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Sexta-feira, 22 de Abril de 1988 II Série - Número 8-RC

DIÁRIO da Assembleia da República

V LEGISLATURA 1.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1987-1988)

II REVISÃO CONSTITUCIONAL

COMISSÃO EVENTUAL PARA A REVISÃO CONSTITUCIONAL

ACTA N.° 6

Reunião do dia 7 de Abril de 1988

SUMÁRIO

Deu-se continuação à discussão do 2. ° relatório da Subcomissão da CERC respeitante aos artigos 12. ° a 23.° da Constituição e respectivas propostas de alteração.

Deu-se início à discussão do 3. ° relatório da Subcomissão da CERC relativo aos artigos 24. ° a 36." e respectivas propostas de alteração.

Durante o debate intervieram, a diverso título, para além do presidente, Rui Macheie, pela ordem indicada, os Srs. Deputados Herculano Pombo (PEV), Vera Jardim (PS), Almeida Santos (PS), Maria da Assunção Esteves (PSD), Alberto Martins (PS), Sottomayor Cárdia (PS), José Magalhães (PCP), António Vitorino (PS), Raul Castro (ID), Jorge Lacão (PS), Mário Maciel (PSD), Costa Andrade (PSD), José Manuel Mendes (PCP), José Luís Ramos (PSD) e Marques Júnior (PRD).

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O Sr. Presidente (Rui Machete): - Srs. Deputados, temos quórum, pelo que declaro aberta a reunião.

Eram 10 horas e 55 minutos.

Srs. Deputados, vamos recomeçar os nossos trabalhos com a discussão do artigo 23.°, relativo ao Provedor de Justiça.

Tem a palavra o Sr. Deputado Herculano Pombo.

O Sr. Herculano Pombo (PEV): - Sr. Presidente, gostaria de solicitar a V. Exa. permissão para começar pelo artigo 23.°-A, que é uma proposta apresentada pelo Partido Ecologista Os Verdes, uma vez que tenho uma reunião ao meio-dia e vou ter de me ausentar. Se estivessem de acordo, faria agora a apresentação dessa proposta.

O Sr. Presidente: - Com certeza, Sr. Deputado.

O Sr. Herculano Pombo (PEV): - Sr. Presidente, quero, antes de mais, fazer um pequeno reparo, que, aliás, já fiz pessoalmente à Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves, de quem sou amigo há muitos anos. É que no relatório que lhe coube fazer não figuram as duas únicas propostas de alteração apresentadas pelo Partido Ecologista Os Verdes. E a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves já teve ocasião de me justificar isso. Aceito e compreendo a justificação então dada, mas, no entanto, não queria deixar de fazer este reparo.

No relatório já está corrigida a nossa proposta quanto ao artigo 13.° Proponho agora que se adite à ultima página do referido relatório, com a permissão da Sra. Deputada relatora, a proposta de Os Verdes relativa ao artigo 23.°-A, cuja epígrafe é "Promotor ecológico".

Como os Srs. Deputados sabem, a criação do cargo de promotor ecológico é uma ideia que temos vindo, desde há algum tempo, a tentar introduzir, não de imediato, no quadro jurídico português, mas pelo menos, em primeira análise, na discussão, para que depois ela possa vir a fazer parte do referido quadro. Baseia-se tal proposta na análise que temos feito da situação ambiental e da participação que os cidadãos têm tido da denúncia de situações irregulares e no controle, que pensamos que é importante que o cidadão normal faça, da qualidade do seu ambiente. É necessário que lhe sejam dadas hipóteses de contribuir para melhorar a qualidade do ambiente em que vive e, por tabela, a qualidade do ambiente no seu país. De facto, o próprio Govêrno já reconheceu que é necessário que exista um órgão a quem compitam estas missões, ou seja, a missão de canalizar para os órgãos competentes as queixas, as denúncias e as propostas feitas pelos cidadãos. O próprio Governo, numa tentativa de remediar aquilo que ainda não está feito, de remediar, de alguma forma, esta deficiência, cuja resolução, a nosso ver, passa pela criação do cargo de promotor ecológico, decidiu atribuir ao Instituto Nacional do Ambiente algumas dessas competências. Pensamos que o Instituto Nacional do Ambiente, que tem competências próprias definidas por lei, não tem, de modo nenhum, competência nem isenção suficiente para exercer todas as missões, que, quanto a nós, deveriam estar atribuídas ao promotor ecológico.

É a altura de, em sede de revisão constitucional, fazer isso. E pensamos não ser descabido que, à semelhança da consagração em artigo da Constituição do cargo de Provedor de Justiça, também se pudesse e devesse consagrar o cargo de promotor ecológico, nos termos em que basicamente propomos que isso se faça. Portanto, começar-se-ia por garantir aos cidadãos o direito de apresentar queixas ao promotor ecológico quer por acções quer por omissões de pessoas ou entidades que atentem contra o equilíbrio ecológico. Depois tentar-se-ia definir um pouco o que é o promotor ecológico, que é um órgão público independente, e qual a sua função principal, que seria a da defesa dos direitos dos cidadãos consagrados no artigo 66.° da Constituição, que, como VV. Exas. sabem, é relativo à protecção ambiental, e na lei. Por último, numa tentativa de melhor definir o exercício da actividade do promotor ecológico, dir-se-ia, no n.° 3, que a actividade do promotor ecológico é exercida sem prejuízo das atribuições do Provedor de Justiça e dos meios graciosos e contenciosos legalmente previstos.

Pensamos que ao promotor ecológico deveria caber a missão de canalizar para os órgãos responsáveis e competentes os pedidos de correcção de situações de degradação que lhes sejam dirigidos pelos cidadãos, ou seja, de organizar os processos e dar continuação aos mesmos, para que eles atingissem os objectivos propostos, com a celeridade que estas questões requerem. Pensamos também que ao promotor ecológico deveriam ser dadas condições para que ele pudesse ter um papel de defesa do meio ambiente e emitir pareceres e recomendações no sentido da correcção de situações ilegais e injustas que tivessem de algum modo a ver ou pusessem em causa a qualidade do ambiente e a qualidade de vida das pessoas.

Temos um projecto de lei que vai nesse sentido, ou seja, que regulamenta, no plano do direito ordinário, aquilo que constitucionalmente pensamos que deveria estar estabelecido. Nesse projecto de lei, que já foi entregue à Assembleia da República, diz-se que o promotor ecológico deverá ser designado pela Assembleia da República, sob proposta mínima de dez deputados, e ser um cidadão de reconhecida independência e idoneidade.

Pensamos que com a sua designação através da Assembleia da República ficam garantidas estas condições básicas da idoneidade e da isenção. Pensamos igualmente que o Instituto Nacional do Ambiente, por ser um órgão de direcção colegial com diversos tipos de designação dos seus membros, não pode, de forma nenhuma, responder em plenitude a estas missões nem às características que cremos que deve ter um cargo deste tipo.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Presidente, a proposta do Partido Ecologista Os Verdes levanta um problema genérico, que não diz apenas respeito ao promotor ecológico, mas também à reivindicação que tem sido feita por vários grupos de interesses e movimentos sociais no sentido de terem também o seu prove-

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dor. Alguns grupos de consumidores têm reivindicado um provedor; alguns grupos e movimentos de mulheres têm reivindicado o seu provedor; etc. Agora é a vez do promotor ecológico.

Penso que, salvo o devido respeito pela proposta, há aqui um defeito tipicamente português, que é o de criar novas estruturas antes de se usar devidamente as que existem, sendo certo que temos um provedor. Pergunto: quantas queixas ecológicas já terão sido feitas ao Provedor de Justiça perante o caos que grassa no País nesta matéria? Será que estão afastadas da competência do Provedor de Justiça matérias destas? É esta uma primeira questão que se poderia colocar.

Penso que a criação de um promotor ecológico abriria, por um lado, caminho a que toda esta reivindicação ainda pudesse ter mais impacte. Sou contra isso e penso que a nossa bancada também reflectiu sobre a existência de vários promotores. Discutimos isso e chegámos à conclusão de que há que reforçar o papel e os poderes do Provedor de Justiça. Vimos este problema do promotor ecológico, do promotor dos consumidores, do promotor das mulheres, mais como um problema de organização interna da própria Provedoria. É natural que o Provedor sinta necessidade, dentro do seu esquema, do seu organigrama de organização interna, de criar vários sectores que acompanhem os processo relativos a estes campos de actividade e interesses que acabei de enunciar. A nosso ver, porém, não se justifica a criação de novos "promotores". Dignifiquemos e demos poderes ao Provedor de Justiça e, sobretudo, dignifiquemos a sua acção junto dos órgãos do Estado e da Administração Pública. Isso é que me parece ser fundamental tratar nesta sede e nesta fase da existência do Provedor.

Por outro lado, o Provedor de Justiça é, entre nós, uma criação relativamente recente. Não conheço, como é evidente, todas as experiências, mas posso dizer-vos que não sei de muitos casos em que haja vários promotores. Conheço apenas o caso da Suécia, que tem, efectivamente, vários provedores, e suponho que um ou outro país nórdico também terá esse tipo de organização. Nesses países há uma experiência que conta com dezenas de anos, sendo, portanto, muito mais avançada do que a nossa. Não nos parece justificar-se, neste momento, abalar esta estrutura da Provedoria da Justiça. Antes pelo contrário, há que lhe dar mais poderes, mais competência e mais dignidade.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Presidente, quero apenas completar a posição do Sr. Deputado Vera Jardim.

Em primeiro lugar, não percebo por que é que num caso se fala em provedor e no outro em promotor. Penso que a palavra "prover" é mais rica do que "promover" e tem talvez mais a ver com o cumprimento das obrigações do que com a defesa dos direitos. E o artigo 66.°, para que se remete, não tem só direitos, mas também obrigações - e talvez seja aí que se deva actuar.

O que queria dizer é que nós propomos isto de uma maneira muito mais eficaz. Digo isto porque propomos dez milhões de promotores ecológicos, na medida em que prevemos uma acção popular para defesa dos valores ecológicos. Pensamos que isto tem mais sentido, pois este é um sector, um domínio em que me parece que se justifica a figura da acção popular e em relação ao qual os fiscais, os provedores e os promotores seremos todos nós. Cada um que tiver conhecimento de que se vai instalar uma fábrica poluente e essa fábrica vai matar os peixes do rio tomará a medida preventiva ou repressiva que entender, promovendo necessariamente o pagamento das indemnizações que forem justas quando a violação dos direitos ou incumprimento dos deveres se consuma.

Pensamos, pois, que na base disto está uma ideia salutar. Como é óbvio, cada vez mais me convenço de que um dos problemas fundamentais do nosso tempo é o da defesa do ambiente. A princípio isto pareceu-me uma coisa um pouco poética, mas a verdade é que hoje é um dos problemas centrais do nosso tempo. Estou de acordo com isso, mas creio que a nossa proposta, sem a vaidade de criar dez milhões de promotores ecológicos, é talvez mais prática, mais simples, menos cara e mais eficaz para a defesa dos valores do ambiente.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Presidente, não vou, de certo modo, adiantar muito mais em relação àquilo que disseram os Srs. Deputados Vera Jardim e Almeida Santos, a não ser apenas formalizar a posição do PSD em relação a este aditamento proposto pelo Partido Ecologista Os Verdes.

O PSD entende que a diferenciação de interesses e a multiplicação de direitos que exigem salvaguarda e garantia através de uma instituição como a do Provedor de Justiça podem, eventualmente, justificar uma variedade, uma multiplicação de processos, mas nunca uma excessiva multiplicação das entidades a que os titulares dos interesses e direitos efectivamente se dirigem. Lembrando aqui o que ontem o Sr. Presidente dizia sobre outro artigo, a propósito das class actions, e hoje foi de certo modo repetido, a outro nível, pelo Sr. Deputado Vera Jardim, diria que o que se tem verificado quando há interesses ou direitos que dizem respeito a uma colectividade ou a um grupo de pessoas e por eles são servidos em comum e do mesmo modo, o que há, efectivamente, a nível dos esquemas de legitimidade processual junto dos tribunais, é uma alteração a uma adequação dos esquemas processuais de fazer valer direitos e interesses de grupo. Nunca se verificou, por razões de economia e de racionalidade, a excessiva proliferação de entidades a que os titulares desses direitos ou interesses se dirigem. Nesse sentido, e sem adiantar mais do que já foi dito, entendemos que isto é complicativo e ao mesmo tempo constitui um certo modo de desqualificar a função do Provedor de Justiça de garantia dos direitos dos cidadãos...

(Em virtude de falha técnica, não foi possível registar as últimas palavras da oradora.)

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.

O Sr. Alberto Martins (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador.) ... sobre a natureza do instituto que

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é apresentado, ou seja, o do promotor ecológico, que nalguma medida, a ser aprovado, desnaturaria o próprio sentido do Provedor de Justiça tal como ele está consagrado, já que o Provedor de Justiça é apontado com um órgão, que na prática, em termos de lei ordinária, funciona basicamente como controle da actividade administrativa do Estado. Alguns constitucionalistas até apontam a ideia de que a lei poderia levantar dúvidas de constitucionalidade por ser mais restritiva do que aquilo que a Constituição diz, nomeadamente no que se refere às acções ou omissões dos poderes públicos. Só que nesta proposta já não seria apenas essa actividade a ser cometida ao Provedor de Justiça, ou seja, nem só as acções ou omissões dos órgãos dos poderes públicos, mas também a possibilidade de intervir relativamente às actividades das entidades privadas. Por outras palavras, a figura do Provedor que aqui seria admitida teria uma latitude de competências que não tem trânsito em termos de experiência no nosso orçamento constitucional. Portanto, esta figura iria muito além da lei ordinária, bem como do cumprimento da Constituição tal como ela está a ser aplicada relativamente ao Provedor de Justiça, e invadiria a esfera privada com meios jurídicos e de intervenção, que não se detectam quais seriam.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Presidente, subscrevo as intervenções dos oradores precedentes, mas mesmo que tal não fizesse opor-me-ia à proposta do artigo 2O.°-A, porque, a introduzir no nosso ordenamento jurídico algumas figuras com estas características, isso poderia, se porventura a ideia fosse acolhida, ocorrer mediante a lei ordinária, e não no próprio texto da Constituição.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Herculano Pombo.

O Sr. Herculano Pombo (PEV): - Sr. Presidente, não havendo mais pedidos de intervenção a respeito desta matéria, devo concluir que basicamente não me foram colocadas perguntas, mas que foram expendidos aqui argumentos cuja qualidade jurídica e razoabilidade reconheço.

No entanto, não quero deixar de referir que, para além desta nossa iniciativa ser bem intencionada, não gostaríamos que isto ficasse somente no terreno das boas intenções, porquanto sabemos que delas estão o céu, o inferno e a terra cheios e que com isso não temos adiantado grande coisa. De facto, como aqui referiu o Sr. Deputado Almeida Santos, hoje um dos problemas centrais das sociedades é o da defesa da qualidade do ambiente e da qualidade de vida, em termos de prevenção contra as agressões ao ambiente. Infelizmente, muito tem de ser feito, já não no âmbito da prevenção, mas sim no da restauração daquilo que foram as condições de habitabilidade do próprio planeta. Neste sentido, para grandes males grandes remédios! E não veríamos problema de maior em encetar uma experiência nova, ainda que uma experiência dessas tenha paralelo apenas em sociedades de tipo nórdico, e não nas sociedades da Europa do Sul, e a nossa sociedade não esteja preparada para determinado tipo de alterações, que, de algum modo, julgamos que seriam benéficas, mas em relação às quais - é óbvio - somente uma leitura posterior dos factos nos daria uma visão total neste domínio.

Contudo, não é possível prever o que aconteceria, se a situação melhoraria ou não, se aumentariam ou não as queixas dos cidadãos e se os 10 milhões de provedores ou promotores ecológicos que o Partido Socialista propõe exerceriam ou não o seu dever e o seu direito de salvaguarda das condições ambientais em que vivem. Continuo a pensar que o ideal é que sejamos 10 milhões, ou mais, de portugueses a promover a qualidade do ambiente em cada acção que pratiquemos, a denunciar e a estar atentos e essencialmente a prevenir, porque felizmente Portugal é um dos países onde ainda cabe mais prevenir do que remediar, ao contrário da maioria dos países da Europa do Norte e Central. Há que fazer grandes investimentos na remediação dos males existentes e já não tanto na sua prevenção. Felizmente, a situação portuguesa é diferente.

Como disse, há que prevenir e pensamos que, por essa razão, talvez se justificasse a criação da figura do promotor ecológico e que lhe deveria ser conferida a dignidade constitucional, à semelhança do Provedor de Justiça. A legislação ordinária teria, obviamente, o cuidado de deixar clara a forma como se exerceria este cargo, como os cidadãos teriam acesso a ele ou como o próprio promotor ecológico tomaria iniciativas quando julgasse ser isso do interesse geral. Refiro isto para, de certo modo, responder à questão colocada pelo Sr. Deputado Sottomayor Cárdia, questão, aliás, que tem vindo a ser levantada e se reporta ao aspecto do que é que deve ou não ter dignidade de ser expresso no texto constitucional. Pensamos que, a ser introduzida uma figura ou um instituto destes, ele deveria ter consagração constitucional.

De qualquer modo, essa não é a questão fundamental, que consiste no seguinte: uma das grandes prioridades apontadas, agora que Portugal pode vir a encetar um período de desenvolvimento, é a de que ele se processe de uma forma sustentada, de forma a não delapidar, em nome da urgência que temos de recursos económicos, os recursos humanos e naturais. Ora, pensamos que tudo o que se possa fazer no sentido de prevenir acções que têm vindo a ser praticadas com demasiada frequência e às quais os cidadãos não têm tido capacidade, por falta de informação e esclarecimento, de dar resposta imediata deve ser feito. Muito provavelmente, também por isso eles não terão canalizado para o Provedor de Justiça um número de queixas compatível com o número de agressões que diariamente vemos serem praticadas contra o ambiente e a qualidade de vida.

Por estas razões, entendo que o promotor ecológico teria também uma função pedagógica, ou seja, a função de informar e estimular a prática e a actividade preventiva por parte dos 10 milhões de portugueses que somos, embora compreenda que, a serem criadas condições por parte do Provedor de Justiça, esta missão poderia ser desempenhada cabalmente pelos respectivos serviços. Digo "poderia", e não "pode", porque entendemos que nas condições actuais não só ela não pode ser desempenhada por esses serviços como não o tem sido.

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A ideia fica aqui expressa e o debate provavelmente não ficará por aqui, mas o que nos importa não é propriamente ver aprovada uma proposta nossa, pois não é essa a nossa glória. A nossa glória e o nosso prazer seriam que, de facto, os cidadãos em Portugal, através deste processo ou de outros mais justos que se venham a descortinar, exerçam em cada dia o dever e o direito que têm à salvaguarda da qualidade de vida e do ambiente.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, como ainda não me pronunciei sobre a proposta de aditamento apresentada pelo Partido Ecologista Os Verdes, vou fazê-lo agora, o que será extremamente fácil, porque me impressionou apenas um aspecto: o tem com que foram à partida consideradas inaceitáveis ou, pelo menos, merecedoras de uma não benevolência algumas das ideias de criação de novos mecanismos institucionais para a realização de certos fins de tutela da legalidade e, no fundo, da constitucionalidade da actuação da Administração Pública. Assim, creio que é preciso actuar nesse campo, naturalmente não no sentido da pulverização inextricável, infindável e incriteriosa dos mecanismos existentes, conhecidas que são até as carências de afinamento dos mesmos, mas julgo que seria útil ter alguma humildade na consideração de que, face ao panorama das carências, o "fechamento" da reflexão sobre o afinamento de meios institucionais é pelo menos prematuro.

Por outro lado, o atirar de pedras nesta matéria não é recomendável pela experiência e pelas responsabilidades políticas de cada um de nós. Por exemplo, o Provedor de Justiça é uma entidade que pode desempenhar um papel extremamente relevante no combate à corrupção, mas isso não impediu que alguns dos que aqui se sentam tivessem entendido na altura apropriada - o que seguramente não lhes pode ser censurado - que era relevante criar a Alta Autoridade contra a Corrupção (AACC). Dir-se-á: "Mas porquê, senhores, se há a Polícia Judiciária, o Ministério Público, os Tribunais, o Provedor de Justiça e tantos outros meios?" Poderia terçar armas, se estivéssemos em hora de fazer caricaturas ominosas, utilizando todos os argumentos que aqui foram usados contra o promotor ecológico. "Mas porquê? Quantas queixas contra a corrupção foram feitas ao Provedor de Justiça?" - diria eu, como disse o Sr. Deputado Vera Jardim. Pulverizar é abalar, é invadir a esfera privada. Pensem bem como este argumento se aplica maravilhosamente, se assim houver intenção, ao caso da referida Alta Autoridade. Ou seja, o argumento que o Sr. Deputado Alberto Martins utilizou seria facilmente torneável na redacção do preceito, se fosse caso disso.

Quero, portanto, dizer que naturalmente haverá ou poderá haver inconveniente na excessiva proliferação de meios utilizados. Por exemplo, há panoramas um tanto alucinantes em matéria de provedorias e ouvidorias em determinados países; inclusivamente, os nossos colegas brasileiros ponderam neste momento - já lá iremos - a criação dos mais diversos ouvidores, nomeadamente municipais e federais, de toda a espécie de ouvidores com competências latas semelhantes às detidas por típicos Ombudsman. Assim, é necessário ter cuidado nesta matéria, mas creio que esse cuidado não deveria ser tão terminante num país caracterizado por carências tão agudas em áreas básicas e em que precisamente as acções de massa, no sentido técnico, são tão infrequentes, dadas as nossas debilidades. Ouço falar aqui, com um tem orgulhoso, das acções grupais, num país que não as tem, e de que romper com o conceito tradicional de legitimidade consistiu num sonho constitucional em 1976, inconcretizado, até à data, em todas as esferas fundamentais. Bateu-se o PCP, anos a fio, por que se instituísse o direito à acção popular em relação a aspectos fulcrais, designadamente no tocante à defesa do sector público nos diversos domínios, mas infelizmente sem êxito. Também nos batemos pela instituição desse direito em esferas essenciais, incluindo a da defesa do consumidor, aqui com algum êxito parcial, mas não concretizado no terreno da lei ordinária, porque a Lei de Defesa dos Direitos do Consumidor é, em grande parte, letra morta.

Ora, traçarmos um panorama exaltante dos nossos milhões de consumidores e dos nossos milhões de atingidos por delitos ambientários os mais diversos, num país que não tem essa estrutura e, portanto, depende em grande medida da acção institucional organizada e de topo, a qual não vemos como resultante de modelos ou vontades de Minerva, mas como uma coisa importante para os cidadãos, parece-me francamente defeituoso. Neste sentido, a nossa posição é de prudente interesse por todas as manifestações, nomeadamente pelos 10 milhões de consumidores referidos pelo Sr. Deputado Almeida Santos e pelo promotor ou provedor ecológico.

Quanto a este último caso, penso que poderemos convergir todos na apreciação de que a respectiva designação pode até ser outra. Isto é, baptizar a "criança" trata-se de algo próprio da fada madrinha, mas realmente a palavra "provedor" é em português mais expressiva do que "promotor". Talvez os proponentes tenham pretendido - e o Sr. Deputado poderá esclarecer depois essa questão - não estabelecer qualquer confusão em relação à figura do Provedor, dizendo que Provedor só há um, etc. De qualquer modo, creio que essa prudente benevolência para a consideração de tudo poderia ter alguma utilidade.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Apenas pedi a palavra porque, como o Sr. Deputado José Magalhães fez apelo a uma manifestação de consciência e de humildade, mas não deu bem provas disso na sua intervenção, julgo que não deveria deixar passar esta intervenção sem algumas observações.

Na realidade, poderemos lançar aqui um grito ou uma palavra de ordem "guevarista" ("criar um, dois ou três Vietnames") e criar um, dois ou três provedores para várias coisas, mas o que o Sr. Deputado José Magalhães não explicou - e isso é uma questão de política central - é a razão pela qual se propõe apenas criar o provedor ecológico, ou seja, considerar que deveremos retirar do Provedor de Justiça a área da ecologia e deixar na sua mão, a título residual, todas as

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outras áreas que foram referidas, tal como as áreas da protecção dos consumidores e da preservação do património histórico e cultural.

A posição do Partido Socialista, sob esse ponto de vista, é muito mais coerente do que as restantes, porque o que defende é a generalização do direito de acção popular relativamente àquelas áreas que em sede constitucional reputamos mais importantes, designadamente a ecologia, a protecção do meio ambiente, bem como do património cultural e histórico, e a defesa dos consumidores. Portanto, tratamos todas essas áreas onde na sociedade contemporânea se afirmam os interesses de grupos específicos em verdadeira igualdade de circunstâncias. Não discriminamos, sendo certo que o problema consiste exactamente em justificar a discriminação, coisa que o Sr. Deputado José Magalhães não fez, mas que talvez não tivesse de o fazer, porque não é o autor da proposta. Mas, num apelo de humildade científica, valeria a pena, apesar de tudo, entregar-se a esse exercício.

Quanto à questão da acção popular, devo dizer que o único partido português que desde o 25 de Abril esboçou um princípio de regulamentação jurídica da acção popular foi de facto o Partido Comunista Português, na II Legislatura, através de um projecto que foi discutido na então 2.ª Comissão, Comissão de Direitos, Liberdades e Garantias, o qual foi unanimemente considerado insuficiente e não satisfazendo os objectivos do instituto da acção popular consagrado na Constituição. Decidiu-se naquela altura que mais valia deixar subsistir o regime existente e decorrente de anteriores diplomas do que estar a consagrar um diploma com três artigos, que era manifestamente insuficiente. Daí para cá mais ninguém fez nenhum esforço de aperfeiçoamento desse regime jurídico; o PS não o fez - mea culpa -, mas a verdade é que também o PCP nunca mais retomou esse projecto de lei em matéria de acção popular. Se falamos, pois, em termos de humildade, convém também recordar este pormenor histórico, que me parece significativo.

Finalmente, o problema que o Sr. Deputado José Magalhães coloca é um problema que pode ser levado às últimas consequências em todas as áreas da actividade legislativa do Estado, que consiste em saber se a actividade normativa, designadamente em sede de revisão constitucional, deve ser uma actividade estimuladora da sociedade civil nas suas manifestações mais variegadas ou uma actividade substitutiva do próprio dinamismo da sociedade civil. Isto é, a questão que o Sr. Deputado coloca é a de saber para quê estarmos a louvar-nos da vitalidade e da auto-organização da sociedade civil quando ela não existe, porquanto os mecanismos escassos que já existem na Constituição nem sequer são devidamente utilizados. Substituamos, pois, a inépcia e a tibieza da sociedade civil através de mecanismos institucionais que dão ao Estado um certo protagonismo na defesa dos interesses colectivos.

Esta é uma lógica possível de abordagem destas questões, mas, na realidade, não é a minha lógica. Recordo que, pelo facto de se ter pretendido alargar a legitimidade processual num conjunto de áreas, designadamente a da protecção dos direitos dos consumidores, às entidades representativas de grupos de interesses, estas depararam desde logo com obstáculos decorrentes do seu próprio funcionamento, porque, quando se tratou de consignar que as associações de defesa dos

consumidores tinham legitimidade processual para serem partes em processos judiciais contra comerciantes que adulteravam os produtos que vendiam, a principal reserva suscitada veio exactamente da parte dessas associações, as quais não foram capazes de assumir essa zona melindrosa em que quem assume uma posição processual também assume as responsabilidades de natureza civil subsequentes a eventuais acusações infundadas ou injustas.

É que, se eventualmente se viesse a demonstrar que as partes - e não apenas o Ministério Público - em processos judiciais onde eram demandados comerciantes que vendiam produtos adulterados não tinham razão, na acusação formulada, também deveriam estar obrigados a responder, em termos de responsabilidade civil, pelos danos causados por esses processos intentados aos próprios comerciantes.

Lembro-me perfeitamente desse debate, que, aliás, foi muito interessante e em que os principais protagonistas desse processo foram os primeiros a dizer que não tinham condições nem estavam preparados para assumir tal responsabilidade. Portanto, a tibieza não deriva de preconceitos teoricistas, ideológicos e filosófico-normativos, mas sim do realismo da sociedade civil que temos. Aliás, em termos institucionais estão perfeitamente contempladas situações que vão desde a existência de um Provedor de Justiça omnicompreensivo até ao direito de acção popular, que, se for consagrado nos termos em que o PS o propõe, apenas terá de se fazer um esforço de conjunto - porque ninguém é dono da verdade absoluta neste domínio - e consagrar no plano do direito ordinário um regime jurídico de acção popular que torne esse mecanismo mais eficaz do que o foi até à data.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Herculano Pombo.

O Sr. Herculano Pombo (PEV): - Sr. Deputado António Vitorino, não quero sair do debate sem, de algum modo, contraditar algumas das afirmações que foram proferidas por V. Exa.

De facto, não se trata neste caso de criar um promotor ecológico para cada grupo específico. Não está em causa - repito - a criação de uma figura que vá proteger aqueles que se reclamam, designadamente, da área do ambientalismo ou do ecologismo. Não é, pois, isso o cerne da questão. Portanto, penso que é indevida a comparação que se faz com o promotor da criança, das mulheres, dos consumidores, etc. São grupos específicos, embora todos saibamos que o grupo dos consumidores é tão alargado como o universo dos cidadãos.

Em suma, a questão ambiental tem natureza global; tem a ver com os cidadãos que habitam neste momento determinado espaço, com aqueles que o virão a fazer no futuro e também com aqueles que o habitaram anteriormente, cujo património ainda está presente e urge salvaguardar - isto respeita, naturalmente, às questões ambientais e à natureza da paisagem construída -, e tem a ver com outras componentes que não as humanas. Este é, pois, um problema global e não de um grupo específico. Como tal, essa comparação - permita-me a expressão - não é lícita.

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O Sr. António Vitorino (PS): - Desculpe-me, Sr. Deputado Herculano Pombo, mas não vejo em que medida é que o promotor ecológico seja mais global do que o dos consumidores. Parece-me, de facto, que não há um universo mais amplo do que o dos consumidores. Acontece que vivemos inseridos no meio ambiente e que, portanto, sob esse ponto de vista, a comparação é totalmente legítima.

O Sr. Herculano Pombo (PEV): - Sr. Deputado, embora já tenha afirmado que o grupo específico dos consumidores é tão vasto como o universo dos cidadãos, acabei igualmente de referir que a questão ambiental ultrapassa a do simples consumo ou da qualidade dos bens que se consomem. Portanto, deve-se contar com o património que temos, que nos foi deixado por quem habitou este território antes de nós, bem como se deve ter em conta aqueles que nos sucederão na administração do resto que lhes deixarmos. Por conseguinte, é um universo mais vasto do que o dos consumidores.

Continuo, pois, a pensar que não se trata de um grupo específico nem que se tem em vista proteger aqueles que revestem preocupações ambientalistas ou ecologistas. O que está em causa é, antes, proteger o único património que vale a pena salvaguardar e que é o garante da vida. Aliás, todos sabemos - isso já começa a ser um lugar-comum - que sem esta protecção não é possível a vida, isto é, que temos de começar a preservar os mecanismos que a suportam.

Quanto à questão da pulverização, devo dizer que o que se está a fazer hoje é isso mesmo. Digo isto porque se cria o Instituto Nacional de Defesa do Consumidor e a ele são cometidas determinadas missões e se cria o Instituto Nacional do Ambiente e é a ele que, numa tentativa de dar uma resposta precária às grandes necessidades neste domínio, são igualmente atribuídas certas competências. Daqui a pouco tempo chegaremos a uma situação em que os dez milhões de provedores - permita-me a utilização da expressão, porque penso que seria óptimo que assim acontecesse - não sabem o que hão-de fazer nem a quem se dirigir para apresentarem as suas queixas e propostas.

Portanto, criar-se-ão mecanismos sobre mecanismos que, pela sua natureza colegial e variada, têm um papel a desempenhar, mas que não podem cumprir todas as tarefas e irão contribuir para pulverizar o número de órgãos que começam a ter responsabilidades no cuidar destas coisas.

Pensamos, pois, que, sendo a questão ambiental um problema global que a todos afecta, ou seja, aos que estiveram, aos que estão e aos que vierem a estar - e não só aos humanos -, seria altura de criarmos esta figura, ainda que a tivéssemos de extinguir daqui a alguns anos, por manifesta desnecessidade. E digo isto porque Portugal está a encetar um desenvolvimento que, logicamente, deve ser sustentado e feito com o devido cuidado. Aliás, estou convencido, e recusando um pouco o que disse o Sr. Deputado José Magalhães, de que chegaremos a uma altura em que a nossa sociedade não precisará da Alta Autoridade contra a Corrupção.

Portanto, essas são necessidades de determinados momentos históricos, às quais devemos responder com eficácia.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Quero dizer a V. Exa., que, neste momento, a corrupção já é tanta que, segundo as suas palavras, não valeria a pena combatê-la.

Risos.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registaras palavras da oradora.)

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, desejo intervir sobre uma questão mais simples e menos filosófica do que aquela que está a ser abordada pelos Srs. Deputados. Assim, faria algumas observações acerca do que me parece ser uma confusão que o Sr. Deputado António Vitorino estabeleceu entre a humildade e a verdade, sendo certo, aliás, que estamos obrigados a ambas as coisas.

No caso concreto, aquilo que procurei situar não estabelece nenhuma contradição com uma das preocupações fundamentais que a bancada do PS exprimiu nesta sede. Se facto, estamos, segundo creio, completamente cientes - e posso dizê-lo com bastante grau de certeza - da grande importância de ter em atenção as realidades antigas e novas existentes na sociedade portuguesa e, designadamente, a necessidade de tutela daquilo a que se chamam os interesses colectivos difusos ou interesses públicos latentes. Daí que a solução existente no nosso direito para dar resposta a esse tipo de necessidades de tutela seja manifestamente deficiente. Avançou-se, no quadro da revisão constitucional de 1982, para determinadas soluções, nomeadamente no tocante ao artigo 66.°, n.° 3, da Constituição, cuja execução prática pela lei ordinária procurou nesse terreno específico dar alguns passos em frente. Porém, esses passos são muito limitados, como tivemos ocasião de afirmar durante o respectivo processo legislativo, mas somos capazes, naturalmente, de imaginar todos os outros campos em que esses interesses colectivos não têm adequada protecção jurídica.

Além disso, estamos também cientes da importância que tem já na nossa sociedade o tipo de relações poligonais estabelecidas entre a Administração e os cidadãos e a inadequação da Administração e das metodologias processuais, bem como a desgraçada omissão do código de procedimento gracioso, que entre nós continua a inexistir, ou seja, da inaptidão do quadro para dar resposta a essas dinâmicas.

Também é verdade que deve haver prudência e realismo, pois não é por acaso que a história, aliás injusta, contada pelo Sr. Deputado Almeida Santos a propósito das associações de defesa do consumidor teve lugar. Daí que qualquer de nós pergunte por que é que o Ralph Nader português não existe todos os dias na televisão, bem como por que é que as nossas associações de defesa do consumidor, tendo uma actividade meritória e positiva com relevo para as iniciativas de promoção do acesso ao direito, de criação de mecanismos de consultadoria, de apoio e, em certos casos, quase de patrocínio jurídico, não revestem projecção similar àquela que adquiriram noutras sociedades.

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É certo que o Sr. Deputado António Vitorino adiantou uma das explicações que na sociologia adequada se poderá avançar, ou seja, que entre nós, como, suponho, em qualquer sítio, embora em Portugal isso represente implicações particularmente gravosas, se têm de ponderar vários factores quando se coloca em movimento esta máquina judicial. Refiro-me, designadamente, à desigualdade entre as partes envolvidas, ao predomínio do privilégio da parte mais favorecida e mais poderosa, à lentidão da máquina judicial, ao custo natural de todo o accionamento do dito mecanismo e à ausência de instrumentos de apoio às entidades mais fracas que nesses processos se envolvem. E a verdade é que as ditas associações ponderam isso. Aliás, também não será por acaso que em Portugal a responsabilidade médica é efectivada nas condições que sabemos e que as empresas seguradoras actuam com um privilégio e uma capacidade, em muitos casos quase de esmagamento, que não têm paralelo com a situação existente noutros países.

Entretanto, não retiramos daí a conclusão de que há uma antítese mortal entre o terreno próprio da sociedade civil e o do Estado, com a devida tutela que este deve aos cidadãos. Refiro-me, pelo menos, ao nosso Estado democrático, com a configuração concreta que ele tem. Porém, esta questão não se coloca, porque há um fenómeno de conjugação, entrosamento e articulação. Portanto, a expansão e a adequada medida de tutela estadual não impedem nem visam asfixiar o desenvolvimento das mais diversas dinâmicas sociais. Pelo contrário, a Constituição até aponta para o desenvolvimento dessas dinâmicas, o que tem sido asfixiado pela prática política de diversos governos, facto sobre o qual poderíamos falar longamente. Em suma, repito, não há nenhuma antítese dramática que se coloque em termos que desafiem a humildade ou qualquer outro sentimento nobre. Há contudo, um problema de falta de mecanismos nos dois terrenos.

Assim, isto conduz-me a um outro aspecto, que é o do "tudo ou nada". Ou seja, creio que se faz um raciocínio, ainda e sempre, em termos do "tudo ou nada". Refiro-me à dicotomia entre "acção popular" e "mecanismos institucionais". No entanto, isto é falso, pois deve conjugar-se a figura da acção popular com a dos mecanismos institucionais.

Quanto ao aspecto das iniciativas do PCP nesta matéria, devo dizer a V. Exa. que isso é uma questão de verdade histórica, pelo que não vale a pena gastar muito tempo com isso.

Já em matéria de acção popular, o certo é que o nosso primeiro projecto sobre essa figura, apresentado na Assembleia da República na data que o Sr. Deputado António Vitorino procurou situar, foi, objecto de apreciação na generalidade e não chegou a ser votado, antes tendo baixado à Comissão para ser alvo de reformulação. Daí que seja necessário contar o resto da história, ou seja, que na legislatura seguinte, tendo ocorrido entretanto a dissolução da Assembleia da República, o projecto foi apresentado com benfeitorias e melhorias e que, tendo ocorrido nova dissolução, o mesmo projecto foi representado com teor idêntico, mas correspondendo já a algumas benfeitorias. No ínterim, havia sido aprovada uma lei que consubstanciava alguns dos aspectos da acção popular em matéria de defesa do sector público, mas, como pelo menos alguns se lembrarão, essa lei foi revogada pela Assembleia da República na altura do I Governo, presidido pelo Dr. Sá Carneiro. Em matéria de acção popular noutras esferas, não se conseguiu o consenso maioritário no sentido de que se avançasse, apesar de o PCP ter renovado sucessivamente a iniciativa.

O último aspecto não tem excessiva importância neste contexto, mas gostaria de o abordar. Refiro-me ao facto de, tendo presente esta perspectiva de conjugação de meios, se dever ponderar com grande frieza se a criação de novos meios é vantajosa. Era, pois, neste sentido que falava da tal questão que nos está a ocupar este tempo. Assim, por que é que não se propõe a criação, como existe noutros países, de um provedor das forças armadas ou das forças de segurança? De facto, ele existe noutros países, mas também se sabe que a criação de provedores com esse tipo de competências e esse âmbito de actuação pode ser excessivamente interna corporis e, portanto, não ser suficientemente distanciada para que preencha todos os objectivos que presidiram à instituição do Provedor de Justiça, os quais são inteiramente correctos do ponto de vista teleológico, ainda que possam não ser um êxito sob a óptica da sua efectivação.

Per conseguinte, não propusemos que se avançasse nesse sentido. Isto significa que não se trata de semear provedores como quem semeia trigo, mas sim de medir sem preocupações disjuntivas, tendo a prudência suficiente para medir a utilidade histórica, quiçá conjuntural, da instituição de determinados meios. Aliás, o Sr. Deputado António Vitorino não disse uma palavra sobre a questão e a história da Alta Autoridade contra a Corrupção, o que é extremamente significativo, porque era a única que lhe tinha colocado.

Em suma, compreendo que haja essas preocupações, pelo que estamos disponíveis para considerar se os meios são os mais adequados ou se haverá outros ainda, mas com este tem geral, que é muito contido ou que procura sê-lo. Neste aspecto, os Srs. Deputados o julgarão.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, gostaria de lembrar a VV. Exas. que temos uma revisão constitucional a fazer. Neste momento, estamos na discussão do artigo 23.°-A e temos de voltar ao artigo 23.°, para além de que ainda não discutimos os dez primeiros artigos. Além disso, embora isto seja extremamente interessante, o certo é que não é uma discussão científica, pelo que teremos de chegar a resultados relativamente depressa. E o problema é o de que não sei se por esta via, pela qual estamos gostosamente enveredando, essa pressa não será um pouco atardada.

Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.

O Sr. Raul Castro (ID): - Sr. Presidente, embora tenha chegado um pouco tarde, gostaria de justificar a proposta de aditamento ao artigo 23.° apresentada pela ID.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Raul Castro, acontece que estamos ainda na discussão do artigo 23-A.

Vozes.

O Sr. Presidente: - Aliás, quero dizer a VV. Exas. que este problema da contenção é um assunto difícil, porque me acorreram várias coisas que eu julgava

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curiosas e que até valeria a pena serem ditas. No entanto, por uma questão de morigeração e autodisciplina, mantive-me silencioso. Aliás, talvez haja oportunidade, quando discutirmos o artigo 23.°, de fazer essa referência.

No fundo, estou a subscrever a maioria das observações que foram referidas pelos Srs. Deputados do PS, seguidas pela da Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves, do PSD, que usaram da palavra nesta matéria.

Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.

O Sr. Raul Castro (ID): - Sr. Presidente, devo dizer a V. Exa. que, por atraso na chegada à reunião, supunha que se estava a discutir o artigo 23.° Mas - repito - gostaria de dizer ainda alguma coisa.

Assim, parece-me que os inconvenientes não suplantam as vantagens da criação do promotor ecológico. De facto, penso que há áreas de interesse tão generalizado no nosso país que, além do Provedor de Justiça, se justifica a criação de outros provedores. Pode, naturalmente, argumentar-se que se está a multiplicar a existência de provedores...

O Sr. Presidente: - Aliás, isso já foi argumentado, Sr. Deputado.

O Sr. Raul Castro (ID): - Sim, Sr. Presidente, mas a verdade é que, dentro de limites razoáveis, e tanto quanto me parece, não há senão propostas para a criação de dois novos provedores. Refiro-me, pois, aos provedores ecológico e do consumidor. Trata-se de áreas para as quais o Provedor de Justiça, como tal, não está especialmente vocacionado e que escapam à sua alçada própria, mas que são áreas de tão grande importância no contexto do nosso país que se afigura à ID justificar a criação de um promotor ecológico, tal como se justifica, a nosso ver, como mais adiante se verá, a criação de um provedor do consumidor. É que são tão graves os problemas da ecologia e do consumo - além do mais numa sociedade de consumo como aquela em que vivemos - que se justifica a criação destes novos provedores. Neste sentido, a ID é favorável à criação do provedor ecológico.

O Sr. Presidente: - Iríamos então passar à análise do artigo 23.°

Antes, porém, vou dar a palavra ao Sr. Deputado António Vitorino, para fazer uma intervenção, que, segundo creio, é uma réplica ou uma quadruplica.

O Sr. António Vitorino (PS): - Às vezes receio que o qualificativo das intervenções condicione o seu conteúdo.

O Sr. Presidente: - Quadruplica, em todo o caso, é uma linguagem processual.

Tem então a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Apesar de tudo, só iria fazer três brevíssimos comentários àquilo que o Sr. Deputado José Magalhães disse. Quanto à história do processo do projecto de acção popular, não tenho consciência de que neste momento esteja apresentado na Assembleia da República qualquer projecto sobre a matéria.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Neste momento e neste quadro político não está.

O Sr. António Vitorino (PS): - Era isso o que eu queria esclarecer.

Quanto à segunda questão, não defendi que houvesse uma antítese excluente de mecanismos institucionais e de auto-organização da sociedade civil. O que disse foi que o projecto do PS me parecia mais coerente, porque diz sim à auto-organização da sociedade civil e sublinha até a introdução de mecanismos de acção popular em quatro domínios; diz sim, sempre, aos mecanismos institucionais, que existem e se traduzem no instituto do Provedor de Justiça. O que se contesta aqui é que seja necessário criar provedores de justiça especializados - foi essa a lógica da minha intervenção.

Como último apontamento, diria que o Sr. Deputado José Magalhães tem uma inegável vantagem sobre mim, que é a de saber, melhor do que eu, que o futebol e o râguebi se jogam em campos com a mesma dimensão. Só que o facto de se jogarem dentro da mesma dimensão não significa que se joguem pelas mesmas regras. Quando, portanto, me tenta atirar às pernas com o argumento da Alta Autoridade contra a Corrupção, isso é o mesmo que estarmos a discutir um jogo de futebol e argumentar com as regras do râguebi. Isto porque a Alta Autoridade contra a Corrupção não tem paralelo com o Provedor de Justiça, antes tendo conteúdos funcionais e poderes de intervenção completamente distintos. Onde é que o Sr. Deputado José Magalhães tem vantagem sobre mim? É natural que quem pretende que o Provedor de Justiça tenha as competências que lhe vêm consignadas na alínea b) do n.° 4 do artigo 23.° do projecto do PCP pretenda identificar o Provedor de Justiça, as suas funções, a sua competência e a sua forma de intervenção com a Alta Autoridade contra a Corrupção. Mas, como nós não o acompanhamos nessa pretensão, é lógico que sublinhemos a clara diferença existente entre o Provedor de Justiça, tal como está concebido e com os poderes que tem na Constituição, e a Alta Autoridade contra a Corrupção, que tem outras dependências institucionais, outros conteúdos funcionais e poderes investigatórios paralelos aos das autoridades policiais e até judiciais, de que não usufrui o Provedor de Justiça.

Dentro desta lógica, talvez se deve reconhecer que o que se pretendia não era um promotor ecológico no sentido de provedor, mas sim um provedor ecológico no sentido de "alta autoridade ecológica", com poderes mais semelhantes aos da Alta Autoridade contra a Corrupção do que propriamente aos do Provedor de Justiça, tal como se encontra consagrado actualmente na Constituição. São, contudo, tipos de instituições completamente distintas e insusceptíveis de confusão.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - O Sr. Deputado António Vitorino manifesta-se absolutamente contra a pulverização ou proliferação de provedores, preocupação que eu já tinha manifestado, embora com uma diferença. É que o Sr. Deputado António Vitorino foi ganho, um tanto serodiamente, para a ideia da unicidade. Não lhe posse dar os parabéns, embora talvez isso fosse suposto. Mas nesta matéria não lhos dou.

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O Sr. Presidente: - Se fosse na fase sindical, seria mais grave.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas parece-me um pouco tarde.

O Sr. António Vitorino (PS): - Isso fará depender a unicidade dos que se estão a afastar dela.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Nessa matéria houve um afastamento constitucional, que já foi dirimido em 1976, pelo que a discussão é um pouco inútil nesse sentido.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Em 1975! Nos debates da Assembleia Constituinte!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Foi dirimido em 1976, na solução constitucional.

O Sr. Presidente: - Peço que não cedam à tentação dos apartes sucessivos, sob pena de perdermos o sentido da intervenção.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Em relação à segunda questão, que é a mais importante, e creio mesmo que a única importante, não creio que seja lícito estabelecer a imputação que o Sr. Deputado António Vitorino formulou. Evidentemente, sabemos a diferença entre uma estrutura com as características da Alta Autoridade contra a Corrupção e a estrutura do Provedor de Justiça. Não se diga é que fazer o paralelo que fiz é comparar ou misturar râguebi com futebol. Tanto quanto percebo a diferença, além da questão de as bolas serem diferentes, há algumas semelhanças neste caso, que são a única coisa que me sugestionou. O Sr. Deputado, que conhece profunda e seguramente as regras de ambos os campos e ambos os tipos de bolas, estará de acordo comigo em que não foi por acaso que o Provedor de Justiça em funções celebrou, em 22 de Março de 1984, um protocolo de acordo e de coordenação com o alto comissário contra a corrupção. Por que é que o fez? Para não duplicar diligências e procedimentos, embora S. Exa. saiba seguramente, como todos nós, que as diligências e procedimentos que faz não têm a mesma natureza técnico-jurídica das diligências da outra figura.

Quero, portanto, dizer que essa preocupação de conjugação que exprimi - e foi isso apenas o que fiz - tem a sua pertinência. Não se tratou, aliás, de procurar fazer qualquer amálgama indébita, mas de situar um problema que me parece real. Portanto, a única coisa que gostaria de fazer é não propriamente um grande apelo, mas algum alerta para a necessidade de na ponderação que vai ter lugar se encontrar uma forma de harmonização, que é a palavra de ordem vigente num terreno como este, em que está em causa a defesa dos direitos em esferas bastante sensíveis.

O Sr. Presidente: - Vamos passar ao artigo 23.° propriamente dito, sobre o qual há três propostas de alteração, de acordo com o relatório elaborado pela Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves, a saber: a proposta do PS, que, mantendo os n.ºs 1 e 2 do texto actual, propõe a alteração, com aditamento, do n.° 3 e ainda o aditamento de um n.° 4; a proposta do PCP, que também mantém os n.ºs 1 e 2 do texto actual, propondo a alteração, com aditamento, do n.° 3 e ainda o aditamento de um n.° 4; por último, a proposta da ID, que, mantendo o n.° 1 do texto actual, adita dois novos números, que seriam os n.ºs 2 e 3, passando os n.ºs 2 e 3 do texto actual, inalterados, a figurar como n.ºs 4 e 5.

Começaria por pedir ao PS que fizesse a apresentação sucinta do seu projecto, se o achar necessário, já que o texto é muito claro.

Pausa.

Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Também acho que não é necessária explicação, mas, em todo o caso, fá-lo-ei.

É evidente que nos pareceu que enriqueceria a figura do Provedor de Justiça a afirmação constitucional da sua independência. Se é verdade que hoje já há uma norma de independência da sua actuação, da sua actividade, relativamente aos meios graciosos e contenciosos, pensamos que, apesar de toda a figura estar construída em termos de independência de facto, a afirmação constitucional dessa independência poderia enriquecer a figura.

Quanto à menção do relatório e do debate, diria que é apenas e também a constitucionalização do que já existe, mas que assim se daria mais dignidade àquilo que não tem sido levado muito a sério. Quando nos aparece um relatório do Provedor de Justiça, lê-se cinco minutos antes e tecem-se uns elogios, mas não creio que seja levado tão a sério como deveria ser.

A norma do n.° 4, qual seja a do dever geral de cooperação dos órgãos e agentes da Administração Pública, a que, salvo erro, a ID acrescenta os próprios cidadãos, também me parece ser algo que já deve entender-se como existente, mas não há dúvida nenhuma de que a sua afirmação constitucional poderia também ter algum efeito prático. Pareceria mal que amanhã o Provedor de Justiça se dirigisse a um órgão ou agente da Administração Pública e recebesse, por exemplo, a resposta do silêncio, o que com esta norma não seria possível.

Pensamos, portanto, que, sem grande margem de inovação, esta proposta poderia ajudar a enriquecer a figura do órgão Provedor de Justiça que hoje existe e, a meu ver, tem dado boa conta de si, apesar da inexperiência neste domínio e de todas as limitações com que se defronta.

O Sr. Presidente: - Penso que poderemos fazer a discussão conjunta das três propostas, já que as matérias em apreço não justificam uma discussão separada das alterações propostas.

Deseja o PCP fazer a apresentação sucinta das motivações da sua proposta de alteração e aditamento?

Pausa.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - A preocupação que nos levou a apresentar estas propostas é, provavelmente, convergente ou comum com as que presidiram às dos demais partidos e forças que sobre esta matéria têm iniciativas. Devo dizer, aliás, que entendemos que

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elas se completam e que procurámos todos acorrer a facetas diferentes, mas convergindo para aquilo que é um reforço ou aperfeiçoamento do estatuto constitucional do Provedor de Justiça, o que parece ser realmente necessário.

Quando discutimos o último relatório do Sr. Provedor de Justiça no Plenário da Assembleia da República, pudemos fazer um balanço do percurso feito por aquele órgão e chegou-se, talvez, à grande conclusão de que o alargamento de competências - ocorrido por força da primeira revisão constitucional e, depois, da própria integração europeia, a qual implicou a abertura de diversos campos de actuação que de forma alguma estão preenchidos ou dilucidados, sob vários aspectos - não foi acompanhado do acréscimo de meios, estruturas e mecanismos ao dispor daquele serviço. Há, pois, uma enorme distância entre as atribuições e competências e a sua possibilidade de realização prática; há competências implícitas ou, antes, alargamentos de áreas de actuação a que não houve possibilidade de acorrer com novas actuações; há estrangulamentos de carácter burocrático e outros, que não são, obviamente, susceptíveis de abordagem em sede de revisão constitucional.

Aquilo que aqui poderemos fazer é tomar uma opção quanto ao mecanismo ou ao sistema que o Provedor representa, no sentido da sua não pulverização - que parece decorrer um pouco daquilo que debatemos antes - e do seu reforço, porque, aí, se se afirma terminantemente que não deve haver pulverização, então a contrapartida deverá ser o reforço. E deverá ser o reforço em múltiplas dimensões, das quais propomos duas.

Em primeiro lugar, propomos que o artigo 23.° conglobe aquilo que já são competências actuais do Provedor de Justiça. É esse o sentido das alíneas a) e b) do n.° 4 que se procura aditar: na alínea d) contém-se a mera reprodução de uma competência actualmente existente; na alínea b) procura-se inovar - aí sim - no sentido de fazer com que o Provedor de Justiça possa intervir na defesa de interesses colectivos ou difusos, sem seguramente se substituir à iniciativa dos interessados - interessados que devem ser entendidos numa outra óptica e num outro sentido renovado -, mas convergindo e agindo com os meios que só ele tem. A questão da impugnação contenciosa da validade de regulamentos...

O Sr. Almeida Santos (PS): - Como é que o Sr. Deputado concilia a manutenção do n.° 2, em que se diz que a actividade do Provedor de Justiça é independente dos meios graciosos e contenciosos, com a alínea b) do vosso n.° 4, que lhe comete, de novo, a competência para "impugnar contenciosamente a validade de qualquer regulamento ou de acto administrativo"?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Creio que o n.° 2 e a alínea b) do n.° 4 dizem respeito a realidades totalmente diferentes.

No n.° 2 estabelece-se que a actividade do Provedor é independente dos meios graciosos e contenciosos previstos na Constituição e nas leis. Isto é, os cidadãos, quando recorrem a esses meios graciosos e contenciosos, movem-se nessa esfera autónoma e própria, segundo os ritmos, os trâmites e as consequências próprias, e não estão impedidos de recorrer automaticamente, ao mesmo tempo...

O Sr. Presidente: - É ao contrário. O facto de recorrerem ao Provedor...

O Sr. José Magalhães (PCP): - O facto de recorrerem ao Provedor não os impede de recorrer a esses meios, mas creio que o contrário também é verdade,...

O Sr. Presidente: - É, mas não tão importante.

O Sr. José Magalhães (PCP): - ... embora não seja, provavelmente, o caso mais frequente.

Parece-nos que isto se situa num plano totalmente distinto daquilo que nos preocupou. Se há domínio em que o nosso direito administrativo ofereça debilidades, é precisamente aquele a que nos referimos na alínea b) do n.° 4: como atacar regulamentos ilegais ou inconstitucionais? É uma questão em relação à qual se avançou no quadro da primeira revisão constitucional e não se avançou tanto no quadro da lei ordinária, ainda que o estatuto e a lei de processo tenham procurado concretizar, em certo grau, o adquirido na mesma revisão.

Quanto aos actos que afectem interesses colectivos ou difusos, ou interesses públicos latentes, creio que estamos muito longe de uma resposta adequada. O Provedor pode ter a sua importância, e não nos parece que esse seja um meio que suscite tantas dificuldades como outras propostas mais difusas, designadamente as que tenham a ver com o alargamento do conceito de legitimidade. Dada a preocupação de certos partidos políticos - e não estou a referir nenhum em particular - que têm nesta matéria uma posição mais conservadora em relação às questões de legitimidade, atentas até as reservas com que encaram o estilhaçar da noção clássica, creio que será mais fácil remeter a competência nesta matéria para o Provedor de Justiça, com as suas características e regras de funcionamento e a sua prudente contenção, que, naturalmente, não será apanágio apenas deste ou daquele titular, antes devendo ser uma característica do órgão - tal como se fez em relação à inconstitucionalidade por omissão e aos processos de fiscalização da constitucionalidade dos outros tempos. Penso que essa pode ser uma solução equilibrada e prudente.

Uma última palavra em relação à solução que se adianta quanto ao n.° 3, que se auto-explica: visa-se garantir a estabilidade do Provedor através do alargamento do seu mandato em um ano (o actual período é de cinco anos) e consagrando constitucionalmente a proibição de destituição...

O Sr. Almeida Santos (PS): - Mesmo que ele fique doidinho e suba à estátua de Roque Santeiro, de pistola em punho, a gritar pela mulher? Não pode ser destituído, mesmo que fique maluquinho e suba à estátua, nu, a gritar pela mulher?

O Sr. José Magalhães (PCP): - O problema que coloca é relevante, mas, como sabe, há no nosso direito constitucional e no estatuto dos titulares de cargos políticos...

O Sr. Almeida Santos (PS): - Não sei se viu ontem a telenovela, mas refiro-me ao último episódio, em que isso acontecia...

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O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, tenho a certeza de que alguém estudará, além de todos os aspectos, a projecção da telenovela na revisão constitucional.

Risos.

Vai merecer, com certeza, uma nonografia da Universidade Nova de Lisboa.

Compreendo a referência, mas a questão do ensandecimento dos titulares de cargos políticos é um problema de direito político.

O Sr. Presidente: - É um problema mais geral, Sr. Deputado.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Refiro-me ao ensandecimento grave e não ao pequeno e médio, Sr. Presidente. É um problema geral que tem solução através de diversos mecanismos. Lembro-me, aliás, que a questão foi considerada a propósito da vigência e da subsistência do Govêrno por morte física do Primeiro-Ministro. A primeira revisão constitucional introduziu uni aperfeiçoamento nessa matéria, a actual Constituição já tem soluções expressas para os casos de impossibilidade físico-psíquica do Presidente da República.

Vozes.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto, Sr. Deputado. Esse fenómeno não se chama destituição, porque essa figura jurídica não é a destituição hoc sensu, a destituição neste sentido específico e próprio. Portanto, a cláusula de ensandecimento, que não existe para os deputados, pode ser uma situação a introduzir, mas a hipótese que o Sr. Deputado Almeida Santos descreveu aplica-se seguramente, com facilidade, ao deputado.

Risos.

Não creio que isso nos deva preocupar. Se assim fosse, quando estabelecêssemos uma proibição de destituição neste sentido técnico-jurídico preciso que estou a usar, seríamos obrigados a acompanhar a menção de que, evidentemente, isso não concede ao titular de cargo político o direito à eternidade e, portanto, o direito a não morrer, o direito a não ficar impossibilitado física ou psiquicamente e, naturalmente, o direito a fazer aquilo que o Sr. Deputado Almeida Santos descreveu.

Não é essa, pois, a questão que aqui está colocada. A questão é uma outra ainda mais relevante, que é a que diz respeito a uma norma constante do actual Estatuto do Provedor de Justiça. Como os Srs. Deputados seguramente se lembram, o actual Estatuto do Provedor de Justiça prevê a possibilidade da sua destituição pela Assembleia da República e pela mesma maioria qualificada que o elegeu. É dúbio que isso seja compatível com o actual texto constitucional, o que, em determinada altura, foi até muito polémico. Essa situação verificou-se quando um deputado do PSD encetou uma polémica com o Provedor de Justiça em funções nessa altura, a propósito da sua actuação quanto à PSP e à necessidade de pôr cobro a certas situações de sevícia e de ilegalidade verificadas no âmbito de certas estruturas da Polícia. Portanto, a questão não é onírica, mas sim relevante, e a clarificação que propomos parece útil e corresponder, aliás, ao sentido actual do preceito constitucional. Em todo o caso, o debate que possamos travar será bastante útil.

Gostaria também de me referir à proposta da ID e à do Partido Socialista.

De acordo com a ideia de que se formule constitucionalmente aquilo que é uma obrigação legal, a apresentação de relatórios pelo Provedor de Justiça revestiu-se de uma grande importância e a Assembleia da República encontrou, a determinada altura, mecanismos regimentais adequados a que essa apreciação se traduzisse num esforço de elaboração da própria 1.ª Comissão e numa certa dignidade do debate público respectivo. Parece-nos importante a preocupação de estabelecer a obrigatoriedade de cooperação da Administração Pública. Não está encontrada solução - e devo dizer também, com circunspecção, que não é fácil encontrá-la - para o bloqueio principal que nesta esfera se verifica, que é o da inoperatividade das recomendações do Provedor de Justiça. O Sr. Provedor de Justiça; no último encontro que teve com a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, teve ocasião de descrever extensamente - o que depois teve projecção no relatório do Sr. Deputado Alberto Martins e no debate em Plenário - as dificuldades que concretamente existem. Os mecanismos que o Regimento da Assembleia da República prevê nesta matéria são manifestamente insuficientes, e todos sabemos que ninguém pode coagir a Administração ao facto.

Portanto, uma Administração Pública que se assume como rebelde e que, posta perante injunções que têm um carácter limitado, não só incumpre como assume atitudes de desafio só pode ser objecto de medidas que estão na esfera de quem superintende sobre ela, se houver para tal vontade política, e de actuações dos tribunais, com o poder e as consequências que isso tem - e aí haverá questões de legitimidade a perspectivar para que a acção possa ser eficaz. Caso contrário, terá, naturalmente, a censura, a crítica da opinião pública, o que tem um valor inestimável, mas não é, infelizmente, elemento impeditivo das acções ilegais. Isso é válido para a administração central, mas, infelizmente, tem-no sido e, lamentavelmente, é-o também para a administração regional nas regiões autónomas, em que a acção do Provedor de Justiça tem muitas dificuldades para encontrar operatividade, e em certos casos relativos a autarquias locais.

Em relação às autarquias locais, o Sr. Provedor de Justiça disse-nos aqui que estas têm a prática de se limitarem a ler as suas recomendações ou as suas críticas em assembleia municipal, sem que se faça, na sequência disso, qualquer acção correctiva. Sucede mesmo que em certos casos há reafirmações puras e simples daquilo mesmo que foi condenado, com conjugação de órgãos autárquicos, no sentido da realização daquilo que é um desafio negativo. Essas situações não são, naturalmente, exponenciais nem significativas e nem sequer traduzem a atitude do poder local em relação ao Provedor de Justiça, mas existem. Não há nenhuma solução adiantada com operatividade satisfatória para esta situação. A que mais se aproxima desse parâmetro é a proposta pela ID, no n.° 2 do artigo 23.°, ao dizer que "os

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órgãos a quem forem dirigidas recomendações devem informar o Provedor de Justiça das medidas tomadas no seguimento daquelas recomendações".

Isso é o que ocorre, é a transposição para a Constituição de uma norma legal, mas é pouco. Estamos, naturalmente, disponíveis para considerar se haverá algum aperfeiçoamento a fazer nesta esfera. Se algum aperfeiçoamento houver a introduzir, ele terá de ser feito aqui. Isto tendo em conta quer o estatuto da Administração Pública, quer os poderes que o Govêrno tem em relação à mesma. Se, portanto, houver que temperar ou introduzir mecanismos de correcção, isso terá de ser feito aqui e não, seguramente, na lei ordinária.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.

O Sr. Raul Castro (ID): - Sr. Presidente, penso que as propostas apresentadas traduzem um objectivo e um reconhecimento comum, patenteado aquando da apreciação do último relatório do Sr. Provedor de Justiça, no qual se reconhece o papel importante que tem assumido a actuação do mesmo. Em função desse reconhecimento, as propostas procuram atribuir maior eficiência à actuação do Provedor de Justiça, colmatando algumas lacunas actualmente existentes.

As propostas apresentadas pela ID, que estão muito próximas das que foram apresentadas pelo Partido Socialista, visam, por um lado, assegurar a informação em relação às recomendações adoptadas pelos órgãos a quem foram dirigidas, visto que actualmente não existe esse dever de informar, e, por outro, estabelecer, em termos que me parecem mais amplos do que os do Partido Socialista, que não só os órgãos, mas também os cidadãos têm o dever de cooperar com o Provedor de Justiça. Poderá dizer-se que o dever de cooperação que o Partido Socialista propõe, ao aditar o n.° 4, se traduzirá nesse dever de informação. Apesar de tudo, parece-nos que seria vantajoso figurar expressamente esta obrigação de informar. Nesse sentido, pensamos que, aproveitando ambas as propostas, do PS e da ID, bastaria acrescentar o seguinte: "os órgãos [...] cooperam com o Provedor de Justiça, designadamente informando das medidas tomadas em relação às recomendações".

Outro ponto de afastamento é o que diz respeito à inclusão dos cidadãos, para além dos órgãos ou entidades. Parece-nos que a actuação do Provedor de Justiça é tão relevante que não só os órgãos da Administração Pública como também os cidadãos deveriam estar vinculados a essa cooperação. Daqui resulta o seguinte: nesta parte concordamos inteiramente com as propostas do Partido Socialista, que são idênticas às nossas, mas parece-me que as nossas vão um pouco mais longe.

Em relação à outra proposta do Partido Socialista, ou seja, a que diz respeito ao n.° 3, pensamos que se trata de um aditamento positivo, visto que do texto constitucional não constava a designação pela Assembleia da República e a apresentação de um relatório, bem como o seu debate e publicitação.

Relativamente às propostas apresentadas pelo PCP, gostaria de dizer que, depois das explicações dadas pelo Sr. Deputado José Magalhães, tendemos a admitir que o sentido da expressão "não pode ser destituído" é um sentido já precisado e não tem termos absolutos, permitindo, portanto, evitar o perigo levantado pelo Sr. Deputado Almeida Santos. No que diz respeito às alíneas do n.° 4 e, em particular, à impugnação contenciosa e ao óbice que foi levantado pelo Sr. Deputado Almeida Santos, pensamos que as explicações dadas são de molde a admitir como válida esta proposta, visto que não se trata de afastar o que já consta e que não é excluído na própria proposta do PCP, que é a independência dos meios graciosos e contenciosos. No texto isso tem um sentido diferente, mas que é devidamente explicitado: trata-se de impedir que ele intervenha nos processos graciosos, mas não no caso concreto agora proposto, ou seja, quanto à impugnação da validade de qualquer regulamento ou acto administrativo que afecte interesses gerais ou difusos e não interesses particulares e concretos.

Nestes termos, Sr. Presidente, concordamos com todas as propostas apresentadas.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, gostaria de formular algumas considerações sobre a proposta apresentada pelo PCP.

O que há de mais significativo na proposta de alteração do n.° 3 apresentada pelo PCP é o facto de nela se propor um aumento do prazo do mandato pelo qual é designado o Provedor de Justiça e, por outro lado, esta regra da não destituição do Provedor de Justiça. Quanto ao primeiro ponto, parece-nos um pouco excessivo o prazo que o Partido Comunista Português apresenta. Actualmente esse prazo é de quatro anos, o que coincide - e isso não significa necessariamente coincidência em termos de momento da designação - com o prazo do mandato dos deputados, que nos parece um prazo mais aceitável. E diz-nos a experiência que tem sido um prazo que permite um funcionamento estável da Provedoria de Justiça. Não me parece, pois, que à luz desta experiência, que tem sido boa, haja razões determinantes para alterar o prazo do mandato.

Depois de ouvir com atenção o ponto de vista do Sr. Deputado José Magalhães acerca da destituição, gostaria também de tecer algumas considerações sobre essa matéria.

Em primeiro lugar, diria que, tratando-se de um órgão uninominal, a regra da não destituição teria consequências porventura pérfidas, do estilo daquelas que o Sr. Deputado Almeida Santos há pouco sugeriu. Em todo o caso, parece-me que o Sr. Deputado José Magalhães fez alguma confusão entre o que se pode entender por uma regra de inamovibilidade, que é aquela que é garantida ao Provedor de Justiça, na medida em que ele se define como órgão independente, e por uma regra de não destituição. Desde que possamos garantir a regra da independência do Provedor de Justiça, fica assegurado esse estatuto de inamovibilidade, sem prejuízo de, nos termos gerais, ele poder vir a ser destituído. Seria chocante que o Provedor de Justiça não pudesse ser destituído quando, inclusivamente, o Presidente da República o pode ser, em caso de ser objecto de pena por crime praticado no exercício do seu mandato. Não poderíamos, pois, configurar um estatuto mais fechado em matéria de Provedor de Justiça do que aquele que a própria Constituição prevê para o

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Presidente da República. Feita esta destrinça entre aquilo que é a inamovibilidade e aquilo que é a destituição, penso que, uma vez garantido o princípio da independência, está garantido o alcance útil das preocupações aqui expendidas pelo Sr. Deputado José Magalhães quanto ao funcionamento independente da Provedoria de Justiça.

Outro aspecto refere-se ao n.° 4 proposto pelo PCP.

A alínea a) desse n.° 4 limita-se a ser uma reprodução do que já se diz na Constituição quanto ao sistema de fiscalização da constitucionalidade. É curioso verificar que das normas sobre fiscalização (artigos 281.° e 283.°) o PCP não faz a supressão. A adoptar esta sistemática, teríamos na Constituição a reprodução de normativos com o mesmo alcance. Não se me afigura, porém, que isto tenha algum efeito útil. É conveniente que a inserção desta competência do Provedor seja tratada a propósito das entidades com competência para fazer actuar o sistema de fiscalização da constitucionalidade.

Quanto à alínea b) do mesmo n.° 4, valerá a pena perguntar se não haverá aqui uma concorrência de competências relativamente ao Ministério Público. O Ministério Público tem, nos termos gerais, a incumbência de garantir a legalidade democrática e, naturalmente, toda a legitimidade para intentar acções. A ser aprovada, a alínea b) implicaria, pelo menos na parte relativa ao direito administrativo, uma competência concorrencial com o Ministério Público. É de ponderar se esta inovação relativa ao Provedor de Justiça não criará até algumas dificuldades de relacionamento entre estas duas instituições e uma sobreposição de vocações entre elas.

Parece-me ser de levantar igualmente uma outra questão não aflorada em nenhuma das propostas apresentadas. São conhecidas algumas das situações de esgotamento do recurso hierárquico que têm condicionado a apresentação de queixas ao Provedor de Justiça. Isto está, aparentemente, desviado com o n.° 2 do artigo 23.°, mas o Tribunal Constitucional ainda não afastou esta norma por inconstitucionalidade; pelo contrário, já a admitiu como sendo, face ao próprio artigo 23.°, constitucional. Refiro-me ao Estatuto da Polícia de Segurança Pública, que apenas permite o recurso dos agentes ao Provedor de Justiça depois de esgotado o recurso às vias hierárquicas. E uma questão que me parece polémica, mas que poderia eventualmente ser aqui resolvida com a introdução de uma nova redacção para o n.° 2 do artigo 23.° Assim, onde se diz que "a actividade do Provedor de Justiça é independente dos meios graciosos e contenciosos previstos na Constituição e nas leis" deveria passar a ler-se "as queixas apresentadas ao Provedor de Justiça e a respectiva actividade são independentes dos meios graciosos e contenciosos previstos na Constituição e nas leis". De qualquer maneira, penso que valeria a pena ponderar se valerá ou não a pena entrar em linha de conta com uma redacção que permita a apresentação de queixas ao Provedor de Justiça, independentemente do esgotamento das vias hierárquicas da respectiva área funcional em que o queixoso se situa.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, a propósito destas alterações e aditamentos relativos ao Provedor de Justiça, gostaria de tecer uma consideração de ordem geral.

Penso que a introdução no nosso ordenamento jurídico do Provedor de Justiça foi um acto importante, embora julgue que a figura se tenha burocratizado bastante. Por razões que têm a ver com a situação da própria Administração Pública portuguesa, o Provedor de Justiça acabou por ser o receptáculo de todas as queixas das pessoas que já tinham esgotado os outros meios e pensaram que aquela era uma nova instância para um recurso hierárquico. Pior do que isso, a prática seguida pela Provedoria de Justiça de analisar pormenorizadamente e, portanto, não fazer uma escolha em relação àquilo que poderia ter um efeito paradigmático e corrector da Administração Pública e de agir como se tivesse um dever de resposta minuciosa e meticulosa em relação a todas as pretensões apresentadas levou, em última análise, a que a Provedoria de Justiça se visse afogada num conjunto muito numeroso de pretensões, muitas das quais, no fundo, representavam apenas uma tentativa de mais uma instância para decidir e não qualquer exemplo correctivo importante no que diz respeito à Administração Pública. Penso que isso resultou da inexperiência em relação à figura. No entanto, burocratizou bastante a acção da Provedoria de Justiça e retirou-lhe um papel de magistério e de guia, que ela poderia ter tido de uma maneira mais incisiva, embora em alguns casos tenha conseguido resultados apreciáveis.

Isto para dizer que vemos com muito bons olhos que haja uma reafirmação clara da importância da Provedoria de Justiça. Não nos parece que, inclusivamente, a multiplicação de provedores ou de figuras análogas, como seria o caso do promotor ecológico ou de outras figuras de outros sectores com a mesma silhueta, pudesse contribuir para esse prestígio. Que seja também dito, a talhe de foice, que num determinado momento compreendi e até colaborei de uma maneira decisiva para a instituição da Alta Autoridade contra a Corrupção. Tive oportunidade de o exprimir na declaração de voto que o PSD fez na Assembleia da República a propósito da lei sobre a Alta Autoridade. Hoje penso que essa figura deveria ser amalgamada com a Provedoria de Justiça e manter-se apenas uma única entidade.

Deixando de parte estas considerações de carácter geral, que, todavia, são importantes, porque é necessário sermos extremamente morigerados quando se pensa incluir normas na Constituição, já que esta não deve ter características de tipo regulamentar, mas, antes, ser um conjunto de normas abertas consignando os aspectos mais fundamentais, diria que existem aqui alguns afloramentos dessa preocupação, que compreendo por razões de garantia, mas que me parecem excessivas nalgumas das propostas apresentadas.

No que diz respeito à proposta do PCP, faço minhas as palavras do Sr. Deputado Jorge Lacão quanto à questão do período de seis. anos, que me parece manifestamente excessivo. Por outro lado, também não se me afigura útil esta restrição à impossibilidade de destituição. Se se quisesse caminhar nesse sentido, seria preferível apresentar os fundamentos que podem legitimar a destituição e restringir nesse capítulo a discricionariedade da Assembleia da República. Penso que nem sequer isso é necessário e que fazer uma afirmação peremptória acerca da impossibilidade da destituição seria manifestamente excessivo, até porque nem

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o Presidente da República tem um estatuto desse tipo. Penso que há aí uma desproporção em relação aos objectivos que se pretendem atingir.

A proposta do PCP refere também a fiscalização da constitucionalidade das normas. Isso já existe e, portanto, não se justifica estar a ser repetido aqui, tanto mais que, como foi salientado pelo Sr. Deputado Jorge Lacão, não é suprimido nos lugares competentes da fiscalização da constitucionalidade.

O problema da acção pública é, como já se viu hoje, mais importante. E porquê? Em primeiro lugar, parece que é contrário à natureza do Provedor de Justiça cometer-lhe uma tarefa - que hoje existe em termos efectivamente latos - de acção pública em relação ao Ministério Público. Por outro lado, tenho as maiores dúvidas de que deva ser consignada uma acção pública com a generalidade daquela que aqui aparece. Tanto mais que, quando se refere a afectação de "interesses gerais", só aparentemente isso tem algum tipo de restrição. É que sempre que há uma ilegalidade há, pelo menos, um interesse geral, que é a legalidade que é ofendida, o que, portanto, é praticamente a mesma coisa que dizer que são ilegais. A meu ver, não há nenhuma distinção que venha a ser dogmaticamente possível entre essa afectação de interesses gerais e a ilegalidade.

O problema dos interesses difusos já é diferente, mas, nessa matéria, julgo que o critério de distinção, a seguir-se um caminho de acção popular ou mesmo um tipo de acção pública, nunca deveria ser cometido ao Provedor de Justiça. Por outro lado, a orientação que tem sido seguida nos países onde se tem consignado a defesa de interesses difusos tem sido a de cometer essa defesa a entidades e pessoas colectivas já institucionalizadas, a quem é conferida uma particular legitimidade para defender esses interesses difusos, que de qualquer modo, apesar de difusos, são identificados por sectores e não são os interesses difusos em geral. Inclusivamente, pode admitir-se que entidades de facto com determinadas características sejam as defensoras desses interesses difusos, mas sempre - repito - identificados.

Tal como se encontra aqui consignada, não identificando, de uma maneira pelo menos sectorial, os interesses difusos e cometendo ao Provedor de Justiça uma matéria que manifestamente é contrária àquilo que até agora é o figurino do instituto, parece-me que esta norma não deveria ser consignada na Constituição.

Em relação ao problema do esgotamento das vias hierárquicas, que foi referido há pouco pelo Sr. Deputado Jorge Lacão, gostaria de dizer o seguinte: não conheço a interpretação do Tribunal Constitucional, mas julgo, salvo o devido respeito, que ela é errónea, porque o texto da Constituição é claríssimo quanto a essa independência, que não pode ser condicionada ao esgotamento de quaisquer meios.

Existe um outro problema que está relacionado, de algum modo, com o âmbito da actividade do Provedor de Justiça e que tem sido motivo de alguma preocupação, embora se tenha estabilizado uma certa interpretação sobre isso, que é o que respeita à possibilidade de acção do Provedor de Justiça em matéria de tribunais. Como VV. Exas. sabem, tem havido várias intervenções da Provedoria de Justiça acerca da lentidão dos tribunais. Isto tem suscitado a questão da independência dos tribunais e dos processos próprios existentes no seio da ordem judiciária que garantem a legalidade do funcionamento processual e a organização dos próprios tribunais. E poderá eventualmente haver interesse em aprofundar a questão.

Em relação ao problema do direito de resposta e do dever de cooperação dos cidadãos, julgo que o direito de resposta da Administração Pública é algo que resulta de um dever funcional. Tenho dúvidas de que se justifique essa consignação constitucional e os termos em que é feita, mas essa é uma matéria que depois poderemos ver de uma forma mais detalhada.

Onde tenho as maiores dúvidas é no que diz respeito à consignação do dever dos cidadãos de cooperar com o Provedor de Justiça em termos de obrigatoriedade. Isto é, penso que há um dever cívico de cooperar com a Provedoria de Justiça e compreendo os propósitos que animam a acção do Provedor de Justiça, mas julgo que fazer impender sobre os cidadãos mais um dever, que, inclusivamente, para ter sentido deve ser juridicamente sancionado, é contrário à própria ideia básica que deve animar a Provedoria. A Provedoria não é uma instituição com características contenciosas e de garantia dos direitos em termos de uma tutela próxima de uma tutela jurisdicional, mas sim um elemento adjuvante e correctivo, sobretudo através da persuasão em relação, basicamente, à Administração Pública. De resto, foi assim que a instituição nasceu. Assim, não me parece que seja de fazer incumbir sobre os cidadãos mais um dever. Compreendo os motivos que justificam a apresentação da proposta da ID, mas penso que, porventura, isso poderá ter efeitos indesejáveis.

Já no que diz respeito ao dever de cooperação dos órgãos da Administração, tal como ele está consignado no projecto do Partido Socialista, não se me colocam o mesmo tipo de dificuldades.

Uma última consideração que gostaria de fazer a propósito da acção pública diz respeito ao seguinte: hoje em dia o Ministério Público tem a possibilidade de recorrer em relação a todos os actos administrativos e até regulamentos que sejam ilegais, quer ofendam ou não interesses individualizados, o que, na prática, se traduz num elemento objectivo do contencioso administrativo, que, aparentemente, tem uma preocupação de legalidade, mas, em última análise, é uma nota de colectivismo e de indisponibilidade das situações individuais, sobretudo quando se considera, como a maioria da doutrina entende, que as anulações, do ponto de vista do âmbito subjectivo do caso julgado, abrangem os indivíduos que não recorreram e, inclusivamente, manifestaram o seu interesse em não recorrer. Isto para introduzir um elemento adjuvante à cautela que é necessária na introdução destes elementos colectivistas, em termos de acção pública.

Em termos de filosofia, a questão já é diferente. Para mim, é curioso verificar que hoje o Partido Comunista utiliza a expressão "sociedade civil" num sentido bastante contrário àquele que Marx utilizava. Como VV. Exas. muito bem sabem, Marx entendia que o Estado estava ao serviço da sociedade civil e que, de algum modo, a traduzia. A sociedade civil era entendida tal como a sociedade económica. Vejo agora que o PCP se converteu a uma ideia diversa da sociedade civil.

O Sr. António Vitorino (PS): - É uma ideia gramsciana!

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O Sr. Presidente: - Mais ainda do que gramsciana, porque, se Gramsci nas Notas da Prisão considerava a superstrutura cultural, aqui vai-se muito mais além. É mais no sentido de Stein e dos velhos autores alemães da teoria geral do Estado.

Tenho grandes dúvidas em considerar que a melhor maneira de robustecer a sociedade civil seja a de lhe impor deveres através de estruturas estaduais que condicionam, empurram e dinamizam essa sociedade civil, pois ela não se robustece assim. Essa é ainda, afinal de contas, uma visão colectivista, que não subscrevemos e que vai ter repercussões em muitos outros lados.

Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Sr. Presidente, quero valorar, desde já, a ideia do dever de cooperação que aqui foi apresentada pelo Partido Socialista. Creio que, em grande medida, esse dever de cooperação dos órgãos e agentes da Administração Pública se subsume no projecto apresentado pela ID, salvo no que diz respeito ao dever de colaboração dos cidadãos. Parece-me que o dever de cooperação pode integrar -e em termos de legislação ordinária pode claramente fazê-lo- o dever de informar. Essa é, aliás, uma das preocupações que o Provedor de Justiça nos manifestou quando teve a reunião com a 1." Comissão acerca da discussão do seu relatório. Creio que esse dever de informação poderia estar incluído no dever de cooperação e, em termos de legislação ordinária, dar origem a um grau de responsabilização.

Isto decorre um pouco da ideia daquilo que já está traduzido e que o Sr. Presidente mencionou pela primeira vez, que é a questão relativa à Alta Autoridade contra a Corrupção. Pode ser passível de crime de desobediência, até qualificada, quem não coopere com a Alta Autoridade contra a Corrupção. Esse era um mecanismo que o Provedor de Justiça via como possível e creio que na fase em que ele o apresentou não havia ainda a tradição da solução apresentada pela Alta Autoridade contra a Corrupção. Julgo que esse dever de cooperação poderia, em termos de legislação ordinária, dar origem à possibilidade de se incorrer em crime de desobediência, até qualificada. Nesse sentido, o dever de informar estaria até coberto por uma medida desta natureza.

Em relação aos cidadãos, julgo que isso seria extremamente difícil, ou seja, não vejo quais sejam os mecanismos que poderiam ser utilizados para obrigar um cidadão a cooperar nestes termos com o Provedor de Justiça. Que mecanismos legais poderiam ser criados? Correr-se-ia o risco de se criar uma dimensão de policialização excessiva da vida normal dos cidadãos quando eles não cooperassem com o Provedor de Justiça? Julgo que há aqui dificuldades dificilmente superáveis. É uma questão que, de qualquer forma, deixo em aberto.

Relativamente à proposta apresentada pelo PCP, gostaria de dizer que a questão dos seis anos - e o Sr. Deputado Jorge Lacão já se referiu a ela - nem sequer é hoje, em termos de experiência, uma reivindicação do próprio Provedor de Justiça. Depois de ter analisado as notas e os trabalhos que o Sr. Provedor de Justiça fez e apresentou à Assembleia da República, e tendo em conta a opinião que tenho sobre esta matéria, mantenho a ideia dos quatro anos. Creio que a ideia dos quatro anos tem um objectivo óbvio, que decorre da própria natureza do Provedor de Justiça. O Provedor de Justiça é uma magistratura de diálogo, de opinião, e tem todo o interesse em buscar a sua legitimação social e política em consonância com a legislatura. Isto é, o tempo normal de permanência no exercício de funções é de quatro anos, ou seja, o Provedor é sempre designado para uma legislatura, ocorrendo esta em termos normais. Portanto, a ideia dos seis anos, que me parece ter algum parentesco com a solução dos juizes do Tribunal Constitucional, não se justifica. É que aqui o valor da mobilidade prevalece sobre o valor da estabilidade, de consistência doutrinal, que é requerida para as decisões do Tribunal Constitucional. Neste sentido, julgo que a manutenção do período de quatro anos é vantajosa e algo que não é reivindicado à luz da experiência do Provedor de Justiça. E nem sequer me parece que seja uma solução útil.

Quanto à possibilidade de não destituição, creio que a intenção do PCP vai ao encontro de um interesse muito vincadamente manifestado pelo Provedor de Justiça. Julgo que a questão que se pode colocar é a de o Provedor de Justiça não poder ser livremente demitido pela Assembleia da República. Quanto a todas as outras possibilidades de perda ou renúncia do mandato, isso, naturalmente, terá de estar consagrado. Creio que, quando a proposta do Partido Socialista refere a independência, também pode conter a ideia da não destituição livre pela Assembleia da República a todo o tempo. Essa seria uma preocupação legítima para garantir a independência do Provedor de Justiça.

Tal como referiu o Sr. Deputado José Magalhães, o n.° 4, alínea a), proposto pelo PCP é a transcrição de uma norma constitucional. A minha dúvida é a seguinte: por que é que não foi também transcrito, numa lógica sistemática, o n.° 1, alínea b), do artigo 281.°, que diz respeito à possibilidade de declarar ilegais os diplomas regionais, declaração que o Provedor de Justiça tem de requerer ao Tribunal Constitucional? Por que é que esta lógica sistemática não foi também seguida na apresentação da proposta do PCP?

Em relação à questão da acção administrativa quanto à invalidade de regulamentos ou actos administrativos, creio que o que tem acontecido na prática é o Provedor de Justiça recorrer ao Ministério Público. E julgo que ele tem satisfatoriamente resolvido esta questão. Por que é que há-de ser atribuída ao Provedor de Justiça esta faculdade? Creio que isso significa atribuir-Ihe funções jurisdicionais que não caberão bem a uma magistratura de diálogo e opinião, uma magistratura não jurisdicional, não legal, não executiva, como deve ser a do Provedor.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Presidente, proferidas as intervenções dos Srs. Deputados Jorge Lacão e Alberto Martins, quero apenas referir dois aspectos que dizem respeito a um possível aproveitamento de alguma ideia expendida na proposta da ID.

Quando redigimos o n.° 4 do artigo 23.°, a nossa ideia era a de que a cooperação implica em si uma cooperação a todos os níveis e nas várias fases do procedimento processual do pelouro da justiça. Simplesmente, não me pareceria mal que o pudéssemos concretizar recolhendo da proposta da ID aquilo que

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se refere às medidas tomadas no seguimento das recomendações do Provedor de Justiça. Embora no dever de cooperação já esteja, naturalmente, incluído esse tipo de cooperação, que é uma coooperação de execução e não apenas uma cooperação simples, penso que seria bom e útil que o pudéssemos acrescentar em estilo de "designadamente" ou "nomeadamente".

Já no que diz respeito ao dever de cooperação dos cidadãos, louvo-me nas intervenções anteriores. Dado o quadro de actuação do Provedor de Justiça, penso que a única participação dos cidadãos ao nível de dever não se coloca como tal, mas, sim, quando os cidadãos são o motor da actuação do Provedor de Justiça. Parece-me que criar aqui um dever público genérico de participação tem os perigos referidos pelo Sr. Deputado Alberto Martins. Por conseguinte, penso que o facto de haver aqui algum amparo ao nível da constitucionalidade da obrigação das autoridades, no sentido de estas darem informação sobre as medidas tomadas, é o que de mais importante se aproveita da proposta da ID.

Quanto ao resto, não me quero pronunciar, até porque já houve intervenções suficientes sobre os vários pontos suscitados pela proposta do PCP.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Vera Jardim, para minha informação, gostaria apenas de lhe perguntar o seguinte: quando se diz "informar [...] das medidas tomadas no seguimento daquelas recomendações", isso não significa que se pressuponha necessariamente qualquer dever de obediência?

O Sr. Vera Jardim (PS): - Claro, claro.

O Sr. Almeida Santos (PS): - São medidas tomadas ou não tomadas.

O Sr. Presidente: - Com certeza, é esse o entendimento que me parece resultar do texto, mas é bom clarificá-lo.

Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Presidente, não repetirei nada do que aqui foi dito, com toda a razão de ser, pelos Srs. Deputados que intervieram.

Quero apenas fazer uma pequena observação e convidar à reflexão todos os Srs. Deputados sobre aquilo que entendo poder resultar da alínea b) do n.° 4 proposto pelo PCP, ou seja, uma razão de política legislativa. É óbvio que aqui todas as razões são de política legislativa, mas creio que a razão que vou referir o é sobremaneira. Essa razão é a seguinte: para além de todas as considerações que já foram feitas sobre a eventualidade de se verificar na prática que o Ministério Público já substituiu esta função, que é, na alínea b) do n.° 4 proposto pelo PCP, assinalada ao Provedor de Justiça, entendo, de todo o modo, ser inconveniente que isso se faça, pois creio que o que se está aqui a fazer é curvar a função normal do Provedor de Justiça, que é a de satisfazer direitos de petição e, portanto, garantir graciosamente os direitos dos cidadãos perante o contencioso administrativo. Ora, em matéria de posição do intérprete face a este artigo, e tendo em conta toda a extensão das garantias dos direitos fundamentais consagrados na Constituição, creio que aqui - e citaria Luís de Camões - "o falso Deus adora o verdadeiro" e que seria importante não diminuir nem desvirtuar, com este curvar do Provedor de Justiça, transformando-o num meio de acesso à via contenciosa, a dignidade e a dimensão da função que desempenha como meio gracioso, autónomo, de garantia dos direitos.

Devo dizer que entendo que esta diluição ou função instrumental que é assinalada ao Provedor na proposta em apreço, para além dos problemas práticos que levanta no âmbito do contencioso administrativo, nomeadamente em matéria de conformação da noção de legitimidade processual, levanta, sobretudo, esta questão, que creio não ser substancial, mas que é uma questão de posicionamento perante a autonomia do Provedor de Justiça, como meio gracioso de garantia, face aos outros meios de garantia. Creio que esta subordinação - passe a expressão - é inestética e ligeiramente desrespeitosa relativamente à função autónoma do Provedor de Justiça, como meio gracioso de garantia.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José de Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, gostaria de referir que acho um tanto maravilhoso verificar-se nesta sala uma tão profunda inversão de papéis em relação àquilo que era suposto. É que venho encontrar ferozes inimigos da concorrência onde há verdadeiros apóstolos dela.

Quando propusemos que o Provedor de Justiça tivesse as competências que propomos em relação à impugnação contenciosa da validade dos regulamentos com requisitos ilegais, fizemo-lo, obviamente, com um carácter concorrencial e sem prejuízo da competência do Ministério Público. Daí não vem absolutamente mal nenhum ao mundo e até poderia vir bem. Isto é, os Srs. Deputados têm três ou quatro medidas em matéria de concorrências e acham que há concorrências pérfidas, não estando, seguramente, a pensar nas situações dominantes de mercado. Estão a pensar, pelos vistos, claramente e apenas nesta modesta questão do Provedor que baralha o Ministério Público, o que me parece uma visão muito pequenina e muito amputada.

Só que isso não é o fundamental. O fundamental é a questão do conceito de provedor que pode decorrer de algumas das observações feitas, designadamente destas últimas, que me parecem mais apaixonadas e, em certo sentido, até apaixonantes, da Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves, porque, realmente, não se pode ler o estatuto constitucional do Provedor olhando com um ar amoroso o artigo 23.°. É preciso, como, aliás, o Sr. Deputado Alberto Martins sublinhava doutamente, ter em conta as outras competências e poderes do Provedor de Justiça e, designadamente, o seu eminente papel na garantia da Constituição.

Se a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves folhear uns artigos da Constituição, encontrará aí as normas constitucionais que dão ao Provedor de Justiça poderes para intervir, como, aliás, tem intervindo, até na melindrosa questão da inconstitucionalidade por omissão, o que creio ser muito inovador no direito mundial. Julgo que a Sra. Deputada deveria ter isto em consideração antes de fazer reflexões sobre os falsos

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deuses que parecem adorar os verdadeiros. Saber qual é o Deus verdadeiro, essa é a questão que proponho para reflexão durante a hora do almoço.

Risos.

Qual é o Deus verdadeiro em relação ao Provedor de Justiça? É a faceta da capacidade de resposta às queixas dos cidadãos individualmente tomados? Ou é outra faceta?

Os nossos provedores têm usado, com oportunidade em muitos casos, as faculdades que possuem em matéria de defesa da Constituição e têm também, obviamente, usado as outras. Nós não estabelecemos essa posição radical um pouco bebida nas concepções religiosas de separação que a Sra. Deputada introduziu aqui e creio que seria mau partir dela para a consideração de propostas como desrespeitosas. Respeita-se a Constituição e visa-se, naturalmente, aditar concepções, mas não se pode lê-la por metade nem aos bocadinhos.

Por outro lado, gostaria de referir que existe um equívoco da parte do Sr. Deputado Jorge Lacão relativamente à noção de destituição, que me parece ser extremamente fácil de ultrapassar. A Lei n.° 81/77, de 22 de Novembro, estabelece, no artigo 6.°, o princípio da independência e da inamovibilidade e, em relação à inamovibilidade, dispõe que "as funções não cessam antes do termo do período para o qual o Provedor foi designado, salvo nos casos previstos na presente lei". E quais serão os "casos previstos na presente lei"? São os do artigo 12.°, que estabelece que as funções só cessam antes do termo do quadriénio nos seguintes casos: morte ou impossibilidade física permanente, perda dos requisitos de elegibilidade pela Assembleia da República, incompatibilidade superveniente, destituição pela Assembleia da República e renúncia. A isto haverá que aditar ainda o que decorre do artigo 7.°, em matéria de imunidades.

É evidente que o Provedor pode ser objecto de procedimento criminal e que a Assembleia da República, nesse caso, haverá que ter de se pronunciar sobre se lhe suspende ou não o mandato para efeitos de prosseguimento do processo. Ora, no caso de o processo culminar em condenação, a situação legal não é excessivamente líquida quanto aos efeitos ulteriores, mas creio ser de admitir que, neste caso, a destituição é obrigatória. No entanto, o sentido com que o artigo 12.° se refere à destituição pela Assembleia da República não é ou parece não ser apenas esse. E nesse sentido, aliás, o Sr. Deputado Alberto Martins fez algumas considerações que me parecem pertinentes.

A questão é, pura e simplesmente, a de saber se a Assembleia da República, por outros motivos que não sejam aqueles que podem levar a que o próprio Presidente da República seja destituído, nos termos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 133.° da Constituição - e só o pode ser na sequência de condenação judicial -, pode destituir o Provedor de Justiça por razões políticas quando chegar à consideração de que determinado Provedor eleito exerce mal as suas funções. É essa a questão que deve ser encarada. Entendemos que a Assembleia não o pode destituir, mas é muito importante que a questão não seja misturada, por forma a que se coloquem em aberto questões que estão fechadas e se tornem fechadas questões que estão, infelizmente, em aberto.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Deputado, se fosse esse o objectivo que o PCP utilmente quisesse garantir, mais valeria dizer que o Provedor de Justiça é um órgão independente e inamovível, pois conceptualmente isso estaria mais de acordo com essa preocupação. É que a utilização do conceito de não destituição, como o Sr. Deputado acabou agora mesmo de reconhecer, colide com a própria conceptualidade constitucional, quando se permite que o próprio Presidente da República - e o Sr. Deputado já nos leu o artigo respectivo - seja destituído. Ora aqui haveria uma regra geral de não destituição, o que significaria que nem nos casos de condenação o Provedor poderia vir a ser destituído do cargo.

Como, porém, não é isso o que o PCP quer, então será ele próprio a ter de reconverter o conceito sobre o qual quer firmar a garantia de independência, que não é, seguramente, o conceito de indestituibilidade.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Jorge Lacão, creio que esse é um contributo reflexivo útil e que, se na sequência deste debate se caminha para uma solução aperfeiçoadora, não bastará proclamar a independência e a inamovibilidade como tais. Talvez, na esteira daquilo que o Sr. Deputado Rui Machete há pouco referiu, a utilidade esteja em se tipificar as causas que podem conduzir à destituição e, nesse caso, em introduzir uma expressão do tipo "não podendo ser destituído, salvo na sequência de condenação judicial", fórmula que teria em atenção o lugar paralelo que foi invocado e daria resposta às preocupações do Sr. Deputado Jorge Lacão.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Ou "salvo nos casos previstos na lei".

O Sr. José Magalhães (PCP): - Uma formulação do género "não podendo haver destituição nos casos previstos na lei" seria excessivamente aberta e remeteria para a lei todos os casos, incluindo a destituição política.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Quando se diz "os outros titulares de cargos políticos"...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Deputado Almeida Santos, é que os outros não são, pura e simplesmente, destituíveis como tais; podem perder o mandato em certas circunstâncias, mas não mais. Pense, por exemplo, no regime dos deputados.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Certo, em caso de condenação judicial, mas não mais.

Ou seja a Assembleia da República não pode amanhã reunir e dizer: "O Sr. Deputado Almeida Santos é completamente indigno, faça favor e vá para o olho da rua!" Isto é totalmente impossível.

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O Sr. Almeida Santos (PS): - Essa hipótese é verdadeiramente impossível!

Risos.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Foi só por isso que a coloquei, Sr. Deputado.

Quero fazer apenas uma última observação, que é a seguinte: quanto às questões relacionadas com a reprodução da Constituição, nós não cometemos o lapso que o Sr. Deputado Alberto Martins referiu. Referimo-nos à inconstitucionalidade ou ilegalidade de qualquer norma e conglobamos as diversas hipóteses. Pode, obviamente, discutir-se se é pertinente fazer a transposição das correspondentes normas constitucionais, mas essa é uma questão totalmente diferente, da qual não nos esqueceremos.

A questão colocada pelo Sr. Deputado Jorge Lacão em relação a certas praticas em gestação, até no sentido da tentativa de imposição do esgotamento das vias hierárquicas para acesso ao Provedor, é pertinente, mas não nesta sede, pois não tem a mínima cobertura constitucional, sendo totalmente inconstitucional. Aliás, ninguém suscitou ainda a questão. Em todo o caso, reservaria a apreciação mais aprofundada desta matéria para um momento ulterior.

Sr. Presidente, proponho que a questão que V. Exa. suscitou, relativa aos inconvenientes de plasmar quaisquer visões colectivistas e, designadamente, às reflexões que fez sobre o conceito de sociedade civil em sentido marxista, seja apreciada depois do almoço.

O Sr. Presidente: - Não vale a pena ser apreciada.

Srs. Deputados, vou suspender os nossos trabalhos, que, caso estejam de acordo, serão retomados às 15 horas.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, não poderá ser às 15 horas e 30 minutos, pois tenho mesmo o tal almoço para discutir a questão da sociedade civil?

Risos.

O Sr. Presidente: - Com certeza, Sr. Deputado. Recomeçaremos, então, às 15 horas e 30 minutos. Está suspensa a reunião.

Eram 13 horas.

Srs. Deputados, está reaberta a reunião. Eram 16 horas e 15 minutos.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Gostaria apenas de declarar que a situação que se verificou no início desta segunda parte da reunião da Comissão deve ser a todo o custo evitada. Pela nossa parte, procuraremos que não haja sobreposições entre o calendário de actividades da Comissão, de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, sobretudo, que não haja mudanças inopinadas, de última hora e contra o Regimento, do calendário ou das reuniões agendadas da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, situação que, segundo me informam, foi aquela que ocorreu neste preciso momento.

Quanto às condições de funcionamento desta reunião, não as consideramos as mais satisfatórias. Em todo o caso, desde que obedecido o Regimento em todas as suas dimensões, participaremos nos trabalhos, como é nosso direito e dever.

O Sr. Presidente: - Algum dos Srs. Deputados pretende ainda usar da palavra sobre o artigo 23.°

Pausa.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, o Sr. Deputado Jorge Lacão estava inscrito para se pronunciar sobre um dos aspectos relacionados com o direito de queixa ao Provedor de Justiça e com alguns impedimentos ao exercício desse direito. Em todo o caso, trata-se de uma situação que, nesta sede e neste momento, não pode ser ultrapassada.

Omiti uma informação que, no entanto, gostaria que ficasse exarada em acta. Quando discutimos o quadro das propostas existentes e das sugestões relativas ao enriquecimento dos meios de defesa dos direitos dos cidadãos, foi referenciada a existência de várias propostas apresentadas por diversos partidos quanto a novas provedorias. Porém, não foi referida a existência de uma sugestão elaborada por uma organização de defesa dos direitos das mulheres no sentido de vir a ser instituído aquilo a que se chama uma provedoria da igualdade. Esse movimento, concretamente o Movimento Democrático das Mulheres (MDM), entende que esse órgão deveria ser público e independente, com uma função de defesa da igualdade dos direitos, deveres e oportunidades previstos na Constituição, sendo a sua actividade exercida sem prejuízo das atribuições e competências do Provedor de Justiça e de todos os meios graciosos e contenciosos legalmente previstos. Considera o MDM que, devendo o regime dessa provedoria da igualdade decorrer de uma lei a aprovar pela Assembleia da República, como seria inevitável, deve também a designação caber à Assembleia da República. Esta sugestão foi-nos transmitida, como é constitucional, por uma organização social, pelo que não gostaria que fizéssemos este debate sem termos também em conta a existência desta proposta, que pode ser por cada um de nós ponderada dentro dos limites e do quadro aplicáveis.

O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado Jorge Lacão tinha de facto alguns elementos relativos a uma certa interpretação do Tribunal Constitucional a propósito da questão de estarem ou não esgotados os meios contenciosos para posterior possibilidade de recurso aos Serviços do Provedor de Justiça. Oportunamente, e se assim o quiser, o Sr. Deputado Jorge Lacão transmitir-nos-á esses elementos.

Passaríamos agora à análise do artigo 24.° do título II "Direitos, liberdades e garantias", primeiro preceito abordado no 3.° relatório da Subcomissão da CERC.

Relativamente a este preceito, existe apenas uma proposta de aditamento ao n.° 1, a apresentada pelo CDS, no sentido de se estabelecer que "a vida humana é inviolável desde o momento da concepção". Esta proposta, que consiste, pois, no aditamento da expressão "desde o momento da concepção", é clara no intuito

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de resolver, a nível constitucional, os problemas relativos à protecção dos nascituros. Consequentemente, pretende-se com esta opção inviabilizar qualquer hipótese de o ordenamento jurídico vir a consignar o aborto como meio de interrupção da vida. Tem a palavra o Sr. Deputado Mário Maciel.

O Sr. Mário Maciel (PSD): - Como o Sr. Presidente frisou, a proposta do CDS visa, à primeira vista, acautelar a vida dos fetos e impedir que através de práticas abortivas essa vida seja destruída, eliminada. Eu pensava que a actual disposição constitucional, ou seja, a expressão "a vida humana é inviolável", era suficientemente abrangente da situação, porque, em boa doutrina biológica, a vida começa no momento em que as duas células sexuais se unem, a partir do momento em que se forma um ovo. A partir desse momento há vida, pelo que a expressão "vida" não pode ser entendida como sendo a daquele ser que acabou de nascer, afastando-se do seu âmbito todo o processo que levou à configuração dessa criatura.

Assim, a expressão "vida" terá de ser entendida como abrangendo todo o processo que, iniciado com a fusão dos gâmetas sexuais, com a formação do ovo, tem em si potencialidades genéticas capazes de configurar uma criatura humana. A expressão actual da Constituição, estatuindo que a vida é inviolável, é, portanto, abrangente da vida na sua total expressão. Logo, e na minha opinião, o aborto constitui uma prática inconstitucional.

Ao propor este aditamento, o CDS quis certamente acautelar esta situação, desconfiando da abrangência desta expressão. Daí o sentido da sua proposta, que, em minha opinião, constitui uma redundância, ao fazer recuar, digamos assim, a defesa da vida ao momento da concepção. Penso - repito - que a expressão "vida" já engloba aquele momento.

De qualquer forma, se a Comissão considerar que é necessário esse preciosismo constitucional, em moldes de defesa da vida e dos princípios do humanismo e da ética, que defendo, e me acompanhar nessas preocupações, não vejo nada que obste a que a nossa lei fundamental contenha essa explicitação.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Mário Maciel, é evidente que a Comissão Eventual para a Revisão Constitucional se enriquece sempre com a participação de um biólogo. No caso concreto, não só acabámos de compreender melhor a sua designação para esta Comissão, como tivemos o primeiro momento de fruição dessa cooperação ou contribuição. Não veja nesta minha observação qualquer coisa de desprimoroso para além, naturalmente, da piada que tem o facto de lhe poder dizer isto.

Parece-me, no entanto, que a sua posição é inquietante. Tanto quanto me tinha apercebido, o PSD manteve uma prudente reserva sobre toda esta questão, vindo a sua posição, ao que parece, quebrar essa prudente reserva. O debate sobre enquadramento legal do aborto constitui uma questão debatidíssima entre nós, podendo-se dizer, tal como o Sr. Deputado Costa Andrade nos habituou a ouvir, que nesta matéria se oferece o mérito dos autos, os quais, no caso concreto, são verdadeiramente volumosos. A questão foi amplamente debatida entre nós, na Assembleia da República, legislatura após legislatura, tendo a penúltima culminado num quadro legal modestamente despenalizador e parcialmente legalizador, que, como se sabe, não é cumprido. Em todo o caso, dir-se-ia que entre nós a questão estava no ponto de estabilização relativa.

Logo que foi anunciada, a proposta do CDS foi rodeada de um clima de pouca expectativa. O CDS anunciou imediatamente que considerava a proposta perdida, mas que se tratava de usar, em relação ao PSD, não propriamente de tratos de polé, mas de avisos daqueles que você não pode desconhecer, como se costuma dizer na terminologia própria. Se o PSD não aceitasse, em sede de revisão constitucional, uma solução alteradora do quadro, o CDS apresentaria um projecto de lei e faria a vida negra ao PSD, confrontando-o com a sua posição incoerente na matéria. Eis um jogo que não tem qualquer mistério, naturalmente, da parte do CDS; o mistério era todo ele da parte do PSD.

A questão está, portanto, em saber se a intervenção do Sr. Deputado Mário Maciel significa a quebra do mistério ou se traduz meramente uma opinião pessoal, quiçá excessivamente influenciada por concepções biologísticas. Digo "biologísticas" de propósito e pela simples razão de que é evidente que é ponto altamente polémico o de saber o que significa "vida". Mas uma coisa seguramente se sabe: que "vida", do ponto de vista jurídico, pode não ser rigorosamente aquilo que é do ponto de vista biológico, qualquer que seja o conceito a adoptar deste ponto de vista. E, como V. Exa. sabe, seguramente melhor do que todos nós, em termos biológicos o conceito é arquidiscutido. Assim sendo, aquilo que acabou de exprimir não é absolutamente nada não polémico, mas, pelo contrário, altamente polémico, não sendo, seguramente, pacífico.

Quanto ao enquadramento jurídico, a noção jurídica de vida é ainda mais polémica. Em matéria de aborto, é-o ainda mais do que, em geral, quando se discutem temas tão melindrosos como os da fecundação in vitro, morte cerebral e outros aspectos relacionados com as funções vitais, quaisquer que elas sejam.

Portanto, a discussão sobre o conceito jurídico de vida é bastante mais complexa do que aquilo que V. Exa. parecia inculcar. E a interpretação da noção de vida contida no artigo 24.° é susceptível de várias leituras que compatibilizem, em absoluto, a legalização da interrupção voluntária da gravidez com o artigo respectivo. O nosso Tribunal Constitucional tem sobre essa matéria jurisprudência que é geralmente conhecida e a que V. Exa. pode ter acesso, uma vez que nos foram distribuídos os quatro volumes dos acórdãos deste Tribunal.

Quero dizer com isto que não vemos grande interesse no debate, a não ser talvez no sentido de saber qual a posição do PSD sobre esta matéria. A nossa posição é claríssima: somos pela interrupção voluntária da gravidez e consideramos que a sua consagração legal é perfeitamente compatível com a Constituição, não porque o valor "vida" seja um valor desprezível, mas porque há-de haver uma compatibilização entre a medida de tutela atribuível à mulher, para não a transformar num ser obrigado a uma gravidez compulsiva, e a medida a atribuir à vida em devir, que é a do nasciturno, como toda a gente mais ou menos sabe.

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O Sr. Presidente: - Registei três inscrições para o uso da palavra: as dos Srs. Deputados Costa Andrade, Mário Maciel e José Luís Ramos. Antes, porém, quero eu próprio referir, tentando fazer uma análise o mais sucinta possível, que, em termos pessoais e como católico, subscrevo integralmente a posição do Sr. Deputado Mário Maciel quanto à sua interpretação sobre o momento do aparecimento da vida. Porém, não é este o problema que estamos aqui a discutir, mas sim a proposta do CDS, sobre a qual a minha posição vai no sentido de supor que cabe ao legislador ordinário, no que respeita ao artigo 24.°, a interpretação mais conveniente e mais consentânea com a plenitude da protecção da vida, independentemente de se saber se uma interpretação do n.° 1 deste preceito, do ponto de vista dogmático, inclui ou não a proibição do aborto, ou seja, de se saber qual é a tradução que o legislador ordinário pretende fazer mais compatível com os valores fundamentais e com aquilo que é, no fundo, o pensamento maioritário do povo português nessa matéria. E isso compete ao legislador ordinário. De resto, não se trata de uma matéria que exija qualquer maioria qualificada de dois terços, sendo, em consequência, perfeitamente possível estabelecê-la por maioria simples. Logo, não se antevê nenhuma vantagem nesta proposta do CDS, a não ser eventualmente aquela que habilmente, como sempre, o Sr. Deputado José Magalhães aventou, ou seja, a de pretender descortinar qual o posicionamento do PSD nesta matéria.

Por consequência, a nossa posição é muito clara. Entendemos que não há vantagem em introduzir qualquer modificação no texto constitucional, competindo ao legislador ordinário a interpretação que entenda ser não só consentânea com o texto constitucional e que corresponda melhor a todos os valores constitucionalmente defendidos, como também aquela que, por razões de oportunidade, considere igualmente útil. Na nossa perspectiva, não é curial renovar nesta sede uma discussão, que caberá, naturalmente, em matéria de legislação ordinária. Isto é, a nossa posição é idêntica àquela que existiria se, hipoteticamente, tivesse havido uma proposta no sentido de se consignar num n.° 3 do artigo 24.° um aditamento permitindo o aborto.

Entendemos que o texto da Constituição se deve manter com a redacção actual, sem prejuízo de, do nosso ponto de vista, no momento oportuno e se o caso vier a ser reproposto, nos manifestarmos quanto à opção que o legislador ordinário deverá eventualmente tomar.

Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Considero também, fundamentalmente no mesmo sentido do que já foi dito pelos colegas de bancada, que não existe grande vantagem na inclusão, no artigo 24.°, do inciso "desde o momento da concepção".

Em primeiro lugar, gostaria de desfazer alguns equívocos em que labora, segundo creio, sobretudo o CDS. O equívoco é fundamentalmente o seguinte: quer se mantenha a expessão consagrada na Constituição, ou seja, a de que "a vida humana é inviolável", quer vingue o sentido proposto pelo CDS, isto é, o aditamento "desde o momento da concepção", a posição constitucional, no que toca à criminalização do aborto, é a mesma. Ou seja, a Constituição não resolve o problema da imposição ou não do aborto, pois não resulta dela um imperativo de criminalização do aborto nem para o legislador ordinário qualquer obrigação no sentido de criminalizar o aborto. Portanto, o Constituição não prejudica o problema do aborto, problema de política criminal que o legislador ordinário deve decidir.

Parece-me importante que se diga que com esta proposta nem o CDS nem a Constituição resolvem o problema do aborto em termos de direito constitucional. Isto por uma razão extremamente simples: é que o juízo de criminalização é um juízo necessariamente fragmentário e nenhum valor absoluto da Constituição passa para o direito criminal com a plenitude da sua tutela. A vida humana é inviolável, mas toda a gente sabe - é uma evidência - que pode ser violada, por exemplo, em caso de legítima defesa, inclusivamente de bens patrimoniais.

Assim sendo, saber se o aborto deve ou não ser punido implica a resposta a algumas questões. O bem fundamental em causa é digno de tutela? Parece-me irrecusável que sim. O direito penal é o instrumento adequado para proteger essa vida? Há quem diga que sim e há quem diga que não. A intervenção do direito penal produz mais vantagens ou mais custos? Há quem defenda que produz mais vantagens e há quem defenda que produz mais custos, isto é, que introduz mais disfunções sociais do ponto de vista da tutela da vida.

Convém, portanto, não assentar neste equívoco em que o CDS - não sei com que sinceridade - assenta, que é o de pensar que por via deste aditamento se inconstitucionaliza qualquer lei do aborto. Não se inconstitucionaliza lei nenhuma e não se furta nenhum dos partidos a assumir as suas responsabilidades nessa matéria. E aí estou à vontade, porque tenho assumido as minhas. Não só presentemente o aborto não é inconstitucional, isto é, a despenalização do aborto não é inconstitucional, como nunca o seria à base desta lei. É importante que fique claro que o legislador ordinário e as pessoas que formarem maiorias ficam com a sua responsabilidade plenamente em aberto. Ou seja, não pensem os promotores desta proposta - e utilizando agora uma expressão em voga na sociologia - que reduzem já a respectiva complexidade, pois ela permanece toda em aberto para o legislador ordinário.

Não resolvendo, assim, este problema, surge-nos o problema da adequação da norma, o qual se parece extremamente conveniente, pois a vida humana é muito complexa e está rodeada ainda de muitos mistérios. Além disso, o problema de estabelecermos a demarcação do início da vida levar-nos-ía a questionar o problema do seu fim, o de saber quando acaba a vida. E tentar resolver isso em termos constitucionais parece-nos extremamente complicado, porque há aqui todo um mundo novo a considerar e, inclusivamente, já se diz agora, a propósito dos modernos meios alcançados pela genética, que está aí o 8.° dia da Criação. Há problemas gravíssimos a ter em consideração, nomeadamente problemas de experimentação nos embriões, problemas relativos ao destino a dar aos embriões resultantes das fertilizações in vitro e outros, que não me parece que sejam resolvidos com uma norma como esta. Penso que a grande proclamação que refere que a vida humana é inviolável é ainda a fórmula mais rica e o guião mais seguro que nos permite navegar com alguma segurança no actual mundo de problemas. Está aí à porta o 8.° dia da Criação - como dizem alguns

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teóricos destes problemas - e, portanto, devemos ser um pouco modestos e não pretender meter a "vida" nos espartilhos da lei, muito menos da lei constitucional.

Por estas razões, entendemos que a Constituição deve, neste ponto, permanecer como está.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Mário Maciel.

O Sr. Mário Maciel (PSD): - Quando emiti a minha opinião, fi-lo como membro desta Comissão e como pessoa que tem algumas ideias - talvez sejam poucas, mas são algumas - acerca de matérias que considero importantes.

O Sr. Deputado José Magalhães pensa que por ser jurista é detentor da ciência maior e que cidadãos do seu país, por serem licenciados noutros ramos, talvez sejam detentores de ciências ou sapiências menores. Se isso foi uma graça, penso que foi despropositada, porque emiti uma opinião ao abrigo de um estatuto que é igual ao seu. E, aliás, V. Exa. tem-nos galardoado com lições de direito às quais não tenho feito quaisquer reparo e que considero, por vezes, brilhantes. No entanto, não estamos aqui propriamente como académicos, mas como deputados, pois isto não é uma academia, mas uma comissão política de revisão da Constituição.

O Sr. Presidente: - Às vezes parece!

O Sr. Mário Maciel (PSD): - Sim, às vezes parece.

Foi, portanto, nesse enquadramento que proferi a minha opinião pessoal. O senhor coordenador do grupo de deputados do PSD é que tem a incumbência de marcar uma posição política do partido perante as questões apresentadas, e obviamente que, como membro desta Comissão, posso emitir opiniões, o que fiz. E fi-lo norteado pela pretensão, quiçá ambiciosa, de que a nossa Constituição não seja um texto utópico, desadequado e inatingível. Por isso mesmo considero que constatar-se a prática de abortos e simultaneamente a Constituição referir que a vida humana é inviolável é uma utopia no presente estado de coisas.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, gostaria de dizer que não tive a mínima intenção de suscitar a reacção que o Sr. Deputado Mário Maciel acaba de ter. Compreendo-a, mas ela resulta certamente de uma não compreensão daquilo que tinham sido o espírito e o conteúdo básico das minhas observações. Ou seja, limitei-me a esconjurar um risco, mas talvez tenha esconjurado um risco mais pequeno do que aquele que admiti, que era o de ter uma visão sectorialista, neste caso com o primado da ciência, que é a biologia, numa matéria que é eminentemente jurídico-constitucional e está a ser debatida em sede de revisão constitucional. Assim, não se tratou isto de anátema de uma classe, a dos biólogos, por senha corporativa de outra, a dos juristas, mas sim uma preocupação que encontrou um eco adequado na nossa bancada.

Neste âmbito, devo dizer que estou de acordo com as alegações fundamentais feitas pelo Sr. Deputado Costa Andrade em relação a todo o enquadramento jurídico-penal da questão do aborto e, portanto, ao sentido fundamental do artigo 24.°, no que diz respeito às incidências e decorrências quanto à respectiva questão jurídico-penal. Creio que a tentação a que foi sensível o Sr. Deputado Mário Maciel consistiu em procurar atalhar um equívoco com outro equívoco maior, tentação essa que deve ser evitada. E foi essa apenas a minha preocupação.

No entanto, seguramente que o Sr. Deputado não terá considerado inútil ou despicienda a discussão que aqui travámos, que penso ter sido bastante útil, designadamente na parte em que se alertou para o facto de haver determinadas portas que, uma vez entulhadas com equívocos, perturbam seriamente o citado -creio que bem - 8.° dia da Criação. Na verdade, as questões que se abrem hoje relativamente a tudo o que diz respeito aos tratamentos jurídicos e, inclusive, jurídico-penais dos fenómenos vitais são de uma tal complexidade e encontram-se de tal forma inexploradas ou mal tratadas que a tentativa de as abranger através de uma forma constitucional que não fosse rigorosamente pensada - não é o caso desta - e sobretudo alterasse a actual forma, concebida em termos escorreitos que permitem trabalhos de apuramento jurídico perfeitamente possíveis nas outras esferas, seria imprudente e contraproducente. É esse equívoco que importa não suscitar. E creio que nos poderemos congratular com o facto de, ao que parece, não haver esse risco.

Sr. Presidente, não gostaria de ter deixado de dizer o que disse, em que conjuguei uma observação de fundo com a abordagem de um equívoco que pretendi desfazer.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Apesar da ausência do CDS, julgo que o debate foi útil, porque o Sr. Deputado Mário Maciel expôs - afigura-se-me que de uma maneira rigorosa - o que imagino que seja o pensamento do CDS.

Diversamente do que disse o Sr. Deputado Maciel, a adopção da proposta do CDS não consistiria em redundância. Introduziria uma originalidade em direito constitucional. Portanto, do meu ponto de vista, e em absoluto, não deve ser acolhida a proposta do CDS.

Quanto ao n.° 1 do artigo 24.°, penso que a boa interpretação desta questão foi a que prevaleceu no Tribunal Constitucional, quando ela foi discutida no início de 1984, bem como a que o Sr. Deputado Costa Andrade acaba de formular. Por este motivo, afigura-se-me que com este debate ganhámos em termos de clarificação do alcance preciso da norma constitucional vigente.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Presidente, tomo a palavra somente para que não se possa, longinquamente que seja, tirar alguma ilação do facto de ninguém da nossa bancada ter pedido a palavra acerca desta matéria. É que subscrevemos inteiramente tudo o que foi

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dito pelo Sr. Deputado Costa Andrade e, portanto, o uso que neste momento faço da palavra tem precisamente este sentido, ou seja, o de subscrever aquilo que foi dito, atirando debates que não têm a sua sede própria nesta Comissão para outras áreas, designadamente as da política criminal.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, gostaria apenas de dar uma informação, que julgo conveniente que fique registada. É que hoje está presente em toda a comunidade jurídica internacional e consagrada em todas as Constituições a inviolabilidade do direito à vida e todos os tribunais constitucionais, principalmente o da República Federal da Alemanha, entendem exactamente a mesma coisa. Assim, a protecção e absolutização do direito à vida não implica o recurso à protecção criminal, pois há outras protecções, nem nos vincula à protecção criminal através da criminalização do aborto. E isto é hoje líquido em toda a parte. Também em Portugal há um parecer importante da Procuradoria-Geral da República, subscrito pelo Sr. Procurador-Geral Lopes Rocha, que defende exactamente a tese de que a protecção constitucional da inviolabilidade da vida não vincula à protecção pela via da criminalização, ou seja, vincula a outras protecções, mas, no arsenal de meios existentes, não impõe a obrigatoriedade de recorrer à tutela criminal. É importante que isto fique registado, para evitar alguns equívocos.

Todos nós assumiremos as nossas responsabilidades, e as posições tomadas por nós nesta Comissão não isentam cada partido de assumir as suas responsabilidades em sede de legislação ordinária.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Deputado Costa Andrade, estou inteiramente de acordo com a sua interpretação. V. Exa. disse, porém, que, se nesta matéria fosse acolhida a fórmula do CDS, tal não alteraria o quadro actual. Em todo o caso, diria que, se isso se verificasse, alguma potencial confusão se poderia estabelecer. É por esse motivo que me oponho a que seja acolhida a proposta do CDS.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Isso poderia agravar o equívoco, mas estamos sempre em equívoco.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Não há equívoco, propriamente. A inovação, essa, criaria equívocos.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Não, porque já com a fórmula "a vida humana é inviolável" se gerou um equívoco. A fórmula proposta pelo CDS apenas poderia agravar o equívoco.

O Sr. Presidente: - Dado não haver mais inscrições, vamos passar ao artigo 25.°, o que, aliás, me deixa muito satisfeito em termos de velocidade dos trabalhos...

Em relação ao artigo 25.°, existem três propostas de alteração, duas das quais são idênticas, a saber, as do CDS e do PSD, ambas de ordem puramente técnica,

pois trata-se de sugerir a substituição, no n.° 1, da palavra "cidadãos" pelo termo "pessoas". Além destas, há uma proposta de aditamento de um n.° 3, apresentada pelo PCP. Tudo isto vem referido, aliás, no respectivo relatório da Subcomissão, elaborado pelo Sr. Deputado Miguel Macedo.

Julgo que poderíamos, até por razões de economia, começar pela apresentação da proposta do PSD; passaríamos depois à apresentação da proposta do PCP e, seguidamente, à sua discussão. Como a proposta do PSD é muito simples, permito-me expô-la de imediato.

Visa tal proposta explicar que a integridade moral e física é inviolável, reportando-se este princípio a todas as pessoas, tenham eles nacionalidade estrangeira ou sejam apátridas, isto é, que todas as pessoas, pela simples circunstância de serem pessoas, devem naturalmente ter a sua integridade moral e física garantida pelo artigo 25.° e que, portanto, não há aqui razão para ser utilizado o conceito de cidadão. Aliás, veremos depois que no n.° 1 do artigo 26.° também há uma referência à cidadania que não tem sentido. O respectivo n.° 3, relativo à privação da cidadania, tem sentido, mas já não o tem o n.° 1, que refere que "a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania", porque podem existir casos em que isso não possa ser feito, sem que por isso haja por parte do Estado Português uma violação desse direito, como resulta claramente da garantia do n.° 3 do artigo 26.° Mas a seu tempo veremos isso.

Portanto, a justificação a dar é apenas de ordem técnica, porque se trata aqui de uma protecção não apenas para os cidadãos, mas para todas as pessoas em geral, sejam ou não portugueses.

O PCP poderia agora, querendo, fazer uma justificação sucinta da sua proposta de aditamento de um n.° 3.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - As propostas são bastante distintas.

Pausa.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Em primeiro lugar, gostaria de subscrever a opinião que foi aduzida pelo Sr. Presidente.

Em segundo lugar, quero acrescentar eventualmente um outro argumento, que penso ser procedente, no sentido de defender que no artigo 25.° deve figurar o termo "pessoas" e não "cidadãos".

Por um lado, penso que há uma razão formal que diz respeito à relação do conteúdo do artigo com a sua própria epígrafe, embora esta não vincule, concretamente no que se refere ao direito à integridade pessoal. Há, portanto, aqui uma melhor relação entre o conteúdo do artigo e a respectiva epígrafe.

Por outro lado, creio que quando se fala de integridade moral e física - e é sobre essas duas realidades que incide a preocupação do artigo - tem natural e necessariamente de se falar em integridade moral e física das pessoas e não dos cidadãos. Neste ponto, remeteria para a velha dicotomia, que julgo que surgiu bem clara da Revolução Francesa, entre citoyens e hommes. Ela leva-nos a pensar que o que está em causa

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são as pessoas e não os cidadãos, são, pois, as pessoas como entes físicos dotados de espiritualidade e não como participantes na civitas, na acepção plena do termo "cidadão". Portanto, ao falar-se de integridade moral e física não se trata propriamente da defesa de direitos políticos de participação - e aí faria sentido o termo "cidadão" -, mas sim de direitos que são inerentes à natureza humana. É, de facto, por essa razão que faz mais sentido utilizar o termo "pessoas".

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Presidente, V. Exa. invocou a questão da nacionalidade como justificação para substituir "cidadãos" por "pessoas". Tratar-se-ia de conferir protecção não só a portugueses, mas também a estrangeiros. Se assim fosse, poderia muito simplesmente dizer-se "cidadãos nacionais, estrangeiros e apátridas".

Todavia, do exposto pela Sra. Deputada Maria da Assunção Ésteves afigura-se-me que não é só isso o que está em jogo. De facto, se por "pessoa" se entende o conceito definido no Código Civil, julgo que será correcta essa posição. No entanto, colocaria a condição de se transcrever para a Constituição a definição do Código Civil. De outro modo, podemos cair numa polissemia perigosa para a interpretação da lei fundamental.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, desejo apenas testemunhar, como posição de princípio, a minha simpatia por esta proposta, na medida em que não é difícil admitir, à luz de uma certa tradição jus-naturalista, que a dignidade da pessoa humana seja prévia à sua participação na comunidade política. De facto, o conceito de cidadania é um conceito de relação entre o indivíduo e a comunidade política a que pertence. Por sua vez a integridade moral e física não está necessariamente dependente dessa relação social, mas antes de um valor absoluto. Portanto, esse conceito deve ser tomado como absoluto e não relacional.

Pensamos, assim, que esta emenda tem, em princípio, algumas virtualidades.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Deputado Jorge Lacão, há uma polissemia filosófica em torno do termo "pessoa". Evitar essa polissemia é o que se me afigura necessário para acolher a proposta de alteração apresentada pelo PSD. Assim, defendo que se translade para a Constituição a definição de "pessoa humana" contida no Código Civil. Desse modo ficará tudo claro e sem dúvida alguma.

O Sr. Presidente: - V. Exa. tem o Código Civil à mão, para benefício de todos nós?

Pergunto-lhe isto porque a ideia que tenho, embora possa estar completamente errado, é a de que V. Exa. está a pensar na personalidade jurídica no sentido da susceptibilidade de ser titular de direitos e obrigações.

Se é esse o entendimento de V. Exa., preferiria não dar essa definição. No entanto, também não tenho a certeza disso, pois por vezes faço alguma confusão entre o Código de Seabra e o actual.

Vozes

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, V. Exa. está a referir-se ao início da personalidade? É que nos vários artigos sobre as pessoas singulares respeitantes às relações jurídicas, no título II do Código Civil, há um deles, o artigo 66.°, que refere o seguinte: "A personalidade adquire-se no momento do nascimento completo e com vida." Esta estatuição vem no seguimento da boa tradição romanista. Já o n.° 2 consigna que os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu nascimento.

No entanto, não gostaria de retomar, pela via de uma remissão para o Código Civil, aquilo que há pouco não quisemos resolver em matéria da proposta de alteração, apresentada pelo CDS, quanto ao artigo 24.°

Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Presidente, pode parecer que se quer introduzir no artigo 25.° aquilo que não está estatuído no artigo 24.°

O Sr. Presidente: - Não, Sr. Deputado, porque tudo depende do conceito de pessoa humana, tal como quando se refere a expressão "vida humana".

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Isso servirá então para ulterior reflexão, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Exacto, Sr. Deputado.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Manuel Mendes.

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Sr. Presidente, creio que a questão suscita ainda a seguinte apreciação: em 1981-1982 esta proposta de alteração ao artigo 25.° foi então discutida no seio da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, não tendo sido acolhida. Se a memória não me atraiçoa, não foi atendida por várias razões, de entre elas a de se ter entendido que uma revisão constitucional devia de alguma forma orientar-se pelo princípio da economia, e daí que pequenas correcções de natureza técnica seriam admissíveis no universo conceptológico abrangente e não verdadeiramente crispador.

Assim, a questão suscitada coloca-nos no domínio da interpretação jurídica, da doutrina e da própria jurisprudência, que sempre foram no sentido de que os valores que se tutelam neste preceito são os da pessoa no seu significado físico, dotada de espiritualidade, e não os do cidadão segundo a velha concepção da Revolução Francesa, que, aliás, foi muito breve. Além disso, deve ter-se em atenção que, como há pouco alertava o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia, a introdução desta expressão, desesteada de qualquer conceptologia que a configure rigorosamente em termos normativos, pode apelar para o paradigma teórico do personalismo, o que objectivamente não merece o nosso acolhimento.

Deste modo, é possível efectivamente considerar esta problemática na área e no universo semântico em que o Sr. Deputado Rui Machete e a Sra. Deputada Maria

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da Assunção Esteves procuraram colocá-lo. O que não é possível é deixar de olhar também sob este ângulo problemático que estou a suscitar e que nos leva a observar a proposta de alteração apresentada pelo PSD com cautelas bastantes, embora sem qualquer espécie de vezo.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Deputado José Manuel Mendes, só tenho uma dúvida em relação à sua intervenção.

De facto, no artigo 1.° da Constituição vem a definição da República Portuguesa como sendo baseada na dignidade da pessoa humana e, salvo lapso meu, o PCP não apresentou qualquer proposta de alteração nessa matéria. Daí que pergunte a V. Exa. se não lhe parece que as suas observações se aplicam também ao artigo 1.°

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Não, Sr. Deputado Vera Jardim, porque, em primeiro lugar, o que está, está, e mudar o que se encontra estatuído é diferente de introduzir alterações; em segundo lugar, o PS também não apresentou alterações, o que justifica que está no bom caminho, ou seja, que entende claramente que o que a Constituição estabelece no artigo 1.° é alguma coisa que, nos termos em que vem formulado, é distinto daquilo que se propõe. Sr. Deputado, o que se está a propor para o artigo 25.° é a queda do "cidadão" com todo o valor semântico e até - diria - historicístico a favor da integração do valor "pessoa", que é altamente relevante e estimável, desde que muralhado e entendido na conceptualização que foi formulada pelo Sr. Deputado Rui Machete e pela Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves, mas que é passível de toda a equivocidade, que, aliás, não deixo de aflorar no debate, sendo certo que se trataria sempre de alterar o que está previsto, uma vez que se entende que o que vigora não está bem ou é possível melhorar.

Salvo melhor opinião, a substituição do termo "cidadãos" por "pessoas" não aclara o texto constitucional nem o enriquece; do meu ponto de vista, torna-o mais polémico e mais permissível a toda uma larga carga semântica - interpretativa, como há pouco dizia o Sr. Deputado Sottomyaor Cárdia -, que, aliás, não é despicienda. É, antes, um apelo à consideração geral do problema no sentido de não se fecharem portas, mesmo por banda do PCP.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, desejo colocar uma questão ao Sr. Deputado José Manuel Mendes. E oxalá ele queira cooperar comigo!

O Sr. Presidente: - Não há um dever jurídico de cooperação, Sr. Deputado, pelo menos enquanto não estiver consignado na Constituição. Há, contudo, um dever cívico.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Existe, de facto, uma presunção.

A questão que coloco é a seguinte: o artigo 4.°, relativamente à definição da cidadania, não consigna um entendimento material desse conceito, referindo o preceito, pois, que "são cidadãos portugueses todos aqueles que como tal sejam considerados pela lei ou por convenção internacional". E fá-lo fugindo justamente à dificuldade material do conceito de cidadania. Assim sendo, a dúvida que se me coloca é a seguinte: perante um indivíduo que não tenha adquirido a cidadania portuguesa e esteja eventualmente numa situação até de ausência de cidadania, como é o caso dos apátridas, não admite o Sr. Deputado que é mais ambígua uma interpretação certamente forçada, mas que sempre propicia mais o entendimento de que um apátrida, não estando vinculado a uma cidadania em concreto, estaria, por isso, mais debilitado na protecção à sua integridade moral e física do que se essa protecção fosse dirigida à pessoa qua tale, em vez de ser ao cidadão? Por exemplo, não entende que para os exilados de facto há uma protecção constitucional mais garantida através do conceito de "pessoa" do que do de "cidadão"?

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Deputado José Manuel Mendes, o facto é que o termo "pessoa" é mais amplo do que o de "cidadão". E aí talvez tenha havido uma desatenção por parte de V. Exa.

Se é oportuno formular uma questão, colocá-la-ia de imediato: esta confusão entre "pessoa" e "cidadão" que eventualmente terá resultado da sua exposição tem alguma coisa a ver com a teoria do homem novo de que fala a última fase do comunismo?

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Manuel Mendes.

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Sra. Deputada, isso é uma graça, mas garanto-lhe que não reajo a ela como o Sr. Deputado Mário Maciel o fez em relação à do Sr. Deputado José Magalhães. De facto, o que V. Exa. disse não tem qualquer relevância teórica, pelo que penso não valer a pena fazermos uma discussão em torno dela.

Ora é óbvio que o termo "pessoa" é mais amplo do que "cidadão". Aliás, qualquer menino que ande na 1.ª classe da escola primária sabe isso, pelo que não vamos discutir tal assunto - e creio, aliás, que não é essa a matéria que importa esclarecer.

Já quanto à questão colocada pelo Sr. Deputado Jorge Lacão, devo dizer que, apesar de tudo, ela aponta num outro sentido. Valerá a pena dizer que aquilo que o Sr. Deputado Jorge Lacão quer resolver não é resolvido nem resolúvel a partir da integração do conceito de pessoa onde está o de cidadão no n.° 1 do artigo 25.° De resto, há na Constituição formulações que não estão, elas próprias, esteadas num rigor jurídico-normativo tal que não permitam interpretações de tipo polissemizante, como é o caso daquilo que V. Exa. há pouco aflorou relativamente ao artigo 4.° e de vários outros conceitos.

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O que me parece indiscutível, em primeiro lugar, é que esses conceitos são integrados pela própria história do vocábulo e pela própria história constitucional. Em segundo lugar, desde o princípio que o que tenho colocado em debate e à consideração dos Srs. Deputados não é o problema de saber se cidadão ou pessoa são elementos entre si em conflito e, portanto, antinómicos e se há vantagem ou não em abstracto, fora do quadro da revisão constitucional, em adoptar um modelo ou outro, mas sim a questão de que a Constituição, tal como está, por toda a doutrina e todos os intérpretes tem sido efectivamente lida à luz daquilo que eu e o Sr. Deputado Jorge Lacão dissemos. De facto, o que está em causa é a integridade física e moral de cada pessoa no sentido em que temos estado a falar e não uma outra coisa.

Portanto, será que o que o PSD deseja é apenas uma clarificação e um aperfeiçoamento? Creio que, a ser assim, não fecharemos a porta a isso. Levantamos, porém, a possibilidade de se entender também este outro conjunto de questões...

O Sr. Presidente: - Posso interrompê-lo. Sr. Deputado?

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Faça favor, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, o que pretendíamos era apenas evitar a necessidade de uma interpretação extensiva.

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Creio que esse é um objectivo em si mesmo positivo.

Penso, contudo, que ele não cobre o risco de interpretações piores do que as que são extensivas ou, pelo menos, tão más como elas.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Ramos.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Em primeiro lugar, quero dizer ao Sr. Deputado Sottomayor Cárdia que a técnica constitucional, nomeadamente em termos de normativo constitucional, não é nem deve ser a das definições puras e simples. De facto, o normativo constitucional, a encerrar em si definições, deve fazê-lo para o intérprete constituinte e nunca para a Constituição como tal. Portanto, seria um erro estarmos nesta sede a expressar qualquer conceito de pessoa humana e muito menos a tentar ligá-lo a qualquer definição ela própria já contida noutros âmbitos, nomeadamente no Código Civil, até porque este não define pessoas, mas antes refere quando é que as pessoas adquirem ou não personalidade. Trata-se, pois, de uma questão diferente.

Quanto ao Sr. Deputado Vera Jardim, devo dizer que ele colocou, e bem, o dedo no cerne da questão, ou seja, procedeu à distinção entre cidadão e pessoa. De facto, o artigo 1.° da Constituição consagra um princípio e não uma norma: o da dignidade humana, que vem a ser concatenado nos artigos 24.° e seguintes. Estes preceitos, ao concatenarem e expressarem em diversos "enfoques" o princípio da dignidade humana, fazem-no sempre - note-se - em relação ao universo global contido já no artigo 1.° referente à pessoa humana. Gostaria, aliás, de realçar este ponto. O n.° 1 do artigo 26.° é bem explícito quando refere: "A todos são reconhecidos os direitos [...]", enunciando depois quais são esses direitos. Já o n.° 1 do artigo 27.° estatui que "todos têm direito à liberdade e à segurança", referindo, por sua vez, o n.° 4 que "toda a pessoa privada da liberdade deve ser informada imediatamente das razões da sua prisão ou detenção".

Na verdade, em todos estes artigos, referentes aos direitos, liberdades e garantias pessoais, é sempre feita a concatenação do princípio da dignidade humana, no sentido de que são as garantias das pessoas que são expressas sem qualquer distinção possível entre umas e outras pessoas. Daí que, a meu ver, o artigo 25.°, só fazer esta distinguo entre cidadãos e não cidadãos, seja perigoso e, mais do que isso, contraditório com o princípio constitucional da dignidade humana e também com os outros artigos do normativo constitucional. Aliás, todos eles contêm de algum modo o princípio enunciado no artigo 1.° e prescrevem a pessoa humana sem qualquer distinção entre umas e outras pessoas.

Portanto, a minha opinião é a de que deve ser suprimida a expressão "cidadãos" e substituída pelo termo "pessoas", com todas as virtualidades já atrás enunciadas.

Além disso, também os argumentos de historicidade ou mesmo de qualquer ideologia não são os mais importantes quanto a esta temática, dado que há que preservar e consagrar até às últimas consequências o princípio constitucional que todos, ou quase todos, os constitucionalistas são unânimes em considerar como o de maior importância na Constituição Portuguesa: o princípio da dignidade humana. E ainda bem que a interpretação constitucional não tem sido feita assim, já que este artigo 25.°, ao falar em "cidadãos", poderia, de alguma forma - mas não o fez -, colocá-lo em perigo.

Julgo, pois, que esta correcção deve ser realizada, e rapidamente.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Manuel Mendes.

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Sr. Presidente, desejo colocar uma questão ao Sr. Deputado que acabou de intervir.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, tenho um outro objectivo, que é o de tentarmos passar adiante na discussão dos preceitos constitucionais.

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Temos, pelos vistos, objectivos absolutamente opostos, Sr. Presidente. Porém, vamos de seguida passar adiante.

O Sr. Presidente: - Julgo que não, Sr. Deputado.

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - A questão que coloco ao Sr. Deputado José Luís Ramos é a seguinte: V. Exa. entende que é hoje possível, tal qual está redigida a Constituição, ler o n.° 1 do artigo 25.° sem o n.° 2, isto é, sem que claramente se interpretem os dois números? Por outras palavras: quando a Constituição refere que "ninguém pode ser submetido a tor-

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tura, nem a tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos", estar-se-á a admitir que a integridade moral e física dos que não são cidadãos portugueses pode ser violada? Julgo ser óbvio que não.

Portanto, não creio que seja necessária uma clarificação. Pode, porém, ser um debate interessante a travar, e estamos, aliás, disponíveis para isso. Queremos, inclusivamente, aclarar situações até à definição final da nossa própria posição, mas o que não se pode fazer - e quero deixar isto bem claro - é sustentar-se actualmente que o n.° 1 do artigo 25.° é restritivo, bem como se pode entender o termo "cidadão" fora do conceito e da leitura que tem sido feita por todos no sentido de que o que aí se pretende proteger é a integridade moral e física das pessoas.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Ramos.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Sr. Deputado, ainda bem que essa interpretação tem sido feita. Aliás, não estou de nenhuma forma a alinhar com a interpretação restritiva.

O que me parece é que a manutenção, no n.° 1 do artigo 25.°, da expressão "cidadãos" em nada ajuda à eficácia do princípio da dignidade humana e que ela deve ser rapidamente substituída.

No entanto, diria que, se essa não é a minha interpretação, ela pode, mesmo assim, ser sustentada em relação à diferença entre o n.° 1 e o n.° 2. Senão vejamos. O n.° 2 refere que "ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos", mas o n.° 1 estatui que "a integridade moral e física dos cidadãos é inviolável". Daí poder entender-se que qualquer violação à integridade moral e física dos cidadãos que não seja tortura ou tratos ou penas cruéis, degradantes ou desumanos pode ser admissível para um não cidadão. De facto em termos de interpretação isto é sempre possível.

Por conseguinte, não vejo qualquer virtualidade na manutenção da expressão "cidadãos", mas julgo que, apesar de tudo, este raciocínio pode ser feito.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Presidente, creio que a proposta de V. Exa. visa evitar a interpretação extensiva. Se tal puder ser feito sem ambiguidade, afigura-se-me positivo. Proponho então que a palavra "cidadãos" seja substituída por "indivíduos". Se for utilizada a expressão "indivíduos", não será necessária nenhuma interpretação extensiva e ficará perfeitamente acautelado tudo aquilo que se pretende do ponto de vista jurídico.

O Sr. Presidente: - V. Exa. exclui que o artigo 25.° se possa aplicar a pessoas colectivas no que respeita à integridade moral?

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Não, Sr. Presidente. Não estamos a fazer formulações para fundamentar raciocínios absurdos a contrario.

O Sr. Presidente: - Percebo a dificuldade de ordem técnica de V. Exa.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Definamos, então, a expressão "pessoas", pois compreendo que não é de boa técnica recorrer a definições. A definição pode neste caso ser útil do ponto de vista da certeza do direito. Se, por exemplo, se quiser dizer que pessoa é o indivíduo humano nascido e com vida, não julgo que isto contenha algo de difícil.

O Sr. Presidente: - O artigo 23.°, Sr. Deputado?

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Não, Sr. Presidente. O artigo 24.° não inconstitucionaliza a interrupção voluntária da gravidez. Pela mesma razão, o artigo 25.°, com a formulação proposta - definindo pessoa como um indivíduo humano nascido e com vida -, também não inconstitucionaliza a proibição da interrupção da gravidez. Estamos num domínio neutro e não preferimos esta ou aquela solução tendo em vista o problema da interrupção voluntária da gravidez.

Afigura-se-me que, a não se poder definir, a palavra "pessoa" persiste no texto constitucional com toda a infinita polissemia que sabemos. Nesse caso, a palavra "cidadãos" talvez seja preferível, porque é menos filosófica, mais técnica, mais rigorosa, mais jurídica. Por conseguinte, se não se puder dar uma definição constitucional de "pessoas", mantenha-se então a palavra "cidadãos", porque aí há uma noção menos imprecisa sobre o significado do termo.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, fui o causador involuntário de um lapso quanto ao posicionamento ou rastreio dos caboucos da posição actual do PSD. Isto é, na revisão constitucional de 1982 não chegou a ser formulada nenhuma proposta sobre esta matéria, embora tivesse sito intenção de um segmento ou sector da então existente AD fazê-lo. O chamado "Estudo e projecto de revisão da Constituição", do grupo de Coimbra, chegou a incluir uma proposta desse teor, que se fundamentava precisamente nos termos em que agora se explanou a proposta do PSD. Substituía-se no n.° 2 a palavra "cidadãos" por "pessoas", dado que se tratava de um direito que, pelo seu conteúdo, não pode ser recusado aos estrangeiros. Assim fundamentavam os doutos autores a proposta. Isso não chegou a ser transposto para a revisão constitucional, o que, apesar de tudo, se compreende, pelas razões que já foram aqui expendidas pelo Sr. Deputado José Manuel Mendes.

Gostaria apenas de dizer que a discussão pode suscitar alguma perplexidade a quem nos leia, porque, realmente, se há aspecto que tenha sido pacífico ao longo de todos estes anos, é o de que não há nenhum mistério hermenêutico sobre quem é o sujeito dos direitos previstos no capítulo I do título II da parte I. Isto é, no título respeitante aos direitos, liberdades e garantias, o homem é protagonista em três vestes: enquanto pessoa, como termo genérico, inqualificado, enquanto cidadão na comunidade política, com todas as implicações que isso tem, e enquanto trabalhador, no conceito constitucional específico. É tão simples como isto! Quando a Constituição quer designar esse sujeito

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em relação ao primeiro grupo de direitos, aos chamados "direitos pessoais", e não individuais, não é por acaso que o designa por "ninguém", o que acontece em vários artigos, por "todos", em outros casos, ou por "cidadãos" no caso do artigo em apreço.

Ora, isto tem a confortável vantagem, que o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia focou, de permitir excluir, de forma afoita, a questão das pessoas colectivas. O n.° 2 refere, prudentemente, o sujeito como "ninguém". Nunca ninguém teve nenhuma dúvida de que estes direitos pessoais tinham um sujeito, que eram "todas as pessoas". Nunca ninguém em Portugal teve o arrepio de medo do Sr. Deputado José Luís Ramos quanto à hipótese de se considerar que o nigeriano em trânsito que perdeu a sua nacionalidade porque miseravelmente foi expropriado dela, pudesse ser miseravelmente torturado ou ser objecto de agressões à sua integridade moral e física. Nunca ninguém colocou essa questão nem ela é colocável face ao direito português. Nunca seria colocável porque, entre outras coisas, este artigo - e a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves, argutamente atenta a essas questões, assinalou isso no seu relatório - deve ser filtrado à luz da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Assim, são-nos aplicáveis todas as normas do pacto, da convenção, e as demais que todos conhecemos.

O risco que agora é conjecturado não existe e, portanto, estamos perante uma correcção técnica-jurídica. Valerá a pena fazê-la, face à margem de equívoco que alguém poderá ver perante os mistérios que aqui foram inventados? Tenho essa dúvida.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, é evidente que, face ao texto constitucional, temos duas hipóteses interpretativas. Uma é a de termos uma propensão marginal elevada para ver mosquitos na outra banda. A outra é a de termos uma propensão para criarmos um texto mais correcto. Isso são questões de opção. Devo dizer que falo agora como parte...

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Como pai da proposta, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Sim, como um dos seus progenitores.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não é como "parte", mas sim como pater.

O Sr. Presidente: - Penso que o problema já está suficientemente dilucidado, atendendo também a que não vamos neste momento proceder a nenhuma votação. Já foram explicitadas as posições em presença e as razões justificativas das mesmas.

Poderíamos então passar agora à proposta de aditamento de um n.° 3, apresentada pelo PCP, que tem uma redacção clara.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, cremos que, no quadro desta revisão constitucional, se poderia e deveria avançar na senda aberta pela primeira revisão, tendo em conta algumas das preocupações que entretanto já afloraram no nosso direito ordinário quanto à tutela dos direitos das vítimas de crimes.

Não se procura estabelecer uma larga margem de tutela. Trata-se apenas de fazer uma precisão, um aperfeiçoamento, um desenvolvimento que estabeleça como direito fundamental das vítimas de crimes o direito à protecção e apoio do Estado e, por outro lado, a específica previsão de um direito a indemnização, que se procura qualificar, embora em termos que têm uma densidade magra. Fala-se, como não poderia deixar de ser, em "adequada indemnização, nos termos da lei".

Há, pois, dois grupos de preocupações: por um lado, há a preocupação de que haja uma primeira cláusula que estabeleça, em termos muito concisos, o direito fundamental à protecção e apoio do Estado. É essa uma terminologia eminentemente constitucional, mas não quisemos escolher outra. O que seja o direito à protecção e apoio do Estado decorre dos dispositivos exactamente iguais constantes de outros artigos relativos a direitos, liberdades e garantias. É evidente que a alusão ao direito a indemnização e a sua qualificação como adequada implicam que haja uma normação no terreno da lei ordinária, mas a larga margem de definição que ao legislador fica cabendo é óbvia para todos. A protecção das vítimas de crimes há-de sobretudo fazer-se pela via da lei ordinária, em cumprimento, aliás, de obrigações internacionais assumidas pelo Estado Português. Aquilo que nesta matéria tem vindo a ser elaborado sob a égide do Conselho da Europa ou das comissões competentes existentes no âmbito da Organização das Nações Unidas tem despertado o interesse de todos os quadrantes. A vitimologia é alguma coisa que não é pertença de nenhuma família política, alguma coisa que deveria e importaria que fosse uma paixão comum e que também se projectasse, embora com magreza, em soluções no plano constitucional.

Suponho que a nossa proposta é suficientemente escorreira para poder ser subscrita, sem nenhuma reserva e nenhum vezo, por todos os quadrantes políticos. Muito gostaríamos que assim acontecesse.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, os trabalhos preparatórios da revisão constitucional são, naturalmente, matriz condicionante da actividade legislativa ordinária.

Gostaria de dizer, em primeiro lugar, que concordamos com o teor material da proposta, que é em si aceitável. O problema é o de saber se devemos ou não inseri-la na Constituição, sobre o que temos as maiores dúvidas. Não estamos minimamente em desacordo com a proposta. Já no Plenário da Assembleia da República, em sede de actividade legiferente ordinária, votámos contra uma proposta do PCP, porque continha algumas deficiências de carácter técnico, mas mantemos aberta a disponibilidade para discutir isso de novo em matéria de legislação ordinária.

Em relação a isto temos muitas dúvidas. Além do mais, a inserção no artigo 25.° sempre estaria incorrecta. No entanto, este argumento é despiciendo, porque o problema pode ser resolvido com algumas correcções de carácter técnico. A inserção neste artigo é que nunca poderia estar correcta. Se estamos a tratar do direito à integridade pessoal, temos de nos referir

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apenas às vítimas de crimes que colidam com a integridade pessoal, para haver alguma coerência lógica, e não, por exemplo, às vítimas de crimes patrimoniais. Em rigor, esta proposta, a ser inserida na Constituição, deveria sê-lo em qualquer das normas relativas ao direito criminal, como, por exemplo, na que fala da ressocialização dos delinquentes e do programa criminal dirigido às vítimas.

Portanto, a sua sede nunca poderia ser esta, a menos que a pretendesse restringir às vítimas de crimes contra a integridade pessoal. Esse é efectivamente um problema. Para já, talvez se deva ficar por restringir essa matéria às vítimas de crimes pessoais. Como já disse em Plenário, não estou a ver os magros recursos do Estado Português a indemnizarem o Sr. Champallimaud, vítima de um crime de burla, nem estou a ver o dinheiro dos contribuintes portugueses a ser gasto para esse efeito.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, dá-me licença que o interrompa?

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Costa Andrade, foi precisamente essa consideração e reflexão decorrente desse debate, que, aliás, foi extremamente útil, que nos levou a propor esta inserção. Como é evidente, ela é discutível, mas a preocupação foi rigorosamente essa.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Mas não é o que está aqui, Sr. Deputado.

O Sr. José Magalhães (PCP): - É sim, Sr. Deputado.

Nessa inserção sistemática, ou seja, no artigo que tem por epígrafe "Direito à integridade pessoal", nenhuma dúvida hermenêutica razoável se pode colocar quanto ao tipo de crimes que estão abrangidos.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Dou como bom esse seu contributo hermenêutico, Sr. Deputado. Apesar de tudo, mantenho a minha objecção de fundo. É uma boa proposta - e assumo este compromisso, com todas as implicações que tem -, mas não gostaríamos de a levar ao texto constitucional. O que dissemos agora adiantámos para muitas das outras propostas que vêm à frente das do Partido Comunista Português. O PCP faz propostas no sentido da elevação à categoria de direito constitucional de muitas normas hoje vigentes no direito ordinário do processo penal, como é o caso dos programas de política criminal, designadamente de ressocialização. Nós, por princípio, estamos contra a elevação dessas normas à categoria de direito constitucional, e não contra as propostas.

De resto, o Estado Português está em débito perante a comunidade internacional, designadamente o Conselho da Europa, em matéria de protecção das vítimas de crimes. Não sei em que estado se encontra a adesão à Convenção da Indemnização de Vítimas - e, aliás, participei na elaboração desse projecto no Conselho da Europa. Penso que o Estado Português está em dívida, mas que essa é uma questão a resolver em termos de direito ordinário.

Não nos parece, portanto, que isto deva ser trazido para o âmbito do direito constitucional.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Presidente, não quero pronunciar-me sobre o fundo da questão ou o mérito da proposta do PCP, porque não reflecti o suficiente. Tendo em conta a inserção do n.° 3 do artigo 25.°, V. Exa. não acha que esta proposta do PCP é eminentemente personalista quanto ao seu conteúdo? Não pensa que, numa perspectiva personalista e tratando-se de algo que não é despiciente, ela poderia eventualmente ter acolhimento constitucional?

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Deputado Sottomayor Cárdia, já disse que estou inteiramente de acordo com a proposta, mas não em sede de direito constitucional. Creio que a proposta sofre de vários inconvenientes do ponto de vista técnico.

Se estamos a tratar do direito à integridade pessoal, por que é que, por exemplo, especificamos aqui a integridade pessoal das vítimas? As vítimas têm um estatuto pessoal. No entanto, aquilo que têm de especial pode não derivar da integridade pessoal, mas sim, por exemplo, do programa de política criminal. Nesse caso, poderíamos, por exemplo, tratar aqui da integridade pessoal dos deficientes. Enfim, cada um tem as suas especificidades e as suas exigências específicas. Por que não referir o universo de pessoas que têm problemas e necessidades específicas? A vítima tem necessidades específicas do ponto de vista da integridade pessoal, mas não é só ela que as tem. Há também as mulheres, as minorias, e tantas outras coisas que podem ter relevância do ponto de vista da integridade pessoal.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Deputado Costa Andrade, o que esta proposta acautela não é a integridade, mas, sim, a indemnização, porque aquela já está acautelada.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Deputado, a vítima, do ponto de vista da sua integridade, precisa de muito mais coisas do que apenas a indemnização. Desde logo, precisa de refazer as suas relações de confiança com a colectividade e de não permitir que cada vítima se transforme naquilo que designei por "síndroma de Michael Kohlaas". O Estado não deu justiça à célebre figura do romance de Heinrich Von Kleist, que se revelou contra a sociedade.

Penso que esta é uma boa proposta. A nossa dúvida apenas diz respeito à conveniência da constitucionalização desta proposta. No Govêrno de coligação PS/PSD, os deputados socialistas e sociais-democratas votaram contra, a nível de legislação ordinária, uma proposta do PCP que ia exactamente nesse sentido. Convém recordar isto, porque não foi só o PSD que votou contra. Essa proposta tinha algumas deficiências técnicas e a dissolução da Assembleia da República não permitiu que elas fossem atempadamente corrigidas.

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O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Deputado Costa Andrade, não tomei posição sobre a questão de fundo porque ainda não reflecti bem sobre quais as consequências que isto poderia ter. É um terreno muito escorregadio e os senhores, que são os especialistas, é que sabem quais são as implicações exactas destas fórmulas.

O Sr. Deputado disse que a indemnização é um direito a garantir, mas que há outros. Nesse caso, acrescentem-se também os outros, ou seja, adite-se a expressão "indemnização e reinserção" ou outra adequada.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Mas por que é que privilegiamos, do ponto de vista da integridade pessoal, as vítimas? Penso que, do ponto de vista da integridade pessoal, devem ser privilegiadas todas as categorias que tenham especiais défices de protecção. As vítimas são umas delas, mas não as únicas.

Penso que tudo isto se resolveria com uma melhoria técnica, já que as vítimas já têm um direito adequado à indemnização. A questão que se levanta é a de saber se o Estado não deve fazer uma reparação através dos cofres do Estado, o que é diferente da indemnização, que é uma categoria jurídico-civilística, nos termos da qual as vítimas de crimes que sofrerem danos têm direito a ser indemnizadas.

Portanto, isto não acrescenta nada de novo. Penso que a intenção do Partido Comunista Português era a de consagrar a tal reparação à custa dos cofres do Estado. Mesmo fazendo essa correcção, insisto que não nos parece que isto deva ser constitucionalizado.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, a nossa preocupação é a de fazer uma leitura rápida, embora tentando esclarecer os aspectos básicos da Constituição. E, como todos nós somos funcionalmente alfabetizados, talvez pudéssemos ser um pouco mais céleres do que temos vindo a ser até aqui.

Alguns dos Srs. Deputados deseja ainda intervir sobre esta matéria?

Vozes.

O Sr. Presidente: - Mesmo que visse, não teria mecanismos processuais que me permitissem exprimir-lhe esse meu ponto de vista.

Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Apenas quero fazer duas ou três observações, porque o que já foi dito já foi muito. É evidente que a presença entre nós do Sr. Deputado Costa Andrade, que é - chamemos-lhe assim - um ilustre "vitimólogo" que se tem preocupado profissionalmente com este problema, já nos deu uma meia lição.

A primeira observação que quero fazer é a de que não temos nada contra - e aí não sufragamos a posição do PSD - a inclusão na Constituição de alguns dos grandes princípios quanto à política criminal. Não vemos que daí resulte mal algum, até porque alguns desses princípios já constam da anterior versão, mas penso que não será mau darmos mais um ou dois passos em frente. Nós próprios, a propósito do artigo 30.°, introduzimos, precisamente nesta matéria da política criminal, dois ou três grandes princípios.

Em segundo lugar, quero mostrar simpatia pela proposta do PCP, mas até iria um pouco mais além. É que não vejo que, de um ponto de vista sistemático, seja este o melhor local para introduzir o problema do direito à indemnização das vítimas. Seria, por exemplo, muito melhor que tal direito viesse consignado no artigo 29.°, em cujo n.° 6 do texto actual da Constituição se diz que "os cidadãos injustamente condenados têm direito [...]". Parece-me que essa é uma matéria que estaria, de uma forma mais sistemática, melhor nesse preceito do que neste.

Ouvi, no entanto, o Sr. Deputado José Magalhães dizer que teria sido propositadamente que teriam incluído neste artigo 25.° o direito das vítimas à protecção e apoio do Estado. Penso que não virá mal ao mundo se o for num outro local, até porque do próprio texto proposto pelo PCP resulta que tal direito é conferido nos termos da lei. No sistema francês, que, aliás, é o único que conheço em pormenor - e nesta matéria o Sr. Deputado Costa Andrade poderá dar-nos certamente muitas outras informações - é evidente que não se colocaria o problema de o Estado vir a indemnizar o Sr. Champallimaud. Trata-se, por um lado, de certo tipo de cumes e, por outro, de certo tipo de pessoas e até de um processo administrativo complicado, em que as vítimas têm de demonstrar uma série de coisas. E não vou dizer mais nada sobre esse assunto.

Em resumo, veríamos com simpatia a introdução deste princípio na Constituição - e estudaríamos melhor depois a respectiva redacção. Porém, não vemos que, de um ponto de vista sistemático, este seja o melhor local para isso, nem vemos que o facto de vir noutro local possa, de algum, modo, implicar que o sistema de segurança, de seguro ou outro parecido a montar tenha de incidir sobre toda a espécie de criminalidade e, sobretudo, tenha de indemnizar todas as vítimas, porque - é evidente - isso terá de ser tratado depois ao nível da lei ordinária.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Gostaria apenas de fazer, nesta sede e neste momento, três observações.

Em primeiro lugar, cremos que a inserção sistemática de um preceito deste tipo é evidentemente um problema apaixonante que nos poderia gastar muito tempo, se o tivéssemos, o que não é o caso.

O Sr. Presidente: - Pois não!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Podemos admitir que a inserção sistemática óptima fosse no artigo 29.°, que tem como epígrafe "Aplicação da lei criminal". Não o quisemos fazer, porém, porque fomos sensíveis à experiência e ao sal do debate no Plenário, em que foi sublinhado fortemente da parte da bancada do PSD quão importante era a questão da delimitação do âmbito do sistema a instituir e como num país com as nossas características poderia ser absurdo apontar para um sistema tão aberto que abarcasse o famoso exemplo Champallimaud, que, pelos vistos, traumatiza o PSD em matéria de política criminal, o que, suponho, não acontece nas outras matérias. Tratava-se, pois, de excluir a hipótese Champallimaud. A lei não era ad hominem, mas estava fortemente marcada pela sua génese.

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O Sr. Costa Andrade (PSD): - O exemplo do caso Champallimaud nunca foi utilizado pelo PSD, mas sim por mim. E poderia ter utilizado outro, como o do Creso. Também se dizia, por exemplo, que o antigo secretário-geral Brejnev era riquíssimo e tinha muitas datchas e muitos automóveis.

O Sr. António Vitorino (PS): - Esse exemplo também já não é...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Pois não, mas poderia utilizar o do Creso. A fixação é meramente pessoal, é um exemplo de carácter pessoal e não do partido, do PSD.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Compreendi isso, Sr. Deputado Costa Andrade. Suponho, aliás, que o Sr. Deputado tem grande dificuldade em arranjar exemplos: estava a falar de vítimas de crimes, mas, ao citar o ex-secretário-geral do PCUS, Leonidas Brejnev, está a colocar uma hipótese gravíssima que, suponho, não está no seu espírito.

Vozes e risos.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Está à margem, está absolutamente in limine!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Gostaria de dizer que a nossa preocupação relativamente à clarificação de que as vítimas em que estamos a pensar são eminentemente as vítimas dos crimes mais graves quanto à integridade pessoal em qualquer das suas dimensões, tal qual estão tipificadas no nosso Código Penal, é uma preocupação razoável, mas que pode ser expressa de outras maneiras, designadamente - e como, aliás, o Sr. Deputado Vera Jardim fez, em termos que considero inteiramente correctos - utilizando-se, tendo-se em conta e valorizando-se devidamente a cláusula remissa e conformadora "nos termos da lei", que introduzimos neste preceito assim proposto. É evidente que será a lei a definir o sistema.

Gostaria apenas de alertar para o seguinte: o argumento técnico é um argumento que gostamos de manejar - usámo-lo há pouco abundatemente a propósito da correcção técnica, que era uma pequenina correcção, adiantada pelo PSD -, mas ele deve valer para os dois lados, para todos os azimutes. Isto é, que não se invoque a dificuldade técnica aqui, para fazer correcções, e se esgrima com a mesma dificuldade técnica ali, para impedir aperfeiçoamentos.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Far-me-á a justiça de ter ressalvado sempre, nas minhas observações de carácter técnico, a ideia de que eram superáveis. Não quero fugir às responsabilidades. A nossa oposição é de fundo no que toca a um certo entendimento da Constituição nesta matéria. Sempre disse, e mantenho, que não são argumentos de carácter técnico, porque esses seriam superáveis. Como o Sr. Deputado Vera Jardim muito bem disse relativamente ao artigo 29.°, n.° 6, estariam em causa, designadamente, as vítimas dos crimes violentos contra as pessoas. Não nos queremos refugiar aí, mas sim assumir, sem subterfúgios, a ideia de que, por princípio, essas são matérias de legislação ordinária e não de constitucionalidade. De resto, não conheço nenhuma constituição com norma semelhante.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Creio que há, designadamente, estudos preparatórios. Se o Sr. Deputado olhar para a vizinha Espanha, encontrará, para seu grande gosto, algumas felizes sugestões nesse sentido.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Dar-me-á o direito ao desconhecimento.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Com certeza!

A minha última observação é relativa à questão melindrosa que está criada no direito ordinário, porque, obviamente, não vamos resolvê-la nesta sede. A inserção, porém, de uma cláusula escorreita, magra e sucinta seria positiva, já que a situação que se verifica na prática é surrealista. Isto é, a nossa formulação não pretende resolver a questão que está em aberto no direito ordinário e designadamente, a questão que o Sr. Deputado Costa Andrade aqui equacionou, qual seja a de saber qual é o papel do Estado no sistema de garantia do direito dos cidadãos à indemnização, direito que inegavelmente têm. Não queremos contrabandear aqui o nosso projecto sobre garantia estadual dos direitos das vítimas de crimes quanto à questão da indemnização, nem queremos dar aqui cumprimento directo e imediato às recomendações do Conselho da Europa em relação à assunção pelo Estado dessas responsabilidades, com sub-rogação inerente.

Por isso, escolhemos a fórmula que aí está e não outra e falamos da "adequada indemnização" e não do papel do Estado na garantia da indemnização, porque este papel será o definido nos termos da lei, à luz da cláusula geral da protecção e apoio contida no primeiro segmento da norma proposta. Não quisemos avançar mais do que isso e não há, portanto, um caso de imperfeição do espírito. Haverá, quando muito, uma opção discutível da nossa parte, mas não há intenção de fazer qualquer proposta que não seja rigorosamente esta.

Estamos inteiramente de acordo, portanto, em que a inserção sistemática de uma norma deste tipo seja ponderada, mas apelamos a que não se adopte como bitola ou critério geral a ideia de que a nossa constituição processual penal e o nosso programa de política criminal estão fechados no que diz respeito ao seu enquadramento constitucional. Quando temos, como temos, um problema processual penal em marcha, nascido, mas ainda na primeira infância e nos primeiros tropeções (para dizer toda a verdade), excluir o burilar dos contornos constitucionais que são relevantes para o plasmar na legislação ordinária de certas soluções parecer-me-ia muito prematuro, muito precipitado e, sobretudo, muito empobrecedor e perigoso, como veremos adiante.

O Sr. Presidente: - Suponho que esta matéria está suficientemente dilucidade, pelo que poderíamos passar à discussão do artigo 26.°

Pausa.

Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - O Sr. Presidente referia há pouco que somos todos alfabetizados. E somos!

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O Sr. Presidente: - Funcionalmente.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Todavia, há no País autoridades - e não me refiro a autoridades em sentido institucional ou constitucional - que, talvez tendo beneficiado de um especial tipo de alfabetização, fazem doutrina. É ainda a questão do termo "pessoa" que está em causa - e repare V. Exa. quão longe vai a polissemia. É o doutrinário da reforma do sistema educativo quem sustenta a tese de que a educação transforma o animal em pessoa. Veja, portanto, a dificuldade que haverá se num texto constitucional, neste momento, adoptarmos, sem o definir, o termo "pessoa", havendo a doutrina, perfilhada expressamente pela Comissão do Sistema Educativo no prefácio do livro que é um documento do Estado Português, que dá tão original definição de "pessoa". Peço desculpa a VV. Exas., porque sei que esta invocação não mereceria ser trazida à Comissão Eventual para a Revisão Constitucional. Todavia...

O Sr. Presidente: - Todavia, V. Exa. não resistiu!

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Não resisti porque há o perigo de algumas ideias fazerem escola.

O Sr. Presidente: - Provavelmente teremos de rever o artigo 1.° da Constituição, o que veremos quando lá chegarmos.

Passamos agora à discussão do artigo 26.°, sobre o qual há uma proposta de alteração do n.° 1 apresentada pelo PSD, uma proposta de alteração, com aditamento, do n.° 1 apresentada pelo PEV e ainda uma proposta de aditamento de um n.° 4 também da autoria do PEV.

Vamos então começar pela proposta de alteração do PSD.

Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Quero apenas colocar a seguinte pergunta: a eliminação da palavra "cidadania" é ou hão intencional?

O Sr. Presidente: - Não, não é intencional, pela razão que muito sucintamente passo a explicar.

Como V. Exa. reparará, quando se diz, no texto actual, que "a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, à capacidade civil, à cidadania [...]", o que se procura, obviamente, é aquilo que no n.° 3 se vem dizer, ou seja, que "a privação da cidadania e as restrições à capacidade civil só podem efectuar-se nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamento motivos políticos". Garantir a todos, inclusive aos apátridas, o direito à cidadania é um propósito generoso, mas impossível.

E essa a razão por que não tem grande sentido dizer que a todos é reconhecido o direito à cidadania, porque, na verdade, não é possível reconhecê-lo em termos positivos, embora seja possível reconhecê-lo no sentido da não privação. Em primeiro lugar, como V. Exa. sabe, a cidadania é algo que, em termos de direito internacional público, é atribuído por cada um dos Estados aos que considera como seus nacionais, nos termos em que, em princípio, as pessoas adquirem essa qualidade ou deixam de ser cidadãos, nas diversas formas de jus soli ou jus sanguinis. Por outro lado, não tem sentido estarmos a impor isso aos Estados estrangeiros. O que tem sentido é em relação ao Estado Português haver uma norma respeitante à cidadania, que já existe, embora remeta para a lei ordinária as condições concretas em que aquela se efectiva. A lei ordinária é materialmente constitucional, mas, em todo o caso, esta regulamentação não consta hoje da Constituição, embora em tempos idos já tenha acontecido na nossa história constitucional.

Uma outra coisa fundamental é impedir que o legislador ordinário possa, por razões de ordem política, fazer privar da cidadania cidadãos portugueses. Por isso o reconhecimento da cidadania a todos, portugueses ou não, não tem sentido do ponto de vista técnico.

Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Parece-me que essa opinião comporta dois alçapões, o primeiro dos quais é o desequilíbrio do artigo em si mesmo, pois, retirando-se do n.° 1 o direito à cidadania como direito pessoal, não se percebe a que título é que o n.° 3 se vem regular a privação da cidadania, direito que não foi concedido no n.° 1 rotulado como direito pessoal. Em segundo lugar, o problema, em meu entender, não pode ser colocado como o Sr. Presidente, Rui Machete, o colocou, porque talvez, mutatis mutandis, considerações semelhantes pudessem ser utilizadas em relação à capacidade civil. Como está bem de ver, o princípio não deve ser posto em causa e, aplicando esse critério, talvez também devesse ser retirado do n.° 1 o direito à capacidade civil.

O Sr. Presidente: - Penso que, salvo o devido respeito, a interpretação mutatis mutandis não conduz a essa conclusão. Suponho que V. Exa. não entende que se possa, em qualquer circunstância, recusar a apátridas o direito à capacidade civil ou a um certo tipo de capacidade civil. Digamos que há uma cláusula de interesse e ordem pública, fundamental nesta matéria, que impede que, seja qual for a solução que o direito estrangeiro dê em matéria de cidadania e capacidade civil, o Estado Português não deixe de reconhecer capacidade civil aos apátridas ou aos cidadãos estrangeiros.

O Sr. António Vitorino (PS): - Salvo melhor opinião, como sempre nestes debates se deve dizer, é insofismável que o problema não reside na aplicação da capacidade civil ou até do direito à cidadania a apátridas. O problema que o Sr. Deputado colocou, ao se querer retirar a "cidadania" no n.° 1, é o problema da compatibilização entre o reconhecimento de um direito e o seu substrato material. Naturalmente que onde não existe substrato material constitutivo do direito não se pode reconhecer esse direito, o que vale para a cidadania, como vale, em igualdade de circunstâncias, para a capacidade civil.

Nesse sentido, não se pode interpretar o n.° 1 do artigo 26.° da Constituição como uma obrigação geral que impende sobre o Estado Português de conceder ou reconhecer a cidadania portuguesa a todos os apátridas. Não é nem nunca poderia ser esse o sentido útil da norma e não faz sentido nenhum, por isso, restringir ou retirar do n.° 1 deste artigo 26.° o conceito de cidadania. O que está aqui em causa é o seguinte: só se reconhece a capacidade civil, nos termos da lei, a quem a tenha em função do seu substrato material,

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o mesmo valendo para a cidadania - só se reconhece a cidadania a quem, em termos de substrato material, a tenha -, pelo que a quem for apátrida não poderemos reconhecer uma cidadania que não possui. Seja como for, sempre se deverá entender que a apatridia também é uma forma de cidadania.

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Exactamente!

O Sr. António Vitorino (PS): - Entendida com habilidade, a apatridia também é uma forma de cidadania.

Do que tenho receio é que a eliminação deste inciso do n.° 1 possa ir mais além do que aquilo que os Srs. Deputados do PSD pretenderam ao propor esta eliminação.

O Sr. Presidente: - Penso que não vale a pena suscitarmos uma discussão sobre matérias nas quais possamos estar de acordo.

O problema básico, essencial, é este: perante o ordenamento jurídico português, embora no nível constitucional, estamos, em primeiro lugar, a consignar direitos fundamentais cujos correlativos deveres cabem ao Estado Português; ao reconhecer a outrem direitos, estamos também a consignar, simultaneamente, deveres correlativos a esses direitos. O problema que existe, a meu ver com nitidez, é o de que não se colocam nos mesmos termos as questões da capacidade civil, do bom nome e reputação, da imagem, da reserva da intimidade da vida privada e familiar, porque essas matérias não dependem da forma como um Estado estrangeiro resolve esse tipo de problemas, antes se situando a um nível diverso.

Aceito que o Estado Português tenha algum tipo de dever de respeito pela cidadania alheia (digamos assim) no sentido de que não pode imiscuir-se nas relações que existem entre os cidadãos de um Estado e esse mesmo Estado nem praticar actos que pressuponham deliberadamente o desconhecimento dessa relação de cidadania. Nesse sentido, as observações do Sr. Deputado António Vitorino impressionam-me. E pode ser que eventualmente seja útil acautelar esse aspecto. Porém, trata-se de questões de ordem diversa.

Se houvesse - digamos - uma situação de Robinson Crusoe em relação ao Estado, o problema da identidade pessoal, da capacidade civil, do bom nome e reputação, etc., colocar-se-ia nas mesmas condições. Mas o problema da cidadania é diverso, não sendo lógico, nesse sentido, colocá-lo ao mesmo nível.

O Sr. António Vitorino (PS): - Dá-me licença que o interrompa, Sr. Presidente?

O Sr. Presidente: - Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, embora esteja de acordo consigo, parece-me que essa lógica não pode ser aplicada no artigo 26.° da Constituição, porque o que está aqui em causa é a identificação do direito à cidadania como um direito pessoal do povo português, isto é, do universo humano a que se aplica a Constituição.

Em meu entender, e apelando a um caso ultraminoritário de incidência especialíssima, que é o caso da apatridia, não se pode pretender retirar o direito à cidadania do elenco dos direitos pessoais de que gozam os cidadãos portugueses, porque isso seria sacrificar um direito pessoal do conjunto do povo português por amor a uma norma eventual de compatibilização de conflitos no domínio do direito internacional privado. Para isso existem mecanismos próprios e específicos de regulamentação de conflitos de normas.

O Sr. Presidente: - V. Exa. restringe a questão apenas aos apátridas, mas tem de lhe juntar os estrangeiros. A expressão "a todos" que aqui está - e já nem refiro os problemas polissémicos muito frequentes a propósito de outros preceitos constitucionais no sentido de se saber quem é que são as pessoas referidas - abrange pelo menos os cidadãos portugueses, os estrangeiros e os apátridas.

Existe uma outra norma referente à cidadania que a garante aos cidadãos portugueses, embora diga como é que a legislação ordinária a vai atribuir. Provavelmente, se se justificasse, poderia incluir-se a garantia que o Sr. Deputado pretende ver consignada, mas já não tem sentido garantir a todos o direito a uma cidadania, salvo se se entendesse como correcta a interpretação, que se me afigura absurda, de que quando fosse retirada a cidadania, por hipótese, a um cidadão soviético - e têm havido alguns casos desse tipo - o Estado Português teria de lhe acudir pressurosamente, com base no artigo 26.°, e lhe atribuir a cidadania portuguesa. Isso parece-me, francamente, um absurdo. Foi nesse sentido, que é, no fundo, um aperfeiçoamento técnico, que propusemos esta alteração.

O problema que V. Exa. coloca é o da garantia da cidadania dos cidadãos portugueses, que está aqui protegida. Mas está igualmente aqui protegida a cidadania dos apátridas - se me é permitida a expressão -, bem como a dos estrangeiros.

O Sr. António Vitorino (PS): - Seja como for, e só para concluir esta troca de impressões, parece-me que a vossa proposta é ultra vires, ou seja, vai além das forças do que vocês próprios pretendem nesse sentido.

Por outro lado, trata-se de uma norma muito importante em matéria de definição do regime restritivo dos direitos, liberdades e garantias. Ela proíbe, por exemplo, alterações à lei da cidadania no sentido de gerar apatridia, pelo que ficará debilitada se se deixar de considerar o direito à cidadania como um direito pessoal integrado nos direitos, liberdades e garantias. A consequência prática é essa.

O Sr. Presidente: - Não, não é essa, na medida em que o n.° 3 permite justamente essa garantia. Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Tenho a impressão de que existe aqui uma confusão qualquer, porque o artigo 4.° diz que "são cidadãos portugueses todos aqueles que como tal sejam considerados pela lei ou por convenção internacional". Se o artigo 4.°, ao referir "pela lei", estabelece que compete à lei definir a qualidade de cidadãos, a que título é que estamos preocupados com a palavra "todos"? "Todos" são aqueles que a lei defina como tais e não outros. Ou não será assim? A que propósito é que estamos preocupados com o facto de aqui estar repetida a expressão "todos"? Por poder, contra o que diz a lei, vir um indivíduo a ser considerado português?

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O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado Almeida Santos interpreta, pois, o n.° 1 como se estivesse escrito que "a todos os portugueses são reconhecidos" ...

O Sr. Almeida Santos (PS): - Não, Sr. Presidente. Interpreto a cidadania como o direito que corresponde à qualidade de cidadão, o status que corresponde ao estado de cidadão conferido pela lei. Assim sendo, não se incluem aqui os apátridas.

O Sr. Presidente: - E estão ou não incluídos os estrangeiros?

O Sr. Almeida Santos (PS): - Também não. Estão apenas aqueles que a lei diz ...

O Sr. Presidente: - Portanto, interpreta o preceito como sendo relativo "a todos os portugueses" ...

O Sr. Almeida Santos (PS): - A todos os cidadãos portugueses, que é o que lá está. Se o artigo 4.° diz que são cidadãos portugueses todos aqueles que como tal sejam considerados peia lei, é óbvio que o artigo 26.° se refere ao status de cidadão definido por aquela lei e não a todos em geral, como se a lei não existisse.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Dá-me licença que o interrompa, Sr. Deputado?

O Sr. Almeida Santos (PS): - Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Eu fiz em gesto de discordância que pode ter sido mal interpretado. Pretendia apenas dizer que a interpretação que o Sr. Deputado faz é naturalmente uma interpretação possível, mas que não pode ser tida com a evidência com que V. Exa. a toma. Isto porque, na discussão que há pouco travámos, uma interpretação lançada pelo PCP deu um outro sentido à expressão "todos". Quando se fala de "todos" - ou de "ninguém" pela negativa -, é no sentido de abranger todas as pessoas, como tal independentemente de qualificações ou estatutos relacionais.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Também a todos é reconhecida a capacidade civil e nem por isso deixa de haver incapazes, como é evidente.

O meu receio é o de que, tendo cá estado a referência à cidadania, a supressão dessa palavra possa começar a fomentar interpretações que não desejamos. Por outro lado, também me parece que o n.° 3 carece de sentido se não existir a menção da cidadania no n.° 1, ou seja, se não disser que a privação da cidadania e as restrições à capacidade civil só podem efectuar-se "nos casos e termos previstos na lei".

Tenho a impressão de que o melhor é deixarmos estar tal como está, para não estarmos em discussões um pouco inúteis, até porque isto não tem grande significado.

O Sr. Presidente: - Devo dizer que este problema é puramente técnico e que não se justificará atardarmo-nos com a sua discussão.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Exactamente!

O Sr. Presidente: - E sobretudo não se justificam questões filosóficas, visto que não estão em causa.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Já que estou no uso da palavra, referir-me-ei também à expressão "palavra", porque incluem aqui o direito à palavra. Se se inclui o direito à palavra, por que não incluir o direito à expressão pictórica e fílmica, à criação científica e cultural, ete? Ou vamos exprimir o pensamento por todas as formas pelas quais ele se exprime ou a palavra é apenas uma das formas dessa expressão.

Vozes.

O Sr. Presidente: - Depois discutiremos os vários pedidos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Eu estou esgotado! Risos.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Manuel Mendes.

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Sr. Presidente, esta proposta de alteração do PSD, suprimindo a expressão "cidadania", também se nos afigura inacolhível, pelas razões já enunciadas e, particularmente, pelas que passo a expor.

Pensamos que o n.° 3 do artigo 26.° tem uma relevância indiscutível e é particularmente importante para impedir que, salvo em situações extremamente apertadas, desde logo pela malha dos n.ºs 2 e 3 do artigo 18.° e por outras malhas apertadas que a lei possa vir a estabelecer, se proceda à exprobração ou à execução política de alguém - "execução" no sentido não pessoal da palavra - ou à retirada da cidadania seja a quem for. Não faria sentido que, mantendo-se o n.° 3 - e deve manter-se, por todas as razões conhecidas e por outras que nem é preciso arguir -, se retirasse agora do n.° 1 a expressão "cidadania".

As preocupações expressas relativamente ao estatuto da apatridia não me parecem relevantes nesta sede. A meu ver, as explicações dadas pelo Sr. Presidente, Rui Macheie, não conseguem, apesar de tudo, situar-se fora do terreno da tentativa de resolução por via normativa de um conflito do foro do direito internacional privado. Entendemos que a leitura da Constituição, integrada ou por si só, não permite, face ao que está expresso neste preceito, que se veja como vantajosa a proposta de alteração enunciada pelo PSD. Daí que estejamos, salvo novos argumentos mais convincentes, bastante fechados a acolhê-la.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, relativamente a esta intenção de supressão do direito à cidadania, parece-me que seria problemático se algures se consagrasse qualquer coisa como "a todos é reconhecida a cidadania", à semelhança de como atrás se reconhece, num conceito absoluto, a integridade física e moral. Não se trata disso, mas sim de um direito. E, como referiu o Sr. Deputado António Vitorino, um direito implica a existência de um substrato para como tal poder ser reconhecido.

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Seria, pois, a todos os títulos preocupante a supressão deste direito já constitucionalmente reconhecido, tanto mais que será sempre possível admitir que o reconhecimento do direito à identidade pessoal é, em grande medida, a consagração de uma identidade que o indivíduo tem consagrada na esfera das suas relações enquanto entidade privada, enquanto particular. E o direito à cidadania é também um direito de identidade na esfera das suas relações públicas, no âmbito da comunidade política. Assim, o direito à identidade é simultaneamente um direito à identidade no sentido das suas relações enquanto particular - e essa é a identidade pessoal - e um direito à identidade enquanto membro de uma comunidade política - e esse é o direito à cidadania, que também configura um direito pessoal.

São estas as razões que juntaria para manter esta nossa predisposição em não abandonar o reconhecimento do direito à cidadania.

O Sr. Presidente: - Mas V. Exa. mantém, dentro dessa tese, a interpretação do Sr. Deputado Almeida Santos no sentido de que se deve ler "a todos os portugueses são reconhecidos", não é assim?

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sem dúvida, Sr. Presidente, certamente que sim.

O Sr. Presidente: - Era só para nos entendermos, Sr. Deputado.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Quanto à questão do direito à palavra, talvez posteriormente ainda tenha algo a dizer.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Presidente, quero apenas referir - e aliás, o Sr. Deputado Jorge Lacão já o referiu - que a norma segundo a qual todos têm direito à cidadania não significa nem implica que a todos seja reconhecida a cidadania. Por consequência, a questão dos estrangeiros não é relevante nesta discussão.

O Sr. Presidente: - Como disse, isso só é exacto se interpretarmos a norma em termos de que "a todos os portugueses são reconhecidos". Desta forma, não tenho objecções a colocar. A minha objecção resulta - V. Exa. compreenderá - da circunstância de se considerar que esta norma á aplicável a todos. Se se aplica aos portugueses exclusivamente, a objecção e a contradição desaparecem.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Como não se reconhece a cidadania, mas o direito à cidadania, mesmo no caso dos estrangeiros, suponho que não fica prejudicado...

O Sr. Presidente: - Repare que os direitos fundamentais são direitos face ao Estado Português, pelo que isso não tem sentido, a não ser no do respeito da relação existente com Estados estrangeiros. Mas isso não é a mesma coisa e encontra-se noutras normas.

Percebi a explicação que o Sr. Deputado Almeida Santos deu para a norma, embora, na minha perspectiva, possa não a subscrever como interpretação mais razoável. Mas entendo-a, e nesse aspecto deixa de subsistir a contradição.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente quero dar uma contribuição útil numa vertente, que é a histórica.

Pura e simplesmente, creio que o PSD lavrou aqui num equívoco, o que pode acontecer a todos. nós. A intervenção do Sr. Presidente demonstrou-o exuberantemente e o debate ulterior mais ainda. A história do preceito, tal qual se encontra redigido, é simples de rastrear. A Constituição de 1976 estabelecia sucintamente, no seu artigo 33.° que "a todos é reconhecido o direito à identidade pessoal, ao bom nome e reputação e à reserva da intimidade da vida privada e familiar". Foi proposto, no âmbito da primeira revisão constitucional, designadamente pelo meu partido, que se incluíssem no elenco dos outros direitos pessoais alguns outros, nomeadamente o direito à cidadania, não porque o direito à cidadania inexistisse, uma vez que no n.° 4 do artigo 30.° se estabelecia exactamente que ninguém podia "ser privado, por motivos políticos, da cidadania portuguesa, da capacidade civil ou do nome", mas sim porque parecia correcto que, existindo essa proibição de privação, se desse a esses direitos a estrutura inequívoca do direito fundamenal. E assim foi feito, o que nos pareceu inteiramente correcto.

Sucede apenas que não tinha passado pela cabeça de ninguém, até essa data, embora isso possa naturalmente acontecer, que se pudesse alguma vez entender o direito à cidadania tal qual aparece aqui situado e definido, não como o nosso - "nosso" no sentido de "dos portugueses" - direito à Pátria, como o direito que temos enquanto membros da República Portuguesa tal qual é definida, competentemente, no artigo 1.° da Constituição, mas sim como uma espécie de direito a uma pátria concedido à universalidade dos homens do nosso planeta, isto é, como se a Constituição estabelecesse, através desta cláusula, uma espécie de obrigação por parte do Estado Português de espalhar e semear a cidadania portuguesa a quem a deseje ou possa recebê-la. Portanto, através deste preceito não se concede ao mundo inteiro um direito a ser português.

O Sr. Presidente: - Compreendo muito bem que essa interpretação seja lógica. A questão resulta apenas de que, em matéria de identidade pessoal, de capacidade civil, de bom nome e reputação, de imagem e de reserva da intimidade da vida privada e familiar, não existe qualquer razão para restringir aos cidadãos portugueses essa protecção. Assim sendo, razões de boa técnica aconselhavam a que se destrinçassem claramente dois universos que, se num caso não têm razão de ser em separado, noutro já a têm.

Mas já percebemos quais os motivos da divergência, não valendo a pena prolongar a discussão. E talvez V. Exa. tenha a benevolência de considerar que a observação feita não é, do ponto de vista jurídico, tão abstrusa como isso.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, a observação não será excessivamente abstrusa, até porque é formulada com alguns argumentos e alguma cópia de interrogações. Parece-me sim especiosa, porque

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é evidente que a Constituição, como se sabe, é aplicável aos estrangeiros. Mas a Constituição não está dividida, do estilo "risco ao meio" ou "agora aplicas-te aos Portugueses, agora aplicas-te aos estrangeiros". Ela utiliza fórmulas hábeis e complacentes e faz as distinções adequadas, se bem que não de forma evidenciável através de letreiros.

É óbvio que seria técnico-juridicamente possível tratar esta matéria num número autónomo que separasse a questão da cidadania e dissesse alguma coisa, que V. Exa. teria de formular (o que lhe deveria, seguramente, dar algum trabalho), no sentido de que todos - "todos os portugueses", presumiria V. Exa. - têm direito à cidadania, direito a ser portugueses. O legislador constituinte não o quis fazer e por isso disse o que disse, na sede própria, sobre a cidadania. Disse uma coisa muito flexível e limitou-se a predizer lá à frente...

O Sr. Presidente: - Foi preguiçoso!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, não foi preguiçoso, mas sim prudente, porque se limitou a dizer lá à frente o que é preciso dizer, ou seja, que ninguém pode ser privado da cidadania senão por mediação da lei, em casos tipificados e nunca com fundamento em motivos políticos. Foi isso o que o legislador quis dizer. Quanto a mim, foi prudente, e bem. Mas isso é a questão geral dos estrangeiros perante o nosso direito constitucional, que se lhes aplica em determinada medida, isto é, que se lhes aplica em toda a medida que não seja absolutamente incompatível com o facto de só nós, Portugueses, termos, digamos, uma determinada margem de tutela máxima.

Creio que fora disso não se justifica particularizar aquilo que é uma evidência, ou seja, que só os cidadãos são cidadãos, só os Portugueses são portugueses e, consequentemente, só quanto aos Portugueses se colocam as questões da cidadania portuguesa. Isto é perfeitamente óbvio, salvo se houvesse uma qualquer alteração em relação à tutela constitucional da cidadania. Ora, o PSD - e aí creio que o Sr. Deputado António Vitorino acertou 100% - vai ultra vires quando diz o que diz, porque verdadeiramente, tanto quanto me pareceu e fica abundantemente documentado, o PSD não quer reduzir a margem da tutela constitucional dos cidadãos quanto a esse direito fundamental e, designadamente, recuar um milímetro - para utilizar uma expressão que será cara ao PSD - em relação à questão da não privação da cidadania, designadamente por motivos políticos. Isso parece-me completamente líquido.

Assim sendo, e se a preocupação do PSD é a que o Sr. Presidente exprimiu, então sugiro que se tenha em atenção o que dispõe o artigo 33.°, uma vez que esse artigo resolve essa questão.

Em relação ao problema do direito a uma pátria, devo dizer que esse direito não existe. Aquilo que existe entre nós é uma responsabilidade do Estado Português em relação ao direito de asilo. Consequentemente, Portugal é pátria ou país de asilo, o que é honroso e positivo nos limites em que se contém constitucionalmente, resolvendo as interrogações que, ao que parece, afectam o PSD. Não somos é obrigados, constitucionalmente, a mais do que isso e, designadamente, a conceder a nossa cidadania a quem quer que seja. Essa é uma prerrogativa soberana da qual o Estado Português não pode abdicar, tendo por consequência que ninguém, a partir do disposto no artigo 26.°, pode bater à porta do Estado Português exigindo que lhe seja dada cidadania pela simples razão de que é dito na Constituição Portuguesa que todos têm direito à cidadania. Isso é completamente postergado pelo quadro constitucional.

Assim, creio que a preocupação do PSD assenta num enorme equívoco e numa falta de percepção ou de avaliação em termos mais apurados daquilo que é o saldo da própria primeira revisão constitucional.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, presumo que, se V. Exa. escrevesse o artigo de raiz, como bom jurista que é, não o escreveria assim.

Vamos, porém, deixar essa questão, que está já dilucidada e que não é apaixonante, passando à questão do direito à palavra dos cidadãos portugueses.

Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Sr. Presidente, gostaria de manifestar a minha simpatia pela solução e pela fórmula proposta quanto à ideia do direito à palavra, entendendo-a, naturalmente, não como direito de expressão - pois isso está tratado, mais adiante, no artigo 37.° -, mas como uma simplificação do direito à reserva da intimidade.

Gostaria ainda de referir que esta proposta tem consequências muito nítidas - e certamente que o Sr. Deputado Costa Andrade iria focar este ponto nesse âmbito - ao nível do processo penal, ou seja, que a palavra, enquanto transitoriedade de qualquer conversa, não pode ser usada para nenhum meio, mesmo judicial, uma vez que está na disponibilidade absoluta da pessoa. Este facto tem consequências a nível processual penal. E teve-as até num processo em que o Sr. Deputado Costa Andrade e eu próprio fomos parte, processo esse que teve decisão há pouco tempo no Supremo Tribunal de Justiça e que tem a ver com a nulidade das gravações como meio de prova, considerando-se que a palavra resultante de uma conversa privada não pode ser usada como prova, pois tem uma finalidade específica, que pode ser a conversa entre dois cadadãos. Por consequência, essa é uma exemplificação do direito à reserva da intimidade ou à não intromissão na vida privada, que, nesse sentido, creio que terá consequências jurisprudenciais, afirmando a consistência do direito ao sigilo.

Parece-me ser por isso uma situação de alargamento de um direito pessoal fundamental. E, nesse sentido, creio que ilidirá a tentação da jurisprudência de considerar que o direito à palavra pode ser ilidido por justa causa - o que não se sabe muito bem o que é em termos de Código Civil -, à margem do consentimento da pessoa.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, o direito à palavra é o homólogo, no que toca a uma dimensão da personalidade humana, do direito à imagem. O direito à imagem é o direito a não se ser fotografado contra a sua própria vontade, sendo o direito à palavra o direito a que a palavra não seja gravada contra a vontade do cidadão. Consequentemente, não se

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trata de qualquer direito à propriedade intelectual, mas sim do direito que as pessoas têm a que aquilo que dizem num determinado momento não seja guardado fora do ambiente em que decorreu e venha amanhã a ser oposto à pessoa, num contexto e com interlocutores diferentes, contra sua vontade. É aquilo a que a doutrina alemã chama "direito à transitoriedade da palavra", pois o que é dito no momento é para valer apenas nesse momento, salvo se a pessoa consentir que a expressão da sua palavra seja guardada e utilizada depois.

Penso que o fundamental será dizer qual o interesse presente nesta proposta, interesse esse que, por um lado, tem um carácter eminentemente pessoal, nos termos que acabo de enunciar, e, por outro, é também - e hoje fala-se cada vez mais da dimensão objectiva dos chamados "direitos da personalidade" - um direito àquilo que os leitores mais atentos do que é dito, a nível de alguma reflexão marxista sobre a sociedade moderna, designadamente por Habermas, conhecem como direito a uma comunicação sem coerção. Se sobre todos nós impendesse a possibilidade de a nossa expressão ser gravada, a comunicação entre as pessoas seria extremamente prejudicada na sua autenticidade, pureza e inocência.

Penso que, por consequência, e do ponto de vista técnico, este direito é o correlato do direito à imagem. O direito à imagem é, como já referi, o direito a não se ser fotografado contra a sua vontade, sendo o direito à palavra o que acabei de referir, independentemente do seu conteúdo. Não se trata apenas de dizer, como alguma jurisprudência do Supremo Tribunal tem entendido, que está apenas tutelada aquela palavra que contende com a reserva da vida privada, mas também que, seja qual for o conteúdo da expressão, as palavras das pessoas não poderão ser gravadas contra a sua vontade.

É certo que as nossas palavras estão neste momento a ser gravadas aqui, mas também é certo que para esse fim demos o nosso consentimento. Caso contrário, a nossa palavra não deveria ser gravada.

De resto, chamo a tenção dos Srs. Deputados para o facto de que, consagre-se ou não este direito, uma boa interpretação da Constituição extraí-lo-á sempre. Os alemães extraíram-no, não o tendo na sua Constituição, e a possibilidade que temos de rever a lei fundamental com frequência extrai este direito como uma expressão da dignidade humana. Penso que tal direito decorre do processo geral de emancipação dos direitos da pessoa a partir da honra, pois, partindo-se daí, afirmou-se depois, com um conteúdo próprio, o direito à intimidade, do qual se autonomiza o direito à palavra, que é um direito diferente, porque vale seja qual for o conteúdo das expressões. Consequentemente, este direito vale em relação à palavra que contende não apenas com a privacidade ou a intimidade, mas também com o direito à palavra tout court.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Aprovo inteiramente o espírito desta proposta.

É certo que sou um ignorante de direito. Mas afigura-se-me que a Constituição deve ser suficientemente clara e duvido de que tudo aquilo que foi dito

pelos Srs. Deputados Alberto Martins e Costa Andrade fique suficientemente explícito através da inclusão neste artigo da expressão "à palavra". Por consequência, afigura-se-me que aquilo que VV. Exas. querem criar - e bem - é um novo direito e que este deve ser explicado de uma maneira suficientemente perceptível em artigo autónomo da Constituição. Doutro modo, afigura-se-me que a Constituição pode de algum modo tornar-se menos perceptível.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Deputado, nunca fica mais indefinido ou mais impreciso do que o direito à imagem. É precisamente o correlato.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Mas supunha eu, até há momentos, quando o ouvi, que o direito à imagem era mais do que o direito de não se ser fotografado contra vontade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - É a sua dimensão principal, mas é natural que tenha outras.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Penso que é mais do que isso.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Como por exemplo?

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - É o direito de não ter a sua imagem desfigurada.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Não, isso é o direito ao bom nome ou à honra. É dou-lhe a definição do Sr. Dr. Orlando de Carvalho: "A imagem é o direito do retrato."

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Mas não entro na definição do direito à imagem.

O Sr. José Magalhães (PCP): - É o direito ao vídeo.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Exacto, e ao cinema.

O Sr. Presidente: - É a imagem estático-dinâmica.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Mas, independentemente do que se entenda por direito à imagem, sugiro que os Srs. Deputados que intervieram e apresentaram uma boa proposta a formulem em termos de que esta possa valer de forma mais clara para quem leia a Constituição. Por outro lado, e embora a Constituição não tenha carácter pedagógico, entendo que pelo menos a parte relativa aos direitos fundamentais o tem. E mais: deveria ser ensinada nas escolas e não apenas nas faculdades de Direito.

O Sr. Presidente: - Concordo com V. Exa. em que a Constituição deva ter uma função pedagógica. Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Presidente, sempre que se fala nos direitos da personalidade aparece o direito à imagem. É um dos direitos clássicos, mas talvez só modernamente se pensou em equiparar a palavra à imagem. Não tenho direito a outra coisa que

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não seja a não reprodução da minha imagem. Compreendo que fique escrito que tenho o direito à não reprodução autorizada da minha palavra, mas isso é capaz de ter consequências para lá do que desejamos. No entanto, se referíssemos a expressão "registo não autorizado" - e depois se veria a melhor redacção dessa ideia -, julgo que a proposta teria alguma virtualidade.

Parece-me que o problema estará na forma de redigir esta ideia, embora a fórmula proposta tenha a justificação que lhe encontrou o Sr. Deputado Costa Andrade, ou seja, a de que o direito à palavra é paralelo ao da imagem, sendo também este o da não reprodução da mesma imagem, apesar de estar escrito apenas "direito à imagem". É que não existe um direito à imagem. Ando pela rua, toda a gente vê a minha imagem e contra isso não posso fazer nada. Se passar na rua e encontrar um ou dois amigos que estão a falar, a "corneta" ouviu e ninguém me poderá impedir de reproduzir o que ouvi.

Penso que o problema é o da reprodução ou retenção mecânica da palavra e o da sua utilização posterior. Só que, sendo esse, refira-se isso mesmo, se acham que tem justificação suficiente - e não sou contra -, encontrando-se uma expressão adequada, embora isso não seja fácil.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Para além desta, não tenho outra, Sr. Deputado.

O Sr. Almeida Santos (PS): - É que apenas esta expressão "o direito à palavra" dá origem a interpretações terríveis. No mínimo, deveríamos referir "o direito a imagem e à palavra", juntando as duas, para que se veja tratar-se de uma unidade. É que assim já se percebe existir um paralelismo entre os dois direitos.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Parece-me que essa será uma boa fórmula. Permito-me apenas chamar a atenção para o facto de este direito já existir no Código Penal, ou seja, de que, se nos gravarem a palavra contra a nossa vontade, comete um crime. No fundo, é disso que se trata neste caso concreto.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Mas, se ficar a expressão "o direito à imagem e à palavra", já se perceberá tratar-se de um paralelismo de dois valores no mesmo plano, no mesmo pé.

O Sr. Presidente: - De acordo, Srs. Deputados.

Esclarecido que está este assunto, poderíamos passar à proposta de alteração do n.° 1 apresentada pelo PEV, que muda para o plural a expressão "da intimidade" (suponho que o seu intuito é meramente gramatical) e adita também a expressão "e à livre expressão de todas as diferenças", o que motiva a eliminação da conjunção coordenativa copulativa "e" antes da expressão "à reserva".

O Sr. Deputado José Magalhães quer explicar as diferenças das "intimidades"?

Pausa.

Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. José Magalhães (PCP): - O Sr. Presidente acabou de fazer um injunção restritiva, uma vez que, como se sabe, as diferenças se exprimem na intimidade e fora dela.

Risos.

Creio que, no fundo, esta proposta de aditamento do PEV refere, relativamente ao n.° 1, um outro direito e, em relação ao n.° 2, uma preocupação de protecção de minorias, sem especificar, aliás, qual o tipo dessas minorias, o que quer dizer que não se exclui o facto de ficarem todas abrangidas. Este tipo de preocupação parece-nos evidente e creio que se poderá discutir em que medida é que a Constituição não salvaguarda precisamente isto. Ou seja, se há coisa que seja típica da ordem constitucional dos direitos fundamentais é precisamente a salvaguarda da livre expressão de todas as diferenças, o que tem as projecções mais diversas, tanto no que diz respeito aos aspectos pessoais no sentido restrito e típico, como em relação aos aspectos laborais em que a preocupação pelas diversas diferenças também se exprime, incluindo os de carácter político e de cidadania, isto é, a intervenção organizada ou não na comunidade política.

O que pergunto é por que é tão perturbadora a adição que é proposta. E nesse sentido a reacção hilariante que se ouviu por parte de alguns dos Srs. Deputados parece-me curiosa - e não estou a censurá-la, porque têm o direito a essa diferença. Aparentemente, dir-se-ia que esta proposta é uma espécie de aditamento libertário ou tem uma conotação oriunda de movimentos de libertação um pouco à anos sessenta ou à flower people à São Francisco. Ora não é isso. E, mesmo que o fosse, seria legítima, pois, parece-me ser uma tentativa de incorporar, com uma fórmula que é hábil e rica, embora se possa encontrar melhor, aquilo que já é um elemento profundamente constitucional. E talvez seja essa a única crítica que se lhe pode fazer, ou seja, que isto é profundamente constitucional e que a Constituição não passa da garantia disso mesmo em todos os planos, sendo o plano eleitoral também uma garantia disso.

Quanto ao n.° 4 proposto pelo PEV, note-se que é evidente que poderemos ter uma Constituição pensada para as maiorias, sendo isso legítimo, embora pouco, porque as maiorias não devem esmagar os cidadãos e as pessoas, nas suas diversas dimensões, nem impedir a livre expressão e as várias manifestações dos vários tipos de minorias possíveis, que muitas são as imagináveis. Neste caso concreto, as minorias, salvo as que sejam anticonstitucionais, no sentido exacto em que se ergam, pela forma que também está constitucionalmente prevista, contra a, ordem constitucional e não apenas, seguramente, por delito de pensamento, têm direito à existência e à manifestação. Daí a preocupação de crítica, expurgação ou postergação de fenómenos negativos como a perseguição e até a alusão, que pode ser considerada apenas um pouco ternurenta, à aproximação e tolerância. Mas suponho que isso não chocará alguns dos Srs. Deputados, em especial alguns dos que se reclamam de maneiras especialmente personalistas.

Por outro lado, a alusão à eliminação de quaisquer formas de discriminação só deve tocar profundamente a alma dos Srs. Deputados que andarem e terçar armas pelas "pessoas" (há horas atrás apaixonaram-se

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pela mudança do inciso "cidadãos" para o inciso "pessoa"), pois suponho que agora têm razão para uma paixão muito mais funda e muito maior.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Tenho receio de que o Sr. Deputado José Magalhães venha a ter dissabores com este abandono das teses igualitárias.

Vou, a brincar, apresentar-lhe uma caricatura. Dois jovens músicos de uma orquestra moderna dizem: "Somos pederastas e livremente queremos exprimir a nossa diferença amando-nos no Rossio." Cuidado! O direito à diferença está certo, mas será que o está a livre expressão - "livre" - de todas as diferenças? É que assim o Sr. Deputado António Vitorino poderia dizer: "Eu gosto de carne humana, pelo que vou comer o meu semelhante."

O Sr. António Vitorino (PS): - Os canibais são uma minoria não anticonstitucional. A título meramente jocoso, diria que não há nada na Constituição que expressamente proíba que se coma carne humana!...

O Sr. Almeida Santos (PS): - Nem a pederastia nem nada disso. Cuidado com isso!

Vozes.

O Sr. Presidente: - Antes de V. Exa. responder, de uma maneira menos caricatural, gostaria de referir que, como sabe, o princípio da igualdade tal como se encontra consignado no artigo 13.° não só refere que "todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei", como, no n.° 2, acrescenta de forma pormenorizada que ninguém pode ser privilegiado pelos factos depois enumerados.

Tenho as maiores dúvidas sobre a questão, pois VV. Exas. têm vindo a ser extremamente conservadores quando se coloca qualquer problema de alteração dos preceitos em matéria de direitos fundamentais, invocando que a estabilização e o esteamento, como diz o seu colega José Manuel Mendes frequentes vezes, não aconselha a que se introduzam modificações - isto obviamente por razões de prudência. Pelo mesmo tipo de razões, penso que - e isto não é contestar o direito à propositura de alterações por parte de qualquer dos Srs. Deputados - não é isso o que está em causa nem há vantagem em introduzir estas alterações que aqui são propostas. A menos que V. Exa. considere que hoje na Constituição o problema da discriminação não se encontra proibido, que dentro dos preceitos constitucionais aprovados não é possível exprimir livremente, como, aliás, reconheceu há pouco, o direito a ser diverso e a usar da sua liberdade e que, finalmente, não estão devidamente salvaguardadas as ideias da tolerância e da protecção das minorias.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, devo dizer, em primeiro lugar, que a proposta não é nossa. Nós, Grupo Parlamentar Comunista, não sentimos a necessidade de apresentar um aperfeiçoamento da Constituição. O nosso projecto de revisão constitucional regeu-se por um princípio de economia, pelo que, mesmo em situações em que os aperfeiçoamentos poderiam ser eventualmente úteis, não os apresentámos todos, e, seguramente, procurámos não apresentar nenhum inútil e menos ainda pernicioso.

Parece-nos, no entanto, que será possível ou pelo menos não será eminentemente censurável que se procure dilucidar alguma eventual dúvida sobre os limites e dimensões do princípio da igualdade e, logo, da margem de discriminação consentível dentro do quadro decorrente, designadamente, do artigo 13.° Julgo que algumas das hipóteses figuradas são verdadeiramente impensáveis face ao direito constitucional tal qual ele é. E os canibais portugueses estão numa "fria", constitucionalmente não têm a mínima chance, constitucionalmente estão completamente postergados. Canibais serão, mas estão completamente à margem da ordem constitucional, não podem invocar a seu favor coisa nenhuma e têm tudo contra si, incluindo o famoso direito da pessoa humana a não ser comida - se bem me entendem.

Risos.

Isto leva-me à questão fulgurante colocada pelo Sr. Deputado Almeida Santos. A questão do Sr. Deputado Almeida Santos quanto à problemática das cenas no Rossio é também igualmente susceptível do adequado tratamento penal. Como sabe, o novo Código Penal, nessa matéria, entre adultos consentidores é, como se costuma dizer, extremamente livre.

O Sr. Almeida Santos (PS): - O problema é o da inconstitucionalidade do Código Penal por esta alteração.

O Sr. José Magalhães (PCP): - O Código Penal não seria inconstitucionalizado por esta alteração, tal como as disposições penais em matéria de liberdade de expressão não são inconstitucionalizadas pelo facto de termos um artigo que reza, numa formulação felicíssima que "todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente" - eis a palavra tórrida que provocava os tais receios de efusões excessivas do Sr. Deputado Almeida Santos! - "o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio [...]". Nunca ninguém viu aqui o direito de ir exprimir no Rossio, de forma desbragada e contrária ao direito penal, todas as coisas que não se dizem em palavras quanto mais em actos.

Risos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Só que a Constituição também diz quais as excepções sujeitas às extensões do direito penal.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não diz, Sr. Deputado Almeida Santos. O preceito diz precisamente que "todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações". Não diz mais nada.

O Sr. Almeida Santos (PS): - E a seguir?

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O Sr. José Magalhães (PCP): - A seguir agravam-se as coisas na sua óptica, porque se diz que "o exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura".

O Sr. Almeida Santos (PS): - E agora a seguir?

O Sr. José Magalhães (PCP): - E a seguir diz-se: "As infracções cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal [...]"

O Sr. Almeida Santos (PS): - Ora vê!

O Sr. José Magalhães (PCP): - É que não é uma cláusula a autorizar que haja infracções, mas sim uma cláusula a garantir que, no caso de haver infracções, elas sejam submetidas aos princípios gerais de direito criminal. Isto porque, obviamente, se pretendeu pôr ponto final nos regimes e processos especiais do fascismo, sendo a sua apreciação da competência dos tribunais judiciais, e acabar com os tribunais especiais para os delitos de espírito cometidos através da imprensa, etc.

O Sr. Almeida Santos (PS): - E o Código Penal tem cerca de vinte e tal infracções susceptíveis de ser cometidas pela expressão do pensamento.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto. Creio que obviamente as vossas dúvidas se podem suscitar.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Acho que cada vez que Os Verdes tiverem um texto para defender podem ir-se embora, pois o meu amigo foi brilhantíssimo e não sei se eles seriam mais brilhantes.

Risos.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, suponho que esta matéria está dilucidada. Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Presidente, afigura-se-me que esta proposta do Partido Ecologista Os Verdes é infeliz, embora tenha sido defendida com muito brilhantismo pelo Sr. Deputado José Magalhães. Afigura-se-me que ela é imprecisa, repetitiva e literariamente ingénua e que até contém formulações filosóficas, como, por exemplo, essa de fomentar a aproximação e a tolerância. Na verdade, penso que os personalistas terão dificuldade em recusar isto. Mas eu, quero retirar a filosofia da Constituição ou reduzi-la ao mínimo indispensável, tenho toda a facilidade em rejeitar esta formulação.

Ia perguntar ao Sr. Deputado José Magalhães o que é que isto acrescenta, mas penso que tal já foi discutido.

O Sr. José Magalhães (PCP): - As minorias?

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Não, Sr. Deputado. Queria perguntar-lhe o que em rigor isso acrescenta. Porque pode dar-se o caso de considerarmos esta proposta inadequada para figurar no texto da Constituição, mas decorrer daqui alguma norma precisa que possa ser inserida no lugar próprio.

Esta, porém, não é uma pergunta que possa ser colocada a V. Exa., sendo sim uma pergunta para o Partido Os Verdes.

O Sr. Presidente: - Naturalmente.

Vamos então passar ao artigo 27.°, sobre o qual há propostas de alteração apresentadas pelo CDS, pelo PCP, pelo PS, pelo PSD e pelo PRD.

Suponho que talvez pudéssemos pedir aos proponentes que estão presentes uma apresentação sucinta das respectivas propostas.

O Sr. António Vitoríno (PS): - Sugiro que se analise número por número e alínea por alínea.

O Sr. Presidente: - Sim, talvez seja preferível analisar número por número e alínea por alínea, até porque, tanto quanto me apercebo, a alínea a) do n.° 3 é aquela que começa por suscitar, aliás por razões de ordem técnica, problemas. Propõem alterações à alínea a) do n.° 3 o PS, o PSD e o PRD. Suponho que todas elas, pelo mesmo tipo de razões, são resultantes da alteração em matéria de penas e medidas das penas.

Em todo o caso, o PSD e o PRD têm propostas iguais, pelo que talvez fosse preferível começar pela do PS.

Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Quero, em primeiro lugar, transmitir uma posição pessoal nesta matéria. Diria, portanto, expressamente que não é uma posição da bancada, mas sim uma posição meramente pessoal.

Sempre tive alguma incompreensão face ao largar de uma certa tradição nossa, cujo ritmo, a partir da Constituição de 1976, se perdeu - e vou explicar porquê. A meu ver, a forma mais coerente e mais sólida de tratar desta problemática da prisão preventiva, para além da do flagrante delito, é a enunciação dos tipos de crime que permitem a prisão preventiva, mesmo que não seja em flagrante delito. E essa a nossa tradição, era essa a solução da Constituição de 1911, era essa até - sublinho o "até" - a solução da Constituição de 1933 até à revisão que sofreu nos últimos anos do regime passado e é, essa a meu ver, a única que mereceria ser constitucionalizada. Porquê? Porque ela retira das mãos dos altos e baixos do poder, através da medida da pena, o poder de avançar ou retroceder em relação ao problema da prisão preventiva. Se houver uma especificação dos tipos de crime e só quanto a esses tipos de crime houver a possibilidade de prisão preventiva, retirar-se-á ao legislar ordinário uma arma que com este tipo de fundamentação ele continua a ter. Basta-lhe, para determinado crime, aumentar a pena para imediatamente passar a haver, nos dos termos da Constituição, a possibilidade de prisão preventiva fora do caso de flagrante delito.

Quero deixar aqui a minha lástima por mais uma vez irmos, certamente, perder esta hipótese de avançar um passo muito importante nesta matéria.

A Constituição de 1933, até à revisão, dizia, no § 3.° do artigo 8.°, que era "autorizada a prisão sem culpa formada", enunciando depois os vários crimes em que isso era possível, tendo à cabeça obviamente os crimes contra a segurança do Estado. Não estou, obviamente, a fazer a defesa da Constituição de 1933, mas apenas

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a pretender defender e alicerçar a minha tese numa certa tradição portuguesa, a que a própria Constituição de 1933 não fugiu até à última revisão que sofreu.

A não ser assim, apenas tivemos dúvidas - e trata-se de um problema relativamente ao qual ainda mantenho algumas dúvidas - quanto ao facto de adoptarmos uma redacção do tipo da proposta pelo PSD ou pelo PRD, visto ser óbvio que hoje teríamos de afastar do nosso horizonte o conceito de pena maior, desde logo pela razão evidente de ele ter deixado de fazer parte do Código Penal. Por outro lado, e se essa razão não existisse, diria que o conceito de pena maior é um conceito ao arrepio das modernas tendências da criminologia e das ciências criminais, visto que "pena maior" (como era conhecido) significava uma pena em que a pessoa seu objecto não tem capacidade de se ressocializar, etc., contrariamente à pena correccional, que era uma pena imposta no sentido de corrigir essa mesma pessoa. O conceito de pena maior era - digamos - um conceito infamante. Teríamos, portanto, de qualquer modo, de o tirar, não fora o caso de a nossa reforma penal ter abandonado esse conceito.

Restava-me a dúvida, que ainda hoje mantenho, de irmos ou não para uma solução como a nossa, que é a de manter um limite máximo, sabido como é que hoje nas penas de prisão até seis meses - é a tendência recebida no nosso Código Penal - não há prisão por multa. Temi que, dado que hoje, na nossa penalogia, as diferenças entre a pena mínima e a pena máxima são muito grandes, pudesse existir alguma pena de prisão de seis meses a quatro anos ou menos de três meses a quatro anos. A hipótese que configurámos na alínea a) é - devo desde já confessar - um pouco abstrusa; é talvez um medo irracional, mas também uma dúvida que mantenho. Não faço dela um ponto de honra e poderei até subscrever qualquer das outras duas propostas, fazendo corresponder à pena maior a pena de prisão superior a três anos.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Deputado Vera Jardim, estou de acordo com a sua doutrina em relação à primeira parte da sua exposição. Qual é a dificuldade de acolher o seu ponto de vista?

O Sr. Vera Jardim (PS): - Defendi o meu ponto de vista e mantenho-o, mas gostaria de ouvir os outros Srs. Deputados criticar ou não este limite mínimo e este limite máximo.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Referia-me à parte inicial relativa à fidelidade à tradição constitucional portuguesa.

O Sr. Vera Jardim (PS): - A dificuldade que se aponta é a de elencar os crimes. Entendo que não haveria dificuldade nisso. Como disse, tais crimes vinham elencados na Constituição de 1911 e continuaram elencados, até certa altura, na Constituição de 1933. E sempre fiquei com a pedra no sapato quanto à razão pela qual a partir da Constituição de 1976 se acabou e se rompeu esta tradição, que é, efectivamente, a tradição que mais defende os direitos das pessoas. Sobre isso não podemos ter qualquer dúvida.

Vi há pouco o Sr. Deputado Costa Andrade a acenar afirmativamente com a cabeça, pelo que espero ter sido claro a demonstrar a sua concordância com aquilo que acabei de dizer e talvez não com a solução, por outras razões.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - É efectivamente verdade que a solução da tese que o Sr. Deputado defende seria indubitavelmente a melhor. E confesso que não sei por que é que se mudou.

Quando comecei a entrar nestas coisas já tínhamos este lastro de rotina histórica e a ideia de pena maior. Não sei por que é que se terá mudado, mas talvez isso tenha acontecido por várias razões, inclusivamente devido à ideia de que com a transposição do Estado liberal - "liberal" no sentido de não intervencionista na economia - para o Estado moderno os códigos penais estavam em permanente fase de enchimento. Anteriormente era extramamente fácil trabalhar o direito penal, que foi durante séculos relativamente estável. O número de crimes foi durante muito tempo, pelo menos a partir do iluminismo, relativamente estável.

O Sr. Vera Jardim (PS): - As penas são ainda menos estáveis.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Exacto, eram os crimes contra a economia, os crimes contra a saúde, os crimes contra o ambiente e os crimes contra não sei o quê. Essa técnica de elencagem, que era - e penso que nisto ninguém estará em desacordo - a técnica mais rigorosa e mais correcta, deve ter-se tornado tecnicamente impossível. Já herdámos isso em 1976 e mantivemo-nos na linha do que vinha na Constituição de 1933 modificada.

Neste momento, o problema que se coloca é o de se substituir a expressão "pena maior" por uma equivalente na actual dosimetria penal. Parece-me - e também tenho algumas dúvidas, pois estas coisas são muito de "mais ou menos", não havendo coisas absolutas - que a fórmula correcta deve ser aquela que o PSD utiliza, aliás à semelhança do que faz o PRD. Isto porque, em toda a estrutura penal, a gravidade e a classificação dos crimes são sempre feitas pela pena máxima. É por aí que as coisas se aferem, até porque no novo sistema que temos as penas mínimas são sempre relativamente reduzidas, a fim de se dar ao juiz outras possibilidades. Actualmente o que manda é a pena máxima.

O Sr. António Vitorino (PS): - A lei que integra o conceito de pena maior define actualmente...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Actualmente não há pena maior.

O Sr. António Vitorino (PS): - A lei feita pela Assembleia da República, que manda fazer a equiparação a pena maior, não a define apenas pelo máximo, mas sim pelo máximo e pelo mínimo.

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O Sr. Costa Andrade (PSD): - Exacto. Do meu ponto de vista, isso não é inteiramente correcto, mas...

O Sr. António Vitorino (PS): - Eu não disse que é correcto, mas que na prática acontece isso.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Exactamente. Há uma certa inadequação dessa lei.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Gostaria de dizer, em conclusão da minha intervenção de há pouco, que nesta matéria - e naturalmente que hoje não vamos chegar a uma conclusão - vamos continuar a pensar...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - E, sobretudo, a consultar os especialistas. Contudo, as propostas apresentadas pelo PSD e pelo PRD têm desde logo a vantagem de estar de acordo com o direito processual vigente, que, segundo penso, não cria problemas neste momento. Penso que hoje não há um problema constitucional nesta matéria, até porque o Código de Processo Penal que temos é extremamente generoso no que toca à luta contra a prisão preventiva.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Com poucos resultados, Sr. Deputado.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - A culpa não é do legislador nem da lei,

Se adoptássemos a posição do PS, inconstitucionalizaríamos o artigo 202.° do Código de Processo Penal. Em contactos com pessoas mais experientes, foi-me aconselhada a manutenção desta formulação, pelo que penso ser ela, do ponto de vista técnico, a mais adequada.

O Sr. Presidente: - Antes de continuar o debate desta matéria, e visto que houve duas apresentações, gostava de colocar uma questão para ponderação de VV. Exas.

É que, na hipótese de eventualmente se vir a considerar que seria mais útil o elencar dos diversos crimes, como foi sugerido na intervenção feita, nessa parte a título pessoal, pelo Sr. Deputado Vera Jardim, teríamos de analisar a possibilidade de o fazermos neste momento, isto é a questão de saber, se está dentro da latitude de poderes que cabem à Assembleia da República, após a apresentação dos projectos, o proceder a essa reunião. Não estou a dizer, de uma forma liminar, que isso não seja possível, na medida em que poderemos admitir que há uma forma de remissão, tal como é utilizada para um conjunto de crimes que são susceptíveis de ser neste momento elencados.

Por conseguinte, poderá substituir-se essa forma técnica pela referência concreta a um universo de crimes.

Em todo o caso, o problema não é tão líquido como à primeira vista poderia parecer. Se, portanto, os Srs. Deputados vierem a consignar uma eventual proposta com uma solução de outro tipo, gostaria que VV. Exas. tivessem isso em atenção nas vossas considerações e, sobretudo, nos vossos votos.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, estamos disponíveis para participar nesse trabalho de reflexão. Creio que esta é a altura precisa para pôr uma pedra em cima da polémica infindável, que tem a sua expressão própria nas instâncias judiciais, incluindo no Tribunal Constitucional, em torno da questão do que seja a pena maior.

Como tem sido sublinhado pela doutrina, a revisão constitucional de 1982 não pode, apesar de terem sido feitos alguns esforços, dar um contributo decisivo ou, pelo menos, totalmente clarificador para o encerrar desta questão. A noção de pena maior que estava vigente à data da revisão constitucional veio a ser alterada com a entrada em vigor do novo Código Penal. A complexa polémica que daí resultou está resumida em várias instâncias importantes, pelo que me dispenso de a reproduzir. O Decreto-Lei n.° 402/82, ao definir concretamente a prisão maior, lançou verdadeiras chamas e causou situações melindrosas.

Na altura do Govêrno do bloco central, a Assembleia da República procurou corrigir essa situação aprovando uma lei que precisamente definiu, como o Sr. Deputado António Vitorino há pouco recordava, a noção de pena maior para todos os efeitos. Os trabalhos preparatórios dessa lei foram particularmente cuidadosos e encontram-se publicados na 2.a série do Diário da Assembleia da República, embora, porventura, estejam perdidos, porque só raramente são referidos nos debates correntes sobre esta matéria.

Nessa altura houve a preocupação de elaborar um relatório circunstanciado e acompanhado, de resto, de uma tabela das penas do Código Penal, com os limites máximo e mínimo. Essa tabela foi considerada artigo a artigo, caso a caso, e esteve na base da opção que veio finalmente a ser consagrada e, aliás, aprovada por unanimidade. Tive ocasião de elaborar esse texto com a Sra. Deputada Margarida Salema. A preocupação foi a de evitar - o que também foi discutido com o Ministério da Justiça - algumas das implicações perversas da não definição de um limite mínimo.

É unicamente para esse aspecto que alerto, porque, dadas as características do nosso Código Penal, a omissão de um limite mínimo pode vir a implicar a absoluta impossibilidade de prisão preventiva em relação a certos crimes cujo limite mínimo é, aberrantemente, muito baixo, isto é, relativamente àqueles casos estranhíssimos existentes entre nós, mas que, pelos vistos, ninguém corrige ou que, pelo menos, nenhuma maioria corrigiu até agora, embora seja uma questão incessantemente colocada, em que há limites mínimos baixíssimos com limites máximos altíssimos. Isto acontece, mas há duas formas de resolver este problema: ou corrige-se o Código Penal ou então acautela-se que nas hipóteses de grande gravidade (é a questão da gravidade dos crimes que historicamente e no direito em vigor preside a todo este instituto) a prisão preventiva fora de flagrante delito é impossível, o que ninguém aceita.

Isto conduz-nos à questão inicialmente colocada pelo Sr. Deputado Vera Jardim: é feliz a tentativa de procurar fazer a definição dos casos em que a prisão preventiva fora de flagrante delito é admitida através do elenco dos tipos criminais? Devo dizer que vamos estudar essa questão e que não estou em condições de responder com um "não" determinante. Parece-me extremamente difícil que isso seja uma démarche com

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êxito. A démarche da Constituição de 1933 não era nada feliz; pelo contrário, era especiosa, vácua e propositadamente indeterminada e remetia para categorias conceptuais com contornos perfeitamente nebulosos.

Mais: se folhearmos o nosso Código Penal veremos imediatamente para que inferno seremos remetidos se recorrermos apenas às grandes categorias. É óbvio que admito a prisão preventiva no caso dos crimes contra a humanidade. Mas o que é que isto define? Folheando o Código Penal vamos escolhendo os crimes de especial gravidade e das duas uma: ou somos muito precisos e, a certa altura, estamos quase a enumerar epígrafes de artigos - e ainda aí não estaremos a enumerar conteúdos, porque o legislador é libérrimo - ou então utilizamos um outro critério, que é o das penas. Só que, como o Sr. Deputado Costa Andrade há pouco situava, as penas estão na disponibilidade do legislador. Elas deveriam ser estabelecidas considerando uma bateria brutal de requisitos, mas estão na mão do legislador. O legislador foi o que foi no Código Penal em vigor, que tem distorções que são reconhecidas generalizadamente, designadamente em certos crimes contra as pessoas e, muito em particular, nos crimes contra as mulheres, concretamente em relação a certos crimes sexuais como o da violação, embora o Sr. Deputado Costa Andrade tenha alguma aversão a este crime e não seja o pai de algumas posições que considero mais correctas e avançadas.

Se assim o fizéssemos, entraríamos num labirinto inextricável, porque não definiríamos coisa nenhuma.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Dá-me licença que o interrompa, Sr. Deputado?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Deputado, não faço a defesa da Constituição de 1933, mas penso que a crítica que V. Exa. fez quanto a uma demasiada generalidade ou abstracção da Constituição de 1933 não acerta no alvo. A Constituição de 1933 dizia, no seu artigo 8.°, § 3.°, o seguinte:

É autorizada a prisão sem culpa formada, em flagrante delito e nos seguintes crimes consumados, frustrados ou tentados: contra a segurança do Estado; falsificação de moedas, notas de banco e títulos da dívida pública; homicídio voluntário; furto doméstico ou roubo; furto, burla ou abuso de confiança, praticados por um reincidente; falência fraudulenta; fogo posto; fabrico, detenção ou emprego de bombas explosivas e outros engenhos semelhantes.

Era, apesar de tudo, extremamente clara a sua exposição, não com uma remissão pura e simples, mas com uma remissão para categorias idênticas do Código Penal da altura.

Penso, pois, que essa sua crítica não é correcta. A Constituição de 1933 merece todas as nossas críticas, mas talvez não esta.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, deixo de fora toda a questão política e ideológica e vou apenas discutir a questão técnica de saber qual a melhor via para limitar os casos em que a prisão preventiva fora de flagrante delito seja admissível.

No caso da Constituição de 1933, essa questão não é apenas discutível em termos técnico-jurídicos. E não o é porque estávamos a remeter para coisas que a lei ordinária negava constantemente e a prática tripudiava sobre a lei ordinária e que eram, obviamente, objecto de todas as práticas que se conhecem. A discussão é, porém, meramente técnica. A propósito, aliás, da revisão de 1971, há um longo parecer da Câmara Corporativa sobre essa questão e também as doutas observações do Sr. Dr. Rui Machete, nas lições com o Dr. Miguel Galvão Teles, sobre a revisão de 1971, em que todo este quadro é abordado.

Independentemente de tudo isso, a questão de saber se hoje teremos condições para, face ao nosso quadro constitucional penal e processual penal, encontrar uma técnica que utilize a via da medida da pena para identificar os casos de gravidade em que a prisão preventiva fora de flagrante delito seja admissível deparar-se com dificuldades inextricáveis. De resto, poderemos aproveitar a pausa dos nossos trabalhos durante o fim de semana para tentar fazer o elenco que, a partir das categorias em vigor no Código Penal, procure refazer a definição de um universo de crimes de particular gravidade. Iremos chegar talvez à sensação penosa de que estamos a deixar de fora coisas que hoje, face à consciência jurídico-criminal, são seguramente de maior gravidade do que o furto doméstico, mas que nos repugna incluir, bem como à sensação de que estamos a deixar de fora outras igualmente importantes.

Ora, isso não acontecerá se dissermos que se aplica aos crimes cuja pena de prisão tenha como limite mínimo "tal" e como limite máximo "tal". Isto pela simples razão de que sempre ficará tudo nas mãos do legislador e apenas haverá limites "principiológicos", que seja o princípio da gravidade e de todos os outros que se relacionam com este artigo, mas só isso e não mais do que isso.

Alerto-vos de novo para o aspecto do limite mínimo, que pesou fortemente nos trabalhos de definição legislativa a que há pouco aludi, e para a questão eminentemente prática, que, na altura, foi particularmente escandalosa, da chamada Setúbal connection, que hoje está viva na Aveiro connection e em todas as outras connections. É que das duas uma: ou alteramos o Código Penal e acabamos com isto ou não devemos abrir na via constitucional uma solução que inconstitucionaliza, de forma perfeitamente nítida, essa lei em vigor. Como sabem, o II Congresso dos Advogados Portugueses, realizado há alguns meses, considerou inconstitucional a lei, em vigor, que define o conceito de pena maior. Essa lei parte de determinados parâmetros do adquirido da revisão constitucional de 1982 e da noção de pena maior. Considerou-se, porém, que se foi além da medida permissível face à necessidade de equiparação que decorria do quadro constitucional. É que se estavam a abranger coisas de menor gravidade do que aquela que decorria do quadro constitucional tal como se encontrava gizado previamente. Isso é inconstitucional.

É esta a altura exacta para pormos uma pedra nesse tipo de questões. Estamos completamente abertos a prosseguir o esforço de reflexão sobre a melhor via a seguir, mas também estamos inteiramente cientes de que tal via tem de ser precisa e de que é preciso pôr uma pedra em cima disto.

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O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, sobre a questão da técnica jurídica diria que, no meu entendimento, não há obstáculo, em termos de regimento da Comissão, a que se procure uma outra fórmula de abordagem do problema da pena maior. É que sempre se deveria entender que se trata de uma solução técnico-jurídica para responder a um problema que está clara e inequivocamente enunciado nos projectos de revisão apresentados pelos partidos políticos.

Seja como for, receio que esse exercício, que poderia ser interessante sob o ponto de vista intelectual, se transforme verdadeiramente na teia de Penélope, porque sempre que chegássemos ao fim teríamos de recomeçar. O elemento mais elucidativo sobre este pressentimento que tenho é dado por aquilo, que o Sr. Deputado José Magalhães já citou, que diz respeito aos trabalhos preparatórios da lei que definiu a equiparação da pena maior.

Na realidade, já na primeira revisão constitucional o debate dos artigos 27.° e seguintes girou em torno desta preocupação, saudável, mas improfícua, de tentar em sede constitucional corrigir anacronismos de uma política criminal que, por responsabilidade de todos nós, tem sido ela própria, por definição, profundamente anacrónica e marcada significativamente por soluções avulsas. Creio que, se quisermos encarar a resolução destas questões numa óptica de Catão, correctiva daquilo que é no nosso íntimo a incoerência ou a incongruência das soluções de política criminal, nunca conseguiremos encontrar nenhuma solução para os artigos 27,° e seguintes da Constituição. Talvez fosse preferível encararmos estes artigos numa perspectiva mais realista e pragmática e chegarmos à conclusão de que não adianta verdadeiramente tratar destas matérias na base de uma desconfiança congénita em relação ao legislador comum.

É óbvio que a definição de pena maior pelos limites mínimos e máximos das penas, como qualquer definição que tenha por critério a dosimetria das penas, seja ela apenas a do limite máximo, terá sempre subjacente uma larga margem de manobra do legislador comum e a possibilidade de se incluírem ou excluírem dos casos de prisão preventiva fora de flagrante delito, através da livre manifestação de vontade desse legislador comum, crimes que subjectivamente poderíamos considerar como extremamente censuráveis sob o ponto de vista jurídico-criminal. Contudo, a verdade é que, se nos dedicarmos à comparação das dosimetrias das penas do Código Penal, chegaremos à conclusão de que não é fácil descortinar no actual Código Penal um único critério norteador da atribuição da dosimetria das penas, até porque há vários critérios sobreponíveis. E, perante algumas situações concretas, a nossa consciência ética levanta-se brandando aos céus e considerando que o furto doméstico é penalizado de uma forma que não se justifica face a outros crimes que subjectivamente consideraríamos susceptíveis de uma punição mais rigorosa. É um caminho que, em meu entendimento, não tem solução. Não quero dissuadir quem queira ir por ele, mas preferiria não enveredar por esse terreno.

Creio que a lógica do actual sistema constitucional é, apesar de tudo, compreensível. Tratou-se de não maniatar o legislador comum da possibilidade de perante novas realidades criminosas ou criminogéneas poder adoptar livremente penas que facultem o recurso à prisão preventiva, sem a necessidade de termos de recorrer a revisões constitucionais perante novas realidades criminosas que se justificariam ser contempladas com a situação de prisão preventiva fora de flagrante delito. Qual é, portanto, o critério de aproximação que proponho? Proponho que, tal como disse o Sr. Deputado José Magalhães, possamos meditar sobre o elenco das dosimetrias das penas constantes do Código Penal, o que, aliás, é um exercício interessante e muito elucidativo, mas que nos preocupemos sobretudo com a construção de um artigo que seja o pressuposto de uma política criminal mais coerente. E, salvo melhor opinião, penso que a aproximação que o projecto do PS propõe da definição de limite mínimo e limite máximo concede ao legislador comum um quid - pequeno, claro, mas um quid - de orientação da própria adopção de medidas de política criminal em sede de legislação ordinária. Como disse o Sr. Deputado José Magalhães, a mera referência ao limite máximo vai deixar de fora alguns casos que, uma vez feita a leitura do quadro da dosimetria das penas hoje em dia aplicável no Código Penal, nos parecem não dever ficar de fora da aplicação deste regime.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - O Sr. Deputado José Magalhães disse também que podia ser o contrário.

O Sr. António Vitorino (PS): - Que ficavam em excesso, mas de fora da aplicação...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - O Sr. Deputado disse que o uso dos dois critérios vai deixar de fora crimes cujo limite mínimo é mínimo mesmo e cujo limite máximo é extremamente grande, o que me parece inteiramente correcto.

O Sr. António Vitorino (PS): - Exacto, era isso o que queria dizer, mas não me exprimi correctamente.

O problema reside exactamente em o facto de se utilizarem os dois limites ser mais restritivo e, portanto, permitir que neste tipo de conceito caiba um núcleo de crimes mais coerentemente admissíveis como passíveis de prisão preventiva. Era isso o que queria exprimir. Não sei se fui claro, mas era essa a ideia que desejava transmitir e foi isso o que, aliás, presidiu à elaboração da lei sobre a equiparação a pena maior, que também tinha esta versão originária. Na versão que foi entregue pelo governo do bloco central também só se definia a equiparação a pena maior pelo limite máximo, tendo sido o debate parlamentar que permitiu introduzir o limite mínimo.

Nesse sentido, pretenderia defender a manutenção da fórmula que consta do projecto do PS.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Quero apenas dizer que quem defende a opinião que perfilho tem desconfiança em relação ao legislador ordinário nesta matéria. É só isto o que queria dizer.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

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O Sr. Costa Andrade (PSD): - Também confesso que, menos como representante do PSD nesta matéria e mais com a preocupação de que se arranje um sistema com o máximo de congruência possível, me parece que se devem recordar alguns dados.

Em primeiro lugar, é evidente a incongruência do sistema do Código Penal. O Código Penal é, de facto, relativamente incongruente no que toca à sua dosimetria penal. De resto, isso tem explicações muito complexas, algumas fáceis de compreender, outras não. Relativamente à legislação penal, manifestam-se sempre interesses, pressões e representações colectivas extremamente diversificados e complexos. A legislação penal é, de todas as legislações, a menos racional, a mais emotiva. Todos os trabalhos de sociologia da legislação chegam à conclusão de que os programas de política criminal são extremamente racionais, mas que, quando se trata de os plasmar na prática, são normalmente irracionais. Isto é um dado que a sociologia da legislação reconhece, não valendo a pena insistir na documentação desta afirmação.

Por outro lado, parece que a técnica da elencagem, que, no modelo ideal típico, seria talvez a mais adequada, poderia ser a nossa solução, desde que pudéssemos superar o problema regimental, já que, no fundo, se trata de dar resposta a este último problema. A quaestio juris é, no fundo, a mesma. Só que, não só em termos de direito penal, como em todo o direito, motorizado e inflacionário, não vivemos no século XIX, mas sim no século XX, em que, com a catadupa de produção legislativa conhecida de todos nós, o elenco estaria a todo o momento desactualizado. Portanto, temos de adoptar uma fórmula deste género e penso que, na falta de lógica do sistema punitivo, a única lógica que ainda existe é a dos limites máximos, já que a dos mínimos é relativamente incongruente.

De resto, a incongruência não é tão absoluta quanto parece. Quando se fala da incongruência do sistema punitivo, tem-se apenas um referente, que é o da gravidade do ilícito, sendo certo que, o direito penal não se pauta apenas, no que toca à escolha das penas, pela gravidade do ilícito, mas também por muitos outros critérios. Isto no caso de uma política penal racional - e reconheço, de boa mente, que a que está aí não terá obedecido a tudo isto. Contudo, não é apenas a gravidade do ilícito o único critério a ter em conta. A gravidade é um dos itens, mas há outros, como os da necessidade, da preferência, da prevenção geral e da prevenção especial, isto é, há todo um conjunto de critérios extremamente complexos. Por isso, chamo a atenção dos Srs. Deputados para não estigmatizarem de absurdo, com tanta segurança, aquilo que à primeira vista não é assim tão evidente.

Se me perguntarem o que fazer em relação a um crime tão grave como o homicídio, que é o crime mais grave do meu ponto de vista, e se chegássemos à conclusão de que a lei penal seria, por hipótese, relativamente ineficaz e quase não necessitaríamos dela - Freud dizia que descendemos de uma raça de assassinos e que, por isso, temos dentro de nós a proibição do homicídio - a boa política criminal mandar-nos-ia prescindir da punição do homicídio, independentemente da gravidade deste ilícito. A gravidade é um tópico, mas não o único. É preciso ter sempre isto em atenção e não se apelar apenas para a gravidade do ilícito, pois há outros critérios, nomeadamente o de saber se do ponto de vista da prevenção geral, da prevenção especial ou da ressocialização, que alguns Srs. Deputados trazem à colação, as penas devem ou não ter aquele quantun.

Deixemos, no entanto, estas considerações e fixemo-nos sobre o seguinte: penso que, apesar de tudo, seria gravemente disfuncional, em relação ao sistema que temos agora, uma proposta que não atendesse ao dado, apesar de tudo mais racional, do limite máximo. Pôr o mínimo e o máximo teria logo o efeito perverso - para o qual o Sr. Deputado José Magalhães chamou a atenção - de deixar de fora crimes particularmente graves, nos quais o legislador, atendendo à sua gravidade, permite que a moldura máxima vá muito longe, admitindo também que haja casos, como o do homicídio, que é um caso paradigmático, onde a pena pode ir mais longe a em relação aos quais as legislações tradicionais têm mais causas de isenção da pena - citem-se a provocação e o adultério da mulher, na legislação antiga - que desculpam e despenalizam o homicídio. Apesar de tudo, este é talvez um dos crimes onde a moldura varia mais, desde limites mais graves até limites mínimos.

Parece-me, portanto, que qualquer outra solução que não a mais consentânea com o sistema que se tentar impor seria gravemente disfuncional. Teríamos de fazer uma nova reforma do processo penal. E penso que a que temos - não interessa se boa ou má - ainda não foi testada na prática. Na situação actual, seria gravemente prejudicial para a experiência judiciária portuguesa sermos obrigados a uma grande viragem neste sistema. O Código de Processo Penal assenta na ideia de que há um salto qualitativo a partir dos três anos para efeitos de formas de processo, etc. Penso, pois, que deveríamos ficar por aqui.

Não tanto como deputado do PSD, mas mais preocupado com estas coisas, penso ser esta a melhor solução. A solução proposta pelo PS é gravemente inconveniente, já não o sendo se fôssemos montar, a partir da Constituição, todo um novo sistema processual penal. Penso que isto não está na mente de ninguém e que, portanto, a solução do PS em si não é melhor nem pior do que a do PSD, sendo em abstracto talvez melhor, porque dá mais segurança. No quadro concreto, penso, porém, que ela seria gravemente prejudicial, tendo, de resto, sempre em atenção que o sistema vigente é um sistema de prisão preventiva subisidiária, como ultima ratio. É isto o que deve ser levado à prática.

Tudo visto, penso que o sistema do limite máximo dá a garantia absoluta de que os crimes que não atinjam, no que toca ao limite máximo, determinada gravidade não podem dar origem a prisão preventiva. É evidente que o sistema do PS daria mais garantias - não tenho dúvida disso -, mas não está escrito na natureza das coisas que a solução do PSD seja melhor ou pior. Em abstracto até seria melhor a do PS, mas na situação concreta em que vivemos, penso que ela seria inconveniente.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Presidente, quase prescindiria da palavra após a lição magistral que ouvimos do Sr. Deputado Costa

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210 II SÉRIE - NÚMERO 8-RC

Andrade. Relativamente ao que foi dito, e fazendo uma espécie de apuramento dos resultados das intervenções, gostaria, porém, de manifestar uma opinião, que apenas se acrescenta à intervenção anterior.

Quando ouvi o Sr. Deputado Vera Jardim fazer uma proposta de elencagem dos crimes sujeitos a prisão preventiva no caso da alínea a) do n.° 3, devo confessar que senti um certo fascínio, mas que esse fascínio se foi dissipando no longo das várias intervenções, todas elas, aliás, muitíssimo bem fundamentadas. Isto aconteceu devido ao facto de a razão mais forte nem ter sido, porventura, directamente apontada. De facto, em matéria de direito penal, o que está em causa são juízos de censura muito ligados à culpa, para além de outros elementos, que o Sr. Deputado Costa Andrade já referiu. Trata-se de juízos que sabemos conter ingredientes variáveis, até mesmo de acordo com o meio cultural em que tanto o criminoso como o julgador se inserem.

Parece-me que, apesar de a Constituição ter de ser já uma cintura de segurança em matéria de defesa dos direitos próprios dos arguidos, se procederia aqui a uma regidificação particularmente nociva, desde logo porque seria uma rigidificação que, pela elencagem dos próprios crimes, contraria qualquer possibilidade, no futuro, de inserção constitucional de criminalização de certas condutas até aí não criminalizadas, o que é possível. Estou, por exemplo, a pensar nos delitos anti-económicos, que nem sempre foram previstos no seu inteiro número. Outra razão fundamental que nem sequer foi apontada reside no problema da despenalização. Parece-me que, embora seja difícil imaginar que crimes particularmente graves sejam despenalizados, o legislador constituinte não pode eximir-se da consideração dessa hipótese, porque, de facto, a realidade pode ser mais rica do que a previsão legislativa.

Mesmo independentemente do aspecto da criminalização e da despenalização, há que considerar também, relativamente aos crimes já existentes, o problema da a modulação penal poder oscilar. De facto, não é a modulação penal que faz oscilar o tipo de crime, mas, pelo contrário, o tipo de crime e o grau de censura que lhe subjaz que fazem oscilar a modulação penal. Nesse sentido, parece-me muito mais rico o critério da própria modulação do que a elencagem dos tipos de crime.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Quero chamar a atenção para uma passagem da sua intervenção, que talvez tenha sido um lapso. Disse a Sra. Deputada que a introdução de um mecanismo do tipo do proposto pelo Sr. Deputado Vera Jardim impediria a futura criminalização, ou seja, a futura definição de tipos legais de crime. Não impede, manifestamente.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Pode excluí-los do elenco constitucional do flagrante delito, mas não ser essa a intenção, visto que lhe pode subjazer um juízo idêntido ao dos que são elencados.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Só queria contribuir para essa correcção. É evidente que o outro aspecto que referiu é verdadeiro, isto é, que a eventual despenalização ficaria condicionada pela eventual rigidificação de um tipo legal de crime na Constituição.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - E é mais grave, até tendo em conta a filosofia do direito penal e a possibilidade de retroactividade em caso de haver favoritismo em relação ao delinquente. É nesse sentido que acho que seria particularmente grave, do ponto de vista da própria despenalização, que aqui não seria muito provável, mas que o legislador tem de ter em consideração.

O Sr. Vera Jardim (PS): - É meramente teórico, há-de confessar.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - De certo modo, é.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Marques Júnior.

O Sr. Marques Júnior (PRD): - Gostaria de aproveitar esta oportunidade para, de modo formal, justificar também a proposta do PRD, que no fundo foi, deste ponto de vista, brilhantemente defendida pelos Srs. Deputados do PSD.

O Sr. Presidente: - Nem sempre, nem nunca!

O Sr. Marques Júnior (PRD): - Neste caso é verdade. Foi de facto uma questão de ordem técnica que nos levou a sugerir exclusivamente esta alteração.

No entanto, e contrariamente ao que disse a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves, o fascínio pela apresentação do Sr. Deputado Vera Jardim mantém-se no meu caso. E talvez isso se deva ao facto de ser um leigo nestas matérias. Como leigo, fui sensibilizado pela argumentação produzida pelo Sr. Deputado Vera Jardim e o fascínio da sua intervenção não se desfez, apesar das brilhantes intervenções dos outros Srs. Deputados.

Repito que sou completamente leigo nesta matéria e fui sensibilizado pela argumentação do Sr. Deputado Vera Jardim - e penso que tal ponderação foi também já suscitada pelo Sr. Presidente - no sentido de se reflectir melhor esta questão, de modo a não perdermos a oportunidade de a resolver em sede de revisão da Constituição. Parece-me uma opinião avisada, que gostaríamos de subscrever, no sentido de eventualmente sobre esta questão se poder encontrar uma forma mais adequada a resolver os problemas suscitados. Gostaríamos pelo menos de não perder essa oportunidade e estamos também dispostos a ponderar e reflectir sobre uma melhor solução para este problema.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, teremos de suspender os nossos trabalhos, visto que há votações a realizar no Plenário.

Gostaria de aproveitar a ocasião para exprimir a minha profunda preocupação no que diz respeito ao ritmo dos trabalhos desta Comissão, pela circunstância de haver muitas solicitações dos Srs. Deputados em relação a outras comissões e ao próprio funcionamento do Plenário. São realidades com que nos temos de confrontar, mas que tornam ainda mais difícil a celeridade dos nossos trabalhos.

Quero também pedir a vossa benevolência para a circunstância de haver necessidade de marcar a próxima reunião para sexta-feira da próxima semana. A razão

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22 DE ABRIL DE 1988 211

fundamental é a de que irei estar ausente no estrangeiro, mas virei um dia mais cedo - chegarei na madrugada de sexta-feira - para poder assegurar os trabalhos da Comissão. E o Sr. Deputado Almeida Santos também não estará cá. Parecer-me-ia, porém, altamente inconveniente que não tivéssemos qualquer reunião na próxima semana. Se VV. Exas. não virem nisso inconveniente, e a título excepcional, pelo menos por ora, visto que ulteriormente teremos provavelmente de marcar reuniões com mais frequência, faríamos uma reunião durante todo ou parte substancial do dia de sexta-feira. Parto na quinta-feira à tarde de Nova Iorque e chego na sexta-feira de manhã, que é o tempo que normalmente o avião que parte de Nova Iorque leva a chegar a Lisboa.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Vem directamente para aqui?

O Sr. Presidente: - Chega às 7 horas da manhã, o que dá perfeitamente para eu estar aqui de manhã, até porque quem durma no avião não tem problemas.

Posso trocar a citação de alguns artigos da Constituição, o que não é grave, pois VV. Exas. me corrigirão depois nessa matéria. É essa a única hipótese que temos de fazer uma reunião na próxima semana, visto que, como disse, o Sr. Deputado Almeida Santos também não estará cá.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Seria de manhã e de tarde, Sr. Presidente?

O Sr. Presidente: - Preferiria que assim fosse, salvo se VV. Exas. tiverem um impedimento fundamental.

Pausa.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Manuel Mendes.

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Gostaria de exprimir duas preocupações.

A primeira, sintonizada com aquela que o Sr. Presidente pôde agora referir, refere-se à sobreposição sistemática das horas de funcionamento das comissões em que todos somos intervenientes. Somos poucos e o PSD tem muita gente, mas um dia acontecerá que o próprio PSD rebenta e o funcionamento se torna perfeitamente impossível, o que quer dizer que naturalmente, e a todo o tempo, será necessário pensar em medidas que excedam a pura decisão desta Comissão para que ela não seja afectada nos seus trabalhos, como, pelo que acabo de ouvir, parece ter sido.

Em segundo lugar, quero referir que a próxima sexta-feira é um dia particularmente mal-azado para o funcionamento proposto, porque é o dia do debate do Regimento no Plenário, que ocorrerá, segundo se prevê, de manhã e de tarde, com votações - ao que se prevê pelas últimas deliberações, aliás insensatas, da conferência de líderes - umas após outras, o que com toda a probabilidade impedirá que esta Comissão venha a ter o quorum mínimo para funcionar. Com este proviso e esta reserva de boa fé e cooperante, aceito a sugestão feita de se marcar a reunião para a sexta-feira da próxima semana.

O Sr. Presidente: - Há pouco ouvi uma referência à legislação motorizada que me fez lembrar os velhos Calamandrei e Carnelutti. É claro que eles teriam tido uma solução muito simples para evitar essa motorização da legislação: cometê-la-iam a órgãos colegiais grandes e doutos, porque isso resolveria o problema de uma maneira bastante mais eficiente do que aquela que foi, na altura, preconizada nas suas obras.

Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Quero dizer, em suma, que não levantamos nenhuma objecção à proposta do Sr. Presidente. Não as levantaríamos por razões de princípio, mas também por hoje ser um dia em que, mesmo sem bolo de velas, é difícil recusar a V. Exa. o direito legítimo de formular desejos.

Atendendo, pois, a que ocorre hoje o seu aniversário natalício, gostaria de dizer, sem querer abusar da opinião colectiva da Comissão, que todos nós lhe desejamos muitos parabéns, muitas felicidades e muitos anos de vida e que possamos acompanhá-lo nesses anos, não na revisão constitucional - pode estar descansado -, mas na vida contínua.

Aplausos.

O Sr. Presidente: - Muito obrigado a todos VV. Exas.! Fiquei muito sensibilizado pelas suas palavras e pela vossa manifestação.

Reunir-nos-emos então na sexta-feira da próxima semana, dia 15 de Abril, às 10 horas.

Srs. Deputados, está encerrada a reunião.

Eram 19 horas e 35 minutos.

Comissão Eventual para a Revisão Constitucional

Reunião do dia 7 de Abril de 1988

Relação das presenças dos Srs. Deputados

Rui Manuel Parente Chancerelle de Machete (PSD).
Carlos Manuel de Sousa Encarnação (PSD).
Fernando Manuel Cardoso Ferreira (PSD).
José Álvaro Pacheco Pereira (PSD).
José Luís Bonifácio Ramos (PSD).
Licínio Moreira da Silva (PSD).
Luís Filipe Meneses Lopes (PSD).
Manuel da Costa Andrade (PSD).
Maria da Assunção Andrade Esteves (PSD).
Mário Jorge Belo Maciel (PSD).
Miguel Bento da Costa Macedo e Silva (PSD).
António de Almeida Santos (PS).
Alberto de Sousa Martins (PS).
António Manuel Ferreira Vitorino (PS).
Jorge Lacão Costa (PS).
José Eduardo Vera Cruz Jardim (PS).
José Manuel de Melo Antunes Mendes (PCP).
José Manuel Santos de Magalhães (PCP).
António Marques Júnior (PRD).
Herculano da Silva Pombo Marques Sequeira (PEV)
Raul Fernandes de Morais e Castro (ID).

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