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Quinta-feira, 12 de Maio de 1988 II Série - Número 11-RC
DIÁRIO da Assembleia da República
V LEGISLATURA 1.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1987-1988)
II REVISÃO CONSTITUCIONAL
COMISSÃO EVENTUAL PARA A REVISÃO CONSTITUCIONAL
ACTA N.° 9
Reunião do dia 27 de Abril de 1988
SUMÁRIO
Finalizou-se a discussão do 3.° relatório da Subcomissão da CERC respeitante aos artigos 24.° a 36.° e respectivas propostas de alteração.
Durante o debate intervieram, a diverso título, para além do Presidente, Rui Machete, pela ordem indicada, os Srs. Deputados Nogueira de Brito (CDS), Almeida Santos (PS), Miguel Macedo e Silva (PSD), Raul Castro (ID), José Magalhães (PCP), Jorge Lacão (PS), Costa Andrade (PSD), Vera Jardim (PS), Alberto Martins (PS), Sottomayor Cárdia (PS), José Luís Ramos (PSD), Maria da Assunção Esteves (PSD) e José Manuel Mendes (PCP).
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O Sr. Presidente (Rui Machete): - Srs. Deputados, temos quorum, pelo que declaro aberta a reunião.
Eram 15 horas e 45 minutos.
Tem a palavra o Sr. Deputado Nogueira de Brito.
O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - Sr. Presidente, a circunstância do debate que vai ter lugar amanhã, adicionada à da exiguidade do meu grupo parlamentar, o que faz com que simultaneamente eu esteja destacado amanhã para os trabalhos desta Comissão e para tratar de questões de natureza fiscal, leva-me a solicitar a V. Exa. compreensão para o facto de amanhã ter de abandonar os trabalhos durante cerca de uma hora. Solicitaria também alguma compreensão para os próprios trabalhos agendados para amanhã. Suponho que a matéria que vamos discutir no Plenário é da maior importância, o que não quer dizer que as outras não o sejam. Mas tal matéria é ela mesma, digamos, a razão de ser dos parlamentos e da Assembleia da República na sua génese.
Sugeria que esta Comissão acomodasse um pouco o seu horário de trabalho a essa circunstância. Coloco esta questão, mas reconheço que não nosso pesar na deliberação que vier a ser tomada. De qualquer modo, amanhã, terei de conciliar um pouco a necessidade de intervir no Plenário e a de estar também na Comissão. Na medida das minhas possibilidades e da compreensão de VV. Exas., farei tudo para estar aqui presente.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Nogueira de Brito, o voto de V. Exa. tem sempre uma ponderação extremamente significativa, independentemente das considerações quantitativas. Mas iremos oportunamente considerar o problema de amanha. Hoje vamos prosseguir os trabalhos normalmente.
Srs. Deputados, suspendemos agora a análise do texto constitucional, porque não estão presentes os representantes ido PCP e iríamos justamente apreciar o artigo 32.º-A.
Retomando os trabalhos, gostaria de comunicar à Comissão algumas reflexões que estive a fazer e as quais iria solicitar que fossem objecto de uma análise - não digo neste momento, mas numa próxima reunião -, em termos de obtermos, resultados, e que dizem respeito ao andamento dos trabalhos.
O meu raciocínio foi o seguinte: se encararmos como um objectivo razoável o de conseguirmos ter toda a matéria discutida e votada nesta Comissão, em termos de subir a Plenário em Outubro, isto significa que temos ainda diante de nós qualquer coisa como 220 artigos e que, obviamente, ao ritmo que neste momento estamos a avançar, ou seja, de 5 artigos por semana, será totalmente impossível conseguir esse desiderato.
Por outro lado, suponho que é do interesse dos Srs. Deputados e do próprio andamento dos trabalhos, visto que é necessário que as pessoas não estejam completamente esgotadas, garantindo pelo menos um mês de férias, e haverá quem muito legitimamente pense até que se fosse possível preservar o mês de Setembro melhor seria.
Isto significa, portanto, que indubitavelmente teremos de proceder a uma acentuada aceleração dos nossos trabalhos. Essa aceleração pode ser conseguida por vários métodos, aliás, alguns deles cumuláveis. Um deles, que tem limites, é o de aumentarmos o ritmo das reuniões semanais, mas já verificámos que por essa via poderemos acrescentar mais três ou quatro artigos por semana se mantivermos a nossa velocidade de cruzeiro actual, não resolvendo contudo a questão. Além disso, temos sempre de contar com a necessidade de nos prepararmos para as discussões, isto é, há que considerar não apenas o tempo que nos ocupa nas reuniões da Comissão, mas também o do trabalho preparatório.
Outra alternativa é a de se conseguir uma automoderação no uso da palavra. Há pouco referi que isso não é uma inovação para alguns grupos parlamentares, mas para outros significa, obviamente, um esforço importante e uma alteração substancial da maneira como tem sido utilizada a palavra até agora nesta Comissão.
Uma terceira via consiste em encontrarmos uma regulamentação e distribuição do tempo da palavra para cada artigo ou grupo de artigos, o que aliás nos suscitaria sempre algumas dificuldades, mas é outro caminho possível.
Assim, gostaria que os Srs. Deputados considerassem estas alternativas ou outras que eventualmente se vos suscitem, a começar, de resto, pelos próprios objectivos que lhes são condicionantes, nomeadamente o de parecer desejável conseguir ter a respectiva discussão terminada e a votação feita nesta Comissão, no sentido de podermos iniciar a análise dos textos dos projectos de lei de revisão constitucional e a sua discussão e votação em Plenário a partir do dia 1 de Outubro. Isto tendo ainda em atenção que a partir de meados de Novembro vamos ter de dar lugar à discussão da proposta orçamental, visto que essa faz parte, como sabem, das condicionantes inultrapassáveis da ocupação do tempo relativa ao começo da sessão legislativa.
Neste âmbito, o que gostaria de vos pedir era que considerassem este problema em termos de tomarmos algumas resoluções com impacte no andamento dos trabalhos. Obviamente que não digo para efectuarmos agora uma discussão acerca disso. Sugiro, sim, que procedamos a uma reflexão e porventura amanhã ou na próxima semana troquemos impressões e tentemos encontrar soluções que resolvam as nossas dificuldades.
Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Presidente, gostaria de manifestar a seguinte posição: pessoalmente estou disposto a sujeitar-me à tortura de todos os ritmos eventualmente estabelecidos. Mas não sacrifico o mês de Setembro. Penso que as férias são sagradas e não se justifica que andemos agora a passo de boi para depois termos de sacrificá-las.
Sujeito-me a todo e qualquer ritmo que venha a ser adoptado, mas não prescindo do mês de Setembro de maneira nenhuma. Esta é apenas uma posição de princípio. Comedimento podem contar com ele em termos de dispêndio de tempo, ritmo é o que quiserem fixar, escolham-no, o mês de Setembro é que nem pensar nisso.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Macedo e Silva.
O Sr. Miguel Macedo e Silva (PSD): - Sr. Presidente, gostaria de dizer que partilhamos as preocupações que V. Exa. agora aqui apresentou e que o Grupo Parlamentar do PSD está aberto a qualquer entendimento que no seio desta Comissão se alcance, no sentido de com adequada celeridade podermos aqui proceder, em tempo útil, ao debate da revisão, constitucional. Isto tendo em conta - como o Sr. Presidente já expressou - que nos parecerá positivo que os trabalhos da revisão constitucional fiquem concluídos, pelo menos, até ao final do corrente ano. Para
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isso estamos dispostos, como sempre, a dar toda a nossa colaboração, e estamos abertos, repito, a todos os consensos que se obtiverem no seio desta Comissão, no sentido de conseguirmos os mecanismos que nos habilitem a esse desiderato.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.
O Sr. Raul Castro (ID): - Sr. Presidente, naturalmente partilhamos do desejo de concluir a revisão constitucional com brevidade e no tempo possível, bem como o desejo, seguramente comum a todos nós, de que ela se faça com a necessária reflexão e eficiência.
Este dado leva-me, em primeiro lugar, a ter em conta o tempo que demorou a fazer-se a primeira revisão constitucional. Naturalmente, é algo moroso.
Por outro lado, penso que há muitos artigos da Constituição que nem sequer foram tocados pela respectiva revisão, o que há que ter em consideração.
Finalmente, julgo que o nosso trabalho na actual fase contribui bastante para adiantar a fase seguinte das votações, porque realmente ficam definidas as posições de cada grupo e agrupamento parlamentar relativamente às diferentes matérias.
Para lá destas considerações, e sem perder de vista que, para além dos artigos que são atingidos pela revisão constitucional, há muitos artigos - talvez cerca de uma terça parte - em relação aos quais não há propostas de alteração apresentadas, o que é um dado a ter em conta,...
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, são cerca de 50 os artigos não sujeitos a alterações. É cerca de um sexto do total dos artigos.
O Sr. Raul Castro (ID): - De qualquer forma, penso que o Sr. Presidente poderá contar com o nosso empenhamento relativamente às medidas que for possível adoptar, desde que não nos afastemos dos referidos objectivos, que são, por um lado, o de realizar no tempo possível a revisão constitucional e, por outro, o de realizá-la também com a necessária reflexão e profundidade.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, pela nossa parte iremos também considerar aquilo que nos acaba de ser transmitido. Gostaria de dizer que, à partida, não temos nenhuma reserva de carácter político-pessoal em relação a qualquer altura de trabalhos, e isto obviamente abrange qualquer mês.
Mas, não podemos dissociar a preocupação que o Sr. Presidente agora exprimiu daquela mesma que foi transmitida pelo PSD sob a forma de ultimato, primeiramente privado e depois público, incluindo no Plenário da Assembleia da República. Ainda que isso não fosse do conhecimento de todos os membros desta Comissão e que tivesse colhido de surpresa alguns deles, a verdade é que esse ultimato foi feito e segue os seus trâmites. Não somos nós os ultimados e, portanto, não me cabe fazer aqui...
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Os últimos atados!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, espero que não haja nem últimos nem primeiros atados, mas isso V. Exa. saberá melhor do que eu.
Em todo o caso, gostaria apenas de observar que o PSD faz agora uma revelação que considero, apesar de tudo, útil, quanto àquilo que considera ser o horizonte temporal razoável dos trabalhos de revisão constitucional.
O presidente do Grupo Parlamentar do PSD tinha recentemente considerado, no Diário de Notícias, absolutamente fundamental que antes do Verão (sic) terminassem os trabalhos desta Comissão. O Sr. Deputado porta-voz do PSD nesta Comissão, para esse efeito e neste momento, acabou de revelar que se consideraria satisfeito se os trabalhos fossem ultimados - quiçá não ultimados - até ao fim do ano.
Assim, o que gostaria de dizer é que me parece que a dinâmica própria de uma revisão constitucional é pouco compatível com estas preocupações de fixação sazonal dos termos dos prazos para realizarmos o que se tem de realizar.
Em todo o caso, anotamos que o Sr. Presidente alvitrou várias hipóteses, desde a mais drástica, envolvendo cerceamento de direitos de grupos parlamentares e partidos, hipótese que espero que seja mesmo hipotética, até outras que estamos disponíveis para considerar.
De qualquer modo, não colocamos - repito - nenhuma baia relativamente aos calendários e, portanto, se os senhores quiserem trabalhar no Verão façam favor, desde que se cumpram os normativos que nos regem, desde que se garanta que haverá uma revisão discutida, participada e com um horizonte temporal compatível com a dignidade e a importância dos temas que estão em debate. Por outro lado, desde que ela seja concluída aqui e não ali, em debate plural, conforme manda a Constituição, e não em diálogos limitados e em sede constitucional inapropríada.
Estou certo de que assim acontecerá, ou pelo menos haverá esforços no sentido de que assim aconteça por parte de quem se espera que os faça. Pela nossa parte procuraremos também contribuir para isso.
Sr. Presidente, na próxima reunião plenária poderei, já devidamente mandado pela minha bancada com a informação adequada, pronunciar-me em termos mais peremptórios sobre a questão que acaba de suscitar.
O Sr. Presidente: - Apenas a título informativo, e porque na altura em que forneci esse dado ainda não tínhamos dado início à reunião e V. Exa. - não se encontrava presente, no ritmo actual provavelmente levaremos entre 48 a 50 semanas para concluir esta primeira fase de análise do texto.
Não estou a falar mandatado por ninguém, estou apenas a exprimir uma opinião e uma preocupação que como presidente desta Comissão julgo ter o dever de comunicar a W. Exas. Assim, é evidente que esse tempo me parece manifestamente excessivo para aquilo que é periodização razoável, e por isso aventei como hipótese, que se me afigura sensata, começarmos a discussão no Plenário em Outubro. Aliás, à semelhança do que aconteceu com a anterior revisão constitucional, não haverá aí diferenças substanciais de tempo. Isto significa podermos dispor de uns meses largos para procedermos à análise e à votação dos textos em comissão especializada.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Como, Sr. Presidente?
O Sr. Presidente: - Refiro que o objectivo que enunciei parece reservar um tempo suficiente para se poder discutir, com a análise que a importância do tema merece, em comissão especializada.
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O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, pedi a palavra há pouco, quando V. Exa. aludiu à questão do tempo despendido até agora. Precisamente para poupar tempo gostaria de observar o seguinte: evidentemente que se tratou, neste período inicial de funcionamento da Comissão, de encontrar uma metodologia de trabalho, por um lado, e, por outro, de ensaiá-la em relação a um primeiro conjunto de artigos.
Obviamente como ainda não avançámos em relação a outras áreas em que a aplicação deste método pode conduzir a outros resultados e como ainda não adquirimos sequer alguns dos resultados do trabalho da respectiva Subcomissão, que tem sido predominante passivo, ou seja, escrito, mas oferecendo uma base de trabalho e cessando aí funções, creio que seria demasiado simplista fazer uma extrapolação em termos de tempos.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, em termos científicos é provável que seja demasiado simplista, mas em termos práticos constitui um bom aviso.
Srs. Deputados, vamos então retomar os nossos trabalhos. Tínhamos ficado no artigo 32.°-A "Garantias dos processos sancionatórios", apresentado pelo PCP, e que constitui um aditamento ao artigo 32.º
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, visa-se colmatar aquilo que parece ser uma lacuna e cuja persistência nos surge como negativa. Sabe-se com o separar de águas originado pela mutação penal de 1983 a dicotomia entre o processo penal e os outros processos sancionatórios na mesma área, ou numa área similar, ficou estabelecida. É também evidente que para esses processos sancionatórios, em especial para o direito de mera ordenação social, a aplicabilidade das garantias próprias ou adaptáveis do processo criminal é regra, é mesmo um elemento basilar.
Em relação aos processos disciplinares outro tanto sucede por força normalmente de disposições de remissão, de aplicação subsidiária ou outras, que facultam analogias ou outros mecanismos através dos quais aquilo que é a essência do processo crime, designadamente quanto à tutela que oferece aos cidadãos, é assegurada.
Parece-nos, no entanto, que ganharíamos com o facto de estabelecer expressis verbis uma norma do tipo daquela que adiantámos. Nela se refere, muito sucintamente, a aplicabilidade aos processos criminais e demais processos sancionatórios de todas as garantias adaptáveis - há uma gralha no texto - do processo criminal, designadamente as de audiência, defesa e produção de prova. É uma norma sucinta, económica, como parece ser adequado, e creio que completaria bastante bem as normas que constam de outra parte da Constituição em relação a um certo conjunto de cidadãos, mas que deveriam ser de maneira clara e inequívoca adoptadas com carácter geral nesta sede, com o alcance que isso tem do ponto de vista da tutela constitucional própria dos direitos, liberdades e garantias.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Muito sucintamente, já que nos pediu que fôssemos sucintos, queria dizer que acho que tem algum interesse preocuparmo-nos com a garantia dos acusados em processos não criminais. Na base desta proposta está, a meu ver, uma salutar preocupação. Mas parece-me, em todo o caso, que a consagrar-se alguma coisa não deveria ser o que está aqui. Ter todas as garantias - desde logo, por exemplo, a instrução por um juiz -, todas as garantias adaptáveis do processo criminal, parece-me de mais.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Correspondendo precisamente ao tipo de preocupação.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Certo, fica melhor, mas adaptáveis a quê?
Discuto sinceramente a redacção. Quanto se fala aqui em "demais processos sancionatórios", suponho que se referem os processos em que são aplicáveis coimas, não? Então, talvez devêssemos dizer isso de maneira mais clara.
Por outro lado, gostaria de saber se "todas as garantias" são as da lei ordinária ou se são só as da lei constitucional. Quando se prescrever uma garantia para o processo criminal tem-se necessariamente de a adaptar aos demais processos sancionatórios ou são só as que estão garantidas na Constituição?
Resumindo, diria que a preocupação é salutar, mas a redacção não me parece feliz. É demasiado abrangente, como diria o nosso falecido Prof. Mota Pinto.
O Sr. Presidente: - Inscrevendo-me como parte, gostaria de ver esclarecidas algumas dúvidas que tenho, embora reconheça que o intuito prosseguido pelo artigo é meritório.
A primeira dúvida diz respeito ao âmbito do preceito. Quando se fala em processos disciplinares está a pensar-se, apenas, em processos disciplinares e demais processos sancionatórios, no âmbito da Administração Pública, que abrangem os processos que cominam coimas e também os processos administrativos que culminam em actos definitivos e executórios com recurso para os tribunais administrativos - o que seria o tradicional -, ou também ainda se incluem processos de carácter sancionatório de outras organizações não públicas, por exemplo em matéria de direito do trabalho, no que respeita a pessoas colectivas de utilidade pública administrativa, os partidos políticos? Qual é o âmbito? A expressão "os processos sancionatórios" não tem de estar necessariamente ligada apenas ao Estado no seu sentido de Estado-Administração, mas é preciso que a vontade declarada seja inequívoca.
Depois digamos que essa dúvida é reforçada pela circunstância de no artigo 269.º, n.º 3, a propósito do regime da função pública, já se referir uma garantia que tem sido considerada sempre como sendo absolutamente essencial, a da audiência e defesa do arguido em processo disciplinar. Aqui trata-se claramente de um processo disciplinar administrativo e talvez fosse o local adequado para inserir uma norma extensível a outros processos sancionatórios, se fosse esse o objectivo mais limitado que se pretendesse com a inclusão desse preceito.
Por outro lado, também subscrevo as preocupações que o Sr. Deputado Almeida Santos há pouco mencionou quanto ao facto de parecer excessivo aplicar todas as garantias do processo criminal - embora se tenha inscrito a expressão "adaptáveis", mas não se sabe bem quais as adaptáveis e quais as que não são, pelo que isso envolve um grau de incerteza muito vasto -, justamente porque a natureza dos processos é apesar disso distinta. Se compreendo, por exemplo, que seja admissível aplicar importantes garantias do processo criminal em relação a processos disciplinares que se revestem de uma natureza muito particular - os processos disciplinares militares em que se pode ir até medidas privativas de liberdade e, portanto, a sua natureza é muito próxima da do processo
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penal -, já há outros procedimentos em que se pode ser muito exigente e minucioso, sempre salvaguardando, sem margem para dúvidas, as necessárias garantias de defesa, as quais incluem a audiência do arguido e a capacidade de produção da prova.
Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, nesta fase do debate não se me afigura necessário dizer mais nada, a não ser que apareçam novos dados conducentes a uma eventual réplica ou até tréplica.
Concordamos inteiramente com o que foi dito e entendemos que não nos parece conveniente aprovar aqui um artigo como este. Talvez se possa alargar um pouco a previsão do artigo 269.º, mas num artigo como este não nos parece adequado fazer isso. Se for caso disso, talvez se possa demonstrar que pode ser extremamente inconveniente.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Costa Andrade, queria pedir-lhe apenas que precisasse as inconveniências que consegue imaginar a partir de uma norma deste tipo, para podermos considerá-las.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Deputado, a resposta parece-me ser óbvia. No fundo, todas as garantias do processo criminal são adaptáveis - quase não consigo encontrar uma que não o seja. Se estamos num plano constitucional lógico, ontológico e cronologicamente anterior ao desenho de outros processos, podemos dizer que o processo criminal é direito subsidiário de outros processos, o que me parece ser um facto. De resto, quase todos os estatutos sancionatórios consagram já o princípio da subsidiariedade - e, se não o consagram, devem consagrá-lo. Quando se fala em subsidiariedade parte-se do princípio de que se trata de uma estrutura processual autónoma em ralação à do processo penal. O processo penal intervém dentro dessa estrutura na parte aplicável, pelo que á estrutura funciona como uma redução da complexidade da adaptação. Nesta fase, no entanto, em termos constitucionais, não podemos partir do processo disciplinar que aí está, porque isso não pode ser obstáculo para um legislador constituinte (nós), que não partir do processo de contra-ordenação aí previsto; temos de desenhar esses processos tendo como orientação operativa a ideia de adaptar tudo aquilo que for adaptável.
Do processo criminal tudo é adaptável, desde o discutidíssimo princípio do acusatório. Teria de haver no processo disciplinar um funcionário que fizesse a investigação, talvez outro que fizesse a acusação e outro que preparasse a decisão para a entidade com poder decisório a nível disciplinar. Portanto, tudo é adaptável e, nessa medida, parece-me salutar a preocupação de assegurar as garantias de audiência e defesa, porque as de produção da prova são, por excelência, as garantias de defesa. Mas essas garantias já estão asseguradas no artigo 269.°, pelo que o artigo 32.°-A do PCP introduz de novo é, do meu ponto de vista, e salvo melhor opinião, inconveniente.
O que são os processos sancionatórios? Já vimos que, para além dos processos disciplinares, sê-lo-ão, obviamente, também os processos de contra-ordenação, os processos de instituições e de entidades parapúblicas, designadamente dos partidos políticos; que contendam com os direitos fundamentais dos cidadãos. Se amanhã houver em Portugal, como já há em alguns países - não sei com que legitimidade constitucional e com que sucesso pragmático -, algumas formas de aplicação sancionatória privadas em certos supermercados ou certas empresas - a chamada Betriebsjustiz da República Federal da Alemanha ou a justiça não jurisdicionalizada da RDA, os célebres tribunais de camaradas ou tribunais sociais-, também serão processos sancionatórios. Independentemente da extensão no que toca ao número de processos a que se aplica, parece-me que a norma proposta em si é perigosa e inconveniente, na medida em que, sem se ganhar nada do que toca à intenção do PCP, que é louvável e que aprovamos, isso já tem o quantum necessário no artigo 269.°, e, caso não o tenha, talvez possamos pensar em reforçá-lo. Dizer-se já em sede de direito constitucional "todas as garantias adaptáveis" não me parece curial, pois não vejo nenhuma que não seja adaptável.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.
O Sr. Raul Castro (ID): - Pela nossa parte, Sr. Presidente, partilhamos da preocupação aqui já expressa, pelo menos pelo Sr. Deputado Almeida Santos, de que efectivamente esta norma tem um sentido positivo. Ela visa assegurar, no que diz respeito a esses processos de natureza não criminal, as garantias existentes em relação ao processo criminal, que são adaptáveis àqueles processos.
As observações que foram feitas, designadamente pelo Sr. Deputado Costa Andrade, não me parecem ser suficientes para afastar o carácter positivo que a norma em si mesma apresenta. Isto porque, em primeiro lugar, não nos parece exacto que todas as garantias do processo criminal sejam aqui adaptáveis. Basta, aliás, ler o artigo 32.°, onde se enumeram essas garantias, para ver que algumas delas o não são, nomeadamente a do n.° 4, que diz "toda a instrução é da competência de um juiz" - e isso já foi aqui salientado. Se esta norma visasse a transposição pura e simples para os processos disciplinares e processos sancionatórios de todas as garantias do processo criminal, não se poderia sustentar que seria razoável ou aceitável. Só que ela faz a restrição de só transferir as garantias que sejam adaptáveis e não todas as garantias. Muito embora reconheça que há alguma dificuldade nesta matéria e que é possível melhorar a redacção da norma proposta, a verdade é que esta proposta apresentada pelo PCP é também, a nosso ver, uma proposta positiva que responde a uma intenção positiva aqui vertida.
O Sr. Presidente: - Portanto, os problemas estão quase explicitados.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Creio que V. Exa. s compreenderá que entendamos por aqui que vale a pena responder a algumas das acusações feitas, até porque muitas delas equacionam problemas que devem ser ultrapassados se se quiser caminhar para uma solução construtiva nesta esfera.
Creio que o mais impressionante do conjunto das interrogações suscitadas é o facto de elas contraditarem uma coisa óbvia. Srs. Deputados, perguntaria se pode ser o contrário, isto é, se num Estado de direito democrático é concebível que nos processos disciplinares - todos os processos disciplinares, em qualquer instituição ou entidade, pública ou privada, de qualquer natureza, ou nos processos sancionatórios que haja - não sejam concedidos aos que neles estejam envolvidos os direitos elementares de audiência, de defesa e de produção de prova.
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O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Deputado, eu não me refiro aos direitos elementares, digo que é perfeitamente compatível com o Estado de direito democrático a não aprovação desta proposta. É possível dizer não a esta proposta e dizer que não se deve aplicar todas as garantias adaptáveis e continuarmos num Estado de direito democrático. O processo de contra-ordenação existe em muitos países, significativamente do Leste e do Oeste, e não adopta todas as garantias adaptáveis. Neste processo a instrução poderia ser perfeitamente da competência de um juiz. É adaptável, não há nada na natureza das coisas que diga que não pode ser adaptável. É adaptável, mas, no entanto, não se aplica e, do nosso ponto de vista, bem.
Se quer dizer que eu, ao defender esta posição, estou contra os princípios do Estado de direito, diga, mas esse não é o meu entendimento. Porém, não me parece que se possa tirar essa conclusão, isto é, que a recusa a esta proposta seja uma recusa contra o Estado de direito. Repito, ao processo de contra-ordenação, como o Sr. Deputado sabe muito bem, eram adaptáveis todas as garantias do processo criminal, bastava dizer que há uma sanção diferente que não tem o carácter estigmatizante das sanções penais, etc., que é uma coisa com carácter puramente pecuniário e que não é convertível em prisão e cederíamos manter a identidade da sanção e manter um processo inteiramente idêntico ao processo criminal. Todas as garantias são adaptáveis, todas! No entanto, não há ninguém que o faça.
São estas considerações que me levam a votar contra isso, porque senão teria de moldar o processo das contra-ordenações segundo o processo penal, já que todas as garantias do processo criminal, todas, são adaptáveis.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, de forma alguma pretendia inculcar que o Sr. Deputado Costa Andrade ao entender impertinente e inconveniente uma proposta dessas se volvesse contra o Estado de direito democrático.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Mas parecia, Sr. Deputado.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas pareceu mal. Pretendia dizer que, sendo Portugal, nos termos constitucionais, um Estado de direito democrático, é inconcebível, porque seria pura e simplesmente inconstitucional, que processos sancionatórios de qualquer natureza - esses processos podem ser tanto aqueles que aqui foram referidos como processos de extradição, de expulsão de estrangeiros (como o Sr. Deputado Costa Andrade seguramente sabe), como certos processos de execução de penas - não sejam caracterizados, todos eles, pela garantia aos atingidos, dos direitos de audiência, de defesa e de produção de prova e outros direitos inerentes ao não sancionamento arbitrário e que são muitos. Pode, naturalmente, discutir-se uma formulação do tipo da nossa não será excessivamente abrangente. Neste sentido exacto vai a observação feita pelo Sr. Deputado Almeida Santos, que me parece perfeitamente razoável, pois, como se usa um conceito com um grau de densidade baixo, qual seja o conceito de adaptabilidade, e como se usa um conceito "totalitário", qual seja o de todas as garantias, é evidente que isso pode colocar dificuldades hermenêuticas. Por isso digo que é evidente que sensatamente poderemos entender que a discussão vale um apertar de malha e uma precisão, até para evitar ao intérprete a trabalhosa tarefa, um pouco especiosa, de se saber quais são verdadeiramente todas as garantias adaptáveis, todas. Evidentemente, quanto a algumas seria absurda a sua propositura, designadamente quanto ao direito de mera ordenação social. Se é discutível que ele se defina unicamente pelo critério que o Sr. Deputado Costa Andrade acabou de apontar, isto é, a natureza da sanção aplicável, se há quem entenda, creio que correctamente, que há-de definir-se esse direito não só por recurso à natureza da sanção, mas também ao meio de sancionamento e, designadamente, à desjurisdicionalização...
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sobretudo à gravidade e natureza do ilícito.
O Sr. José Magalhães (PCP): - ... e à natureza própria dos ilícitos, ainda que aí entremos em reflexões quase filosóficas sobre quais as fronteiras e os critérios e as bitolas para separar as águas; se se pode, porém, dizer tudo isto, então talvez valha a pena, evitar a indefinição, precisar um pouco. Poderemos ser perfeitamente sensíveis a esse argumento. Mas sensibilizou-me ouvir tão peremptoriamente proclamar a desnecessidade de um norma destas com o argumento da inconveniência, como se tudo isto não fluísse da própria essência do Estado de direito democrático.
Como os Srs. Deputados sabem, na boa hermenêutica constitucional já hoje se entende que estes princípios elementares e básicos da Constituição relativos ao processo criminal são aplicáveis a todos os processos sancionatórios. Aliás, defende-se isso com base nos argumentos que procurei aqui expender, com o apoio em alguns outros artigos, designadamente aquele que foi enunciado muito correctamente pelo Sr. Presidente, ou seja, n.º 3 do artigo 269.°, que é relativo ao processo disciplinar na função pública, e no princípio geral de recurso aos tribunais, que está expresso no n.° 2 do artigo 20.°, que é um direito de todos os cidadãos, mesmo quando atingidos por qualquer medida disciplinar.
Portanto, a partir de alguns dispositivos constitucionais em vigor e da filosofia estruturante do nosso sistema é possível reconstituir uma solução constitucional do tipo daquela que procuramos aqui explicitar. Do que se trata aqui é de explicitar e não mais. O nosso grau de inovação é, apesar de tudo, baixo. Se assim não fosse, o saldo deste debate seria horrível, seria um menos em relação ao mais que, segundo aquilo que entendemos, se encontra, neste momento, consagrado.
Portanto, não gostaríamos que da não consideração de qualquer proposta deste tipo resultasse uma hermenêutica perversa em relação àquilo que, segundo pensamos, são hoje garantias alcançadas pelos cidadãos.
Em suma, Sr. Presidente, creio que esta inserção sistemática é correcta. É que se trata de proclamar o direito de todos os cidadãos e dos não cidadãos - e aqui refiro-me aos estrangeiros - em todos os processos sancionatórios.
Não somos obrigados a utilizar uma terminologia que se autodefína até ao milímetro, já que estamos a recorrer a um espaço semântico, qual seja este dos processos sancionatórios, que tem definição possível e razoável face aos instrumentos disponíveis de interpretação do direito.
Creio que a inserção tem esta justificação bastante.
Quanto à questão do critério para garantia gostaria de dizer o seguinte: talvez os argumentos dos Srs. Deputados possam convergir no mesmo sentido. É que vale a pena elencar expressamente as garantias mínimas. Creio que valeria a pena fazer este esforço.
Por último, estaremos dizendo uma banalidade, designadamente em relação ao direito de mera ordenação social. E que seria inconcebível que este direito, ao desjurisdicionalizar, acarretasse uma perda tão visceral de direitos,
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designadamente na área sensível do direito de defesa. Essa "banalidade" é, em nosso entender, de clara utilidade para que se complete aquilo que na Constituição tem, neste momento, um recorte que podemos precisar. E só o facto de termos feito o debate nestes moldes e de isso ter sido possível é a prova de que esse recorte deve ser mais preciso. Creio que o contributo que poderíamos dar nesta área seria bastante útil, mas desde que fôssemos pelo caminho que foi indicado pelo sentido fundamental das intervenções produzidas.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.
O Sr. Almeida Santos (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador)... constitucionalização das garantias mínimas. Penso que esse é um caminho possível e que o uso de formas genéricas pode ser perigoso. Creio que a explicitação poderia ser vantajosa, mas a equiparação seria perigosa.
O Sr. Presidente: - Devo dizer que não tenho objecções a apresentar. Pelo contrário, penso que poderia ter alguma vantagem dizer: "São asseguradas ao arguido as garantias de audiência, de defesa e de produção de prova."
O Sr. Almeida Santos (PS): - Vamos depois ver quais elas são.
O Sr. Presidente: - Creio que isto alargava o n.° 3 do artigo 269.° a outro tipo de processos. Depois teríamos de ver como é que as coisas se colocariam em alguns processos um pouco mais delicados. É o caso, por exemplo, da matéria dos processos sancionatórios dentro dos partidos políticos.
Em todo o caso, não tenho nenhumas dúvidas em subscrever uma solução deste tipo.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Explicitava-se, mas sem equiparar.
Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, quero reafirmar a nossa posição em relação a esta matéria.
Com esta estrutura normativa, o que está aqui é completamente diferente da alternativa de enumerar algumas garantias aplicáveis. Isso é diferente daquilo que consta desta proposta, quer em termos hermenêuticos, quer em termos normativos, quer ainda em termos das suas implicações. É em face dela que reagiremos. Á partida não nos parece correcto tomar uma atitude fechada em relação a uma proposta que venha nesse sentido. Relativamente a uma proposta como esta reconfortamo-nos na declaração do Sr. Deputado Almeida Santos, ou seja, também a consideramos perigosa.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vamos passar ao artigo 33.° em relação ao qual há uma proposta de alteração do PSD ao n.° 4, e que é do seguinte teor:
A extradição e a expulsão, depois de autorizada definitivamente a residência no território nacional, só podem ser decididas por autoridade judicial.
A questão que aqui se coloca é a seguinte: em relação à extradição nenhumas dúvidas se colocam em que ela só deve ser feita na base de uma decisão tomada por autoridade judicial.
No que respeita à expulsão existem duas situações distintas.
Uma é a do estrangeiro que foi autorizado a entrar no território nacional e que depois é objecto de uma medida de expulsão. Pensamos que essa decisão também só deve ser tomada por autoridade judicial.
A segunda alternativa é a do estrangeiro que entrou abusivamente no território nacional. Encontram-se regulamentadas as condições em que um estrangeiro pode entrar no território nacional. Há situações, que vale a pena analisar com algum detalhe, em que as delongas de um processo judicial não se justificam, já que uma tutela dos direitos do estrangeiro que abusivamente entrou em território nacional que exijam essa aplicação. Penso, concretamente, naquelas que, de uma maneira sub-reptícia, a assalto, entram no território nacional. Isto não significa que não tenha de haver um processo. Designadamente, a discussão que tivemos há pouco a propósito dos processos sancionatórios pode ser extremamente útil, na medida em que, como é evidente, deve ser dada ao estrangeiro a garantia de defesa para justamente prevenir a hipótese de que haja alguma justificação. De resto, a regulamentação actual prevê que a expulsão não possa dar-se, por exemplo, para um país em que o estrangeiro venha a ser perseguido politicamente. Isso já é garantido pela legislação ordinária, é um aspecto que decorre de um princípio geral da Constituição. Portanto, o problema situa-se nestes estritos termos. Aliás, vale a pena ter em conta aquilo que já hoje dispõe a alínea b) do n.° 3 do artigo 27.°
Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Presidente, pareceu-me extrair da sua intervenção que não está de acordo quando o n.º 4 equipara a extradição à expulsão.
O Sr. Presidente: - Exacto, Sr. Deputado.
O Sr. Almeida Santos (PS): - É uma novidade que me parece muito positiva.
Creio que as duas figuras não deveriam ter a este respeito o mesmo tratamento. Portanto, vamos partir do princípio de que a extradição, que continua a só poder ser tomada por decisão judicial, está fora do nosso tema, e vamos encarar apenas o problema da expulsão.
Estive em vários governos e deparei-me com problemas muito concretos a este respeito. O que está em causa não é só o problema do indivíduo que passa a salto a fronteira, dado que no território nacional também se inclui o espaço aéreo. Imaginemos a seguinte situação: um estrangeiro, que viaja sem autorização, cruza a fronteira das linhas aéreas - limite do espaço português. Nesta hipótese ele nunca mais pode ser posto fora, ainda que no próprio momento em que pôs pé no aeroporto. A entidade aeroportuária não pode dizer-lhe: "Quem é que lhe deu autorização para entrar? Não tem visto, ponha-se lá fora!" E, não podendo, o indivíduo em causa fica o tempo que durar o processo até decisão do juiz. É excessivo. Sempre me pareceu que não é muito razoável que nestes casos se exija a intervenção da autoridade judicial.
Em todo o caso, temos de ser muito cautelosos na redacção de qualquer alteração. É que se nestes casos extremos, quase caricaturais, a solução se impõe, outros casos haverá em que uma simples decisão administrativa pode ser
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perigosa. Gostaria de que, neste caso, fôssemos tão cautelosos quanto possível. É que também há casos em que há indivíduos que já estão em Portugal há muito tempo, com conhecimento das autoridades portuguesas e apesar disso não autorizados a permanecer em território português. De repente, uma autoridade administrativa qualquer resolve embirrar com os olhos de um deles e diz sem mais: "Ponha-se lá fora." Não pode ser! Há um meio termo que é preciso salvaguardar.
Em relação à extradição estamos de acordo. Somos sensíveis à necessidade de uma reponderação desta ordem relativamente às entradas que estão, de algum modo, próximas das caricaturas do salto e da entrada por avião no espaço aéreo nacional. Entre estes dois extremos há, como é evidente, situações que merecem ser encaradas com cautela. Isto é, nem só a decisão administrativa em todos os casos, nem a necessidade de recurso ao juiz em todos eles.
Somos sensíveis a uma adequada correcção. Depois veremos qual a redacção mais adequada.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.
O Sr Vera Jardim: - Sr. Presidente concordo com aquilo que foi dito pelo Sr. Deputado Almeida Santos.
Há aqui uma questão fundamental e que é a que diz respeito à expressão "definitivamente". Não me recordo da última legislação relativa à autorização de residência.
Há pessoas que estão autorizadas a residir no território nacional, mas não definitivamente. Qual é o sentido deste termo "definitivamente"? É uma autorização definitiva, no sentido que está dada por 90 dias? É a residência definitiva, no sentido que tem a residência autorizada, com a emissão de um bilhete de identidade para cidadão estrangeiro, etc., e segundo a lei de residência dos estrangeiros? É que este "definitivamente" cria aqui alguns problemas. Vamos supor a seguinte situação: um turista entra com um visto de 90 dias. Pode ser expulso por uma autoridade administrativa?
Vozes.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, penso que o problema da fórmula pode ser discutível e, eventualmente, retirar "definitivamente" pode dar uma ajuda. A ideia do termo "definitivamente" é a de um acto administrativo definitivo.
O Sr. Vera Jardim (PS): - Isso não é muito claro, Sr. Presidente.
O Sr. Presidente: - Por exemplo, tomemos em consideração o caso, que foi suscitado, de o estrangeiro que é autorizado a permanecer 90 dias. Findo esse prazo, ele não tem um título que legitime a sua estada em território português.
Sou sensível ao argumento aduzido pelo Sr. Deputado Almeida Santos. Em relação ao estrangeiro que está ilegalmente no território nacional para lá de um determinado espaço de tempo a lei ordinária terá de regular esse aspecto. Não podemos ser insensíveis a essa circunstância e não me parece que a situação do indivíduo que permanece seis ou oito meses em Portugal, com presença consentida - embora não haja nenhum acto formal que a tenha autorizado -, possa ser indiferente em termos de protecção de direitos. Já é completamente diferente a situação em que o indivíduo utiliza abusivamente um visto turístico de 30 ou 60 dias ou que chegou aqui sem ele ou os casos ainda mais caricaturais que há pouco foram invocados.
Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.
O Sr. Vera Jardim (PS): - Mas há outros casos, Sr. Presidente. Aqui a questão complica-se um pouco. Por exemplo, um indivíduo que vem a Portugal prestar um trabalho temporário ao serviço de um empresa estrangeira. Tem um visto de trabalho válido por um ano. Tem ou não uma autorização definitiva?
O termo "definitivamente" cria algumas dificuldades de interpretação. A que situações é que isto se aplica?
O Sr. Almeida Santos (PS): - A autorização tem de ser definitiva, mas a presença não tem de o ser.
O Sr. Vera Jardim (PS): - Mas nesse sentido é uma autorização definitiva, Sr. Deputado. Penso que poderíamos melhorar o preceito para que podesse haver uma maior clareza.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.
O Sr. Alberto Martins (PS): - Sr. Presidente, uma vez que há uma proposta de alteração de um número deste artigo, penso que talvez fosse de ponderar a hipótese de alargamento das restrições da estradição. Aliás, isto ia ao encontro de algo que já está recolhido no nosso direito ordinário vigente, sobretudo a partir da ratificação da Convenção Europeia para a Repressão do Terrorismo. A Assembleia da República proibiu a possibilidade de extradição não só nos casos nacionais relativos à pena de morte e por motivos políticos, mas ainda admitiu a possibilidade de alargar o âmbito da proibição da extradição quando as sanções que a justificam possam conduzir a penas de prisão perpetua ou medidas de segurança com carácter perpétuo. Recordo que a disposição então adoptada ia um pouco neste sentido. Portugal, como estado requisitado, recusa-se a proferir a extradição se no Estado requisitante as infracções forem punidas com a pena de morte ou com penas ou medidas de segurança privativas de liberdade com carácter perpétuo.
Uma vez que vamos mexer neste artigo, não sei se não seria de o constitucionalizarmos, ao abrigo da interpretação que admite a possibilidade de poder ter uma alteração mais substantiva, de podermos integrar isto nesta alteração que é apresentada.
O Sr. Presidente: - Registo essa preocupação, Sr. Deputado Alberto Martins, embora tenha dúvidas sobre se se inclui na latitude dos nossos poderes essa proposta. É que a única proposta de alteração é exclusivamente, a propósito da expulsão, não toca na extradição. Portanto, em rigor não há nenhuma conexão directa com ela. Em todo o caso, poderemos deixar a sua análise para um momento ulterior.
Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Devo dizer que isto tem toda a lógica porque no actual artigo 30.° proíbem-se as penas de carácter perpetuo. Penso que esta era uma maneira indirecta de aplicarmos uma pena de carácter perpétuo, deixando que o estrangeiro a fosse sofrer no país requisitante. Tem toda a lógica, mas não sei se terá outras implicações. Não estudei este problema em concreto.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.
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O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, salvo melhor entendimento, penso que não devemos ser excessivamente rígidos quanto às propostas de alteração.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Costa Andrade, estamos a tactear e a estabelecer uma jurisprudência.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Exacto, Sr. Presidente. Uma vez que estamos a mexer no artigo, penso que poderíamos abrir um pouco essa possibilidade.
Tenho algumas dúvidas, embora compreenda inteiramente a bondade da proposta. Na nossa ordem jurídica interna somos contra as penas perpétuas e queremos contribuir com os nossos meios para essa situação. Assim, não podemos extraditar um indivíduo para um país que tenha pena perpétua. Não sei se a nível constitucional esta questão não reclamará um maior amadurecimento. É certo que o argumento da legislação ordinária é importante, mas a verdade é que sempre poderemos, com maior maleabilidade, mexer na legislação ordinária. Há Estados com os quais temos relações abertas que prevêem a pena perpétua. Não sei até que ponto é que devemos consagrar isto na Constituição.
De qualquer forma, como fomos confrontados com esta proposta, pediríamos um prazo para reflectir sobre ela. É que isto é uma forma de intervirmos com os nossos meios no direito dos outros. Em relação à pena de morte não hesitamos: com a nossa colaboração ninguém matará ninguém, não entregaremos ninguém à morte. A pena perpétua é, no fundo, um passo no mesmo sentido. Devemos ou não dá-lo? Devo dizer, Sr. Deputado José Magalhães, que neste momento estou absolutamente convencido de que nós, Portugueses, não deveremos ter penas perpétuas. Estou à vontade para dizer isso porque tenho dado o meu contributo para que as penas de prisão sejam o mais curtas possível, e pago os custos sociais que isso tem tido.
De todo o modo, quanto às repercussões noutras ordens jurídicas e a outros efeitos, tenho neste momento algumas dúvidas, pelo que solicitaria também um prazo de reflexão. Uma vez que a proposta não está feita, reflectiremos sobre ela e na altura própria tomaremos uma posição definitiva. Confesso que gostaria de consultar algumas pessoas com maior experiência nestes domínios.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, colocavam-se-me grandes interrogações quanto à proposta do PSD na sua versão originária, porque tinha aplicado aqui aquele conceito elementar de que "a chave faz-se para a fechadura". A questão era, portanto, a de saber em que fechadura é que esta chave do PSD serviria. Parecia-me servir na fechadura da Europa das polícias e na tendência para a crescente administrativização da adopção de certas medidas, entre as quais se contam, naturalmente, a extradição e a expulsão. Mas as observações agora feitas pelos Srs. Deputados deixam-me um tanto perplexo. Se não se trata disso, e sim de outra coisa, então a forma de considerar a proposta deve ela própria ser diferente.
No entanto, não deixa de subsistir alguma dúvida, porque o facto de se propor que na balança dos poderes nesta esfera se aumente a margem de manobra das polícias significa, naturalmente, a diminuição da margem de manobra dos tribunais. E aquilo que o PSD faz é propor a diminuição da margem de manobra e de intervenção dos tribunais em benefício das polícias. Devo dizer que seria útil explicitar o pano de fundo e os pressupostos de uma proposta deste tipo, porque há quem, noutros países e noutros contextos, explicite abertamente esses pressupostos e esse pano de fundo. O Ministro Pasqua apresentou e fez aprovar no Parlamento Francês um conjunto de medidas nesta esfera, relativas precisamente à expulsão de estrangeiros, em todas as dimensões, com todos os pretextos, com todos os fundamentos. Constitucionalmente, entre nós, tal não é possível. De resto, suponho que terá sido essa a razão pela qual o bom Govêrno que nos governa não teve ocasião de nos trazer uma proposta desse tipo, porque seria aberta e rematadamente inconstitucional. Não teria ponta por onde se lhe pegasse e poderíamos estar aqui com ela noites e madrugadas que morreria aí, onde as propostas morrem, de madrugada ou de dia.
Portanto, a questão aqui colocada é melindrosa face à arquitectura constitucional, num domínio tão sensível. Sei que existem situações limite em que a expulsão administrativa quase se poderia colocar ou em que se poderia perguntar por que é que o legislador constitucional não cria uma cláusula de salvaguarda dessas situações.
Mas devo dizer que tenho alguma dificuldade em perceber a vantagem de uma cláusula desse tipo, na medida em que me parece extraordinariamente difícil que ela seja precisa, sendo a precisão a tal característica que nós aqui acima de tudo prezamos, como o demonstram os debates antecedentes. Mas se essa cláusula for geral ou genérica os riscos de equivocidade prejudicial são imensos. Isto é, atrás de propostas desse tipo existe sempre um preconceito que me parece odioso, qual seja o de que as polícias são rápidas enquanto os tribunais são morosos e chatos. E não pode ser assim, porque se trata de um pressuposto errado, erróneo, vicioso e viciado em si próprio. A decisão judicial é evidentemente uma garantia que, porventura, pode ser imerecida em certos casos. Mas a expulsão é, também ela, uma cto invulgar, é uma medida que a nossa lei define como sendo tomável em relação aos estrangeiros que se encontrem em território nacional, por nele terem entrado irregularmente ou por outros motivos, designadamente o atentado contra a segurança nacional, a ordem pública, os bons costumes ou por participarem de forma activa em acções políticas, sem para tal estarem devidamente autorizados, não terem respeitado as condições estabelecidas para a sua estada. É o que tudo diz o Decreto-Lei n.º 264-B/81 no seu artigo 42.°, n.° 1. E isto é ainda resolúvel noutros termos no quadro da lei ordinária, dentro dos limites constitucionais, sendo imagináveis 300 000 sistemas de aceleração da produção, perante o juiz, do estrangeiro a expulsar, quando haja motivo para tal.
Mas as soluções "abertas" e desjurisdicionalizadas é que criam um problema bastante grave, em termos de transparência, ao Estado democrático. É que enquanto os actos das autoridades judiciais são bastamente controláveis, os das autoridades policiais não o são. Como tal, alguns dos direitos que os estrangeiros têm na nossa ordem constitucional podem não ser exercíveis por uma "expedita e atempada" intervenção da autoridade policial. Por exemplo, se o estrangeiro é alguém que busca asilo, pela razões que o legitimam, ou alguém que almeja ao estatuto de refugiado político, nos termos da Constituição e da lei, há uma forma preventiva e eficaz de prevenir a colocação destas duas questões, qual seja a de expulsá-lo "administrativamente e em tempo", antes de obtidas as autorizações. Suponho que é por isso que o texto do PSD, na sua confecção íntima, dizia aqui, por razões que eu percebo, "autorização definitiva". Se nós estabelecêssemos uma fronteira desse
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tipo, isto é, de um lado, os autorizados não definitivamente e, do outro, os autorizados definitivamente, pela cláusula criada em sede da revisão constitucional só seriam autorizados definitivamente aqueles que não fossem expulsos, consoante as polícias entendessem.
Consequentemente, a questão do universo dos autorizados definitivamente não só se restringiria muito pelos poderes que as autoridades administrativas já têm por si no acto de concessão originária, como também pela concessão a essas autoridades de um poder eminente e incontrolado de expulsão: "Eu que te dei autorização, eu te expulso." E isto sem nenhuma garantia para o estrangeiro a quem havia sido concedida essa autorização provisória hoc sensu.
Creio que seria bastante útil sabermos o que é que pode levar a que se pense num deslizamento deste tipo e, designadamente, que queixas é que há por parte do Serviço de Estrangeiros, cujas competências chorudamente alargadas por diploma ordinário na legislatura passada não só continuam em expansão, como estão neste momento caracterizadas por uma extradordinária celeridade com a informatização crescente dos serviços. Esta informatização crescente pode conduzir, designadamente, a que se expulse, in limine, um indivíduo em relação ao qual se topou uma informação eventualmente errada, mercê dos tais famosos computadores, sem garantia mínima de que Portugal, Estado de direito democrático como tal, possa exercer os seus poderes e as suas prerrogativas em relação àquilo que o próprio artigo 33.° noutras cláusulas estabelece.
Creio assim, Sr. Presidente, que só com muito cuidado é que se poderá progredir neste terreno e, sobretudo, com mais transparência e mais informação sobre as razões da versão originária do PSD, que tem um lógica. Embora não seja subscritível, nem partilhável, mal se atente nela, tem uma lógica: é a da Europa das polícias, pelo menos.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.
O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Inicialmente tinha pedido a palavra para propor algo que suponho já estar adquirido e que é o desdobramento desta proposta. Ou seja, considerar-se num número a extradição e noutro número a expulsão. Mas, se bem entendi, isto já está adquirido.
O Sr. Presidente: - Nunca esteve em discussão.
O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Esteve em discussão na medida em que a proposta do PSD é de um novo n.° 4.
O Sr. Presidente: - Mas nunca esteve em discussão o problema da extradição.
O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Certo. Mas na redacção inicial...
Vozes.
O Sr. Presidente: - Se V. Exa. ler gramaticalmente, não está. Se fizer uma interpretação perversa, evidentemente que isso depende do hermeneuta.
O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Presidente, peço desculpa, mas a minha interpretação não é perversa...
O Sr. Presidente: - Eu sei, ou calculo...
O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Nem a interpretação de nenhum dos deputados, nem a de qualquer leitor rigoroso. Aliás, o Sr. Deputado Almeida Santos começou por referir, congratulando-se, que considerava positivo o facto de o Sr. Deputado Rui Machete ter dito que havia que distinguir as condições da extradição e as condições da expulsão. Assim, dou por adquirido que haverá dois números, porque é a forma mais simples do dispor sobre dois institutos diferentes.
Em relação à parte relativa à extradição, nada acrescento. O que foi dito pelos Srs. Deputados do PS parece-me perfeitamente razoável.
Quanto à expulsão, parece-me de facto que ela deve ser flexibilizada. Todavia, as considerações que acaba de produzir o Sr. Deputado José Magalhães levaram-me a pedir a palavra para me ocupar do assunto. Afigura-se-me um pouco perigoso que se confira simplesmente às polícias o poder de expulsar. Julgo que, em certos casos, esse poder deve ser administrativo e não judicial. Não vou reproduzir argumentos nesse sentido. Sublinho apenas que esse poder deve ser do Govêrno e não das polícias. Interrogo-me sobre se deve ser o Govêrno através do Ministro do Interior. Acho pouco, acho que deve ser do Conselho de Ministros ou,
Constituição não é um texto regulamentar em que se possa dizer isto. Contudo, algo se deve dizer no sentido de que esta expulsão administrativa seja da responsabilidade do Governo. Claro que não ficará bem numa Constituição dizer-se que não é da competência do Ministro do Interior, mas os Srs. Deputados, que são juristas, saberão dizer isto pela positiva, de forma que fique claro que a expulsão administrativa é da responsabilidade do Governo, ou do Conselho de Ministros, ou do Primeiro-Ministro ou, no limite, também do Ministro da Justiça. Mas suponho que devemos dizer algo que retire às polícias o poder de decidir a expulsão de estrangeiros sem que o Govêrno autorize ou consinta nesse acto.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Queria apenas chamar a atenção para o facto de que hoje, pela nossa Constituição, um indivíduo que entre irregularmente em território pode ser preso sem uma decisão judicial. Consequentemente, não me parece que seja assim tão chocante o facto de alguém poder ser posto do lado de lá da fronteira. Já hoje, repito, pode ser preso. Se se pode o mais, por que não o menos? A minha ideia nunca foi a de que a determinação da expulsão competisse à polícia. Mas as funções da polícia estão definidas na Constituição e na lei, pelo que me não parece que exista esse risco. Se houver, que se diga claramente: por autoridade administrativa, ou coisa do género, definindo a lei a entidade política ou administrativa que caberá determinar a expulsão. Porém, esta hipótese nunca me passou pela cabeça.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Pode-se prender, Sr. Deputado, precisamente porque entre nós existe uma cláusula constitucional, decorrente da primeira revisão constitucional, que expressamente o previu, o artigo 27.º, n.° 3, alínea b).
O Sr. Almeida Santos (PS): - Por isso mesmo. Não me repugna que na revisão constitucional se estipule uma cláusula paralela em que se estatua algo que, apesar de tudo, é um minus em relação a isso. Não se trata de prender mas
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sim de expulsar... Porém, deverá estabelecer-se a garantia de que a competência para determinar a expulsão caberá a uma entidade idónea administrativa e não a uma entidade policial. Mas parece-me que nem isso é preciso, visto que as funções policiais estão caracterizadas na Constituição.
Se necessário, haverá que estabelecer essa ressalva: polícia, não; autoridade administrativa, sim... E logo veremos como é que se vai concretizar essa salvaguarda. Mas também não vejo que tenhamos, sistematicamente, de levar tão longe a preocupação de inscrever na Constituição todos os direitos fundamentais, quando na vida de um país também existem problemas pragmáticos que podem justificar, em determinados casos, que se flexibilizem as normas. Chega aí um nazi famoso...
O Sr. Presidente: - Já chegou ...
O Sr. Almeida Santos (PS): - Chegou e ficou aí a fazer férias o tempo que quis, andou pelo Estoril, até que morreu em paz... Não fomos capazes de o pôr lá fora... Amanhã chega aí um terrorista célebre, identificado, ou melhor, sabe-se que entrou. Sabe-se que vem cumprir uma missão qualquer e prendemo-lo. Muito bem. Mas por que é que não havemos de o pôr lá fora? Era muito mais simples e, porventura, muito mais eficaz. Se ele estiver na cadeia, ainda é capaz de provocar acções para o libertar e lhe permitir, no dia seguinte, o cumprimento da sua missão. Assim sendo, e existindo já uma norma constitucional desse género, não repugna que, com todas as cautelas - que em matéria de direitos humanos nunca são de mais -, se consagre uma norma que, apesar de tudo, estabeleça algo de menos grave do que a prisão.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, entende que há no direito português omissão dos meios legais adequados para enfrentar uma situação como aquela que exprimiu? É que, tragicamente, não há! Há esses meios, mas são jurisdicionais numa parte...
O Sr. Almeida Santos (PS):-O Sr. Deputado José Magalhães disse que estamos sempre com medo. Mas é um medo real, o medo de que as coisas, quando correm pelos tribunais, nem sempre corram com a celeridade desejável em face dos valores em causa. Porque haveremos de dar ao terrorista célebre, ao fascista que entrou com passaporte falso, a garantia de comparecer perante um juiz, quando deveriam ter entrado em resultado de um decisão administrativa que não existiu? Por que é que não hão-de ser postos lá fora por decisão administrativa, desde que séria e tomada por uma entidade idónea? Entrou sem autorização? Vá lá fora e peça-a. Que protecção merece um indivíduo que entrou indocumentado em Portugal? A preocupação de ter de ser um tribunal a expulsá-lo seis meses depois? Sinceramente, penso que não se justifica tanto, embora concorde com o estabelecimento de todas as cautelas e com o entendimento de que não seja a polícia a determinar a expulsão.
Sei que se trata de problemas reais na medida em que os vivi quando estive no Governo. Foi o Trifa, foram outros que apareceram por aí. E não pudemos expulsá-los pela simples razão de que para tal era necessária uma decisão judicial.
Parece-me, sinceramente, que consagrarmos uma norma desta ordem não é de mais. E o meu ponto de vista, neste momento, e que não vincula o meu partido.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Gostaria apenas de observar que a cláusula do artigo 27.°, n.º 3, alínea b), permite a "prisão ou detenção de pessoa que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou contra a qual esteja em curso processo de extradição ou de expulsão". Porque não é obrigatório que uma pessoa contra a qual esteja pendente um processo de extradição ou de expulsão tenha de ser presa. Criou-se uma cláusula habilitante dessa prisão. No entanto, isto é totalmente diferente de se criar uma cláusula que, dispensando-se a mediação judicial, permita a expulsão, verificada a penetração irregular no território ou a permanência irregular. E o Sr. Deputado Vera Jardim chamou a atenção para o facto de que esta hipótese não é tão fácil de captar como isso, porque há uma multiplicidade de situações configuráveis, designadamente a de aqueles que, não obstante terem penetrado regularmente no território, vieram, porém, por esta ou por aquela razão a encontrar-se em situação irregular, o que, como se sabe, pode estar na disponibilidade das autoridades administrativas, na medida em que estas têm prerrogativas insupríveis quanto às autorizações necessárias.
Mas mais grave do que esta incerteza gerada no regime jurídico talvez seja o facto de sabermos que a concessão, por exemplo, do estatuto de refugiado faz cessar todos os procedimentos criminais por entrada ou permanência irregular. Assim, não se pode extraditar ou expulsar um indivíduo sem lhe fazer perder, antes, o estatuto de refugiado.
O Sr. Almeida Santos (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador)... e colocava-o perante este caso simples, que é o mais frequente: um indivíduo chega ao aeroporto indocumentado. Por que é que o Estado Português, através de autoridade administrativa competente, não há-de ter o direito de lhe dizer: "O senhor volta para onde veio, porque ninguém o autorizou a entrar." Presentemente, ele pode ripostar: "Não, não ... Está aqui o meu advogado, estudei isso bem, já estou em território nacional e só um juiz me pode expulsar." O Governo, provavelmente, responde-lhe: "Ah sim? Então, prendo-o!" Por que é que temos de recorrer à prisão se temos uma solução fácil, que reside em lhe dizer: "O senhor não tem documentos de entrada? Então saia pela mesma via por onde entrou." É tão simples como isso.
Claro que se ele já cá está, com conhecimento das autoridades, numa situação de facto tolerada, aí o caso é diferente. Mas nos casos extremos que mencionei temos mesmo de o aguentar seis meses enquanto não há uma decisão judicial?
O Sr. José Magalhães (PCP): - Dá-me licença que o interrompa, Sr. Deputado?
O Sr. Almeida Santos (PS): - Faça favor, Sr. Deputado.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Permita-me que tome este caso que apresentou e que me parece extremamente sugestivo. E que esse indivíduo, eventualmente pé descalço e roto, pode querer invocar um direito...
Vozes.
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Como é óbvio, não estou a referir-me ao mensageiro da cocaína, porque o problema desse é fácil de resolver. E o problema do Sr. Trifa também o era, se tivesse havido a sageza e a vontade política para o efeito adequado.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Garanto-lhe que os tribunais não responderam com a celeridade que o Govêrno desejou. Mas não há mesmo a possibilidade de, porque somos um Estado de direito, felizmente, impedir que se recorra, que o recurso suba, volte a descer, tome a subir, até que o interessado morra em paz e sossego.
O Sr. José Magalhães (PCP): - A questão, Sr. Presidente, é precisamente de que se esse indivíduo, estrangeiro ou apátrida, pode ser esse o caso, vem indocumentado, porque foi perseguido e espoliado da documentação, ou está gravemente ameaçado de perseguição - por exemplo, por ser lutador pela democracia, pela libertação social e nacional, pela paz entre os povos, pela liberdade e direitos da pessoa humana - na versão do PSD não pede o asilo, porque o põem fora, acto contínuo, sem decisão judicial.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Se ele disser está aqui o meu advogado, quero fazer uma petição de asilo - não estamos num país selvagem, fará a sua petição, que será, obviamente, apreciada.
O Sr. José Magalhães (PCP): - A proposta do PSD não tem uma formulação que garanta essa hipótese.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Mas não se pode dizer tudo nas constituições.
O Sr. José Magalhães (PCP): - A proposta é radical e total.
O Sr. Presidente: - Em todo o caso, uma vez que fui eu quem apresentou a proposta, gostaria de dizer o seguinte: na realidade, pensei não existirem quaisquer dúvidas, de confusão, entre a extradição e a expulsão, porque os pressupostos são completamente diferentes.
O Sr. José Magalhães (PCP): - É sobre isso precisamente, Sr. Presidente.
O Sr. Presidente: - Tem toda a razão.
Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.
O Sr. Raul Castro (ID): - Sr. Presidente, realmente não pode entender-se que a proposta do PSD, tal como está formulada, se refira apenas à expulsão. Basta relê-la para constatar isso. É claro que se pode dar aqui a explicação de que era essa a intenção, mas não é possível sustentar que ela se refere apenas à expulsão porque, se a palavra "podem" (o verbo) está no plural, o sujeito da oração não pode ser singular; não pode ser apenas "a expulsão", terá de ser plural. Daí a expressão "a extradição e a expulsão podem". De outra forma, não faria sentido que o predicado viesse no plural.
Admitindo, porém, que não era esta a intenção - naturalmente, é sempre possível admiti-lo, e não é isso o que está em causa -, uma coisa é o que está no texto da proposta e outra a sua intenção. Na realidade, não era sobre o texto da proposta que nos queríamos pronunciar, mas sim quanto à sua intenção. O que a proposta consubstancia - e este é o aspecto que me parece importante - é uma restrição de direitos, na medida em que introduz um elemento que permite ainda que só a expulsão seja submetida ou fique dependente da decisão da autoridade judicial. De tudo o que ouvi, ficou-me a ideia de que, por um lado, quando foi feita a anterior revisão constitucional já existiam infelizmente terroristas e nazis que circulavam em vários países - portanto, esse não é um fenómeno novo, porque já então existia- e, por outro, a alínea b) do n.º 3 do artigo 27.° permite ir ao encontro da restrição urgente que se impõe em casos desses, porque contempla precisamente a penetração ou permanência irregular no território nacional. Se, portanto, relativamente a um indivíduo que penetre ou permaneça irregularmente em Portugal não há possibilidade de expulsão sem decisão judicial, a verdade é que, pelo menos, há possibilidade de o privar da liberdade enquanto não for proferida decisão no processo judicial, o que já é admitido na Constituição. O principal obstáculo ou defeito que se aponta à redacção actual do artigo 33.º, n.° 4, já estava contemplado no artigo 27.º
De qualquer forma, fica-nos a ideia de que o próprio PSD considera que a sua proposta além de se referir apenas à expulsão, também carece de uma nova redacção e que, posteriormente, irá apresentar outra proposta. Por isso, reservarmo-nos-íamos para esse momento, para nos pronunciarmos em definitivo.
O Sr. Presidente: - Suponho que uma das vantagens das discussões é a de esclarecer os sentidos e, com V. Exa. deve ter visto, vários proponentes, todos eles usando legitimamente a sua cabeça, reconhecem que há alguns aspectos que não correspondem no texto ao que são as suas intenções e admitem rever essas posições. Penso que isso é positivo e revela a utilidade destes debates.
Podemos passar adiante? Está tudo esclarecido?
Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.
O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Presidente, serei muito breve. Precisamente porque V. Exa. acaba de dizer que o esclarecimento do sentido é útil, permitia-me uma reflexão muito breve. Tem-se aqui falado muito de nazis e de terroristas. Esses não são, todavia, os únicos casos que justificam a expulsão de estrangeiros. Por exemplo, um crime praticado perante a Assembleia da República é uma situação que, do meu ponto de vista, deve permitir a expulsão imediata pelo Conselho de Ministros de um cidadão estrangeiro.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Sottomayor Cárdia, é problema complicado é não podermos fazer uma tipificação e uma enunciação. Além disso, e já agora, gostaria de aproveitar para referir o seguinte: há pouco foi mencionado, e V. Exa. - sufragou essa interpretação, que o retirar à autoridade judicial a decisão significava, necessariamente, entregá-la a uma polícia - não é assim.
O executivo é encabeçado pelo Governo, portanto, cabe sempre ao Govêrno a responsabilidade nessa matéria e não às autoridades policiais. Para efeitos de discursos políticos, pode-se falar na Europa das polícias, mas em termos de rigor técnico e de um mínimo de profundidade científica isso não serve para estes efeitos.
O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Portanto, o que foi dito por V. Exa. é que a expulsão será da responsabilidade expressa do Governo.
O Sr. Presidente: - Penso que não pode ser de outra maneira. O problema que se pode pôr - julgo que é uma questão que pode discutir-se, mas não é habitual colocar-se
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numa Constituição - é de se saber se compete ao ministro, ao secretário de Estado ou ao director-geral, com recurso, já que essas matérias não é habitual que se faça a sua regulamentação numa Constituição, não conheço nenhuma em que isso se faça. Por vezes pode haver uma certa propensão, que compreendo, de resolver no texto constitucional matérias que cabem indiscutivelmente à legislação ordinária, mas é uma subversão completa das coisas e que, depois, tem efeitos perversos. Mas, evidentemente, isso depende das opções constitucionais que cada um queira vir a fazer.
Quanto ao artigo 34.º, suponho que não há observações porque não há propostas. Assim, iríamos passar ao artigo 35.º, no qual apresentaram propostas de alteração o CDS, o PCP e o PSD, embora se mantenha a epígrafe deste artigo. O CDS propõe a alteração do n.° 1 com a eliminação do inciso "todos", a substituição da expressão "do que constar de registos informáticos a seu respeito" pela expressão "a seu respeito constar nos registos informáticos" e, finalmente, o aditamento da expressão "dos dados pessoais que" a incluir a seguir a "conhecimento" e antes da expressão "a seu respeito".
O PSD propõe para o n.º 1 deste artigo o aditamento da expressão "salvo as restrições expressamente previstas na lei, bem como conhecer o", expressão que deve ser introduzida a seguir a "respeito" e antes de "fim".
O PCP propõe o aditamento de um novo n.° 1-A, com a seguinte redacção:
Os cidadãos têm direito a obter, nos termos da lei, mandato judicial de acesso aos dados informáticos, nos termos do n.º 1, no caso de lhes ser recusado esse acesso.
Poderíamos começar por discutir o n.° 1, depois iríamos à discussão de outros números, visto que quer o PCP quer o PSD apresentam outras propostas de alteração de outros números do artigo 35.°
De acordo com a declaração do Sr. Deputado Nogueira de Brito, não pode fazer a apresentação da proposta; de resto ela é extremamente clara.
Do n.º 1, por parte do PSD, posso fazer eu a explicação - a inovação consiste na inclusão do inciso "salvo as restrições expressamente previstas na lei". O problema que se põe - e é posto porque se entende que é importante que a Comissão de Revisão Constitucional tome consciência dele e tome uma atitude a esse respeito - é, no fundo, o seguinte: existem, como VV. Exas. sabem, determinados registos, estou a pensar, concretamente, no serviço de informações, que são necessariamente informatizados e, por isso, têm de ter as suas limitações quanto ao grau de informatização admissível. A pergunta que se põe e carece de uma resposta clara, sob pena de estarmos a fazer, neste capítulo, uma constituição nominal ou semântica, é a de saber se o cidadão pode exigir uma informação a este respeito. Estou a dar um exemplo, haverá outros, mas este é o mais importante que me ocorre e deve ser frontalmente posto. Poderia, também, discutir-se se, em certas matérias de investigação criminal, não poderia verificar-se a mesma situação - esta é a justificação de se prever que hajam restrições que sejam expressamente previstas na lei, para que nos entendamos quanto às situações e que elas sejam suficientemente claras e assim acautelem devidamente os direitos dos cidadãos, nesta matéria delicada.
Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.
O Sr. Almeida Santos (PS): - As alterações propostas pelo CDS são restritivas, como é óbvio. "Todos" ou não todos, tanto faz - se cá está "todos", não vejo razão para que se elimine. Mas uma coisa são "os dados pessoais" e outra "o que constar" - porque "o que constar" pode não ter natureza pessoal, sabido como é que não está definido o que é pessoal ou não. Se for a fortuna, é pessoal? São só os direitos da personalidade? São só as referências aos direitos da personalidade ou às obrigações correspondentes? Sinceramente, não me parece que enriqueça nada, nem que precise coisa nenhuma. Em princípio seríamos contra esta alteração proposta pelo CDS.
Quanto à alteração proposta pelo PSD, também nos parece perigosamente restritiva.
No fundo, é desconstitucionalizar o princípio. Agora sabe-se o que cá está, "todos os cidadãos têm direito de tomar conhecimento do que constar de registos informáticos a seu respeito e do fim", etc. Agora diz-se: isto é a mesma coisa que está aqui, salvo restrições expressamente previstas na lei. Esta técnica é bem nossa conhecida. No fundo, é uma maneira de inutilizar, pela lei ordinária, aquilo que, como garantia e direito fundamental, consta da Constituição. Esta técnica não merece o nosso aplauso. Se achamos que deve haver restrições, digam-se quais claramente, salvo se se tratar de registo criminal ou de processo criminal ou para efeitos de investigação criminal. Diga-se o que se quiser, mas não se opte por uma fórmula que inutiliza a constitucionalização da garantia ou do direito. Nos casos em que já hoje a constituição o faz, ou em que se justifique que passe a fazê-lo, muito bem. Mas não nos parece que se deva ir tão longe quanto a possível inutilização pela lei ordinária de uma garantia institucional tão importante como esta.
Compreendo as preocupações do Sr. Presidente. Mas então diga-se quais são os domínios em que pode haver excepções. Mas não se adopte uma fórmula tão genérica e anulatória como esta.
O Sr. Presidente: - Devo dizer que sou sensível a essa preocupação manifestada pelo Sr. Deputado Almeida Santos, visto que a ideia é a de tornarmos um texto claro e seguro e não a de, pelo contrário, encontrar uma via de usar a técnica que referiu e que, em todo o caso, tinha aspectos bastante diversos destes, em termos do segundo parágrafo do artigo 8.º da Constituição de 1933. Mas o primeiro ponto importante é o de saber se se justifica uma abertura deste tipo, penso que sim, sob pena de, ou inviabilizamos uma das coisas ou fazemos uma constituição semântica.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Se há excepções, consagrem-se.
O Sr. Presidente: - O segundo ponto é que eu prefiro - porque é mais seguro e porque evita essa crítica, que pode ter justificação - a enunciação das excepções.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Segredo de Estado, processo criminal, o que é preciso é dizer. Assim, com esta fórmula ampla, não pode ser.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.
O Sr. Alberto Martins (PS): - Na sequência da intervenção do Sr. Deputado Almeida Santos, e invocando uma solução que está contida no artigo 268.Q do projecto do PS, é de explicitar as excepções que permitam o acesso a esses dados de carácter nominativo, excepções essas que respeitam ao caso de matérias relativas à segurança e defesa
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do Estado, à investigação criminal e à intimidade das pessoas conexas com interesses legítimos de outros em termos de privacidade. Creio que essa técnica, que é igualmente restritiva e mais precisa, salvaguardaria, e iria ao encontro daquilo que me parece que a proposta do PSD pretende salvaguardar - mas não dessa forma tão lata, como a que a formulação apresentada acaba por conduzir. Portanto, eu chamo a atenção, em termos da consulta do texto que aqui temos à mão: o artigo 268.°, n.º 1, do projecto n.º 3/V, do PS - Sobre o acesso dos cidadãos aos arquivos da Administração, é a questão do arquivo aberto.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Tenho impressão de que da parte do PS haveria abertura para, sem curar de fórmulas do tipo "salvo os casos previstos na lei relativos à segurança e defesa do Estado, à investigação criminal, à intimidade das pessoas", isto é, independentemente do elenco, discutirmos essa matéria depois. Dado que tenho alguma responsabilidade no assunto, tenho de aceitar as culpas do que mal formulado ficou, mas quero também explicitai a respectiva intenção.
Acho que há um domínio em que cada vez mais se justifica uma certa recusa e que é um dos domínios mais dramáticos da vida moderna: o da saúde. É possível saber, através de certos registos informáticos, quais as pessoas que têm determinadas doenças, e um dos problemas mais dramáticos é o de saber até que ponto o dever de esclarecimento de certas doenças (é o caso do cancro) pode ser medicamente aconselhável. Existe uma certa antinomia entre o direito que as pessoas têm à informação e o dever que às autoridades de saúde incumbe de preservar a saúde das pessoas, porque saber certas coisas pode ter consequências dramáticas para a saúde das mesmas. No caso de rastreios em relação a certo tipo de doenças, ao chegar-se à conclusão de que determinadas pessoas têm sintomas que indiciam essas doenças, como, por exemplo, a SIDA e o cancro, pode pôr-se o problema de saber se não se deve, em certos casos, recusar às pessoas o direito de conhecerem as informações obtidas.
O Estado e a colectividade podem, para efeitos profilácticos e de prevenção, ter todo o interesse, legítimo, em se conhecerem as informações, mas pode haver casos - até para defesa dos cidadãos, para evitar que se transformem em gafos antes do tempo ou em cadáveres adiados - em relação aos quais seja recusada a informação.
Foram motivações deste género que me levaram a subscrever uma fórmula como esta.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, compreendo que tenha de se fazer uma reflexão sobre esta matéria, de resto, nós próprios adiantámos algumas propostas, de que iremos seguidamente falar, e que procuram ter em conta aquilo que é o processo e a experiência de aplicação do artigo 35.° da Constituição. Esse artigo é seguramente um dos mais carregados de intenções de defesa dos cidadãos e é também, tristemente para todos nós, um dos mais distantes na sua efectivação. Digamos que a distância é tanto maior quanto, no artigo 35.º, o sol está no zénite e dificilmente se poderia imaginar uma tutela mais total que a que aqui vem prevista, na sequência, aliás, da própria revisão empreendida em 1981-1982, que introduziu neste artigo um conjunto de alterações que visavam aperfeiçoá-lo.
Creio que o rumo empreendido pelas coisas é bastante perverso e, neste momento, em Portugal, embora os cidadãos tenham amplos direitos quanto ao acesso ao esclarecimento, à contestação, à actualização e à própria rectificação - o que inclui o direito de eliminação de dados erróneos por alguma razão viciados -, o exercício desses direitos é magro, para não dizer ineficaz, e o panorama que caracteriza a nossa circunstância informática - para lhe chamar qualquer coisa - é marcado, por um lado, pela proliferação e a manutenção de registos de toda a espécie, sem nenhum controle, e, por outro lado, pela completa falta de transparência, pois, não só há abundantes registos, como, em relação aos tipos de dados recolhidos e tratados, quanto à natureza dos fluxos, quanto às formas de tratamento e quanto à identificação de responsabilidades, reinam um verdadeiro pandemónio. Quanto à própria determinação das qualidades de recolha, a especificação é nula, pois os dados são recolhidos para toda a espécie de finalidades sem especificação adequada e bastante e, quanto àquilo a que se chama a própria limitação de recolha, ela não acontece a título nenhum e os dados são recolhidos sem respeite pelos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade. A forma da sua utilização é uma incógnita e quanto às garantias de segurança, como se sabe, são mais que precárias para não dizer nulas, enquanto a responsabilidade é inexistente.
Por outro lado, sabemos que certas aplicações, designadamente aquelas que se desenvolvem no âmbito do Ministério da Justiça e aquelas que estão em preparação no quadro do anunciado plano de informatização do sistema judiciário, ou seja, no plano de actividades de 1988-1991 recentemente anunciado pelo Sr. Ministro da Justiça - sejam elas as já em curso, sejam as projectadas para este período -, envolvem toda a espécie de conexões, inter-conexões e fluxos entre serviços, com direitos de consulta e de utilização cruzados pelos diversos tipos de serviço e com possibilidades de cruzamento e tratamento integrado de informações, sem qualquer sistema ou aparelho de controle.
E se a isto somarmos que os serviços de informações são detentores de bancos de dados, com um regime especial, em implementação neste momento; e se tivermos ainda em atenção que o Serviço de Estrangeiros, há pouco mencionado, tem ele próprio o seu banco de dados, sem regime de fiscalização e de controle similar sequer ao instituído em palavras - e repito em palavras - na Lei dos Serviços de Informação e na Lei de Segurança Interna, então poderemos apercebermo-nos da gravidade que a frustração da aplicação do n.º 1 do artigo 35.° tem em Portugal.
A solução não é, seguramente, esvaziar o n.° 1 do artigo 35.° e creio que as vozes que se ergueram até agora neste debate foram precisamente ao arrepio dessa tendência. E mais: nós nem sequer encetámos, no terreno da lei ordinária, as necessárias tentativas de delimitação conceptual. Logo: os cidadãos que constilucionalmente têm todo o direito de acesso têm, na prática, um quase nulo direito de acesso. A lei ordinária inexiste, pois, como sabem, abortaram as diversas tentativas de regulamentação desta matéria e, por último, na passada legislatura, o Govêrno que entrou em funções ficou à espera -isto foi clarificado na sequência de uma pergunta do Grupo Parlamentar do PCP-, consoante se revelou, da revisão constitucional, para lançar mãos à obra na elaboração de uma lei ordinária.
Note-se ainda que as convenções internacionais respeitantes a esta matéria chegaram a ser assinadas, mas nunca
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foram aprovadas para ratificação pela Assembleia da República, e o pretérito governo e o em funções nunca accionaram, ao contrário do que um anterior governo tinha feito, a proposta de aprovação para ratificação pela Assembleia da República da Convenção Europeia sobre Protecção de Dados. Isto quer, portanto, dizer que o terreno da lei ordinária e das convenções internacionais está longe de estar esgotado, pois - repito - nem sequer está encetado, o que, quanto a mim, deve trazer uma preocupação de justo equilíbrio aos protagonistas da revisão constitucional.
Quanto às cláusulas do tipo moderador - como aquelas de que falava o Sr. Deputado Alberto Martins -, creio que terão de ser encaradas com extrema reserva, não porque eu esteja imbuído do princípio dos absolutos que conduzem ao seu contrário, mas porque a experiência internacional, designadamente a das Comunidades, é bastante diversificada e aponta até para situações em que o acesso a dados das polícias - que são de todos considerados os mais melindrosos e aqueles em que os próprios interesses da perseguição da criminalidade pode envolver um certo sigilo, sob pena de os aparelhos se voltarem não contra aqueles contra os quais devem dirigir-se, mas contra os que os usam - tem sido esboçado e desenvolvido com algum êxito, diverso consoante os países, e naturalmente adequado à natureza do sistema em que se insere.
Finalmente, gostava de chamar a atenção para o facto de algumas das lancinantes preocupações do Sr. Deputado Costa Andrade serem atingíveis e ultrapassáveis se se tiver em conta a distinção muito simples entre o direito de acesso e as modalidades do mesmo, porque o legislador ordinário, como o prova a experiência do direito comparado, é capaz de ser suficientemente inventivo para prevenir que o canceroso tenha o choque de cancro - já basta a morte pelo cancro - e que o cardíaco tenha o choque cardíaco do anúncio da doença.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Seria bom que isso fosse assim tão fácil.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, sabe-se que não é fácil, mas sabe-se também que é possível, pois, por exemplo, em relação aos dados de carácter médico, não é por acaso que múltiplas legislações -e estou-me a lembrar da francesa- consagram sistemas através dos quais o acesso é possível por intermédio de um médico de confiança, o qual saberá, em princípio, melhor do que ninguém, qual a forma mais adequada para satisfazer, simultaneamente, os direitos subjectivos do interessado e aquilo que são também componentes de verdade, que não são irrelevantes, sendo certo que cada qual deve enfrentar a sua própria morte, pois, embora não tenha outro remédio, é bom que possa fazê-lo com o máximo de liberdade possível. O legislador deverá garantir as condições necessárias para que isso aconteça.
Temos bastante confiança na possibilidade de, por lei ordinária, diferenciar, situações e de estabelecer modalidades, formas adequadas de acesso e patamares, não amalgamando aquilo que é diferente, mas não proibindo tudo, em nome de umas das componentes de um sistema, pois isso seria um péssimo caminho. Note-se ainda que cláusulas gerais, do género daquelas que o Sr. Deputado Alberto Martins aqui invocou, poderiam ter um efeito extremamente restritivo, porque são gerais, e abrir campos de inviabilização com uma cláusula constitucional ilegilimadora do acesso dos cidadãos a dados não tem, quanto a nós, grande justificação.
Consequcntemente, se se há-de percorrer este caminho de ligação ao real, que não se faça isso de forma esvaziante, quer de forma directa e brutal - como é o caso do PSD ou do CDS -, quer por recurso a cláusulas que, pelo seu grau de indeterminação, podem conduzir exactamente ao mesmo resultado, pois o legislador ordinário, a partir daí, ficará habilitado com uma verdadeira gazua para proibições que, nem por terem de obedecer sempre ao disposto no artigo 18.º, deixariam de poder afectar áreas em que o valor essencial a preservar é o do direito ao acesso.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.
O Sr. Raul Castro (ID): - Sr. Presidente, verifico que, efectivamente, se vai estabelecendo um consenso quanto aos graves inconvenientes de que a proposta, tal como foi apresentada - e desta vez não por lapso gramatical, mas como consta expressamente -, não seja reformulada, o que foi admitido mesmo pelo próprio PSD. Desde logo, o Sr. Deputado Almeida Santos aleitou para a similitude de uma norma deste tipo com disposições na prática totalmente restritivas dos direitos que se pretendem conferir. Só que lhe faltou acrescentar o exemplo concreto do artigo 8.° da antiga Constituição de 1933, segundo o qual leis especiais regulavam o exercício dos direitos conferidos, tornando-os inexistentes, porque as próprias leis se encarregavam de os negar. De qualquer forma, da discussão travada nasceu a sugestão, por parte do Sr. Deputado Alberto Martins, do aproveitamento da proposta do PS relativa ao artigo 268.°
Quero ainda chamar a atenção para o facto de a tipografia se ter encarregado de perverter a epígrafe do artigo, chamando-lhe: "Direitos e garantias dos administradores."
Risos.
Penso que as duas hipóteses em questão visam situações diversas, porque se a proposta relativa ao artigo 268.° tem em vista o acesso dos cidadãos a disposições que não digam respeito a eles próprios, ou seja, à generalidade das informações, utilizando a expressão "os cidadãos têm o direito de acesso aos arquivos e registos administrativos" o artigo 35.º versa matéria diferente, dizendo respeito a elementos de natureza pessoal. Consequentemente, seria absurdo que se pudesse admitir aqui a reserva da intimidade das pessoas. É que não pode haver reserva da intimidade no que diz respeito à própria pessoa, uma vez que são os seus próprios dados que o artigo 35.º consagra e a reserva da intimidade só se compreende como limite estranho à própria personalidade. Penso que limitar o acesso em função da segurança e defesa do Estado será uma situação bastante simplificada que poderia ser altamente restritiva, bem como desvirtuada para justificar uma negação desse acesso.
Assim sendo, e sem prejuízo de se melhorar a redacção deste n.º 1, parece-me ser realmente muito difícil encontrar o próprio elenco das restrições sem cair nalgumas que correspondam praticamente à retirada dos direitos aqui admitidos. Por consequência, e partilhando embora das convicções aqui apresentadas - e, naturalmente manifesto total, disponibilidade para examinar uma futura redacção deste artigo -, não deixamos de manifestar bastante apreensão quanto à possibilidade de elenco das restrições que possam vir a ser introduzidas neste âmbito.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, gostaria de fazer algumas considerações, em boa parte sobre alguns dos
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pontos de vista já aqui expressos, em primeiro lugar, decorrentes da formulação tal qual o PSD no-la apresenta e também para dizer que uma cláusula restritiva neste domínio, bem como noutros domínios sensíveis dos direitos e garantias, é sempre extremamente melindrosa quanto aos efeitos perversos da sua consagração. Daí que, na verdade, propendamos para não admitir uma cláusula restritiva aberta e que pensemos que a hipótese de uma cláusula restritiva fechada deveria, também ela, ser estudada e delimitada em termos tais que não viéssemos a legislar com conceitos, porventura, tão abertos que, depois, em sede de legislação ordinária, eles fossem susceptíveis de uma ampla interpretação, ou seja, que criem uma restrição com alcances virtualmente muito mais amplos que aquilo que o legislador constituinte pretenderia.
Gostaria, ainda, de referir algumas das observações do Sr. Deputado Costa Andrade, pois tenho algumas dúvidas, digo-lho francamente, sobre se algum princípio, por exemplo, de salles publica - e reporto-me à sua intervenção -, poderá justificar um princípio de protecção dos indivíduos contra si próprios. Admito que isso seja possível em matéria de alguns direitos indisponíveis - por exemplo, do direito à vida -, agora o direito ao conhecimento de aspectos que se ligam à própria pessoa do indivíduo, ou seja, do conhecimento de dados da natureza pessoal é muito mais problemático de admitir que qualquer interesse público se possa sobrepor a esta garantia individual.
Questão diferente, todavia, é a de saber se, quando a lei formula o direito de tomar conhecimento, este direito só pode ser entendido como direito de acesso directo ou se ele, também, permitirá um direito de acesso indirecto. E exemplifico: o sistema de informação da República consagrou uma fórmula que diz que a fiscalização dos dados será feita por uma comissão de magistrados do Ministério Público com garantias de independência nas suas atribuições de fiscalização, resultando daí que o acesso dos cidadãos a esses dados é indirecto e que se processe através dessa comissão, a qual tem, designadamente, competências para mandar cancelar todos os dados que estejam em infracção à protecção dos direitos fundamentais.
Consequentemente, porventura mais razoável que inserir uma cláusula restritiva, aberta ou fechada, poderia ser a tentativa de complementar a versão actual do artigo com uma fórmula mais simples, como, por exemplo, a de lhe acrescentar, no fim, qualquer coisa como a expressão "nos termos da lei", ou seja, admitir que a lei poderia regulamentar as condições de exercício deste artigo, o que não é a mesma coisa que admitir que a lei possa estabelecer restrições ao seu acesso. É que, na medida em que se admitisse uma possibilidade da regulamentação legal, eliminar-se-iam algumas das dificuldades com as quais nos estamos a confrontar.
Esta hipótese, bem como outras, não é uma proposta formal, mas apenas uma tentativa de reflectirmos em conjunto sobre se uma solução é melhor do que outras entretanto apresentadas, na pretensão de contribuir para uma solução positiva destas preocupações que, afinal de contas, são comuns.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Jorge Lacão, compreendo-o e acho que nesta matéria, que é uma matéria delicada, em que há que salvaguardar os direitos fundamentais dos cidadãos, haverá também que não impedir os aspectos que interessam a valores fundamentais da colectividade, pois também eles terão de ser garantidos, embora as formulações tenham grande dificuldade em reflectir esse equilíbrio. Logo no início reconheci que a expressão "salvo as restrições expressamente previstas na lei" poderia entender-se como demasiado ampla e, embora me não pareça que possa acontecer o mesmo - porque hoje a Constituição não permite o tipo de perversão que aconteceu no parágrafo 2.° do artigo 8.° da Constituição de 1933 -, seria claramente preferível que fosse encontrada uma fórmula mais restritiva e que consiga os mesmos objectivos. É, portanto, óbvio que estaremos inteiramente abertos a seguir esse caminho e daí eu ter concordado com a observação crítica formulada pelo Sr. Deputado Almeida Santos.
No entanto, devo dizer que penso que não ganharemos em construir uma Constituição extremamente perfeita, mas que funcione de uma maneira tão alheia às realidades da vida que acabe por dar azo a interpretações que semantizem - se me permitem o neologismo - a Constituição. Há que fazer, sim, uma Constituição para ser efectivamente aplicada e para que aqueles que a não apliquem possam ser devidamente responsabilizados e não se possam justificar com o facto de a Constituição ser tão pouco realista que as realidades impeçam sob pena de se pôr em jogo valores muito importantes, que ela seja rigorosamente
Penso que isso seria um mau serviço que prestaríamos. Enfim, compreendo que haja interpretações que procurem ser, em termos de Constituição, extremamente exigentes. Porém, há sempre este equilíbrio, que se for não salvaguardado acaba por ter efeitos perversos.
Quando V. Exa. refere "nos termos da lei" o problema que se coloca é o seguinte: o Sr. Deputado admite que isto signifique que se vá ao ponto de a lei dizer "não tem acesso"? É que esse é que é o problema!
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Não, Sr. Presidente. Admito, com toda a facilidade, que o problema que está a colocar é extremamente pertinente.
A minha solução era mais para delimitar as condições de exercício, portanto do acesso ao conhecimento, e menos para restringir essa possibilidade de acesso. Admito que esta minha solução não resolva, eventualmente, todos os problemas. O que receio é que a solução que o PSD, originariamente, apresentou crie problemas mais graves que aqueles que pretende resolver.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Jorge Lacão, o nosso propósito não é o de encontrar fórmulas que aumentem as dificuldades. É, sim, o de tentar encontrar uma fórmula que pondere devidamente os interesses em jogo. Portanto, estamos abertos a encarar todas as sugestões que dentro deste espírito signifiquem melhorias.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, foi visível o embaraço do legislador ordinário - e confesso que também o protagonizei - quando teve de legislar a propósito do sistema de informações e em que foi confrontado com a dificuldade resultante da aplicação directa deste dispositivo constitucional. Portanto, talvez pudéssemos fazer um esforço para que a solução possa ser partilhada. É que admito que talvez seja possível encontrar uma fórmula.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.
O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Presidente, estamos a discutir o n.° 1 ou o artigo na sua globalidade?
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O Sr. Presidente: - Estamos apenas a discutir o n.° 1, Sr. Deputado.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, creio que em relação a esta matéria não poderemos chegar a uma fórmula final ou o que quer que seja. O que se exige aqui é uma ponderação, que agora ficou balizada em termos muito gerais. Penso que poderemos aprofundar alguns dos aspectos que foram aqui suscitados. Pela minha parte só gostaria de abordar um. É o seguinte: o esforço para evitar que a Constituição se transforme - como, aliás, pode suceder com este artigo - numa constituição semântica é necessário. Não pode é conduzir a que se esvazie não só a letra, mas também o conteúdo normativo de dimensões fundamentais da Constituição. Se assim fosse, então para não semantizarmos, semantizaríamos.
O Sr. Presidente: - É óbvio, Sr. Deputado.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Se tudo isto é óbvio, então o caminho a percorrer tem de se situar precisamente na definição das modalidades diferenciadas de exercício, com o recurso a certos valores. É que, como é evidente, ninguém sustenta que do artigo 35.° decorra o direito de o criminoso agarrar nas aplicações informáticas da Polícia Judiciária e dizer: "Deixa-me ver o teu terminal." Tal é insustentável!
Chamo a atenção para o seguinte: o projecto de informatização dos tribunais de polícia está, neste momento, em curso. Já temos um trabalho de tratamento de dados estatísticos de carácter policial, que envolve aspectos bastante melindrosos - embora sejam estatísticos -, e que devem escapar a alguns dos riscos que aqui se procuram acautelar. Em relação à enorme base de dados de identificação civil, que tem mais de 10 milhões de registos e com uma velocidade de consulta diária impressionante, temos sérios problemas, sobretudo na perspectiva da interconexão. Em relação ao registo criminal, que se encontra em evolução e expansão explosiva, temos problemas sérios e nada está acautelado. O mesmo se diga relativamente às pessoas colectivas e aos vários registos, incluindo o registo automóvel.
Coisa não menos apaixonante é a que diz respeito a todas as aplicações da Polícia Judiciária. Lembro que só em relação à aplicação sobre as pessoas a procurar há informações de carácter biográfico, sinalético, policial e outros, sem que esteja instituído qualquer mecanismo de controle, qualquer modalidade de acesso, designadamente rectificativa.
Vai haver uma evolução para modalidades mais sofisticadas de tratamento de dados pessoais, alguns dos quais de grande melindre, e para formas de interconexão, incluindo os equipamentos da PSP e do Serviço de Estrangeiros. Uma qualquer proibição de acesso ou uma qualquer restrição do acesso dos interessados inconsiderada ou só em nome de valores gerais - do género da defesa da existência do estado ou do combate à criminalidade e tal, tal, tal - poderá significar, então, neste ponto a semantização expressa e completa da Constituição.
Correspondo assim com esta apreensão e este alerta para o amor ao real que o Sr. Presidente fazia apelo. O "real" tem duas facetas. Uma delas diz respeito às dificuldades de aplicação da Constituição e a outra ao caminho perigoso que torna impossível, ou que, em certos casos, visa obstaculizar o cumprimento da Constituição.
Era isso que não queríamos, a título nenhum, por qualquer inciso constitucional, favorecer.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, suponho que neste momento não podemos ir mais além.
Vamos agora passar à análise da proposta de aditamento de um novo n.° 1-A para o artigo 35.°, apresentada pelo PCP.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): -Sr. Presidente, a proposta do PCP para o n.° 1 do artigo 35.° consagra, no fundo, materializações do habeas data nas suas diversas modalidades e dimensões. Aquilo que pretenderíamos era que se criasse um novo meio judicial. Há ordens jurídicas que consagram esta figura, designadamente as anglo-saxónicas, que são férteis na difusão de figuras deste tipo, e os direitos que nelas se inspiram ou que recebem a respectiva influência.
A nossa proposta visa precisamente a possibilidade de obter um mandato judicial de acesso nos casos em que haja uma obstrução injustificada e ilegal ao mesmo. A experiência não é rigorosamente de anomia, já que a Constituição é directamente aplicável neste ponto, portanto, é possível invocar e exigir o seu cumprimento, mas é de bloqueamento da aplicação de um normativo importante. É face a essa situação que os meios faltam. É evidente que os cidadãos podem, naturalmente, usar o seu direito de petição, podem reclamar, protestar, etc. No entanto, creio que judicialmente é extremamente difícil colocar este tipo de questões, salvo talvez na óptica do direito de indemnização ou de qualquer acção que efective responsabilidades por um prejuízo, quando aquilo que se quer é evitar o prejuízo, quando aquilo que se quer é fazer cessar uma situação de violação que pode ser particularmente grave, designadamente pelo seu carácter reiterado ou pelo momento em que se opera, uma vez que há certas informações que têm de ser actuais para serem informações.
O Sr. Presidente: - É um caso de utilização do n.° 3 do artigo 268.º, que é relativo à acção de reconhecimento de um direito ou de um interesse legítimo.
Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.
O Sr. Almeida Santos (PS): - O problema que aqui se coloca é o de saber se isto justifica a sua consagração constitucional. Não creio que o cidadão esteja tão desarmado quanto isso. Quem reconhece um direito reconhece sempre a forma do seu exercício. Ora acontece que o Código de Processo Civil tem previstas acções meramente declarativas. Um indivíduo pode pedir ao tribunal: "Diga que tenho este direito, porque ele está a ser posto em dúvida. Sr. Juiz, declare que tenho esse direito." É uma sentença meramente declarativa! Essa sentença obriga todas as entidades públicas e privadas. Portanto, o cidadão não está assim tão desarmado e não creio que isso seja em absoluto necessário.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, se descodificarmos a sua análise dos meios disponíveis para aquilo que a realidade dos nossos tribunais demonstra quando passamos do moroso processo declarativo para o drama da execução...
O Sr. Almeida Santos (PS): - Esse não é moroso, é antes particularmente rápido, porque é um processo de extrema simplicidade. É um processo de jurisdição voluntária, meramente declarativo. É um dos processos mais rápidos previstos no Código de Processo Civil. Pede-se ao juiz: "Aquele sujeito está a pôr em dúvida o meu direito e não quer cumprir. Diga aí que tenho esse direito." Apenas isso.
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Se se quer criar uma figura mais expedita não posso, como é óbvio, ser contra. Tenho dúvidas é se deve ser a Constituição o receptáculo de prescrições desta ordem. Quem cria um direito tem de criar a forma do seu exercício. Se a não criou, está aí a tal aplicação directa de que falou há pouco, porque estamos no domínio dos direitos, liberdades e garantias.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, é que a questão está precisamente no segundo aspecto que colocou. Em relação ao primeiro aspecto, pode-se dizer que a lei estabelece uma tramitação para as declarativas, que é a que é, embora saibamos que o volume processual e todos os demais infortúnios da vida dos tribunais podem transformar essa "auto-estrada" numa selva.
A questão da execução envolve outros problemas. Aquilo que se pretenderia - de resto, a inspiração anglo-saxónica vem daí e tem esse objectivo - era que num só momento e num só movimento se pudesse obter uma providencia de forma expedita, providencia essa directamente destinada à entidade da qual depende que cessem as coisas. É o tribunal que diz "faz", que diz "não deixes de fazer determinada coisa" ou "tu que estás a obstruir, deixa de o fazer". É esse tipo de providencias que não temos cá. Os Brasileiros, por exemplo, têm.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Deputado José Magalhães, não imagino que seja possível um processo mais expedito que as acções meramente declarativas que estão hoje previstas no Código de Processo Civil. Essas acções existem precisamente para a clarificação judicial dos direitos em dúvida. Portanto, o cidadão não está desarmado. Quer-se ir mais longe e criar uma previsão especial na Constituição? Considero mal justificada a necessidade e o local, ou seja, a Constituição.
Não estou contra um reforço na defesa do cidadão. Penso é que o pressuposto de que, neste caso, o cidadão está completamente desarmado não se verifica.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não temos esse pressuposto, Sr. Deputado.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, gostaria de lembrar que hoje já existe na Constituição uma garantia que, porventura, está insuficientemente desenvolvida, mas que já lá está. Se houver que dar algum retoque em sede constitucional poderemos, apesar de tudo, fazê-lo. Essa garantia é a que diz respeito ao recurso a acção para reconhecimento de um direito ou de um interesse legítimo. Uma vez que, na maior parte dos casos, se trata de uma matéria em que está envolvida uma autoridade administrativa, o cidadão, pelo menos, também poderá lançar mão desta garantia geral que se encontra consagrada no n.º 3 do artigo 268.° da Constituição. Portanto, nesse capítulo subscrevo, por via deste n.° 3 do artigo 268.°, as considerações do Sr. Deputado Almeida Santos.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, creio que há potencialidades da acção para o reconhecimento de direitos que estão por extrair.
Alertava V. Exa. para o seguinte: a questão da utilização da informática não se circunscreve ao universo das entidades públicas. Podem haver providencias que sejam susceptíveis de serem obtidas através da acção de reconhecimento contra entidades públicas, que evidentemente não são oponíveis às entidades privadas. Aí entra-se na grelha de análise do Sr. Deputado Almeida Santos, que é a de saber se se justifica ou não um meio mais expedito.
No próximo Código de Processo Civil ainda viremos a ter acções declarativas e outros meios, mas com um outro regime.
Devo dizer que era em relação a esses outros meios, um pouco abertos ao futuro e não tanto gizados sobre a nossa herança processual-civil tal qual ela é, que creio que era útil tentar virar a Constituição. E em que aspectos? Em aspectos de ponta: a informática é seguramente um deles. A informática é um daqueles meios em que das duas uma: ou temos a mesma agilidade, a mesma capacidade e velocidade da informática ou, então, o cidadão fica puramente indefeso. Isto é, ou tem resposta quase imediata ou é pura e simples consumição.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Ramos.
O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Sr. Presidente, julgo que já está tudo dito. Concordo inteiramente com aquilo que foi referido pelo Sr. Deputado Almeida Santos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - É um forma muito frustrante de começar a intervenção, Sr. Deputado.
O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Sr. Deputado José Magalhães, não é frustrante porque também gostaria de a completar. Julgo que está tudo dito em relação à primeira parte, mas não quanto à segunda. Se o Sr. Deputado me deixasse concluir veria que assim era.
No que toca à tutela jurisdicional, há que ter em conta no que diz respeito ao campo civil em relação à acção declarativa e no campo administrativo relativamente à autoridade administrativa, nomeadamente o n.º 3 do artigo 268.º
Para além de poder estar tudo protegido nestes dois aspectos, levanta-se aqui a seguinte questão: qual é a força jurídica dos direitos, liberdades e garantias? Qual é a tutela geral ou a força jurídica deste artigo? O artigo 18.º é nesse aspecto bem claro e consagra que a norma, nomeadamente do n.° 1, tem um carácter perceptivo e não programático, ou seja, os direitos, liberdades e garantias têm, portanto, uma aplicação imediata.
Resta saber o seguinte: quando o PCP propõe no n.° 1 do artigo 35.º que "os cidadãos tem direito a obter nos termos da lei mandado judicial de acesso aos dados informáticos", levanta-se a questão de saber se uma norma especial não pode ela própria, numa interpretação global da tutela de direitos, liberdades e garantias, levantar interpretações duvidosas em sede de globalidade de direitos, liberdades e garantias.
O artigo 18.° é geral em relação aos direitos, liberdades e garantias. As tutelas estão previstas em relação à acção declarativa e ao processo administrativo. Julgo que esta norma, para além de não dispor nada de mais e de não realizar nenhum desiderato, qualquer que ele seja, de protecção do indivíduo, pode, a meu ver, levantar um perigo, que é o de fazer uma distinção -e, mais uma vez, parece-me que aqui o PCP faz várias distinções em sede de direitos, liberdades e garantias - que é, ela própria, perigosa para a globalidade dos direitos, liberdades e garantias.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Qual distinção, Sr. Deputado?
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O Sr. José Luís Ramos (PSD): - É a distinção de se dizer no artigo 35.° - e não em outros artigos - que os cidadãos têm o direito de obter, nos termos da lei, um mandado judicial de acesso aos dados informáticos. Agora, o problema é o de saber, quando houver uma violação de direitos, liberdades e garantias, seja ela relativa ao artigo 35.º ou a qualquer outro artigo, se os cidadãos não têm direito de acesso ou possibilidade de lhes ver conferido um mandato judicial, apesar de terem obviamente uma acção declarativa ao seu dispor.
Portanto, julgo que esta precisão da autoria do PCP não traz nada de novo neste sentido. E em termos de direitos, liberdades e garantias, matéria em que todos os constitucionalistas se interrogam no que se refere à respectiva tutela, fazer todas estas distinções, neste caso através do artigo 35.s, julgo que não adita quaisquer melhorias e até pode trazer prejuízos.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado José Luís Ramos, a preocupação de uniformização decorre de um grande desejo de que não haja tratamentos abaixo de um só limite mínimo, isto é, que haja uma espécie de património e de regime comuns, o que não impede nem desaconselha tratamentos especiais não discriminatórios face a situações de particular melindre.
A minha pergunta é esta: o que propomos, no fundo, é o habeas data. O Sr. Deputado considera que o habeas corpus é também um horrível entorse que põe em causa o tratamento uniforme e pode conduzir a horríveis distorções no sistema de tratamentos dos direitos fundamentais? É que é disso que se trata aqui, e apenas disso: queremos o habeas data.
Creio que isso não traz atrás de nós todos os cães do Inferno. Julgo, inclusive, que o habeas data é o habeas corpus do nosso tempo, tão simples como isso. Considero que é extremamente pobre o facto de se ter habeas corpus quando se é invadido com todo o tipo de ficheiros contendo dados o mais abracadabrantes possíveis, com proliferações de aplicações completamente lunáticas, sem nenhuma espécie de fiscalização possível. Já não refiro os tais olhos do Big Brother e as pessoas de vidro tão caras ao Sr. Deputado Costa Andrade. Mas a questão é que, nesse quadro de "bigbrotherização", o habeas data é a salvação.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Ramos.
O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Sr. Deputado, estou inteiramente de acordo que a Constituição consagre o habeas data tal como o habeas corpus. Aliás, em relação àquela figura jurídica, o que lhe posso dizer é que o seu n.° 1-A, proposto como aditamento ao artigo 35.°, não consiste na consagração do habeas data.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Longe disso, Sr. Deputado, esse aspecto já está abrangido no respectivo
O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Exactamente, a consagração do habeas data já está estipulada no citado n.° 1 e portanto, não era absolutamente necessário consagrá-la em sede de n.° 1-A.
Aliás, gostaria também de lhe dizer que estou de acordo em que a Constituição cansagre o habeas data e inclusivamente o habeas mentem. Tanto uma questão como a outra não podem nem devem ser indissociáveis, e já veremos mais à frente, ao analisar a proposta do PSD, como é que elas podem ser consagradas.
Agora, o Sr. Deputado não queira ter o panegírico de dizer que o n.° 1-A é a consagração do habeas data porque isso não é verdade. O artigo 35.° já o consagrou e estou inteiramente de acordo com essa consagração.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, esse aditamento é um meio para tornar efectivo o habeas data. Tenho curiosidade em saber qual é o habeas mentem, deve ser um direito apaixonante, mas é um bocado obscuro.
O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Sr. Deputado, já lho tentarei explicar mais à frente, mas não na abordagem deste n.º 1.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, suponho que poderemos passar adiante nesta bem interessante discussão sobre meios processuais, em termos de corpus e de meus.
Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.
O Sr. Vera Jardim (PS): - O Sr. Presidente deseja passar adiante ou conceder-me a palavra?
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, gostaria de passar adiante, mas dou-lhe a palavra.
O Sr. Vera Jardim (PS): - É uma forma alternativa de passar adiante.
O Sr. Presidente: - Porventura.
O Sr. Vera Jardim (PS): - Tenho pena de não estar aqui presente o meu camarada Almeida Santos - depois lho comunicarei -, mas não compartilho do são optimismo que ele compartilha quando à rapidez das acções declarativas. As pessoas que lá andam sabem o que é isso. Penso que a única acção verdadeiramente célere que se verifica em Portugal é o arresto de navio, porque agora foi criada uma nova tramitação, isto é, antigamente quando eram decretados a maior parte dos arrestos de navios já eles se encontravam algures nos mares do Norte.
O Sr. Presidente: - A acção cautelar em matéria de posse também é rápida.
O Sr. Vera Jardim (PS): - Nem sempre, Sr. Presidente. Assim, não compartilho desse são optimismo, mas compartilho da preocupação do PCP em querer transformar os nossos códigos em códigos céleres. Senão vejamos: no artigo 20.° vinha expresso um processo especial caracterizado pela prioridade e celeridade. No artigo 27.°, n.° 3-A, vinha redigida a expressão "prevendo a lei as formas da sua decisão urgente". Agora, propõe ainda o PCP o aditamento de um n.° 1-A no artigo 35.º, com a figura do mandato judicial, no sentido de responder também à urgência. Apenas recolhi três exemplos deste género, mas há muitos mais.
Assim, Sr. Deputado José Magalhães, diria que V. Exa. tem de começar a preocupar-se com um projecto alternativo ao Código de Processo Civil e com outro ao Código de Processo Penal, porque essa é que será a sede própria para efectivamente transmitir algum sentido de urgência a toda esta problemática processual.
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Agora, não me parece que seja indo pela Constituição fora dizendo que tudo quanto mexa com direitos, liberdades e garantias tem de ser urgente que isso resolva a situação, porque sabemos que não vai ser urgente coisíssima nenhuma.
Além disso, Sr. Deputado, também lhe devo dizer o seguinte: há outras propostas do PCP no sentido da urgência. Então aqui teríamos de seguir alguns critérios, tais como: por que é que a acção de divórcio não há-de ser urgente? Por que é que a acção de alimentos não há-de ser também urgente? E por aí fora. Gerar-se-ia o tal problema, ou seja, teríamos de elaborar um código de processo alternativo. Diríamos então que tudo isto passaria a ser urgente, o que teria como resultado final que nada seria urgente e que tudo continuaria na mesma.
Portanto, não me parece que estarmos a construir estas figuras novas a latere do nosso direito processual e a nível constitucional seja uma solução aceitável.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, gostaria de lhe lembrar que esse crime horrível que acaba de referir, que é o de construir figuras a latere do direito constituído, foi perpetrado por mancomunação geral na primeira revisão constitucional em relação à referida, bem-amada e tão desprezada acção de reconhecimento. Tratou-se de uma criação cujo mérito foi dos respectivos autores e também derivado das influências que a isso levaram, que são respeitáveis. Tudo isso foi parturejado no quadro da primeira revisão constitucional, e ninguém viu nisso um atentado horrendo a não ser quem tratou de restringir logo, no direito ordinário, as consequências e o alcance da criatura gerada em 1982.
Neste contexto, devo referir que tudo o que nos pode acontecer de horrível é sermos "pais" de uma criatura que o legislador ordinário tenha posteriormente de conformar por forma a pôr-lhe os pezinhos mais pequenos de que aqueles que resultem da nossa actividade de produção legislativa. Não considera que isto é razoável?
O Sr. Vera Jardim (PS): - Diria somente que est modus in rebus, ou seja, se vamos transformar tudo o que diga respeito a direitos, liberdades e garantidas em questões e processos urgentes corremos o risco de não salvaguardar urgência nenhuma. É apenas isso que eu digo.
O Sr. Presidente: - Ainda há a hipótese de criar os processos urgentíssimos...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Est modus rum rebus, porque senão ficamos verdadeiramente sem coisa nenhuma. Essa é que é a questão.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, podemos dar por concluída esta parte, e iríamos agora passar à análise do n.° 2 do artigo 35.°
Quanto a este número, foram apresentadas duas propostas de alteração, nomeadamente do PCP e do PSD. Quer o PCP sucintamente justificar a sua proposta ou apresentar a sua motivação?
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, o n.° 2 do artigo 35.° da Constituição resulta na sua redacção actual de um esforço feito no quadro da primeira revisão constitucional. Esse esforço não atingiu, no entanto, os objectivos de que se reclamava e a situação gerada é quanto a nós extremamente perigosa. A Constituição neste momento é objecto, neste ponto, de uma verdadeira violação maciça, isto é, há toda a espécie de fluxos de dados transfronteiras da maior importância em todos os domínios, incluindo o domínio financeiro. É absolutamente impossível exercer um controle eficaz e menos ainda proibitivo desses fluxos e, portanto, o conteúdo da Constituição neste ponto é fortemente posto em causa, em termos tais que nos levam a considerar que se justifica uma reformulação do preceito por forma a evitar uma situação que poderia ser extremamente perigosa no seu desenvolvimento.
A proposta de reformulação que apresentamos auto-explica-se. A nossa preocupação é de que o regime das interconexões e o regime dos fluxos de dados transfronteiras sejam tratados em dois preceitos diferentes. Por essa razão propomos que o regime referente aos fluxos de dados transfronteiras seja autonomizado num novo número, n.° 6, com a seguinte redacção:
A lei define o regime aplicável aos fluxos de dados transfronteiras, estabelecendo as formas adequadas de prelecção dos dados pessoais e de defesa da independência nacional.
Verifica-se que há aqui uma ampliação de conteúdo e uma preocupação de alusão a um valor conformante, qual seja o de defesa da independência nacional, que se afigure de particular importância. Remete-se naturalmente para o legislador ordinário uma tarefa que lhe compete executar.
Sr. Presidente, estamos disponíveis para considerar outras hipóteses, designadamente de definição de critérios materiais ou de outros critérios de enquadramento e de definição. Quero com isto referir que estamos disponíveis para estudar, com todo o pormenor e a adequada profundidade, as formas de ultrapassar as dificuldades existentes.
Consideramos que seria extremamente importante que pudéssemos discutir com os técnicos, tanto juristas como especialistas de informática, todos os aspectos envolvidos nesta questão.
Por outro lado, teríamos vantagens em aprofundar o estudo de todos os aspectos relacionados com os instrumentos jurídicos internacionais de regulação dos fluxos de dados tansfronteiras, porque aí se têm feito, tanto a nível de OCDE, como do Conselho da Europa e de outras instituições e organizações internacionais, esforços no sentido de definir qual é a malha de regulamentação possível. Isto para que se evite que a utilização da informática conduza a uma perversão e até a lesões à independência nacional, sendo certo que sabemos que esses instrumentos podem encerrar grandes vantagens, desde que obedeçam a determinadas regras e critérios.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, creio que relativamente ao citado n.° 6 há toda a razão de ser em fazer-se neste caso a respectiva conexão.
Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, quero apenas manifestar a nossa concordância em relação à distinção dos dois números. Também me parece que as formulações do PCP são perfeitamente aceitáveis. Só que relativamente ao citado n.º 6 proposto pelo Partido Comunista deveremos ressalvar a possibilidade de tratados e, eventualmente, de convenções internacionais. No que toca aos fluxos, deveremos abrir, pelo menos em sede constitucional, a possibilidade de o Estado Português assumir direitos e obrigações nesta matéria.
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O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, obviamente que na proposta que apresentámos pode ser explicitado isso, mas o sistema de vigência na ordem interna do Direito Internacional e a alusão que é feita à lei e à disponibilidade do legislador nessa matéria permitem atingir esse resultado.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Permitem que a lei absorva o tratado.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Em todo o caso, é óbvio que são configuráveis determinadas situações e que isso pode ser explicitado e harmonizado.
O Sr. Presidente: - É provável que assim seja, mas, de facto, muitas vezes os preceitos distinguem as duas situações. E ainda por cima, como sabe, concretamente no caso da convenção para a protecção das pessoas relativamente à automatização de dados pessoais, existe o velho problema de ela não ter sido ratificada, apesar de ter sido subscrita pelo Estado Português.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Com esta ressalva, parece-nos, pois, que a proposta contém uma boa solução para este caso.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Gostaria de perguntar ao Sr. Deputado José Magalhães o que é que o PCP pretende, na última parte do n.° 2 do artigo 35.°, com a expressão "[...] e com salvaguarda do disposto no artigo 18.Q", e se entende que isso é necessário.
Relativamente ao n.° 6 do mesmo artigo, não sei se a minha posição advém de o facto de eu considerar inequívoco que a lei possa abranger a hipótese de tratamento, porquanto há uma parte da doutrina que entende que o tratado tem uma força jurídica que está, embora abaixo da Constituição, acima da lei propriamente dita.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, com esta troca de impressões ficou discutido também o n.° 2 da proposta apresentada pelo PSD relativamente ao artigo 35.°, visto que ele abrange as mesmas matérias dos n.ºs 2 e 6 da autoria do PCP.
Vamos agora analisar o n.° 3 do artigo 35.° da proposta apresentada pelo PSD. Este número salienta que essa protecção se destina a prevenir que haja a violação da privacidade das pessoas. Trata-se aqui de uma precisão, e o n.° 3 não tem outro intuito que não seja esse, isto é, o de explicar que essa protecção se destina à privacidade das pessoas. E este o sentido em que ele deve ser entendido.
O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Sr. Presidente, exactamente no sentido da sua intervenção, gostaria apenas de acrescentar uma pequena nota que é esta: quando a proposta do PSD elimina a expressão "[...] salvo quando se trata de processamento de dados estatísticos não individualmente identificáveis" e a substitui pela expressão contida na sua proposta é porque se entende que podem existir, apesar de não individualmente identificáveis, atentados à privacidade.
A norma apresentada na proposta do PSD procura ampliar a salvaguarda em relação à vida privada e à vida particular e, portanto, entende-se que, apesar de poder haver genericamente uma não individualização, pode, apesar de tudo, existir um atentado à privacidade.
Assim, deve-se eliminar a expressão ora vigente e substituí-la pela que é proposta pelo PSD, isto é, abrangendo a outra, mas fazendo a distinção em sede de privacidade.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Não estou muito convencido de que esta vossa proposta não seja redutora. Porque, em primeiro lugar, é substituída a expressão "vida privada" por "vida particular". Não sei se se ganhará algo com isso. (Em virtude de falha técnica, não foi possível registar algumas palavras do orador.) Neste caso, relativo ao "processamento de dados estatísticos não individualmente identificáveis". Não se sabe quem é a pessoa a quem pertencem os dados e, portanto, não pode haver violação privada. Esta é uma excepção que se compreende.
Mas, posteriormente reduz-se isso aos casos de violação de privacidade. Julgo que, na verdade, a protecção das convicções filosóficas, políticas, bem como da filiação partidária, sindical, religiosa, ou da própria vida privada, é muito mais importante que a protecção só da privacidade. Parece-me que o texto em debate é redutor. Assim, se se pretende introduzir aqui um elemento de protecção da privacidade, introduza-se. Mas não se reduza a regra. Hoje a regra é muito clara ao dizer que "[...] não pode ser utilizada para tratamento [...] ete", e tem depois uma excepção, que só a confirma, e que refere o seguinte: "[...] salvo quando se trata do processamento de dados estatísticos não individualmente identificáveis." Não se sabe a quem dizem respeito e, portanto, ninguém é prejudicado.
Agora, diz-se que esta última expressão é aplicável só "[...] quando daí resulte violação da privacidade das pessoas". Se foi isto o que o PSD pretendeu, então não há dúvida de que há uma redução importante. Tenho a impressão de que não foi isso que esteve no vosso espírito ao redigir o texto. Quiseram decerto dizer qualquer coisa que fosse um plus. Ora não é isso que se verifica, pois a redacção utilizada é nitidamente redutora.
O Sr. Vera Jardim (PS): - A minha leitura desta vossa proposta leva-me a perguntar se este aspecto é considerado abrangente na vossa perspectiva. Entendo que ele não é abrangente, porque há muitos dados para além dos mencionados que podem invadir a vida privada mesmo não sendo os do processamento de dados estatísticos. Há outros dados.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Mesmo que não se coloquem problemas de privacidade eles são dignos de protecção!
O Sr. Vera Jardim (PS): - Esses dados não afrontam este problema da privacidade, mas como não ficaria expresso, segundo o PSD, o único processo possível admitido que é referido pela expressão "não individualmente identificáveis", realmente esta matéria perderia em protecção dos direitos individuais.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Trata-se aqui de filosofia!
O Sr. Vera Jardim (PS): - Não creio que haja outra interpretação possível disto. Dou já um exemplo do que digo: o facto de eu ser sócio do Sporting ou do Benfica está aqui protegido? Não está.
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O Sr. Almeida Santos (PS): - Essa também não é uma opinião filosófica!
Risos.
O Sr. Vera Jardim (PS): - Não está protegida esta situação.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, esse é um dado pessoal sensível.
O Sr. Vera Jardim (PS): - Mas há coisas que podem consistir em dados pessoais que, não afectando a privacidade, merecem protecção. Este é que é o problema.
O Sr. Almeida Santos (PS): -Esta formulação é redutora. Teremos de arranjar outra.
O Sr. Vera Jardim (PS): - Uma sociedade comercial, por exemplo. É sócio de alguma sociedade comercial? É um exemplo melhor do que um clube desportivo. É sócio de alguma sociedade comercial? Não vem aqui protegido. No texto de cima está, mas no texto de baixo não está.
O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Gostaria de responder, apesar de não querer provocar polemica neste aspecto. Salvo melhor opinião, não resulta só uma interpretação deste artigo, porque o que já se continha no artigo 35.°, n.° 3, era exactamente a primeira parte da nossa proposta, ou seja, que a informática não pode ser utilizada para tratamento - e passaria a ler - "de dados referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa".
O Sr. Vera Jardim (PS): - Não, não, leia até ao fim: "ou vida privada".
O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Espere. Agora iria introduzir a nossa alteração. Nesta primeira parte não há qualquer alteração. "A informática também não pode ser utilizada em relação à vida particular quando daí resulte violação da privacidade das pessoas." Ora bem, entre "vida particular" e "quando" não há qualquer separação...
O Sr. Almeida Santos (PS): - Se cá se puser a expressão "sobretudo quando", "nomeadamente quando", "especialmente quando". Isto poderia ser redigido da seguinte forma: "Quando daí resulte violação da privacidade das pessoas, a informática não pode ser utilizada."
O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Iria tentar sustentar o seguinte: mesmo em relação à redacção que está aqui, e dispensava o "sobretudo" do Sr. Deputado Almeida Santos, só aquela leitura deve ser feita. Em relação à violação da privacidade das pessoas, devo dizer que se refere apenas e somente em relação à vida particular, porque se assim não fosse haveria uma vírgula entre "vida particular e "quando". Se vírgula não há, a restrição que é feita em sede de violação da privacidade das pessoas refere-se apenas à vida particular e não às outras expressões aí contidas. Portanto, não há qualquer restrição, bem pelo contrário. Em caso contrário, haveria uma vírgula.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Fico feliz por ser essa a sua leitura, mas então vamos tornar isso mais claro.
O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Não digo que só possa ser essa, mas como interpretação exegética só pode ser essa, porque em caso contrário, julgo eu, haveria de ter uma vírgula, porque todas as outras expressões anteriores têm uma vírgula e esta não tem. Portanto a ligação de "quando daí resulte violação da privacidade das pessoas" só se pode concatenar em relação à vida particular.
Quando se fala em vida particular - falamos em vida particular e não em vida privada - é para se fazer o entendimento que hoje é dominante em termos de privacy anglo-saxónica; a privacidade encontra-se no fim deste artigo, pelo que não há qualquer restrição em sede de privacidade.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Deputado, não se esqueça de que tem um "ou" antes de "vida privada". Tem um "ou" e o "ou" é dijuntivo, não é copulativo. Está lá "ou vida particular quando". Estamos, no entanto, entendidos, pois se a vossa interpretação é essa não há problema nenhum; em sede de redacção clarificamos isso.
O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Tenha o "e/ou", tenha o "ou", julgo que a interpretação deve ser feita dessa maneira, pelo menos esse é o espírito nessa proposta.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Certo. Não ponho em dúvida.
O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Só para terminar, gostaria de dizer que, em relação à proposta que foi feita para suprimir os dados estatísticos não individualmente identificáveis, mantenho aquilo que disse, ou seja, pode haver dados estatísticos não individualmente justificáveis a se que por si possam de alguma forma violar a vida privada. Daí o entendimento de que nem todos os dados estatísticos não individualmente identificáveis podem ter esta excepção, mas apenas a excepção ou restrição em sede de violação da privacidade que julgamos ser muito mais correcto.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Acho sinceramente que quando se trate de processamento de dados não individualmente identificáveis não está em causa a protecção das pessoas. Não se sabe a quem se refere aquilo. Mas se o sentido é esse, não há problema.
O Sr. Presidente: - Peço ao Sr. Deputado Almeida Santos o favor de assumir a presidência para continuarmos a reunião.
Neste momento, assumiu a presidência o Sr. Vice-Presidente Almeida Santos.
O Sr. Presidente (Almeida Santos): - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, creio que este debate é elucidativo quanto aos riscos de se pisar sem o cuidado adequado um terreno em que há também um bloqueamento invulgar na nossa situação. A Constituição quis claramente tutelar, especialmente e bem, os chamados "dados pessoais", mas não disse quais eram, não deu uma definição. O legislador não é inteiramente livre, está conformado às regras de enquadramento, mas não há definição constitucional de dados pessoais. Há, no entanto, o facto de certos dados pessoais não poderem ser objecto de qualquer tratamento informático. Foi essa a certeza constitucional instituída e revela uma grande cautela.
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Por outro lado, creio que aqui não há propostas inocentes, porque a grande dificuldade de aplicação deste normativo constitucional não é aquilo que decorre da parte final deste preceito. A parte final do preceito, com aquilo que é uma interpretação escorreita, é perfeitamente entendível no seu alcance. É evidente que os dados estatísticos não são pessoais, porque não são individualmente identificáveis, no sentido do artigo 35.° da Constituição. Referi-lo é a chamada "cautela redundante", mas a supressão dessa cautela pode acarretar problemas sobretudo se deslizarmos interpretativamente com uma velocidade de esqui como aquela que ocorreu aqui agora, porque o preceito terá sido feito por quem o tiver feito e isso é indiferente, mas não pode ser objecto (ou melhor: pode ser, mas assuma-se isso!) de interpretações que procuram excluir certas leituras perfeitamente legítimas face ao conteúdo literal, e não só, daquilo que ficou apresentado pelo PSD.
Tal qual se encontra redigido, o preceito poderia ser escrito assim: "A informática pode ser utilizada para tratamento de dados sobre convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa ou vida particular quando daí não resulte violação de privacidade das pessoas." E simples. Pois não quero eu que o meu sindicato saiba tudo sobre mim? Quero! Então, toma e usa os meus dados pessoais. Tens a minha autorização. Pois a minha igreja não quer saber tudo sobre mim? Pois usa tudo o que sabes sobre mim, incluindo o segredo das minhas confissões. Vou por aí adiante (passando pelos serviços de informações!); só que a Constituição não quis estabelecer isso e um dos problemas a que o preceito, tal qual está redigido, deu origem foi precisamente o de saber quais os limites para o uso de instrumentos informáticos no tratamento de dados respeitantes, designadamente, a associações sindicais. Isto originou abundante "parecerística" da Procuradoria-Geral da República, para além de múltiplos departamentos governamentais, precisamente para saber em que termos e dentro de que limites é que poderíamos usar computadores para tratar dados que poderiam ter este tipo de implicações. Como os Srs. Deputados sabem, nos diversos ministérios o processamento de tudo o que diz respeito a vencimentos, e não só, certo tipo de notações, consta de suportes informáticos com as características que tudo isso tem, nomeadamente da possibilidade de interconexão incontrolada. Portanto, se alguém resolver meter numa daquelas máquinas outros dados ou outros elementos relacionados com tudo isto e se ainda por cima lhe puser um determinado código e estabelecer regras de acesso específicas nos termos das quais o leitor ou um utente normal de um terminal não tem acesso à informação, mas um utente com uma determinada chave e um determinado código tem acesso a toda a informação, então poderia acontecer um quadro em que uma determinada entidade, ou patronal pública ou patronal privada, pudesse ter, por exemplo, acesso não só a dados inócuos, como saber se este ou aquele trabalhador está naquela ou aqueloutra central sindical ou se fez ou não fez a greve no dia 28 de Março. Pode ser interessante, mas é proibido. Portanto, está tudo isto em causa quando se discute este artigo e não há supressões inocentes.
Por outro lado, a cláusula "quando daí resulte violação da privacidade das pessoas", descontada a possibilidade gramaticalmente inverosímil de estar apenas utilizada como qualificando a vida particular na intenção dos autores, ao ser aditada com a supressão da parte final do preceito que hoje existe, e sabendo nós o que o quadro de apreciação do preceito é, este originaria uma debilitação muito considerável do tratamento e da garantia dada de que estes dados não podem ser objecto de tratamento automatizado.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Ramos.
O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Queria colocar uma questão muito rápida. Em primeiro lugar devo dizer que, em relação às velocidades de esqui, não sei se o Sr. Deputado José Magalhães não tem essa velocidade ao fazer a interpretação da nossa proposta, porquanto já explicámos qual o sentido da mesma e dissemos qual a diferença entre a situação de haver ou não haver uma vírgula entre as duas palavras que separámos. Se estivesse uma vírgula, a sua interpretação seria correcta; não estando, julgo que é a nossa e só pode ser a nossa.
Em segundo lugar, em relação à diferença...
Vozes.
O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Não, não há diferença entre "e" ou "ou", haveria em relação à existência ou não de uma vírgula.
Em relação à questão que me colocam dos dados individualmente identificáveis, queria dizer que pode haver dados pessoais que não sejam individualmente identificáveis, mas, como dados pessoais que são, podem pôr em causa a privacidade das pessoas e portanto não é rigorosamente exacto falar-se em privacidade ou violação da privacidade por um lado e falar-se em dados pessoais individualmente não identificáveis. Julgo que a nossa restrição é uma restrição maior do que a restrição que existia e nesse entendimento é assim que a nossa proposta deve ser interpretada.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Manuel Mendes.
O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Creio que há duas questões que importa aclarar. A primeira é esta: a interpretação, em estritos termos gramaticais, que o Sr. Deputado José Luís Ramos faz da proposta do PSD pode ser subscrevível. Acontece que, em termos da escrita constitucional, não pode afastar, de forma alguma, aquela outra que o meu camarada José Magalhães há pouco fez e, perante esse risco pairante, não há outra solução que não seja a de se procurar uma formulação segundo a qual aquilo que o PSD quer fique lá escrito e não uma formulação altamente ambígua como esta.
O Sr. Presidente: - Está adquirido.
O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Segunda questão: suponho que se alguma problemática levanta a formulação constitucional do n.° 3 do artigo 35.° é a de poder referir-se alguma vaguidade na definição do que é a vida privada. Isto tem sido sinalizado pelos variados comentadores da Constituição e, naturalmente, importará saber se a vida privada, neste contexto, inclui o universo dito "tradicional" - família, o mundo das relações sexuais, o mundo da saúde - ou se inclui também os chamados "direitos da terceira geração", ou aqueles que têm a ver com uma outra esfera de privacidade que recentemente vêm ganhando foros na própria ordem jurídica interna, como, por exemplo, os direitos da criação.
Do meu ponto de vista, e segundo aquilo que tem sido genericamente entendido, direitos deste tipo têm de ser acautelados e, portanto, a vida privada envolve-se na plenitude. Ora, a formulação que o PSD avança vem a ser, do meu ponto de vista, francamente redutora face a esta constelação de problemas que acabo de suscitar.
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O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Queria muito rapidamente dizer-lhe o seguinte: é bom que admita que a minha interpretação é plausível e não estamos fechados a que, em sede de redacção, haja uma formulação diferente - essa questão não se põe -, mas em relação à segunda pergunta que me formulou queria relembrar que o artigo 35.°, n.° 3, deve ser concatenado com o que é disposto no artigo 26.° Portanto, nesse sentido a expressão "intimidade ou privacidade das pessoas" deve ter este sentido. Não me parece que haja qualquer perigo neste aspecto.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.
O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Deputado, apesar de V. Exa. dizer que há casos ao contrário, ou seja, em que, com o tratamento dos dados estatísticos, se pode invadir a vida privada, direi que, apesar de tudo, essa situação será real numa ilha onde haja não um Robinson Crusoé, mas dois, e há um que tem os dados estatísticos sobre o outro, porque de resto não concebo que haja melhor protecção para os dados da vida privada ou da vida particular, como queira chamar-lhe, do que o facto de não serem reconhecíveis, não serem identificáveis. Não concebo outra protecção melhor do que esta; portanto, na minha perspectiva, deixemo-la cá estar.
O Sr. Presidente: - Só queria chamar a atenção para o seguinte: na interpretação - é a última, vamos encerrar isto porque já estamos a discutir de mais este problema - o conceito de vida particular é um conceito tão amplo que cabe lá tudo. O particular opõe-se ao colectivo; todos os meus direitos que não sejam colectivos são particulares. Mas para que é que mencionamos o particular se depois dizemos só "quando daí resulte violação da privacidade"? Então, diga-se logo que é o privado, que era o que lá estava e que fica muito melhor.
Vamos passar ao n.º 4 da proposta do PSD, que é o último, que apenas se limita a acrescentar ao actual n.° 4 a expressão "bem como os termos da constituição das bases de dados por entidades públicas e privadas e as respectivas condições de utilização e acesso".
Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Ramos.
O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Só para precisar este ponto, fala-se em vida particular quando haja violação da privacidade.
O que é dito actualmente na Constituição é que a lei define apenas o conceito de dados pessoais. A nossa proposta é feita no entendimento de que a lei não deve apenas definir o conceito de dados pessoais, mas deve definir também os termos em que se constituem as bases de dados, uma vez que podem existir entidades públicas ou privadas que tenham esses dados e, por outro lado, que também a lei tenha de definir as condições de utilização e de acesso. Por isto: é um pouco aquilo a que os doutrinadores chamam - como há pouco referi em ligação com uma intervenção do Sr. Deputado José Magalhães - o habeas mentem, ou seja, é necessário não só haver o habeas data, mas que este esteja interligado com o habeas mentem, ou seja, o processo pre-informático. Antes de existir qualquer fenómeno de natureza informática, ele tem de ser adequado, quais sejam as suas condições e quais sejam as capacidades ou possibilidades de acesso e de constituição desse banco de dados informáticos que é o habeas data, ou a possibilidade de acesso a dados informáticos, estará prejudicado se a lei não regulamentar em termos normais e globais todas esta situações. Neste sentido vai a proposta do PSD, tendo em vista dar mais efectivação àquilo que já é hoje proposto no artigo 35.° em sede de utilização de informática.
O Sr. Presidente: - Como ninguém pede a palavra, eu atribuo-a a mim próprio para dizer o seguinte: há aqui dois termos completamente distintos. Não há o direito à constituição de bases de dados, há o direito à consulta das bases de dados. Este direito à consulta das bases de dados é um direito directamente exercível porque, sendo um direito, liberdade e garantia, é directamente aplicável. Se o tornarmos dependente de uma regulamentação, deixa de ser directamente aplicável. Por isso, estaria de acordo quanto ao facto de a lei prever os termos da constituição das bases de dados por entidades públicas e privadas, mas já ponho reservas quanto às respectivas condições de utilização e acesso. Aí deixa de ser um direito directamente aplicável para passar a ser um direito dependente de regulamentação. E esta pode nunca mais existir. Resultado: estaria inclinado a dividir esta última parte em dois troços: de acordo com o primeiro, com dúvidas quanto ao segundo.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães: - Sr. Presidente, devo dizer que não consigo vislumbrar qualquer inconveniente em que a Constituição seja enriquecida com o conceito de bases de dados, que neste momento nela não figura. Neste momento, a Constituição tem o conceito de ficheiros, ficheiros com dados e a introdução do conceito de bases de dados com remissão pura para a lei não tem nenhum inconveniente. O regime de criação de bases de dados por entidades públicas e privadas suscita melindrosos aspectos, que o legislador ordinário terá de, naturalmente, equacionar e resolver. Quanto à questão da cláusula respeitante às respectivas condições de utilização e acesso, a única questão é a de saber se o PSD traz aqui, ou quer trazer, com isto qualquer alteração do regime aplicável às interconexões, uma vez que a interconexão, como todos sabem, é um dos aspectos relacionados com a utilização. "Utilizo o meu sistema em interconexão com o teu", o que quer dizer que os dois sistemas juntos são mais poderosos do que um apenas. Se é isso, então o grande problema é que estamos submetidos ao disposto no n.º 2 do artigo 35.° E acontece que há ficheiros e ficheiros, bancos de dados e bancos de dados, bases de dados e bases de dados. Aliás, não sei por que é que o PSD preferiu a expressão "bases de dados" à expressão "banco de dados", que também é utilizada nas convenções internacionais aplicáveis. Esta é, pois, uma questão que talvez devesse ser deixada em aberto, a fim de se saber qual é a terminologia que dever ser consagrada constitucionalmente.
No entanto, o que me preocupa é um aspecto que enunciei há pouco - e creio que era útil que se precisasse isso. Se VV. Exas. entenderem que daqui resulta qualquer regime distinto ou autónomo e uma outra liberdade de conformação do legislador ordinário em relação à questão da utilização conjugada ou da interconexão então a questão fia bastante mais fino, porque creio que é de preservar a todo o custo, pelo menos como regra e como princípio conformador, a proibição de interconexão de certos ficheiros como consta do n.º 2 do artigo 35.° Obviamente que, quanto aos ficheiros científicos com dados não sei de quê, a questão da interconexão e do regime de acesso é perfeitamente pacífica. Aliás, podem colocar-se questões muito melindrosas e respeitáveis, mas que são de uma natureza totalmente diferente e não nos preocupa senão a eficácia e o acesso democrático ou até a proibição de montantes exorbitantes para o acesso aos dados.
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O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Ramos.
O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Sr. Deputado José Magalhães,... (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador).
O regime nunca pode colidir de alguma forma com o n.°2 do artigo 35.° Portanto, nesse sentido este preceito levanta questões. Desde que não haja interconexões relativamente a dados pessoais, isso cabe ao n.° 2. Se, ao invés, não houver tal em relação a dados pessoais, é óbvio que será à lei que cabe definir essas condições. É, pois, essa a nossa proposta quanto ao n.° 4 do artigo 35.°
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado José Luís Ramos, quando V. Exa. colocou a questão do direito à consulta, o sentido da sua objecção escapou-me, porque não creio que se equacione qualquer aspecto relevante nessa esfera. De facto, ninguém pode condicionar o direito à consulta como tal.
O Sr. Presidente: - Não, Sr. Deputado. O que acontece é que a lei define o conceito, bem como os termos da constituição das bases de dados. Isto é: passa a não poder constituir-se uma base de dados sem estarem definidos na lei ordinária os termos em que pode sê-lo. Isto não me coloca nenhum problema. Mas já o mesmo não sucede no respeitante ao facto de passarem a depender de uma lei ordinária os termos da utilização dessas bases.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Creio que é uma precisão muito importante, Sr. Presidente.
Vozes.
O Sr. Presidente: - Temos agora em análise a proposta de aditamento de um n.° 7 ao artigo 35.c, apresentada pelo PCP.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: É, de facto, uma proposta de aditamento claríssima, mas, já agora, gostaria de colher a vossa sensibilidade em relação a uma proposta deste tipo, porque a ideia de um conselho nacional de informática e liberdades não é evidentemente original e seria estranho que o fosse.
A questão da sua consagração constitucional é, como todas as questões de dignificação constitucional, um tema sempre susceptível de ponderação.
Entretanto, o que gostaria de sublinhar é que, segundo penso, em Portugal poderá ser decisivo, para se alterar o panorama actual, o enveredar-se por este caminho que em outros países com regimes e enquadramentos constitucionais similares ao nosso, mas mais desfavoráveis, conduziram a resultados melhores do que aqueles que temos com o regime incomparavelmente mais favorável. Refiro-me, pois, à opção que temos de fazer, ou seja, ou enveredamos pela via da criação de elementos institucionais que assegurem efectivamente aos cidadãos, com as características próprias de órgãos como este, providências concretas na esfera própria destes órgãos ou, então, nem a conformação legislativa, nem a fiscalização geral ou, por assim dizer, oficiosa nem a fiscalização a pedido podem ter lugar.
Lembro que em iniciativas legislativas apresentadas anteriormente na Assembleia da República chegou a ser proposta a instituição de estruturas deste tipo com nomes quase iguais ou similares. Em todo o caso, o nome é inteiramente irrelevante, mas este parece-nos correcto.
De qualquer modo, o que propomos, combinado com aquilo que é necessário em relação à garantia do acesso aos documentos da chamada "Administração aberta" e em concatenação com outras estruturas de protecção dos cidadãos em áreas conexas, é um passo bastante importante para que se consiga a realização dos direitos previstos no artigo 35.º
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Ramos.
O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Em relação à proposta de aditamento de um n.° 7 ao artigo 35.°,.o PSD defende o não acolhimento dela, porque isso implicaria criar um conselho ou qualquer instituição para zelar pela protecção de dados pessoais, de outros direitos fundamentais ou mesmo só de direitos, liberdades e garantias - categoria essa mais restrita dos direitos fundamentais -, colocando fora dessa tutela outros direitos.
Julgo que neste ponto também esta distinção não deve ser feita. Aliás, a Lei do Conselho Nacional de Informática e Liberdades poderia salvaguardara utilização de informática e até o conselho era susceptível de colocar em causa aquilo que se quer proteger neste articulado, ainda que não queira visionar as coisas dessa forma. Portanto, e repito, o entendimento do PSD é de que não se deve criar quaisquer órgãos ou institutos que possam zelar pela aplicação ou salvaguarda de direitos, liberdades e garantias, em substituição ou em concorrência com os demais. Julgo, pois, que isso seria contraproducente.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.
O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Presidente, a minha reacção vai igualmente no sentido de que mais um conselho nacional não será talvez a primeira prioridade. Penso que o facto de já se ter construído uma panóplia de medidas processuais e de ficar relativamente bem definido na lei, até com algumas propostas de alteração a este artigo, como é o caso da respeitante à forma como deverão ser constituídas as bases de dados, leva-me a propor que deveremos deixar a aplicação directa destes preceitos ao uso que dela se faça. Creio que é a melhor defesa contra qualquer utilização abusiva da informática. E, portanto, a minha primeira reacção é que temos sempre esta tendência para criar mais um conselho, uma instituição ou uma entidade. Isso terá aspectos porventura positivos, ainda que não conheça outras experiências.
Entretanto, o meu colega, Sr. Deputado Alberto Martins, diz-me que há uma coisa parecida em França, o que acredito. Em todo o caso, dadas as benfeitorias que introduzimos agora e que vão naturalmente nortear algum processo legislativo a nível de lei ordinária, desejo que tal possa vir a ser feito conjuntamente com as medidas processuais que já constavam da Constituição em defesa dos direitos individuais.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
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O Sr. José Magalhães (PCP): -Sr. Deputado Vera Jardim, é evidente que se pode perguntar se um conselho consagrado constitucionalmente é a melhor solução.
Entretanto, o que me surpreende na argumentação que V. Exa. e desenvolveu é que, levando-se tão longe a dinâmica e a aplicabilidade do artigo 35.°, se acabe por concluir pela desnecessidade de elementos institucionais de efectivação. Devo até dizer que sinto, face ao processo de debate das propostas de lei apresentadas, da Convenção Internacional e do mais que ocorreu na Assembleia da República nas últimas legislaturas, que a questão do conselho é provavelmente uma das questões mais fulcrais. E digo-o por esta razão: se V. Exa. observar as propostas apresentadas, elas caracterizavam-se precisamente pelo facto de depositarem nas mãos de um conselho - e aí admito que este órgão não é tudo- a efectivação de decisivos poderes. Refiro-me à concessão ou não da autorização das bases de dados, à definição de dados pessoais e de excepções aos dados, isto é, a aplicação da Constituição e da lei ou não, a aceitação prática de que houvesse quebras aos princípios, designadamente no respeitante a certos dados de carácter bastante melindroso ou sensível.
Portanto, gostaria de perguntar a V. Exa. se não considera que a sua argumentação vai demasiado longe. E questiono-o nesse sentido, uma vez que este conselho, cuja experiência em França e na Itália é bastante meritória, interessante e merecia uma certa atenção, não é um luxo. Não é justo aquilo que o Sr. Deputado acabou de dizer, se bem ouvi, isto é, que "a melhor defesa é a aplicação directa".
É que o conselho nacional de informática e liberdades é uma inevitabilidade com este ou outro nome qualquer. Acontece, aliás, que sem esse órgão não há nenhuma possibilidade de efectivar o que se prevê neste artigo 35.°, a não ser que se governamentalize. Esta é, de facto, uma outra hipótese, ou seja, passa a ser o Govêrno a decidir tudo nesta matéria de utilização da informática.
O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Deputado José Magalhães, quando fiz menção da legislação ordinária que é necessário aprovar, até para complemento de algumas alterações que nesta sede se apresentam, admito que possa haver órgãos que tomem conta de alguns destes aspectos que são realçados na vossa proposta de aditamento ao artigo 35.°
Entretanto, procurar criar-se "à cabeça" um conselho, sem uma panóplia de medidas que têm de vir previstas nessa legislação ordinária, é que me parece um pouco precipitado. Daí que defenda que isso tem de ser analisado nesta sede.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Vera Jardim, é que isto visava precisamente acautelar que esse conselho tivesse certas garantias de independência, designadamente quanto à composição e ao respeito pelo princípio da representação proporcional, que não sei se V. Exa. consegue vislumbrar no terreno da lei ordinária. No entanto, se V. Exa. o conseguir, ficaremos verdadeira e prazenteiramente agradados.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.
O Sr. Raul Castro (ID): -Sr. Presidente, Srs. Deputados: Parece-nos que o próprio desenvolvimento da informática (entre nós naturalmente com algum atraso), já contemplado na revisão constitucional de 1982 e agora objecto de outras medidas regulamentares na Constituição, tem razão de ser, porque estamos perante uma matéria nova. E não vejo que a criação de um conselho nacional de informática e liberdades possa ser uma medida que coloque em risco as liberdades e os direitos, como referiu o Sr. Deputado José Luís Ramos. Pelo contrário, o objectivo expresso e compreensível da criação de um organismo deste tipo é a garantia da protecção dos cidadãos contra a utilização abusiva da informática; logo, tem em vista precisamente salvaguardar os direitos e as liberdades consignados na Constituição.
Parece-nos, por isso, que um órgão destes só pode funcionar em favor da garantia dos cidadãos quanto às formas de utilização abusiva da informática. E também não vemos que por se tratar de um órgão novo ou por não estarem definidas, como queria o Sr. Deputado Vera Jardim, algumas ou todas as suas atribuições não seja este o local próprio para isto. Refiro-me ao facto de competir à Constituição definir a existência deste órgão, naturalmente com o objectivo que aparece consagrado na proposta de aditamento ao artigo 35.Q apresentada pelo PCP, e de posteriormente, através da lei, vir a ser em pormenor estabelecido quais são os seus objectivos.
Por isso, concordados com esta proposta de aditamento.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Deparamo-nos aqui com uma questão paralela àquela com que nos deparámos quando se debateu a proposta, apresentada pelo PEV, sobre o promotor ecológico, em relação à qual foram aduzidos aspectos de inconveniência de vários tipos no respeitante à criação multiplicada de entidades para defesa de direitos fundamentais e, especialmente, para protecção dos direitos, liberdades e garantias.
Na minha opinião, esta proposta de aditamento ao artigo 35.°, apresentada pelo PCP, em matéria de informática, vem concorrer para uma certa ideia que juntamente com outras propostas que já vimos hoje, nomeadamente a que respeita ao mandado judicial, etc., não constituem mais, no seu conjunto, do que uma certa despromoção de modelos inequívocos de garantia dos direitos, já, em si, suficientes, como são, em primeiro lugar, a garantia jurisdicional e, em segundo lugar, as outras garantias graciosas. Temos, neste último caso, o próprio recurso para o Provedor de Justiça. Parece-me, pois, que o que é importante nesta sede é notar a racional idade da criação do número de entidades até para efeito do próprio processamento simples e da informação sobre os processos de garantia acessível aos cidadãos. Nesse sentido, julgo que se deve novamente reflectir nas inconveniências desta multiplicação de entidades.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Manuel Mendes.
O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves, desejo, rapidamente, formular algumas considerações.
A primeira consiste em dizer-lhe que todos devemos ser sensíveis à realidade que é a da desprotecção generalizada e, eventualmente, crescente, e, na opinião de alguns, irremediável, dos cidadãos face à utilização indébita dos dados informáticos. Todavia, como estamos a trabalhar em matéria constitucional, temos obrigação de acautelar e de garantir, por todas as formas ensejáveis, que valores funda-
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mentais não venham a ser torpedeados, eliminados e esvaídos pelas vias mais variadas.
Ora, o que acontece é que, noutros domínios e noutras eventualidades, considerámos a pertinência da criação de órgãos que deveriam ser não uma instabilização da garantia constitucional, mas um seu esforço. Fizemos assim com o Conselho de Comunicação Social e com o Tribunal Constitucional. Aproveito para, de alguma maneira, contrabandear uma pergunta que gostaria há pouco de ter feito ao Sr. Deputado Vera Jardim. De facto, devo dizer que, em idênticas circunstâncias, criámos primeiramente o órgão, dada a altíssima latitude e importância do que estava em causa, deixando para ulterior momento a produção da respectiva lei orgânica e dos regulamentos que viessem na fonte própria a ser constituídos.
Pela nossa parte, a criação do órgão que propomos não é mais do que um reforço da garantia constitucional e não uma instabilização, uma debilitação, como há pouco dizia o Sr. Deputado Vera Jardim. Além disso, entendemos que só em sede constitucional faz sentido criar um órgão como este, numa matéria tão sensível dos direitos, liberdades e garantias, com a respectiva composição definida.
Penso que não se deve falar em despromoção.
Por último, pergunto-lhe, Sr.- Deputada, se não é sensível a este tipo de argumento.
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Deputado José Manuel Mendes, sou sensível ao argumento de que há uma intenção clara de melhorar e acrescentar os sistemas de garantia. Aliás não nego essa intenção, pois ela resulta claramente do teor literal do n.° 7 do artigo 35.°, de acordo com a redacção formulada pelo PCP. No entanto, penso que, sob ponto de vista de uma certa racionalidade, da óptica da informação aos cidadãos sobre os meios de garantia a que ele tem acesso, até sob pena de a complicação gerar desinformação, e ainda face ao espírito da Constituição, vem colocar-se, com esta multiplicação de meios de garantia, uma espécie de dessacralização das garantias fundamentais, como são as garantias jurisdicionais e as graciosas já substancialmente consagradas.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.
O Sr. Alberto Martins (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Tenho francas dúvidas quanto à possibilidade de, por meio contencioso ou gracioso, poder ser dada solução positiva a estes direitos que são expressos no artigo 35.° E digo isto porque me interrogo relativamente ao seguinte: tendo os cidadãos direito a tomar conhecimento dos registos informáticos, quem é que decide quando o cidadão quer conhecer estes registos informáticos? Será a entidade que guarda estes registos informáticos? Refere-se também que é proibido o acesso a terceiros. Pergunto então o seguinte: quem é que decide a condição e a qualidade de terceiro? Estatui-se, do mesmo modo, que a informática não pode ser utilizada para tratamento de dados referentes a convicções filosóficas, políticas, partidárias, etc. Quem decide se isto não é cumprido? Quem vigia?
Na verdade, poder-se-á dizer que o cidadão é parte legítima, o que lhe permite recorrer contenciosamente. Porém, imagine-se que o cidadão nunca sabe que há este uso abusivo. Quem vai definir esta situação e qual é o controle contencioso ou outro quanto aos registos informáticos? O que são dados pessoais? Quem é que controla a aplicação de um número nacional único aos cidadãos? Admito até que, neste último caso, o controle é mais fácil.
Portanto, esta situação traz à colação dois aspectos, que são os seguintes: ou o cidadão é parte legítima e acciona contenciosamente, não sabendo muitas vezes que está abrangido por uma situação deste tipo, ou então é necessário criar um órgão.
Acontece que os Franceses têm um órgão específico que trata do assunto respeitante ao acesso dos cidadãos aos documentos da Administração. Porém, creio que será muito difícil colocar em prática estas disposições constitucionais sem um órgão específico. De facto, não me parece adequado que ele seja constitucionalizado. Porém, penso que não é possível cumprir estas disposições sem um órgão específico consagrado em lei ordinária.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Deputado Alberto Martins, é verdade que o sistema francês consagra o controle administrativo do acesso aos dados da informática.
Mas a primeira questão que proponho colocar é esta: V. Exa. considera ou não que a criação de um órgão administrativo poderá na prática quebrar aquilo que afinal e sacramentalmente se pretende defender com o conjunto de restrições constitucionais à utilização da informática? Não será que com isso se cria uma via nova de informação sobre os dados das pessoas que venha a ser contraproducente relativamente àquilo que, no fundo, se pretende defender com a estatuição do artigo 35.°? Esta é, de facto, uma questão pragmática que poderá eventualmente ter relevância.
Entendo, pois, que a tutela destes direitos se pode operar por outras vias. Aliás, não é sem razão que o modelo britânico e o modelo norte-americano consagram formas diferentes de garantia dos direitos dos cidadãos em matéria de informática, que não o controle através de órgãos administrativos ou mediante um órgão especial para esse efeito criado. Portanto, dada a possibilidade dessas alternativas, pergunto se não será de ponderar o lado inconveniente da criação de um órgão especial, tendo em conta que existem formas claras de defesa dos direitos. Sem esquecer uma forma de defesa que, em matéria de teoria geral do direito, é evidente, como é a invocação das normas sobre abuso de direito.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, penso que a discussão está finda. Contudo, não ficava bem comigo se não dissesse também o que penso acerca desta problemática.
Assim, devo dizer que, em princípio, não me repugnaria nada a existência de um conselho nacional de informática e liberdades. No entanto, coloco o problema de saber se o peso específico do risco da violação desse tipo de direitos que se jogam na informática é tão diferente do peso de todos os outros direitos fundamentais que justifique que só para eles se crie um conselho e não para os outros. De facto, criámos já o Conselho de Comunicação Social: é o outro exemplo que existe. Entretanto, quando chegarmos a essa matéria logo veremos se aceitaremos ou não a sua extinção, embora julgue que ele foi útil. Porém, não sou suficientemente ingénuo para supor que um organismo, como é o caso do conselho nacional de informática e liberdades, pudesse ter a eficácia que dele parece esperar-se.
Além disso, é verdade que a protecção dos tribunais tem os seus defeitos, sobretudo não funciona preventivamente. Penso, pois, que esse conselho funcionaria mais a título preventivo do que repressivo. E, para ser repressivo, também não me parece que pudéssemos dar-lhe ins-
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trumentos que hoje só competem aos tribunais. E, sendo eleito pelo método da representação proporcional, admito que pudesse vir a ter uma composição que não fosse politicamente tão isenta como é normalmente um tribunal.
Em suma, a proposta de aditamento do n.° 7 ao artigo 35.° é, em si, salutar. Apesar de tudo, abriria a porta a um excesso burocrático que no meu entendimento não cabe na Constituição. Estive na base da proposta relativa à criação do Conselho de Comunicação Social, o que me leva a entender que a reacção ou justificação legislativa foi igual à que está subjacente a esta proposta. No entanto, penso que também não podemos multiplicar conselhos a propósito de tudo ou de todos os direitos, não obstante admitir até que outros direitos possam merecer igual protecção. Não estou agora a fazer o cotejo com outros direitos fundamentais. Mas, repito, admito que haja outros que igualmente justifiquem um organismo deste género, sobretudo para funcionarem a título preventivo. De facto, nesta matéria, depois da violação do direito, só existe a possibilidade de indemnização e mais nada. Daí que ou bem que se evita a violação antes de consumada ou bem que, a partir daí, só a indemnização pode ter lugar. No entanto, bem sabemos que os nossos tribunais são parcos na atribuição de indemnizações e também não seria um organismo deste género que iria atribuir ou fixar indemnizações. Por isso, seria também um pouco relutante em aceitar uma solução deste género na Constituição. Não quero, porém, dizer que amanhã, com o desenvolvimento dos problemas informáticos e com o volume que eles tendem a ter, não venhamos a necessitar de criar um órgão deste género.
Entretanto, não me parece que tenhamos já chegado neste momento a um estádio de evolução e de desenvolvimento da problemática da informática ao ponto de consagrarmos na Constituição a criação de um organismo deste tipo.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, V. Exa. acrescenta uma questão importante e suscita até um desafio, que consiste em tentar demonstrar a necessidade desse órgão em termos de qualificação e não de generalidade. Não sei se poderei nas presentes circunstâncias fazê-lo, mas gostaria de realçar dois aspectos.
O primeiro é que creio que, neste momento, o amanhã já chegou, enquanto o legislador está confessamente atrasado. Sendo mais explícito: Portugal não aprova para ratificação a Convenção sobre os Dados porque não temos legislação interna e é condição prévia para tal possuí-la no nosso ordenamento jurídico.
O Sr. Presidente: - Vamos então começar por aí, Sr. Deputado.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Tão simples como isso. É verdade que ainda não tinha entrado nesse nível de argumentação, mas creio que seria mau acabarmos isto sem transparência até ao fim. Contudo, isto não responde ao argumento de V. Exa., porque é preciso ainda fazer a demonstração de que é necessário o edifício institucional que é proposto.
O segundo aspecto prende-se com a eficácia desse organismo a criar. Penso que há dois caminhos a seguir, ou seja, a governamentalização ou a instituição de mecanismos não governamentais que tomem certas decisões.
O Sr. Presidente: - Ou a judicialização!
O Sr. José Magalhães (PCP): - A judicialização é impossível, desde logo para garantir o princípio da responsabilidade. Refiro-me ao facto de que para nós verificarmos se este ou aquele dever legal ou deontológico, a definição rigorosa dos responsáveis pelos ficheiros, a sua qualificação adequada é cumprida em termos adequados, toma-se necessário uma de duas coisas: ou confiamos isso, por exemplo, ao Ministério da Justiça, através da direcção-geral dos serviços de qualquer coisa, ou confiamos isso a um órgão com características de independência e com uma particular qualificação. Essas funções não poderiam caber a um tribunal.
O Sr. Presidente: - Esse órgão faria só recomendações, como é o caso do Conselho de Comunicação Social, ou mais do que isso?
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, teria de ter poderes adequados como eram propostos, por exemplo, em certas iniciativas legislativas que foram apresentadas na Assembleia da República sobre essa matéria.
O Sr. Presidente: - "Adequados" é urna palavra excessivamente cómoda!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Presidente. Estou a utilizar o termo "adequados" unicamente por razões circunstanciais, pelo que não quero desde já propor nenhuma formulação. Isso teria sempre de ser um aspecto a considerar posteriormente.
Tomemos, por exemplo, as normas que tomam efectiva a proibição do acesso de terceiros às bases de dados pessoais. Pergunto a V. Exa. o seguinte: quem é que controla esse tipo de regras? Como V. Exa. sabe, trata-se de sistemas sofisticadíssimos - e não estou sequer a falar dos sistemas militares, mas sim dos que funcionam aos mais diversos níveis na Administração Pública, no sistema bancário e financeiro, nas seguradoras, etc. São, de facto, dados preciosíssimos, de valor incalculável, em relação aos quais a questão do acesso obriga a regras. Repito, quem é que fiscaliza as regras? Será a Administração Pública na sua vertente directa? E, quanto muito, uma hipótese - e digo-o abertamente. Já os tribunais creio que o não são, a não ser quando tudo está perdido e para atalhar as coisas que já estão consumadas e punir infractores de especial gravidade.
O Sr. Presidente: - Penso que a diferença não seria grande entre a defesa conseguível hoje através de uma lei bem elaborada que dê garantias e dos tribunais bem expeditos e um organismo desse género.
A minha dúvida centra-se exactamente no plano da eficácia.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas é nesse que estou a procurar carrear argumentos, Sr. Presidente.
O Sr. Presidente: - Sim, já ouvi isso, Sr. Deputado, com o brilho do costume. Porém, não estou muito convencido de que houvesse uma melhoria sensível.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Permita-me uma última explicação, que vai certamente responder ao seu argumento.
De facto, devo dizer o seguinte: por mais rigorosa que a Constituição seja, por mais rigoroso que o legislador ordinário seja - e, como vimos durante o debate, há um
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campo de acção vastíssimo para que o legislador seja o que não foi até à data -, por mais que as águas se separem, haverá ainda um abundante universo de tarefas que têm de ser cumpridas em termos de autorizações e de garantias gerais e especiais no aspecto da função preventiva e em termos de accionamento de meios expeditos, informais e eficazes para atalhar violações.
Que não se crie esse órgão na Constituição seria, quanto a nós, uma pena. Porém, que nem se dê um sinal de que deve haver um órgão com características de independência e de imparcialidade não puramente governamentalizado, que vele por isso e que tenha uma expressão plurípartidária seria, na nossa opinião, péssimo. E digo isto porque este é um dos tais domínios sensíveis e nos quais a actual situação portuguesa é de pandemónio.
Além disso, o direito comparado não nos é desfavorável - muito pelo contrário - quanto à existência de estruturas deste tipo com dependência parlamentar e condições institucionais apropriadas.
O Sr. Presidente: - Poderíamos defender uma solução genérica dessa ordem. De facto, uma redacção do tipo "devendo a lei prever os meios que assegurem a efectividade" é correcta. Contudo, até hoje não houve a vontade política de legislar a sério nesta matéria, nem ideias claras acerca dela na generalidade da classe política. Não tenhamos, pois, ilusões a esse respeito. Durante muito tempo pairou sobre a classe política uma crassa ignorância e uma diminuta experiência acerca desta matéria. Começa-se, porém, a ver claramente essa questão, pelo que pode ser que, a partir de agora, passe a existir essa vontade política. Contudo, parece-me que uma fórmula genérica do tipo "podendo ou devendo a lei prever os meios adequados à garantia" estaria correcta. Já a ideia de querermos burocratizar e de nos vincularmos à criação de mais um organismo não me parece um procedimento aceitável.
Vozes.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.
O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Presidente, verifica-se que ninguém propõe a alteração do n.° 5 do artigo 35.°, que diz o seguinte: "É proibida a atribuição de um número nacional único aos cidadãos."
O Sr. Presidente: - Isso é verdade, Sr. Deputado.
O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Na minha ingenuidade, pergunto se isto é hoje mais do que um voto piedoso. E pergunto ainda: podendo ser algo mais do que um voto piedoso, o que é certamente desejável, o que pode fazer-se em sede constitucional para ajudar a que seja mais do que o dito voto piedoso?
O Sr. Presidente: - Aliás, Sr. Deputado, já chegámos à conclusão de que, embora não haja propostas específicas para esse número, desde que exista uma proposta para o artigo na sua globalidade poder-se-á, em caso justificado, mexer-se no número.
Entretanto, não sei se o conteúdo legal do n.° 5 é tão piedoso como isso, pois, apesar de tudo, trata-se da proibição de um facto que merece continuar proibido.
De facto, em princípio fica-se a saber que não se pode chapar na testa de um indivíduo que ele é o número 3 milhões.
O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Presidente, isso fica a saber-se. Porém, o problema que coloquei não era relativo à possibilidade de se alterar este texto.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, é que depois de [...], passamos a ser carimbados.
O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): -Não é isso, Sr. Presidente. Não estou a propor que se suprima ou altere o n.º 5 do artigo 35.º A minha questão é outra: como evitar que o aí disposto seja mais do que um voto piedoso, havendo, como há, o bilhete de identidade, o número fiscal, o número da segurança social, etc.?
O Sr. Presidente: - Mas talvez a forma genérica de que há pouco falávamos pudesse abranger todos os números anteriores. Isto é, qualquer coisa como "a lei determinará os casos e condições em que serão assegurados", etc., ou seja, uma fórmula genérica que se aplicasse a todos esses direitos e não apenas àquele que estava aqui em causa. De algum modo já estava aqui na fórmula do PCP.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Abrangia este número a que propósito, Sr. Presidente?
O Sr. Presidente: - Pelo n.° 5.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Presidente, o n.° 5 é proibitivo. Como tal, a única coisa que o conselho poderia fazer seria assegurar que ninguém, utilizando um estratagema, ultrapassasse a proibição.
O Sr. Presidente: - De qualquer modo, também se aplicava à proibição do n.° 5, como é óbvio.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Claro, é óbvio. Até porque neste momento está-se a caminhar para a instituição do número nacional único, por forma ínvia, utilizando-se como numerador universal o bilhete de identidade ou o cartão da Segurança Social.
O Sr. Presidente: - Estamos esclarecidos.
Deixaríamos a proposta do CDS para amanhã, quando aqui se encontrasse um seu representante, e passaríamos agora à discussão da proposta de alteração ao n.° 5 do artigo 36.°, apresentada pelo PCP, que é de extrema simplicidade. É a seguinte: "Os pais têm o direito e o dever de manutenção e educação dos filhos."
Vozes.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Quando se fala em dever de manutenção utiliza-se a noção civilística ordinária - salvo seja e sem desprimor.
O Sr. Vera Jardim (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador.)
De resto, a manutenção lembra-me sempre a teúda e manteúda.
Risos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Utilizámos neste n.° 5 a expressão "manutenção" no mesmo preciso sentido que tem no actual n.º 3 deste preceito. Isto é, não existe qualquer possibilidade de evocação automobilística
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ou outra similar, pois o sentido desta expressão é precisamente aquele que lhe corresponde nos termos do inciso constitucional competente. É um conceito bastante rico e bastante denso, como bem sabem aqueles que têm de velar pela manutenção de quem quer que seja na esfera familiar.
Parece-nos que o aditamento desta expressão apenas enriqueceria a ideia já contida no artigo 36.°, n.° 5, quanto aos pais, todos os tipos de pais, qualquer que seja a natureza e a situação jurídica em que se encontrem. O facto de se estabelecer como dever de ambos, não só o da educação, já hoje reconhecido, como também o de manutenção, pode revelar-se de algum interesse e de alguma utilidade, designadamente para as mães.
O Sr. Presidente: - Pessoalmente não vejo nada contra. Trata-se de uma precisão.
Por seu lado, o PEV propõe o aditamento de uma alínea a) - suponho que se tratará de um n.° 3-A a seguir ao n.º 3 do artigo 36.º -, do seguinte teor "A lei assegura aos que vivam em situação análoga à dos cônjuges adequada protecção, designadamente no plano de segurança social e do arrendamento urbano."
Quero crer que o PSD esteja de acordo...
Risos.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - O PSD está de acordo com que se diga isto, mas em matéria de segurança social e de arrendamento urbano. Não tenho nada contra isto!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Muito bem! Nós adjudicaríamos isso.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Mas não aprovaríamos a proposta aqui. Agora a doutrina, é evidente.
O Sr. Presidente: - Mais algum dos Srs. Deputados pretende usar da palavra?
Pausa.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, pretendia apenas fazer uma pergunta ao Sr. Deputado Costa Andrade. E sugeria a V. Exa. ê que interrompêssemos aqui, não por causa dos direitos análogos mas sim porque gostaria de poder considerar uma proposta que vem a seguir. Isto é, vamos mudar realmente de capítulo, de página, vamos passar à problemática da comunicação social. E a fronteira entre a família e a dita é bastante demarcada.
O Sr. Presidente: - Por que é que não acabamos este preceito, deixando apenas para amanhã a apreciação da proposta do CDS?
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sim, Sr. Presidente, mas gostaria apenas de colocar uma questão ao Sr. Deputado Costa Andrade precisamente nesta esfera familiar. Não percebi se o Sr. Deputado entende que não se deve proceder à consagração constitucional da proposta do PEV ou se entende que essa consagração deve ser feita na parte respeitante à segurança social e ao arrendamento urbano.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Nem uma coisa nem outra, Sr. Deputado. Diz-se o seguinte: "A lei assegura aos que vivam em situação análoga à dos cônjuges adequada protecção [...]". Penso que ninguém pode estar contra uma norma como esta. Mas o que tem a ver a norma que o PEV apresenta com "Família, casamento e filiação"? Por que não se diz também "e aos solteiros"? Os solteiros não têm direito a adequada protecção? E os divorciados? Por que não se estabelece também que os viúvos têm direito a adequada protecção?
O Sr. Presidente: - Isso já tem um modesto lugar no Código Civil a partir de proposta de que fui autor...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Muito tímido...
O Sr. Costa Andrade (PSD): - É evidente que apela para uma sociedade laicizada, mas essa é a sociedade consagrada na nossa Constituição.
Um exemplo: o Código de Processo Penal, em matéria de impedimentos, equipara o cônjuge - e eu tive responsabilidade nisso porque me bati por esta questão - ao cônjuge de facto. Salvo melhor juízo, aqui é que me parece perfeitamente inadequado...
O Sr. Presidente: - Por outro lado, a consagração desta proposta teria desde logo uma consequência. E que, prevendo o Código Civil "há mais de dois anos", imediatamente se inconstitucionalizaria esta exigência. Passaria a ser "há mais de cinco minutos"... Também se inconstitucionalizaria a caducidade pelo não exercício do direito ao fim de dois anos...
Não creio, porém, que esta proposta tenha grande viabilidade...
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Só se dissermos também "aos solteiros, aos viúvos"... ou "todos têm direito a adequada protecção".
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, alguém mais pretende usar da palavra?
Pausa.
Assim, discutiríamos amanhã a proposta de alteração a este preceito apresentado pelo CDS e começaríamos o debate sobre o artigo 38.° "Liberdade de imprensa e meios de comunicação social".
Srs. Deputados, está encerrada a sessão.
Eram 19 horas e 35 minutos.
Comissão Eventual para a Revisão Constitucional
Reunião do dia 27 de Abril de 1988 Presenças
Rui Manuel Parente Chancerelle de Manchete (PSD).
José Álvaro Pacheco Pereira (PSD).
Carlos Manuel Oliveira da Silva (PSD).
José Luís Bonifácio Ramos (PSD).
Licínio Moreira da Silva (PSD):
Luís Filipe Pais de Sousa (PSD).
Luís Filipe Meneses Lopes (PSD).
Manuel da Costa Andrade (PSD).
Maria da Assunção Andrade Esteves (PSD).
Mário Jorge Belo Maciel (PSD).
Miguel Bento da Costa Macedo e Silva (PSD).
Rui Manuel Lobo Gomes da Silva (PSD).
António de Almeida Santos (PS).
Alberto de Sousa Martins (PS).
António Manuel Ferreira Vitorino (PS).
Jorge Lacão Costa (PS).
José Eduardo Vera Cruz Jardim (PS).
José Manuel Santos Magalhães (PCP).
José Manuel Melo Antunes Mendes (PCP).
José Luís Nogueira de Brito (CDS).
Raul Fernandes de Morais e Castro (ID).