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Terça-feira, 14 de Junho de 1988 II Série - Número 16-RC

DIÁRIO da Assembleia da República

V LEGISLATURA 1.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1987-1988)

II REVISÃO CONSTITUCIONAL

COMISSÃO EVENTUAL PARA A REVISÃO CONSTITUCIONAL

ACTA N.° 14

Reunião do dia 11 de Maio de 1988

SUMÁRIO

Deu-se continuação à discussão do 4. ° relatório da Subcomissão da CERC respeitante aos artigos 37.º a 47.º e respectivas propostas de alteração.

Durante o debate intervieram, a diverso título, para além do presidente, Rui Macheie, e do vice-presidente, Almeida Santos, no exercício da presidência, pela ordem indicada, os Srs. Deputados Sottomayor Cárdia (PS), Costa Andrade (PSD), António Vitorino (PS), Mário Maciel (PSD), José Magalhães (PCP), Raul Castro (ID), Maria da Assunção Esteves (PSD), José Luís Ramos (PSD), Sousa Lara (PSD), Vera Jardim (PS), Pais de Sousa (PSD), Carlos Encarnação (PSD), Miguel Macedo e Silva (PSD) e Jorge Lacão (PS).

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O Sr. Presidente (Rui Machete): - Srs. Deputados, lemos quorum, pelo que declaro aberta a reunião.

Eram 15 horas e 40 minutos.

Srs. Deputados, há duas propostas para o artigo 41.° e que são as seguintes: uma proposta de aditamento do PCP e uma proposta apresentada pelo Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

Como o PCP ainda não está presente, vamos iniciar esta discussão com a proposta apresentada pelo Sr. Deputado Sottomayor Cárdia, que e do seguinte teor:

Artigo 41.º

Liberdade de consciência, de religião e de culto

1-A liberdade de consciência, de religião e de culto e inviolável.

2 - Ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa das suas convicções em matéria religiosa ou da prática de actos de cias resultantes.

3 - Ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou atitudes em matéria religiosa, salvo para recolha de dados estatísticos não individualmente identificáveis, nem ser prejudicado por se recusar a responder.

4 - As igrejas, outras comunidades religiosas e demais associações interessadas na avaliação do fenómeno religioso estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto.

5 - E garantida a liberdade de ensino de qualquer religião praticado no âmbito da respectiva confissão.

6 - Conforme lei que respeite o princípio da igualdade, pode o Estado outorgar às confissões religiosas e às associações especialmente interessadas na apreciação do fenómeno religioso a faculdade de, até ao termo do ensino secundário, se responsabilizarem pela docência, em estabelecimentos de ensino público, das concepções que professarem sobre matéria religiosa e moral.

7 - Independentemente da aplicação do disposto no número anterior, pode o Estado outorgar à Igreja católica a faculdade de, até ao termo do ensino secundário, se responsabilizar pela docência, em estabelecimentos de ensino público, das concepções religiosas e morais que professar.

8 - E garantida a utilização de meios de comunicação social próprios às igrejas, às comunidades religiosas e às associações especialmente interessadas na avaliação do fenómeno religioso, para prosseguimento das suas actividades.

9 - É garantido o direito à objecção de consciência, nos lermos da lei.

10 - O segredo próprio dos ministros de qualquer religião ou confissão religiosa e inviolável.

O n.º 1 não tem alterações. O n.º 5 e idêntico. O n.º 9 e idêntico ao actual n.º 6. O n.º 10 é novo em relação ao texto actual.

Suponho que a parte sublinhada dos textos inclui aquilo que são as alterações introduzidas em relação à redacção do actual artigo 41.°

Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Presidente, com efeito o essencial e a parte sublinhada dos textos e os n.ºs 6, 7 e 8.

O n.° 10 e idêntico ao da proposta do PCP.

O Sr. Presidente: - Exacto, Sr. Deputado.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Presidente, trata-se basicamente de duas questões.

Primeiro: estabelecer uma equiparação entre os direitos das associações interessadas na avaliação do fenómeno religioso e os direitos das confissões religiosas. Este objectivo é o que se procura atingir através dos n.ºs 2, 3, 4 e 8.

Um segundo objectivo consiste em precisar o enquadramento do ensino das concepções religiosas e morais. Talvez se pudesse distinguir uma questão e outra. São duas matérias distintas.

O Sr. Presidente: - Se os Srs. Deputados estivessem de acordo, talvez pudéssemos começar por analisar número a número, o que seria mais simples. É que há alguns números que têm alterações muito pequenas, que podem rapidamente ser dilucidadas.

O n.º 1 e idêntico, portanto não há razão para o discutirmos.

O n.° 2 da proposta do Sr. Deputado Sottomayor Cárdia introduz o inciso "em matéria religiosa ou da prática de actos delas resultantes". No fundo, iram-se de uma questão de redacção. V. Exa. propõe a substituição da expressão "prática religiosa" por "prática de actos delas resultantes". Este "delas" refere-se, como é óbvio, às convicções religiosas. Por outro lado, introduz ainda a ideia de "matéria religiosa" em vez de, pura e simplesmente, "das suas convicções", sem adjectivações, que é aquilo que está feito no n.º 2 do artigo 41.º Não é isto, Sr. Deputado?

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Presidente, o fundamento da proposta já por mim foi exposto a propósito do artigo 13.°

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, suponho que iodos percebem o sentido desta alteração.

Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, ainda não estou plenamente esclarecido sobre esta dimensão inovadora.

O que e que a ordem jurídica constitucional portuguesa passa a ter de diferente com a introdução da expressão "por causa das suas convicções em matéria religiosa"? É que a expressão "convicções em matéria religiosa" é extremamente dubitaliva. Isto lambem diz respeito às convicções científicas em matéria religiosa? Um sociólogo tem as suas convicções sobre o modo como aparece, surge e se divulga a religião, ou seja, sobre as condições em que a religião aparece, sobre as condições de laicização do mundo e sobre o seu impacte. Também se quer proteger este tipo de liberdade, isto e, a liberdade de ler convicções científicas de, por exemplo, carácter sociológico ou psicanalítico? Um cidadão, que e herdeiro de Freud, quer saber como é que a religião se afirma, se divulga, se impõe, se legitima, etc. Portanto, há aqui uma atitude exterior à religião, uma vez que não se trata da vivência religiosa, mas de uma convicção científica em matéria religiosa. É esta liberdade que também queremos proteger?

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Por outro lado, temos a expressão "da prática de actos delas resultantes". Ora, a prática religiosa e a prática de actos em matéria religiosa. Se bem entendo, a prática religiosa e a soma da prática de actos delas resultantes.

Confesso que não percebi muito bem o sentido desta proposta.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (FS): - Sr. Deputado Costa Andrade, trata-se lambem de dizer que ninguém pode ser perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por causa das suas teorias científicas a respeito da religião.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Então, é a liberdade de trabalho científico. Creio que isso deveria constar do artigo 42.º, já que a religião pode ser objecto de um trabalho científico. No fundo, todos nos preocupamos, lemos alguma coisa sobre a religião e fazemos a nossa teoria. Podemos encarar a religião como psicanalistas, como sociólogos, etc. Isso é a liberdade de criação cultural e científica. Creio que deveríamos colocar isso no artigo 42.°, já que é este que aborda a liberdade de criação científica.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Deputado Costa Andrade, é isso, mas é mais do que isso. Trata-se de garantir que ninguém seja perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações ou deveres cívicos por motivo das suas convicções religiosas, da sua posição perante a religião, independentemente de essa posição ser assumida ou entendida, pelo próprio ou por outrem, como científica ou não científica. Haveria manifesta inutilidade se eu quisesse apenas dizer que ninguém será perseguido, privado de direitos ou isento de obrigações por lazer sociologia religiosa. Isso seria manifestamente inútil.

O Sr. Presidente: - Em todo o caso, no n.º 2 já está hoje suficientemente acautelada a liberdade de consciência, de religião e de culto. Portanto, ou é algo que se acrescenta a isso, mas que não é a liberdade de criação cultural - que está prevista no artigo 42.º, ou, cntão, e um pouco redundante. O problema é o de saber qual o sentido útil.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Presidente, o n.° 2, na verdade, e redundante. Introduz uma precisão que se justifica pela sua projecção nos números subsequentes. Se se tratasse apenas da matéria contemplada no n.° 2, não teria feito proposta alguma. Penso que tudo está, obviamente, acautelado na actual redacção do n.° 2. Portanto, não é inovador.

O que poderá ser ou não ser inovador são alguns aspectos do que se segue.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, quase que me dispenso de intervir porque subscrevo integralmente aquilo que o Sr. Deputado Sottomayor Cardia acabou de referir. Em termos práticos, a proposta de alteração que faz ao n.º 2 vale menos por ela própria e mais por aquilo que propõem os números subsequentes. Trata-se de uma precisão de "enfoque" constitucional do tratamento desta matéria, e não propriamente de uma inovação. O entendimento

que faço da comparação do que está hoje no n.° 2 do artigo 41.9 da Constituição e daquilo que é proposto pelo Sr. Deputado Sottomayor Cárdia no que ao n.º 2 diz exclusivamente respeito tem resultados e consequências práticas completamente idênticas. É exactamente a mesma coisa! A diferença de "enfoque" que o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia propõe para o n.º 2 justifica-se mais pelas propostas de alteração - aí mais relevantes e substanciais - que depois faz para os números subsequentes.

O Sr. Presidente: - Então, talvez pudéssemos passar ao n.º 3.

Tem a palavra o Sr. Deputado Mário Maciel.

O Sr. Mário Maciel (PSD): - Sr. Presidente, gostaria de formular um pedido de esclarecimento ao Sr. Deputado Sottomayor Cárdia, em relação à expressão "prática de actos".

O que é que significa essa expressão? É que, inclusivamente, as atitudes fanáticas são prática de actos decorrentes de convicções. Gostaria de saber se essa expressão também poderá abranger procedimentos que são manifestamente excessivos em relação à liberdade de culto e religião.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Deputado Mário Maciel, a Constituição deve ser tolerante do fanatismo religioso. Aliás, a democracia tem de ser tolerante dos fanáticos. Se o fanatismo se materializar na prática de actos de natureza criminal, então, como é natural, o fanático responde nos lermos do direito penal. No entanto, temos de presumir que as convicções religiosas ou em matéria religiosa não são, por sua natureza, mais próximas do fanatismo do que outras. Se receássemos que a religião conduzisse especialmente ao fanatismo, teríamos de adoptar cautelas limitativas. Porém, não presumimos isso e defendemos a liberdade de consciência. Em todo o caso, o receio seria tão pertinente contra a minha proposta como contra o texto actual da Constituição.

Não creio que se possa admitir que as atitudes não religiosas perante a religião sejam mais propensas ao fanatismo do que as atitudes religiosas. Até se me afigura que o argumento de V. Exa. vai ao encontro da razão de ser da minha proposta, mesmo tendo em conta a questão do fanatismo.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vamos passar à análise do n.° 3. A proposta do Sr. Deputado Sottomayor Cárdia propõe o aditamento da expressão "atitudes". Em relação a este número não há dúvidas, não há questões a colocar.

Vozes.

O n.° 4 já é um inciso mais alongado.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, o Sr. Deputado Raul Castro teve a gentileza de me sumarizar a evolução dos debates. Só que a questão que resta aclarar é a que diz respeito ao seguinte: qual é o preciso estatuto da discussão e qual e o entendimento dado pela Mesa e pela Comissão em relação à apresentação de propostas do teor da que agora está a ser objecto de debate, dadas as normas e constrangimentos que pendem sobre a

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iniciativa legislativa nesta matéria? V. Exa. conhece o conceito que temos quanto a este ponto. Nilo se nos pode atribuir qualquer rigidez excessiva. No entanto, também não nos pode ser atribuída um atitude que não se traduza numa leitura razoável do Regimento.

Trata-se de saber qual e o estatuto das propostas que tem um conteúdo inovatório em relação ao campo plasmado pela grelha de partida para a revisão constitucional.

O Sr. Presidente: - Quando a proposta foi apresentada, tive a ocasião de dizer o seguinte.

Em primeiro lugar, interpretei esta proposta como sendo uma proposta apresentada por um membro do Partido Socialista em relação a esta matéria.

Em segundo lugar, em relação à questão da conexão existe uma proposta de aditamento do PCP para o n.° 7. Antes de analisarmos o sentido das propostas, é um pouco difícil fazer um juízo peremptório sobre se existe ou não uma conexão razoável com esta ou com outras propostas que sejam apresentadas nesta matéria. Há algumas propostas sobre as quais - designadamente foi aquilo que vimos quanto ao problema dos n.ºs 2 e 3 e ale ao n.° 4 - e razoável que possam ser interpretadas em conexão com a proporia lhe aditamento para o n.º 7.

Em relação aos números novos que dizem respeito à questão do ensino, teremos de ver, num momento oportuno, se tem ou não alguma conexão possível.

Foi esta a interpretação seguida.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, creio que é relevante que se formalize o conjunto de fundamentos que estavam a presidir ao debate. Foi essa a intenção que presidiu à interpelação que fiz.

Estou de acordo com a observação feita pelo Sr. Deputado António Vitorino quanto ao .sentido a atribuir à proposta apresentada. Isto e, entendemos essa proposta para o n.° 2 como uma precisão de enfoque, e não como uma inovação.

O Sr. Presidente: - Em relação ao n.° 3 há mais alguma observação a fazer?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, gostaria de fazer uma pergunta ao Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Presidente: - Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. José Magalhães (PCP): - O Sr. Deputado Sottomayor Cárdia pretendeu densificar o conceito já consume da Constituição em relação ao direito a não ser perguntado. Como se lembrará, o direito a não ser perguntado foi introduzido na primeira revisão constitucional. Ele pode ser interpretado como recobrindo já toda a espécie de questionamentos através dos quais se pretenda apurar qual seja a convicção religiosa de um determinado cidadão. Isto e, como as convicções se manifestam, em regra, através de atitudes e como estas podem suscitar o desejo de que entidades públicas, designadamente, perguntem ao cidadão qual a sua postura em relação ao fenómeno religioso ou sequer se tem qualquer convicção - o que também e abrangido pela protecção constitucional -, dir-se-ia que aquilo que agora e proposto pelo Sr. Deputado Sottomayor Cárdia já vem recoberto por uma douta e uma adequada protecção da norma constitucional, tal qual se encontra redigida.

Nesse quadro e com esta óptica, a proposta poderia afigurar-se um tanto voluntuária, e portanto não imprescindível, porventura quando muito, de utilidade clarificadora. Pode, porem, como todas as claridades que se fazem sobre a luz, ser susceptível de introduzir dúvidas, caso não se forme em tomo dela uma adequada e consonante benevolência e concordância de maioria qualificada para o eleito constitucional mente pretendido. Donde lhe pergunto por que e que considera tão relevante estabelecer esta precisão e, mais, se não entende que o preceito, boamente interpretado, conduz rigorosamente a isto e não a outra coisa, sob pena de termos dele uma visão muito restritiva, muito redutora, muito pobre. E não creio que tenha sido isso que presidiu à elaboração desta norma na primeira revisão constitucional!

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - (Por não ler falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador.) [...] do constituinte, acho que tudo aquilo que aqui proponho se contém abundantemente na intenção originária do legislador.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Abundantemente, portanto...

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Abundantemente. E acho também que a proposta de n.º 2, de n.° 3 e de n.º 4 se contém igualmente numa interpretação correcta do actual texto constitucional, independentemente da origem e do espírito do legislador de 1976. Trata-se, todavia, de fazer uma precisão conceptual que tem a sua aplicação, designadamente, nos n.ºs 6 e 8. Aliás, V. Exa. teve de se ausentar momentaneamente da sala e, na sua ausência, esta questão tinha sido já esclarecida, tanto pelo Sr. Deputado Costa Andrade como pelo Sr. Deputado António Vitorino e por mim próprio.

Em suma, e para que fique claro: se porventura esta proposta não for acolhida, tal não significa que aquilo que exactamente se pretende acautelar não esteja já contido no texto, tal qual ele se encontra redigido.

(Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Vice-Presidente Almeida Santos.)

O Sr. Presidente (Almeida Santos): - Algum dos Srs. Deputados pretende intervir sobre o n.º 4?

Pausa.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, talvez fosse preferível que o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia, na qualidade de proponente e para adiantar razões, fundamentasse sumariamente a proposta que apresentou, o que nos colocaria na posição mais conspícua de perguntadores, em vez de comentadores de alguma coisa que mais simplesmente pode ser apresentada.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Srs. Deputados, na verdade, o fundo do meu pensamento, que aliás já expus a propósito do artigo 13.º, e que são igualmente valiosos os pontos de vista religiosos, não religiosos e anti-religiosos, devendo todos eles ser considerados no mesmo plano no que

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se refere à tutela dos direitos na Constituição. Quanto ao conceito que aqui inovadoramente se introduz, e o de "associações interessadas na avaliação do fenómeno religioso", às quais se conferem direitos nos lermos dos n.°s 6 e 8 da minha proposta.

O Sr. Presidente: - É uma extensão do direito.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - É...

O Sr. Presidente: - De alguma modo contemplando a outra face da moeda.

Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - (Por não ler falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador.) Temos algumas dúvidas, que - convém dizê-lo - não são de carácter político mas sim de carácter técnico-constitucional, no sentido de saber se devemos incluir aqui "as igrejas, outras comunidades religiosas e demais associações interessadas na avaliação do fenómeno religioso". Por "associações interessadas na avaliação do fenómeno religioso" pode entender-se apenas um departamento de uma faculdade que queira fazer, mais uma vez, sociologia da religião, que queira saber quais as condições que, no século XX, favorecem a secularização, a desdeificação do mundo, a hominização da civilização. Muitas delas, inclusivamente, podem ser subsidiadas pelo Estado ou ser departamentos de uma faculdade de ciências sociais ou de sociologia.

Parece-me que a proposta vai longe de mais. Peço desculpa - e já relativamente ao n.° 2 fiz o mesmo - por não ter posto em evidência aquilo que a proposta tem de bom, que se dá por adquirido, lendo antes explicitado aquelas razões que nos suscitam algumas dúvidas quanto à bondade da proposta. Nesse aspecto, não me parece que, por exemplo, um departamento de uma faculdade de sociologia interessado na avaliação do fenómeno religioso tenha de estar separado do Estado. Eu sou adepto fervoroso e quase total das universidades do Estado e não veria com bons olhos que o Estado não pudesse ter estabelecimentos de ensino interessados na avaliação do fenómeno religioso.

O Sr. Presidente: - Se bem entendi aquilo que o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia explicitou, não se trata tanto da formulação da proposta - de não está certamente tão agarrado às palavras concretas com que formulou a sua ideia - mas sim de pensar que, em matéria de separação das igrejas e do Estado, tanto se justifica que estejam separadas do Estado as comunidades religiosas como aquelas que põem negativamente em causa a própria religião, isto e, as anti-religiosas, chamemos-lhe assim. Por que é que - lerá pensado - umas hão-de estar separadas do Estado e outras não? No fundo, a ideia do Sr. Deputado Sottomayor Cárdia e essa.

Quanto ao facto de a formulação dever ser esta ou outra qualquer...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Mas com a formulação apresentada...

O Sr. Presidente: - A formulação e muito vaga. Mas, como já referi, penso que o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia não estará agarrado às palavras, como nunca está nenhum de nós, quando formula uma proposta.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Estava apenas a antecipar alguma lealdade possível para, numa hipótese de voto, não podermos votar favoravelmente esta proposta. Mas, se outra vier, tomá-la-emos certamente em conta.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - O Sr. Presidente explicou com toda a clareza o meu ponto de vista.

O Sr. Presidente: - Nestas coisas, lemos de ser claros.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Mas não e o que está cá, Sr. Deputado.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - O Sr. Deputado Almeida Santos explicou com clareza não só o objectivo da intenção legislativa como minha máxima e óbvia disponibilidade para que se redija melhor. É evidente.

Em relação às observações formuladas pelo Sr. Deputado Costa Andrade, esclareço que não me parece bem que se protejam as confissões religiosas e os estudos científicos sobre as religiões e se omita a protecção das concepções anti-religiosas e não religiosas.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Dá-me licença que o interrompa, Sr. Deputado?

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Esforcei-me por dizer que estou de acordo com aquilo que a proposta tem de bom e por demonstrar que, além de outras coisas, nela lambem cabe aquilo que eu referia: uma associação que, para efeitos de estudos religiosos, se constitui com carácter puramente científico é, em lodo o rigor, uma associação interessada na avaliação do fenómeno religioso.

Não pretendi pôr em causa o lado bom da proposta; esforcei-me apenas por demonstrar os lados negativos, na medida em que não tenho de demonstrar o eventual voto favorável, no caso de concordar com a proposta. Por uma certa honestidade e lealdade, e em virtude de certas boas relações que devemos cultivar, por uma certa acção comunicativa, lenho de demonstrar a razão pela qual votamos a favor. Mas, sobretudo, lenho de demonstrar por que votamos contra. E não podemos votar favoravelmente esta proposta na sua formulação actual.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Cosia Andrade, gostaria de tentar clarificar esta proposta, muito embora não seja minha, mas do Sr. Deputado Sottomayor Cárdia. No entanto, penso que a razão que lerá motivado esta proposta residiu no facto de a Constituição estabelecer já que a apologética religiosa esteja separada do Estado. O problema e este: o negativismo religioso, a negação religiosa, o combate à religião pode não estar? O Estado pode dispor de um organismo estadual para combater a religião? A comunidade anti-religiosa pode ser estadual, pode não estar separada do Estado? E isto que está na base da proposta, independentemente de me pronunciar sobre o seu mérito.

Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Permitir-me-ia duas observações. Em primeiro lugar, como dizia o Sr. Deputado Almeida Santos, traia-se de garantir que o Estado não é

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anti-religioso nem não religioso, além de não ser religioso. O Estado não interfere nessa matéria, não tem essa competência. Observa o Sr. Deputado Costa Andrade que, em departamentos científicos do Estado, se estuda o fenómeno religioso. Não se aplica a tal matéria a formulação que apresentei. Utilizei a palavra "avaliação" e não as palavras "interpretação", "explicação" ou "compreensão". Não obstante os departamentos científicos poderem interpretar, explicar e compreender o fenómeno religioso. Não se me afigura, porém, que avaliá-lo de um ponto de vista positivo ou negativo constitua uma atitude científica.

Em lodo o caso, a problemática religiosa não e apenas a da ciência das religiões. Inclui também as atitudes não religiosas e anti-religiosas. É esse o alcance das palavras que utilizei. Naturalmente que, se esta ideia merecer ser trabalhada, se-lo-á. No caso de não merecer ser trabalhada, não o deverá ser por quem não entenda que ela o merece.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Pretendia apenas dizer - para não levar muito longe esta discussão, pelo menos da nossa parte - que sempre disse, e mantenho, que me pronunciei em relação à proposta apresentada. Relativamente a outras propostas, veremos!

De todo o modo, se o interesse que se quer salvaguardar e o de que o Estado não faça militantismo anti-religioso, teremos que distinguir: ou não se quer que o Estado o faça através de actos, ou seja, que não subsidie, não apoie, não estimule práticas anti-religiosas, o que não e necessário porque está garantido na liberdade de expressão e de culto...

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Isso não está, Sr. Deputado.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - O Estado, do mesmo passo que garante a liberdade de religião, não está a proibir-se ele próprio de fazer anti-religião - "anti" - por acções? De resto, se o fizesse, o próprio Estado estaria a cometer um crime, concretamente o crime de perturbação da liberdade religiosa. E não estou a ver o Estado a proibir-se a si próprio de cometer práticas, acções... Sobre o quê? Sobre o trabalho científico!

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Não pode praticar actos contra as pessoas, que esses, sim, seriam crimes. Mas poderia eventualmente ler -c há países em que isso acontece- uma atitude anti-religiosa, situação que eu pretendia lambem evitar. E isso não constituiria nenhum crime. Dir-me-á que esta situação está abrangida por um preceito que impede que haja uma programação ideológica do Estado. Mas resta saber se a religião lambem seria considerada ideologia. Consequentemente, o Estado poderia ler atitudes negativas relativamente ao fenómeno religioso que não constituíssem atitudes negativas criminosas em relação a interesses legitimamente acautelados como fazendo parte da liberdade religiosa. Certamente que o sacrilégio, por exemplo, não é um crime.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Não, não ...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Já não é!

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Já não é!

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.

O Sr. Raul Castro (ID): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Pensamos que o preceituado na Constituição quanto à separação do Estado das igrejas e de outras comunidades religiosas significa uma medida que atinge ambas as parles, ou seja, significa que a separação vincula ambas as partes. No entanto, também, emendemos as propostas apresentadas pelo Sr. Deputado Sottomayor Cárdia no sentido de introduzir, sem se afastar do texto constitucional actual, algo que explicite melhor aquilo que já se encontra estabelecido na Constituição. Não vemos tanto o perigo de esse n.° 4 poder impedir que qualquer estabelecimento de ensino do Estado se deve a qualquer estudo sobre matéria religiosa, na medida em que isso parece estar salvaguardado em lermos de só às associações não ser possível dedicarem-se à avaliação do fenómeno religioso. E a minha dúvida reside precisamente na palavra "avaliação". Não sei se é esta a expressão adequada, na medida em que talvez não englobe todas as hipóteses que o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia quis prevenir.

Consequentemente, em meu entender, o sentido desta explicitação é positivo e não vejo que vá coarctar estudos em departamentos do Estado. Pelo contrário, o termo "avaliação" talvez seja limitado relativamente ao próprio sentido da proposta, pelo que votaríamos favoravelmente uma elaboração que pudesse melhorá-la.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Não pretendia dizer muito mais do que aquilo que o Sr. Deputado Cosia Andrade referiu relativamente à proposta de alteração apresentada pelo Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

Em primeiro lugar, não obstante pensar que este acrescento "e demais associações interessadas na avaliação do fenómeno religioso" pretende efectivamente prevenir a eventualidade de o Estado, ele próprio, promover associações que tenham por finalidade a promoção de uma certa anti-religiosidade, parece-me, contudo, que se trata de um acrescento desnecessário. E é desnecessário, em primeiro lugar, pela consagração clara da liberdade de consciência, religião e culto no próprio artigo 41.º O Estado, que é o destinatário fundamental desta disposição não poderia ele próprio incorrer na violação clara desse direito. Entendo que o Estado democrático e a estrutura jurídico-constitucional que lhe corresponde assentam em estruturas de legalidade que envolvem a própria liberdade de consciência no elenco de direitos, liberdades e garantias. Se se conjecturasse a hipótese que o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia pretende prevenir, leríamos nem mais nem menos do que o assentar na hipótese de uma espécie de Estado fundamental islã ao contrário, ou de um estado religioso ao contrário, que promoveria, através de associações próprias, a prática de intolerância, que nada tem a ver com a estrutura democrática de um Estado de direito, como é o nosso. Resumindo, entendo que se torna desnecessário este acrescento, sendo a liberdade de consciência suficiente para prevenir essa hipótese.

Seria mesmo absurdo que se desenhasse no horizonte a possibilidade de o Estado promover ou criar associações que convidassem à anti-religião. É que isso seria uma forma de religião incorporada no Estado.

Tendo em atenção essa estrutura de legalidade e a consagração do princípio e do direito da liberdade de consciência, o temor que sobressai deste aditamento não faz sentido.

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O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, creio que, em geral, é mau ver temores injustificados mas e lambem de vista curta só ver os tumores quando cies explodem. É que a boa altura para ver tumores é, normalmente, ex ante e, sobretudo, a boa distância deles. Assim como é positivo cogitar sobre quais devem ser os contornos do estudo de sítio antes que qualquer Estado democrático seja confrontado com uma necessidade de o declarar, também e bom saber e medir qual e o grau de perigo que numa determinada esfera o Estado democrático enfrenta. É em relação a este ponto que creio que o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia poderia ter sido mais específico. O Sr. Deputado poderá ainda vir a ser mais específico, carreando para este debate algumas razões, talvez até de carácter sociológico ou outras decorrentes de uma análise de outro tipo da situação concreta portuguesa, que levem a entender que e fundamentada, necessária e adequada uma precisão como aquela que propõe. É evidente que a fórmula que adianta e marcadamente polissemica.

Como já foi aqui sublinhado, e evidente que não se pode aludir, sem mais, a "associações interessadas na avaliação do fenómeno religioso", sobretudo se se preceder isso tudo da palavra "demais". Isto é, a expressão que se utiliza - "comunidades religiosas e demais associações interessadas na avaliação do fenómeno religioso" - tem uma pluralidade de significados possíveis. Desde logo, poderá questionar-se se será feliz ou não fazer-se uma contraposição entre comunidades religiosas e demais associações interessadas na avaliação do fenómeno religioso. Como sabe, as comunidades religiosas não são apenas comunidades interessadas na avaliação do fenómeno religioso. São comunidades empenhadas na percepção, na vivência, no conhecimento, na difusão, no inerente proselitismo, no culto e em tudo o mais o que envolve uma determinada convicção religiosa.

Elas situam-se para além da esfera do conhecimento, reclamam-se até, as mais das vezes, de um relacionamento com entidades sem carácter humano. Portanto, não se situam no terreno da sociologia ou da gnoseologia, mas, sim, no terreno da fé, da crença, o que, desde logo, não permite estabelecer uma copulaliva como aquela que aqui vem proposta.

Deixando de lado todo este conjunto de considerações, ainda haverá que admitir o seguinte: se a formulação exprimisse aquilo que parece ser o que o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia entende pertinente, se a formulação aludisse a entidades que definem posições perante o fenómeno religioso, sejam posições de combate acérrimo dentro dos limites constitucionais e legais, sejam posições de indiferentismo e de "laxismo" religioso, sejam posições de estudo e de análise, com tudo o que isto pressupõe no plano gnoscológico, então, haveria que dizê-lo de forma clara e sem margem para qualquer ambiguidade. Haveria que dizc-lo dessa fornia, dada a natureza do Estado de direito democrático português. Em todo o caso, o problema mais relevante e o de saber se se deve dizer Dl coisa em sede constitucional. O n.° 4 do artigo 41.° está lodo ele construído para, adquirindo aquilo que em Portugal foram as lições históricas do debate sobre as relações entre o Estado e as igrejas, assegurar às comunidades religiosas -c não só às igrejas - garantias plenas no tocante à sua liberdade de organização e à sua independência - esta entendida como um conceito multifacetado, portanto com uma pluralidade de dimensões. É esta a raiz, e este o âmbito e é esta a ratio do n.º 4 do artigo 41.º

Aquilo que o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia adita poderá entender-se como a dimensão que falta no edifício da liberdade, não da liberdade religiosa, mas, sim, da pluralidade de atitudes dos cidadãos perante "a questão religiosa".

Aparentemente, trata-se disso. Só que, ao faze-lo, e nos lermos em que isso e feito, abre um debate em relação ao qual importaria fazer algumas precisões. É evidente que os observadores, em função dos olhos que tem e em função do pomo de observação, vêem o que vêem. Neste caso concreto a realidade religiosa pode ser olhada do ponto de vista do Estado, das igrejas, das comunidades religiosas e dos indivíduos. Todas estas perspectivas - a atomizada, a institucional ou a estadual - coexistem no artigo 41.º Sucede que o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia está, aparentemente, preocupado com o ponto de vista institucional. Só que as contribuições que os Srs. Deputados deram até agora vieram chamar a atenção para as outras duas facetas: a individual e a estadual. Talvez valha, pois, a pena irmos por partes.

Primeiro, há que olhar as coisas na óptica do Estado. O Estado é, como sabemos, não confessional, tem de o ser, do que decorrem várias implicações. A pergunta interessante a fazer ao Sr. Deputado Sottomayor Cárdia, como contributo para a reflexão, e a seguinte: qual e a medida de intervenção dos poderes públicos em relação às igrejas e às comunidades religiosas que está pressuposta na sua proposta? Sabemos que o Estado não está proibido de enquadrar normativamente a actividade das igrejas e das comunidades religiosas. Por outro lado, o Estado lambem não está proibido de enquadrar normativamente as actividades das próprias estruturas, qualquer que seja a sua natureza jurídica, que tomem posição em relação à questão do fenómeno religioso, quer façam, dentro de certos limites, proselitismo da atitude anti-religiosa, quer preguem o agnoslicismo ou qualquer modalidade de indiferentismo face à religião, quer mesmo quando se reclamem do ateísmo militante, activo e "acirrado". É que tudo há-de conter-se dentro dos limites da lei penal. Quais são os limites para essa acção? Quais são, na óptica do proponente, as relações com as sociedades de proselitismo agnóstico ou as relações entre o Estado e as sociedades de difusão do ateísmo militante?

É evidente que o Estado não pode promover e apoiar acções que sejam crimes. Mas qual é a medida da "liberdade" do Estado no apoio a acções que, sem serem crimes, sejam votadas à difusão do ateísmo e que, sem pregarem intolerância, preguem o indiferentismo e o ateísmo? Aí está a boa pergunta e em relação à qual seria interessante que obtivéssemos uma resposta.

Em segundo lugar, há que olhar o fenómeno na óptica das igrejas. O Estado não pode constranger a criação e a organização das igrejas, a não ser na medida exacta em que estabeleça requisitos para a sua criação, em que não permita que no seu território se desenvolvam actividades incontroladas. É que, além do mais, elas podem ultrapassar as fronteiras do estritamente religioso e situar-se em terrenos que impliquem a violação de leis. Por exemplo, uma determinada seita, invocando uma determinada crença religiosa, constitui-se para praticar ritos de carácter secreto que envolvem, por exemplo, danos à integridade física ou mesmo a perda da própria vida. No caso o Estado não pode ser, obviamente, indiferente a esse fenómeno. Se a entidade religiosa (ou "religiosa") desenvolver actividades que violem limites constitucionais ou legais, o Estado pode e deve estabelecer normas que previnam a ultrapassagem desses limites. Não pode, porém, proibir ou limitar arbitrariamente o exercício do direito de culto. Isto é tão

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importante que o n.º 4 do artigo 19.° da Constituição estabelece entre os elementos ilimitáveis, mesmo em estado de sítio ou de emergência, alguns dos que dizem respeito à liberdade de consciência e de religião. Tudo isto tem, naturalmente, as correspondentes projecções. Pode ser-se tudo o que se quiser, pode ser-se ferranhamente ateu e impenitentemente ateu ou Ia de Santa Teresa de Ávila!

Que novidade e que esta proposta do Sr. Deputado Sottomayor Cárdia introduz na óptica do indivíduo, na óptica micro? Creio que era útil precisar tudo isto para se poder apertar a malha e medir qual a utilidade da introdução desta quarta dimensão do artigo 41.° da Constituição.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Presidente, em relação às questões suscitadas pela Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves gostaria de dizer o seguinte: antes de redigir este texto, rascunhei muitos outros, aliás, mais explícitos. Procurei finalmente recorrer a conceitos simples.

O Sr. Presidente: - Disso não temos duvidas, Sr. Deputado.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Os conceitos ficaram, porventura, demasiado simples, enxutos e talvez tenham um sentido rigoroso apenas para mim. Mas a dificuldade é superávcl. Pode encontrar-se um texto mais claro, embora mais longo. Por conseguinte, se for entendido que o conceito de "avaliação" deve ser desdobrado, então, ele poderá ser devidamente explicado.

Utilizei a fórmula "as igrejas, outras comunidades religiosas e demais associações interessadas na avaliação", porque penso que, de facto, as igrejas e as comunidades religiosas estão interessadas na avaliação do fenómeno religioso. Procedem, e organizadamente, a uma avaliação positiva desse fenómeno através das suas próprias crenças e convicções. A palavra "avaliação" tem significado axciológico. Aliás, creio que na minha prosa é esse o único scniido possível. Quis apenas simplificar o texto. Entendo que e útil precisar o alcance. Todavia, não se me afigura que a dificuldade de precisar o alcance em poucas palavras seja argumento invocável contra a introdução da norma. O que e que se procurou prevenir? Efectivamente, houve uma preocupação de conjunto em todas estas propostas: a de equiparar os direitos resultantes do facto de se ser religioso e do facto de não se ser religioso ou anti-religioso.

Objectar-me-ão os Srs. Deputados o seguinte: em relação à questão da separação do Estado e das igrejas e confissões religiosas, não vale a pena acrescentar as não religiosas e as anti-religiosas. Se houver o entendimento que não vale a pena acrescentar, então, não o proporei. Propus isto no pressuposto seguinte: assim como, por um lado, se pode recear que se diga que ser religioso é mais do que não ser religioso ou ser anti-religioso, também por outro lado se pode recear que fique a porta aborta para a adopção pelo Estado de valores não religiosos ou anti-religiosos. No entanto, se for entendido que essa interpretação e absurda, então, refire-se esta matéria do n.° 4. O n.º 4 pode não ser alterado, mesmo que as alterações que proponho sejam acolhidas em outros números.

Penso que nunca tivemos nem teremos em Portugal fundamentalismo anti-religioso. Já tivemos fundamentalismo religioso...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Deve ser uma alusão injusta ao Dr. Afonso Costa!

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Injusta e anacrónica, Sr. Deputado.

Vozes.

Joaquim António de Aguiar? Mas esse está na origem do liberalismo português e na origem da liberdade religiosa.

O Sr. Deputado José Magalhães colocou-me a seguinte questão: qual a medida de intervenção dos poderes públicos na esfera própria das igrejas e das associações? Penso que o Estado deve respeitar o agnoslicismo, o ateísmo, o indeferentismo tal como respeita qualquer das religiões ou confissões. Para mim não há aqui nenhuma diferença: o Estado respeita todos. É nisso que se traduz a liberdade de consciência.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vamos agora analisar os n.ºs 5.° e 8.º da proposta do Sr. Deputado Sottomayor Cárdia, que representam o desdobramento do actual n.º 5, autonomizando a primeira e segunda parles

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Os n.°s 5.º e 8.º, Sr. Presidente?

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, os n.ºs 5 e 8 da sua proposta são o desdobramento do actual n.° 5.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - O n.º 5 da minha proposta e aquele que consta hoje da Constituição, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Não, Sr. Deputado. O seu n.° 5 corresponde à primeira parte do actual n.° 5. O seu n.º 8 e a segunda parte do actual n.° 5.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Certo, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vamos, então, analisar estes n.ºs 5 e 8.

Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, parece-me que o que há de novo entre os n.ºs 5 e 8 6 a introdução das "associações interessadas". Portanto, penso que a discussão deve centrar-se aí.

Vozes.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - A proposta de alteração do n.° 5 resulta do facto de a ter autonomizado.

O Sr. Presidente: - No fundo, e o problema relativo aos meios de comunicação social.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Exacto, Sr. Presidente. E a fundamentação e a mesma! Se os direitos são os mesmos, o acesso à comunicação social deve ser idêntico.

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O Sr. Presidente: - Em relação aos n.ºs 6 e 7, penso que os deveríamos discutir a propósito dos problemas do ensino e não nesta sede. Concorda com isto, Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Receio não concordar, Sr. Presidente. Não receio o facto de estar em divergência com V. Exa. Receio o lacto de as razões que assistem à minha proposta terem conexão ou serem relativas à matéria...

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, esses números tem conexão com essa matéria. Talvez as pudéssemos discutir mais adiante.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Certo, Sr. Presidente.

No entanto, gostaria de explicar a razão de ser da minha proposta.

Temos desde 1940 a Concordata assinada entre o Estado Português e a Santa Sc. Essa Concordata diz no seu artigo 21.º o seguinte:

O ensino ministrado pelo Estado nas escolas públicas será orientado pelos princípios da doutrina e moral cristã tradicionais do País. Consequentemente, ministrar-se-á o ensino da religião e moral católicas nas escolas públicas elementares, complementares e médias aos alunos cujos pais ou quem as suas vezes fizer não tiverem feito pedido de isenção.

Qual e aqui o problema? Penso que há o risco de a Concordata ser declarada inconstitucional.

Vozes.

Com certeza, estou preocupado com a eventualidade de a Concordata ser declarada inconstitucional porque tal pode ter uma consequência danosa para o Estado Português nas suas relações bilaterais com a Santa Sé. E pode mesmo criar no País uma situação confusa.

O Sr. Presidente: - Acompanho-o nessa sua preocupação, Sr. Deputado.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Qual é a oportunidade de evitar que tal lesão do interesse nacional se possa um dia verificar, através de uma interpretação fundamentada da compatibilidade da Concordata e da Constituição? A oportunidade e esta, porque é agora que estamos a rever a Constituição. É agora que podemos tomar as devidas precauções para que os efeitos de uma tal declaração de inconstitucional idade não tenham as consequências negativas que de outro modo teriam.

Por este motivo, dirigi ao Govêrno um requerimento - aliás na sequência de idêntico requerimento formulado em 14 de Janeiro de 1971 pelo deputado Francisco Sá Carneiro -, formulando uma pergunia que é a seguinte: "Estão em curso negociações com a Santa Sé para a revisão da Concordata em vigor? Não estando, tenciona o Govêrno entabelar negociações nesse sentido? Ou aguarda que a Santa Sé o faça?" Tal foi a minha pergunta, exactamente igual à formulada em 1971 pelo deputado Francisco Sá Carneiro. Nos considerandos da pergunta, recordo que estamos em período de revisão constitucional que, ponderadamente, devemos aproveitar para proceder à correcção de, pelo menos, algumas imperfeições da lei fundamental. E evidencio a possibilidade de nexo entre a matéria referida e os trabalhos de revisão constitucional.

Na verdade, é aqui que podemos acolher, na ordem constitucional portuguesa actualizada, o que há de positivo e é substancial no que foi objecto de acordo entre a Santa Sé e a República Portuguesa no ano de 1940. Aliás, esse acordo foi precedido de uma revisão da Constituição de 1933, ocorrida, salvo erro, em 1935, porque, nos precisos termos originários da Constituição de 1933, não teria sido constitucional a Concordata de 1940. Em 1935 a Constituição foi revista, precisamente para que a Concordata pudesse ser feita. A Constituição de 1976 não é mais favorável à Concordata do que o texto originário da Constituição de 1933.

Como resolver o problema? Afigura-se-me que se resolve o problema, por um lado, tomando a República Portuguesa a iniciativa de dialogar com a Santa Se sobre esta matéria. A resposta que recebi do Sr. Ministro dos Negócios Estrangeiros ao requerimento é a seguinte: "O Governo, nestas matérias, não antecipa quaisquer intenções." Quer isto dizer que o Govêrno está, portanto, numa atitude de expectativa. Se bem entendo, o Govêrno reconhece que o problema existe -o Govêrno não diz que o problema não existe -, mas não quer tomar a iniciativa de tocar nesta matéria ou, se tem essa intenção e até, porventura, a estará já neste momento concretizando, o que ignoro totalmente, não quer antecipar as intenções. A questão existe. Dificilmente se pode negar.

A minha proposta para o n.° 7 vai no sentido de acolher o essencial do que hoje se contém na Concordata em relação ao ensino da moral e da religião nas escolas públicas. Afigura-se-me, todavia, que esta disponibilidade do legislador constituinte para acolher uma parte do que se encontra na Concordata deve ser completada por um princípio de idêntica natureza, embora um pouco mais frágil, relativamente às confissões religiosas e às associações especialmente interessadas na apreciação do fenómeno religioso ou outra designação que venha a ser adoptada.

Em suma, parece-me que não se pode deixar de colocar a questão da revisão da Concordata, suscitada em 1971 pelo deputado Sá Carneiro, e parece-me que, se resolvermos passar sobre esta matéria sem a considerar, corremos o risco de, daqui a um, dois, cinco, quinze, vinte, trinta anos, ter um problema com a Santa Sé e também com o povo português. Por consequência, é agora o momento de acautelar. É tão-somente esse o alcance do que proponho. Ou seja, proponho que haja um privilégio para a Igreja católica, no contexto de uma visão mais aberta aos valores não religiosos na sociedade portuguesa.

Afigura-se-me, aliás, que o n.º 7 só é justificável se for aprovado o n.º 6. Se fosse questão de aprovar o n.° 7 sem o n.º 6, eu acharia mal: não deve consagrar-se o privilégio, sem ter consagrado a liberdade. Objectar-se-á que, aprovado que fosse o n.º 6, o n.º 7 não seria necessário. Mas cautelarmente o n.° 7 tem o valor que tem.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Ramos.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Sr. Deputado Sottomayor Cárdia, gostava de lhe colocar três questões muito concretas.

A primeira para saber se não acha que o n.° 7 se contém totalmente no n.º 6 e como tal qual a razão de ser do n.° 6.

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Se falar em confissões religiosas e quaisquer associações especialmente interessadas na apreciação do fenómeno religioso - não se dizendo quais, entendendo-se serem todas - e de, depois, propor-se um n.º 7 relativo à Igreja católica com as mesmas disposições do artigo anterior. Tecnicamente, gostaria de saber o porque desta distinção entre o n.° 6 e o n.º 7.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Independentemente da aplicação do disposto no número anterior, ou seja, da observância de princípio de igualdade.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): -Eu sei. Mas, de todas as maneiras, gostaria de saber se não seria de se prescrever apenas um número que contenha tudo, uma vez que, para além da expressão "independentemente da aplicação do disposto no número anterior", tudo o que se segue e exactamente igual ao que está disposto no n.° 6. Ou não?

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - O que eu quero dizer e o seguinte: o Estado pode atrasar-se na aplicação do n.º 6 sem que esse atraso signifique que fica impedido de avançar no sentido de privilegiar a igreja católica.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - É uma questão temporal.

O Sr. Presidente: - O n.º 6 diz: "Conforme lei que respeite o princípio da igualdade [...]" Mas no n.º 7 diz-se: "Independentemente da aplicação do número anterior." Consequentemente, aqui não tem que se respeitar o princípio da igualdade.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - A segunda questão que quero colocar e a seguinte: quando no n.º 6 se diz "pode o Estado outorgar, às confissões religiosas e às associações especialmente interessadas na apreciação do fenómeno religioso, a faculdade de, até ao termo do ensino secundário, se responsabilizarem pela docência", o que é que quer exactamente dizer esta expressão "se responsabilizarem pela docência"? Quer dizer que serão as próprias confissões religiosas que pagarão os professores, fazendo também toda uma programação nesse campo, ou aquela expressão tem um âmbito mais restrito? Por outro lado, quando se refere - não havendo ainda uma lei aprovada - que a Igreja católica pode, ela própria, desde o início, começar a leccionar ou a exercer actividades docentes no ensino secundário de natureza pública, não poderá haver aqui uma desigualdade em relação às outras confissões religiosas? Ainda quanto à expressão "se responsabilizarem pela docência", devo dizer que penso que uma coisa e existir a faculdade de qualquer religião leccionar ou exercer funções docentes no ensino de natureza pública, outra é o facto de as próprias igrejas se responsabilizarem pela docência. Julgo serem questões diferentes.

A terceira questão que, muito rapidamente, lhe coloco é a seguinte, embora não saiba se é a pessoa mais indicada para me responder: gostaria de saber qual a posição que o seu próprio partido tem sobre esta matéria. Ou esta e uma proposta rigosamente individual?

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Respondo à segunda questão, à terceira responde o meu partido.

Uma voz: - Também é do partido.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Pois sou, mas, se eu fiz a proposta em nome individual, não vou naturalmente dizer o que é que o meu partido pensa da minha proposta.

O Sr. Deputado José Luís Ramos perguntou-me o que é que se entende por responsabilidade pela docência. É evidente que a aprovação do n.º 6 ou do n.° 6 e do n.° 7 implica clarificações regulamentares que tem de ser consideradas e se prendem à matéria contida na própria Concordata. Aqui o que se me afigura é que o estatuto da Igreja católica deve ser idêntico ao estatuto das restantes, uma vez que as partes interessadas disponham também dessa faculdade.

Entrar agora no pormenor de saber quem paga, qual a relação com a função pública, é complicado e prematuro. É especialidade, não generalidade. Todavia, a própria Concordata também contém dificuldades a esse respeito porque também se diz que "para o ensino da religião católica o texto deverá ser aprovado pela autoridade eclesiástica e os professores serão nomeados pelo Estado de acordo com ela. Em nenhum caso poderá ser ministrado o sobredito ensino por pessoa que a autoridade eclesiástica não tenha aprovado como idónea". Há portanto aqui todo um mundo de normativos que têm a sua dificuldade de aplicação mesmo na lei vigente.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Por consequência, o entendimento do Sr. Deputado Sottomayor Cárdia é o seguinte: relativamente a todas as outras religiões, a situação deve ser idêntica à da Concordata relativamente à Igreja católica. É isto?

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Não. A minha posição e a seguinte: primeiro é preciso esclarecer estes pontos. Ou seja: em que consiste a responsabilização? Seguidamente, haverá que declarar que, neste particular, a Igreja católica, as restantes confissões e os restantes interessados na avaliação do fenómeno religioso têm um estatuto idêntico.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, o nosso partido ainda não se debruçou sobre esta proposta. Mas poderei, desde já, adiantar o seguinte: na medida em que a Concordata foi assinada num momento em que a religião católica era a religião oficial do País, e na medida em que, posteriormente, foi aprovada uma Constituição que define uma posição laica do Estado, no sentido da separação do Estado e das igrejas, se existe o risco - e no mínimo ele pode existir - de poder vir a discutir-sc a inconstitucionalidade da Concordata, talvez se justifique que aproveitemos a revisão constitucional para uma discriminação positiva a lavor da Igreja católica. Matávamos esse fantasma, se é que não vale a pena mante-lo em situação de banho-maria. Isto quanto a estes dois pontos. Quanto aos aspectos concretos de redacção, na altura própria veremos qual a posição a tomar. E não serei eu a vincular o meu partido sem o ouvir, coisa que ainda não fizemos.

Penso que vale a pena tornar as coisas claras, Se queremos assumir uma discriminação positiva, digamo-lo. Se ela existe, então que a Constituição o reconheça.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, sem prejuízo de poder fazer minhas as palavras que acaba de

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produzir quanto ao facto de não estar em condições de poder exprimir uma posição definitiva ou sequer largamente colectiva sobre esta questão, gostaria apenas de enunciar três ou quatro juízos provisórios e um juízo peremptório sobre esta maioria.

Os juízos provisórios são os seguintes: em primeiro lugar, nenhum de nós ignora que esta discussão se faz sob o pano de fundo do Acórdão n.º 423/87, publicado no Diário da Republica, n.° 273, de 26 de Novembro de 1987, nem ignora lambem que a acção governamental neste ponto conduziu já à elaboração do diploma que foi declarado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional em diversos pontos. Refiro-me, naturalmente, ao Decreto-Lei n.° 323/83, de 5 de Julho, e às normas que, ao abrigo dessa matriz, tem vindo a ser emanadas. Sabe-se, lambem, que o Governo, longe de se conformar com o que decorria do acórdão do Tribunal Constitucional, reiterou a sua disposição de infringir o quadro constitucional aplicável em matéria de liberdade religiosa e chegou ao pomo de - naquilo que 6 uma atitude de rebelião face aos próprios poderes do Tribunal Constitucional - ensaiar normativos que retomavam e, em certos casos, acintosamente renovam soluções constitucionalmente censuradas.

Tudo isto se situa no terreno da lei ordinária e no da actuação governativa corrente, inconstitucional embora, e nada disto nos deveria ocupar excessivamente. Sucede que o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia introduz, por essa via e neste momento, um debate com uma natureza cujo enquadramento nos trabalhos da CERC não pode ser aceite sem mais, isto é, sem alguma reflexão ulterior que, pela nossa parte, ainda não fizemos.

É que pode discutir-se se, à situação que está criada, a boa solução é abrir ou não um diálogo com a Santa Só, porque não colhe dúvidas que o preceito da Concordata sobre o ensino religioso nas escolas oficiais, se já em contrário à versão originária da Constituição de 1933, que foi revista, precisamente no sentido de suprimir esse escolho, e contrariaríssima à Constituição de 1976. Sobre isso não sobram dúvidas nenhumas. Também não há dúvidas de que em Portugal não existe uma "questão religiosa" e dúvida nenhuma há de que as relações com a Santa Se não tem, que saibamos, qualquer bulício ou trepidação e fluem com normalidade. Não está, portanto, colocado nada na nossa circunstância histórica que dificulte ou crispe o debate sobre esta matéria.

Mais ainda: não é líquido que ela lenha de se situar na esfera constitucional. Digo que não é líquido, mas dizer isto é dizer uma evidência porque, se a Constituição diz o que diz e se a Concordata, como instrumento do direito internacional, não e imune a fiscalização pelos órgãos de soberania competentes do direito interno português, se eles não estão tolhidos na sua acção por qualquer peia, se a determinação dos seus movimentos eventuais pode ser por eles próprios escolhido segundo os seus superiores critérios, estaremos nós sob constrangimento de qualquer facto que nos obrigue a deliberar nesta sede? Este é o primeiro aspecto a clarificar.

Em segundo lugar, do quadro constitucional fluem implicações que devem ser extraídas pelo legislador ordinário e, seguramente, pelo Governo, que não pode colocar-se numa postura de rebelião, de desvalorização e, menos ainda, de subsversão dos conteúdos constitucionais adquiridos. Há, portanto, que cumprir, pura e simplesmente, a Constituição nesta matéria! Aquilo que o Govêrno tem feito não é cumprir a Constituição, mas inverter o seu alcance num ponto que é sensível. Como os debates na Constituinte permitem apurar com clareza meridiana e razoável, o princípio da separação tem dimensões que permitem, quando muito, que o Estado autorize que as igrejas ministrem, elas próprias, nas escolas públicas, o ensino da sua religião àqueles que o desejem e apenas a esses, portanto, em termos completamente voluntários e independentemente de qualquer declaração escrita dos alunos ou dos seus responsáveis ou de qualquer anotação, menção ou averbamento nos currículos respectivos.

Isto resulta claro da lei fundamental - e aliás o Tribunal Constitucional alertou para este aspecto de forma cabal. Só que também se topa, a partir da análise da experiência constitucional, que o que isto implica em relação ao regime da Concordata e um grande conjunto de diferenças, desde logo porque o ensino da religião não é e não pode ser, a título nenhum, tarefa pública do Estado ou da escola pública, mas uma tarefa das igrejas e só delas. Por outro lado, a frequência do ensino da religião tem de ser facultativa e não pode senão sê-lo, não sendo para todos, mas só para aqueles, que exprimam a sua vontade nesse sentido e é absolutamente proibida qualquer cláusula do género: "O ensino é para todos, salvo para os que decretarem expressamente que não querem ser abrangidos por esse ensino." Isto é líquido e a experiência constitucional aflorou este ponto de maneira clara.

Além disso, o acesso das igrejas à escola pública não pode ser privilégio ou monopólio de qualquer religião e deve estar aberto às diversas confissões.

Sendo isto o que flui, neste momento, da Constituição, a questão que se coloca é a de saber se vale a pena, se e relevante, se é justificado introduzir qualquer alteração nesse panorama. O que é que, na circunstância portuguesa, impele a que se altere neste ponto o juízo fundador do regime? Aliás, este ponto apenas condensa e dá forma actualizada à matriz dcmocrático-constitucional republicana.

É essa a questão que, pensamos, deve ser apurada. Pela nossa parte empenhar-nos-emos nesse esforço. No entanto, gostaria de dizer que temos dúvidas profundas de que isto possa ser apurado, discutido e concluído, com felicidade, nesta revisão constitucional. Como sabem, são aplicáveis à apresentação de propostas certas regras, certos limites. Não tendo esta constado na grelha inicial de partida, nós não podemos, nos lermos do artigo 2.° do nosso Regimento publicado no Diário da Assembleia da República, 2.ª série, n.º 1-RC, de 3 de Março de 1988, apreciar senão propostas e textos se substituição constantes dos projectos de revisão apresentados. Esta ideia também aflora no disposto no n.° 1 do artigo 9.° Assim, a questão do enquadramento, face a estes limites ou regras da proposta apresentada, pode decidir-se no sentido da sua viabilidade? Este debate tem assento? Isto é, há que analisar a questão prévia da entrada no debate, independentemente da paixão, da relevância, da utilidade do mesmo. Podemos entrar nesse debate ou prossegui-lo sem ter em conta qual é exactamente o quadro aplicável? É que isto é decisivo para a utilidade da reflexão.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, este debate, ao versar sobre esta temática, não pode ignorar que há um certo percurso histórico do tratamento desta matéria, designadamente em sede da jurisprudência do Tribunal Constitucional. Este emitiu recentemente um acórdão que versa sobre esta temática e que declarou a inconstitucional idade quer do decreto-lei quer, por arrastamento, de normas de uma portaria, que vertiam no ordenamento interno dispositivos da Concordata celebrada entre o Estado

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Português e a Santa Só. E evidente que a declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Tribunal Constitucional faz repercutir os seus efeitos, ainda que indirectamente, sobre o conteúdo desse dispositivo da própria Concordata. É um caso típico de inconstitucionalidade superveniente de uma norma constante de um tratado internacional decorrente da entrada em vigor de um novo ordenamento constitucional. Nesse sentido, independentemente de se poder discutir se se torna ou não necessário proceder à fiscalização e à declaração expressa da inconstitucional idade dessa norma, de direito internacional sempre se deverá entender que a inconstitucional idade de que essa norma da Concordata está ferida retroage à data da entrada em vigor da Constituição de 1976, isto e, a 25 de Abril de 1976.

Contudo, parece-me que este tipo de problemas só tem mesmo como sede própria a revisão constitucional e o exercício dos poderes constituintes. Em requerimento ao Governo, o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia levantou originariamente essa questão. A resposta que recebeu do Govêrno de antecipação de ideias poderia deixar entender que esta matéria poderia ser resolvida através da participação das mesmas. Ora, essa é que seria uma solução totalmente ilegítima. A negociação de um tratado internacional, designadamente a revisão da Concordata, nunca poderá resolver a questão que está subjacente a este debate e que está na base da proposta do Sr. Deputado Sottomayor Cárdia. Portanto, o problema que está em cima da mesa é o seguinte: não sendo possível equacionar esta questão em sede de lei ordinária, não sendo possível equacionar esta questão nos lermos em que o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia o faz no seu requerimento, isto e, através da introdução de alterações a um traindo internacional, mas estando nós perante uma prática desigualitária do Estado no tratamento, em matéria de ensino, das diversas confissões religiosas, e sabendo nós que existe uma situação láctica de privilégio para a Igreja católica e considerando ainda que o princípio da igualdade se traduz no tratamento igual daquilo que é igual e no tratamento desigual daquilo que é desigual, a eventualidade de acolher a prática concretamente verificada, em função dos princípios anteriormente enunciados, tem por ocasião própria a revisão constitucional, sob pena de, por pura hipocrisia, se consentir na subsistência de uma situação láctica que não tem a adequada cobertura constitucional. Nesse sentido o debate é extremamente oportuno, pertinente, actual e interessante e parece-me ser de somenos relevância o apuramento de qual é a concreta base regimental que preside a este debate, na medida em que é esse exercício dos poderes de revisão constitucional que confere a quem nele participa o mais alto grau de poder de autovinculação. Portanto, a definição do âmbito e dos limites da própria proposta de revisão constitucional é matéria que, em última instância, está sempre na livre disponibilidade dos participantes. As normas, quer de natureza regimental, quer eventualmente até de natureza constitucional, que regulam a limitação da capacidade de propositura são normas que se baseiam em meros princípios de economia processual, no sentido de que a revisão constitucional não seja, como a célebre "teia de Penelope", sempre recomeçada porque sempre se suscitariam para passar novas propostas. Tal como já se passou na primeira revisão constitucional, a aceitação consensual, que aqui foi feita, independentemente do estado de espírito com que se encara este tema, da pertinência da matéria e da relevância da própria proposta deve levar a derrogar limitações meramente processuais e a admitir novas propostas que enriquecem o debate e, sobretudo, que tem relevância constitucional como parece irrefutável que esta é uma matéria de relevância constitucional substantiva e não meramente adjectiva.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sousa Lara.

O Sr. Sousa Lara (PSD): - Sr. Presidente, queria começar por sublinhar a oportunidade da discussão, nesta sede, deste tipo de propostas e de exposições.

Em todo o caso, colocaria uma pergunta ao Sr. Deputado Sottomayor Cárdia. Gostaria que explicitasse com mais profundidade a relação necessária que estabelece entre os n.ºs 6 e 7. Creio que colocou como condição para que o n.° 7 permanecesse como proposta sua que o n.° 6 fosse acopulado. Pedia-lhe que justificasse um pouco mais a sua proposta, porque me parece que estes dois números podem ser independentes.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Presidente, gostaria de dizer que estou inteiramente de acordo com as considerações do Sr. Deputado António Vitorino. Ignoro se ele concorda com as minhas propostas, mas eu estou de acordo com as suas considerações.

Relativamente à questão que me colocou o Sr. Deputado Sousa Lara, ou seja, por que e que proponho só o n.° 7 e também quero o n.º 6, gostaria de dizer o seguinte: se esta questão deve ser reconsiderada, então, deve sê-lo na sua globalidade. Não devemos ter apenas a preocupação de evitar um incidente. Devemos também ter a preocupação de levar às suas consequências próprias os princípios da liberdade em matéria religiosa ou, simplesmente, da liberdade religiosa. Assim, não sou a favor do voto no n.º 7 sem o voto no n.º 6. Porém, os Srs. Deputados farão o que entenderem.

Quanto às questões relativas ao Govêrno que coloca o Sr. Deputado José Magalhães, não lenho nada a ver. Não sei se me escapou algum pormenor, mas estou de acordo com as considerações do Sr. Deputado José Magalhães relativas a abusos que o Govêrno vem praticando nesta matéria, o que talvez signifique, no fundo, que, contrariamente ao que foi dito, não há razão para recear fundamentalismos anti-religiosos. Pode é haver razão para recear fundamentalismos religiosos.

O Sr. Deputado José Magalhães disse que deliberamos sem constrangimentos. Ora, isso é um mérito, é uma vantagem. Não estamos constrangidos, temos inteira liberdade de ponderação sobre esta matéria.

Quanto à falta de nexo necessário entre a matéria da Concordata e da sua eventual declaração de inconstilucionalidade e a revisão constitucional, gostaria de dizer que penso que isso é exacto. Simplesmente, se a Concordata for declarada inconstitucional sem que o n.° 7 ou algo de semelhante figure na Constituição, a Igreja católica terá de actuar nesta matéria apenas nos termos do n.° 6, ou seja, conforme a lei que respeite o princípio da igualdade.

Afigura-se-me que poderá haver alguma justificação sociológica, alguma justificação relativa à tradição história portuguesa no sentido de manter um regime de discriminação positiva a favor da Igreja católica. Não é que se me afigure que essa discriminação positiva deva ser por tempo indefinido. Pode é haver dificuldade em elaborar uma lei que respeite o princípio da igualdade. Não vamos criar dificuldades com quem já exerce uma faculdade análoga. Por esse motivo parece-me que, tal como disse o Sr. Deputado

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António Vitorino, esta questão da discriminação positiva a favor da Igreja católica só pode ser acolhida em termos constitucionais.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, o Sr. Deputado António Vitorino introduziu aqui uma questão relevante e creio que não há nenhuma razão para que não seja abordada de imediato.

O Sr. Deputado afirmou, peremptoriamente, que há uma situação táctica sem cobertura constitucional. Há que enfrentar a situação de facto, o que é, naturalmente, um apelo à frontalidade...

O Sr. Presidente: - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, queria apenas situar os termos da reflexão a empreender. E que temos que balizá-los para poder fazer, minimamente, essa reflexão.

O segundo elemento introduzido pelo Sr. Deputado António Vitorino é o seguinte: se há uma questão pertinente, se ela se pode colocar nestes lermos, então, nenhuma razão há para que os partidos não estabeleçam o consenso necessário, o que nos coloca a todos perante uma interpelação de consenso: "Queres ou obstaculizas o consenso?"

Creio que a isto é preciso dar alguma resposta. Penso que a grande dúvida que se pode colocar, e que e previa e decisiva, é a seguinte: não se está a criar uma questão que não existe? Pode-se dizer aquilo que o Sr. Deputado António Vitorino afirmou tão peremptoriamente? Isto é, tal qual se encontre ensejado o quadro constitucional, não conheço ninguém que pretenda revigorar o artigo 21." da Concordam, que refere que o "o ensino ministrado pelo Estado nas escoras públicas será orientado pelos princípios da doutrina e moral cristãs, tradicionais no País. Consequentemente, ministrar-se-á o ensino da religião e da moral católica nas escolas públicas elementares, complementares e medias aos alunos cujos pais não tiverem feito pedido de inscrição".

Não conheço ninguém que pretenda que a ordem jurídica portuguesa comporte isto ou melhor que volte a comportar isto. Dito isto, haverá razão para colocar a interrogação, não crispada nem constrangida mas preocupada, do Sr. Deputado Sottomayor Cárdia, assumida, pelo menos em termos formais, pelo Sr. Deputado António Vitorino? Tenho algumas dúvidas! As vossas observações serão transmitidas, naturalmente, ao meu grupo parlamentar e ao meu partido. Não está provado - antes pelo contrário, está até indiciado - que e possível no actual quadro constitucional, sem estabelecer qualquer tipo de privilégio ou de monopólio (o que seria inconstitucional!) conceder às igrejas, de acordo com um princípio que lenha em conta a sua natureza, a sua dimensão, a sua relevância, um tratamento adequado. É evidente que é proibido o privilégio, mas não são proibidos tratamentos especiais ou especializados que estabeleçam medidas e condições de exercício e até estruturas organizatórias, que sejam diferentes consoante as situações e as entidades. Isto é, aliás, reconhecido por diversíssimos sectores da nossa doutrina, da nossa opinião pública.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Deputado, não há, de facto, um privilegio na ordem jurídica?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, há uma situação cuja ultrapassagem está inteiramente nas mãos do legislador e da Administração Pública. Não é preciso alterar o quadro constitucional para que o legislador e o Govêrno tomem as medidas necessárias no sentido de que, em primeiro lugar, seja estabelecido um regime adequado para que em escolas públicas, e na medida em que isso é constitucionalmente admissível e possível, seja feito o ensino da religião católica, e, em segundo lugar, para que às outras confissões religiosas seja facultada, em termos adequados e próprios - dada a sua natureza, dimensão e outros aspectos -, a possibilidade de exercer nos muros, intramuros, o seu múnus, a sua actividade. Em relação a isto, não há nenhum obstáculo constitucional. Pelo contrário, constitucionalmente tudo empurra e aponta para esse caminho. A Constituição não é nesse ponto um obstáculo, é um quadro incumprido, o que é totalmente diferente.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Incumprido com o fundamento de que há uma Concordata.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Deputado. É com o fundamento erróneo e, de resto, ininvocável, de que há uma Concordata. Como o Sr. Deputado António Vitorino aqui sublinhou, nunca a revisão da Concordam poderia preceder, empurrar ou determinar uma revisão constitucional. O quadro constitucional é o que é, a negociação internacional do Estado Português deve ater-se aos lermos constitucionais. A minha interrogação fulcral é a seguinte: os senhores não estarão a criar uma questão que não há? Isto é, não estarão a ver uma "questão constitucional" aí onde há uma questão de deficiente legiferação, de deficiente prática governativa e até de rebelião governamental contra a Constituição? Não é o quadro constitucional actual suficientemente complacente, adequado e tolerante para propiciar tudo o que poderia ter sido feito, embora não tenha sido feito até agora? Não será mais o momento de cumprir a Constituição do que transpor para a Constituição aquilo que nela não teria cabimento? Isto é, qual seria o cabimento que, face à matriz originária da Constituição, teria uma norma que viesse estabelecer que uma lei básica deveria respeitar o princípio da igualdade? Nos termos dessa lei básica, digamos a lei da liberdade religiosa, o Estado outorgaria às confissões religiosas e a outras entidades baptizadas com uma designação que é polissémica de mais a faculdade de até determinado ponto da escala do sistema de ensino se responsabilizar pelas docências em estabelecimentos de ensino público e pelas concepções que elas processassem sobre matéria religiosa e moral. Nos termos deste enquadramento permitir-se-ia também o acesso à escola pública - passe o paradoxo - de "ministros" ateus, isto é, de docentes do ateísmo. "Muito bem"!

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Deputado, eu é que, acenando, queria dizer muito bem.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Compreendi isso, Sr. Deputado.

A seguir, exceptuar-se-ia, de acordo com uma técnica legislativa que de resto é bastante arrepiante, o princípio da igualdade, introduzindo-se-lhe uma gigantesca cunha, no sentido de elemento agudo, a qual consistiria em atribuir ao Estado o poder de outorgar a uma certa confissão religiosa uma condição específica, diferenciada e privilegiada.

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Devo dizer francamente que, se se visa colocar a realidade legal de acordo com a realidade real, este é um caminho atómico! Para concretizar esse objectivo, pelos métodos próprios e segundo os tratamentos adequados - com as diferenciações perfeitamente comportáveis pelas dimensões que todos sabemos que o princípio da igualdade comporta razoável, adequada e correctamente -, basta que nas escolas se implemente tudo o que decorre da Constituição. Não há nenhuma razão para não o fazer.

Agora, o que não se pode contestar 6 que, por outro caminho lentamente, passo a passo, se regressaria às características essenciais do regime que estava estabelecido à sombra da Concordata e da Constituição de 1933. Ele implicava a ideia, que de resto constava desse famoso diploma governamental, de que o ensino de religião católica e geral, isto é, destinado a todos, salvo àqueles que expressamente digam que não querem. Esse regime englobava a ideia de que o ensino religioso e obrigação do Estado e da escola e que a disciplina da religião deve ter um estatuto igual ao das outras disciplinas e, portanto, que se poderia até chumbar por crise de fé. O dito regime significava nomeações de professores por parte do Estado, bem como a ideia de que os professores do ensino pré-escolar e básico deviam ser formados do ponto de vista religioso, o que só linha justificação quando o ensino era confessionalmente orientado ao abrigo da base 21, etc., etc. Este caminho é um caminho de perdição e não contribui em nada...

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Não é meu o caminho de perdição, é da Concordata.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Seguramente, Sr. Deputado? Este caminho e de tal modo "de perdição" que foi declarado inconstitucional. Portanto, não me parece um caminho fecundo. Mais, parece-me um caminho que pode gerar enormes confusões. E a certa altura estaremos meritoriamente na revisão constitucional, se formos por aí, a criar uma questão que não existe, a introduzir uma confusão aí onde o quadro constitucional susceptível de uma interpretação satisfatória para todas as confissões religiosas, a começar para a própria Igreja católica, que não tem nenhuma razão para não disfrutar de magníficas condições para o exercício do seu múnus apostólico. Isto com uma separação entre as igrejas e o Estado, com respeito pelos direitos dos cidadãos, com nenhum regresso a qualquer sistema retro de compulsão, etc. É isso que vos pergunto. Tanta questão, tanta questão, no sentido de que questão em concreto?

O Sr. Presidente: - Ela existe, Sr. Deputado, e a prova disso é que ela mereceu alterações nas vossas intervenções. O problema é o de saber se queremos ou não contemplá-la em sede de revisão constitucional.

Srs. Deputados, pedia-lhes que fossem concisos, e julgo que já discutimos o que tínhamos que discutir acerca desta matéria.

Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Gostaria apenas de dizer o seguinte: considero a intervenção do Sr. Deputado José Magalhães muito interessante. Não sei o que é que é mais censurável: se a preocupação de dizer que há uma questão, ou se a preocupação de dizer que ela não existe. Mas, se alguma demonstração faltasse de que há realmente uma questão, bastar-nos-ia relembrar a fase final da intervenção do Sr. Deputado José Magalhães onde fez a enumeração de várias questões, como sejam a natureza geral do ensino religioso, a obrigação do Estado e da escola em ministrar esse ensino, o estatuto idêntico da religião e moral às demais disciplinas, o facto de os professores serem indicados pela Igreja católica e a formação religiosa dos professores nas escolas superiores de educação.

Bastaria referir estes cinco exemplos que o Sr. Deputado José Magalhães referiu como tendo sido considerados inconstitucionais, mas, de facto, o que o Tribunal Constitucional fez foi não se pronunciar pela inconstitucionalidade destas questões.

Portanto, o Sr. Deputado pode discordar politicamente deste caminho, o qual designa de atómico, mas ele, na interpretação do Tribunal Constitucional, não viola a Constituição. Aí tem a questão.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, por essa via faz então a demonstração de que nós, revisionistas constitucionais, salvo seja,...

Risos.

... temos verdadeira absolvição, de que o nosso pecado não está aqui....

O Sr. Presidente: - Revisores.

O Sr. José Magalhães (PCP): - ... de que a actividade a empreender de revisores constitucionais não pode, nem tem que se traduzir num revisionismo constitucional, ou seja, disso estamos isentos. Tudo se passa entre o legislador ordinário, o Tribunal Constitucional e os outros agentes interlocutores da livre sociedade portuguesa.

Eis-nos, pois, dispensados desse apostolado constitucional para resolver uma questão, como o Sr. Deputado acaba de sublinhar de maneira exuberante. Ela passa à margem de nós próprios, uma vez que passou também à margem do Tribunal Constitucional, embora lenha passado por dentro dele!

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, não se há-de esquecer de rever esta passagem de registo mecanográfico.

Risos.

Não sei se foi discutido o n.° 7 do artigo 41.° da proposta do PCP, que coincide com o n.° 10 da proposta apresentada pelo Sr. Deputado Sottomayor Cárdia. Se não foi discutido, propunha que discutíssemos agora os dois em conjunto na medida em que a redacção é rigorosamente igual.

Sr. Deputado José Magalhães, pretende dizer alguma coisa em abono da proposta apresentada pelo seu partido, que aliás é clara?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, esta é a proposta que julguei que nunca fosse necessário apresentar. Não me estou a referir a este exacto momento, 17 horas e 25 minutos do dia 10 de Maio de 1988. Estou-me a referir ao momento em que deliberámos apresentar uma proposta de revisão constitucional no mês de Outubro de 1987.

Quando tivemos ocasião de ponderar o quadro vigente em matéria de liberdade religiosa, não nos assaltaram as dúvidas que há pouco tivemos oportunidade de aflorar ao travarmos o debate acerca desta matéria, fora de qualquer preocupação relativamente aos contornos e aos perigos que

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pairassem em Portugal em tomo da liberdade religiosa. Entendemos que eles não existem, não são significativos, não os vemos, não temos provada a sua existência.

Assim, temos como resolúveis todas as questões na base do quadro existente, e temos por infundadas certas crispações que a certa altura afloraram, espécie de saldo serôdio de um contencioso que vem da I República e que o regime democrático criou instrumentos para ultrapassar.

Sucede, no entanto, que a actividade meritória e benévola dos membros da Comissão Revisora do Código de Processo Penal e as suas aventuras culminaram em debates parlamentares dos quais fomos, de certa forma, vítimas e protagonistas. Isto levou a que se gerasse em Portugal aquilo que ninguém era capaz de imaginar que se gerasse, isto é, a versão provisória, primeira ou primária do Código de Processo Penal, que foi submetida à Assembleia da República, continha exposições curiosas em matéria de segredo dos ministros das religiões, para já não falar do que o Sr. Deputado Vera Jardim seguramente está a relembrar, designadamente algumas virtuosas normas de esmagamento de segredo profissional dos jornalistas, dos advogados ou dos médicos...

O Sr. Vera Jardim (PS): - Eu não diria tanto: esmagamento!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Essa é uma das diferenças entre o PS e o PCP. Assim, essa versão traria, além do esmagamento de profissões correntemente qualificadas como liberais, o esmagamento do segredo religioso.

Mas o que é curioso é que em Portugal, e o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia nessa altura não leve ocasião de estremecer de compreensível preocupação,...

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)

O Sr. José Magalhães (PCP): - Foi uma alusão imagética, Sr. Deputado. O que eu pretendia significar e que passou desapercebido todo este debate subterrâneo em torno de uma dimensão fundamental da liberdade religiosa.

Curiosamente, foi em 1987, pelas mãos de uma comissão religiosa no primeiro Govêrno do Primeiro-Ministro Cavaco Silva, que este alentado contra a liberdade religiosa foi perpetrado, perante um silêncio geral de alguns sectores que se sangraram em saúde com outras situações polémicas e que significaram por todos os meios possíveis e até alguns impossíveis o seu descontentamento e protesto. Quanto ao segredo religioso dos ministros das religiões, nada.

Felizmente as instituições funcionaram, e, portanto, a solução que veio a ser consagrada no Código de Processo Penal (v. artigo 135.º) veio salvaguardar o segredo dos ministros das religiões. O n.º 1 do referido artigo 135.º reza o seguinte:

Os ministros de religião ou de confissão religiosa, os advogados, os médicos, os jornalistas, os membros, das instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo profissional podem excusar-se a depor sobre os factos abrangidos por aquele segredo.

Nos n.ºs 2 e 3 desse artigo estabelece-se a via e o método para quebrar o segredo, havendo legítimas dúvidas sobre o seu cabimento. O n.° 4 declara peremptoriamente que "o disposto no número anterior não se aplica ao segredo religioso", isto é, contra o segredo religioso, nada. Isto é o que diz a versão final do Código de Processo Penal.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)

O Sr. José Magalhães (PCP): - A primeira versão?

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Deputado, refiro-me à versão proposta à Assembleia da República, isto é, à versão que foi enviada ao Tribunal Constitucional.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, não lenho aqui neste momento o acórdão em causa, mas ele permitia a quebra do segredo religioso.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Aos membros das confissões religiosas, nunca!

O Sr. José Magalhães (PCP): - A esses membros também, de acordo com um regime aliás bastante esquifoso. Mas é uma questão de se pedirem os respectivos textos, o que se poderá fazer na próxima interrupção desta reunião. Portanto, Sr. Presidente, a nossa proposta visa transpor para a Constituição a clarificação de um aspecto que nos parece fundamental e relevante.

O Sr. Presidente: - Por outras palavras, visa tornar indiscutível o que me parece que já correu o risco de ser discutível.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Exactamente.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, posso estar errado, mas penso que nenhum de nós está de acordo com o princípio em causa. O problema aqui é o de saber se se justifica ou não a consagração constitucional dele. Salvo erro, o princípio é adquirido e ninguém o discute. Portanto, talvez não valesse a pena estarmos a perder muito tempo com esta proposta que, em si, e meritória. O problema é apenas o de justificar-se ou não a sua constitucionalização; em meu entender, talvez se justifique.

O Sr. Deputado Sottomayor Cárdia está de acordo com isto? Caso não esteja, agradecia-lhe que contrapusesse os seus pontos de vista.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Presidente, pude somente apresentar a proposta que apresentei porque havia uma proposta, que era esta, relativa ao artigo 41.º Como também concordei com ela, integrei-a na minha proposta.

O Sr. Presidente: - Felizmente os próximos artigos não são objecto de propostas de alteração e, portanto, não vamos gastar tempo com eles.

Assim, vamos passar à apreciação do artigo 46.°, relativamente ao qual há duas propostas de alteração. Uma da autoria do CDS, que visa alterar o respectivo n.° 4, e que propõe a substituição da expressão "organizações que perfilhem a ideologia fascista" por "nem organizações cujo objectivo ou acção alente contra a unidade nacional ou regime democrático". Há também uma proposta do PCP que sugere o acrescentamento de um n.° 5 ao actual artigo 46.°, e que diz "nenhum regime administrativo ou fiscal pode afectar, directa ou indirectamente, a liberdade de associação", ou seja, sugere uma norma semelhante à que existe para proteger a liberdade de imprensa. O PCP propõe

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ainda um n.° 6, que refere o seguinte: "A lei assegura que a atribuição pelo Estado de isenções ou outros benefícios a qualquer associação respeite o princípio da igualdade e não implique deveres desnecessários ou desproporcionados." O que significa, no fundo, uma tradução em termos concretos do que está proposto no n.° 5.

Srs. Deputados, se estivessem de acordo, iríamos discutir a proposta de aditamento do n.° 4 apresentada pelo CDS.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, não há nenhuma proposta de eliminação do referido n.° 4 apresentada pelo PSD?

O Sr. Presidente: - Que eu saiba não, Sr. Deputado. Tenho uma vaga ideia de que o PSD não propôs a eliminação do n.º 4 apresentada pelo CDS. A memória nem sempre funciona, mas neste caso a minha ideia 6 esta, ou seja, que não apresentou uma proposta nesse sentido, até com grande admiração minha.

O Sr. Costa Andrade (PSD): -Também tenho a ideia de que não apresentámos nenhuma.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Presidente, julgo que há alguma dificuldade em discutir esta matéria sem a presença do CDS.

O Sr. Presidente: - Se assim for, estamos a entravar a revisão da Constituição pelo facto de faltarem frequentemente os autores da proposta. Podemos mais tarde voltar atrás, caso seja necessário, mas vamos desde já passar á discussão. O CDS dirá depois o que tiver a dizer sobre ela.

O Sr. Sousa Lara (PSD): - Pode reflectir, Sr. Deputado.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sendo assim, quero recordar a proposta que enviei para a Mesa no dia 28 de Abril, a qual circulou pelos Srs. Deputados. Aí proponho que no n.º 4 se diga: "Não são consentidas associações armadas, nem de tipo militar, militarizadas ou paramilitares."

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, formula agora essa sua proposta, ou já a linha formulado?

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Já a linha formulado, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Por que é que ela não está inserida no texto que tenho em mão?

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Formulei-a no dia 28 de Abril.

O Sr. Presidente: - Qual e então a proposta?

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Proponho a eliminação da expressão redigida no n.° 4 do artigo 46.º, que refere que "não são consentidas organizações que perfilhem o regime fascista", ou seja, proponho a eliminação desta restrição.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.

O Sr. Raul Castro (ID): - Sr. Deputado Sottomayor Cárdia, V. Exa. disse que propunha a referida eliminação, mas não apresentou qualquer razão para isso. Gostaria de conhecer as razões que o levaram a apresentar tal proposta.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Se mais ninguém quer usar da palavra...

O Sr. Sousa Lara (PSD): - Eu quero, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sousa Lara.

O Sr. Sousa Lara (PSD): - Sr. Presidente, tendo em atenção estas duas formulações - estou a falar em nome pessoal e não quero gerar conflitos com ninguém -, penso que e da maior utilidade e pertinência a proposta que o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia acaba de formular relativamente à proposta apresentada pelo CDS. Este inciso último é supérfluo e, inclusivamente, perigoso, porque pude pôr em questão partidos políticos e associações que perfilhem ideologias que não concordem com o próprio sistema democrático e parlamentar. Assim, creio que é legítimo que essas associações se possam constituir à luz do regime democrático e possam exercer a sua propaganda.

Por estas e outras razões, não vale a pena alongar, considero que a formulação proposta pelo Sr. Deputado Sottomayor Cárdia é bem mais limpa e concisa do que a do CDS.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, chamo-lhe a atenção para o seguinte: não está em causa a defesa da ideologia fascista, a título individual, ou a título intelectual e doutrinário. Está em causa, sim, a sua perfilhação ou defesa em quadros organizados para o efeito.

O Sr. Sousa Lara (PSD): - Eu sei.

O Sr. Presidente: - É apenas isso o que está em causa.

Posso subir para cima de um caixote e dizer que penso que o fascismo é a solução, que a perfilho e defendo, etc.

O que não posso é constituir organização que perfilhe essa ideologia. A forma organizada da ideologia fascista é, aliás, um crime previsto no Código Penal. Julgo pouco defensável que venhamos a colocar em causa esse crime e até, de algum modo, a insconsiitucionalizá-lo. Não me parece defensável que se possa fazer uma organização para novamente malar judeus.

Não vejo que glória retiramos de um texto dessa natureza ou a necessidade que temos disso. É claro que, se essa expressão nunca tivesse sido formulada, era discutível que devesse agora passar à letra da Constituição, passados que são doze anos sobre o 25 de Abril. Mas, dado que existe no texto constitucional e tendo já passado no crivo da primeira revisão, questiono como e que poderia ser interpretada essa eliminação.

Tem a a palavra o Sr. Deputado Sousa Lara.

O Sr. Sousa Lara (PSD): - Sr. Presidente, desejo prestar um esclarecimento. Devo dizer que estava a debruçar-me sobre duas formulações escritas, ou seja, a do Sr. Deputado Sottomayor Cárdia e a do CDS, e apenas me referia a essas. Em todo o caso, insisto no meu ponto de vista pessoal, que é o de preferir a formulação proposta pelo Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

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O Sr. Presidente: - A formulação apresentada pelo CDS parece ler como destinatárias as pessoas e as organizações que nas regiões insulares defendem, dando entrevistas contrárias à unidade nacional, a independência desses territórios. É claro que são vozes isoladas sem importância de maior.

Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Presidente, estou totalmente em desacordo com a formulação da proposta de substituição do n.° 4 do artigo 46.° apresentada pelo CDS. Ela vem alterar a segunda parte da redacção inicial do referido n.° 4, passando então a ler o seguinte texto: "[...] nem organizações cujo objectivo ou acção atente contra a unidade nacional ou o regime democrático." Creio que esta nova formulação e extremamente indeterminada e pode voltar-se contra quem bem calhar, independentemente das considerações que acaba de proferir o Sr. Deputado Almeida Santos. Aliás, pelos acenos de discordância de alguns Srs. Deputados, verifico que há uma grande indeterminação sobre o alcance da norma. Afigura-se-me, pois, que não 6 de acolher esta proposta de substituição apresentada pelo CDS.

Quanto à questão das organizações que perfilham a ideologia fascista, devo dizer que o que está eficazmente proibido e o nome, ou seja, não se autoriza que um partido se chame "fascista". De facto, nada mais está proibido.

Entretanto, poder-se-á perguntar: o que é a ideologia fascista? Em Portugal ou só na Itália houve fascismo? Salazar era fascista ou tão-só Rolão Prelo? Creio, pois, que essa é uma expressão de sentido indeterminável e, por consequência, não tem sentido útil para a apreciação dos conceitos. Daí que, estando proibido o nome, não esteja proibida a coisa. Afigura-se-me, pois, que e injustificado proibirmos o emprego do nome "fascista". Aliás, este não é o meu pensamento de agora. Era já o meu antes do 25 de Abril. Tal ponto de vista consta de um livro meu publicado em 1973 e apreendido pela PIDE não propriamente por dizer isto, mas por defender outras coisas. Aí preconizei, a p. 54, um regime, que chegou felizmente um ano depois, "ilimitadamente pluralista e pluripartidário". E VV. Exas. desculpar-me-ão, mas o certo e que, quando escrevi isso, estava também a pensar nos fascistas. Portanto, e já bastante antiga a minha ideia de que os fascistas têm direito a constituir partido, tal como qualquer outra ideologia. É injustificado exceptuar os fascistas deste direito.

Alem disso, se e ilegítimo uma organização partidária perfilhar a ideologia fascista, quer isso dizer que também o será a acusação de que ela perfilha a ideologia fascista. De facto, se em Portugal alguém formular contra algum partido político a acusação política de defender essa ideologia, pode considerar-se que está a fazer uma imputação criminosa ou injuriosa. E, neste aspecto, afigura-se-me que esta proibição do nome, que não da coisa, é, no fundo, a proibição de dar o nome à coisa. É um argumento que me parece relevante, embora não essencial para justificar a minha proposta.

Ora, a ideologia fascista tem, e repilo, um alcance indeterminado. Há até uma grande tendencia para estabelecer paralelos abusivos desta ideologia o mesmo em tempos recentes. De facto, quem e que não ouviu falar em social-fascismo? Como e que isto pode ser um dia interpretado? Quem são os fascistas? Para alguns, eles poderão ser aqueles que em 1975 eram chamados os sociais-fascistas. Existe, pois, um risco nesta proibição. Por consequência, o alcance indeterminado e perigoso desta proibição e mais um argumento no sentido de retirar da Constituição tal limitação.

Entretanto, foi dito que talvez não fosse oportuno retirar esta proibição. Penso, porém, o contrário. Em 1975 estávamos ainda próximos do regime deposto em 25 de Abril de 1974 e, por consequência, havia uma sensibilidade especial em relação a esta matéria. Isto leva-me a pensar que a proibição está hoje antiquada. Ela pertence às preocupações históricas da Constituinte de 1975 e não às do revisor da Constituição de 1988.

Foi igualmente invocado que em Itália existe uma disposição constitucional semelhante. Penso que isso não é exacto. Em lodo o caso, se ela existe, tal facto não proíbe nada, porque o Movimento Social Italiano é declaradamente fascista, ainda que haja a proibição da existência de organizações fascistas na letra da Constituição. Suponho, todavia, que o que lá está proibido e a reconstituição do extinto partido fascista. O mesmo se passaria se em Portugal tivéssemos no ano de 1975 proibido a reconstituição da extinta Acção Nacional Popular. Uma medida desse teor seria, quanto a mim, correcta. Seria a proibição da existência da ANP em razão do modo como se desenvolveu, ou seja, à custa de situações ilegítimas, e não a ideologia em si mesma.

Assim, por este conjunto de razões peço a vossa ponderação sobre esta minha proposta. Ela é, no fundo, simples, nada traz de inovador na prática e apenas pode acautelar situações indesejáveis no futuro, se não mesmo no presente. Aliás, fico um pouco mais à vontade para chamar fascista a quem entenda que é realmente fascista se entretanto desaparecer da Constituição esta proibição. Se. além disso, surgir um partido fascista no espectro político-partidário e ele tiver votos, isso será uma situação democrática. Esse partido terá tanto direito de solicitar o sufrágio dos concidadãos, como nós próprios.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Relativamente à proposta de substituição tia segunda parte da redacção inicial do n.º 4 do artigo 46.°, apresentada pelo CDS, quase diria que esta é uma tias formulações mais felizes de todo o projecto de lei desse partido. E isso por várias razões, que passaria a referir.

Em primeiro lugar, porque o n.º 4 do artigo 46.º mais do que lutar contra organizações de ideologia fascista pretende inequivocamente defender um bem jurídico fundamental que é a própria ordem constitucional democrática caracterizada obviamente pelos princípios fundamentais do Estado de direito. E, sendo esse o interesse fundamental desta disposição, desde logo uma alternativa à formulação "organizações que perfilhem e ideologia fascista" parece que se impõe, ou seja, dever-se-á substituir uma pretensa pedagogia constitucional antifascista por um interesse constitucional em defender objectivamente aquilo que de organizações dessa índole ou não possa perigar ou fazer perigar os bens protegidos pela ordem constitucional democrática.

Em segundo lugar, parece-me realmente que seria de chamar a atenção para um ponto fundamental de direito comparado que obedece a duas ordens de oportunidade. Refiro-me à Constituição Alemã e ao processo mais ou menos idêntico ou paralelo àquele processo que vivemos no 25 de Abril de 1974. Também a Constituição de Bona de 1949, traumatizada com as possibilidades de fazer perigar a democracia, consagra no seu artigo 9.° a proibição de associações que ponham em causa a ordem constitucional.

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Há, nesse preceituado, uma ideia daquilo a que os alemães chamaram de Streitbahre Democratic, ou seja, a democracia protegida. Por sua vez, também transportámos essa ideia para o artigo 46.º da nossa Constituição por via do mesmo mecanismo psicossociológico que leva a uma rejeição clara das organizações que perfilham a ideologia fascista. E fizemo-lo no sentido de preservar esse bem fundamental que e a ordem constitucional liberal-democrática.

Ora, tendo em conta a dimensão objectiva daquilo que se pretende defender; tendo em conta que a própria noção de "organizações que perfilhem ideologia fascista", tal como afirmou o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia, tem contornos de difícil detecção e um alcance mais ou menos indefinido e que a intenção legislativa que deve presidir ao n.9 4 do artigo 46.°, consubstanciada na salvaguarda da defesa da ordem constitucional democrática, vai no sentido da criação de uma espécie de democracia conservada e protegida contra todas as ameaças, seja qual for o teor delas, parece-me que a formulação contida na segunda parte desse número deve ser substituída com algum êxito pela expressão "organizações que atentem contra o regime democrático".

O, Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Srs. Deputada Maria da Assunção Esteves, tenho estado em vários pontos de acordo com V. Exa. - Contudo, neste aspecto estou em posição diametralmente oposta. Direi ale que esta é das formulações mais infelizes do projecto de lei da autoria do CDS.

Ora, pegando precisamente no exemplo que a Sra. Deputada deu da tal "democracia defendida", direi, em primeiro lugar, que a Constituição de Bona tem realmente raízes históricas, que aliás não podemos desconhecer, que não se filiam apenas no facto do regime nazi-fascista que a antecedeu, mas lambem na existência de uma fronteira com outro regime completamente diferente, que é o da República Democrática Alemã. E os resultados do artigo 9.º da Constituição de Bona estão à vista, ou seja, lendo-se no início visionado uma defesa constitucional do regime de Bona contra o nazi-fascismo, ele foi rapidamente enviezado para ir terminar na proibição de profissão consignada na Berufsverbot. Esta lei provocou os protestos dos democratas na Alemanha Ocidental e as movimentações de quase todos os partidos democráticos contra a aplicação abusiva de uma legislação que foi feita com base no referido artigo 9.ç da Constituição de Bona. Não e, portanto, um exemplo muito feliz, quer porque a Constituição de Bona tem, repito, um enquadramento histórico-constitucional completamente diferente, quer ainda porque a prática demonstrou que o uso de conceitos indeterminados desse tipo se volta rapidamente para alvos diferentes daqueles que, no início, foram concebidos. E cesse o grande perigo de formulações tais como a que consta da proposta de substituição do n.º 4 do artigo 46.° da autoria do CDS.

Em segundo lugar, direi que a democracia tem de se defender a si própria com os necessários mecanismos e de revestir essas virtualidades. E não e por estar consignado na Constituição que são proibidas organizações deste ou daquele tipo que ela se defende melhor. Por conseguinte, penso que a sua defesa e, sobretudo, o exemplo da Constituição de Bona vem ajudar-nos a aponuir os perigos deste tipo de formulação na base de conceitos indeterminados.

Quanto às organizações fascistas, devo dizer que a nossa bancada tem sido muito aberta em demonstrar algumas dúvidas que tivemos nessa matéria. É certo que o conceito de fascismo, como disse o Sr. Deputado Sottomayor

Cárdia, não é obviamente unívoco. Em todo o caso, é, apesar de tudo, um conceito com um grau de determinação muito maior do que aqueles que são usados pelo CDS.

Alem disso, poder-se-á defender, como aliás vimos apoiando, que não se deve excluir deste normativo aqueles que perfilhem, com todo o direito legítimo, as ideologias fascistas, mas antes as organizações que sigam tal orientação.

Em terceiro lugar, perguntar-se-á qual o sentido que se vai tirar na interpretação futura do que se passar com as organizações de tipo fascista, se acaso essa formulação se mantiver. Dir-se-á que a Constituição ainda terá daqui a 40 anos, como dizia com alguma razão o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia, todo este tipo de formulações antifascistas.

Quero, pois, terminar a minha intervenção com algumas dúvidas. De facto, elas mantem-se desde que o PS discutiu, entre si, o artigo 46.º No entanto, devo dizer que sou manifestamente contra a formulação do CDS, pelo que tenderia a manter, apesar de tudo, o texto inicial do n.º 4 do artigo 46.º, ou seja, não lhe retirando a formulação "organizações que perfilhem a ideologia fascista".

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Pais de sousa.

O Sr. Pais de Sousa (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: O n.° 4 do artigo 46.°, ora em apreciação, limita o direito de associação. Contudo, é uma norma que aponta para além dcsic direito, pois não pode verdadeiramente considerar-se referente ao exercício dos direitos, liberdades e garantias. Ela visa, de forma directa, a defesa da Constituição e do Estado democrático. Neste ponto, surge inevitavelmente um problema, qual seja o da contradição entre a afirmação inequívoca do pluralismo feita, desde logo, no artigo 2.° da lei fundamental e a estatuição do n.º 4 do artigo 46.9 ora em apreciação.

Poder-se-á obviamente argumentar com a ideia de direito que informa indubitavelmente a Constituição material. Isso é, aliás, irrebatível.

Passando agora à apreciação da proposta de substituição do CDS, teremos de nos questionar acerca de saber o que são organizações que perfilhem a ideologia fascista. Dir-se-á que serão aquelas que pelo seu programa e praxis colocam em causa os princípios e o travejamento jurídico fundamental da Constituição. Devemos então levar em conta que esta problemática motivou, por exemplo, na RFA a ilegalização histórica do Partido Comunista. É este o grande senão da proposta de substituição apresentada pelo CDS, que leva à formulação inevitável desta questão: por aqui balizar-se-ia a ilegalização do PCP? Fica a questão só em tese.

Finalmente, parece-nos que a proposta de alteração, formulada pelo Sr. Deputado Sottomayor Cárdia, e correcta e suficientemente abrangente, levando-se em conta o conceito de Constituição em sentido material.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Pais de Sousa, em relação às suas primeiras considerações sobre esta matéria, verifiquei que V. Exa. - topou um facto que me parece óbvio e foi assinalado por toda a gente. De facto, o n.° 4 do artigo 46.º comporta uma excepção á regra geral de pluralismo, uma vez que este é democrático e, portanto, antifascista. Assim, gostaria de lhe preguntar qual é a conclusão ou o desenvolvimento que faz deste raciocínio.

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Será que V. Exa. § 6 o Otto Bachof desta Sala, sustentando, por isso, alguma teoria de "inconstitucionalidade" de normas constitucionais? Ou, então, qual a contradição que vislumbra nesse preceito? Será que o Sr. Deputado pretende a livre expansão de organizações fascistas com colorações políticas como outras quaisquer? O que 6 que entende sobre isto? Que o pluralismo implica em Portugal, no regime nascido do 25 de Abril a existência de organizações fascistas como tais, na definição? Está preocupado com a livre expressão das organizações fascistas?

Segundo aspecto - já agora, para simplificar e correspondendo ao apelo do Sr. Presidente: V. Exas. lançou a interrogação sobre o que são as OQPIFs, organizações que perfilhem e ideologia fascista, mas depois saltou rapidamente para a problemática de o que são OQPICs, organizações que perfilhem a ideologia comunista, e manifestou-se preocupado com essa questão em termos que, descontado o despropósito, francamente, me enternecem mas, partindo da bancada de V. Exa. me parecem, pelo menos, estranhos. Seria capaz de precisar se a sua manifestação e de paixão, em relação à proposta do CDS, como a sua colega, a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves, ou se e de uma justa apreensão em relação à proposta do CDS, o que o aproximaria, seguramente, de nós e o afastaria da sua colega Assunção Esteves?

O Sr. Pais de Sousa (PSD): - Sr. Deputado José Magalhães, para o tranquilizar, queria dizer-lhe que coloquei o problema só em tese, sem tomar qualquer caminho, quer em termos pessoais ...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Portanto, era um dito de seminário!

O Sr. Pais de Sousa (PSD): - Se quiser! Quer em termos pessoais, quer em lermos que vinculasse o PSD. Queria dizer-lhe, para o tranquilizar lambem com respeito às organizações que perfilhem a ideologia fascista, que concluí a minha intervenção dizendo que considerava a proposta do Sr. Deputado Sotomayor Cárdia suficientemente abrangente e, como tal, correcta, podendo assim merecer quer a nossa ponderação quer, eventualmente, o nosso apoio.

O Sr. José Magalhães (PCP): - E em relação à proposta do CDS?

O Sr. Pais de Sousa (PSD): - Em relação à do CDS, suscitei a grande questão de que poderia ser de tal forma abrangente que poderia caber aqui muita coisa, pelo menos em lermos académicos.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Coisa essa que V. Exa. não considera estimável. Académica, e praticamente não estimável que caibam lamas coisas dentro dessa coisa que o CDS quer que caiba na Constituição.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Queria apenas salientar que o exercício teórico que o Sr. Deputado Pais de Sousa fez foi importante. Temos assistido a tantos seminários dados pelo Sr. Deputado José Magalhães que, mesmo que o Sr. Deputado Pais de Sousa tivesse dado hoje um pequeno seminário, ele seria relevante, importante e, porventura, frutuoso, pelo menos para levantar várias questões, às quais V. Exa., com a habilidade natural e normal, conseguiu fugir.

A questão principal que quero colocar é, sem sombra de dúvida - e estou perfeitamente à vontade para me situar nesta posição, de um ponto de vista pessoal-, a de aceitar como boa a formulação do n.° 4 do artigo 46.° proposta pelo CDS. Não propriamente para, nesta altura, dizer se devemos ou não retirar da Constituição a alusão à ideologia fascista, ou a condenação das organizações que perfilhem a ideologia fascista - com certeza que sim, pois a própria Constituição é um documento vivo que contraria qualquer tentativa de qualquer ideologia dessa natureza ou outra semelhante se implantar em Portugal. Penso que a própria arquitectura do regime democrático é substancialmente clara em relação a isso. Mas parece-me - já ontem o dizia no Parlamento - que estamos sempre a olhar para trás e não para a frente, pois penso que os problemas e os perigos que nesta altura se colocam são outros, muito diferentes. Não me impressiona tanto a questão de isso estar aqui expresso ou de estarmos agora, nesta revisão, a retirar a referencia que aqui está; impressiona-me mais que qualquer outro tipo de ideologia ou de organização que caiba nesta parte final do n.º 4 do artigo 46.º atente verdadeiramente contra o regime democrático. Penso que a expressão proposta pelo CDS para a parte final do n.º 4 do artigo 46.° é mais ampla, mais correcta, e defende melhor aquilo que, segundo penso, todos queremos. É com este exacto sentido e alcance que queria fazer a defesa do n.9 4 do artigo 46.° proposto pelo CDS.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, permita-me que faça uma pergunta rapidíssima ao Sr. Deputado Carlos Encarnação. Estou de acordo com a ideia de que não se deve olhar para irás, no sentido passadista; mas que isso signifique desarmar o regime, em relação a certas coisas que durante demasiados anos nos impediram de olhar para a frente, e que me parece mais problemático. Não gostaria de aprofundar isso excessivamente, não e o que me motiva a pergunta. Tivemos ocasião de ver quais são as posições do PSD sobre esta matéria, quando reclamou que o 25 de Abril fosse arquivado, há dias, no Plenário da Assembleia. A minha pergunta é em relação ao PSD e ao futuro. Sabe V. Exa.? que o CDS propõe esta formulação: não são consentidas "organizações cujo objectivo ou acção atente contra a unidade nacional ou o regime democrático". O Sr. Deputado alerta-nos: atentados contra o regime democrático, nunca. O grande problema é saber se o PSD deseja ser ilegalizado. Porque? Porque, sendo o regime democrático aquilo que é, não sendo a Constituição Portuguesa a constituição do Sr. Primeiro-Ministro Cavaco Silva, e não sendo a Constituição Portuguesa nada daquilo que o PSD pensa dever ser a Constituição Portuguesa, o PSD tem estado a colocar-se - em relação a vários aspectos fulcrais do regime democrático, tal qual está, tal qual e - contra! Portanto o PSD é uma organização cujo objectivo ou acção alenta contra o regime democrático.

O Sr. António Vitorino (PS): - Democraticamente!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Em relação à constituição económica, em relação aos direitos dos trabalhadores, em relação aos próprios poderes da Assembleia da República, em relação à interligação ente órgãos de soberania, em relação aos poderes do Tribunal Constitu-

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cional, em relação u algumas das finalidade eminentes do Estado (v. as suas tarefas estaduais, que considera uma canga!), em relação ao próprio rumo ele várias políticas sectoriais: a Ministra Beleza brada contra o SNS (Serviço Nacional de Saúde), o Ministro de Segurança Social brada contra o sistema unificado, cie.

O Sr. Presidente: - Então, e a pergunta?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Portanto, "o PSD deve ser ilegalizado"! Sr. Deputado, a asserção seria totalmente absurda! Completamente absurda! Isto e, uma cláusula deste tipo ou e uma tolice rematada ...

O Sr. Presidente: - Devo então concluir que, dentro em breve, o PS será o partido único?!

Risos.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Repito, uma cláusula deste tipo, ou é uma tolice rematada, um efeito retórico, ou então conduz à policialização e à criminalizarão da vida política. Ora, a vida política não deve ser criminalizada, não deve ser policializada - é por excelência, o domínio da liberdade política. Isso tem, entre nós, uma excepção - a proibição das OQPIFs. O Sr. Deputado não sente uma apreensão, quando está tão exaltadamente apaixonado pela formulação do CDS que disse: É boa! É boa! V. Exa. acha boa uma formulação que, no seu limite e na sua lógica, conduziria à ilegalização do PSD, neste momento? E no futuro logo se veria de quem!

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Acho que era absurdo!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Eu acho totalmente absurdo, mas a proposta do CDS ou é perigosíssima ou é absurda e o entusiasmo do PSD também resulta absurdo ou perigoso!

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Deputado, eu não tenho entusiasmos, designadamente, por coisas destas. V. Exa. tem entusiasmos por estas e por outras e já nos habituou aos seus entusiasmos delirantes. Tão delirantes que formalizou uma proposta que acabou por confessar ser absurda.

Aquilo que queria dizer-lhe, e que mantenho, e que esta proposta, em relação à anterior e aos perigos que se colocam ao regime democrático - perigos de hoje e de amanhã -, e, a meu ver, mais importante do que a que aqui está. É apenas isso. É evidente que todas as hipóteses que V. Exa.? colocou são perfeitamente gratuitas e absurdas. Não as vou considerar nem lhe vou responder, porque não têm a mínima razão de ser.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Diga-me as hipóteses que não são gratuitas e absurdas, por lavor! É isso que é fundamental. Quais são as hipóteses de atentado contra o regime democrático que não são gratuitas e absurdas. Nem delirantes!

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Das duas uma: ou as pessoas, os partidos políticos e as organizações aceitam o jogo do regime democrático e nele se inserem, ou não aceitam e se desinserem dele e, então, estão contra o regime democrático. Desde que as suas propostas se insiram na lógica e no jogo do regime, e evidente que todas as hipóteses que V. Exa. colocou não têm razão nenhuma de ser. Do que estamos aqui a tratar é de associações armadas ou de tipo militar, militarizadas ou paramilitares e "organizações cujo objectivo ou acção alente contra a unidade nacional ou regime democrático"; são essas que, a nosso ver, deveriam ser colocadas de fora. Certamente são os partidos políticos que, na sua actuação normal e natural, aceitam o jogo democrático e nele participam. É evidente que podem ter opiniões diametralmente opostas, mas, desde que tudo seja feito de acordo com as regras democráticas, todos devem poder executar o seu programa.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cardia.

O Sr. Sottomayor Cardia (PS): - Sr. Deputado Carlos Encarnação, queria fazer-lhe uma pergunta. Suponho que o diálogo travado entre V. Exa. e o Sr. Deputado José Magalhães é ilustrativo do perigo da proposta do CDS, que V. Exa. defende. Aliás, há pouco o Sr. Deputado José Magalhães disse que era absurdo, não o que ele linha dito, mas que o PSD fosse a favor desta proposta, podendo da ter as consequências que ele tinha vislumbrado. A minha pergunta e a seguinte: V. Exa. - acha que uma associação pode alentar cunha a unidade nacional e o regime democrático, sem o recurso a meios de tipo militar, militarizado ou paramilitar? Por exemplo?

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Perfeitamente. Dou-lhe o exemplo dos levantamentos populares ou campanhas que não necessitem necessariamente de recorrer a este tipo de organizações, mas a outro tipo, como as organizações civis, e que acabem por obter os mesmos efeitos. Isto para lhe responder liminar e rapidamente.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Mas o que são levantamentos populares no militares, não armados, não violentos que atentem contra a ordem democrática?

O Sr. José Magalhães (PCP): - É a greve geral de 28 de Março, Sr. Deputado.

O Sr. Presidente: - A Maria da Fonte, a Patulcia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Essa e armada.

O Sr. Presidente: - É a Revolução de 1383.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Se a sua preocupação é não consentir as associações armadas, nem de tipo militar, militarizado ou paramilitar, ou que actuem de forma violenta - o que, aliás, já está proibido noutro número ...

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Mas, mesmo que não actuem de forma violenta, entendo que, desde que tenham objectivos condenáveis à lace do n.º 4 deste artigo, tal como e proposto, estarão evidentemente a incorrer na respectiva sanção.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - O que são objectivos "condenáveis"? O problema e o mesmo que se coloca com o adjectivo "democrático". V. Exa. fala de partidos democráticos com um âmbito, com um alcance; o PCP fala de partidos democráticos com outro alcance. Qual e o alcance autêntico dessa proposta de formulação constitucional?

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O Sr. Presidente: - Sucessivas perguntas e diálogo difuso e que não!

Tem a palavra o Sr. Deputado Sousa Lara.

O Sr. Sousa Lara (PSD): - Apesar de tudo, considero muito útil esta troca de impressões, porque demonstra que os argumentos justificativos da não aceitabilidade ou não pertinência da proposta do CDS são os mesmos que justificam a eliminação do inciso final do n.º 4. Penso que o sistema e o regime português ganhariam com uma liberalização do preceito nos lermos da proposta do Sr. Deputado Sottomayor Cárdia, de forma que as instituições políticas possam aproximar a sua prática do respectivo programa.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.

O Sr. Raul Castro (ID): - Pensamos que se deve manter o n.º 4 tal como se encontra na Constituição, por várias razões.

Em primeiro lugar, o regime democrático português, tal como está delineado, não e algo que tenha caído em Portugal de pára-quedas; nasceu em 1974, mas tem raízes muito mais profundas. Essas raízes, muito mais profundas, da democracia entroncam em algo que, segundo julgo, tem a discordância do Sr. Deputado Sottomayor Cardia, que e o ensinamento dos pensadores da Revolução Francesa, de que não pode haver liberdade para os inimigos da liberdade. Ora, os inimigos da liberdade são as associações fascistas, que deram tristes provas, durante 48 anos, no nosso país. Mas pode dizer-se que o fenómeno do renascimento actual do fascismo não existe? Não, Srs. Deputados, penso que ninguém pode dizer isso. Basta ver, quanto a recente campanha eleitoral francesa para a Presidência da República, as fotografias, publicadas pelos jornais, da organização do candidato Le Pen para se constatar como assume contornos preocupantes em França o renascimento de uma organização fascista. E o Sr. Deputado Vera Jardim já citou aqui o caso da Alemanha Federal. É irreal e perfeitamente deslocado invocar-se a comparação com a Constituição da RFA, quando aí está a pagar caro a insensibilidade perante o fenómeno que já os acomete gravemente, que é o do renascimento de organizações nazis na Alemanha Federal.

Por isso, e sem que haja, ao contrário do que o Sr. Deputado Carlos Encarnação supõe, qualquer ligação fora de tempo com o passado, o facto e que não nos podemos esquecer de que a democracia portuguesa surge num quadro temporal limitado, como consequência, precisamente, da existência de um partido de tipo fascista, que impôs as suas condições durante 48 anos em Portugal - e foi isso que travou o curso do desenvolvimento da democracia portuguesa. Por outro lado, a nossa democracia não nasceu apenas em 25 de Abril; vem de muito mais longe, vem dos próprios ensinamentos dos homens da Revolução Francesa, que foram os primeiros a levantar o sistema democrático e que ensinavam - e nisso que hoje continuamos a insistir- que os inimigos da liberdade não podem ter direito à liberdade. É isso que está consagrado na Constituição. Quando se diz que "não são consentidas associações armadas nem de tipo militar, militarizadas ou paramilitares, nem organizações que perfilhem a ideologia fascista", essa e caracteristicamente a descrição de uma organização inimiga da liberdade. Só se a democracia se quiser suicidar e que poderia autorizar o seu livre desenvolvimento.

Vem o CDS e propõe uma outra redacção para este preceito. Já o Sr. Deputado Almeida Santos chamou a atenção para o que significaria retirar a actual redacção em nome destoutra agora proposta e as implicações que isso leria ale a nível da lei penal. Mas não é só isso o que está em causa; são também as próprias implicações políticas. É que isto seria dar a ideia de que os deputados abandonaram não só os ensinamentos que enformam o regime democrático como também as próprias características que deram lugar ao actual regime democrático, com raízes imediatas no 25 de Abril. Só isso poderia justificar a eliminação da actual redacção. A redacção que o CDS propõe e uma forma de excluir - e estranha-se tanta simpatia manifestada por alguns Srs. Deputados - a redacção actual, introduzindo uma formulação que e muito perigosa, por pôr de lado o que está expressamente consignado e permitir as maiores ambiguidades na classificação das organizações.

O Sr. Carlos incarnação (PSD): - Mas V. Exa. acha que eu me esqueço disso, depois daquilo que lhe disse?

O Sr. Raul Castro (ID): - Não acho que V. Exa. se tenha esquecido. O que acho é que é necessário relacionar a memória dos acontecimentos. Ao contrário - permita-me que lhe diga o que já disse no Plenário - V. Exa. faz um corte com o passado. Não e a questão da modernidade; é que a modernidade tem raízes e estas não se podem cortar. Quando V. Exa. diz que estamos voltados para o passado, diria que não estamos! Poderia então dizer-se, por exemplo, que, quando exaltamos os Descobrimentos, lambem estamos voltados para o passado? Não estamos! São acontecimentos da história nacional a que temos de estar sempre ligados, acontecimentos esses que são lambem o nascimento dos próprios princípios democráticos que vêm de 25 de Abril e de mais longe, da Revolução Francesa.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Penso que não faço corte com o passado.

O Sr. Raul Castro (ID): - O Sr. Deputado é que sabe! ...

O Sr. Sottomayor Cardia (PS): - Penso que não. Inclusivamente, é frequente acusarem-me de não cortar demasiado com o passado. Neste aspecto, estou muito bem como estou. Efectivamente o ensinamento de Saint-Just de que não há liberdade para os inimigos da liberdade não é o ensinamento da Revolução Francesa. Há várias correntes na Revolução Francesa, sendo uma delas a dos jacobinos. Entre os jacobinos contava-se a de Saint-Just como corrente extrema. Não e o meu ponto de vista. Independentemente das razões históricas que enquadraram essa fórmula de Saint-Just, afigura-se-me que não é esse o ensinamento da tradição democrática.

Mas V. Exa. falou de uma personagem política mais recente. Deixemos Saint-Just e fiquemos na actualidade. Falou do Sr. Le Pen. Não gosto de fazer, nesta sede, considerações de natureza circunstancial sobre a política nacional e muito menos sobre a polílica estrangeira. Mas não se lhe afigura, Sr. Deputado Raul Castro, que, em termos eleitorais, quem verdadeiramente foi prejudicado pelo Sr. Le Pen foi o Sr. Chirac?

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O Sr. Raul Castro (ID): - Sr. Deputado, creio que não estamos a discutir as vantagens e as desvantagens da existência de um partido fascista em França relativamente aos resultados eleitorais. O que gostaria que o Sr. Deputado questionasse é se, como cidadão do mundo, se preocupa ou não com o problema que representa o partido de Le Pen em França.

O Sr. Sottomayor Cardia (PS): - Sr. Deputado, efectivamente vejo com apreensão os extremismos e vejo com apreensão os extremismos em França, mas a minha apreensão é maior quando as concepções extremistas, como as que se manifestam em França através da Frente Nacional, se manifestam noutros partidos.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: A nossa posição sobre esta matéria é clara e totalmente insusceptível de qualquer dificuldade de previsão. Somos absolutamente contra esta alteração mas parece-me que este debate e interessante para que cada um se situe. E evidentemente não amalgamo as palavras do Sr. Deputado Sottomayor Cardia com aquilo que pudemos ouvir da boca de vários deputados do PSD. Porque a questão é esta: face àquilo que aqui foi dito, quase apetece perguntar: se o Prof. Dr. Aníbal Cavaco Silva fosse o Sr. D. Pedro e pudesse outorgar uma Constituição para Portugal, seria essa Constituição antimonopolista? Resposta: não! Seria, sequer, essa Constituição antifascista? Uma coisa parece fluir das considerações dos Srs. Deputados do PSD, isto é, a possibilidade de ler uma vaga reminiscência antifascista, ou melhor, talvez pudesse ler uma vaga reminiscência daquilo a que se chamaria, segura e pudicamente, "o regime anterior ao 25 de Abril". Mas não conteria nenhuma norma que proibisse as organizações que perfilhem a ideologia fascista. Isto foi dito, mais do que pressuposto, intuído ou implicitado. Foi dito, fazendo assim, em meu entender, um bom retrato e um bom bilhete de identidade do PSD, da sua atitude face à história, das suas raízes históricas, da sua percepção da história portuguesa recente, da sua ligação ao passado de edificação do regime democrático, da luta por esse regime quando ainda não existia, ele. E isto será muito importante para o futuro a fim de se avaliar que partido maioritário e este, como é que de próprio se vê, como é que ele se insere na história recente portuguesa, que papel é que se atribui e que olhar é que se lança sobre a história. Devo dizer que o retrato que aqui acaba de ser traçado em estilo photomaton é bastante negro e as feições do retratado não são propriamente simpáticas.

Em relação às propostas apresentadas, a nossa atitude é de rejeição por razões que são comuns às que foram expressas aqui por outros Srs. Deputados do PS e da ID. Isto e, entendemos que não devemos esquecer as raízes do regime democrático-constitucional, o que não se confunde de forma alguma com qualquer atitude de saudosismo mórbido ou com qualquer postura de idolatria do passado e de certas das suas vertentes. Significa isto apenas que prezamos a memória histórica, que consideramos importante transmiti-la às gerações futuras e que e importante impedir que os ovos da serpente se transformem algum dia no corolário ou no desenvolvimento lógico da evolução das espécies. Isto é, as organizações fascistas são constitucionalmente proibidas e devem continuar a sê-lo, na medida em que as consequências da supressão da proibição não seriam irrelevantes.

Sr. Presidente, gostaria ainda de sublinhar que somos absolutamente contra a redução do significado do preceito, isto é, subjacente à leitura que o Sr. Deputado Sottomayor Cardia aqui formulou do artigo 46.º, n.° 4, está uma concepção redutora do seu significado. De facto, este preceito não encerra apenas a proibição de um nome, como foi dito, não é um artigo semântico, ao contrário do que parece estar a ser inculcado. E, como o Sr. Deputado Sousa Lara aliás sublinhou, suprimi-lo seria a liberalização. Isto é, a existência do artigo 46.º, n.º 4, proíbe, impede a liberalização, uma vez que a proibição é o contrário da liberalização.

E, mais, ao contrário do que certas forças que agora se volvem contra ele procuraram sustentar, não proíbe indiscriminadamente nem amalgadamente. Procurou dizer-se que este preceito era "monstruoso", que "impedia a liberdade do pensamento", que "asfixiava as liberdades", que "não permitia aos cidadãos que o fossem", disse-se que este artigo "amputa". Mas o artigo não amputa coisa nenhuma. Designadamente, não tolhe, como o Sr. Deputado Almeida Santos começou aliás por sublinhar no início deste debate, a liberdade de o fascista impenitente morrer tão fascista como viveu, se bem que, como e natural, imptente num regime democrático. O que não quer dizer que o fascista não venha a ser premiado pois. como sabe. o fascista Maltês foi premiado pelo Govêrno com uma choruda pensão, com grande gáudio. E precisamente porque? Precisamente porque, no PSD, a memória antifascista e o que se vê! Faz rima e é tristemente verdade. Isto ó, os malteses não despertam arrepio, os malteses passam por banais funcionários, por simpáticos torcionários da actividade militante de espingardear estudantes, por exemplo. Era uma actividade, é um funcionário! Há funcionários que funcionam escrevendo ofícios e funcionários que funcionam bordoando estudantes. Nada disto impede o PSD de lhes atribuir medalhas e pensões. E porquê? Pela razão de que tem uma consciência antifascista verdadeiramente excelente porque não se vê. Naturalmente, a Constituição não proíbe que o Maltês seja maltês ate ao fim dos seus dias; o que proíbe e que esse tipo de pessoas se organizem para actuarem concertadamente contra o regime democrático. Porém, isto não significa apenas a proibição de fundação do PFP, do Partido Fascista Português, mas também a proibição de criação de estruturas, com o mesmo fim não importando para tal que tenham a natureza de partido, de associação, de clube recreativo, de sociedade promotora ou de qualquer outro tipo, pois é de estruturas que se trata. Na elaboração do diploma que, no plano legal, concretizou esta proibição, estes aspectos foram dilucidados: há um parecer da Comissão Constitucional sancionado pelo Conselho da Revolução, há um debate em torno desta matéria. A proibição implica naturalmente a obrigação de dissolver esse tipo de organizações e, como todos sabemos, não se tornou necessário na nossa circunstância política efectivar esta proibição porque as organizações, as estruturas ou as pessoas com vocação fascista não seguiram, na realidade portuguesa - em Itália não foi bem assim -, a técnica de aglomeração e de federação mas sim uma técnica de tipo entrista, de penetração em partidos, para neles difundirem o seu apostolado difuso. Em tese, sabe-se que esse apostolado difuso - e gostaria de sublinhar isto com um grande traço - pode colher uns certos resultados. De facto, abranda a capacidade de reacção, abranda a capacidade de percepção, esbate fronteiras, lança a confusão, instila que o antifascismo é muito pouco importante, que se trata de um produto do passado, instila que só os "saudosos" e os "caducos" estão preocupados com isso, instila que "quem está virado para o futuro e pura e simplesmente indiferente

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à revivescência das concepções fascistas"... Isto é, o apostolado do indiferentismo, a desvitalização do vector antifascista é um apostolado perigoso que, pela nossa pane, não subestimamos.

Portanto, Sr. Presidente, achamos que a supressão da norma seria extremamente negativa por todas as razões e ainda por uma que a Srs. Deputada Assunção Esteves teve ocasião de referir: é que a pedagogia antifascista - à qual se referiu com um tem que, naturalmente, não me cabe censurar porque se pode ter em relação ao antifascismo o maior desprezo, com o que as pessoas apenas se auto-definem - não pode ser tida, em nosso entender, como desactualizada ou desnecessária. O que não quer dizer que tenha de ser feita de forma ineficaz, repetitiva e unicamente traduzida na evocação mecânica de elementos do passado, muito embora, naturalmente, importe invocar o passado, sobretudo para o esconjurar. O supremo apelo que, neste momento, nos e feito e o de sermos capazes de demonstrar todos os dias como foi bom que o regime democrático fosse instaurado e como custou tão caro que durante tantos anos tivesse sido necessário suportar e combater o regime fascista.

Consideramos, Sr. Presidente, que a dissolução da noção de antifascismo constitucional numa noção vaga, indefinida e de contornos variáveis seria, evidentemente, o pior de todos os males, uma vez que poderíamos converter uma cláusula que procura ser precisa (e que tem uma fundamentação histórica determinada) no seu preciso contrário, susceptível de ter abrangências perversas.

Não vemos, naturalmente, que esteja aqui a "arma total" para os combates do futuro. Isto, que pretendeu ser uma pedra sobre o passado negro e uma cláusula contra revivescências, não nos resolve o problema dos "Le Pen". De facto, não sabemos qual a cara que lerá o Le Pen português, não sabemos se, neste momento, anda de calções, não sabemos de que cor e a camisola que veste, não sabemos se anda incontinente e inconformado em algum partido, não sabemos, por exemplo, se não e o indivíduo que diz, de forma populista e com matizes bastante conhecidos de todos nós, que "a revisão constitucional é um caso perdido", e que "das duas, uma: ou se reconhece imediatamente o direito de certas regiões do País a certas prerrogativas separatistas ou então há quem parta de estandarte armado para uma guerra santa". Não sabemos se se está aí a forjar alguma coisa de negativo que, no seu desenvolvimento, venha a dar um monstro. Mas devemos estar extremamente alentos a essas concepções. Porque nesse jardim nascem abrolhos e outras flores do mal.

Sr. Presidente, a minha última observação vai para aquilo que no CDS pretende ser tentador. Isto e, quando se apela à nossa vontade de defender a "unidade do Estado" e se propõe a substituição desta cláusula, apela-se mal porque as organizações que atentem contra a unidade do Estado são organizações cujos fins não são conformes com a lei penal, pelo que, nos termos do n.° 1 do artigo 46.º, já hoje podem e devem ser objecto de combate penal. E, se alguém quer - o CDS por exemplo - promover esse combate penal, tem muitíssimos meios para o fazer, não necessitando de introduzir esta norma que aqui e proposta. Pelo contrário, ela pode ter desenvolvimentos perversos, um dos quais e o facto de desembocar na criação de um instrumento para o combate àqueles que supostamente atentem contra o regime democrático. Recusamos isso em tese geral, não só pelas razões que o Sr. Deputado Vera Jardim, falando do exemplo da RFA, salientou, em condições e termos que dispensam reforço e com os quais estou inteiramente de acordo, como lambem - e com isto termino- porque, num quadro em

que o partido maioritário não se identifica com aspectos fulcrais do regime democrático nascido do 25 de Abril e do derrube do fascismo e quer mudá-lo e em que, por outro lado, quer substituir o regime vigente pelo seu programa partidário que ainda não sabe qual vai ser, tendo por programa, afinal, a flutuante vontade do chefe, isto introduziria uma cláusula de indefinição perigosíssima, susceptível de conduzir a desenvolvimentos perversos na vida democrática portuguesa.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Deputado José Magalhães, não acha que muitas das suas considerações fundamentam e justificam a minha proposta, designadamente quanto ao entrismo, quanto à opção por não se assumirem os fascistas como fascistas e com a sua identificação própria?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, respondo-lhe rotundamente que não. Na verdade, o raciocínio que consiste em dizer: as organizações fascistas são proibidas, logo não há organizações fascistas; se não fossem proibidas as organizações fascistas, haveria organizações fascista e logo os cidadãos fascistas organizar-se-iam, constituiriam as suas organizações e existiriam à luz do dia de forma visível, transparente e clara, sendo assim mais fácil dar-lhes combate, é um raciocínio que falece no seu pressuposto básico. A proibição de organizações fascistas pode dar origem a fenómenos de entrismo. É óbvio. Isto é, os fascistas escolhem - escolheram historicamente, como se sabe - caminhos vários (para não esconder os que no dia seguinte se travestiram de democratas, logo de madrugada a poucas horas). Alguns andam por aí inconsoláveis, estão impenitentes, irados e iguais ao primeiro momento. Não aprenderam nada e não esqueceram nada. E esses são os da estirpe que se pode reclamar como nunca tendo alterado um milímetro a sua posição. Não sabemos quantos são. Se o Sr. Deputado liberalizasse as organizações fascistas, impediria o entrismo? Ou criaria um novo campo de actuação, abrindo uma dupla face, duas vias aí onde só há uma? A minha resposta é a de que provavelmente abriria duas vias aí onde só há uma. Não só V. Exa.? não impediria entrismo nenhum, como os fascistas actuariam em duas faces e duas vias, abririam uma que está proibida. E é isso que lhe pergunto se tem alguma legitimação. Em nome de quê? Em nome de uma sociedade aberta e tolerante? Em nome de uma sociedade que, através da pedagogia não traduzida em elementos de constituição jurídica, conduza à eliminação das sementes do fascismo? Em nosso entender, não e legítimo, ou não é aconselhável, prescindir neste momento do instrumento que em 1976 inserimos na Constituição, extraindo todas as lições do nosso passado recente. Os anos que vão passados de 1976 a 1988 não provaram, quanto a nós, que essa supressão fosse necessária e que, menos ainda, conduzisse aos resultados que o Sr. Deputado deseja. Então aí, a sua melhor intenção teria dado o pior resultado. E é isso que nós queremos evitar.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Macedo e Silva.

O Sr. Miguel Macedo e Silva (PSD): - Sr. Presidente, pretendia apresentar um protesto começando por dizer que, salutarmente, não tem havido nesta Comissão muitas

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oportunidades para os apresentarmos. Temo-nos iodos circunscrito a certos limites que são, em meu entender, convenientes e que se deveriam manter até ao fim destes trabalhos que se advinham longos.

Porém, não posso deixar de fazer um protesto relativamente a ultima intervenção do Sr. Deputado José Magalhães, que tentou extrair de uma proposta que o meu partido não apresentou conclusões perfeitamente ilegítimas, que atingiram, inclusive, pessoas que são consideradas quer no meu partido quer, inclusivamente, no País.

E pretendia dizer, em primeiro lugar, que não estou aqui a defender nenhuma proposta do CDS. Independentemente das posições pessoais que vários deputados do PSD aqui defenderam relativamente a este preceito - e estas posições pessoais não são tão inéditas quanto isso pois verificaram-se, por exemplo, não só quando analisámos a questão da comunicação social como também relativamente a outros artigos já debatidos -, a posição do PSD, neste momento, é a de não propor qualquer alteração ao artigo 46.° e, particularmente, ao seu n.° 4, preceito que tanto preocupa - e bem, e legitimamente - o Sr. Deputado José Magalhães.

E isto tem o significado político de o PSD entender que este artigo 46.º e particularmente o n.º 4, ora em discussão, não tem, para nós, o gravame que o Sr. Deputado José Magalhães nos quis assacar. É bom que isto fique claro, e que fique aqui perfeitamente claro, no sentido de dizer que o PSD, em relação a este artigo, a posição que tem e de não retirar aquilo que está no n.° 4 do artigo 46.º Isto sem embargo de, na Comissão, postos perante uma discussão que pretendemos ião profunda quanto possível relativamente a estas matérias, possamos eventualmente, e partindo dos textos que foram propostos, quer pelo CDS, quer pelo PCP - não para este número, mas para outros-, quer, inclusive, pela proposta do Sr. Deputado Sottomayor Cárdia, arranjar uma formulação que, não prejudicando o essencial, possa eventualmente, até, abranger mais do que aquilo que o texto constitucional abrange. Isto é que é importante destacar. Isto é que é importante ressaltar. Não queria deixar de fazer aqui este protesto, neste momento, em relação a esta intervenção do Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Gostaria de dizer que, pela nossa parte, consideraremos sempre normalíssimo que nesta Comissão se proteste, contraproteste, pergunte, responda. Quando alguém sina que deve defender a sua bancada, faça-o - tudo isso deverá sempre acontecer em lermos normais, é completamente regimental. Não vale a pena fazer qualquer espécie de dramatização. Essa é, precisamente, a regra de funcionamento da Assembleia da República - acatamo-la, sem a alterar no que quer que seja. Mas há, evidentemente, protestos que são sintomáticos - é sintomático que o Sr. Deputado Miguel Macedo lenha sentido necessidade de o fazer e é muito mais interessante do que isso que, em vez de ler feito um protesto, tenha feito uma demarcação.

Ou seja, é excelente que lenha ficado na acta que, sendo certo que aqui foram expressas, em nome do PSD ou de deputados do PSD, diversas posições, se tenha sublinhado que são posições de cunho pessoal e, lenho ponderado a matéria, o PSD que fale, como partido, enquanto colectivo organizado, ponderou que não devia apresentar qualquer proposta de alteração nesta matéria - e, devo dizer, ponderou em boa hora. Sensata opção essa, cuja adequação e cumprimento leria evitado que o PSD entrasse pelo terreno em que entrou, porque, a partir do momento em que penetra como penetrou em terreno minado, não se pode surpreender que subitamente lhe rebentem debaixo dos pés três ou quatro coisas chamadas "minas constitucionais", neste caso concreto.

Curiosamente ainda, o PSD resolveu mesmo, pela boca do Sr. Deputado Miguel Macedo, considerar-se tocado por coisas que não dizem respeito ao artigo 46.°, n.° 4.

Referi, em termos interrogativos, isto, que é bastante pertinente e real, e deve ser enfrentado por todos os membros do sistema partidário português: quem será, onde estará a estas horas o Le Pen português, andará de calções e com balões ou já trará camisolas, estará "entrado" em algum sítio e em que sítio estará, que linguagem terá, que objectivos prosseguirá, que intolerâncias lerá, que alusões a regimes racistas poderá fazer, que gentes deles vindas receberá, com quem falará e que conceitos defenderá? O que dirá, até, do artigo 46.º, n.º 4? Não eslava a chamar fascista a esse personagem; eslava apenas a procurar, olhando o panorama político português, alguém cuja intolerância, xenofobia, racismo e postura retrógrada pudesse ser o caldo de cultura para um Le Pen. Não estou a aplicar o artigo 46.°, n.° 4, estou busquejanto no panorama, a tentar lobrigar um vulto - esse vulto pareceu-me estar num certo jardim. Foi um alerta.

O Sr. Miguel Macedo e Silva (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)

O Sr. José Magalhães (PCP): - Espero, Sr. Deputado, que o futuro comprove essas palavras. Em todo o caso, naturalmente, resta-nos esperar e tomar cautelas. Não atingi com isso o Sr. Deputado Miguel Macedo, portanto sangrou sem saúde.

O Sr. Presidente: - Já acabou de cultivar o seu jardim? Espero que acreditem que agora estava eu inscrito, lambem lenho esse direito e vou exercê-lo. Queria dizer o seguinte: esta discussão já documentou suficientemente a necessidade de deixar ficar as coisas como estão. Se aqui nesta sede, apesar de tudo fleumática, fomos ao ponto que fomos quanto à quantidade e qualidade do que dissemos, o que seria a opinião pública, toda ela, a reagir à retirada do que cá está e, sobretudo, à introdução do que propõe o CDS?

Também não acompanho a Sra. Deputada Assunção Esteves, embora normalmente aprecie muito as suas intervenções, relativamente ao elogio que fez à proposta do CDS. As duas mangas da proposta, do acrescento, são inúteis. Já o disse o Sr. Deputado José Magalhães. Tendo cobertura penal, têm cobertura no n.º 1 actual.

Mas a segunda é perigosa, "nem organizações contra o regime democrático". O que é isto? O que e o regime democrático? O regime em vigor? Estamos a alterá-lo! Queremos ilegalizar o partido monárquico? Fica ilegalizado, porque é contra o regime republicano? Cuidado com isso!

Por outro lado, queria dizer ao Sr. Deputado Carlos Encarnação que já ornem o ouvi, com muita atenção e com o desvanecimento de sempre, dar uma tareia àqueles que guardam memória do tempo em que lutaram contra o fascismo. Claro que os jovens não podem ter essa memória porque não lutaram, ainda eram jovens de mais, como é o seu caso. Não se exige que um jovem, nem sequer um velho, para poder agora ter pergaminhos de democrata,

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possa invocar dragonas de combatente contra o regime anterior. Nilo se exige isso. Mas, por assim ser, não viremos as coisas ao contrário, punindo aqueles que lutaram pela liberdade e pelo regime que temos. Isso eu não aceito. Tendo lutado, tenho memória, não posso bani-la nem riscá-la. A memória é algo que existe independentemente da nossa vontade. E é importante que exista. As civilizações não são compartimentos estanques, os regimes também não, nem os acontecimentos: engrenam uns nos outros. Se a I República tivesse guardado a memória dos últimos tempos da monarquia, talvez não tivessem ocorrido nem o 28 de Maio nem os 50 anos de silencio, obscurantismo e tirania que sofremos na carne.

Devo acrescentar o seguinte: se, depois de cá ter estado, retiramos a referencia à proibição, no dia seguinte temos aí um partido fascista em Portugal.

Claro que me podem dizer que não estão, neste momento, proibidas na Constituição - embora o estejam no Código Penal- as organizações contra a unidade nacional e que elas existem, os seus responsáveis dão entrevistas e são recebidos pelos mais altos responsáveis, incluindo o Ministro da República!

O Sr. José Magalhães (PCP): - "Incluindo o Ministro da República" - isso não exclui o Dr. Mola Amaral, como 6 óbvio.

O Sr. Presidente: - Não exclui ninguém! Todos têm o direito de dar entrevistas e defender a separação dos Açores a título de emissão de uma opinião pessoal. Não tem é o direito de se organizar em quadros que perfilhem a ideologia fascista. O Dr. José de Almeida, nas suas entrevistas, tem revelado a existência de uma insipiente organização, a que pertence. É certo que não era precisa a proibição da Constituição, existindo a do Código Penal. Mas ela está cá. Tirá-la seria lembrar a jovens que andam por aí de cabelo rapado "à escovinha" e de motocicleta de não sei quantos cavalos a fundação de um partido fascista com consequências graves que hoje não temos.

As constituições devem ser, tanto quanto possível, ideologicamente bonitas e boas para se lerem à lareira. Mas devem ser, sobretudo, práticas e resolver problemas concretos. Se os não temos, vamos criá-los? Essa é a razão pela qual, como o Sr. Deputado Vera Jardim disse, depois de termos meditado sobre se valeria ou não a pena manter esta proibição, a mantivemos. O mesmo fez o PSD. Poderíamos sintetizar com este pragmatismo, suponho eu, bastante saudável, a desnecessidade de continuarmos uma discussão teórica, aprofundada, sobre todas as implicações positivas e negativas da permanência desta proibição.

Pedia-vos agora, se possível, que fossem um pouco mais sucintos.

Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.

O Sr. Raul Castro (ID): - Sr. Presidente, embora a reunião vá continuar (penso que não será por muito mais tempo), tenho de me retirar.

O Sr. Presidente: - Faça o obséquio.

Tem a palavra o Sr. Deputado Cosia Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador)... uma vez que o PS tem feito, como o demonstra pelas intervenções feitas, grande reflexão sobre o tema, penso que seria muito útil e reduziria bastante a complexidade com que nos temos defrontado aqui. No fundo, quero perguntar-lhe se o PS não vê de momento hipótese de alteração deste artigo no sentido...

O Sr. Presidente: - Há um acordo tácito entre nós em que, nesta primeira passagem pelas matérias, não haja declarações de intenção de voto. Mas diria que o facto de nós, depois de termos reflectido sobre o problema, como o Sr. Deputado Vera Jardim revelou, termos mantido esta proibição significa que não estamos predispostos à sua eliminação. E queria dizer ainda que, se há expressões de conteúdo ideológico na Constituição que, com utilidade, podem ser eliminadas; esta, a ser eliminada, provocaria alguns problemas práticos que não vale a pena criar. Sobretudo isso, mas também alguma coerência em termos de valores que salvaguardamos porque temos a tal memória que, espero, o Sr. Deputado Carlos Encarnação não nos proíba de continuar a ter.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - O Sr. Presidente leva-me a dizer que lenho o maior, mas o maior, dos respeitos por quem se bateu contra o fascismo. Não queria deixar de o dizer nem que isso deixasse de ficar registado em acta. Não quero de maneira nenhuma desmerecer os vossos esforços. Aliás, eu próprio, apesar de ser novo, cheguei a enfrentar algumas dessas situações e, por isso, estou particularmente à vontade para falar. Mas o que não quero é que esse estado de alma impeça as pessoas de pensar com actualidade sobre algumas questões. Admito perfeitamente que haja traumas provenientes de toda essa situação, mas não gostaria - até porque eu próprio não o faço - de transmitir e transportar esses traumas para a minha vida corrente e para a minha forma de encarar o futuro. É apenas isso! Tenho uma visão positiva e não negativa da vida!

O Sr. Presidente: - Mas não é possível encarar o futuro como um corte em relação ao passado. Não é saudosismo! É causalidade, é concatenação de fenómenos. Não tem nada a ver com saudosismos. Não sou saudosista, nem nunca fui, nem tendo a invocar as dragonas das minhas lulas. É que os fenómenos encadeiam-se casualmente, e o esquecimento das causas faz com que, irreflectidamente, se aceitem as consequências. É só isso - mais nada! V. Exa., de vez em quando, tem de nos permitir que continuemos a invocar os valores que considerámos negativos, para conseguirmos obter os antípodas.

Tem agora a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Efectivamente inscrevi-me, aquando da intervenção da Sra. Deputada Assunção Esteves, mas, por uma questão de autodisciplina, cuidei de não intervir a propósito do que foi dito por outros Srs. Deputados. Contudo, o lema é ainda o mesmo e por isso me permito pronunciar sobre ele.

Penso que a Sra. Deputada Assunção Esteves inaugurou a sua intervenção de uma maneira interessante, ao admitir que qualquer regime constitucional demo-liberal pode admitir um ou vários princípios de democracia protegida. Efectivamente, o n.° 4 do artigo 46.° é, em si, mesmo, um afloramento de um desses princípios numa democracia que quer garantir-se alguma protecção, num momento em que o poder constituinte material, o poder de auto-organização do Estado, se faz a partir de uma dada ideia de direito - que é, de resto, a que está consignada no preâmbulo da Constituição -, uma ideia material de direito, patentemente feita contra um regime ditatorial que, independentemente das profundas especulações sobre a sua qualificação, foi qualificado como um regime de tipo fascista.

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A consagração, portanto, desta especial protecção do regime demo-liberal e uma questão de memória - não e a questão da memória de qualquer um de nós, a título individual -, e uma questão de memória que o poder constituinte material quis traduzir na sua constituição, para que ficasse como um símbolo e uma expressão de contra quem teve de fazer-se o processo de implantação da democracia em Portugal. Essa memória e, do ponto vista do património histórico dos Portugueses, ainda suficientemente válida para continuar a ser uma inspiração material da democracia portuguesa - neste sentido, é uma ideia de direito, à qual vale a pena mantermo-nos fieis: como princípio de democracia protegida, com relação com essa memória, tem a ver com a nossa realidade histórica e, por isso mesmo, não tem a ver com qualquer outra realidade histórica, a meu ver invocada intempestivamente pela Sra. Deputada Assunção Esteves, e que de alguma maneira está reflectido no projecto apresentado pelo CDS. Porque, justamente, o projecto apresentado pelo CDS desloca a questão da ideia material de direito, central na nossa Constituição, relativamente à defesa perante o fascismo, para dois conceitos diversos: um, de defesa da unidade nacional, conceito indeterminado, curiosamente não idêntico ao referido nos artigos 2.º ou 3.º, relativamente a unidade da soberania - resta-nos saber se, não sendo o conceito de "unidade nacional" expresso na Constituição, ele é porventura um conceito comparável a outros como, por exemplo, e de "identidade cultural da nação"; e aí, começaríamos a ter equivalências cada vez mais indeterminadas e não saberíamos onde iríamos parar. Razão pela qual mandaria a prudência que não nos a tivéssemos a este tipo de conceito.

Quanto à questão da protecção de certo tipo de associações que estivessem em contradição com o regime democrático - mas o regime democrático e algo mais do que sistema de governo ou do que forma de governo; donde que uma qualquer organização política que não estivesse em contradição com o sistema patente na Constituição, ou sequer com a forma de governo, máximo com a forma republicana de governo, por ler finalidades que, num determinado momento pudessem ser interpretadas como contraditórias, relativamente a uma certa posição dominante na sociedade portuguesa, poderiam essas finalidades ser valoradas de forma ião negativa que fossem consideradas como sendo contraditórias com a do regime democrático. Dou um exemplo que, não sendo meu, estarei à vontade para referir: imagine-se um partido político que defende o sistema de governo actual, a forma de governo actual e, todavia, protagoniza, por exemplo, a colectivização integral da economia; esse partido político, de certa maneira, poderia vir a ser colocado na situação de estar a protagonizar posições contrárias ao regime democrático defendido na Constituição. Tudo isto e demasiado indeterminado para poder merecer consagração constitucional, tal como o CDS no-lo propõe.

De onde, em conclusão, e com fundamento na boa prudência, resultante das palavras de há pouco do Sr. Vice-Presidente Almeida Santos, lambem eu queria testemunhar a total adesão ao n.° 4 do artigo 46.°, não por inércia, mas antes por considerar que esse princípio reflecte bem o que e uma das ideias materiais centrais do ordenamento constitucional português.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Uma vez que toda a exposição do Sr. Deputado Jorge Lacão me foi dirigida - aliás, o prenúncio da sua exposição e do endereço que fez dela já existiu quando aplaudiu freneticamente o Sr. Deputado Vera Jardim -, só queria fazer duas considerações e uma pergunta.

A primeira e que, quando me referi ao projecto do CDS, não esqueci o projecto do meu partido, mas este não me inibe de manifestar alguma simpatia eventual pelos projectos dos outros partidos, sejam do CDS ou de outro partido qualquer, e, nesse sentido, achei por feliz a fórmula contida no n.9 4 do projecto do CDS. Não vou repetir o que disse, vou apenas fazer-lhe uma pergunta e expor um pensamento. A pergunta e - e refere-se à primeira parte da sua exposição - se entende ou não que, na fórmula "organizações que combatam o regime democrático" se incluem ou não, claramente, as organizações fascistas. A segunda é referente aos dois últimos termos do n.° 4 "contra a unidade nacional" - como disse o Sr. Vice-Presidente Almeida Santos, já se inclui nas próprias previsões do Código Penal - e "o regime democrático" que, creio, não é de tão difícil delimitação como o Sr. Deputado quer fazer crer.

Em meu entender, o que e fundamental não é o nome que as organizações tem, não é a diversidade dos seus contornos, o que é fundamental no entendimento, na interpretação do n.º 4 não é a intenção dessas organizações, não e o fim que elas proclamam prosseguir mas sim a acção que desenvolvem e respectivos efeitos. Se entendermos que relativamente ao n.º 4 julgamos acções, isto e, perpetrações de intenções e não intenções, verá que não é difícil nem perigoso e que a fórmula "organizações que alentem contra o regime democrático" pode eventualmente ser mais feliz do que a fórmula restritiva "organizações de ideologia fascista".

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - A Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves perguntou-me se, do meu ponto de vista, se incluiriam ou não "as organizações fascistas" no âmbito mais global das "organizações que atentem contra o regime democrático". Muito embora efectivamente se incluam, o problema não reside, porém, aí. É que, para além de se incluírem essas organizações, incluir-se-iam também muitas outras, cuja extensão não estamos em condições de determinar. Este e que e o problema. De onde, como não estamos em condições de a determinar, o problema que se coloca e o de saber, tendo o próprio conceito "regime político" a ver com adesão a valores e com a ideologia prosseguida pelo próprio sistema político num determinado momento, como é que será possível qualificar como ilícitas, de um ponto de vista criminal, certas organizações que prossigam determinado tipo de valores ou que prossigam determinadas ideologias de poder que, aparentemente ou ate na prática, estejam em contradição com alguns dispositivos constitucionais. É isso motivo bastante e suficiente para as ilegalizar? Eu direi que não. E, nessa medida, apenas estarei disponível para aceitar como princípio de protecção à democracia portuguesa aquele aspecto que é essencial no percurso histórico de Portugal e que se refere à circunstância de a democracia portuguesa ler ocorrido em ruptura com uma ditadura de tipo fascista. Como este aspecto tem raízes profundas na história democrática portuguesa, trata-se do único princípio que considero suficientemente justificado para constituir um princípio de protecção à democracia. Todos os outros são de tal forma indeterminados, tem de tal modo pouco a ver com

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a realidade histórica electiva de Portugal, na fase precedente ao actual ordenamento constitucional e no quadro da experiência política já dentro deste ordenamento constitucional, que a sua adopção nos poderia levar para limites de indeterminação tal que não poderíamos hoje avaliar com rigor as suas consequências.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Não fora o lacto de ter aparecido - e isso e positivo, não estou a fazer uma crítica- uma visão tão multifacetada do PSD em relação a este problema, designadamente não no que diz respeito ao próprio projecto do PSD mas ao apoio ao projecto do CDS, e eu não tornaria a Talar. É evidente que um certo oficialismo da intervenção do Sr. Deputado Miguel Macedo nos veio meter em "baias" mais claras, percebendo nós qual era afinal a posição do PSD. Mas a verdade é esta: é que, para além de entusiasmos de constitucionalistas por exemplo estrangeiros, talvez um pouco acrílicos - e desculpe-me a expressão, Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves, mas já vou explicar porque -, houve, em lodo o caso, outras defesas desta última parte da proposta do CDS. Como a tenho por excessivamente perigosa e não penso estar a sobrevalorizar o âmbito da proposta e as suas consequências, queria só referir-me a isto. Esta proposta, a fazer vencimento - o que penso estar de todo em todo afastado -, poderia introduzir aquilo que queremos afastar - a querela constitucional. Poderia facilmente introduzir uma nova querela constitucional, coisa que a nossa bancada está sumamente interessada em afastar da realidade portuguesa. Poderia transformar-se em bandeiras variadíssimas, quer contra uns quer contra outros, quer a favor de uns, quer a favor de outros.

Penso, Sr. Deputada Assunção Esteves, que não têm razão - e eu estava para lhe fazer a pergunta, mas transformo-a em intervenção - porque o que está em causa não é a acção dos partidos ou das organizações mas sim o fim que proclamam. Tem a prova na sua tão admirada - e também por mim - Constituição de Bona e na sua prática - aqui, não é admirada por mim e vou-lhe dizer porquê. Já foram inconstitucionalizados pelo Tribunal Constitucional Alemão pelo menos três partidos comunistas, mas continua a haver partidos comunistas na RFA. Porquê? Foram inconstitucionalizados com base apenas naquilo que constava dos seus estatutos e não na sua acção. De facto, 6 evidente que ninguém vai pretender que os comunistas que acabaram com um partido e foram fundar outro a seguir não têm efectivamente o mesmo tipo de acção. O que eles mudaram foi os estatutos, deixando de incluir cláusulas que, essas sim, foram a substância e a causa da ilegalização desses partidos. Portanto, Sra. Deputada, a sua intervenção parece-me ainda mais perigosa na medida em que o Tribunal Constitucional Alemão apenas teve em vista fazer o controle daquilo que as pessoas, nos seus estatutos, estabelecem como objectivos. Porem, se daí passarmos para uma realidade ainda mais sid generis e que consiste em dizer não nos interessa aquilo que as organizações dizem constituir os seus objectivos mas sim a sua acção, então encontrar-nos-emos num campo ainda mais perigoso, porque totalmente fora do único controle objectivo que consiste na declaração estatutária dos objectivos a prosseguir por cada organização. Consequentemente não dedicaria tanto tempo a esta última parte proposta pelo CDS nem lhe faria perder mais tempo. Não fosse o caso de ler havido algumas defesas entusiasmadas desta proposta, que, quanto a mim, deve ser afastada in limine, da correria o perigo, caso fosse aprovada, de trazer para o seio da vida constitucional portuguesa uma querela sem fim, sendo o exemplo mais típico precisamente o da Constituição de Bona.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Pretendia apenas referir que não deixarei de considerar todas as observações produzidas pelo Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Fico um tanto surpreendido porque dir-se-ia que a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves fez uma leitura benévola da proposta do CDS. Não querendo, obviamente, taxá-la de viciada no pecado de ingenuidade política, a observação com que agora, promissoramente, nos permite encerrar o debate - refiro-me ao facto de ir pensar nesta matéria - leva-me a ficar com alguma curiosidade...

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras da oradora.)

O Sr. José Magalhães (PCP): - Eu percebi, Sra. Deputada, e respeito as reflexões pessoais. Porém, leva-me a ter a seguinte dúvida: que interpretação e que admitia que a cláusula do CDS pudesse ter que não bebesse nestas águas bastante inquinadas que o Sr. Deputado Vera Jardim perante nós agitou, invocando a experiência histórica e aquilo que são perigos comprovados da sua aplicação?

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - (Por não ler falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais da oradora)... eslava cá quando fiz a última intervenção?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, pretendia apenas registar uma observação. Não nos perturba, na presente circunstância histórica portuguesa, que a questão seja colocada em termos de desaustinada cópia de fórmulas importadas da Grundgesetz ou de qualquer Constituição cujo modelo seja similar. Não nos parece que na circunstância histórica portuguesa se possa colocar qualquer situação paralela àquela que, na RFA, se colocou no pós-guerra, assim como não nos parece que as actividades das forças políticas e sociais que se movem na nossa esfera sejam susceptíveis de uma evolução no sentido daquela que se registou na RFA. Deveria lambem assinalar que, se na RFA se verificam ainda traços negativos decorrentes de concepções de Estado musculado, de democracia limitada, de defesa de um certo proselitismo de exclusão de forças sobre as quais se lançam labéus bastante "sidados" de não adesão à ideologia capitalista e à lógica social de mercado, também é verdade que foram dados passos positivos nos últimos anos. Hoje, na opinião pública, o Berufsverbot encontra substancial isolamento e limitações na sua aplicação e não passa pela cabeça de ninguém ilegalizar o Partido Comunista. Por outro lado, se isso se verifica aí, mais claramente se verifica aqui. Porém, não é isso que é inquietante mas sim o facto de, no panorama político português, a perda da memória histórica se verificar no partido que alcançou no dia 19 de Julho um determinado pico eleitoral que, a lodo o custo, quer manter. Mas quer mantê-lo perdendo também a memória do passado. E é isso que nos inquieta.

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O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - A condenação do fascismo está bem no preâmbulo e está sobretudo bem na Constituição enquanto sistema normativo. A memória histórica é útil e justificável também quanto a este ponto. Mas não só quanto a este. Porque não a memória histórica da regeneração? Estamos um pouco na regeneração, quem sabe se a caminho do cabralismo. A memória histórica é justa, é útil e é necessária. Todavia, a memória das ditaduras e da resistência às ditaduras não se protege através de proibições; a memória revigora-se na polémica e a polémica supõe o interlocutor.

Quanto à proposta do CDS, do meu ponto de vista - indo um pouco mais além do que o Sr. Deputado Vera Jardim -, trata-se de uma proposta que, muito embora seja proveniente de um partido plenamente democrático que preza os valores democráticos tanto como aqueles que entre nós mais os prezam, não é apenas excessivamente perigosa, é exclusivamente perigosa.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, damos por encerrado este debate, que foi aliás muito interessante, passando de seguida à apreciação dos n.ºs 5 e 6 da proposta de alteração o artigo 46.°, apresentada pelo PCP.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - A proposta de aditamento de um n.° 5 ao artigo 46.º visa dar resposta a uma questão que nos parece actual e flagrante no panorama da realidade associativa portuguesa. Se podemos constatar que a liberdade de associação em Portugal sofreu, precisamente com o derrube do fascismo, um florescimento decorrente da supressão das numerosas peias que administrativizavam a sua própria possibilidade de expansão, que tolhiam a criação, - que estabeleciam entraves à organização e ao funcionamento, é, no entanto, verdade também que, no plano legal, se fez o conjunto de avanços que todos podemos constatar. Subsistem porém, muitos anos decorridos sobre o 25 de Abril, problemas de acautelamento - e garantia material até, já não digo de incentivo - ao pleno exercício daquilo que constitui uma liberdade eminente dos cidadãos e das pessoas.

A fórmula que escolhemos para sublinhar a ideia de que devem ser suprimidos ou de que não podem ser invocados regimes de carácter administrativo ou fiscal para afectar a liberdade de associação, tolhendo-a impedindo-a, buscou claramente inspiração no próprio articulado da Constituição, noutra sede, noutro passo. Refiro-me concretamente ao facto de, no artigo 38.°, n.º 6, a Constituição ter tido a preocupação de sublinhar que a liberdade de imprensa não deveria ser tolhida por nenhum regime administrativo ou fiscal, aditando neste caso "nem política de crédito ou de comércio externo". Eis pois o que fizemos. Essa fórmula tem a mesma preocupação e a mesma matriz da fórmula do dispositivo que citei, tendo o cuidado de apontar para a supressão de certos entraves de carácter administrativo subsistentes e, naturalmente, para a proibição de criação de entraves de carácter fiscal que onerem ou agravem a possibilidade de criação de associações. Em meu entender, os limites de uma fórmula deste tipo são patentes, isto e, o legislador ordinário não está manietado de estabelecer regras e formas de enquadramento para o exercício da liberdade de associação. A criação de associações não leria que ser obrigatoriamente gratuita, e não obstante poderem definir-se, caso seja obtido consenso, diferenciações de regime, seria, porém, estabelecido um critério, um princípio enquadrador e uma limitação genérica à criação de limitações à liberdade de associação.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador)... justificar os n.ºs 5 e 6.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Só o n.° 5, Sr. Deputado.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Só o n.º 5. Sr. Presidente, não sei se não valeria a pena justificar os n.ºs 5 e 6.

O Sr. Presidente: - Eu tinha posto à discussão ambos os números; o segundo é um natural prolongamento do primeiro, é uma espécie de concretização do princípio.

Sr. Deputado José Magalhães, talvez seja melhor justificar também o n.° 6.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não vejo razão nenhuma para não adiantar essa justificação, uma vez que é desejo e legítima pretensão do Sr. Deputado Vera Jardim.

O n.º 6 contempla um outro problema que nos parece bastante grave, assumindo uma dimensão que, inclusivamente, se nos afigura preocupante no contexto da nossa vida associativa. Está fora de questão que o Estado possa atribuir a associações isenções e benefícios. A nossa lei ordinária é uma montra de criação de isenções e benefícios dos mais diversos tipos. Recentemente, a Lei das Associações de Estudantes pôde contemplar uma panóplia de benefícios desse tipo, respeitantes quer a tarifas especiais, quer a facilidades diversas, quer a apoios de carácter técnico e logístico, etc. E, em nosso entender, seria extremamente benéfico que se clarificasse que a atribuição pelo Estado de isenções de qualquer natureza e de outros benefícios tivesse de respeitar desde logo o princípio da igualdade. Trata-se de um critério inarredável cuja violação traduziria uma grave perturbação de um elemento de equilíbrio basilar, que nesta esfera deve ser respeitado.

Mas há uma outra face de tudo, sendo, neste caso, a outra face do apoio, a sujeição. É extremamente grave que o facto de uma entidade de carácter privado beneficiar de um qualquer regime de apoio implique a sujeição a uma gama de deveres que não sejam senão aqueles que possam qualificar-se como necessários, adequados e proporcionados. Não adoptámos uma formulação pela positiva, mas sim uma formulação pela negativa, proibindo os deveres desnecessários ou desproporcionados. Naturalmente ao fazê-lo, não pudemos deixar de ter em conta a elaboração legal entretanto adquirida ao longo destes anos. Durante muito tempo, cogitou-se entre nós se seria legítima e se teria cobertura constitucional a atribuição pelo Estado a determinadas associações de um estatuto que as distingue das demais pelo facto de lhes propiciar determinados benefícios. Questionou-se se esta situação não introduziria uma fortíssima distorção, uma violação da própria regra que deve presidir ao florescimento do tecido associativo e uma ingerência indébita do Estado na esfera de actuação própria das entidades que se movem neste campo.

Essa dúvida, qualquer que seja a sua natureza e pertinência, não deverá senão levar-nos a procurar estabelecer certas cautelas: ou enveredaríamos por uma proibição absoluta de apoio, que é uma posição que não vejo

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sustentada por qualquer quadrante, ou, então, admite-se a legitimidade e a possibilidade, dentro de determinados limites, de distinguir as associações umas das outras, conferindo a umas certos benefícios e, logo, certos deveres. Esses deveres devem ser proporcionados e só devem ser os necessários e justificados pelo apoio obtido. Podemos ainda pensar, entre as pessoas colectivas chamadas de utilidade pública, nos diversos tipos de pessoas que aí poderemos situar.

O campo de aplicação desta norma é bastante sensível e parece-nos que a diminuição da margem de discricionariedade das entidades atributivas seria extremamente positiva para todos. Para o Estado, porque perderia suspeição de favoritismo e de clientelismo, e para os beneficiados porque, naturalmente, perderiam o labéu de viverem à custa do erário público e de viverem à custa desse erário com abdicação dos seus princípios ou sujeição a deveres indesejáveis e desnaturadores.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Ramos.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Sr. Presidente, passa-se aqui um pouco uma situação que já vem decorrendo detrás, nomeadamente de algumas propostas do PCP, que 6 a seguinte: estabelecer, em sede de direitos, liberdades e garantias, regimes diferentes para direitos que, em princípio, devem ter uma tutela idêntica. E ao dizer-se, em sede do artigo 46.° e no que toca à liberdade de associação, que nenhum regime administrativo ou fiscal pode afectar, directa ou indirectamente, a liberdade de associação, a primeira questão que se põe e a seguinte: se se preocupam tanto com os regimes administrativos e fiscais, nomeadamente com os entraves aos direitos, liberdades e garantias, por que não propor um número, em sede de um artigo 18.°, por exemplo, uniformizando o regime dos direitos, liberdades e garantias? É que fazê-lo relativamente a um direito, liberdade e garantia, neste aspecto e com este "enfoque", julgo ser nocivo. Aliás, o artigo 46.°, ele próprio, mesmo sem este número e com a força jurídica que lhe advém do artigo 18.°, já não pode, em qualquer regime administrativo ou fiscal, ser ele próprio um entrave. E o que digo em relação ao n.° 5 julgo fazer também sentido relativamente ao n.° 6.

Porque prever números que todos eles remetam, ou possam remeter alguns, para o princípio de igualdade? Esse princípio vale o que vale, é um princípio constitucional e, nesse sentido, todos os artigos da Constituição, particularmente em sede de direitos fundamentais, tem de se ater, obviamente, ao princípio de igualdade. Dizer-se que "a lei assegura que a atribuição pelo Estado de isenções ou outros benefícios a qualquer associação respeite o princípio de igualdade" julgo que é, mais uma vez, fazer estas distinções - neste caso, em sede de liberdade de associação - e parece descabido. Queria, mais uma vez, alertar para o facto de o PCP propor continuamente o desmembrar completo de um regime que se quer uniforme. Hoje em dia existem já algumas distinções e são várias as dificuldades de interpretação, mas pelo caminho do PCP o caos seria completo. Não é assim que a tutela dos direitos, liberdades e garantias fica mais forte. É que, muitas vezes, quanto mais se quer regulamentar e fazer com que não existam violações, elas próprias poderão permitir violação por causa das distinções e entorses no regime.

Nesta conformidade, o PSD é contrário tanto ao n.° 5 como ao n.º 6 desta proposta.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Presidente, penso que estas benfeitorias que o PCP pretende introduzir são dispensáveis.

Em relação ao n.° 5, já está afirmado no n.° 1 do artigo 46.°, com rigor suficiente, que o direito de associação é exercido livremente e sem dependência de qualquer autorização, abrangendo, naturalmente, o regime administrativo. Aliás, a prática e a lei ordinária já apontam, como todos sabemos, nesse sentido. Isto no que diz respeito ao regime administrativo.

No que diz respeito ao regime fiscal, o problema é um pouco mais complicado. O Sr. Deputado José Magalhães aflorou-o, aliás levemente, e, postas as questões nos termos em que o PCP as veio comunicar, poderíamos começar a perguntar-nos: a constituição de uma associação não paga selo? Não paga emolumentos notariais?

Mas o problema é mais grave: é que, sob a capa de associações - temos que o dizer claramente -, abundam hoje organizações colectivas que não são mais do que verdadeiras sociedades comerciais. Ora, nós não podemos deixar de atribuir ao Estado, nessa sede, algum poder de fiscalização, por um lado, e, por outro lado, de tirar as consequências desse regime em que algumas associações vivem - e não quero agora estar a entrar aqui nos clubes desportivos, nem em polémicas à volta de actividades nitidamente empresariais que são hoje o objecto de actividade de muitas associações. Por conseguinte, este acrescento do regime fiscal parece-me um pouco perigoso, embora - repilo - me pareça que o princípio, como tal, já está suficientemente enunciado no n.° 1 do artigo 46.º

Em relação ao n.° 6, o princípio de igualdade consta da Constituição e encontra-se no n.º 2 do artigo 13.° em lermos que já discutimos. É certo que, no n.° 1, esse princípio de igualdade fala nos cidadãos e isto refere-se também às pessoas colectivas - é sempre o velho problema. Penso, portanto, ser perfeitamente legítima uma interpretação que aplique o princípio de igualdade também às pessoas colectivas, mormente às associações.

Assim - e eu terminava sem dizer muito mais -, penso que estas benfeitorias não são nem úteis nem necessárias, mas um pouco voluntuárias, e que deveríamos, o que é, aliás, também a nossa tendência, tentar não encher a Constituição de dispositivos meramente voluntuários.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, se me permite, eu acrescentava o seguinte: Sem prejuízo de não estar em causa a saúde da intenção desta proposta - que tenho a certeza ser construtiva e bem intencionada -, permito-me discutir o seu fundo. Entendo que o Estado deve poder fazer discriminações positivas entre associações de várias naturezas. Então, entre uma associação altruísta, de fins não lucrativos, e uma associação tendo por escopo o lucro não há-de poder haver distinções de natureza fiscal, etc.?

Quanto ao n.° 6, tenho dúvidas. Coloco-lhe, desde logo, esta questão: acha que o Estado não tem o direito de estimular, nomeadamente com isenções fiscais, as associações altruístas e de não estimular associações egoístas?

Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Presidente, hoje - e vou fazer uma defesa da escola de Coimbra, o que já não é sem tempo -, por não ter sido aceite o projecto de sociedades comerciais, no que diz respeito, precisamente, ao fim dessas mesmas sociedades propostas pela escola de

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Coimbra, o que se eslabelece e que as sociedades comerciais são aquelas que tem por fim a prática de actos de comercio, contrariamente àquilo que linha sido proposto pelo Prof. Ferrer Correia. O que hoje temos são inúmeras associações que tem por finalidade, nitidamente, a prática de actos de comercio, e este 6 um problema com que nos defrontamos, logo neste n.° 5. E aí, corroborando, pelo menos nesse particular, a intervenção do Sr. Deputado Almeida Santos, o Estado não terá o direito de impor obrigações fiscais a essas associações que não são senão empresas comerciais disfarçadas?

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sr.9 Deputada Maria da Assunção Esteves.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Indo ainda um pouco mais longe do que o foi o deputado Almeida Santos, diria que não sei mesmo como é que o Estado pode, cumprindo um desiderato constitucional a vários níveis, desenvolver e criar condições para a realização de certos direitos sociais e culturais que não seja, muitas vezes, através do benefício fiscal a determinado tipo de associações.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Presidente, como são 19 horas e 30 minutos e depois deste ataque de tantos lados, talvez eu precisasse de um dia para a defesa de amanhã.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, fizemos um acordo tácito para acabarmos esta discussão.

Sr. Deputado José Magalhães, faça lá a sua conclusão. Temos a razão que temos -se é que a temos - e o Sr. Deputado pode dizer que não e nenhuma.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, creio haver uma radical desconversa neste diálogo porque não propusemos nada daquilo que parece pressuposto nas intervenções de alguns dos Srs. Deputados. Ou então, exprimimo-nos pessimamente e merecemos o adequado correctivo e estamos dispostos a oferecer a mão à palmatória desde que, naturalmente, haja a cooperação mínima para se chegar a formulações que refiram aquilo que há que exprimir. Vamos então por partes e, naturalmente, sem outra tortura que não a decorrente de não termos sido percebidos, o que é sempre uma coisa penosa.

Em relação à tortura do Sr. Deputado José Luís Ramos, devo dizer que e verdade que temos a preocupação, em diversos pontos do nosso projecto de revisão constitucional, de lazer distinções, explicitações, reforços e sublinhados. Não o escondemos. E, de resto, a revisão constitucional, ao servir para introduzir clarificações, serve precisamente para que se diga, não só o que lá não está, como melhor do que já lá está. Isso é normal e o PSD faz isso aparentemente. O PSD gosta de fazer isso na constituição económica, mas não quer fazê-lo na constituição das liberdades. É simples. É o seu critério e não o nosso e devo dizer que não nos sentimos cangados por essa bitola, que nos parece coxa.

Por ou iro lado, não me parece que possa ler razão - e reparem que estou a referir-me em tese geral -, pois o Sr. Deputado está a aplicar essa crítica como "chapa" e eu estou a responder-lhe em termos de lese geral, pura e simplesmente. Devo dizer que, no caso em concreto, não quisemos criar uma cláusula que se aplicasse na sede que o Sr. Deputado José Luís Ramos alvitrava porque isso poderia levar demasiado longe. Isto é, se estabelecêssemos um preceito com um carácter totalmente genérico que impusesse regimes idênticos para toda a espécie de situações, então aí penetraríamos no terreno que o Sr. Deputado Almeida Santos receava, qual seja um terreno de generalização sem fronteiras, de tratamento igual de coisas desiguais, de protecção, nos mesmos termos, de associações que não merecem a mesma protecção. Isso, realmente, não queremos e não é isso que propomos.

Além disso, a remissão para o princípio de igualdade em relação à questão colocada pelo n.° 6, cujo aditamento propomos, não é remissão nenhuma. A aplicação do princípio de igualdade faz-se e tem de se fazer. Agora, face à experiência da nossa realidade neste ponto, verifica-se existir uma ampla margem de distorção na aplicação desse princípio, no que diz respeito ao direito de associação e, concretamente, no que diz respeito à atribuição pelo Estado de isenções ou outros benefícios. E é estranhíssimo que o Sr. Deputado José Luís Ramos, que e do PSD, não tenha a memória inteiramente nutrida e recheada de alguns episódios bastante aventurosos de dificuldades na atribuição de subvenções e outros benefícios, designadamente por alguém que, neste momento, ocupa um cargo na presidência do Parlamento Europeu e que emergiu, digamos mesmo que ascendeu, a partir da bancada do PSD. O famoso "caso Rui Amaral" aí está para ilustrar até que ponto é que se pode chegar na violação do princípio de igualdade e até de outros aspectos de legalidade na atribuição de subsídios.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Mas não em relação às associações.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Os subsídios atribuídos pelo Ministério do Trabalho não abrangiam só sociedades comerciais, como se lembrará. Em lodo o caso, é evidente que há outros casos bastante mais interessantes e até actuais.

Pensemos no que é actividade atributiva do chamado Ministério (fantasma) da Juventude e no fértil campo que isso oferece à nossa imaginação em relação mesmo às associações, correspondendo à preocupação do Sr. Deputado Vera Jardim (não sei se serão todas mesmo associações, algumas, provavelmente, são também sociedades disfarçadas e esta é uma questão actual!).

A outra questão, ou seja, a dos deveres desproporcionados, é lambem relevante face a certas exigências de aceitação de imposições bastante substanciais para se poder ser beneficiário do conjunto de apoios previstos na lei. Esta questão é actual e pode vir a tornar-se ainda mais actual porque - como sabem - isto não deixaria de se aplicar também a apoios, designadamente, obtidos no quadro das comunidades, o que não me parece irrelevante.

Às perguntas dos Srs. Deputados da bancada do PS responderia, frontalmente, que creio que fizeram uma tresleitura da nossa proposta, mas aí emendaremos a mão, se a formulação é ião imperfeita que suscite uma leitura desse tipo. Não esteve, nem estará, na nossa mente proibir que o Estado laça distinções entre associações e impor que trate da mesma forma associações diferentes, ou inculcar que o Estado deve estar manietado para proteger tanto os que prosseguem fins altruístas e dignos de protecção como os que prosseguem fins egoístas - isto, na dicotomia que aqui foi feita pelo Sr. Deputado Almeida Santos. O que é que, na nossa proposta, tolhe esse tratamento diferenciado?

Aquilo que pretendemos, quanto ao n.º 5, é, unicamente, que a imposição de regras de carácter administrativo e de carácter fiscal não conduza, no limite, à inviabilização da liberdade de associação. E pergunto-vos - designadamente

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aos Srs. Deputados Vera Jardim e Almeida Santos- se não admitem que, na experiência concreta da criação de associações em Portugal e de lodo o calvário burocrático que e necessário ultrapassar para que elas se possam criar e começar a actuar, se excede aquilo que são níveis mínimos aceitáveis e se não entendem que a onerosidade da criação de certas associações deveria ser mitigada. Foi para isso que quisemos alertar.

Dirão: A formulação e demasiado generosa para um intuito magro. Mas, então, corrija-se. Agora, não há uma questão nesta área? Creio que há!

O Sr. Presidente: - O problema e o do saber se não há questões idênticas em n áreas. É que, às tantas, leríamos de infestar a Constituição de obstáculos desta ordem. É só aqui que se verifica esse caso da falta de equidade na distribuição de vantagens e de inequidade na distribuição de ónus ou encargos? Dá-me a impressão de que se enveredamos pela constitucionalização de preocupações deste género - que tem uma base de justiça e de justificação que compreendo - nunca mais paramos.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Por que não nas cooperativas e nas próprias sociedades comerciais?

O Sr. Presidente: - Valeria talvez a pena uma norma de carácter genérico. Mas não assim.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Srs. Deputados, devo dizer que não me parece que a preocupação que enunciei deixe de ser extremamente relevante e interessante.

O raciocínio que agora foi desenvolvido, qual seja o da peninência ou da similitude de problemas em relação a outras áreas, e até a certas áreas que são muitíssimo relevantes pela sua conexão com as dinâmicas económicas, não deixa de ser relevante. É um tipo de raciocínio admissível - que respeito -, mas entendo que poderá dar origem a um outro aditamento e a um aperfeiçoamento mais largo.

O Sr. Presidente: - A uma formulação genérica, se formos capazes dela, já que e bem difícil!...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Talvez não seja muito difícil, em termos de princípio orientador. Pela minha parte, transmitiria à minha bancada este conjunto de observações críticas.

O Sr. Presidente: - A preocupação é salutar, a formulação e discutível e não é tão casuísta como isso. Ou e genérica ou não tem significado.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas repare, Sr. Presidente, que, sendo genérica, pode adquirir um carácter amplificado cuja relevância não passa desapercebida a ninguém e, pela nossa parte, nos parece bastante estimulante.

O Sr. Presidente: - São normas de orientação ética, Sr. Deputado.

Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - (por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador) [...] penso, no entanto, que este campo pode ser mais vasto e mais restritivo. Como sabe, consideram-se as próprias sociedades, as cooperativas, cie, como formas de associação e por contraposição às formas fundacionais. Isto não nos mete, numa interpretação deste tipo, em problemas muito mais gravosos?

Era só isto que queria deixar à sua consideração. É claro que para mim seria, porventura, uma interpretação demasiadamente extensa.

O Sr. Presidente: - A nossa reunião de amanhã terá início às 10 horas.

Está encerrada a reunião, Srs. Deputados.

Eram 19 horas e 40 minutos.

Comissão Eventual para a Revisão Constitucional

Reunião do dia 11 de Maio de 1988

Relação das presenças dos Srs. Deputados

Rui Manuel Parente Chancerelle de Machete (PSD).
Carlos Manuel de Sousa Encarnação (PSD).
António Costa de Sousa Lara (PSD).
Carlos Manuel Oliveira da Silva (PSD).
Fernando Manuel Cardoso Ferreira (PSD).
José Luís Bonifácio Ramos (PSD).
Licínio Moreira da Silva (PSD).
Luís Filipe Garrido Pais de Sousa (PSD).
Manuel da Cosia Andrade (PSD).
Maria da Assunção Andrade Esteves (PSD).
Mário Jorge Belo Maciel (PSD).
Miguel Bento da Costa Macedo e Silva (PSD).
Amónio de Almeida Santos (PS).
António Manuel Ferreira Vitorino (PS).
Jorge Lacão Costa (PS).
José Eduardo Vera Cruz Jardim (PS).
José Manuel Santos Magalhães (PCP).
Raul Fernandes de Morais e Castro (ID).

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