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Segunda-feira, 9 de setembro de 2024 II Série-E — Número 23
XVI LEGISLATURA 1.ª SESSÃO LEGISLATIVA (2024-2025)
S U M Á R I O
Presidente da Assembleia da República: Despacho n.º 44/XVI — Poderes das comissões parlamentares de inquérito quanto à possibilidade de solicitar, a pessoas singulares, determinado tipo de comunicações.
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PRESIDENTE DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA
DESPACHO N.º 44/XVI
PODERES DAS COMISSÕES PARLAMENTARES DE INQUÉRITO QUANTO À POSSIBILIDADE DE
SOLICITAR, A PESSOAS SINGULARES, DETERMINADO TIPO DE COMUNICAÇÕES
No passado dia 15 de julho de 2024, o Grupo Parlamentar do Chega apresentou um requerimento, ao abrigo
do n.º 4 do artigo 13.º do Regime Jurídico dos Inquéritos Parlamentares (RJIP), solicitando ao Presidente da
Assembleia da República os seus bons ofícios para requerer à Presidência da República, se possível em suporte
digital, o registo e/ou cópia de todas as comunicações (nomeadamente, cartas, mensagens escritas por
meio de telemóvel ou via internet – Whatsapp, Messenger, Telegram e mensagens de correio eletrónico)
referentes ao processo das gémeas luso-brasileiras Maitê e Lorena Assad, com a expressa advertência de
que, por imperativo legal, o não cumprimento de ordens legítimas de uma comissão parlamentar de inquérito
(CPI) no exercício das suas funções constitui crime de desobediência qualificada, para os efeitos previstos no
Código Penal (cfr. INT_CPIGTMZ/2024/17).
Não se ignorando que o Ex.mo Sr. Auditor Jurídico da Assembleia da República, com base na sua legítima
opinião jurídica e liberdade interpretativa, tenha emitido parecer jurídico nos termos do qual concluiu não se
divisar impedimento para notificar os detentores da correspondência, emails e mensagens escritas pretendidas
para procederem à sua entrega à Comissão, sob pena de cometerem crime de desobediência qualificada, ciente
de que compete à Assembleia da República, no exercício de funções de fiscalização, vigiar pelo cumprimento
da Constituição e das leis e apreciar os atos do Governo e da Administração, pelo Despacho n.º 40/XVI/1.ª
explicitámos as razões pelas quais o pedido formulado nos suscitava dúvidas quanto à sua sustentação jurídico-
constitucional.
Com efeito, embora o artigo 13.º, n.º 1, do RJIP prescreva que as comissões gozam dos poderes das
autoridades judiciais que a estas não estejam constitucionalmente reservados, esta equiparação não significa,
porém, esquecer o que já antes se disse: as comissões não são tribunais, não exercem o poder
jurisdicional, apresentando-se fundamentalmente como órgão político, não como autoridade judicial.
A investigação por elas levada a cabo situa-se num plano político e não judicial, sendo distintos os fins
prosseguidos: enquanto os tribunais visam determinar a responsabilidade jurídica (civil, penal ou administrativa),
as comissões apenas procuram apurar a responsabilidade política ou simplesmente realizar uma tarefa de
informação do Parlamento.
Por outro lado, como oportunamente se referiu, sendo os preceitos respeitantes aos direitos, liberdades e
garantias diretamente aplicáveis e vinculativos para todas as entidades públicas e privadas, nos termos do artigo
18.º, n.º 1, da Constituição, no exercício dos seus poderes de investigação próprios das autoridades judiciais,
as CPI não poderão deixar de ter em atenção, designadamente, que a todos os cidadãos é reconhecido
o direito ao bom nome, reputação e reserva da intimidade da vida privada e familiar (artigo 26.º, n.º 1) e
que o domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são
invioláveis (artigo 34.º, n.º 1, todos da CRP), os quais constituem direitos fundamentais dos cidadãos
que, mesmo em investigação criminal, não podem ser afetados senão por decisão de um juiz.
Por conseguinte, a excecionalidade das restrições constitucionalmente autorizadas implica que as restrições
legais e as intervenções restritivas decididas ou autorizadas por um juiz estejam sujeitas aos princípios jurídico-
constitucionais das leis restritivas referidas no artigo 18.º da CRP (necessidade, adequação, proporcionalidade,
determinabilidade).
De acordo com o entendimento vertido no nosso Despacho n.º 40/XVI/1.ª, o potencial ablativo de liberdade
e a gravidade da intromissão na esfera privada – e até na esfera íntima – da pessoa que decorre da simples
visualização da respetiva caixa de correio eletrónico são, pois, de tal forma significativos, que devem mobilizar-
se, neste campo, as mais intensas garantias que a Constituição confere à inviolabilidade das
comunicaçõese à privacidade dos dados pessoais no domínio da informática.
Assim, ao abrigo do disposto no artigo 44.º, alínea a), do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei
n.º 68/2019, de 27 de agosto, decidiu-se solicitar ao Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da
República a emissão de parecer sobre a legalidade e legitimidade do pedido formulado ao Presidente da
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Assembleia da República, ancorado nos poderes da CPI de solicitar, a pessoas singulares, os meios de
comunicação privada, independentemente de as mensagens se encontrarem ou não assinaladas como abertas.
Mais se requereu pronúncia quanto ao papel do Presidente da Assembleia da República no cumprimento da
solicitação de Deputados requerentes do inquérito, de modo que fique claro se o Presidente está obrigado a
observar e a dar cumprimento às diligências instrutórias que se julguem úteis, nos termos dos n.os 3 e 4 do artigo
13.º do RJIP, ou se lhe é permitido, dentro das competências que lhe são atribuídas pela Constituição, pela lei
e pelo Regimento, fazer a sua valoração de acordo com os juízos de legalidade e constitucionalidade que repute
convenientes, ancorado no propósito máximo de assegurar que a Assembleia da República, no exercício de
funções de fiscalização, vigie pelo cumprimento da Constituição e das leis.
Ora:
A argumentação expendida no nosso Despacho n.º 40/XVI/1.ª encontra total respaldo no parecer do
Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, entretanto rececionado.
Neste parecer, considera o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República que o n.º 4 do artigo
13.º do RJIP – ao dispor que as diligências instrutórias promovidas pelos Deputados requerentes do inquérito
são de realização obrigatória – subtrai a verificação da sua utilidade à aprovação da comissão parlamentar, sem
impor ao Presidente da Assembleia da República um dever de obediência, não se encontrando este obrigado a
conceder a sua assinatura à requisição coerciva de informações e documentos se entender que a requisição
exorbita do objeto de inquérito ou infringe norma constitucional, legal ou regimental.
Mais considera que vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis não é apenas uma incumbência da
Assembleia da República, mas também do seu Presidente que, na apreciação da legalidade de uma requisição
de informação e documentos à ordem de inquérito parlamentar, deve conhecer da suficiência da
fundamentação e examinar se são respeitados os direitos, liberdades e garantias e o equilíbrio dos
poderes constitucionais entre os diversos órgãos de soberania, na certeza de que só o Governo
responde politicamente perante a Assembleia da República.
Assim, ao fazê-lo, o Presidente da Assembleia da República deve assegurar-se da legitimidade da
ordem, pois a cominação com a pena prevista para o crime de desobediência qualificada não é eficaz se
a ordem for ilegítima.
Por outro lado, considera que o correio eletrónico, as mensagens trocadas por telemóvel ou através de
equipamentos afins e o registo de chamadas telefónicas se encontram excluídos do acesso a documentos
administrativos, por se encontrarem sob uma proteção qualificada dos dados.
Ademais, encontram-se sob a esfera de proteção do n.º 4 do artigo 34.º da Constituição, em que se
proíbe «toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos
demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal»,
frisando que, ao ressalvar os «casos previstos na lei em matéria de processo criminal», circunscreve-se uma
tal intervenção restritiva a um concreto processo criminal, o que não vale para o inquérito parlamentar,
mesmo quando, em paralelo, corra um procedimento criminal que verse sobre os mesmos factos.
Com efeito, o Presidente da República não responde politicamente perante nenhum outro órgão de
soberania. Pelo contrário, é a Assembleia da República a responder politicamente perante o Presidente da
República, razão pela qual, em caso algum, se encontra o Presidente da República obrigado a prestar
informações ou a facultar documentos a um inquérito parlamentar.
Assim, mantendo-se integralmente o entendimento e argumentação expendidos no Despacho n.º 40/XVI/1.ª,
lavrado de reforço de sustentação pelo parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República,
decide-se recusar dar cumprimento ao pedido formulado pelo Grupo Parlamentar do Chega de requerer
à Presidência da República o registo e/ou cópia de todas as comunicações (nomeadamente, cartas,
mensagens escritas por meio de telemóvel ou via internet – WhatsApp, Messenger, Telegram e
mensagens de correio eletrónico) referentes ao processo das gémeas luso-brasileiras Maitê e Lorena
Assad, com a expressa advertência de que, por imperativo legal, o não cumprimento de ordens legítimas
de uma comissão parlamentar de inquérito no exercício das suas funções constitui crime de
desobediência qualificada, por se considerar que tal requisição é ilegítima, infringe norma constitucional
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e não respeita os direitos, liberdades e garantias nem o equilíbrio dos poderes constitucionais entre os
diversos órgãos de soberania.
Dê-se conhecimento à 15.ª Comissão, com cópia do parecer da Procuradoria-Geral da República.
Notifique-se e publique-se.
Palácio de São Bento, 8 de setembro de 2024.
O Presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar-Branco.
A DIVISÃO DE REDAÇÃO.