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Sexta-feira, 21 de Outubro de 2011 II Série-E — Número 13
XII LEGISLATURA 1.ª SESSÃO LEGISLATIVA (2011-2012)
SUMÁRIO Provedor de Justiça: Exposição sobre o acesso à informação de saúde — enquadramento legal vigente.
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PROVEDOR DE JUSTIÇA
Exposição sobre o acesso à informação de saúde — enquadramento legal vigente
I — Objecto da presente exposição
Incide o presente sobre o quadro legal que define o regime de acesso a dados relativos à saúde contido essencialmente nos seguintes diplomas: Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro (Lei da Protecção de Dados Pessoais), Lei n.º 12/2005, de 26 de Janeiro — Lei que regula a informação genética pessoal e informação de saúde — , e Lei n.º 46/2007, de 24 de Agosto, que regula o acesso e reutilização dos documentos administrativos (Lei de Acesso a Documentos Administrativos).
Relacionadas com esta temática, tem o Provedor de Justiça recebido diversas queixas, muito em particular respeitantes às dificuldades de acesso a informação de saúde por parte de familiares sobrevivos de beneficiários de seguros de vida, com o objectivo de cumprir as condições exigidas pelas seguradoras para pagamento dos respectivos prémios.
Em resultado da análise das situações submetidas à minha consideração, para além das questões relativas ao acesso a dados por parte das companhias de seguros ou familiares de titulares de dados falecidos a pedido destas, constatei que vigoram dois regimes legais aplicáveis distintos consoante a natureza pública ou privada das entidades que detêm a informação de saúde.
A matéria exige especial reflexão por comportar potenciais dificuldades para os operadores, com associados prejuízos para a transparência do sistema, bem assim como pelas questões de legalidade e conformidade constitucional que suscita.
Permito-me, assim, através de S. Ex.ª a Sr.ª Presidente da Assembleia da República, endereçar ao Parlamento as considerações que de seguida se expõem, com o objectivo de suscitar a discussão e, se reputada pertinente, a correcção legislativa da situação verificada.
II — Caracterização da situação detectada
Embora assumindo diferentes designações legalmente consagradas, os dados relativos à saúde (que incluem os dados relativos à vida sexual e os dados genéticos) abrangem «todo o tipo de informação, directa ou indirectamente, ligada à saúde, presente ou futura, de uma pessoa, quer se encontre com vida ou tenha falecido, e a sua história clínica»1.
Trata-se de dados pessoais sensíveis, incluídos no âmbito de aplicação da Lei da Protecção de Dados Pessoais e, ao abrigo deste diploma legal, sujeitos a uma protecção acrescida2.
Sempre que detida por alguma das entidades que integram o Serviço Nacional de Saúde (entidades hospitalares EPE, unidades locais de saúde, agrupamentos de centros de saúde e respectivas unidades funcionais), a informação de saúde assume a forma de documento administrativo, nos termos e para os efeitos previstos na Lei de Acesso a Documentos Administrativos.
Por documento administrativo entende-se, nos termos do artigo 3.º, n.º 1, alínea a), ibid. «qualquer suporte de informação, sobre a forma escrita, visual, sonora electrónica ou de outra forma material, na posse de órgãos e entidades identificados na lei».
Enquanto a Lei da Protecção de Dados Pessoais assume uma vocação generalista no que respeita à protecção da informação de saúde, a Lei de Acesso a Documentos Administrativos regula o acesso a esses mesmos dados quando contidos em documentos administrativos.
Dois aspectos respeitantes ao enquadramento legal que acabou de ser descrito merecem ser realçados.
O primeiro prende-se com a falta de transparência originada pela aparente dualidade de regimes existente, tanto mais surpreendente quanto não existem normas expressas delimitativas do âmbito material de aplicação 1 Esta definição corresponde ao conceito de «Informação de saúde», estipulado no artigo 2.º da Lei n.º 12/2005, de 26 de Janeiro.
2 Nos termos do artigo 3.º, alínea a), da Lei, constitui dados pessoais «qualquer informação, de qualquer natureza e independentemente do respectivo suporte, incluindo som e imagem, relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável («titular dos dados»); é considerada identificável a pessoa que possa ser identificada directa ou indirectamente, designadamente por referência a um número de identificação ou a um ou mais elementos específicos da sua identidade física, fisiológica, psíquica, económica, cultural ou
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dos diplomas, em potencial sobreposição, ou sequer uma norma revogatória explícita3 no diploma aprovado e publicado em data posterior.
Salvaguardada a hipótese de resolução da situação com recurso às regras de vigência e cessação de vigência da lei (as quais não são, porém, claras para o cidadão médio), não são evidentes as razões que motivaram o legislador a distinguir o âmbito público e privado em matéria de direitos, liberdades e garantias, tendo como resultado possível a existência de distintos níveis de protecção de dados de saúde.
Na verdade, ao contrário de outras matérias, como, por exemplo, o acesso a documentos notarias e registrais, de identificação civil e criminal, documentos depositados em arquivos históricos e inclusivamente informação em matéria de ambiente, o acesso a dados de saúde não foi excluído do âmbito de aplicação da Lei de Acesso a Documentos Administrativos, sendo, pelo contrário, determinadamente assumido no respectivo artigo 7.º.
A temática descrita não é isenta de complexidade material, dada a circunstância de estarmos na presença de dois regimes jurídicos assentes em princípios basilares e normas legais não coincidentes e, até, contraditórios na sua génese.
Em termos muito sumários, recordo que a Lei da Protecção de Dados Pessoais assenta na protecção do respeito pela vida privada e confidencialidade, proibindo ou limitando o acesso aos dados por terceiros.
Pelo contrário, os princípios estruturantes da Lei de Acesso a Documentos Administrativos são, como V.
Ex.ª bem sabe, os da transparência e do livre acesso aos documentos administrativos, concretizadores do princípio da administração aberta, conforme plasmado no artigo 268.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
Naturalmente que, sem prejuízo das regras gerais de cada um dos regimes em análise, estão previstas excepções, as quais, pelo facto de em ambos os casos incidirem sobre a informação de saúde, resultam numa aproximação do tratamento conferido a este tipo de dados.
Assim, o consentimento expresso do titular dos dados, a necessidade de serem protegidos interesses vitais do mesmo ou de uma outra pessoa, o facto de estes dizerem respeito a dados manifestamente tornados públicos pelo seu titular ou, serem necessários à declaração, exercício ou defesa de um direito em processo judicial (desde que efectuada exclusivamente com essa finalidade) pode permitir o tratamento deste tipo de dados ao abrigo da Lei da Protecção de Dados Pessoais.
Também o acesso de terceiros para efeitos de medicina preventiva, de diagnóstico médico, de prestação de cuidados ou tratamentos médicos ou de gestão de serviços de saúde, ou ainda o acesso justificado por razões de interesse público, pode vir a ser autorizado pela Comissão Nacional de Protecção de Dados.
De modo inverso, os documentos administrativos que contenham dados de saúde são considerados «documentos nominativos»4 na medida em que abrangem informação contida pela reserva da intimidade da vida privada.
Ao abrigo desta qualificação um terceiro só tem acesso a este tipo de documentos se estiver munido de autorização escrita da pessoa a quem os dados digam respeito ou se demonstrar um interesse directo, pessoal e legítimo suficientemente relevante segundo o princípio da proporcionalidade.
Esta última condição de acesso a dados por parte de terceiros revela-se, porém, manifestamente mais aberta e potencialmente mais abrangente do que as normas resultantes da Lei da Protecção de Dados Pessoais.
Por esta razão é expectável que a dualidade de regimes descrita possa ter repercussões nas posições finais adoptadas relativamente a pedidos de acesso que visem dados de natureza idêntica, ainda que detidos por entidades de saúde de natureza distinta5.
A distinção reportada tende a agravar-se pela circunstância de existirem duas entidades administrativas distintas com competência para a respectiva fiscalização e supervisão dos regimes em causa. social». Constituem dados pessoais sensíveis, os dados referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem racial ou étnica e dados relativos à saúde.
3 Apenas sobre interconexão de dados é referido que pertence à CNPD a competência para se pronunciar perante pedidos de autorização, ainda que se tratem de dados contidos em documentos administrativos (artigo 27.º, n.º 1, alínea d), da Lei de Acesso a Documentos Administrativos).
4 À excepção de notas pessoais, esboços, apontamentos e outros registos de natureza semelhante, os quais não são considerados documentos administrativos, conforme dispõe o artigo 3.º, n.º 2, alínea a), da Lei de Acesso a Documentos Administrativos.
5 Como tão bem o demonstra a posição da Comissão de Acesso a Documentos Administrativos plasmada no recente parecer desta entidade, com o n.º 131/2011, de 12 de Maio de 2011.
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Refiro-me à Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) e à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), ambas entidades administrativas independentes a funcionar junto da Assembleia da República.
Da análise de um grupo de posições escolhidas do acervo de deliberações destas entidades, resultou que, muito embora tenham sido encontradas decisões da CNPD relativas a documentos detidos por entidades sob supervisão da Lei de Acesso a Documentos Administrativos, estas são anteriores a 2007. Posteriormente a esta data são em maior número as decisões da CADA relativas ao acesso à informação clínica detida pelas entidades que integram o Serviço Nacional de Saúde.
No sentido da tendência detectada, que parece confirmar a diferenciação dos regimes legais aplicáveis, importa atentar no teor do Parecer n.º 274/2007, da CADA, de 14 de Novembro de 2007, bem como do mais recente Parecer n.º 131/2011, já aludido, ao abrigo dos quais foi determinado que ainda que constem de uma base de dados, o acesso a documentos nominativos efectuado pelo titular da informação, ou por terceiro, nos termos da lei, é regido pela Lei de Acesso a Documentos Administrativos.
Ambos os pareceres mereceram declarações de voto.
No primeiro, o Dr. Eduardo Campos regista a posição de que a Lei da Protecção de Dados Pessoais seria o diploma mais vocacionado para a protecção da privacidade, intimidade e autodeterminação informacional dos cidadãos, em conformidade com a propriedade de informação de saúde atribuída pelo artigo 3.º, n.º 1, e artigo 4.º, n. º 3, da Lei n.º 12/2005, de 26 de Janeiro. Em conclusão, refere o ilustre vogal da CADA vencido que o acesso a dados de saúde por parte de terceiros só deve ser admitido nos casos dos n.os 2 a 4.º do artigo 7.º da Lei da Protecção de Dados Pessoais (cujo alcance é bastante mais restritivo, como já referido), ainda que apreciado pela CADA.
Não foi encontrado registo sobre a posição da CNPD a propósito da repartição de competências no acesso a dados de saúde.
Ainda que tenha vindo a desenhar-se a aceitação da repartição de competências a partir dos pareceres das entidades criadas para supervisionar cada um dos regimes e que esta venha a estabilizar-se, o enquadramento legal do acesso a dados de saúde não reúne a clareza exigida pela frequência das questões colocadas e extensão do universo de interessados abrangidos (detentores e titulares de dados bem como terceiros interessados).
Sob outra perspectiva, atendendo aos efeitos que os dois níveis de protecção distintos têm na esfera privada e constitucionalmente protegida dos particulares, a diferenciação dos regimes carece, pelo menos, de melhor justificação.
Sem querer abordar a questão material controvertida, por considerar que essa discussão extravasa o âmbito da presente iniciativa, importará referir a título de exemplo do que atrás ficou exposto, que, se para a CNPD não parece haver qualquer fundamento legal na Lei da Protecção de Dados Pessoais que permita o fornecimento da documentação clínica aos beneficiários de um seguro de vida para, depois, entregarem essa informação à seguradora, para a CADA o acesso a dados por familiares próximos (cônjuge, filhos) sem o consentimento do segurado para efeitos de activação do contrato de seguro deve ser admitido, na medida em que o interesse patrimonial em causa consubstancia um interesse directo, pessoal e legítimo, assim satisfazendo a condição imposta pelo artigo 6.º, n.º 5, da Lei de Acesso a Documentos Administrativos.
Ocorre igualmente referir que as diferenças entre os regimes ultrapassam o acesso por parte de terceiros, revelando-se, igualmente, ao nível da comunicação dos dados de saúde ao próprio titular. Neste contexto sobressai o fim da obrigatoriedade de intermediação médica, prevista no artigo 3.º, n.º 3, da Lei n.º 12/2005, de 26 de Janeiro, no caso do acesso a documentos administrativos, passando a intermediação médica a constituir apenas uma mera opção do titular dos dados (cfr. artigo 7.º da Lei de Acesso a Documentos Administrativos)6.
Sob outra perspectiva, tratando-se a Lei da Protecção de Dados Pessoais, de um diploma sobre direitos, liberdades e garantias, decretado ao abrigo das alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição da República Portuguesa, cumpre determinar expressamente a forma de entendimento desta repartição de regimes aplicáveis a dados pessoais, operada por uma lei que, embora posterior e de igual valor formal, incide 6 Embora sem colocar em causa direitos, liberdades e garantias, trata-se de um domínio recorrente, no qual se verificam dúvidas entre os médicos e potenciais diferentes práticas seguidas.
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sobre a matéria específica dos direitos dos administrados no contexto dos princípios que devem nortear a actuação da Administração Pública, numa adequada ponderação de bens jurídicos.
III — Conclusão
Importa concluir, resumindo as considerações supra expostas em três aspectos que justificam, ao abrigo do disposto nos artigos 8.º, n.º 1, e 20.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, a presente iniciativa.
Assim, sugiro à Assembleia da República a ponderação das razões que aconselham à intervenção legislativa pertinente, de modo a garantir:
a) A clarificação dos motivos que justificam a existência de dois regimes legais de protecção de dados pessoais de saúde, unicamente baseados na natureza pública ou privada das entidades que os detêm; b) A delimitação expressa e inequívoca dos respectivos âmbitos materiais de aplicação; c) A confirmação de que a situação descrita em circunstância alguma tolera níveis diferentes de protecção de dados pessoais referentes à saúde, em caso de dúvida desencadeando-se as medidas consideradas adequadas à superação da situação.
Na expectativa da melhor atenção de V. Ex.ª para as considerações e sugestões que antecedem e agradecendo que do seguimento que for dado ao assunto me seja dado conhecimento, apresento a V. Ex.ª os meus melhores cumprimentos,
O Provedor de Justiça, Alfredo José de Sousa.
A Divisão de Redacção e Apoio Audiovisual.