão de uma pergunta sobre origem étnico-racial nos Censos de 2021 e
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com a decisão do INE de não incluir a pergunta -, mas sobre a necessidade urgente de informação para poder
desenvolver políticas públicas que respondam às necessidades identificadas.
A informação refente à aquisição de nacionalidade por parte de cidadãos estrangeiros reforça a necessidade
de mais dados sobre esta população que deixou de constar nos dados sobre a imigração. Catarina Reis Oliveira
diz que nestas pessoas que adquiriram nacionalidade portuguesa há uma sobre representação de pessoas
provenientes dos PALOP e do Brasil – “Quando analisámos por nacionalidade de origem, portanto, antes da
aquisição da nacionalidade portuguesa, vimos uma sobre representação efetiva de cidadãos que eram falantes
de português. Estamos a falar de brasileiros e de cidadãos dos PALOP, principalmente quem adquiriu a
nacionalidade nos últimos anos”.
Rosário Carneiro afirmou “Não se trata de uma mera discriminação de natureza racial e étnica. A verdade é
que também é isso, mas tudo isto acontece porque existe esta outra circunstância da sua extrema pobreza. Isto
porque relativamente aos ciganos que não são pobres, nós não sabemos nada. E, de novo, se coloca a questão
dos censos. Como é que estão? Como é que vivem? Que profissões têm? Que percursos de vida tiveram?”
Recomendações
Separar o combate ao racismo e à descriminação étnico-racial da estrutura responsável pela
implementação de políticas de integração de imigrantes.
Realizar a recolha de informação estatística, pelo organismo responsável pela estatística nacional, sobre
origem e discriminação étnico-racial em Portugal.
Participação Política
Tendo em conta que uma democracia representativa é constituída, nos órgãos deliberativos, por
representantes das e dos eleitores, através de eleições europeias, legislativas e autárquicas, é desejável que
essa representatividade seja o mais abrangente possível na inclusão de pessoas que espelhem a diversidade
da sociedade portuguesa, entre as quais, pessoas portuguesas afrodescendentes e das comunidades ciganas,
assim como pessoas da comunidade brasileira que têm direitos políticos alargados por via do Tratado de
Amizade, Cooperação e Consulta entre Portugal e Brasil. Nas eleições autárquicas os direitos políticos alargam-
se a outras comunidades imigrantes com acordos de reciprocidade, nomeadamente, Cabo-Verde.
Contudo, quando olhamos para a representação política nacional nos órgãos eleitos, Parlamento Europeu,
Parlamento Nacional, Assembleias Municipais e Câmaras Municipais, a participação de pessoas negras, das
comunidades ciganas ou de comunidades imigrantes, é praticamente inexistente, tanto na Assembleia da
República como em Municípios onde a diversidade étnico-cultural é muito expressiva.
Cyntia de Paula, Presidente da Casa do Brasil, refere que “Uma questão que consideramos muito importante
é a falta de interesse dos Partidos Políticos em ter pessoas imigrantes nos papéis principais. Sentimos que as
comunidades imigrantes – e aqui vou falar da minha, que é a maior de Portugal…. Quantas pessoas temos nas
Juntas de Freguesia? Nas Câmaras Municipais e nesta Casa que nos recebe hoje? Quantas pessoas estão de
facto no poder de decisão? (…) Acho que há aqui um caminho muito grande a desconstruir em relação aos
partidos políticos, e isso é urgente”.
No mesmo sentido diz Olga Mariano, Presidente da Associação Letras Nómadas, “Os ciganos, como todos
sabemos, ainda não estão representados quer a nível local, quer a nível nacional. Basta ver no Parlamento
quantas pessoas ciganas existem. Se falarmos em minorias, verificamos que não é só a representação cigana
que não está representada, mas também a população afrodescendente. Onde é que ela está? (…)
Relativamente à nossa representação política nas listas, quando nos são endereçados convites pelos Partidos,
é praticamente só um «faz de conta». É importante dar-nos voz, porque nós fazemos a mudança”.
Ao que Bruno Gonçalves, Vice-Presidente da Associação Letras Nómadas, acrescenta “Gostaria de salientar
que cada vez mais temos portugueses ciganos com consciência política e vontade de participar. (…) Precisamos
apenas de grandes oportunidades e que não tenhamos um papel secundário nesta questão da participação
política. Acho que muitos de nós somos também capazes de construir, de melhorar e de enriquecer as nossas
cidades a nível local, mas também temos alguns portugueses ciganos com capacidade para enriquecer a nível
nacional e fazer política”.
Mirna Montenegro, Educadora de Infância e Investigadora, refere “Por outro lado, os partidos políticos deviam
acolher nas suas listas pessoas ciganas e dar-lhes voz, para não serem só meros consultores. Na altura,
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também se falou nisso e eu não sei até que ponto é que foi tido em conta. Os ativistas ciganos fazem parte de
uma elite e, como diz a Olga, «candeia que vai à frente alumia duas vezes».“
É ainda de salientar que o XXI Governo Constitucional tem a maior representatividade étnico-racial de sempre
nos Governos do país, mas que não é eleito.
Esta realidade aponta, como verificámos pelas intervenções sobre este tema nas audições, que há uma
desigualdade étnico-racial entre aqueles que exercem o seu direito a serem eleitores e eleitos e aqueles que
são eleitores, mas que não têm a oportunidade de serem eleitos.
Há ainda outra situação que nos é relatada, nomeadamente, no que diz respeito aos imigrantes e em
particular à comunidade brasileira que tem direitos políticos alargados, a percentagem daqueles que exercem
os seus direitos de eleitor é muito baixa, entre a comunidade brasileira, segundo foi adiantado pela
Coordenadora do Observatório das Migrações, Catarina Reis Oliveira, é de 6%, sendo a taxa de recenseamento
eleitoral da comunidade Cabo-Verdiana a mais elevada.
“Sabemos que os brasileiros são aqueles que têm mais direitos em termos políticos. Ainda assim, quando se
analisa por nacionalidades, verifica-se que, nos últimos anos, diminuiu o recenseamento dos nacionais de países
terceiros e, se considerarmos o número de recenseados por total de residentes com mais de 20 anos — é o
indicador possível de apurar —, temos uma taxa de recenseamento de 30% para os Cabo-Verdianos, enquanto
para os Brasileiros estamos na ordem dos 6%. Aqui, há um grande salto relativamente ao direito versus efetiva
prática desse direito”.
Recomendações:
Sensibilizar os partidos políticos para a integração de minorias étnico-raciais nas listas que concorrem a
eleições Europeias, Legislativas e Autárquicas, de modo a garantir maior representatividade destas
comunidades nos órgãos de decisão política.
Desenvolvimento de campanhas e ações de sensibilização junto das comunidades imigrantes de modo a
estimular a participação nas eleições em que podem participar.
Justiça e Segurança
Quando falamos do tema do relatório, uma das questões mais sensíveis é a área da justiça e segurança, e,
é um tema que tem tido projeção mediática, com acontecimentos como o julgamento dos polícias da esquadra
de Alfragide ou da intervenção policial no Bairro da Jamaica.
Nas audições públicas, as entidades ouvidas sobre este tema, Amnistia Internacional e SOS Racismo,
referiram a necessidade de uma maior concretização de resultados face às queixas no âmbito da CICDR; o
combate ao aumento do discurso de ódio em Portugal, em particular, nas redes sociais; e o sentimento de
impunidade da comunidade face aos comportamentos racistas e discriminatórios.
Refere Susana Silva, Perita da Amnistia Internacional, “Para dar um contexto dos números da CICDR,
recordo que, de acordo com o seu último relatório, de 2017, a CICDR recebeu 179 queixas, das quais 44 deram
origem a processos de contraordenação, queixas estas que são apresentadas por discriminação, sendo que
38% tiveram por base a origem racial e étnica, 22,3% a nacionalidade, 21,8% a cor da pele - são dados de 2017
e ainda estava em vigor a lei anterior à Lei n.º 93/2017. Gostaria de dizer porque é relevante que, em face de
todas estas queixas, poucas são aquelas que chegam a condenação. No site da CICDR, conseguimos verificar
que, no ano de 2018, existiram cinco condenações. Não sabemos se são processos que transitaram do ano
anterior, mas, de facto, existe uma taxa de condenação pequena relativamente aos casos de denúncia, e
importa, como já foi recomendado e precisarei adiante, conhecer o motivo para que estas condenações não
existam”.
Houve também, nas intervenções das audições públicas e sobretudo nas reuniões realizadas durante as
visitas aos Bairros da Área Metropolitana de Lisboa, uma mensagem clara de existência de desconfiança das
camadas mais jovens da população dos bairros (integrada no que denominaram de imaginário da cultura juvenil)
em relação às forças de segurança, e por outro lado uma indiferença das forças de segurança relativamente à
necessidade de gerar confiança entre as camadas mais jovens destas comunidades. Este discurso esteve muito
presente na visita à Quinta do Mocho pelo representante da Associação de Jovens Mocho +, Hélder André, na
visita realizada ao Bairro da Bela Vista, pela Liliana Freire da Paróquia local e no Vale da Amoreira, pela Luísa
Barbosa da Associação de Cabo-Verde.
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Na audição a dirigentes da Administração Pública os dirigentes da PSP e da GNR valorizaram o esforço das
forças de segurança na promoção de formação em direitos humanos e interculturalidade de modo a transmitirem
aos agentes valores e princípios de inclusão da diversidade. Afirmaram ainda, que as forças de segurança são,
na sua maioria, respeitadoras dos valores da liberdade e dos direitos humanos, tendo-o demonstrado através
de dados estatísticos.
Diz o Superintendente-Chefe Luís Manuel Peça Farinha, da PSP, “Com efeito, o volume de interações dos
polícias da PSP, no dia-a-dia, ultrapassa anualmente e em média os 2,5 milhões. A PSP é, assim, uma instituição
sujeita a um elevado escrutínio do cidadão comum, da sociedade e de inúmeras instituições com as quais
interage, escrutínio com o qual convive de forma confortável e que lhe acentua um carácter de polícia
democrática e de proximidade que pretende ser”.
“Deste volume de interações, em 2018, as queixas contra atuações policiais e as reclamações em Livro de
Reclamações representaram 0,049% do total de interações, resultados que nos parece que refletem claramente
a real preocupação com a qualidade do serviço e da ação policial no respeito pelos princípios legais,
deontológicos e éticos que devem nortear a cultura dos polícias”.
Também o Tenente-General Rui Manuel Carlos Claro, da GNR salienta “a especial atenção que tem sido
dada no reforço da componente formativa, quer no âmbito da formação inicial do nosso pessoal, quer na
formação contínua, na formação de promoção a posto superior e na formação de especialização em áreas mais
técnicas. Estas ações de formação são ministradas a todos os elementos da Guarda, com particular incidência
na defesa e garantia dos direitos e combate de situações de discriminação, clarificando inequivocamente os
limites da atuação, o regime disciplinar e as consequências punitivas de uma errada atuação policial”.
Paulo Ferreira, Subdiretor-Geral da IGAI sugere “Seria importante — o que vem sendo defendido já há muito
pela IGAI — o controlo e a vigilância eletrónicos. Estamos a lembrar-nos da introdução de áudio gravadores nas
esquadras e postos de polícia, para controlo dos contactos entre a polícia e os suspeitos, da vigilância eletrónica
na introdução do equipamento dos elementos das forças de segurança de uma câmara de vídeo usada na lapela
da farda”.
A Secretária de Estado Adjunta e da Administração Interna, Isabel Oneto, refere “Relativamente à questão
do racismo, da xenofobia e da violência no seio das forças de segurança. Penso que nós temos que não
escamotear o problema, mas quando se discute tem de se discutir com serenidade (…) Além da discriminação
em si e da situação fática em si, há a questão do uso da violência, que é muito mais complexo e há a questão
da autoridade. Portanto, tudo isto leva a que o assunto seja também discutido com serenidade, precisamente
porquê? Porque nós não podemos escamotear aquilo que há, nem podemos sequer permitir que os indícios ou
as situações que são detetadas nas forças de segurança não tenham imediatamente um processo de
averiguações e que haja uma reação dura relativamente a essas situações, até porque são situações que
comportam precisamente uma dificuldade de compatibilização com o exercício da profissão. Isso pode não
acontecer noutras situações da Administração Pública. Portanto, a resposta tem de ser, de facto, imediata, em
termos de intolerância total relativamente a estas situações”.
“Outra coisa é o impacto que determinadas ocorrências têm no seio da comunidade, o alarme social que elas
criam. O que já é por si muito positivo, no nosso entender, haver a perceção de que uma situação destas é
totalmente intolerável pela sociedade e, portanto, tem um impacto forte, o que não significa, depois, que essas
situações representem uma parte significativa das forças de segurança”.
A Secretária de Estado Adjunta e da Administração Interna fez ainda fez ainda referência aos Contratos
Locais de Segurança que partem de um diagnóstico do território e da comunidade e desenvolve respostas
integradas com outras entidades que intervêm naquela realidade.
Refere também a Secretária de Estado, dando o exemplo da Polícia de Toronto, no Canadá, da necessidade
de integrarem as forças de segurança mais agentes pertencentes às minorias étnico-raciais. Também na visita
realizada ao Vale a Amoreira, Freguesia da Baixa da Banheira no Concelho da Moita, foi-nos relatado que a
Esquadra da Baixa da Banheira tem na sua composição agentes afrodescendentes e que esse é um fator
positivo.
“Temos vindo a estudar o fenómeno, por exemplo, da Polícia de Toronto, onde existem várias comunidades,
ou seja, o próprio distrito é formado por várias comunidades. É conhecido pela sua diversidade cultural, ainda
por cima tem o bairro dos italianos, dos portugueses, dos chineses. Tudo aquilo está dividido dessa maneira. A
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verdade é que a Polícia de Toronto tem polícias oriundos dessas comunidades que são interlocutores
privilegiados para essas comunidades”.
“A dificuldade está em saber como fazer chegar, na medida em que não creio que seja possível direcionar a
abertura própria para essas comunidades, mas seria interessante saber como trabalhar, para que possamos ter,
no seio das forças de segurança, pessoas oriundas das minorias que possam também elas ser agentes que
possam exercer a sua profissão normalmente, mas que possam também saber como lidar com determinadas
situações”.
Também as dificuldades no acesso à justiça e à literacia em direitos de cidadania são questões referidas nas
intervenções, como fatores de fragilização das comunidades discriminadas que, no caso das pessoas
afrodescendentes e da comunidade brasileira, se cruzam muitas vezes com aspetos relacionados com a
imigração e a obtenção de documentação. Foram ainda referidas as dificuldades que persistem com o SEF-
Serviço de Estrangeiros e Fronteiras nos processos de renovação de residência e de legalização.
Foi ainda referido em vários momentos, mas muito em particular no Seminário Final pelo Advogado José
Semedo Fernandes, as dificuldades com que se deparam os jovens imigrantes, nascidos em Portugal entre
1981 e 2006, que cometeram delitos criminais e que têm grande dificuldade em obter a nacionalidade apesar
de terem nascido em Portugal e nunca terem vivido noutro país.
Ainda no âmbito da justiça um dos aspetos abordados, nomeadamente pelo Diretor-Geral de Reinserção e
Serviços Prisionais durante a visita que realizámos ao EP de Tires, foi a desproporcionalidade de pessoas
afrodescendentes, ciganas e brasileiras na população prisional, sem que, contudo, existam dados estatísticos
que sustentem a perceção, referindo que esta realidade é do final de linha, o que pressupõe compreender o
fenómeno até chegar ao sistema prisional.
Recomendações:
Introdução de câmaras de vídeo na lapela das fardas quando há intervenções policiais.
Desenvolver projetos de proximidade com os jovens e as comunidades dos bairros das Áreas
Metropolitanas, que levem ao aumento da confiança entre a comunidade e a polícia.
Desenvolver estratégias para o recrutamento de agentes de segurança dentro da comunidade de
afrodescendentes e das comunidades ciganas.
Estudar e avaliar uma solução legislativa que enquadre na Lei da Nacionalidade os cidadãos e cidadãs
imigrantes que nasceram em Portugal entre 1981 e 2006 e que nunca viveram fora de Portugal.
Estudar a origem étnico-racial da população prisional portuguesa e compreender a sua proporcionalidade
no total deste universo, assim como os contextos sociais destas pessoas.
Educação
Portugal após o 25 de abril de 1974 universalizou o sistema de ensino que hoje é obrigatório até aos 18 anos.
A verdade é que num sistema que é universal continuam a existir assimetrias que devem ser corrigidas sob
pena de estarmos a limitar o direito a oportunidades iguais a todas as crianças.
No que diz respeito às crianças e jovens provenientes de minorias étnico-raciais há um conjunto de fatores
que criam desigualdades dentro do sistema que é necessário acautelar porque são em muitos casos fator de
segregação indireta.
Dados que nos foram facultados pelas entidades e personalidades que se debruçaram sobre o tema da
educação nas audições, demonstram que há uma assimetria no “sucesso” educativo das crianças das minorias
étnico-raciais.
As taxas de reprovação e de retenção são superiores para os afrodescendentes. Também se verifica que há
maior encaminhamento para os cursos profissionais. Os dados têm por base o estudo realizado por Manuel
Abrantes e Cristina Roldão e é sustentado nos dados sobre crianças filhas de imigrantes porque não existem
dados sobre crianças afrodescendentes portuguesas.
Diz Beatriz Dias, Presidente da DJASS, com base no estudo de investigação referido “O que é que os dados
nos mostram? Mostram-nos que as taxas de reprovação e de retenção são superiores para os afrodescendentes
(…). No 1.º ciclo, é de 16%, contra 5% para os portugueses; no 2.º ciclo é de 28%, contra 11% para os
portugueses; no 3.º ciclo é de 32%, contra 15% para os portugueses; e, no ensino secundário, é de 50%, contra
20%. Também verificamos que há maior encaminhamento para os cursos profissionais. Isto acontece: é o dobro
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no ensino básico e o triplo no ensino secundário e há um menor acesso ao ensino superior. Estes jovens acedem
cinco vezes menos ao ensino superior do que os jovens portugueses brancos ou não brancos- neste caso, não
temos separação”.
Beatriz Dias acrescenta “O que é que isto quer dizer? Que estes estudantes são percecionados como
estudantes que têm características diferentes dos outros estudantes. Que características são estas? São
estudantes problemáticos, indisciplinados, com pouco sucesso, nos quais não vale a pena investir tanto ou,
então, vamos encaminhá-los para um curso profissional, porque assim vamos criar a possibilidade de ter
sucesso. (…) Quando verificamos que, em Portugal, um em cada três jovens que termina o ensino secundário
acede ao ensino superior- portanto, só 33% dos jovens que acabam o ensino secundário acede ao ensino
superior, quando fazemos o recorte da raça, verificamos que este número baixa drasticamente. Portanto, é
preciso olhar para isto, é preciso olhar para esta diferença”.
Cristina Roldão, Professora da ESE de Setúbal, refere “Por exemplo, dados de 2013/2014, 80% dos alunos
de nacionalidade dos PALOP que chegavam ao ensino secundário — 80%, portanto quase a totalidade —
estavam em vias profissionais. Dos 20% que foram para vias gerais, metade reprovou ao longo do ensino
secundário. Portanto, estamos a ver as dificuldades que temos a este nível. Num estudo em que estive envolvida
— aí já com dados que não eram de nacionalidade, depois podemos discutir estas questões metodológicas —,
aquilo que vimos foi que, entre os estudantes afrodescendentes em idade esperada de ingresso no ensino
superior, 16% tinham entrado, enquanto para os de origem portuguesa era o dobro”.
Sobre as crianças ciganas, em 2018, a Direção-Geral da Educação lançou uma informação resultante do
inquérito que aplicou às escolas públicas relativo ao ano letivo de 2016-2017 e torna-se evidente que conforme
vai aumentando o nível de escolaridade, vai diminuindo o número de estudantes. Ou seja, se, por exemplo, no
1.º ciclo, estavam inscritos naquele ano letivo 5879 alunos, no secundário tínhamos 256 alunos.
Luís Romão, Presidente da Associação Sílaba Dinâmica, reforça esta ideia de segregação no sistema de
ensino “São as turmas que ainda existem nas escolas, só de ciganos. Mas a isto consegue-se dar a volta. «Isto
não são turmas só de ciganos, são os PIEF (Programa Integrado de Educação e Formação), são os POC
(Programa de Ocupação para Carenciados). Não são turmas só de ciganos. Ele já repetiu duas vezes o ano,
não vai repetir mais uma vez. Então vamos colocá-lo aqui.» Só que o problema é que são todos ciganos!”
Diz Olga Magano, Professora da Universidade Aberta: “No ano passado, a Direção-Geral da Educação
lançou uma informação resultante do inquérito que aplicou às escolas públicas relativo ao ano letivo de 2016-
2017 e, não entrando muito em pormenores em termos de metodologia porque, obviamente, esta informação
diz respeito aos diretores de escola que responderam — não é um recenseamento, mas é muito significativo —
, vamos percebendo que, conforme vai aumentando o nível de escolaridade, vai diminuindo o número de
estudantes. Ou seja, se, por exemplo, no 1.º ciclo, tínhamos inscritos naquele ano letivo 5879 alunos, no
secundário tínhamos 256 alunos. É uma diferença gigantesca, não é?”
Outro aspeto referido foi a necessidade de combater o abandono escolar das meninas das comunidades
ciganas, nomeadamente a partir do 2.º ciclo. As causas identificadas para este abandono prematuro da escola
prendem-se com os casamentos precoces em algumas comunidades ciganas e com a perspetiva das famílias
de “proteger a honra” das meninas.
Diz Luís Romão sobre o mesmo assunto na Audição às Comunidades Ciganas “Onde há um maior número
de ciganos é no 1.º ciclo. Desde o norte ao sul do País, no 1.º ciclo há sempre muitos. Acontece poderem ter
14, 15 ou 16 anos e andarem na 4.ª classe. Não existia sucesso. Depois, temos o 2.º e o 3.º ciclos em que havia
duas ou três crianças e, no ensino secundário — estamos a falar no 10.º, 11.º e 12.º — era impensável,
principalmente uma menina cigana”.
Olga Magano, fala sobre a escolaridade e as mulheres ciganas “Outra desigualdade que continua a ser
enorme é entre homens e mulheres ciganas. Se for uma pessoa cigana a falar-vos deste aspeto, falará de uma
forma diferente da minha, mas eu constato que continua a haver desigualdade, apesar de alguns aspetos
estarem mais atenuados. A mulher continua a ter um papel muito submisso em relação ao género masculino, e
isso deve-se um pouco à saída precoce da escola — a mulher não tem escolaridade, começa a ter filhos muito
cedo, fica muito confinada à vida familiar”.
Eulália Alexandre, Subdiretora-Geral da Direção Geral de Educação, fala do investimento feito para a
integração das crianças ciganas na escola pública “Conseguiu-se fazer um questionário, um inquérito que foi
depois trabalhado pela Direção-Geral das Estatísticas da Educação e Ciência, e que nos caracterizou e nos
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trouxe as preocupações que nós conhecíamos já também e que viemos, depois, a confirmá-las nos dados. (…)
O abandono escolar — isto só para vos dar dois dados — nas raparigas era significativamente maior do que nos
rapazes, o perfil está disponível no sítio da DGEEC, conhecê-lo-ão de certeza, não trago nenhuma novidade.
Mas também tínhamos um aspeto positivo: havia já mais crianças ciganas a frequentar a educação pré-escolar
e, como sabemos, uma educação pré-escolar de qualidade é um preditor de sucesso para as nossas crianças
e jovens”.
“O que é que foi feito agora, em 2019? Foi criado um guião para as escolas, isto decorrente da estratégia e
deste objetivo também que nós temos aqui, porque não é só garantir o acesso, porque o acesso está garantido.
O problema é garantir a frequência e a continuidade e esse é que é o grande desafio. Acesso, temos todos.
Depois, continuar e ter condições é que se torna mais difícil. Então, foi criado este guião, para promover a
inclusão e o sucesso educativo das comunidades ciganas, foi apresentado em Esgueira, em abril de 2019. É
um instrumento que tem recursos, tem materiais, foi feito com o Instituto das Comunidades Educativas, com a
Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas, com o ACM, com a Secretaria de Estado para a
Cidadania e Igualdade, e com o Observatório das Comunidades. Tem materiais muito importantes que podem
ser trabalhados e tem muitos exemplos e estudos de caso, que as escolas podem trabalhar e partilhar”.
Acresce ainda a informação recolhida nas visitas ao terreno realizadas no âmbito do Relatório,
nomeadamente em Bragança, no Bairro dos Formarigos, onde existe uma Escola de 1º ciclo só frequentada por
crianças ciganas, ou ainda na Escola Bàsica 2/3 de Moura que faz parte de um agrupamento onde 35% das
crianças são das comunidades ciganas. O ensino regular dessa escola é frequentado apenas por 1 criança
cigana, enquanto que, em 45 alunos e alunas de turmas dos Programas Integrados de Educação e Formação
(PIEF), apenas 2 alunos não são ciganos.
Também na visita realizada à Escola Azevedo Neves, junto ao Bairro da Cova da Moura, na Amadora, 75%
das crianças e jovens que frequentam este estabelecimento de ensino são afrodescendentes. Esta escola tem
21 turmas de ensino profissional e 6 turmas de ensino regular. Esta escola apesar de ter características de
segregação, é uma escola com um bom projeto educativo que promove o sucesso dos alunos e alunas.
Cristina Roldão, diz sobre o ensino profissional “Por outro lado, também em 2004, começou uma política de
incentivo aos cursos profissionais e de alargamento das vias profissionalizantes ou não regulares no sistema
educativo. Elas já existiam nas escolas privadas e algumas vias nas escolas públicas, mas a partir de 2004
realmente dá-se um alargamento. Dos poucos dados que temos — claro, não temos dados sobre a pertença
étnico-racial —, aquilo que sabemos é que quer estudantes negros, quer estudantes ciganos estão a ser
fortemente encaminhados para essas áreas. É claro que existem casos em que psicólogos e professores com
pensamentos discriminatórios encaminham estes alunos para essas vias, mas é muito mais complexo do que
isso. As escolas que servem estes contextos, que já são segregados de si, fazem uma aposta muito grande
nestas vias. Há escolas que quase não têm vias regulares que deem acesso ao ensino superior. Portanto, todo
o horizonte de expetativas e de possibilidade de estas crianças frequentarem a escola é por estas vias não
regulares. Claro que existe gente muito bem-intencionada nestas vias profissionais a fazer projetos
interessantes, a querer efetivamente transformar a educação, mas nós sabemos que ela ainda é, infelizmente,
uma educação de segunda”.
Neste âmbito há um conjunto de políticas públicas que importa salientar e que foram referidas nas audições
das Subdiretoras-Gerais da DGE e da DGEstE, assim como pelo Secretário de Estado da Educação,
nomeadamente as Escolas TEIP – Territórios Educativos de Intervenção Prioritária, o papel do Animador Sócio
Cultural, o Despacho de Matrículas que dá prioridade de escolha da escola às crianças que têm apoio social e
a Portaria do Ensino Particular e Doméstico que vem impor regras que ajudem a combater o abandono da
frequência em estabelecimento de ensino, nomeadamente por grupos de minorias culturais.
Diz a Subdiretora-Geral da DGEstE, Florbela Valente “Um outro aspeto que gostaria de destacar tem a ver
com a organização dos grupos e das turmas nas escolas. Até uma determinada altura, era possível as escolas
criarem grupos homogéneos. (…) Ora bem, isso agora não acontece, não é possível fazê-lo. Porquê? Porque
isso não é um fator de inclusão, não é, de todo, um fator de integração, potencia a desmotivação dos alunos e,
de alguma forma, aliás, diria vincadamente, e não, de todo, de alguma forma, potencia o trabalho entre pares e
destaca aquilo que contrariava um princípio, que é o de que todos os alunos têm potencialidades e dificuldades
e, portanto, por que razão, então, não agrupá-los pelas potencialidades que tinham. Esse é um dos aspetos que
destacava aqui”.
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“Destaco também a questão de que a Inspeção-Geral de Educação e Ciência passou a contemplar, em sede
da sua atividade de organização do ano letivo, estes temas, precisamente naquela que é a amostra das escolas
que são intervencionadas em cada ano letivo”.
O Secretário de Estado da Educação, João Costa fez referência a um conjunto de novas medidas “No
despacho das matrículas do ano passado, incluímos então a priorização na escolha da escola aos alunos
beneficiários da ação social escolar, aqui com um pressuposto que foi tentar, ao máximo, diminuir a guetização
também na rede escolar”.
“Outro instrumento importante, publicado este ano, foi a Portaria do Ensino Individual e Doméstico. Nós
tínhamos reportado por escolas em particular que, em alguns grupos, em algumas minorias étnicas, o ensino
individual e doméstico estava a ser utilizado como um estratagema para o abandono escolar efetivo. Aquilo que
incluímos foi (…) a opção pelo ensino individual e doméstico ter de ser validada pela direção da escola e ter que
ser feito um protocolo de colaboração entre a escola onde o aluno está matriculado e os que ficam responsáveis
pelo ensino individual e doméstico”.
Contudo, apesar da existência destes mecanismos, há ainda necessidade de uma melhor aplicação que
permita um efeito mais eficaz na diminuição das desigualdades entre crianças da comunidade maioritária e das
comunidades racializadas, de modo a que a escola pública promova igualdade de oportunidades para todas as
crianças.
Também há referências nas audições ao ensino superior e à baixa frequência de alunos e alunas das
minorias étnico-raciais que são alvo do relatório, em particular afrodescendentes e comunidades ciganas, diz
Cristina Roldão a propósito “Num estudo em que estive envolvida – aí já com dados que não eram de
nacionalidade, depois podemos discutir estas questões metodológicas –, aquilo que vimos foi que, entre os
estudantes afrodescendentes em idade esperada de ingresso no ensino superior, 16% tinham entrado, enquanto
para os de origem portuguesa era o dobro”.
Outro aspeto referido nas Audições vai no sentido de ser necessário olhar para os manuais escolares, em
particular os manuais de História, de uma forma crítica, que permita maior pluralidade dos nossos legados
culturais, sociais e históricos. Ainda nesta perspetiva, o Secretário de Estado da Educação defende que o ensino
deve ser centrado no currículo e não nos manuais escolares.
Quanto à abordagem do tema, Marta Araújo, Investigadora do CES da Universidade de Coimbra refere a sua
complexidade: “Esta ideia de que podemos simplesmente corrigir o pequeno estereótipo… Dantes, chamavam-
se «povos primitivos»; hoje em dia, há outras maneiras de os fazer, também ainda se usa esta designação.
Portanto, não é só uma questão de corrigir pequenos estereótipos, também não é só uma questão de apresentar
novas vozes, incluir outras vozes.”
Portanto, é preciso repensar as narrativas-mestras da História, é preciso pensar sobre a identidade nacional
que queremos construir, em Portugal. Aqui, outra vez esta distinção entre falar de racismo, populações
racializadas versus imigração. São pessoas que fazem parte do corpo nacional e, portanto, que narrativas devem
ser repensadas”.
Sobre este tema refere a Subdiretora-Geral da DGE, “Outra questão importante é a questão dos manuais
escolares, porque embora o manual não seja obrigatório — e isso é importante que se diga — sabemos que há
uma prática recorrente de recurso aos manuais, eles são adotados e são usados nas nossas escolas. Desde a
primeira lei, de 2006, que existe na lei esta preocupação com a não discriminação, com a diversidade social,
cultural, para os alunos a que se destinam os manuais, a pluralidade. Voltou-se agora, no Despacho n.º
4947/2019, a reiterar a necessidade dos critérios de promover a educação para a cidadania, não apresentando
discriminações de carácter cultural, étnico, racial, religioso e sexual, combatendo estereótipos, valorizando a
diversidade, interculturalidade, assim como o princípio da igualdade de género, e não poderem os manuais
constituírem-se como veículo de propaganda ideológica, política ou religiosa”.
O Secretário de Estado da Educação tem a seguinte posição relativamente a este assunto: “Quando olhamos
para o currículo a partir do manual, estamos condenados ao insucesso e ao fracasso. O que é que eu quero
dizer com isto? Sim, há manuais bons, há manuais menos bons, há manuais que representam melhor ou pior o
que está no currículo, há circunstâncias de manuais com uma linguagem menos adequada. Mas, sobretudo, o
que nos interessa é desmanualizar isto, ou seja, junto do Alto Comissariado para as Migrações, em parceria
com a Direção-Geral da Educação, têm vindo a ser produzidos muitos recursos educativos para trabalhar esta
área, e para trabalhar — sobretudo através de instrumentos que a flexibilidade curricular agora potencia — os
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temas da história em conjunto com os temas da cidadania. Ou seja, nós temos o tema dos direitos humanos
trabalhados também com a aula de história, para perceber o que é que foi feito”.
“Estamos também num trabalho com uma equipa de investigadores, que está a preparar um livrinho, que
queremos que chegue às escolas, sobre os Descobrimentos contados do outro lado, a partir dos alegados
descobertos, e penso que este vai ser um recurso bom de trabalho para as escolas”.
Recomendações:
Combater a segregação das crianças afrodescendentes e das crianças ciganas dentro do sistema de
ensino, garantindo o fim de escolas e turmas exclusivamente com crianças de minorias étnico-raciais, ou a
integração das crianças destes grupos em percursos escolares alternativos sempre que reúnam as condições
para integrar o ensino regular.
Desenvolver um estudo sobre a integração de jovens das minorias ético-raciais no ensino universitário,
com vista a avaliar possibilidades de integração de medidas de ação positiva.
Desenvolver um estudo sobre o etnocentrismo e a discriminação étnico-racial nos manuais escolares que
permita vir a desenvolver um conjunto de orientações, que garantam o respeito na abordagem histórica,
sociológica e cultural das sociedades africanas e das comunidades ciganas, pela diversidade e pela diferença.
Habitação
Quando falamos de discriminação étnico-racial em Portugal a habitação é um dos principais fatores de
desigualdade das comunidades afrodescendentes e comunidades ciganas.
A política de habitação em Portugal nos últimos 45 anos seguiu o paradigma de realojamento em bairros
sociais que manteve grupos de população nas periferias dos territórios, criando espaços de isolamento social,
mas também manteve em precariedade habitacional grupos específicos de população, muito em particular fora
das áreas metropolitanas, com especial predominância das comunidades ciganas.
Daniel Seabra, professor do ISEG, diz “(…) acho que aqui também continua a vigorar o princípio da própria
ideia de habitação social, do bairro social, que fica em partes muito específicas da cidade, que é servido por um
conjunto de instituições também muito específicas, escolas, mas também instituições de apoio social. Acho que
isto acaba por estar na base de muitas estratégias defensivas da parte da comunidade e também complica muito
o acesso a outras oportunidades. Acho que qualquer pessoa que tenha estado com os ciganos tem uma
perceção muito clara de que, para os ciganos, não é bom estarem a viver ao pé de tantos outros ciganos, porque
isto é muito opressivo”.
O levantamento realizado pelo IHRU em 2017 refere que há 26.000 famílias em locais abarracados ou
edificações precárias. A caraterização feita pelo mesmo Instituto em 2015 relativamente às condições de
habitação das comunidades ciganas em Portugal estima que 45% dos alojamentos não clássicos são ocupados
por famílias ciganas e que 46% da habitação social é ocupada por famílias ciganas. Este levantamento
corresponde a cerca de 40.000 pessoas e 10.000 famílias.
Também importa referir que em 2015, os 10 Concelhos com situações de maior precariedade habitacional
de famílias ciganas são Bragança, Faro, Moura, Coruche, Ovar, Portimão, Ílhavo, Loulé, Estremoz e Estarreja.
Contudo é importante referenciar que os Municípios de Almada, Cascais, Loures, Porto e Setúbal não
apresentaram dados, pelo que foram incluídos no estudo através de estimativas.
Nas deslocações realizadas no âmbito do relatório, visitámos “acampamentos” em Bragança e Moura, um
bairro de barracas e de habitações precárias em Loures e Setúbal, um bairro de génese ilegal na Amadora e
habitação social em Coimbra, Moura, Loures, Setúbal e Moita.
Também nas audições foram relatadas situações de habitação precária das comunidades ciganas no país,
nomeadamente Aveiro, Santa Maria da Feira, Évora, Reguengos de Monsaraz, Beja, Vidigueira, Almeirim.
Sobre o Alentejo e a realidade das comunidades ciganas refere Prudêncio Canhoto, Presidente da AMEC,
“Falando do distrito de Beja, tenho comigo fotografias que, depois, posso mostrar, dos acampamentos. Este
distrito tem muitos acampamentos ciganos, onde há muitas barracas e panos de lona. Temos o Bairro das
Pedreiras, que se fez para os ciganos. Fez-se um gueto, está ali, fora do perímetro humano, onde só lá vai quem
tem interesse, por exemplo, para procurar votos. Quanto ao resto, ninguém passa por lá. E vocês sabem que
este bairro foi construído, são 50 habitações que têm mais de 500 ciganos. Só veem que há ali um
acampamento. É do conhecimento de várias pessoas, mas, para terem uma noção, no acampamento que está
ao lado desse bairro, já estão mais pessoas fora que dentro das casas”.
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E acrescenta “As câmaras estão limitadas, não têm dinheiro — é o que eles dizem. O Governo tem dois
programas — e eu pensei, no ano passado, «Agora é que é!»: o 1.º Direito e o Porta de Entrada. Pensei: «Agora
é que vai ser feita qualquer coisa». Já passou um ano e o que foi dito na Câmara Municipal de Beja é que vão
recuperar nove casas para pôr nove famílias, e nem todas são ciganas, porque tmbém não queremos que sejam
só para ciganos. Os não ciganos têm falta de habitação e também tem de lhes ser atribuída”.
“E, quando falo de Beja, falo de Pias, uma aldeia com mais de 300 ciganos, com barracas e terra batida. As
crianças têm de ir para a escola, onde lhes exigem aproveitamento escolar, limpeza, e não há uma habitação
adequada para estas famílias. Claro que os pais vivem numa situação muito complicada. Há pais que se
levantam, agora no inverno, às 7 da manhã para fazer uma fogueira para os filhos se levantarem, aquecerem
as mãos, levarem a cara — estes lavam a cara mal, porque estão cheios de frio — porque o autocarro já está à
espera para os levar à escola. Ora, esta criança vai para a escola à força, desmotivada”.
Esta diversidade de situações espelha bem a realidade das famílias ciganas em Portugal no que diz respeito
à habitação. Nesta perspetiva de fazer face a estas situações a Presidente do IHRU refere os processos de
realojamento de comunidades ciganas em que o Instituto esteve envolvido em Peso da Régua e Campo Maior,
bem como a experiência recente do realojamento iniciado no Bairro da Jamaica no Seixal como uma boa prática.
Das 234 famílias que serão realojadas, já houve realojamento de 62, em soluções de realojamento disperso em
fogos adquiridos no concelho do Seixal.
Na nova geração de políticas de habitação há um programa, Primeiro Direito, criado em 2018, que passa
pela sinalização dos Municípios de situações habitacionais indignas. O programa depende de iniciativa
municipal, que tem que apresentar um diagnóstico das necessidades para o seu território, através de estratégias
locais de habitação. Até à data da audição tinham sido apresentados 71 pedidos de apoio para a realização
destas estratégias municipais.
Situação habitacional indigna não tem a ver só com edificado. O programa é muito dirigido à pessoa e não
ao sítio onde mora propriamente. Portanto, situação habitacional indigna é aquilo que o município sinalizar como
uma situação que não corresponde aos critérios mínimos de dignidade e habitabilidade. (…) Como a iniciativa
é municipal, neste momento os municípios estão a proceder aos diagnósticos das situações existentes nos
respetivos territórios. Já temos cinco estratégias locais de habitação entregues com esse diagnóstico feito.
Estamos a receber dezenas delas”.
Outro aspeto referido durante os trabalhos é a dificuldade de arrendamento das pessoas negras e das
comunidades ciganas. Há uma prática reiterada de recusar o arrendamento a pessoas destas comunidades que
muitas vezes não conseguem sair da precariedade habitacional porque não têm acesso ao mercado livre de
arrendamento, situação que configura a violação da lei.
Recomendações:
Envidar todos os esforços para acabar com as situações habitacionais indignas em Portugal até 2024,
mediante meta proposta pelo Governo.
Desenvolver mecanismos de apoio jurídico e social ao arrendamento que contribuam para impedir a
recusa dos proprietários em alugar casas a pessoas ciganas e afrodescendentes.
Trabalho/Emprego
O trabalho e o emprego são uma dimensão estruturante na vida das pessoas que condiciona a capacidade
de arrendar ou adquirir uma casa, de dar aos filhos as condições necessárias para estudar e usufruir de um
contexto sociocultural como valorização do seu crescimento e da aquisição de competências pessoais e sociais.
No âmbito deste relatório, ouvimos os e as representantes das comunidades discriminadas a relatar a sua
experiência de discriminação no mercado de trabalho, que passa por questões objetivas como a baixa
escolaridade ou a falta de documentação de imigrantes, mas também por fatores subjetivos que são os mais
difíceis de ultrapassar e que começa muitas vezes na seleção de trabalhadores, sendo que, nas comunidades
ciganas, são praticamente inexistentes contratações, independentemente da função ou do trabalho a que
concorrem.
Maria José Vicente, representante da EAPN, aborda a dificuldade de acesso ao emprego “Essas dificuldades
prendem-se, sobretudo, com comportamento discriminatório e a não sensibilização por parte de algumas
entidades empregadoras para a contratação de pessoas de etnia cigana. Posso dizer-vos que estas situações
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de discriminação começam, muitas vezes, no próprio processo de seleção, quando as pessoas de etnia cigana
são convocadas para as entrevistas. Durante a entrevista, os entrevistadores, por conhecimento, às vezes por
viverem em meios mais pequenos, sabem que a pessoa é de etnia cigana e é logo colocada de lado, não
valorizando as competências e as capacidades da pessoa em questão. São comunidades ciganas, são logo
colocadas de lado. E nós temos de combater essas questões”.
E acrescenta “Muitas pessoas disseram: «Eu trabalho num determinado sítio, mas ninguém sabe que sou
cigana. Tenho receio de que, a partir do momento em que integre este projeto, os meus colegas e, mesmo, a
minha entidade patronal comece a olhar para mim de outra forma e eu possa mesmo ser despedida»”.
Há também discriminação salarial muitas vezes associada a situações de grande precariedade e há no que
diz respeito a afrodescendentes e brasileiros uma forte segregação nos setores em que trabalham e nas funções
que desempenham. Apesar de não haver dados sobre esta realidade, a perceção é de que as mulheres destas
comunidades trabalham maioritariamente em funções de limpeza e os homens na construção civil ou em funções
de segurança.
Filipe Nascimento, da Associação Caboverdiana, aborda o tema do acesso ao mercado de trabalho “Não
basta sabermos quantos é que estão a trabalhar, se não nos preocuparmos em saber como, em quê, de que
modo é o tratamento, qual é o salário — onde também vou chegar — e de que modo é feito o rastreio desses
interessados, dos candidatos, que muitas vezes passaram uma juventude e uma adolescência a preparar-se
para aceder ao mercado de trabalho, muitas vezes em condições de igualdade a nível dos currículos — como
aqui já foi muito bem evidenciado — e que, sem um critério objetivo, essas pessoas vêem-se, infelizmente,
obrigadas a refugiar-se nos tais trabalhos, não é novidade para ninguém, da limpeza, à construção civil, à
fiscalização do estacionamento (…)”
Também em matéria de formação profissional, foi referida a desadequação às comunidades ciganas,
nomeadamente no que diz respeito à adequação aos níveis de escolaridade, aos horários de formação e às
estratégias adotadas para a permanência na formação.
Maria José Vicente afirma sobre a permanência das pessoas ciganas na formação profissional: “Depois,
temos desafios na permanência da formação profissional, que se prende com pouca ou nenhuma informação e
ausência de formação por parte dos formadores relativamente às comunidades ciganas, e aqui não
especificamente a uma cultura, mas, sim, a uma abordagem intercultural. Sentimos que os formadores não têm
esta sensibilidade. Ausência de metodologias participativas ligadas a uma aprendizagem ativa mais prática e,
ainda ao nível da permanência na formação, existe um défice de recursos de formação/emprego que articule,
de forma intensiva, a formação teórico-prática e a integração profissional. Muitas vezes, as ações de formação
são muito teóricas e depois não existe uma componente prática que leve a que as pessoas permanecem na
formação”.
O Secretário de Estado do Emprego e da Formação Profissional, Miguel Cabrita, refere relativamente à
formação profissional (…) Eu creio que, deste ponto de vista, mesmo que possam não existir muitas ações
destinadas à problemática étnico-racial ou da discriminação nesse plano, e ainda menos a grupos específicos
que estejam identificados ou que possam ser circunscritos de alguma forma em diferentes contextos
geográficos, eu conheço talvez poucas instituições em Portugal cuja ação, por definição e pela sobreposição
dos mecanismos de desigualdade que muitas vezes fazem com que a desigualdade e a pertença étnico-racial
estejam associadas também a desigualdades sociais, desigualdades de rendimento, dificuldades perante o
emprego, baixas qualificações, enfim, todo o ciclo de reprodução também da pobreza e da exclusão que
conhecemos, poucas entidades terão porventura uma atuação tão — diria — transversal ou com impactos tão
transversais e tão profundos, perante públicos muito desfavorecidos e também perante situações que estão em
situações de desfavorecimento, em parte ou em todo, também por via do seu enquadramento no quadro desta
temática de discriminação que aqui tratamos hoje”.
Nas audições à Inspetora-Geral da Autoridade para as Condições do Trabalho e ao Secretário de Estado do
Emprego e Formação Profissional foi referido que é uma prioridade de intervenção da ACT o combate à
discriminação laboral de imigrantes e que há um forte investimento no combate ao Tráfico de Seres Humanos
para fins laborais, sendo reiterado pelo Secretário de Estado do Emprego e Formação Profissional que a
discriminação étnico-racial não significa forçosamente imigração, tendo sido referida abertura para desenvolver
mais estes temas na dentro dos serviços da ACT.
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A Inspetora-Geral da ACT, Luísa Guimarães, diz: “O primeiro (objetivo), promover a igualdade, prevenir e
combater situações de discriminação que estão proibidas pelo Código do Trabalho, como referi. O segundo
objetivo, que é um objetivo muito concreto, de melhorar as condições de trabalho de determinados grupos que
nós sabemos que são grupos com uma vulnerabilidade acrescida e, portanto, temos desenvolvido um conjunto
de ações, designadamente relativamente a trabalhadores estrangeiros, que têm um foco na melhoria das
condições de trabalho destes trabalhadores. Depois, temos desenvolvido também ação vária no contexto de
formas de abusos graves e de exploração, designadamente no trabalho forçado e exploração laboral, trabalho
não declarado e precariedade, que fazemos normalmente em conjunto com outras entidades e sinalizando às
entidades responsáveis as situações que devam ser sinalizadas”.
O Secretário de Estado do Emprego e Formação Profissional deixa a seguinte nota: “As ações da ACT, por
exemplo, parecem-me que é um caminho possível. Não quero aqui assumir nenhum compromisso sobre isso,
até porque não posso. Mas penso que é um bom exemplo de como progredir, no âmbito da informação que
temos sobre discriminação. Com base numa melhor contabilização quer dos casos concretos, quer das ações
concretas que são feitas, pode ser um caminho talvez mais prudente e mais equilibrado”.
Foi sinalizada ausência de representatividade de afrodescendentes, mas que também se estende às pessoas
das comunidades ciganas, na administração pública portuguesa, quer em lugares de topo, quer nas repartições
e serviços.
Refere Filipe Nascimento sobre este tema: “Acho que o próprio Estado também não dá muito exemplo nesta
matéria. Se verificarmos, como disse há pouco, onde é que temos os nossos lugares reservados no mercado
de trabalho — e o próprio Estado é o maior empregador do País — e, se formos a ver dentro das estruturas do
Estado, tanto nas administrações públicas como nas empresas estatais, penso que não podemos fingir que essa
realidade dos afrodescendentes e dos estrangeiros, de modo geral, não existe. Podemos ter uma exceção ou
outra, e aqui não posso fugir a esta realidade e tocar com a política e dizer: «Bom, temos um Deputado
afrodescendente ou africano», mas é uma exceção da exceção. Podemos ter uma apresentadora de televisão
não portuguesa ou não de raça branca — desculpem ser muito frontal a usar esses termos —, mas é uma
exceção da exceção”.
Foram sendo feitas referências à importância dos mediadores socioculturais, tema que surge durante as
audições muito relacionado com a educação, e em particular com a mediação nas comunidades ciganas como
fator essencial para uma melhor inclusão, mas que também foi referido no âmbito da saúde.
Sobre este tema diz Luís Romão “O mediador escolar é extremamente importante para o sucesso das
comunidades ciganas na educação. É extremamente importante! Isto que fique bem claro, e vou explicar o
porquê. Eu sou mediador ou sou assistente operacional, como lhe queiram chamar, há 17 anos. Eu, quando fui
trabalhar para a escola, lembro-me que não havia ninguém no jardim de infância. Não era hábito. Os pais de
crianças com 8 anos pensavam que os miúdos ainda eram pequeninos e com três anos diziam: «O meu filho
ainda é um bebé para ir para a escola». Isto acontece na comunidade cigana. Mas, depois, terem um mediador
na escola a confiança começou a ser outra. Não quer dizer que os ciganos sejam menos do que os outros. Se
os outros vão porque é que os ciganos também não têm que ir? Mas, se existe este problema e se se consegue
resolver com um mediador, por que é que não se coloca um mediador?”
O Alto-comissário para as Migrações dá-nos os seguintes dados “(…) como o Programa de Mediadores
Municipais Interculturais — temos, hoje, 42 mediadores, dos quais 20 são pessoas das comunidades ciganas
(…).”
O Secretário de Estado da Educação refere “Sobre mediadores, o último despacho da organização do ano
letivo, faz uma discriminação positiva das escolas TEIP, com mais horas no cálculo de crédito, e todas as escolas
— sejam TEIP ou não — podem optar, quando recorrem à contratação, por contratar professores ou técnicos,
sejam psicólogos, mediadores, etc. Isto permite às escolas gerir este crédito com muito mais liberdade, para
poderem contratar as pessoas que fazem mais sentido para as necessidades da escola e, nalguns casos, têm
sido contratados mediadores”.
A Secretária de Estado Adjunta e da Administração Interna também reforçou o papel dos mediadores “Temos
também financiado a criação de mediadores culturais ou de conflitos, nas situações onde verificamos que é
necessário que, na escola, as crianças saibam resolver os seus problemas e não os levem para casa. Temos
mediadores em Lisboa, Loulé, Vila Franca de Xira, Vila Nova de Gaia, onde temos contratos locais e procuramos,
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sempre que possível, proceder à formação de mediadores locais, para que possam fazer essa ligação e essa
intercomunicação”.
Estes profissionais, apesar de realizarem uma função específica e diferenciada, são enquadrados na
administração pública, na maioria dos casos, como técnicos operacionais, porque a profissão não está
regulamentada.
Recomendações
Desenvolver, através do organismo que promove o emprego, mecanismos de dissuasão da exclusão de
pessoas na seleção de trabalhadores por motivos étnico-raciais.
Promover projetos dentro da política pública de emprego, de emprego apoiado para as comunidades
ciganas.
Promover dentro da ACT formação específica para inspetores sobre racismo, xenofobia e discriminação
étnico-racial, tal como existe noutros setores da administração pública.
Saúde
Desde 2001 que a legislação portuguesa garante o acesso ao Serviço Nacional de Saúde em Portugal a
todos os cidadãos, independentemente da sua origem ou da sua situação legal no país. Contudo para as
pessoas imigrantes em situação irregular há constrangimentos neste acesso e há desinformação no atendimento
dos serviços de saúde que criam dificuldades neste acesso, deixando por vezes pessoas sem resposta.
Diz Jakilson Fernandes a propósito da saúde: “Para ir mais a fundo quanto à questão da saúde, que
tradicionalmente vimos que é a questão dos acessos, apesar de eu considerar que o nosso sistema de saúde é
bom… Posso criticar muitas coisas que têm que se mudar em Portugal, mas o sistema de saúde, a mentalidade,
os funcionários…Estou a falar do acesso de imigrantes ao sistema de saúde. Quando os imigrantes vêm, por
exemplo, de países que têm protocolo, chegam ao hospital ou ao centro de saúde — e há países tipo Cabo
Verde que nós, constantemente, na Associação, temos de enviar protocolo para as pessoas serem atendidas…
Essa não é uma realidade que passe muitas vezes, mas ainda há pessoas que são recusadas no acesso ao
sistema de saúde, em Portugal. Diariamente, imigrantes são recusados e, muitas vezes, com aquele discurso
que não pode ser tolerado na nossa função pública, que é dizer: «Eh pá, se não estás contente, vai para a tua
terra!», e isso, nós estamos a normalizar. Essa parte de tirar o tapete, quando reclamamos o nosso direito, e
dizer: «Vão para a vossa terra!», esse discurso, o Estado tem um papel fundamental de não aceitar. Não
podemos tolerar. Considero que deve haver tolerância zero com o estar a dizer a cidadãos que vão reclamar os
seus direitos para irem para as suas terras”.
André Costa Jorge, do Serviço de Jesuítas para os Refugiados relata ““No âmbito da saúde, por exemplo,
detetamos uma dificuldade burocrática, sistemática, na inscrição dos migrantes nos centros de saúde. Isto deve-
se, muitas vezes, a obstáculos por ação dos funcionários dos centros de saúde. Aquilo que propomos é que não
nos cansemos de fazer ações de formação e sensibilização aos, às vezes, tiranos do balcão, porque legislam,
muitas vezes, por modo próprio. Também vemos migrantes sem a situação regularizada, ou, indocumentados,
que não têm direito a taxas moderadoras. Sugerimos, por exemplo, que se faça alteração necessária na lei ou
nova circular da saúde que determine uma interpretação mais lata das regras de acesso às taxas moderadoras.
Por exemplo, em 2018, a maior parte da população assistida pelo JRS foi, sobretudo, cidadãos oriundos da
Guiné-Bissau e de São Tomé e Príncipe em idade ativa e de sexo feminino, população que tem forte incidência
e necessidades de cuidados médicos”.
Também outro aspeto referido nas audições no âmbito das comunidades ciganas é a realidade das pessoas
que vivem em condições de habitação precária e que têm problemas de saúde associado a essa falta de
condições.
Diz Maria José Vicente na Audição às Comunidades Ciganas sobre o tema da saúde “Em 2009, a EAPN
Portugal, no âmbito de um projeto transnacional, desenvolveu um estudo sobre a situação atual das
comunidades ciganas em Portugal, (…). A principal conclusão é que, realmente, as doenças que as
comunidades ciganas apresentavam na altura estavam diretamente relacionadas com as condições de
habitação e, sobretudo, com uma situação de pobreza e de exclusão, que caracteriza estas comunidades.
Estamos a falar, sobretudo, de doenças respiratórias”.
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Recomendações
Reforçar as orientações técnicas e mecanismos de informação e formação dos serviços de saúde,
cuidados primários e serviços hospitalares, sobre os direitos e as regras que se aplicam a utentes do SNS,
imigrantes em geral e pessoas que estão indocumentadas ou em situação irregular.
Medidas transversais
Há medidas de política que são essenciais para combater a discriminação étnico-racial, mas que não são
setoriais. São medidas que são transversais à intervenção pública, quer no planeamento, quer na intervenção.
Neste contexto integra-se a proposta realizada durante o Seminário Final pela representante da ENAR,
Juliana Santos Walgren, de criar um instrumento de planeamento nacional de combate ao racismo, que
conjugado com as propostas de contexto de política do relatório, pode ser estruturante na política pública de
combate ao racismo, à xenofobia e à discriminação étnico-racial em Portugal.
Também a proposta de desenvolvimento da profissão de mediador sociocultural, que pode ser aplicada a
diferentes setores e serviços da administração pública, tão referida durante as audições e no seminário final, é
transversal a vários setores da administração pública.
Foram sendo feitas referências à importância dos mediadores socioculturais, tema que surge durante as
audições, mas também no seminário final, muito relacionado com a educação, e em particular com a mediação
nas comunidades ciganas como fator essencial para uma melhor inclusão, mas que também foi referido no
âmbito da saúde.
Sobre este tema diz Luís Romão “O mediador escolar é extremamente importante para o sucesso das
comunidades ciganas na educação. É extremamente importante! Isto que fique bem claro, e vou explicar o
porquê. Eu sou mediador ou sou assistente operacional, como lhe queiram chamar, há 17 anos. Eu, quando fui
trabalhar para a escola, lembro-me que não havia ninguém no jardim de infância. Não era hábito. Os pais de
crianças com 8 anos pensavam que os miúdos ainda eram pequeninos e com três anos diziam: «O meu filho
ainda é um bebé para ir para a escola». Isto acontece na comunidade cigana. Mas, depois, terem um mediador
na escola a confiança começou a ser outra. Não quer dizer que os ciganos sejam menos do que os outros. Se
os outros vão porque é que os ciganos também não têm que ir? Mas, se existe este problema e se se consegue
resolver com um mediador, por que é que não se coloca um mediador?”
O Alto-comissário para as Migrações dá-nos os seguintes dados “(…) como o Programa de Mediadores
Municipais Interculturais — temos, hoje, 42 mediadores, dos quais 20 são pessoas das comunidades ciganas
(…)”.
O Secretário de Estado da Educação refere “Sobre mediadores, o último despacho da organização do ano
letivo, faz uma discriminação positiva das escolas TEIP, com mais horas no cálculo de crédito, e todas as escolas
— sejam TEIP ou não — podem optar, quando recorrem à contratação, por contratar professores ou técnicos,
sejam psicólogos, mediadores, etc. Isto permite às escolas gerir este crédito com muito mais liberdade, para
poderem contratar as pessoas que fazem mais sentido para as necessidades da escola e, nalguns casos, têm
sido contratados mediadores”.
A Secretária de Estado Adjunta e da Administração Interna também reforça o papel dos mediadores “Temos
também financiado a criação de mediadores culturais ou de conflitos, nas situações onde verificamos que é
necessário que, na escola, as crianças saibam resolver os seus problemas e não os levem para casa. Temos
mediadores em Lisboa, Loulé, Vila Franca de Xira, Vila Nova de Gaia, onde temos contratos locais e procuramos,
sempre que possível, proceder à formação de mediadores locais, para que possam fazer essa ligação e essa
intercomunicação”.
Estes profissionais, apesar de realizarem uma função específica e diferenciada, são enquadrados na
administração pública, na maioria dos casos, como técnicos operacionais, porque a profissão não está
regulamentada, como refere o Secretário de Estado das Autarquias Locais, Carlos Miguel, no Seminário Final.
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Recomendações
Desenvolver e implementar um Plano Nacional Contra o Racismo, a Xenofobia e a Discriminação étnico-
racial em Portugal.
Regulamentar o estatuto do mediador sociocultural.
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Concluindo, podemos afirmar que existe racismo na sociedade portuguesa que, como diz Rui Pena
Pires, não é legislativo, mas é do foro do comportamento social, que, muitas vezes de forma oculta
e subjetiva, escondida por trás de outras razões – por exemplo nas razões apresentadas para não
arrendar uma casa a uma pessoa cigana ou para não dar determinado emprego a um
afrodescendente, ou ainda quando uma criança cigana ou afrodescendente é integrada num currículo
alternativo porque tem determinada forma de estar em sala ou porque o seu português não é
estandardizado – retira a estas pessoas igualdade de oportunidades na sociedade portuguesa e l eva-
as muitas vezes a uma situação de pobreza e exclusão social que não é neutra, tem uma dimensão
étnico-racial associada.
Há ainda uma dimensão de segregação indireta, que não passa por opções discriminatórias do
Estado, mas que em determinadas políticas, como é exemplo a política de habitação praticada durante
décadas, empurra pessoas para uma segregação habitacional em bairros periféricos ou crianças para
determinadas escolas onde não há diversidade étnico-racial e de classe.
O racismo e a discriminação em Portugal são estruturais, têm razões históricas associadas, que é preciso,
como disse a Ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, na sessão de abertura do seminário final deste
relatório desocultar. Para tal é essencial assumir que o problema existe, como disse a Ministra da Justiça,
Francisca Van Dunem na sessão de encerramento “a maior expressão de preconceito racial consiste na negação
deste preconceito”.
O relatório que aqui apresentamos pretende, através da voz das pessoas discriminadas, mas também de
quem estudou o fenómeno em diferentes vertentes, de ativistas que lutam contra o racismo, de dirigentes da
Administração Pública e Governo, fazer um retrato da situação portuguesa em diferentes setores da sociedade
e apresentar recomendações, de caráter legislativo, operacional e de conhecimento da realidade, para que
possamos iniciar um caminho de desocultação e de ação que contribua para uma democracia com mais
qualidade e mais igualdade de oportunidades para todas e para todos no cumprimento da Constituição da
República Portuguesa.
Este relatório deve ser enviado a Sua Excelência o Presidente da República, Sua Excelência o Primeiro-
Ministro, Sua Excelência a Procuradora-Geral da República, Sua Excelência a Provedora de Justiça e a todas
as entidades que participaram neste relatório.
Palácio de São Bento, 16 de julho de 2019.
A Deputada Relatora
A DIVISÃO DE REDAÇÃO.