O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Página 479

Quarta-feira, 15 de Junho de 1988 II Série - Número 17-RC

DIÁRIO da Assembleia da República

V LEGISLATURA 1.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1987-1988)

II REVISÃO CONSTITUCIONAL

COMISSÃO EVENTUAL PARA A REVISÃO CONSTITUCIONAL

ACTA N.° 15

Reunião do dia 12 de Maio de 1988

SUMÁRIO

Finalizou-se a discussão do 4. ° relatório da Subcomissão da CERC respeitante aos artigos 37.º a 47.º e respectivas propostas de alteração.

Procedeu-se à discussão do 5.° relatório da Subcomissão da CERC respeitante aos artigos 48. ° a 52.º e respectivas propostas de alteração.

Iniciou-se a discussão do 6.º relatório da Subcomissão da CERC relativo aos artigos 53.° a 62.º e respectivas propostas de alteração.

Durante o debate intervieram, a diverso título, para além do presidente, Rui Macheie, pela ordem indicada, os Srs. Deputados José Magalhães (PCP). Costa Andrade (PSD), António Vitorino (PS), Carlos Encarnação (PSD), Almeida Santos (PS), Mário Maciel (PSD), Rui Gomes da Silva (PSD), Sottomayor Cárdia (PS), Licínio Moreira (PSD), José Manuel Mendes (PCP), Maria da Assunção Esteves (PSD), Miguel Macedo e Silva (PSD), Herculano Pombo (PEV), Vera Jardim (PS), Jorge Lacão (PS), Alberto Martins (PS), Sousa Lara (PSD) e Odete Santos (PCP).

Página 480

480 II SÉRIE - NÚMERO 17-RC

O Sr. Presidente (Rui Machete): - Srs. Deputados, temos quorum, pelo que declaro aberta a reunião.

Eram 10 horas e 45 minutos.

Srs. Deputados, vamos dar início aos nossos trabalhos com a análise do artigo 47.°, que tem como epígrafe "Liberdade de escolha de profissão e acesso à função pública", e em relação ao qual existe uma proposta de aditamento para o n.° 3 apresentada pelo PCP.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, já decorre do conteúdo do n.° 1 do artigo 47.a um conjunto de implicações que tem vindo a ser objecto de dilucidação através dos meios constitucionais próprios, originando aqui ou além algumas dificuldades interpretativas. Isso não é anómalo e até permite separar águas, excluir certas dificuldades que em torno do preceito se suscitaram no início da sua vigência.

O direito de livre escolha de profissão ou de género de trabalho não é um direito absoluto. O Estado não está impotente perante o "indivíduo-cheio-de-direitos". Constitucionalmente, garantir a livre escolha não é traçar uma auto-estrada, mas sim definir balizas dentro das quais tal liberdade se possa exercer em sociedades organizadas, como aquelas em que vivemos no nosso tempo. A existência de restrições legais impostas pelo interesse colectivo é um fenómeno normal. A questão é que isso não se traduza num fechar infundado de vias ou no estabelecimento de elementos de desigualdade ou de truncagem indevida de acessos, que deveriam, face ao princípio geral, estar salvaguardados.

A capacidade é, naturalmente, uma limitação. O interesse colectivo é uma limitação. Do que é que se trata na nossa proposta? Trata-se de procurar clarificar ou explicitar que e extremamente importante que se salvaguarde o valor da independência profissional e o valor do sigilo, aí onde eles possam ser postos em causa por indevida interpretação de exigências do próprio interesse colectivo. O preceito que propomos tem uma redacção sucinta:

A liberdade de escolha e exercício de profissão implica o direito de sigilo e independência profissionais específicos de cada profissão ou género de trabalho.

Procura-se qualificar e enquadrar esta norma com um segmento final que refere "de acordo com as respectivas regras deontológicas e as disposições legais aplicáveis". Isto e, de entre os elementos relevantes para enquadrar e definir os limites do sigilo e da independência profissionais procurou-se incorporar as regras deontológicas que as próprias classes, as categorias profissionais, aprovem. Isto não nos parece despiciendo e em relação a algumas delas tem particular relevância. Admito mesmo que venha a ter cada vez mais relevância: e de reconhecer e prever o papel crescente que as normas deontológicas podem ter para o enquadramento da actividade de determinadas profissões. A relevantização das regras deontológicas não é uma coisa virada para o passado. É, com grande probabilidade, um sinal positivo e futuro.

É evidente também que esta proposta tem actualidade. Não dá, por exemplo, resposta a certas questões melindrosas decorrentes da aprovação do Código de Processo Penal. Não é aqui que pretendemos ver a alavanca de Arquimedes para resolver todo o conjunto de questões que o Código de Processo Penal suscitou em relação, por exemplo, ao segredo profissional dos advogados ou ao dos

jornalistas. Para isso esta cláusula é demasiado genérica, já que se limita a proclamar que é implicação da liberdade de escolha e de exercício de profissão o direito ao sigilo e independência. Para isso o preceito é curto; mas entendemos que não é despiciendo. Não introduzirei aqui excessivamente o debate sobre o quadro bastante funesto que neste momento está gerado para o segredo profissional dos jornalistas, que, de resto, é objecto de tutelas específicas na Constituição, nem me referirei sequer ao sigilo profissional dos advogados e aos riscos que sobre ele faz pender o conjunto de normativos hoje constantes do Código de Processo Penal. No entanto, isto veio alertar-nos, particularmente, para a incompletude irrazoável da Constituição neste ponto. Estamos totalmente disponíveis para considerar se esta é a melhor forma de garantir essa completude, mas parece-nos necessário que a definição constitucional, que neste momento estamos a abordar, seja menos incompleta.

O Sr. Presidente: - Gostaria de formular algumas perguntas ao Sr. Deputado José Magalhães. A proposta de aditamento do PCP vai para além daquilo que neste momento é o âmbito e que está espelhado na epígrafe do artigo 43.° Isto é, no artigo 43.º já está neste momento garantida a liberdade de escolha de profissão e do acesso à função pública. O PCP, ao formular este aditamento para o n.8 3, procura fazer acrescer a essa liberdade de escolha a liberdade de exercício da profissão ou uma certa garantia do exercício da profissão, o que são coisas, naturalmente, diferentes.

Por outro lado, coloca-se a dúvida de saber se é aqui o sítio adequado para inserir uma norma desse tipo - isto se se admitir que é necessário consagrar essa norma na Constituição.

Estou de acordo que as profissões devem ser exercidas de acordo com determinadas regras deontológicas e que essas regras impõem limites, mais ou menos vastos, designadamente em relação à subordinação hierárquica, no caso de trabalho por conta de outrem ou no caso da função pública. Elas registam-se sobretudo a partir do momento em que o trabalho desenvolvido tem características técnicas e exige uma autonomia intelectual mais acentuada. É o caso, por exemplo, do trabalho dos juristas, dos engenheiros ou dos economistas. É que, muitas vezes, não é diferente o trabalho realizado por conta de outrem do trabalho realizado no exercício de uma profissão liberal. Só que depois pode haver zonas conflituais entre o poder de direcção e o dever de cumprir essas indicações que lhe são dadas pelo superior hierárquico e essa autonomia técnica ou essas soluções técnicas.

A questão que aqui se coloca é a seguinte: em relação às profissões liberais, temos neste momento as associações públicas, as ordens, que têm essa missão de garantir a autonomia, e existe uma regulamentação desenvolvida sobre o assunto. Os outros casos são muito diversos, muito variáveis. Não julgo que a circunstância de não haver uma norma na Constituição que o explicite exclua que não exista uma preocupação de salvaguardar as normas éticas. A ética existe independentemente de haver preceitos que aqui ou além expressamente a consignem. A questão que se coloca é a de saber da conveniência de, sem explicitar este problema do conflito entre dois princípios e sem espelhar, de uma maneira clara, a diversidade muito grande de situações que existem, colocar na Constituição uma norma deste tipo. Isto é, o facto de se vir a consignar um número neste artigo pode distorcer, em termos que não me parecem convenientes, um problema em relação ao qual, suponho, o nosso ordenamento jurídico já tem elementos suficientes

Página 481

15 DE JUNHO DE 1988 481

para o resolver. Nessas zonas extremamente delicadas não é evidentemente despida de sentido a circunstância de se vir, apertis verbis, a introduzir um preceito deste tipo.

Em resumo: julgo que a doutrina que aqui se encontra não é, em si, errada. A dúvida é sobre a pertinência de incluir um preceito deste tipo em qualquer lado da Constituição que seja, mas sobretudo nesta sede, aqui.

Pausa.

Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, é evidente que, em qualquer dos casos, a discutir isso, sempre teríamos de rever a sede da inserção de um preceito como este ou, pelo menos, alterar em conformidade a respectiva rubrica. E que não se trata de uma norma relativa à escolha ou ao acesso a uma profissão, mas sim de uma norma relativa ao estatuto, ao modo de exercício, à densidade dos direitos que o exercício de uma profissão implica. É uma questão sistemática, que poderia ser facilmente superável.

O Sr. Deputado José Magalhães disse que o motivo que levou o PCP a propor uma norma como esta foi a aprovação recente do Código de Processo Penal. Isso leva-me a perguntar qual o sentido da expressão "e as disposições legais aplicáveis". Parece-me que se refere a todas as disposições legais. Ou serão apenas as disposições legais aplicáveis em consonância ou a par das regras deontológicas? A minha dúvida é a de saber se a norma constitucional estaria apenas a explicitar que é constitucionalmente tutelado o direito de sigilo profissional de acordo com as regras deontológicas e as disposições legais aplicáveis no sentido de tutela do direito de segredo profissional. Penso que esta interpretação não é correcta. Pelo contrário, creio que se deve sempre interpretar em termos mais gerais e mais amplos, no sentido de se tratar das disposições legais em geral aplicáveis, quer as que tutelam, quer as que limitam, o direito de sigilo.

O Sr. Deputado José Magalhães referiu-se ontem ao sigilo dos membros das confissões religiosas e disse que a primeira formulação do projecto do Código de Processo Penal apontava para a possibilidade de quebra desse sigilo no interesse do processo penal. Não retenho na memória todo o processo legiferante do Código de Processo Penal, mas sei que a matéria foi extremamente discutida na comissão que elaborou o projecto do Código de Processo Penal. A minha convicção era a de que isso não aconteceu, ou seja, de que em todos os textos publicados pela dita comissão o segredo profissional dos membros das confissões religiosas era sempre rodeado de um carácter verdadeiramente tabu, pelo que, em relação ao processo penal, o segredo das confissões religiosas era verdadeiramente inviolável.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, é evidente que a inserção nesta sede de uma norma deste tipo suscita o problema que os Srs. Deputados apontaram. Há, de facto, um alargamento de âmbito, há a inclusão de uma outra dimensão, de um e outro tema, que é conexo, associado à questão do exercício da profissão. Esse é um aspecto relevante do exercício da profissão. A liberdade de escolha tem várias dimensões e vários momentos, que vão desde a obtenção da habilitação respectiva até à virtual chegada ao topo da carreira, mas o momento a que nos estamos a referir é, evidentemente, aquele que se situa durante o exercício, o que não me parece que seja uma questão dramática. Como é evidente, poder-se-á ponderar uma outra sede para inserir este conteúdo. Fizemos uma pesquisa dentro dos artigos que dizem respeito a estas matérias na Constituição e não encontrámos melhor sítio. Em todo o caso, estamos disponíveis para o procurar melhor.

Como os Srs. Deputados tiveram ocasião de sublinhar, a questão mais relevante não é talvez essa, mas sim a de saber que implicações é que poderia ter a consagração de uma cláusula deste tipo. Creio que o alerta em relação à diversidade de situações é objectivo. A questão do sigilo e da independência coloca-se mais em determinadas profissões do que em outras. Coloca-se mesmo em termos distintos dentro de cada uma das profissões a que diga respeito. Trata-se aqui de estabelecer um regime geral que recubra todas estas situações. Isso, quanto a mim, não nos deveria impedir de procurar situar os limites razoáveis para buscar um acréscimo de tutela nesta esfera, porque é disso que se trata. Trata-se de buscar um acréscimo de tutela, uma certa margem de tutela adicional. Qual é a utilidade disso? Será útil ou perturbador? Era essa a questão que o Sr. Presidente suscitava. Creio que não será impedimento, pelo menos dirimente, o facto de se ponderar que as condições de exercício da profissão podem colocar problemas em que a autonomia individual e em que a capacidade de decisão própria sobre certo tipo de coisas que dizem respeito ao exercício da profissão esteja condicionada pelo facto de haver uma qualquer relação de carácter jurídico (qualquer que seja a sua natureza, qualquer que seja o grau de subordinação ou o grau de vinculação por qualquer outro mecanismo que não seja aquilo que estava pressuposto na hipótese originária formulada pelo Sr. Presidente). A articulação entre os poderes de direcção que eventualmente caibam e o estatuto daquele que exerce a profissão pode e deve fazer-se em termos que não considero que sejam prejudicados por esta proclamação. Aliás, esta proclamação, como o Sr. Deputado Costa Andrade sublinhou, é uma formulação aberta, quiçá excessivamente aberta...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Deputado, dá-me licença de que o interrompa?

O Orador: - Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador)... pelo contrário, foi de congratulação. Se alguma formulação viéssemos a aprovar, só poderia ser com esse sentido, e nunca com outro.

O Orador: - Estou de acordo, Sr. Deputado. Aquilo que V. Exa. 5 veio, voluntariamente, sublinhar - e que não é inútil - é que a expressão acaba por ser excessivamente aberta. É evidente que, se exerço a profissão com inteira independência - e este "inteira" é um aditamento retórico - e se tenho direito ao meu sigilo, de acordo com as regras deontológicas que me são impostas, por exemplo, pela associação pública em que estou inserido, e com as disposições legais aplicáveis, a Constituição, na redacção que propomos, não me daria qualquer margem de manobra para sustentar que não são todas as disposições legais, mas que seriam apenas algumas, face ao texto proposto, eu não teria qualquer margem de invocação legítima de uma interpretação constitucional que reduzisse o preceito a um teor que ele não tem. De facto, o preceito não refere o seguinte: "[...] implica o direito de sigilo e independência

Página 482

482 II SÉRIE - NÚMERO 17-RC

profissionais, tal qual seja definido pela legislação exclusivamente atinente ao exercício da profissão." Podia, efectivamente, dize-lo, mas não o faz de propósito, pois, se disséssemos que o sigilo seria regulado "exclusivamente" pela legislação respeitante ao exercício da profissão, estaríamos a proibir a regulamentação de matérias como o segredo profissional para efeitos processuais-penais ou de outras situações em que o direito de segredo pode ser colocado em crise. Isso seria excessivamente fechado.

Esta discussão para mim (e transmitirei isto à minha bancada) tem o relevo de permitir situar não só o mérito da ideia, mas também alguns dos limites dela. Apesar de tudo, o que gostaria de perguntar e de procurar aprofundar é se há, no entendimento de VV. Exas., outra inserção que vos pareça melhor, embora essa seja uma questão que pode ser sempre deixada em benefício de reflexão ulterior. Mais importante do que isto é o saber se em torno do objectivo enriquecer a margem de tutela do sigilo e independência profissionais há algum entendimento que possa permitir-nos encaminhar a reflexão para um terreno útil. Tudo isto sem prejuízo das dúvidas suscitadas pelo Sr. Presidente e sem gerar confusões quanto ao normal exercício de poderes de direcção e de outros que decorram das fontes de direito e de normação correntes. Estamos completamente disponíveis para participar nesse esforço. Não nos parece que uma norma, talvez um pouco mais económica do que esta é que tivesse um sublinhado do sigilo e da independência como valores...

(Em virtude de deficiência técnica, não foi possível registar as palavras finais do orador.)

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, desejo pedir que sobre esta matéria não se registe apenas o silêncio da nossa parte.

Ora, creio que, para além da primeira observação, que é aliás relevante, quanto à inserção sistemática desta matéria, há uma segunda, sobre a qual valeria a pena meditar minimamente. Esta segunda observação foi ate suscitada um pouco pela intervenção do Sr. Deputado José Magalhães.

De facto, o artigo 47.º da Constituição, e como de se encontra hoje construído, consagra dois tipos de liberdades, ou seja: a liberdade de escolha de profissão e a liberdade de acesso à função pública. E, pela sua inserção sistemática, este artigo beneficia de um determinado regime jurídico.

Entretanto, acrescenta-se, com menor relevo, o direito de sigilo e de independência profissionais, mas sobretudo o que há de novo é uma referência expressa a uma terceira liberdade: a liberdade de exercício de profissão. Sempre se poderá entender, à luz do texto actual da Constituição, que a liberdade de escolha postula a liberdade de exercício, mas o que é verdade e que, em termos jurídicos, surge neste artigo da nossa lei fundamental uma nova liberdade fundamental, ou seja, a liberdade de exercício de profissão, a qual, nos termos da proposta do PCP, implica o direito de sigilo e de independência profissionais, mas não só, até porque talvez estes aspectos não sejam os mais relevantes que caracterizam o núcleo essencial de uma liberdade de exercício de profissão dotada do especial regime jurídico que a Constituição confere aos direitos, liberdades e garantias. E, se faço esta afirmação, é porque a construção do preceito do projecto do PCP aponta para que, quer as regras deontológicas, quer as disposições legais aplicáveis, digam respeito ao direito de sigilo e independência profissionais, mas não forçosamente à liberdade de exercício da profissão. Colocando a questão em termos mais claros, perguntaria: quais as consequências que da consagração na Constituição deste preceito adviriam para toda a legislação vigente que estabelece restrições à liberdade de exercício de uma profissão? O que é que isto significa em termos de consequências técnico-jurídicas para as restrições ora já existentes à liberdade de exercício de profissão? Subsistem ou resultam ilegítimas em face deste artigo, que o PCP pretende ver consagrado?

Entretanto, podíamos conjecturar várias situações de zonas de fronteira ou de conflito potencial entre a consagração da liberdade de exercício de profissão como uma liberdade fundamental beneficiando, por isso, do regime jurídico do artigo 18.º, e as restrições concretas e objectivas acolhidas na lei vigente sobre esta mesma matéria. Há, porém, casos de fronteira, impostos por circunstâncias especiais - não direi, naturalmente, que sejam as tão decantadas "relações especiais de poder", mas são situações onde alguns resquícios desse tipo de relações relevantes para o quadro da liberdade de exercício de uma profissão.

Ora, é difícil nesta fase do debate prefigurar desde já toda a floresta de implicações decorrentes desta proposta e, portanto, sobre a matéria. Por ora limitamo-nos a lançar esta reflexão adicional e reservaríamos uma ponderação mais cuidada das implicações decorrentes da eventual consagração, nesta sede, de uma liberdade de exercício de profissão, nos termos em que o faz a proposta do PCP, sem prejuízo de reconhecermos que a aquisição do direito de sigilo, que é também, em tantas circunstâncias, um dever, e do princípio da independência profissional é valor estimável e, consequentemente, susceptível de ter acolhimento em sede constitucional. E isto, quanto mais não seja, até por uma razão de equilíbrio, pois outros valores talvez menos relevantes encontram também acolhimento constitucional.

Contudo, a questão que colocava era sobre as consequências da primeira parte do preceito da consagração da liberdade de exercício de profissão.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, creio que o Sr. Deputado António Vitorino acabou por alargar o âmbito do debate para um campo que é extremamente interessante. E devo dizer que esse campo não foi considerado por nós quando ponderámos a apresentação desta proposta de aditamento de um novo número ao artigo 47.° Porém, depois de ouvir o Sr. Deputado António Vitorino, fico até com alguma dúvida sobre se lerá razão quanto a considerar que um texto como o que agora vem proposto pelo PCP implicaria novas restrições às ora existentes quanto a liberdade de exercício de profissão.

O Sr. António Vitorino (PS): - Desculpe interrompe-lo, Sr. Deputado, mas isso é a prova provada de que não me fiz entender. O que eu disse foi precisamente o contrário. De facto, referi a ilegitimidade de restrições já existentes, vigentes neste momento, à liberdade de exercício de profissão, em virtude de o inciso proposto pelo PCP consagrar a "liberdade de exercício de profissão" nesta sede como um direito, liberdade e garantia, beneficiando, por isso, do regime jurídico do artigo 18.º da Constituição, e, consequentemente, daí resultaria, em última instância, a inconstitucional idade superveniente de todas as especiais situações de limitação da independência do exercício de uma profissão por via desta inovação. Não sei se me fiz agora entender, Sr. Deputado?

Página 483

15 DE JUNHO DE 1988 483

O Sr. José Magalhães (PCP): - V. Exa. já se tinha feito entender. O que aconteceu é que me exprimi mal.

Parece-me que o PS receia que isto implicasse um reforço das restrições já existentes quanto à possibilidade de limitar a liberdade de exercício das profissões. Receia que, além das disposições decorrentes do artigo 18.°, ou seja, a capacidade de conformação legislativa de que o legislador dispõe, viessem a somar-se algumas outras derivadas do facto de se proclamar que a liberdade de exercício implica o direito ao sigilo e à independência profissionais.

O Sr. Presidente: - Se bem percebi o que disse o Sr. Deputado António Vitorino, parece-me que ele se limitou a referir que, se aplicássemos lodo o mecanismo que está previsto para os direitos, liberdades e garantias, designadamente o artigo 18.°, poderemos com este preceito produzir resultados, no campo da legislação já existente, que não estão neste momento a antever em toda a sua extensão e podem, aliás, ser inconvenientes.

Assim, Sr. Deputado José Magalhães, a dúvida que tenho está em saber se a formulação do PCP não leva a grandes riscos nesse capítulo, uma vez que ela e similar a uma outra que o PSD formulou há pouco no sentido de remeter para a legislação ordinária certa matéria, a qual, aliás, foi objecto de críticas com alguma razão de ser, pois entregava de um modo discricionário esta matéria nas mãos do legislador ordinário, embora tal fosse balizado pelas directrizes fundamentais existentes nesta problemática, designadamente as que constam dos artigos 18.° e seguintes. Penso que foi isso que o Sr. Deputado António Vitorino quis dizer.

Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - De facto, Sr. Presidente, são duas questões distintas entre si.

A primeira questão é esta: a liberdade de exercício de profissão não tem neste momento uma sede constitucional própria em termos de direitos, liberdades e garantias. As interpretações ampliativas do significado da liberdade de escolha podem, como corolário, entender que quem tem liberdade de escolha também beneficia, obviamente, de liberdade de exercício. Contudo, sabemos que há legislação avulsa que restringe as condições de exercício de uma profissão e que pode, inclusivamente, limitar essa liberdade de exercício de profissão. Ela existe em circunstâncias limites, mas o certo é que tal se verifica.

Entretanto, quando "promovemos" a liberdade de exercício de profissão ao artigo 47.º, estamos a faze-la beneficiar do regime jurídico de especial protecção e eficácia do artigo 18.º Assim, perguntaria o seguinte: estão, de facto, devidamente ponderadas as consequências que essa "promoção jurídica" terá na subsistência das restrições actualmente vigentes à liberdade de exercício de profissão? Tal como o preceito está construído na proposta do PCP, admite-se que se poderia concluir que a Constituição passaria a não consentir restrições à liberdade do exercício de profissão por via da lei ordinária? Seria absurdo pensar o contrário - reconheço-o -, mas o certo e que na proposta do PCP não está prevista uma remissão para a lei ordinária que lhe confira a regulamentação tia liberdade do exercício de profissão e abra a porta à introdução das restrições que se mostrem necessárias. Alem disso, como com base no artigo 18.v só nos termos previstos na Constituição é que pode haver restrições aos direitos, liberdades e garantias, a proposta do PCP acabaria por ser uma porta totalmente fechada, onde julgo que ninguém pretende que as portas estejam totalmente fechadas. Não sei se me fiz agora entender melhor, Sr. Deputado.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)

O Sr. António Vitorino (PS): - Exacto, Sr. Deputado.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, creio que o Sr. Deputado António Vitorino situou com rigor, e sem margem para equívocos, o campo da interrogação no qual nos devemos realmente mover.

Em primeiro lugar, o que decorre do n.° 1 do artigo 47.c decorre efectivamente dele, independentemente do que se diga no n.º 3 a aditar. Isto é, qualquer formulação contida neste último número não esvazia de conteúdo, não perime, não ultrapassa, nem esmaga, as decorrências do n.º 1. E digo isto por causa do inciso a que o Sr. Deputado Costa Andrade agora se referiu, ou seja, "salvas as restrições legais impostas pelo interesse colectivo ou inerentes à sua própria capacidade quanto ao direito de escolha de profissão". Porém, como se sabe, o conteúdo, as dimensões ou os momentos inseridos no n.° 1 do artigo 47.°, no respeitante à questão da profissão, não se esgotam (ou então só numa interpretação muito redutora é que se esgotam) no momento prodómico, ou seja, o primeiro momento de penetração da profissão.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Deputado José Magalhães, posso até estar de acordo com V. Exa., mas terá de convir que a destrinça no n.º 3 do artigo 47.º ajuda a reforçar uma leitura restritiva no seu n.º 1.

O Orador: - A destrinça introduzida no n.º 3, ao lançar plenamente a luz sobre o momento do exercício da profissão, vem, directa e nuamente, sublinhar a problemática do exercício. E aí é que se coloca a interrogação que os Srs. Deputados vêm formulando com toda a pertinência, que é a seguinte: quais são as consequências do acréscimo da margem de tutela? Creio que ela deve ser respondida.

É que o exercício de profissão já beneficia da protecção própria dos direitos, liberdades e garantias, isto é, podem, evidentemente, introduzir-se restrições ideologicamente definidas quanto à sua admissibilidade, quando se trate de defender o interesse público, como é óbvio. Podem também introduzir-se condicionamentos e restrições desde que sejam necessárias, adequadas e proporcionadas, ou seja, aquilo a que o Estado está vinculado é a não ser excessivo, e não a ser taxista, nem, a título nenhum, a ser anómico. Portanto, é óbvio que o direito de exercício de profissão não se traduz na possibilidade de, vulgar e incondicionadamente, espalhar as sementes do saber e da profissão de qualquer forma, em qualquer sítio e por qualquer maio. E ninguém sustenta, face ao clausulado constitucional, que isso seja possível. Por conseguinte, aplica-se aqui a chapa, o método e o esquema gerais.

O Sr. António Vitorino (PS): - Quanto a isso, estou de acordo, Sr. Deputado. E agora?

O Orador: - E agora? Digo que agora depende de nós, isto é, se em sede de revisão constitucional for aditada uma cláusula que enfatize, sublinhe, precise e adite um quantum

Página 484

484 II SÉRIE - NÚMERO 17-RC

a definir, não ficam então ilegitimadas senão as restrições que queiramos. Está inteiramente na nossa disponibilidade sermos tão precisos na formulação da cláusula que não ilegitimemos aquilo que é razoável, designadamente aquilo que decorra da necessidade de interesse público, que colide, obviamente, com qualquer concepção mais do que autonomista, autarcista e independentista no exercício de profissões. Há, pois, uma diferença entre a garantia da independência no exercício das profissões e um independentismo absurdo, qual fosse a capacidade de vogar profissionalmente imune às leis, ao Estado e à sociedade. Não é isso que se pretende seguramente da nossa parte.

Portanto, creio que a questão é extremamente pertinente. Aliás, não vejo (mas isso será uma questão pura e simplesmente de insuficiente estudo da questão) quais fossem as ilegitimações que decorreriam da nossa fórmula, sobretudo por causa do argumento formulado pelo Sr. Deputado Costa Andrade. De facto, quando o Sr. Deputado chama a atenção para a cláusula aberta constante do segmento final do preceito que propomos e o Sr. Deputado Rui Machete adverte para o facto de que a técnica de legalização ou de remissão para lei ordinária tem efectivas consequências, estamos a abrir aquilo que o Sr. Deputado António Vitorino receava que estivéssemos a fechar. Não estamos a impedir o legislador ordinário de estabelecer limites, mas, pelo contrário, a permitir que os formalize, teleologicamente dirigidos e limitados quanto à produção, necessidade e adequação.

No entanto, é evidente que o Sr. Deputado António Vitorino ficaria muito mais descansado, se acaso o estou a perceber bem, se o preceito, em vez de estar redigido desta forma, referisse qualquer coisa deste tipo: "A liberdade de escolha e exercício de profissão implica, nos termos da lei, o direito de sigilo e independência profissionais específicos de cada profissão ou género de trabalho, de acordo também com as respectivas regras deontológicas." Isto teria a possibilidade ou a virtualidade de remeter para a lei ordinária esta matéria, a qual seria elaborada de acordo com as regras próprias da arte, mas poderia conter cláusulas respeitantes ao exercício da profissão, sujeitando-a a regulamentações, limitações e outros aspectos considerados necessários.

Finalmente, em relação à afirmação produzida pelo Sr. Deputado Rui Machete, segundo o qual a técnica usada pelo PCP teria alguma coisa a ver com aquela que foi utilizada pelo PSD a alguns artigos atrás e verberada por nós, devo dizer que só na mais ilusória das aparências e que se pode julgar tal coisa.

O Sr. Presidente: - É a mesma!

O Orador: - Sr. Deputado, não é a mesma, e isso demonstra-se afoitamente. Aliás, dar-me-á seguramente razão se fizer a comparação rigorosa do que vem proposto: num caso, o PSD procura diminuir o conteúdo constitucional e remeter para a lei a definição normativa; no caso do PCP, trata-se de aditar conteúdos constitucionais e remeter para a lei a regulamentação dos conteúdos aditados. Num caso, o vosso, há uma dolorosa amputação, com remissão para o medico ordinário; no nosso caso, há uma benéfica prótese, com possibilidade de cirurgia adicional, pelo médico ordinário. É muito diferente.

O Sr. Presidente: - V. Exa. tem uma propensão marginal para a cirurgia em que não o acompanho. Mas, em qualquer circunstância, a técnica é exactamente a mesma depois de se ganhar qual o conteúdo constitucional. No entanto, não vale a pena estarmos a discutir isso.

O Orador: - É verdade, Sr. Presidente, que é uma remissão. Quanto a tudo o mais, é diferente.

O Sr. Presidente: - Mas, como era apenas na remissão que a questão se punha...! O Sr. Deputado António Vitorino referiu, de passagem - e penso que não valerá a pena tardarmo-nos muito nesta discussão -, que o problema se poderia pôr, em circunstâncias diferentes, em termos de relações especiais de poder e suponho que não usou, de resto, a expressão "em termos técnicos". Mas não é esse o ponto que interessa. O que interessa é que, efectivamente, esta especificidade da profissão existe - como há pouco referi - em relação a profissões que têm um elevado nível técnico e que, inclusivamente, têm uma entrega ou dependência das pessoas que, de algum modo, são objecto das acções profissionais dos clientes, digamos assim. Estou, por exemplo, a pensar no caso dos médicos, no dos advogados, ou até no caso dos engenheiros, e é por isso mesmo que desde há muito tempo resultou daí uma regulamentação deontológica particular para proteger as pessoas que estão em elevado grau de dependência desses profissionais.

No que respeita, por exemplo, aos funcionários administrativos, evidentemente que existe sempre uma limitação, que é, aliás, patente quando se põe a possibilidade de, legitimamente, se desrespeitarem as ordens dos superiores hierárquicos. No entanto, não existe esta riqueza de problemática e, na verdade, a mesma é transponível. Por isso eu dizia que esse problema das relações especiais de poder foi apenas, usado como imagem de retórica. Na organização interna das empresas põe-se, por exemplo, o mesmo tipo de problema que se põe em relação a um tipo de trabalho burocrático.

Não estamos suficientemente amadurecidos quanto a saber quais são as implicações da adopção de semelhante articulado - e V. Exa. salientou muito bem os aspectos da técnica jurídica e dos direitos fundamentais, mas a simples afirmação constitucional pode ter importância nesse capítulo -, que teria, nesses aspectos organizatórios, uma declaração deste género. E devo dizer que não estou - como disse há pouco e repito - contra a ideia. Obviamente, existem limites deontológicos ao exercício da profissão, havendo uma certa autonomia, que pode ser, ou muito grande, ou mais pequena, mas isso tem menos a ver, apesar de tudo, com o problema de estar integrado numa organização do que com o problema da profissão em si, porque, por exemplo, as regras deontológicas dos médicos, pela circunstância de estes actuarem como funcionários públicos, não são diferentes das que os regem no consultório, e, provavelmente, não há exercício - ou é muitíssimo reduzido -, em termos de profissão liberal, do burocrata puro e simples. Não existe por definição.

Em suma, diria que registamos estas boas intenções do PCP, mas que, a benefício de uma reflexão posterior, temos dúvidas de que se justifique a introdução de um preceito deste tipo na Constituição. Em todo o caso, não se trata de uma exclusão sem apelo e, se uma reflexão posterior vier a encontrar uma forma plausível de formular este preceito sem efeitos nocivos, não queridos, mas eventualmente existentes, reponderaremos a questão.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, há pouco, por um outro afazer, não pude registar na acta o que quer que fosse em relação a uma rectificação ou a uma nota que o Sr. Deputado Costa Andrade teve ocasião de formular quanto a um aspecto suscitado ontem durante o debate das questões relacionadas com o segredo dos ministros das confissões religiosas.

Página 485

15 DE JUNHO DE 1988 485

A versão originária do projecto do Código de Processo Penal, no artigo 135.°, continha um n.° 4 de teor idêntico ao que figurou na versão final. O teor desse n.° 4 é:

O disposto no número anterior não se aplica ao segredo religioso.

O que sucede é que o artigo 182.° do mesmo Código, no seu n.° 1 reza:

As pessoas indicadas nos artigos 130.° a 136.° apresentam à autoridade judiciária competente, quando esta o ordenar, os documentos ou quaisquer objectos que estiverem na sua posse e devam ser apreendidos, salvo se invocarem por escrito segredo profissional ou segredo de Estado. Se a recusa se fundar em segredo profissional, é correspondentemente aplicável o disposto no artigo 185.8, n.ºs 2 e 3. Se a recusa se fundar em segredo de Estado, é correspondentemente aplicável o disposto no artigo 137.°, n.° 2.

No meio disto tudo, o regime do segredo religioso, nestas hipóteses, suscita algumas dúvidas. Por outro lado, suscitam-se dúvidas bastante incómodas e desagradáveis quanto a saber o grau de subsistência das normas da lei sobre liberdade religiosa anterior ao 25 de Abril aplicáveis ao segredo religioso, ou seja, se sim ou não estão afectadas pelas novas normas do Código de Processo Penal e se foram salvaguardadas em parte. Isto é, o segredo religioso não é uma questão fechada, nem uma questão que não esteja sujeita a dúvidas, que desejaríamos que não existissem sequer, e parece-nos que a forma de normação que foi utilizada no Código de Processo Penal é, neste ponto - e pese embora o disposto no n.° 4, que citei -, insuficiente e pode dar origem, na prática, a problemas de aplicação, sobretudo porque aquilo que se diz, primeiro, no n.º 1 e, depois, no n.° 4 do artigo 135.° suscita um problema. No n.º 4 diz-se:

O disposto no número anterior não se aplica ao segredo religioso.

Ora, o número anterior ao n.º 4 é o n.° 3, que reza:

O tribunal imediatamente superior àquele onde o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente ser suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o plenário deste tribunal pode decidir da prestação de testemunho com quebra de segredo profissional quando se verificarem os pressupostos referidos no artigo 185.° do Código Penal. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou em requerimento, e é precisa a audição do organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa.

Porém, no n.º 2, reza-se:

Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se. após estas, concluir pela legitimidade da escusa, ordena ou requer ao tribunal que ordene a prestação do depoimento.

A concatenação entre tudo isto, o artigo 182.° e lei da liberdade religiosa, suscita dúvidas, que creio não terem boa razão de ser. Em todo o caso, é absolutamente fundamental que se proclame, sem margem para nenhuma dúvida, esta coisa tão simples: "O segredo dos ministros das confissões

religiosas é inviolável", porque a expressão "é inviolável" é a que mais condensa, em termos proibitivos, tudo o que é relevante conceber nesta esfera e exclui, em absoluto, quaisquer interpretações nefastas em relação a possibilidades de apreensão, de expressão, etc. Foi por isso que a propusemos e nisso pesou seguramente a memória e o eco do debate que tivemos na 1.ª Comissão de Revisão Constitucional sobre esta matéria.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Costa Andrade, não vamos voltar a discutir?

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Não, Sr. Presidente, mas ainda bem que as coisas se encaixam no seu sítio.

O Sr. Deputado José Magalhães diz hoje -e é uma interpretação possível, embora não seja a minha, mas, em matéria de hermenêutica, todas as possibilidades estão em aberto - que isto suscita algumas dúvidas. Penso, porém, que não suscita dúvidas e que, no que toca ao segredo das confissões religiosas, o Código de Processo Penal estabelece um verdadeiro tabu. Mas para o Sr. Deputado José Magalhães suscita algumas dúvidas.

Ainda assim, isto é um pouco melhor do que aquilo que foi dito ontem e que me parece ser importante, ou seja, que a versão original implicava o sacrifício do segredo religioso da mesma forma que o fazia em relação a outro tipo de sigilo. Ora, o Código de Processo Penal quis sempre rodear esse segredo profissional de uma ideia de tabu e não abre minimamente essa possibilidade, nem nunca abriu, em nenhuma das formulações. O processo legislativo durou três anos e podia ser vencido em qualquer das votações, mas houve sempre a ideia de que isso nunca poderia acontecer, ideia essa que, aliás, se confirma, pois nunca, em nenhuma das fases do processo legislativo, esteve aberta ou sequer sugerida essa possibilidade.

Por conseguinte, relativamente à introdução na Constituição desta proposta, já ontem dissemos o suficiente e talvez não possam ser extraídas todas as conclusões que o Sr. Deputado tira. Veremos! Também a vida é mais do que o que possamos antever desde já, mas, embora o artigo relativo à vida consigne que ela é inviolável, a própria ordem jurídica, como o Sr. Deputado muito bem sabe, tolera formas legítimas de sacrifício da própria vida, formas que são extremamente numerosas nas várias situações de conflito que, em geral, a vida pode criar. Já suscitei este problema várias vezes, mas não posso deixar de o voltar a suscitar. Feliz ou infelizmente, ainda são estas as instituições que temos na Europa e ainda é possível sacrificar o direito à vida - e legitimamente - para salvar um bem patrimonial agredido.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, gostosamente, conduzi a questão aos termos que lhe são próprios. É evidente que o nível de preocupação que para nós decorre da formulação do artigo 135.° quanto ao segredo profissional dos advogados e dos jornalistas, em particular, não é comparável com o que se suscita quanto às confissões religiosas.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Dá-me licença de que o interrompa, Sr. Deputado?

O Orador: - Faça favor, Sr. Deputado.

Página 486

486 II SÉRIE - NÚMERO 17-RC

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Deputado, há aqui sombras do equívoco lançado num colóquio onde um jornalista que nele participava avançou, com carácter um pouco alarmista, a ideia de que o Código de Processo Penal abria a possibilidade de sacrifício ou de quebra do sigilo religioso. Penso que tal equívoco foi lançado errada e infundadamente. Mas, embora tenhamos muito respeito pelos jornalistas, por vezes aliquando dormitat Homerus!

O Sr. Presidente: - Eu registo que as citações latinas não são exclusivo do Dr. Almeida Santos, nem minhas.

O Orador: - Sr. Presidente, dura memórias, sed memória. O Sr. Deputado Costa Andrade acabou de pôr o dedo na ferida. É que, precisamente, houve um famoso colóquio em que o Sr. Deputado Costa Andrade veio a ser envolvido, por boas ou malas artes, e que teve um saldo provisório que, nesse caso então, sou obrigado a evocar e a invocar.

O Sr. Deputado Costa Andrade julgou, por equívoco, que num determinado colóquio do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público se tinha focado a questão do sigilo dos sacerdotes e em Novembro de 1986 produziu um conjunto de declarações a O Jornal em que abordava esta matéria.

O Sr. Presidente: - Tudo com relevância constitucional, é claro...

O Orador: - Tudo com relevância constitucional para o que ora importa porque o equívoco foi estabelecido. Portanto, aqui foi estabelecido, aqui há-de ser desfeito.

Nessas declarações - que podem ser evocadas e que não vale a pena juntar aos autos, mas o interessado, seguramente, poderá fazê-lo -, o Sr. Deputado Costa Andrade imputava esta confusão aos magistrados em causa, que tiveram de se defender, sublinhando o seguinte:

Ao contrário do que se pode deduzir do título da notícia do O Jornal, a questão do sigilo dos sacerdotes não foi discutida nas jornadas, mas, já que Costa Andrade falou neste assunto, imporia anotar que, ao contrário do que ele diz, o n.º 2 do artigo 135.° do projecto permite expressamente que a autoridade judiciária, isto é, o juiz, o juiz de instrução ou o Ministério Público [cf. artigo 1.º, alínea b), do projecto], ordene a prestação do depoimento por parte de ministro de religião ou confissão religiosa que se tenha escusado a depor sobre os factos abrangidos pelo segredo da confissão se essa mesma autoridade judiciária concluir pela ilegitimidade da escusa. O n.º 4 deste artigo 135.a só ressalva a aplicação ao segredo religioso do disposto no número anterior - o n.° 3 -, e não o disposto no n.º 2. Portanto, o projecto quebra mesmo o sigilo dos sacerdotes.

Assim responderam os magistrados.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Mas responderam mal!

O Orador: - Sucede que eu entendo, Sr. Presidente - e com isto concluía - que essa interpretação do n.° 2 e ilegítima. Isto e, entendo que só uma interpretação ad terrorem é que pode levar a que se sustente que o próprio legislador do Código de Processo Penal desejou e consentiu que a quebra do sigilo pudesse ser ordenada nestes lermos. Mas lá que o preceito está mal "escritinho" está! Lá que a redacção está imperfeitamente expressa, está!

Ontem eu argumentava com a memória excessiva deste debate, mas não com a fotografia e com o seu recorte nítido. Agora nítido está e, em todo o caso, entendo que o saldo deste debate deveria ser, não a tentativa de defesa à outrance do Código de Processo Penal, como a "maravilha fatal da nossa penal idade", mas a busca de uma solução que, a nível do articulado constitucional, procure eliminar quaisquer dúvidas. Se isso é a proclamação da inviolabilidade nos lermos que o PCP começou por adiantar ou se é uma fórmula que enriqueça a Constituição nesse ponto, é para nós completamente indiferente. Se o Sr. Deputado Cosia Andrade conseguir cogitar uma fórmula que exprima, de maneira mais fulgurante, essa ideia que partilha e que entende estar bem proclamada no Código de Processo Penal - mas que, pelos vistos, está mal proclamada ou, pelo menos, não tão bem que não origine dúvidas -, lerá toda a nossa colaboração para a obtenção dessa fórmula. O que me parece e que não vale a pena deixar de considerar o espaço de enriqueci mento possível nesta área, porque aí deverá haver consenso absoluto. Pela nossa pane, queríamos manifestar a nossa disponibilidade para esse consenso.

O Sr. Presidente: - Suponho, Sr. Deputado José Magalhães, que já discutimos suficientemente este ponto. Saldámo-nos, aliás, por 50 minutos a mais nesta matéria, o que não é mau, atendendo sobretudo ao que discutimos ontem.

Srs. Deputados, para o artigo 47.º-A existe uma proposta do PSD, que e a transposição do artigo 62.v sobre o direito de propriedade. Penso que, como há diversas propostas em matéria do artigo 62.°, poderemos fazer a discussão desta proposta aquando da discussão desse artigo, pois julgo não se justificar fazer agora uma discussão desgarrada do contexto, em hora, evidentemente, exista aqui uma preocupação sistemática, que, na altura, será devidamente salientada. Por conseguinte, entraríamos agora no capítulo relativo aos direitos, liberdades e garantias de participação política. Para o artigo 48.º não há nenhuma proposta de alteração ou de aditamento e, assim sendo passávamos ao artigo 49.° "Direito de sufrágio".

Para este artigo existe uma proposta de alteração ao n.º 2, apresentada pelo PSD, que consiste no aditamento da expressão "sem prejuízo do voto por correspondência, nos termos da lei", que se destina a introduzir uma alteração, quer a este n.° 2, quer ao artigo 10.° da Constituição, visto que no n.° 1 do artigo 10.º se fala no exercício do poder político do povo através do sufrágio universal igual, directo, secreto e periódico.

Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Presidente, a justificação de tal proposta é, a nosso ver, substancialmente simples. Várias vezes se tem colocado a questão de saber se se deve ou não consagrar, ao nível da legislação ordinária, o voto por correspondência, fundamentalmente porque nos parece ser essa uma decorrência necessária da actualidade. Ao fim e ao cabo, o que se pretende, em termos concretos, é saber se se deve ou não facilitar o exercício do direito de voto por pane do cidadão eleitor. Estamos longe, como é evidente, de todos os sistemas em que outras facilidades se concedem ao eleitor, para as quais certamente caminharemos ao longo do tempo, e a principal questão que se tem colocado é a de saber se o direito de voto por correspondência pode ou não ser conformado com os princípios constitucionais da pessoal idade. Os pronunciamentos em volta desta questão são maioritariamente no sentido favorável, ou seja, no de que o voto por correspondência não

Página 487

15 DE JUNHO DE 1988 487

ofende o princípio da pessoalidade do voto, ao contrário do voto por procuração.

A tradição de referências a esta questão é longa, desde pareceres da Comissão Constitucional até à opinião de vários constitucionalistas portugueses. Assim sendo, cremos que a questão se dirimiria essencialmente com a consagração na Constituição desta forma de voto, com a qual se ultrapassaria a querela relativa à possibilidade de existência do voto por correspondência.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Que eu saiba, até hoje o voto por correspondência nunca foi considerado inconstitucional. Sempre se entendeu que o que é contrário ao voto por correspondência é o voto presencial. Como se sabe, está consagrada uma hipótese de voto presencial na nossa legislação, salvo erro até na Constituição. Dá-me, portanto, a sensação de que se trata de um falso problema. E a consagração do voto por correspondência nestes termos, sobretudo justificada pela fácil ilação do exercício do direito de voto, pode vir a ser entendida no sentido de que o voto por correspondência é desejável como voto normal. Nós entendemos que não é. O voto por correspondência não dá, apesar de tudo, as mesmas garantias de fidedignidade e genuinidade que dá o voto presencial e o voto pessoal. Gostaríamos, portanto, de continuar a encarar o voto por correspondência como um voto tolerado nos casos em que seja eminentemente insubstituível por outro tipo de voto, hipóteses em que, em nosso entender, ele continua a ser possível.

Sinceramente, não vemos necessidade da sua consagração constitucional, embora também não tenhamos uma posição de repúdio em princípio. Porém, consideramos que esta introdução pode vir a ter uma interpretação inconveniente, no sentido de que o voto por correspondência é tão normal e seguro como o voto pessoal. Nunca o tivemos por inconstitucional e em leis feitas por nós, ou com o nosso concurso, estabelecem-se casos de voto por correspondência.

O Sr. Presidente: - No fundo, o Sr. Deputado Almeida Santos pensa, como eu, que o exercício pessoal de voto é, para usar uma expressão latina, o quod plerumque fit...

O Sr. Almeida Santos (PS): - Exacto: o quod plerumque accidit, o que acontece com mais frequência.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, esta é a primeira das várias alterações que o PSD pretende introduzir no quadro constitucional quanto a toda a problemática do direito eleitoral. É, obviamente, possível começar a discuti-las por aqui, é a ordem numérica. Seria, no entanio, muito pouco e seria muito ingénuo discutir a questão desarreigadamente e por forma desinserida do projecto de que faz parte. Isto é, o PSD - como, aliás, tivemos ocasião de assinalar no Plenário - tem, em relação ao nosso direito eleitoral, ideias que implicariam uma profundíssima mutação. Aquilo que o PSD pretende não é um mero conjunto de aperfeiçoamentos ao edifício eleitoral português, tal qual o construímos ao longo destes anos, com a matriz que inequivocamente tem no domínio constitucional. Pretende, sim, a demolição de compartimentos inteiros do edifício eleitoral e a sua substituição por outros, totalmente novos, em nosso entender, muitíssimo piores e enformadores de uma visão de evolução do regime da qual discordamos e a qual, naturalmente, combatemos. Isto é, o PSD propõe a liberalização do voto por correspondência, tal como propõe o "prémio de maioria" nas autarquias; propõe a liberalização do voto por correspondência exactamente como propõe a viciação da criação de círculos eleitorais; propõe o alargamento do voto por correspondência nos mesmos termos exactos em que quer fazer participar em todos os actos eleitorais cidadãos residentes fora do território nacional, em relação aos quais não há liberdade de campanha nem possibilidade de igualdade de oportunidade de candidaturas; e por aí adiante... É tudo isto que o PSD propõe.

Não estamos a fazer uma discussão jurídico-consiitucional num seminário simpático em que um dos oradores resolve discretear sobre as virtudes e deméritos do voto por correspondência, fazendo um rápido rastreio da história desta instituição, da sua evolução, inconvenientes, vantagens e perspectivas no futuro, sobretudo nas sociedades evoluídas, em que a votação se pode fazer por muitos meios. De facto, podemos pensar no veio por telefax, no voto por telex, no voto por meios electrónicos os mais diversificados, no voto por contacto, no voto por computador, no voto no meu computador, na minha casa, directamente para o Ministério da Justiça, directamente do meu leito de doente, etc.... Não é disso que estamos a tratar aqui, não é desse tipo de voto, é de outra coisa!

O Sr. Presidente: - É do voto por correspondência ...

O Orador: - A coisa de que estamos a falar é do voto por correspondência, do tradicional, do clássico voto por correspondência. Em relação a isso, gostaria de observar que a questão tem sido abordada entre nós com muito cuidado, e não por acaso o tem sido. Se conseguirmos evocar, ainda que rapidamente, o debate travado quando se reflectiu sobre esta matéria no quadro da elaboração da Lei Eleitoral para a Assembleia da República, a Lei n.º 14/79, de 16 de Maio, lembrar-nos-emos, seguramente, de que houve a preocupação de não inovar para além dos limites que tinham sido considerados desde a origem do regime democrático. Só o voto presencial garante na plenitude iodos os requisitos de segurança exigíveis, só o voto presencial salvaguarda a autonomia e o sigilo, só o voto directo e presencial impede um conjunto de contrafacções, de viciações e de outros fenómenos patológicos que conduzem à distorção da vontade do eleitorado. É evidente que poderá haver situações em que a necessidade de não privar determinados cidadãos do seu direito de sufrágio legitime o recurso ao voto por correspondência, e, como o Sr. Deputado Almeida Santos teve ocasião de sublinhar, nunca ninguém considerou inconstitucional que, nessas hipóteses limite, fosse salvaguardada a possibilidade de exercício do direito de voto por correspondência. É também evidente que existem casos que podem suscitar dúvidas quanto à interpretação em termos absolutos do voto directo e presencial. Refiro-me, naturalmente, a certos casos em que as pessoas estão impossibilitadas de praticar as operações de voto. No terreno da lei ordinária foram encontradas para estes casos soluções, com cautelas, reforçadas, aliás, pela lei ordinária, nomeadamente pela Lei n.° 14-A/85, de 10 de Julho, que permitem o exercício do direito de voto em casos, designadamente, de cegueira, doença, deficiência física, etc.... Ou seja, é possível encontrar no terreno da lei ordinária soluções que, com todas as cautelas, façam uma articulação entre a garantia dos valores de segurança e de certeza e a garantia do exercício do direito de sufrágio que os cidadãos têm.

Página 488

488 II SÉRIE - NÚMERO 17-RC

A proposta do PSD viria potenciar alguns malefícios que na prática se têm registado. Hoje, nos termos do artigo 79.º, n.º 3, da Lei Eleitoral para a Assembleia da República, "podem votar por correspondência os membros das Forças Armadas e das forças militarizadas que no dia da eleição estejam impedidos de se deslocar à assembleia ou secção de voto por imperativo do exercício das suas funções, bem como os que por força da sua actividade profissional, na data fixada para a eleição se encontrem presumivelmente embarcados". Tão-só. Mas o PSD pretende alargar isto. Mais: pretende liberalizar isto. De resto, o PSD nem esperou pela revisão constitucional para procurar alargar o âmbito da possibilidade de voto por correspondência, visto ter apresentado já à Assembleia da República uma proposta de lei sobre o regime eleitoral para o Parlamento Europeu. Nessa proposta de lei prevê-se, precisamente, que o voto possa ser exercido pelos residentes no estrangeiro, incluindo nos países que estavam excluídos do sufrágio para o Parlamento Europeu, e por correspondência também, noutros casos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - E alguns cá. Há casos de voto por correspondência no território continental para os maquinistas de caminho de ferro, os polícias em serviço, etc.

O Orador: - Sr. Deputado, citei o artigo 79.º, n.º 3, da Lei Eleitoral. Só que aquilo que o PSD pretende é a generalização do voto por correspondência. E eu daria o benefício da dúvida, quiçá com excessiva tolerância, ou melhor, seguramente com excessiva tolerância, não fora o caso de conhecer já - aliás, como qualquer um de nós -, uma vez que já deu entrada na Assembleia da República a proposta de lei que tenho vindo a referir. Pretende-se aí ou a generalização do voto por correspondência, sem garantias nenhumas, ou a proposta está mal escrita. Portanto, este "nos termos da lei" constante do projecto do PSD significa "os termos da lei" para um legislador que tem uma noção da cousa extremamente taxista e propícia a um conjunto de irregularidades que consideramos inteiramente indesejáveis, constituindo, como tal, uma cláusula extremamente perigosa.

De facto, os senhores nem sequer tiveram o cuidado de procurar qualificar a abertura que pretendem. Porque, se dissessem qualquer coisa como "sem prejuízo do voto por correspondência, em condições que assegurem isto, aquilo e aqueloutro, etc., a título excepcional, etc....", teriam salvaguardado que não pretendiam a liberalização, indiscriminada e por grosas, do voto por correspondência. Mas, como aquilo que querem é uma cláusula absoluta, que abra a iodas as formas de exercício do voto por correspondência, por forma a estabelecer uma verdadeira dicotomia: "eleitor, tu podes [abrir chaveta] votar presencialmente ou votar por correspondência", sendo os dois termos iguais. Assim, quebrariam o favor constitucionais que rodeia o voto presencial. Como a palavra "correspondência" é uma palavra polissemica, susceptível de ser interpretada - basta ver o que o Código de Processo Penal sobre esta matéria reza; e é muito interessante ver - como comportando todos os meios de comunicação e de transmissão, incluindo os modernos meios tecnológicos, a cláusula criada é tão complacente que até poderia abranger formas de voto electrónico. Não está excluído. E o Sr. Deputado Carlos Encarnação acena que não está excluído. Mas é péssimo que não esteja, porque o legislador, sobretudo o constitucional, não pode avançar para fórmulas deste tipo, não pode avançar por um caminho desses sem tomar trezentas cautelas, ainda por cima num país que não tem muitos dos controles inerentes à garantia de que o voto seja fidedigno, seguro e certo.

Acresce que na prática portuguesa se somam irregularidades. Isto é, o sistema engenhado no quadro da Lei Eleitoral para a Assembleia da República procurou ser seguro e certo. Designadamente, o sistema de envelopes, meticulosamente concebido e imaginado no artigo 79.°, salvaguarda a possibilidade de viciações. Em todo o caso, o segredo maior do artigo 79.º não é o método sofisticado dos envelopes, mas sim a restrição do universo daqueles que podem exercer o direito de voto por correspondência. Suprimindo-se isto, e sem as adequadas cautelas em relação aos poderes do legislador ordinário, abre-se um campo absolutamente indiscriminado para toda a espécie de evoluções perversas. Pela nossa parte, não temos nenhuma razão para admitir que essas evoluções perversas não se verifiquem. De facto, além do mais, aquilo que, há poucos dias, na l.9 Comissão, o Sr. Ministro da Administração Interna teve ocasião de nos descrever sobre o voto por correspondência dos emigrantes nas eleições para a Assembleia da República e até para o Parlamento Europeu é suficientemente inquietante (v. o relatório publicado no Diário da Assembleia da República, 2.ª série, n.º 74. p. 1401). Se pensarmos no conjunto de devoluções de sobrescritos verificadas, na precariedade que nessas idas e vindas se regista, na possível assimetria entre os destinatários e os votantes; se pensarmos que o sistema de controle instituído tem outras debilidades, tantas que o próprio STAPE, segundo nos foi dito, tem em elaboração um estudo sobre essa matéria (bem gostaríamos de o conhecer, mas, infelizmente, não conhecemos!), não podemos deixar de sentir, inquietação!

Tudo isto ponderado, é com muita apreensão que se pode encarar a cláusula liberalizadora em que o PSD está empenhado.

O Sr. Presidente: - Como disse o Sr. Deputado José Magalhães, isto não é um seminário e por isso mesmo se explicam algumas das intervenções aqui havidas em termos políticos, visto lerem pouco a ver com a matéria da consagração constitucional ou não daquilo que já é admitido como tal.

Gostaria de referir também que o Sr. Deputado Almeida Santos formulou uma observação com a qual estamos inteiramente de acordo, isto é, a de que o voto por correspondência não deve ter valor igual ao do voto pessoal, devendo constituir uma prática excepcional para as situações que efectivamente o justifiquem.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Isso não está dito, o preceito não inculca minimamente isso.

O Sr. Presidente: - Mas poderá inculcar para as situações que o justifiquem.

Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Gostaria de dizer que das intervenções dos Srs. Deputados Almeida Santos e José Magalhães não resulta necessariamente - antes pelo contrário, como agora ficou explícito - que se não deva aceitar uma referencia qualquer à consagração no texto constitucional do voto por correspondência. O único problema a dirimir, relativamente à respectiva redacção, diz respeito ao seu sentido e alcance, porque penso que, na generalidade, como ponto de partida, a posição expressa não é negativa.

Página 489

15 DE JUNHO DE 1988 489

Não posso, porém, deixar de fazer alguns comentários à intervenção do Sr. Deputado José Magalhães. É evidente que já existe na lei ordinária a figura do voto por correspondência (e recordaria que não estamos aqui a tratar da lei ordinária). Todavia, tal direito é exercido em condições péssimas, é exercido em termos tais que não dá real guarida aos interesses a proteger. Refiro-lhe, por exemplo, a questão dos presos e dos doentes...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, os presos não votam.

O Orador: - Mas aí é que está! Entendo que, por exemplo, os presos devem votar. Não há nenhuma restrição que se deva aplicar-lhes nesse sentido.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Pensamos o mesmo.

O Orador: - Justamente, estamos todos de acordo quanto a esse aspecto. Aliás essa proposta já foi apresentada em 1981.

De qualquer modo, mesmo em relação aos cidadãos que estejam em viagem, o exercício do direito de voto por correspondência, nos termos previstos, por exemplo, pela Assembleia da República, de maneira nenhuma tutela esse direito. Há realmente um número substancial de pessoas impedidas de exercer tal direito pelo facto de não haver uma sua consagração explícita.

Não vou entrar na análise do problema à luz da lei ordinária. Gostaria apenas de dizer ao Sr. Deputado José Magalhães que a intervenção que V. Exa. fez, quando referiu a minha predisposição para a aceitação do voto electrónico, não tem cabimento. Quando na altura lhe fiz um sinal, não quis significar que aceitava esse tipo de voto agora. Entendo que num futuro mais ou menos próximo o voto electrónico acabará por ser admissível e praticável. Teremos de nos preocupar com isso apenas nessa altura. Actualmente, deveremos preocupar-nos tão-só com a medida do voto por correspondência nos estritos limites em que pode ser exercido no universo português. Se encontrarmos uma formulação hábil que dê resposta aos seus receios, que também são compartilhados por nós e pelo Sr. Deputado Almeida Santos, conseguiremos consagrar este princípio a nível constitucional, o que me parece sobremaneira importante.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, dado que não há mais pedidos de intervenção acerca desta matéria, iríamos passar à apreciação do artigo 5O.ff, relativo ao "direito de acesso a cargos públicos".

Em relação a este artigo existe uma proposta de aditamento por parte do CDS, com o n.° 3, bem como uma proposta de aditamento da autoria do PCP.

O CDS propõe:

A filiação num partido político não pode constituir fonte de privilégio público ou motivo de indicação para cargos públicos não electivos.

A proposta do PCP diz o seguinte:

No caso de cargos electivos só podem estabelecer-se as inelegibilidades necessárias para garantir a liberdade eleitoral e a isenção e independência do exercício dos cargos.

Dito isto, solicitaria ao PCP que justificasse sumariamente a sua proposta.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Srs. Deputados, o artigo 50.° da Constituição Portuguesa é um artigo incompleto e esta sua característica tem originado algumas dificuldades.

Sabemos todos que o direito de acesso a cargos públicos se insere na rubrica dos direitos, liberdades e garantias, e, portanto, ele só pode sofrer restrições nos casos que sejam expressamente previstos na Constituição, tal como dispõe o respectivo n.° 2 do artigo 18.°

Ora, sucede que as incapacidades eleitorais ditas passivas, ou inelegibilidades, são precisamente uma das possíveis restrições inseridas nesse quadro. A Constituição é extremamente precisa quanto a previsão da possibilidade de restrições legais, isto é, apenas prevê restrições legais específicas em relação à eleição de deputados da Assembleia da República, como sabemos.

Sendo assim, o que se deve procurar saber é qual é a cobertura constitucional a estabelecer para restrições relativas às outras eleições constitucionalmente previstas para órgãos do poder político, ou seja, presidente, assembleias regionais, assembleias municipais, câmaras municipais. Qual é essa cobertura? Sabemos como tem sido extremamente penoso o caminho percorrido pelo legislador ordinário e como tem sido difícil o processo de reflexão sobre esta matéria no Tribunal Constitucional. Onde encontrar a margem de cobertura constitucional para estabelecer restrições? Mais ainda: restrições que se atenham dentro de limites adequados, porque não pode cometer-se isso ao legislador ordinário - péssimo e perigoso seria -, não definindo rigorosamente quais possam ser os critérios que hajam de presidir à instituição desse tipo de limitações.

Esta é uma matéria extremamente sensível, que vem bulir com a própria possibilidade de os cidadãos determinarem o poder político na sua composição, na definição dos seus titulares, na participação directa no exercício do poder político. Evidentemente que o melindroso articular de interesses que neste caso se exige não pode fazer-se sem que a Constituição seja o mais exacta possível, e seguramente não lacunosa, como ela se apresenta hoje.

Sr. Presidente, é isto que nos leva a apresentar a proposta que V. Exa. referiu há pouco. Nela se refere o seguinte:

No caso de cargos electivos só podem estabelecer-se as inelegibilidades necessárias para garantir a liberdade eleitoral e a isenção e a independência do exercício dos cargos.

Face à jurisprudência do Tribunal Constitucional, face ao debate entretanto ocorrido, face às próprias experiências de elaboração legislativa, bem nos parece que estabelecer estes dois critérios é fundamental e bastante.

De facto, frequentemente se tem caminhado para inelegibilidades que não têm o mínimo de fundamento. O Tribunal Constitucional debruçou-se já sobre algumas dessas espécies de inelegibilidades que são totalmente desproporcionadas, desnecessárias, sem credencial nem um mínimo de fundamento. Nada exige que, tal como sucedeu em alguns casos que têm sido considerados, se afastem cidadãos da candidatura a um mandato representativo resultante de sufrágio. Nenhum valor no actual Estado de direito que temos constitucionalmente legitima esse tipo de sacrifício. Sendo o direito de acesso a cargos políticos (incluindo os electivos) um direito ao qual é aplicável o disposto no artigo 17.° e, logo, o regime que proíbe restrição sem autorização constitucional expressa (artigo 18.°, n.° 2); não se vislumbrando no artigo 153.° (referente apenas às eleições para a Assembleia da República) algo que possa qualificar-

Página 490

490 II SÉRIE - NÚMERO 17-RC

-se propriamente como princípio geral de direito eleitoral (que a existir, haveria de constar do artigo 116.° ou dos artigos 48.° e 50.°); sendo certo que mesmo em caso de lacuna e incongruência é vedado hermenculicamcnte fazer leituras extensivas de restrições que têm carácter excepcional e, de resto, carecem, caso a caso, de expressa credencial autorizante; forçoso é concluir que se vem vivendo uma situação anómala, em que o Tribunal Constitucional se tem sentido compelido a colmatar brechas reais, que só aqui, em sede de revisão, podem ser colmatadas.

Sem prejuízo de que o preceito proposto pelo PCP seja enriquecido e que as suas eventuais insuficiências sejam colmatadas, bem nos parece que este seria um contributo francamente bom para resolver um problema institucional grave, que creio que todos os partidos com asento na Assembleia devem conhecer. Este é um dos casos em que o projecto de revisão apresentado pelo PCP é um projecto preocupado em colmatar deficiências na arquitectura constitucional, e, portanto, tem um conteúdo e uma visão institucional e de Estado que me parece que deveriam ser sublinhados.

O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado não está a legitimar interpretações a contrário noutros casos?

O Orador: - Não, Sr. Presidente, apenas estou a sublinhar que há casos em que as propostas visam defender interesses de determinados sectores da sociedade portuguesa, que nos orgulhamos de representar e em relação a cujo futuro estamos particularmente preocupados, isto é, refiro-me aos trabalhadores e a classe operária em particular.

Há também outros casos, como, por exemplo, o que diz respeito ao funcionamento do sistema de fiscalização da constitucionalidade, ou o regime eleitoral, em que o que está em causa e a própria configuração do Estado, a própria genuinidade e democralicidade do regime, e isto evidentemente que e para nós tão importante como o primeiro aspecto.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Apesar da sua exposição, Sr. Deputado José Magalhães, colocar-lhe-ia a seguinte questão concreta: como e que o PCP conjuga a proposta por si apresentada relativamente ao artigo 50.° com o artigo 153.º da Constituição?

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, já que estamos na fase das perguntas, aproveitaria a oportunidade para colocar algumas questões. Quando o PCP e agora V. Exa., na sua explanação, falam nesta necessidade de limitar as inelegibilidades - estou de acordo com elas, porque, no fundo, a capacidade eleitoral passiva, naturalmente, deve ser a mais ampla possível -, julgo que seria interessante, para podermos reflectir de maneira mais concreta, dar alguns exemplos de situações de inelegibilidades que seriam tornadas ilegítimas por esta disposição, as quais neste momento se encontram consagradas na lei ordinária.

Por outro lado, tenho uma dúvida que se traduz no seguinte: não sei se a ideia da isenção e a da independência abrangem um outro aspecto que é importante em matéria de exercício de cargos públicos e que é a garantia de um padrão de comportamento moral. Reconheço que a respectiva formulação pode ser melindrosa, mas o facto pelo qual não se aceita que pessoas que sejam sancionadas com determinadas penas possam ser eleitas deriva de razões ligadas à falta de garantia da observância de padrões e de parâmetros morais que permitam o exercício correcto do cargo.

Portanto, a minha dúvida é esta: reconhecendo as dificuldades de formulação que existem e, sobretudo, que não se pode permitir por esta via uma instrumentalização que acabe por redundar numa diminuição da capacidade eleitoral passiva, gostaria de saber em que termos isso está acautelado na formulação do PCP. Por outras palavras, com esta formulação permite-se que em função da prática de determinados crimes a respectiva sanção se traduza na perda de direitos políticos, ou não?

Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Gostaria de fazer uma pergunta ao Sr. Deputado José Magalhães. Não entendo bem como é que uma restrição a uma inelegibilidade é necessária para garantir a liberdade eleitoral. Liberdade de quem?

O Sr. José Magalhães (PCP): - De todos!

O Sr. Almeida Santos (PS): - Não estou a compreender.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Isso depende do cacique!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Por vezes! Mas eu não quis significar bem o tipo de cacique que o Sr. Deputado Costa Andrade referiu, esse é demasiado lato.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Em que é que o facto de determinado indivíduo ser inelegível restringe a minha liberdade? Quer dizer, não posso escolher um determinado elemento, é isso?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Deputado Almeida Santos, essa talvez seja a hipótese mais simples de resolver ou de responder.

Por exemplo, quando a Lei Eleitoral estabelece no seu artigo 7.° inelegibilidades locais relativamente à Assembleia da República e situa entre elas, nomeadamente, governadores civis, presidentes de câmaras municipais, directores e chefes de repartições de finanças e ministros de qualquer religião ou culto com poderes de jurisdição, está preocupada, não seguramente com a questão da isenção ou da independência, mas sim com o facto de isso poder afectar, por fenómenos que todos conhecemos e que não são subestimáveis, a própria liberdade eleitoral.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, mas isso não são inegebilidades, são incompatibilidades.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não são, Sr. Presidente, pelo menos nos termos da nossa Lei Eleitoral.

O Sr. Presidente: - Mas, nos termos da Constituição, cias são incompatibilidades. Apenas nesse sentido é que são admissíveis, como V. Exa. sabe e como refere o artigo 153.°

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Presidente, o artigo 153.° respeita as condições de elegibilidade.

O Sr. Presidente: - Parece-me que a capacidade eleitoral passiva não pode ser reduzida em função de alguém ser governador civil ou presidente da câmara. O que pode haver

Página 491

15 DE JUNHO DE 1988 491

é uma incompatibilidade, e é isso que o artigo 153.° da Constituição - e, a meu ver, bem - ressalva. Julgo que pretender passar isso da zona das incompatibilidades para a zona de restrições à capacidade eleitoral passiva é um salto que não podemos dar.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, esse salto está dado desde 1975, isto e, a palavra "incompatibilidade" não é utilizada no artigo 153.° no sentido que V. Exa. está a pressupor. Todos sabemos, naturalmente, que uma coisa são inelegibilidades e outra coisa são incompatibilidades. Mas do que se trata no artigo 153.° da Constituição, bem como do que se trata aqui, é de verdadeiras inelegibilidades. Na técnica da nossa Lei Eleitoral as inelegibilidades são de dois tipos: gerais e locais, em função de critérios que tem a ver com o território, com o círculo territorial. As inelegibilidades locais são aquelas que dizem respeito à possibilidade de candidatura nos círculos. Portanto, o Sr. Governador Civil de Guimarães pode candidatar-se em Lisboa, se lhe apetecer, mas, nos termos da nossa Lei Eleitoral, ele não pode candidatar-se em Guimarães. Há que considerar que aqui se trata da Lei Eleitoral e, portanto, de uma lei ordinária, isto e, ela consiste numa determinada consubstanciação, num dado momento histórico, de um conjunto de soluções que, evidentemente, poderão ter outras formulações. Agora a solução que V. Exa. acaba de adiantar e inteiramente inédita (mas, provindo do PSD, corre o risco de ser edita!).

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, qual é que e inteiramente inédita?

O Sr. José Magalhães (PCP): - A solução que o Sr. Presidente adiantou há pouco para distinguir inelegibilidades de incompatibilidades.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, ela não e inteiramente inédita. A lei pode depois, por razões de conveniência, conformar esse tipo como uma inelegibilidade oriunda de uma incompatibilidade, mas isso tem um significado diferente de a inscrever como uma incapacidade eleitoral passiva. Compreende? Não é a mesma coisa.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Compreendo perfeitamente, Sr. Presidente. Discutimos isso durante horas quando elaborámos a lei eleitoral relativa as autarquias locais e quando a alterámos em 1985.

O Sr. Presidente: - Foi apenas isso que quis dizer.

O Sr. José Magalhães (PCP): - O grande problema está em que, provavelmente, há no direito ordinário inelegibilidades a mais onde deveria haver incompalibilidades. Arrisco este juízo. Por outras palavras, algumas daquelas que são consideradas inelegibilidades deveriam ser meras incompalibilidades. Portanto, os cidadãos deveriam poder ter capacidade eleitoral passiva e apenas uma vez eleitos teriam de opinar, isto é, haveriam de ter de escolher o exercício das funções públicas, a continuação do mester que determina a incompatibilidade. Isto não sucede por de mais.

Agora não há dúvida de que o problema se coloca. Nos termos da Lei Eleitoral para a Assembleia da República, e já iremos à questão das autarquias locais, são inelegíveis os que "[...] não residam no território eleitoral, os magistrados judiciais do Ministério Público em efectividade de serviço, os militares e elementos das forças militarizadas pertencentes aos quadros permanentes enquanto prestarem serviço activo, os diplomatas de carreira em efectividade de serviço abrangidos pelos artigos 1.° e 2.° do Decreto-Lei n.° 601-IV74, de 15 de Novembro, salvaguardado o disposto nos artigos 3.° e 4.° do mesmo diploma" (há aqui aspectos que já foram objecto até de caducidade!). São inelegibilidades locais as que referi há pouco e que constam do artigo 7.° da Lei n.° 14/79. O problema situa-se de pleno em relação às autarquias locais - aí é que a definição de inelegibilidade depara com o problema sério que já enunciei: onde está a cobertura constitucional? Porque, folheando a Constituição, não se encontra lugar paralelo para o artigo 153.°, que o Sr. Deputado Carlos Encarnação há pouco citou - não se encontra! É irregular ver nesse artigo um princípio geral! É preciso, portanto, encontrar uma cláusula que permita estabelecer essa cobertura em lermos inequívocos, que, além de inequívocos, hão-de ser precisos e bem burilados, sob pena de abrirmos as portas a que o legislador ordinário introduza limitações, que seriam francamente descabidas e poderiam até ser perigosas, por poderem conduzir a uma espécie de interdição cívica de determinados cidadãos.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, não sei se estará em condições de o fazer neste momento, mas o que eu lhe pedia, para meu esclarecimento, era o seguinte: em função da introdução deste preceito do PCP, entende V. Exa. que há alguns preceitos da lei ordinária que passariam a ser inconstitucionais? Isso ajudaria a perceber qual o alcance exacto.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Creio que, no âmbito do regime eleitoral para as autarquias locais, haveria.

e especificamente tem tratado dessa matéria e, depois do intervalo regimental, poderemos travar esse debate com base em dados mais substanciais e facticamente ricos para que possamos ponderar.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Desculpe, mas não me esclareceu devidamente, ou então estive desatento. Não vejo como é que uma inelegibilidade possa garantir a liberdade eleitoral. De quem?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Dos eleitores, Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Defeito meu, mas continuo a não entender. Uma inelegibilidade garante a minha liberdade eleitoral de votar em quem quiser?

O Sr. José Magalhães (PCP): -A inelegibilidade do outro e a minha liberdade, disso não há dúvida.

O Sr. Almeida Santos (PS): - A inelegibilidade do outro?

O Sr. José Magalhães (PCP): - A inelegibilidade de outrem pode ser a nossa liberdade.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Então não são necessárias. Repare: se dissesse assim: "é preciso garantir a elegibilidade de toda a gente para que o eleitor possa ser livre na sua escolha", eu perceberia. Mas estabelecer-se uma inelegibilidade, ela própria necessária para que eu tenha liberdade de escolha, isso não percebo.

Página 492

492 II SÉRIE - NÚMERO 17-RC

O Sr. José Magalhães (PCP): - Talvez então reconverta a pergunta para procurarmos a margem de percepção colectiva. O que é que o artigo 153.°, consideremos agora, quis estabelecer quando dispôs:

São elegíveis os cidadãos portugueses eleitores, salvas as restrições que a lei eleitoral estabelecer, por virtude de incompatibilidades locais ou de exercício de certos cargos.

Que valores é que se quiseram salvaguardar com a legitimação destas restrições por incompatibilidades locais ou de exercício de certos cargos?

O Sr. Almeida Santos (PS): - Quis restringir ao máximo as excepções à elegibilidade. A norma é que todos os cidadãos eleitores são elegíveis; as excepções têm de se localizar, ou em termos de incompatibilidade local, ou de exercício de certos cargos. Esta norma inconstitucionaliza a possibilidade de a lei penal retirar o direito de elegibilidade a um indivíduo que cometeu o crime mais grave, dado que se não trata de uma incompatibilidade local nem do exercício de certo cargo? Se estivesse em causa a elegibilidade, eu compreenderia. Mas um facto negativo garante a minha

O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas não há nenhuma contradição lógica, embora possa haver aqui a necessidade de separar hipóteses, em termos que parecerão tudo menos claros para jogar com duas arcadas de conceitos. A questão é merecedora de reflexão que tenha em conta a jurisprudência existente, designadamente os pareceres n.ºs 28/79, 34/79, 7/81, 29/78 e 27/82 da Comissão Constitucional e os Acórdãos n.ºs 4/84, 225/85, 226/85, 230/85, 233/85, 238/85, 242/85, 244/85, 245/85, 246/85, 247/85, 248/85, 252/85, 253/85, 256/85, 257/85, 259/85, 261/85, 207/87 e 257/87 do Tribunal Constitucional.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Voltaremos a isto então.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Se me permite, neste momento gostaria de fazer duas observações apenas sobre as liberdades e sobre o complexo jogo de contraposições em que podemos entrar nesta matéria. É evidente que a minha elegibilidade garante a minha liberdade plenamente; e é evidente que a minha liberdade não é apenas uma questão de destino pessoal; pode ser muito relevante para a colectividade como tal, tem um significado não apenas pessoal, pode ter uma projecção colectiva e a soma de todas as liberdades resulta na nossa liberdade colectiva - na democracia, no fundo. Mas daqui não se retira que a minha inelegibilidade, em certas circunstâncias, não possa ser fundamental para garantir a liberdade de todos e que alguns devam ser menos livres para que os demais possam ser mais livres. No fundo, Sr. Deputado Almeida Santos, suscita-se uma questão de interesse público, porque este pode legitimar o sacrifício do interesse pessoal, do interesse cívico de um determinado cidadão (por que é que se impõe aos militares que não sejam candidatos?).

O Sr. Almeida Santos (PS): - Vamos ver um caso concreto: o governador civil fulano de tal não é elegível para que eu, eleitor, possa ler a minha liberdade de votar? Em que é que o facto de ele poder candidatar-se limita a minha liberdade?

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Ele leva os polícias para os comícios!

O Sr. José Magalhães (PCP):-Limita bastante. Creio que isto é a vertente anticaciquista do nosso sistema, Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Mas eu sou livre de votar nele ou não. E isto é a proibição de votar nele. Em que é que uma proibição pode garantir uma liberdade? Não julgue que estou a pôr uma questão de fundo. Não é isso. É a expressão "inelegibilidade necessária para garantir a liberdade" que me desperta resistências. Acho que uma inelegibilidade nunca garante a liberdade de ninguém.

O Sr. Presidente: - Penso que aquilo que o Sr. Deputado Almeida Santos refere é uma sensibilidade, em termos da maneira como a expressão está redigida.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sim, é meramente formal, não tem nada a ver com o fundo.

O Sr. Presidente: - Compreendo isso, embora suponha que o problema não tem uma relevância excessiva, que com certeza não lhe atribui.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Claro que não. Em todo o caso, não temos de fazer a Constituição em termos de não fazer sentido, se eu tenho razão.

O Sr. Presidente: - As questões que, a meu ver, têm um interesse substantivo e valeria a pena considerar - poderemos fazê-lo mais tarde, para termos oportunidade de consultar a lei e de trocarmos umas impressões antes de debater a matéria aqui - dizem respeito, por um lado, a ter uma ideia neste momento do que é que ficaria ilegalizado, se é que alguma coisa fica, em termos de legalização ordinária, por este preceito. Segundo aspecto, importante e em conexão com o primeiro, é o de saber se, por exemplo, em termos de capacidade eleitoral passiva, sanções penais que se traduzam em perda de capacidade eleitoral passiva ficam ou não inconstitucionalizadas por este preceito, isto é, se o tal problema, a que hoje chamei moralidade, mas pode adjectivar como entender, que está ligado a uma certa garantia de haver um elevado estatuto moral no exercício do cargo, fica ou não abrangido, e em que termos, pelas expressões aqui usadas.

Esses parecem-me ser os pontos mais significativos e, além disso, temos de os compatibilizar com os outros preceitos da Constituição sobre a matéria, que são basicamente apenas o artigo 153.° - em matéria de eleição do Presidente da República só há o problema de ser maior de 35 anos, o que não é complicado; quanto aos restantes artigos, suponho que, em matéria de poder local, não existem dificuldades.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Há um terceiro critério, ou um terceiro aspecto, que me parece interessante em termos de reflexão e é o suscitado com muita ênfase pelo Sr. Deputado Almeida Santos, ou seja, o dos critérios - quais podem ser os critérios de limitação a introduzir, uma vez que lhe parece que a questão da liberdade eleitoral suscita dúvidas. Esse aspecto, quanto a mim, ainda pode ser dilucidado, mas, independentemente de se saber se a alusão a liberdade eleitoral como critério definidor dos objectivos, portanto da teleologia que pode presidir à limitação, é adequada e se os critérios da isenção e da independência são suficientemente densos para reger o legislador ordinário nesta matéria. Porque, se não são estes, quais são? É isso que é preciso ver. Isto resulta sublinhado pela reflexão que o Sr. Deputado Almeida Santos encetou quanto ao próprio artigo 153.º

Página 493

15 DE JUNHO DE 1988 493

O Sr. Almeida Santos (PS): - Mas no artigo 153.º não cabe. Não cabe cá a possibilidade de se retirar a capacidade de ser eleito a um indivíduo que foi condenado por um crime numa pena de vinte anos.

O Sr. Presidente: - A questão que ponho é a de saber se se justifica manter-se, e penso que sim.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Há um ponto importante na proposta do PCP, que é a referência à isenção e independência dos cargos. Diz-se "livre exercício de certos cargos", mas não se diz qual a razão de ser, qual o valor que se está a proteger. Ora, o valor é este, é a isenção e a independência do exercício do cargo. É aqui que me parece podermos avançar alguma coisa.

O Sr. Presidente: - Isto é um exemplo, a meu ver, daquelas garantias institucionais que tenho vindo a referir - sem grande êxito de aceitação, aliás, por parte dos restantes membros desta Comissão. Não são exactamente direitos fundamentais, mas estruturas organizatórias de base institucional, que devem existir na realidade da vida e cujo conteúdo essencial tem de ser preservado, em termos paralelos aos direitos fundamentais, para que as coisas funcionem. Em todo o caso, e uma vez que, suponho, não poderemos neste momento avançar muito mais, interrompíamos aqui a discussão.

Em relação ao n.º 3, proposto pelo CDS, penso que é claro e a dúvida que se põe é a de saber se é redundante, isto 6, se a circunstância de os cidadãos deverem ter direito de acesso, em condições de igualdade e liberdade, aos cargos públicos não inclui já que, obviamente, não possa haver...

O Sr. Almeida Santos (PS): - Peço desculpa, mas, em relação ao do CDS, estou fundamentalmente contra e digo porquê: quer constitucionalizar uma suspeição, e não devemos constitucionalizar suspeições. Os partidos já tem ónus que cheguem e suspeições que cheguem para se estar ainda a constitucionalizar mais uma.

O Sr. Presidente: - E nós também somos contra. Por esse mesmo motivo é que já está até abrangido no n.º 1 - e inadmissível, em termos desse número, permitir um comportamento desse tipo.

Então, se estivessem de acordo, deixávamos neste momento o artigo 50.º, para mais tarde e passávamos ao artigo 51.e Neste não há verdadeiramente uma alteração, a não ser de ordem puramente sistemática - quer o PSD, quer a ID, e, neste caso, as propostas são de igual teor, limitam-se a passar o n.º 2 do artigo 299.° para este local, em que, sob a epígrafe "Associações e partidos políticos", se regula já a matéria da liberdade de associação quanto às associações e partidos políticos. No fundo, seria não haver uma regra, sob a epígrafe "Regra especial", no artigo 299.°, que tem, de algum modo, o ónus de estar inserida nas finais e transitórias, e passá-la para uma regra com características permanentes e não meramente marginais que podem dar uma ideia de transitoriedade ou de questão menos importante. Inseri-la como n.º 4 neste artigo 51.º significa uma reafirmação, em qualquer circunstância, da bondade da doutrina já explicitada, constando do artigo 299.°, n.º 2.

Tem a palavra o Sr. Deputado Mário Maciel.

O Sr. Mário Maciel (PSD): - À laia de reflexão, e considerando a bondade da proposta do PSD, gostaria de pôr à reflexão a questão de saber se este n.º 4 obstará a que existam partidos com cariz regionalista, sendo embora partidos nacionais. Nada melhor do que um exemplo: o Partido Democrático do Atlântico (PDA) é um partido nacional, mas alguém duvida de que, pelos objectivos que prossegue, pela sua actividade, até pela localização da sua sede e, sobretudo -este conceito é fundamental -, pela sua representatividade, seja um partido com cariz regionalista? No entanto, já concorreram a eleições gerais em, salvo erro, dois círculos eleitorais - o dos Açores e o de Lisboa, obviamente não se preocupando com o score obtido em Lisboa - e são considerados, e consideram-se, um partido nacional. Acho que devemos pôr a tónica na representatividade do partido, e não apenas nos objectivos que prossegue. Isto porque não é proibido que um partido, mesmo nacional, consagre 99,9 % do seu programa a uma região do País - a decisão de o fazer ou não pertence-lhe. Outro caso é a representatividade do partido no País.

Gostaria, pois, de sujeitar a reflexão a seguinte ideia: os partidos que concorressem a eleições gerais em mais de um círculo eleitoral e não obtivessem 1% dos sufrágios expressos em todo o País, ou seriam declarados extintos pelo Tribunal Constitucional, por não terem representatividade nacional, ou não poderiam apresentar candidaturas nas eleições da mesma natureza imediatamente seguintes.

São estas as ideias que deixo à reflexão dos Srs. Deputados, porque, embora este princípio seja bondoso, não evita que amanhã se crie um partido preocupado exclusivamente com uma região e concorrendo artificialmente em dois ou mais círculos eleitorais.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS):-Esta norma já ultrapassou o crivo da primeira revisão constitucional como norma transitória. Doze anos depois, das duas uma: ou se revoga, e ninguém propõe a sua revogação, ou se considera que não há razão para permanecer como transitória. Este e o nosso ponto de vista no aspecto sistemático e formal. Se já durou doze anos e foi considerada útil na primeira revisão constitucional e se ninguém propõe nesta revisão a sua eliminação, então transforme-se em norma não transitória, em norma regra.

Quanto ao fundo, penso que poderia ser perigosa a autorização ou constitucionalização de partidos regionais. Se um partido quiser formar-se em lermos nacionais e, como disse o Sr. Deputado, centrar a sua actividade predominante ou exclusivamente numa região, isso é com ele. O que não pode é impedir que nas outras regiões vote nele quem com ele simpatizar ou vote contra ele quem não simpatizar. Mas regionalizar o País, também ao nível da organização dos partidos políticos, pode ser um factor contribuinte para o exacerbar de alguns regionalismos. Em meu entender, e nisto estou porventura isolado do meu partido, seria mais um factor contribuinte para pendores regionalizamos, que, tendo embora virtudes, põem porventura em causa valores ligados à unidade do Estado e à autoridade dos órgãos do poder central.

Não trazia paz nenhuma a vida política portuguesa a consagração de partidos regionais.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Creio que tem inteira pertinência a observação feita quanto às implicações da supressão da norma. Isto é, todo o debate feito na Assem-

Página 494

494 II SÉRIE - NÚMERO 17-RC

bleia Constituinte sobre a admissibilidade ou não de partidos regionais, uma reapreciação do tema na primeira revisão constitucional e a pública diferença de opiniões que existe quanto a esta matéria tornariam uma opção desse tipo prenhe de consequências.

Sabemos que há quem, na circunstância política portuguesa, sustente, não apenas a necessidade, mas a imprescindibilidade absoluta da legitimação da criação de partidos regionais, e que há, em torno disso, diatribes apaixonadas, não sendo o PSD um espaço político onde essas diatribes não sejam frequentes. Pelo contrário, é-o, pública e, em muitos casos, assumidamente. Isso não encontrou eco no seu projecto de revisão constitucional, que, pelo contrário opera uma afirmação sublinhativa da proibição constitucional fazendo uma ressistematização revigoradora que tem implicações. Independentemente de esse facto originar no interior deste ou daquele partido um debate aceso sobre se isso e o "sufocar de legítimas aspirações autonomistas" ou ale de rumos para outras estrelas e estrangeiras circunstâncias, a introdução do preceito nesta sede reveste-se de relevância.

Pela nossa pane, não nos contaremos certamente entre aqueles que entendem que deve ser debilitada a natureza nacional dos partidos, pelo menos na sua definição constitucional. A Constituição foi muito prudente e bastante sábia ao sublinhar que, quando se estabelece a proibição da constituição de partidos regionais, se trata de evitar a constituição de partidos que, pela sua designação e pelos seus objectivos programáticos, tenham índole ou âmbito regional. Porque é evidente que longe iríamos se o legislador resolvesse confiar ao poder político, em particular ao executivo, a função de censor, de juiz ou de fiscal da dimensão (ou da representatividade efectiva à escala do território) dos partidos, como agora vinha aventado pelo Sr. Deputado Mário Maciel.

Não está nas mãos do legislador impedir que um partido se transforme num partido lisboeta, circunscrito às muralhas e às dimensões de um círculo eleitoral, ainda que lenha aspirações e projectos para o País inteiro, incluindo a sua projecção exterior nas comunidades portuguesas, etc. Agora autorizar uma medição com efeitos extintivos, como aqui foi preconizado, leria um alcance extremamente perigoso e poderia conduzir a imitações bastante indesejáveis (que alguns não serão capazes de imaginar com rigor, mas que são consideráveis) do nosso panorama político, tal qual o somos capazes de imaginar no quadro criado por aquilo que foi uma revolução libertadora. Quanto à proibição de candidaturas como sanção para a regionalização, indesejada ou desejada, vale a mesma ordem de considerações que acabei de emitir a propósito do primeiro ponto.

Em suma,, a norma constitucional foi considerada "indesejável", "perigosa" e "sufocante" por certos sectores da opinião pública, é particularmente odiada por alguns (que acham que a unidade nacional e um grande aborrecimento e que fórmulas separatistas deveriam ser plenamente encorajada), e considerada uma ameaça à realização de certos projectos políticos. Nós consideramos que é muito bom que assim seja, isto e, que é muito bom que a cláusula seja francamente proibitiva - e é lamentável que haja quem forcejo por a esvaziar ou por a combater.

Em segundo lugar, é evidente que a cláusula constitucional, como tudo o que e constitucional, não tem mãos. Somos nós as mãos dessa cláusula, havendo quem procure furtar-se a ela, designadamente os que através do fórmulas e expedientes jurídicos os mais diversos, procuraram ultrapassar esta proibição criando verdadeiros pequenos partidos pseudonacionais, realmente regionais, ou procurando transformar aquilo que são ramais de partidos nacionais em verdadeiros e próprios partidos regionais, o que é outra questão. Será incomodativa esta cláusula,- provavelmente, quando o Dr. Alberto João Jardim, na primeira esquina da história, ou Dr. Mota Amaral - esse, provavelmente, na terceira esquina da história - desejem conceber fórmulas partidárias "autonômicas" que estejam na fronteira do permitido em relação a esta matéria. Quando alguns mais arreigados "autonomistas" -entendemos nós, deturpadores da autonomia - defendem a necessidade de proclamar a eventual "independência" dos partidos sociais-democratas com existência nas regiões autónomas, estão verdadeiramente a brincar com o fogo. Leia-se a notícia sobre declarações nesse sentido do Sr. Natalino Viveiros publicada em O Jornal, de 4 de Março de 1988...

Quanto a esta cláusula, consideramo-la inultrapassável, deve continuar como tal, e não entendemos que mudá-la fosse pertinente. É realmente interessante que o PSD lenha proposto esta questão, porque não foi seguramente o PSD-Madeira ou o dos Açores que propuseram esta solução; conhecidos os debates existentes nas regiões autónomas sobre tudo isto, a proposta e tudo menos opaca e pode ser apresentada de todas as formas menos com um ar alheio a algumas das polémicas e conflitos que todos conhecemos pelas páginas dos jornais, pelos congressos regionais, pelas declarações públicas de determinados dirigentes regionais que são bastante incontinentes, etc., etc. E a essa luz que esta cláusula deve ser lida, e não seguramente à luz inocente de um leitor do Diário da Assembleia Constituinte. Passou muita água sob as pontes, mas essa água está fotografada e filmada, e cognoscível e é bastante curioso conhecê-la.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Mário Maciel.

O Sr. Mário Maciel (PSD): - Sr. Presidente, á minha opinião e a de que a Comissão não dispensa a opinião do PCP relativamente ao articulado, mas que certamente dispensará as análises estritamente pessoais e subjectivas do Sr. Deputado José Magalhães, pois não somos obrigados a ouvir os comentários políticos do PCP. Não dispensamos a opinião que o Sr. Deputado José Magalhães deu sobre o articulado em apreço, mas complementou-a com observações subjectivas, que não posso aceitar. E penso que o Sr. Presidente tem autoridade suficiente para chamar a atenção para estas questões.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, não percebi se isto foi um protesto, se um pedido de esclarecimento, se um pomo de ordem.

O Sr. Presidente: - Suponho que a qualificação não é muito difícil de fazer. Foi um protesto.

O Orador: - Terá sido um protesto? Sr. Presidente, eu não queria contraprotestar em relação a isto.

O Sr. Presidente: - Então, se V. Exa. não quer contraprotestar, o que é que quer fazer?

O Orador: - Sr. Presidente, não entendo isto como um protesto, mas como um ponto de ordem, que foi aquilo que o Sr. Deputado Mário Maciel disse que era. E tendo sido um ponto do ordem, gostaria de perguntar ao Sr. Deputado,

Página 495

15 DE JUNHO DE 1988 495

em complemento ao ponto de ordem, se consegue pôr um pouco de ordem em algumas das ideias que exprimiu e, designadamente, se consegue permitir-me que perceba que infracção pratiquei: se foi de carácter político geral, se foi de carácter pessoal, se foi uma inverdade, uma crítica política infundamentada, uma aleivosia, um insulto, etc., porque limitei-me a traçar um quadro que, de resto, está registado em acta e que pode ser lido. Não percebo qual e o seu ponto e gostava, francamente, de perceber.

O Sr. Mário Maciel (PSD): - Penso que o Sr. Deputado disse coisas perfeitamente aceitáveis pela Comissão, mas que disse também coisas perfeitamente dispensáveis, por não contribuírem para o enobrecimento dos trabalhos e serem perfeitamente supérfluas no presente estado de coisas. O Sr. Deputado referiu-se ao articulado e manifestou a sua opinião sobre ele, mas teve de introduzir considerandos que, sendo subjectivos, não são partilhados, inclusivamente, pelos outros pari idos e, sobretudo, não interferem na tomada de decisão desta Comissão relativamente a este articulado. É só isso!

O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado José Magalhães ainda quer intervir?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Queria, Sr. Presidente, porque considero que, realmente, o Sr. Deputado Mário Maciel agora concretizou um pensamento que não estava cristalino. Agora está-o e leva-me a produzir as seguintes afirmações: em primeiro lugar, como é que será possível travar o debate sobre a proposta do PSD à margem dos factos que enunciei? Isto e, que postura, não digo de verdadeiros anjos, mas de anjos caídos à Camilo, e que teríamos se aceitássemos travar este debate prescindindo de conhecer tudo aquilo que em torno desta questão tem sido objecto de discussão pública? Mais do que discussão: de polemica pública e polemica da boa, não o sendo pelo nível, mas pela intensidade e pelo vigor. Isto é, basta enunciar este facto: transpor aquilo que hoje consta do n.º 2 do artigo 299.º para o artigo 51.º significa firmar, consolidar e roubar o carácter transitório à proibição de partidos regionais.

O Sr. Presidente: - Transitório ou final.

O Orador: - "Ou final". Isto é inequívoco e significa reforçar e revigorar a proibição constitucional que alguns tinham admitido como transitória ("ou final"...).

Não vale a pena fazer mais do que oferecer o mérito tias actas da Constituinte e basta dizer isto para se tornar claro que há, seguramente, no panorama político português quem veja nisto o fechar definitivo - tanto quanto as coisas são definitivas humana e constitucionalmente - de uma porta. Isto não e subjectivo. É objectivo tanto quanto somos humanos e, logo, objectivos com uma dimensão pessoal.

Em segundo lugar, e isto dispensável ou supérfluo? Creio que é absolutamente indispensável. É desagradável e e, admito ate, doloroso. Para nós e extremamente incómodo termos de fazer uma discussão deste tipo, evocando factos que são lamentáveis, mas essa incomodidade deve ser assumida politicamente e é uma necessidade política. Isto é: quando vou à Assembleia Regional da Madeira e oiço uma intervenção de um deputado que é chefe de bancada - e não é um indivíduo qualquer "chelipado" e que aparece a latere a dizer três coisas numa festa ou num jantar -, dizendo que o continente "oprime" e "coloniza a nossa terra", estando presentes o Chefe de Estado, o Presidente da Assembleia da República e a mais alta hierarquia, e quando, no quadro desse partido e dessa região autónoma, são defendidas lá, pelo partido maioritário, concepções que se traduzem, não numa regionalização qiia tale, mas na quase assunção de um "destino nacional", naturalmente circunscrito à região, isto e, obviamente, um caldo de cultura separatista e é evidente que a sua evolução e travada constitucionalmente pelo revigoramento das cláusulas que proíbem partidos regionais.

Mais: o Sr. Deputado sabe muito bem que, no Congresso do PSD-Açores, foi colocada a questão da eventual necessidade da independentização do PSD no caso de o Prof. Cavaco Silva evoluir para um determinado rumo. E o que lhe pergunto é se poderemos fazer toda esta discussão considerando "prescindíveis", "supérfluas", "dispensáveis" e "subjectivas" estas afirmações e se a nossa função e de, com um ar de técnico-jurídico-tabeliónico, agarrarmos no artigo 51.°, dizermos: "É proibido criar partidos regionais" e passarmos adiante.

Pela nossa pane, emendemos que não.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Mário Maciel.

O Sr. Mário Maciel (PSD): - Sr. Presidente, eu não queria eternizar esta discussão mas, obviamente, reajo àquilo que a minha consciência sente.

O Sr. Presidente: - Talvez nos possamos limitar a uma reacção para cada lado para podermos continuar.

O Sr. Mário Maciel (PSD): - Eu limitei-me a perguntar, quando expus a minha opinião, se e legítimo que um partido como o UDA/PDA, que tem sede nos Açores, mas que é um partido nacional, concorra em dois círculos eleitorais - por exemplo, os dos Açores e de Lisboa -, lenha 40 000 votos nos Açores e um voto em Lisboa, e seja considerado um partido nacional. Foi essa a opinião que deixei expressa e que é perfeitamente possível face à Constituição, pois tal solução não é proibitiva. Por isso mesmo, achei que seria melhor critério o da representatividade do partido do que, propriamente, esse artificialismo de concorrer em dois círculos eleitorais. Daí a opinião que manifestei.

Depois, o Sr. Deputado José Magalhães expendeu um conjunto de considerações subjectivas e ultrapartidárias completamente extravasantes do âmbito desta Comissão, entrando pelo PSD dentro com um conhecimento, aliás, atroz. Já que o Sr. Deputado conhece os trabalhos do Congresso do PSD-Açores, até melhor do que eu - porque eu desconhecia essa opinião -, permita-me que lhe diga que noutro dia, para alegria dos militantes do PCP, apareceu pela primeira vez numa conferência de imprensa a bandeira da Região Autónoma dos Açores. Foi esse um dia de alegria para os militantes do PCP, volvidos doze anos sobre a constitucionalização da autonomia, pois pela primeira vez o PCP deu uma conferência de imprensa simultaneamente com a Bandeira Nacional e a bandeira da Região Autónoma, e o seu líder regional fez gáudio em exaltar essa ocasião. Ora, essa bandeira foi rejeitada e contra ela votou o PCP na Assembleia Regional dos Açores.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, esta troca de impressões suscita-me as seguintes observações: e evidente que e extremamente difícil existir um critério rígido sobre aquilo que é pertinente em matéria de revisão constitucional e aquilo que o não é. A prática seguida pelos diversos inter-

Página 496

496 II SÉRIE - NÚMERO 17-RC

venientes revela, de resto, que há quem tenha critérios bastante estritos e quem tenha critérios amplialivos e até taxistas, mas, sob pena de nos arriscarmos a passar a discutir longamente se as decisões da Mesa nesta matéria sito correctas e pertinentes ou não, tenho, até agora - e não vejo, por enquanto, motivos para alterar esse critério -, mantido uma grande abertura e não introduzi nenhuma limitação, a não ser uma tentativa de chamar a atenção para as necessidades de tempo e para evitarmos polemizar, em termos políticos desproprocionados, os nossos debates que estão centrados sobre a revisão constitucional e não sobre matérias de política quotidiana ou geral. Esses meus apelos não têm tido, de resto, grande êxito - diga-se de passagem -, mas lá vou insistindo e admito que, ao fim de algum tempo, se consigam obter resultados um pouco mais significativos.

Gostaria de fazer algumas considerações, no que diz respeito a este n.º 4 e às considerações iniciais do Sr. Deputado Mário Maciel, que me parecem interessantes, valendo a pena serem ponderadas - embora eu não subscreva ser prudente introduzi-las na Constituição -, porque enriquecem, naturalmente, o debate.

Mas o Sr. Deputado Rui Gomes da Silva queria primeiro fazer uma pergunta?

O Sr. Rui Comes da Silva (PSD): - Sr. Presidente, o que eu queria fazer era uma resposta a um protesto.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas pode fazer uma eu rui intervenção.

O Sr. Rui Comes da Silva (PSD): - Então, inscrever-me-ia para uma curta intervenção.

O Sr. Presidente: - Quer dizer que V. Exa. considera o assunto suficientemente importante para lazer uma curta intervenção?

O Sr. Rui Comes da Silva (PSD): - Sr. Presidente, terei certamente oportunidade, posteriormente...

O Sr. Presidente: - Certamente o Sr. Deputado José Magalhães dará azo a outros pedidos de intervenção de V. Exa. noutros momentos...

O Sr. Rui Gomes da Silva (PSD): - Quanto mais não seja no artigo 299.°

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Considero positiva a interdição de partidos de âmbito regional. E considero-a positiva porque a democracia tem como limite a unidade do Estado.

Não e, todavia, esse o único argumento. Interrogo-me, por exemplo, sobre a conveniência de acrescentar a proibição de partidos não já regionais mas locais.

O Sr. Presidente: - Quem proíbe o mais não proíbe o menos!...

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Pode considerar-se, mas não é certo. Não sei, por exemplo, se a Constituição proíbe a formação do partido da freguesia de Benfica. Pela minha parte, entendo que ele não deveria ser permitido. Embora não sejam invocáveis razões de unidade nacional.

Entretanto, tinha elaborado uma proposta de alteração relativa ao n.° 3 do artigo 51.º, mas este ponto fica para discussão ulterior.

O Sr. Presidente: - Gostaria de dar este debate por encerrado. Mas como o Sr. Deputado José Magalhães pretende ainda intervir, bem como eu próprio, vamos prossegui-lo por mais algum tempo.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, são brevíssimas as observações que tenho a fazer nesta sede.

Devo dizer que os objectivos que presidiram à estatuição desta norma não estão perimidos. O objectivo de preservação da unidade do Estado também por este meio não basta, mas igualmente por esta via é um fim justo a atingir. Há, aliás, razões na nossa vida política que reforçam a justeza dessa finalidade e este debate é a prova disso.

Em relação às observações que foram feitas por parte de alguma bancada do PSD, e concretamente pelo Sr. Deputado Mário Maciel, suscitam-me as seguintes considerações:

Um partido "nacional" com 100 votos no continente e com o mesmo número deles nas regiões é um fiasco completo no País e nas regiões, ou seja, é um fiasco em geral. Entretanto, um partido nacional com a maioria absoluta numa dada região e uma vocação mexicanizante é sem dúvida um fiasco democrático e um risco para a unidade nacional. E se por alguma razão se gerasse um fenómeno desse tipo teríamos criada na vida política portuguesa uma dificuldade muito substancial. Lembro até a VV. Exas., uma vez que o Sr. Deputado Mário Maciel falou de bandeiras, o episódio triste que ficou com o nome de "guerra de bandeiras", em que uma inconsiderada visão dos problemas em questão, uma tentativa de desvio sectário de um problema secundário transformado em principal, uma ofensiva cega e bastante oportunista contra representantes da soberania e uma geral falta de sensatez levou a que aquilo que poderia ser um aspecto ultrapassado por consenso rápido fosse tratado como um equívoco e revelasse raízes, algumas das quais bastante podres, que não estão extirpadas e que se manifestam ainda hoje em ataques virulentos a soberania, em termos que podem originar dificuldades muito graves e uma ai ilude negativa em relação às autonomias, que aliás deveriam ser um valor susceptível de reunir o mais largo consenso nacional.

O facto de o PCP ler usado num acto público a bandeira da Região Autónoma dos Açores e um acto normal, positivo e desejável na vida política regional, que não tem nenhuma novidade. Aliás, discordámos da criação da bandeira nos termos, no quadro e com as ideias que rodearam. Devo igualmente lembrar, Srs. Deputados, que houve na Assembleia Regional da Madeira um apelo a que fosse "queimada" (sic) a Bandeira Nacional aquando de um dos últimos debates sobre a problemática que envolvia as regiões autónomas. Portanto, a questão das bandeiras é, repito, uma questão respeitável. Pela nossa parte, respeitamos, naturalmente, a bandeira regional e não a confundimos com a nacional.

Quanto à nossa posição sobre a relação entre as duas bandeiras, todo o nosso contributo para o debate da disposição legal pertinente dos Estatutos da Região Autónoma dos Açores é o testemunho de uma posição de coerência e de equilíbrio na articulação entre dois valores que devem ser equilibrados para serem constitucionais.

Página 497

15 DE JUNHO DE 1988 497

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, gostaria apenas de dizer que penso que esta proposta de alteração não tem um significado político particularmente relevante, no sentido de que não pretendemos com isto excluir que haja um debate vivo acerca de alguns aspectos de autonomia.

Há, aliás, pessoas que tem posições que consideramos não convenientes e que podem colocar em causa a unidade do Estado, mas entendemos que em democracia e dentro de determinados limites é perfeitamente aceitável proceder a uma discussão pública sobre a matéria. O que já não nos parece, porém, conveniente é permitir a institucionalização, em termos de partidos políticos, de uma corrente que vise a excessiva compartimentação política do Estado ou ate a secessão. A democracia não pode preconizar a autodestruição do Estado.

Devo, aliás, dizer que nessa matéria, ao contrário do que foi aqui referido pelo Sr. Deputado José Magalhães, este preceito não foi objecto no seio do PSD de nenhum comentário negativo por parte de nenhuma secção do partido, seja no continente, nos Açores ou na Madeira, quando foi discutido o nosso projecto de lei de revisão constitucional. Isto e o sinal de que se entendeu - e bem - que esta matéria é hoje pacífica no sentido constitucional que foi consignado no seio do PSD e de que, tal como nas mesmas águas em que navegou o Sr. Deputado Almeida Santos, não nos parece justificar-se um longo debate nesta matéria. O que seria, porém, grave é que houvesse uma supressão deste preceito porque isso poderia significar uma atitude completamente diferente. E é mais por essa razão, e por ter sentido do ponto de vista sistemático mante-la numa das disposições finais e transitórias, que propusemos a sua alteração para este local. Não houve, pois, outro propósito que não fosse este.

No respeitante ao Sr. Deputado Mário Maciel, devo dizer a V. Exa. que compreendo muito bem as razões que invocou acerca de partidos políticos que não obtêm um mínimo de resultados eleitorais. Aliás, essa regra existe em alguns países. Como V. Exa. sabe, há a regra dos 5% na República Federal da Alemanha, mas parece-me ainda pouco prudente na fase actual da democracia portuguesa e limitativo da inovação em matéria partidária estar a restringir e até a eliminar ou proibir os partidos que não obtenham um certo nível de resultados.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Desculpe interrompê-lo, Sr. Presidente, mas acontece que há uma regra a referir isso ao contrário na Constituição.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, parece-me que isso tem alguns problemas na dinâmica do funcionamento do sistema político que poderemos ponderar e são susceptíveis de termos opiniões diversas sobre isso. Julgo, no entanto, que não e prudente desde já pensarmos em apresentar propostas de alteração desse tipo ao nível constitucional. Aliás, sob o ponto de vista puramente pessoal, não perfilho a bondade dessa solução.

Além disso, salientar-lhe-ia que compreendo também as observações que produziu acerca de certas formulações partidárias que são fraudes, de algum modo, a esta disposição constitucional. Porém, penso que esta disposição constitucional vale o que vale, tem um determinado sentido e protege certos valores. Não devemos lambem exagerar em termos do intervencionismo ao nível constitucional ou de lhe atribuir um valor excessivo quanto a conformação da vida real e concreta. Por isso, penso que neste momento a solução mais correcta e prudente, ou seja, aquela que não cria crispações num domínio que tem revelado algum

melindre e provocado agitação e disputas, sobretudo em zonas que não estão organizadas partidariamente, é a de manter a solução que já vem desde a redacção primitiva da Constituição e não irmos para formulações que podem causar polémicas. Esta não parece ser realmente a melhor maneira de se conseguir nesta zona a pacificação que se deseja.

Trata-se, obviamente, de uma opção política com as suas vantagens e, eventualmente, com os seus inconvenientes, mas neste caso julgo que as primeiras sobrelevam largamente os segundos que possam ser porventura nela descortinados.

Portanto, iríamos agora suspender os debates e recomeçaríamos às 15 horas e 30 minutos com o retorno ao debate sobre o artigo 50.º

Srs. Deputados, está suspensa a reunião.

Eram 13 horas e 15 minutos.

Srs. Deputados, está reaberta a reunião.

Eram 15 horas e 50 minutos.

Srs. Deputados, vamos, como ficou acordado, voltar à discussão sobre o artigo 50.°

Vozes.

O Sr. Presidente - O Sr. Deputado José Magalhães solicita-me que passemos desde já à análise do artigo 52.° e depois voltemos oportunamente ao artigo 50.º Vamos, então, proceder desse modo.

Tem a palavra o Sr. Deputado Licínio Moreira.

O Sr. Licínio Moreira (PSD): - Sr. Presidente, acontece que V. Exa. me incumbiu de coordenar a subcomissão que há-de receber os pedidos de audiência.

Temos, de facto, o pedido de audiência da FENCAP (Federação Nacional das Cooperativas Agrícolas de Produção), mas tal pedido vem mal dirigido, porque o que essa entidade pretende é dar a conhecer-nos a sua posição sobre o 2.° Encontro Extraordinário da Reforma Agrária que teve lugar em Alcácer do Sal, com a presença de 1120 delegados das UCPs. Isto não tem nada a ver com a revisão constitucional, pelo que o aludido pedido deve ter sido mal endereçado.

O Sr. Presidente: - Está bem, Sr. Deputado, registamos, então, esse facto.

O Sr. Licínio Moreira (PSD): - Há mais dois pedidos, a saber: um do Sr. Júlio da Silva e Sousa, cuja audiência já marquei para o dia 19, e outro do Sr. José Vitorino, audiência solicitada em nome do Movimento para o Desenvolvimento da Região do Algarve, marcada para o dia 16.

O Sr. Presidente: - Vamos, então, passar a análise do artigo 52.°, cuja epígrafe, como VV. Exas. sabem, tem o seguinte teor: "Direito de petição e acção popular."

De lacto, foram apresentados projectos de lei, que contêm propostas de aditamento e de alteração, por parte do PCP, do PS, da ID e do PEV.

Penso que poderíamos começar por discutir a questão relativa ao direito de petição e, depois, analisaríamos os problemas das alterações ou dos aditamentos em maioria de acção popular, visto que a maior parte das propostas são relativas ao direito de petição. Existe, todavia, uma pro-

Página 498

498 II SÉRIE - NÚMERO 17-RC

posta, da autoria do PCP, que também respeita ao direito de acção popular. Ela propõe a passagem do actual n.º 2 a n.° 4, com a alteração do respectivo texto.

No respeitante às propostas de aditamento dos restantes partidos que citei, elas andam à volta de duas questões fundamentais: a primeira refere-se ao direito dos cidadãos de serem informados acerca do resultado das suas petições e a segunda e relativa à disciplina processual que deve ser subsequente à apresentação do pedido de petição, designadamente no respeitante aos casos em que essa matéria deveria ser discutida no Plenário da Assembleia da República.

Portanto, iríamos começar por discutir, se VV. Exas. estivessem de acordo, apenas o direito de petição, incluído no actual n° 1 do artigo 52.º, para, em fase ulterior, passarmos à questão da acção popular.

Neste caso, pediria ao PCP que sumariamente explicitasse a motivação da sua proposta, que envolve os n.ºs 1 e 2, deixando em aberto, e por ora o n.º 3, respeitante ao direito de acção popular.

Tem então a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Trata-se, quanto às propostas apresentadas pelo PCP, de transpor para a Constituição aquilo que no caso de um órgão de soberania, a Assembleia da República, se encontra assegurado pelo respectivo Regimento, ainda que, em efectivação prática das suas normas, padeça de vários vícios que iodos seguramente conhecemos.

No entanto, a disposição que propomos que seja consagrada tem um âmbito bastante mais vasto. Ela respeita a todas as petições apresentadas a quaisquer órgãos de soberania e autoridades. Daí a sua vantagem em relação ao adquirido, não se conhecendo que estejam regulamentadas, em termos similares àqueles que são aplicáveis à Assembleia da República, outras figuras e casos de direito de petição perante outros órgãos de soberania e autoridades.

Creio mesmo que é um dos aspectos em que, no respeitante às autoridades, o nosso direito e mais lacunoso e mais débil. O futuro Código de Processo Administrativo Gracioso (qualquer que seja a sua designação) poderá vir a consignar normas que nesta matéria colmatem as lacunas existentes. Não é esse, todavia, o quadro em que neste momento nos movemos e, naturalmente, a contribuição que podemos dar no plano constitucional para o impulso desses movimentos não é despicienda. Além disso, a natureza própria desta disposição é a dos direitos, liberdades e garantias, com unias as respectivas implicações.

A segunda proposta de aditamento, da autoria do PCP, diz respeito a um caso específico de direito de petição: aquele que é exercido perante a Assembleia da República, privilegiando-se, dentro desse universo, o subcaso das petições colectivas. Sabemos, nos termos do Regimento, face aos seus artigos 244.º e seguintes, que há determinados requisitos para apresentação de petições; que nos termos do artigo 249.° podem ser publicadas na íntegra aquelas que são assinadas por mais de dois mil cidadãos, bem como as outras que o Presidente ou as comissões emendam dever merecer esse impacte e essa divulgação; que os relatórios das comissões parlamentares sobre petições devem ser publicados quando assim seja entendido pelas respectivas comissões; que no quadro da primeira revisão do Regimento foram adoptadas cenas medidas de aperfeiçoamento do exercício do direito de petição e que na revisão em curso algumas foram ensejadas, embora tenham sido objecto de rejeição sistemática por pane do PSD.

Entendemos, assim, que as providências que podem ser aprovadas no âmbito da revisão constitucional não são de subestimar. A proposta de aditamento de um novo n.° 3 ao artigo 52.°, que ora apresentamos, e razoavelmente modesta, se me e permitida a expressão, porque nos limitamos a referir que a lei fixe os casos em que as petições colectivas dirigidas à Assembleia da República devam ser apreciadas pelo Plenário, com o que obrigaremos o legislador ordinário a alterar o quadro existente, mas concedemos-lhe uma ampla margem de escolha na definição das modalidades através das quais os cidadãos poderiam ler acesso ao próprio Plenário, o que e, sem dúvida, uma componente positiva que não podemos assimilar sem mais ao direito de iniciativa legislativa popular, como é óbvio. É, porém, uma forma de entrosamento entre a democracia representativa e certas formas de intervenção directa dos cidadãos na própria marcha dos trabalhos da Assembleia da República, designadamente quanto à agenda do Plenário.

Parece-me que é importante que esse acesso seja directo, como é propiciado nesta nossa proposta, ainda que o legislador ordinário possa lixar determinados requisitos que assegurem uma prévia representatividade ou um requisito de representatividade para que o Plenário da Assembleia da República possa ser ocupado com matérias da iniciativa dos cidadãos. Repito: não se ira ia de uma iniciativa legislativa popular, mas seguramente de uma iniciativa popular - coisa que espero que não arrepie ninguém, porque e uma figura perfeitamente comportável pela arquitectura do nosso sistema.

Estando, como está, na mão do legislador ordinário burilar ou modelar o instituto agora criado, ou cuja criação se propõe, em lermos sensatos e razoáveis, não me parece que haja razão para que a proposta de aditamento em causa não seja objecto de uma geral consideração como positiva. Eis, Sr. Presidente, sucintamente aquilo que se me oferece dizer para fundamentar as propostas apresentadas pelo PCP.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, esta proposta de aditamento que o PS apresenta para o n.º 2 do artigo 52.° da Constituição é manifestamente uma proposta reincidente, na medida em que já a tínhamos leito na primeira revisão constitucional, mas, então, sem sucesso. Não é por teimosia, mas sim por crença que reeditamos a proposta desta feita. Fazêmo-lo porque ela se insere numa das preocupações que presidiu à elaboração do projecto de revisão constitucional do Partido Socialista, no sentido de ampliar as fornias de expressão da denominada democracia participativa, e porque entendemos que ela abre um espaço relevante de afirmação do sentimento da população face aos órgãos de soberania e às autoridades do Estado. Na realidade, o sistema constitucional português não consagra, como o fazem outros regimes democráticos, nenhum mecanismo de iniciativa legislativa popular. O alargamento do direito de petição, tal como ele vem referido na proposta do Partido Socialista, não é uma forma de consagrar sub-repticiamente um direito de iniciativa legislativa popular, mas e uma possibilidade de sensibilizar os órgãos de soberania, designadamente a Assembleia da República, para as matérias que um conjunto significativo de cidadãos reputem como relevantes e que devem merecer a atenção do Parlamento.

Nesse sentido, a lógica da nossa proposta, que e referente a petições colectivas, vai no sentido de que a lei possa regular as condições em que uma petição colectiva, dotada

Página 499

15 DE JUNHO DE 1988 499

de um mínimo de representatividade, possa ser endereçada à Assembleia da República. Uma vez apreciada pela comissão especializada e por ela devidamente instruída, lerá de ser, obrigatoriamente, agendada para Plenário da Assembleia da República. Não se trata de uma forma de violentação do direito que ao Parlamento assiste de lixar as próprias agendas. Trata-se, sim, de reconhecer que, quando uma petição colectiva, dotada de uma representatividade significativa, qual seja a que a lei vier a definir, exprimir por si só a candência de um determinado problema junto da opinião pública, o Parlamento, por comodismo, por omissão, por interesses partidários mesquinhos ou egoístas, não deve furtar-se a abordar a sua temática e a debatê-la. Nada impede, em tese teórica, que, anexa a uma petição dessa natureza, possa, por exemplo, ser trazido ao conhecimento do Parlamento um diploma legislativo, mas a verdade e que o nosso entendimento é o de que só tem cabimento para discussão obrigatória no Plenário da Assembleia da República a temática sobre a qual a petição versa e não qualquer texto articulado de natureza legislativa.

Portanto, trata-se, no fundo, de dar voz à sociedade civil, de dar voz aos valores de um moderno Estado de direito democrático, de um Estado politicamente liberal, de tornar mais biunívoco o relacionamento do Parlamento com o conjunto dos cidadãos, consagrando-se assim a possibilidade de um significativo movimento de opinião suscitar o debate de questões relevantes, desde que sejam preenchidos os requisitos de representatividade mínimos que a própria lei ordinária venha a consagrar.

É essa a lógica da proposta do Partido Socialista.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, as duas propostas apresentadas, quer a do PCP quer a do PS, referem-se a essa apreciação pelo Plenário. O mesmo não sucede com as propostas apresentadas pela ID e pelo Partido Os Verdes.

Temos, neste momento, um direito de petição consignado no n.º 1 do artigo 52.º que refere que os cidadãos têm o direito de apresentar petições a iodos os órgãos de soberania. É duvidoso que se justifique a inclusão dos tribunais neste sujeito passivo do direito de petição. No entanto, também não vejo que se justifique, porventura, uma limitação, visto que, quando se faz a sua enunciação, os tribunais são, habitualmente, incluídos nos órgãos de soberania, mas depois, em lermos funcionais, não o são. Portanto, não e um ponto muito relevante. Curiosamente, este n.º 1 não fala na defesa dos interesses legítimos dos cidadãos, mas, sim, no interesse geral. Porventura, seria útil completar isso com o acrescentamento desse tipo de posições subjectivas. Creio que não há razão para que um mecanismo jurídico-processual que se destine a tutelar uma tão vasta gama de interesse exclua essas posições subjectivas. Não houve, porém, nenhum partido que o propusesse. Penso que não se justifica estarmos a fazer um papel perfeccionista em relação à Consumição.

A questão que e importante é, no fundo, a seguinte: para o PS o direito de iniciativa pode vir a ser discutido em Plenário e, de acordo com a sua proposta, em algumas condições deve-o ser. No entanto, o PS não equipara isso a uma iniciativa legislativa popular. Isto é. mesmo que a petição esteja consubstanciada por forma articulada, o PS defende que o Plenário da Assembleia da República deve pronunciar-se, mas não a entende como uma proposta de lei. Portanto, e esta a temática que está em jogo. Nada impede que um grupo parlamentar ou um deputado façam suas as considerações da proposta, portanto, apresente um projecto. Porém, não é pela via da mecânica própria da petição que o processo legislativo é desencadeado.

O PCP concebe esta possibilidade de a lei fixar os casos em que as petições colectivas são examinadas pelo Plenário da Assembleia da República como podendo ir ao ponto de incluir o direito de iniciativa legislativa. Não sei se e assim. Se o for, há uma divisão importante entre as duas propostas que gostaríamos desde já de esclarecer para facilitar a discussão.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Manuel Mendes.

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Sr. Presidente, quando partimos para a elaboração das propostas que tem vindo a ser analisadas tivemos em mente duas coisas: primeira, o estatuto constitucional das petições; segunda, o que tem sido a prática do tratamento das petições, designadamente na Assembleia da República.

Pensamos que, como instrumento de participação dos cidadãos na vida política, as petições deveriam ser robustecidos, que deveria ser aumentado o grau de efectivação e também de eficácia face ao presente e que se deveria, de alguma forma, dar corpo ao que já hoje se encontra previsto no n.º 1 do artigo 52.º

Suponho que têm sido - se não unanimemente, pelo menos de uma forma maioritária - colocadas dúvidas pela doutrina quanto à hipótese de os tribunais serem sujeitos passivos. Mantemos, em sede teórica e abstraem, essas dúvidas, uma vez que, efectivamente, parece casar-se mal com um órgão de soberania a quem cabe dirimir conflitos e tomar decisões judiciárias a possibilidade de o confrontar com institutos do tipo das petições ml qual as vimos definindo. Entendemos que elas, pelo carácter informal de que se revestem e pela magnitude e latitude da problemática sobre que versam, devem manter o seu regime, embora acolhendo, por parte dos órgãos de soberania, formas de tratamento mais avançadas.

Centrando o debate na Assembleia da República, creio que não é legítimo ignorar que se tem vindo, ao longo dos anos, a reflectir, de um modo aprofundado, sobre tudo isto. Neste momento, apesar de toda uma série de malfeitorias na revisão do Regimento, há, pelo menos, um dado julgo, mais ou menos adquirido, que e o de se criar uma comissão de petições, seja ela, ao mesmo tempo, a Comissão de Regimento e Mandatos ou não. Parece-me que a tentativa de, em relação a esta matéria, recolher os bons ensinamentos e as boas práticas existentes em outros países e positiva. O reforço no tratamento institucional das petições e extremamente importante. É claro que a Constituição não vai, por si só, operá-lo. A prática e, designadamente, a legislação infraconstitucional acabarão por evidenciar-se indispensáveis. Nesta sede importa proceder a alguns aclaramentos e a alguns avanços. Nós entendemos que, no interior da Assembleia da República, e possível atingir soluções, ulteriormente à consagração constitucional que propomos, que visem o nosso objectivo de uma forma mais frontal e exequível.

Em relação à questão que foi levantada pelo Sr. Presidente, isto e, à questão de se saber se o nosso n.° 2 admite ou não a própria iniciativa legislativa popular, devo dizer o seguinte: em termos pessoais, não tenho nada contra a iniciativa legislativa popular, que em vários ordenamentos jurídicos conhece um tratamento bastante digno. Penso até que, a lodo o momento, deveremos considerá-la nesta Casa, por fornia a acolher a componente participativa da democracia portuguesa - que, sendo representativa, também é participativa e que, nessa medida, é passível de inovações muito fecundas, de revitalização progressiva e sucessiva.

Se houver um entendimento geral segundo o qual se deve vedar, na Constituição, a possibilidade de uma iniciativa legislativa a partir do exercício do direito de petição,

Página 500

500 II SÉRIE - NÚMERO 17-RC

nós estaremos dispostos a encarar soluções que possam precisar o sentido útil do que está contido no n.º 3 do nosso preceito.

Com esta resposta, que pode não ser tão directa quanto desejável, mas que é, apesar de tudo, franca, penso ter dito ao Sr. Presidente aquilo que desejaria saber.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, só gostaria de dizer o seguinte: como sublinhei, não me move nenhum parti pris contra a iniciativa legislativa popular.

O Sr. Presidente: - Nem a mim, Sr. Deputado. Só queria saber!

O Sr. António Vitorino (PS): - Há respeitabilíssimos regimes democráticos que consagram essa figura e outras convergentes. É o caso, por exemplo, do referendo legislativo revogatório.

Convém sublinhar que na minha ideia não e pela via do direito de petição e da apreciação, em sede parlamentar, da temática (ias petições que se podem admitir fórmulas da iniciativa legislativa popular. O direito de petição tem uma outra raiz histórica e uma outra razão de ser.

Creio que da amálgama entre estes dois conceitos poderia resultar uma perda para o direito de petição e para o tratamento, com a dignidade que deve revestir, de uma eventual futura consagração de um direito de iniciativa legislativa popular. Portanto, aquilo que neste momento está exclusivamente em causa e, de facto, a perspectiva de se suscitar em sede parlamentar o debate de uma questão relevante. Temos de convir que e substancialmente distinto que 100 mil cidadãos eleitores digam à Assembleia da República que gostavam que esta debatesse o problema da energia nuclear - portanto, que a Assembleia da República seja confrontada com a temática da opção nuclear na base de uma petição popular, independentemente de ela tomar ou não posição a favor ou contra - do que a Assembleia da República se debruçar sobre a temática da opção nuclear na base de um texto articulado, subscrito por 100 mil cidadãos eleitores que dizem que não aceitam ou que querem a energia nuclear. São estados de espírito completamente distintos, são formas completamente distintas de colocar a Assembleia da República e os deputados perante questões políticas relevantes. Por isso a proposta que fazemos é neste sentido específico e concreto e não no outro.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Presidente, gostaria de me pronunciar sobre as propostas que estão aqui em apreço e, ao mesmo tempo, sobre o facto de lermos mantido no nosso projecto a redacção do texto actual da Constituição.

Relativamente ao n.º 3, que me parece que e o único número que tem sido discutido até agora, com algum prejuízo da discussão do n.º 2 e da questão fundamental que aí se situa, que e a do dever de resposta pelas entidades públicas relativamente ao exercício do direito de petição pelos cidadãos, e sem prejuízo de uma atitude mais ou menos aberta às propostas relativas ao n.9 3 do projecto do PCP e ao n.º 2 do projecto do PS, gostaria apenas de dizer o seguinte: com o sistema que está consagrado na Constituição, não temos já uma forma qualificada do exercício do direito de petição, que, ao nível de certos actos subsequentes, pode conduzir a uma forma de iniciativa legislativa popular, ainda que indirecta? Penso no poder de recomendação que tem o Provedor de Justiça na sequência das petições que lhe são dirigidas pelos cidadãos - por um ou por um grupo de cidadãos. Não haverá aqui uma interferência, ainda que indirecta, dos cidadãos junto da actividade legislativa própria da Assembleia da República, uma vez que esta se integra no conjunto das autoridades públicas a que se refere o artigo 52.º da Constituição? Pergunto isto sem me referir sequer ao mecanismo muito mais velado, indirecto, e que e o da ficalização da inconstitucionalidade por omissão, que pode também ser suscitado pelo Provedor de Justiça junto do Tribunal Constitucional, e com efeitos eventuais de poder vir a criar uma actividade concreta legislativa por parte da Assembleia da República. É uma questão que coloco, sem prejuízo de uma certa abertura a esta hipótese de levar ao Plenário a discussão do conteúdo de certas petições formuladas junto do Parlamento.

Relativamente ao n.º 2, parece-me que o que está em causa e uma questão fundamental que se tem colocado a propósito do exercício do direito de petição, que e o dever de resposta por parte das autoridades públicas, que figura - enunciado em termos gerais e formais - no n.º 2 da proposta do PCP. Essa hipótese já não figura, curiosamente, na proposta do PS. O PSD mantém a redacção, sem fazer uma abordagem concreta e ampla da formulação desse dever de resposta por parte das autoridades públicas.

O Sr. António Vitorino (PS): - É isso que faz de nós um partido de charneira!

O Sr. Miguel Macedo e Silva (PSD): - Já o foram, Sr. Deputado.

O Sr. António Vitorino (PS): - Neste sentido e contexto ainda o somos, Sr. Deputado.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Pronuncio-me sobre o n.º 2 da proposta do PCP defendendo exactamente a formulação que a Constituição contém actualmente. A Constituição, ainda que de forma dispersa, esgota já em vários preceitos um dever de resposta por parte de todas as autoridades públicas junto de quem é possível exercer o direito de petição. Isto para não falar na questão dos tribunais, que foi aqui abordada, que, em meu entender, por natureza, estão excluídos do conjunto dos órgãos públicos a quem e possível dirigir as petições. Há, de facto, afloramentos constitucionais que esgotam a formulação ainda que dispersa e que exigem um trabalho de interpretação do dever de resposta. Penso, por exemplo, no artigo 268.º, que se refere aos direitos e garantias dos administrados. Este artigo consagra o dever de informação pela Administração dos administrados quando estes o solicitarem. O próprio dever de resposta do Provedor de Justiça, quando a Constituição diz que unias as petições e representações são, de facto, apreciadas pelo Provedor de Justiça, é um certo dever de apreciação, por consequência, de resposta.

Por outro lado, as petições dirigidas à Assembleia da República têm no artigo 181.º, n.º 3, a confirmação de que este órgão de soberania tem necessariamente de se debruçar sobre essas petições, a nível de comissões. Para não falar na formulação, ampla e já a nível sistemático, em sede de direitos, liberdades e garantias de participação política - portanto no mesmo contexto em que se situa o artigo 52.º, do n.º 2 do artigo 48.º quando se consagra que "todos os cidadãos têm o direito de ser esclarecidos

Página 501

15 DE JUNHO DE 1988 501

objectivamente sobre actos do Estado e demais entidades públicas e de ser informados pelo Govêrno e outras autoridades acerca da gestão dos assuntos públicos". Creio que uma abordagem destes preceitos constitucionais faz-nos concluir que a Constituição consagra já, a propósito de cada autoridade junto da qual é possível exercer o direito de petição, um inequívoco dever de resposta.

Seja como for, não há da nossa parte um "fechamento" à possibilidade de formular, amplamente e de modo definitivo, um dever geral de resposta em sede do artigo 52.°, ainda que mantenhamos a redacção por considerarmos esse facto desnecessário.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador.) A diferença entre os exemplos que a Sra. Deputada Assunção Esteves deu quanto à possibilidade de canalizar para a Assembleia da República, através do Provedor de Justiça e do mecanismo da inconstitucionalidade por omissão, questões relevantes e até petições populares e a proposta do PS para o artigo 52.º e, salvaguardadas as devidas distâncias, a diferença existente entre os caminhos municipais e as estradas de 1.ª Aliás, no nosso país existem entre elas por vezes diferenças bastantes subtis. Não consagramos aqui a auto-estrada da iniciativa legislativa popular, onde os carros circulariam a alta velocidade, mas também não consideramos que o poder de recomendação do Provedor de Justiça ou o próprio mecanismo de inconstitucionalidade por omissão possa consumir o objectivo útil desta proposta. Em defesa da minha tese, ofereceria apenas o mérito dos autos, como quem diz, o completo desuso ou não uso desse tipo de mecanismos, quer da inconstitucionalidade por omissão quer do próprio Provedor de Justiça de quem as recomendações têm sido escassas e não revestem propriamente a natureza de formas de canalização de sentimentos populares para o Parlamento.

Seja como for, em defesa da interpretação coordenada de todos os mecanismos existentes e a criar diria apenas que a pluralização de vias de sensibilização dos órgãos do Estado não é, apesar de tudo, redutora nem empobrecedora, ma sim enriquecedora do sistema democrático constitucional.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Herculano Pombo.

O Sr. Herculano Pombo (PEV): - Quero, em primeiro lugar, formular um pedido de esclarecimento ao Sr. Deputado António Vitorino no sentido de, sendo possível, explicitar um pouco mais o que e que, no entender do seu partido, poderá ser considerado como um mínimo de representatividade, ainda que aqui se diga que esse mínimo virá a ser fixado por legislação ordinária.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Amónio Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Dei há pouco um exemplo falando de 100 (XX) subscritores. Tratava-se, porém, de um exemplo meramente circunstancial. Não faço a mínima ideia do que é que uma lei ordinária poderia consagrar como mínimo de representatividade. Devo confessar que fui para Direito por ter pouca sensibilidade para os números e para a matemática. Até nessa dimensão as coisas me escapam.

Mas a lógica do preceito é a de que não é qualquer petição que chega à Assembleia da República em termos de poder ser obrigatoriamente discutida no Plenário. As que não preencherem esse requisito mínimo de representatividade continuarão a percorrer o ter tradicional das petições, ou seja, deverão ir às comissões (eventualmente, em função do nosso novo Regimento da Assembleia da República, irão a comissão especializada sobre petições) e aí se quedarão. Neste caso, tratar-se-ia de petições mais nobres, em que o critério do requisito de representatividade e o do número de subscritores.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Como o Sr. Deputado António Viiorino diria e um pouco difícil estar a dar números. Porém, gostaria de acrescentar que, como é óbvio, os números também dependem da matéria. Se se tratar de uma matéria de interesse mais local, localizado, é evidente que esse número será menor. De facto, não vamos exigir 100 000 assinaturas para um assunto respeitante a Viana do Castelo, onde não há sequer 100 000 habitantes para assinar.

O Sr. Presidente: - Podem-se levar umas camionetas.

O Sr. Vera Jardim (PS): - No nosso partido temos por hábito não usar essas camionetas, ou evitar tanto quanto possível usá-las.

O Sr. Presidente: - Ainda bem, ainda bem ...

O Sr. Vera Jardim (PS): - Consequentemente, depende muito. Unia vez que também tenho pouca tendência para a matemática, diria só, para tentar alguma aproximação daquilo que pensamos, que 100 000 é capaz de ser um bocado demais para a Assembleia se digne discutir o assunto em Plenário. Se fôssemos para a iniciativa legislativa, já esses números começariam a ser realistas. Mas só para que essa petição possa ser discutida no Plenário, carreada por uma comissão que a apreciará, 100 000 subscritores constitui um esforço demasiado inglório.

Talvez pudéssemos ficar por números mais modestos.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Herculano Pombo.

O Sr. Herculano Pombo (Os Verdes): - Atrever-me-ia a sugerir - e sou ainda mais fraco em aritmética do que qualquer dos dois proponentes - se não seria de considerar como número mínimo - já que temos de falar em números - o número normal de eleitores suficiente para a eleição de um deputado, que rondará os trinta e tal mil?

O Sr. Vera Jardim (PS): - A nossa ideia era deixar essa questão para o legislador ordinário, apontando-se um caminho na Constituição, o que, em meu entender, e já um passo em frente. Mas a fixação de um número mínimo na Constituição parece-me demasiado, nesta sede.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Herculano Pombo.

O Sr. Herculano Pombo (Os Verdes): - Sr. Presidente, passaria agora a apresentar sumariamente a nossa proposta de aditamento de um n.º 3 ao actual artigo 52.º

Página 502

502 II SÉRIE - NÚMERO 17-RC

Em primeiro lugar, diria que não estou tão seguro como a Sra. Deputada Assunção Esteves de que a Constituição consagre já, inequivocamente, o dever de resposta. Não tenho a mesma certeza, nem a linha antes, e depois da sua explicação continuei a não ser capaz de o afirmar com a segurança com que a Sra. Deputada o fez. Congratulo-me, no entanto, com o facto de ter deixado a porta aberta à introdução de uma formulação deste tipo. Utilizando a táctica que ontem brilhantemente vi afirmada por um responsável do Govêrno e que foi apelidada de "láctica do pé na poria", permitir-me-ia também utilizá-la. Achei piada a esta láctica e, como tal, estou a tentar utilizá-la pela primeira vez. Vamos ver se resulta! De lacto, estou a tentar pôr o pé na poria que a Sra. Deputada deixou entreaberta, no sentido de que nos pareceu importante que a Constituição, para além de consagrar este direito, consagrasse também o dever de resposta. Todos sabemos que as petições que tem chegado, nomeadamente, à Assembleia da República nem sempre são respondidas em tempo útil. E penso que esta questão do tempo útil é importante: não se traia apenas de serem respondidas, mas de o serem em tempo útil. Pretenderíamos, pois, deixar na Constituição um sinal inequívoco de que este tempo útil tem de ser efectivamente útil e razoável e de que, como util, as petições devem ser respondidas de forma clara e expedita, atendendo à urgência que normalmente as motiva.

Penso que a proposta é simples, não valendo a pena complicá-la com apresentações.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - A nossa predisposição é para manter o actual texto constitucional, embora também nos pareça que a argumentação produzida encontrou algum eco, pelo que iremos repensar melhor a questão.

De qualquer modo, parece-nos que, a introduzirmos qualquer dispositivo do estilo do n.º 3 da proposta do PCP ou do n.º 2 da proposta do PS, a proposta do PCP e, apesar de tudo, mais cautelosa. De facto, a proposta do PS dá indicações 410 sentido de que existe um limite subjectivo mínimo de representatividade a partir do qual o legislador ordinário está de alguma maneira condicionado: sobre o legislador ordinário impenderia o dever de remeter ao Plenário as petições e representações que preenchessem tal requisito mínimo. A proposta do PCP parece-nos mais aberta e, nesta medida, mais aceitável. Parece-me que, a pardo limite de representatividade, que e um limite importante, deve também existir o limite objectivo da relevância nacional. É que, por hipótese, um assumo que mexa com determinados interesses respeitáveis para as populações, que mexa com muita gente ou com interesses ligados a qualquer assunto de carácter regional, pode não ter, do ponto de vista objectivo, a relevância necessária para ser discutido em Plenário.

Consequentemente, penso que talvez se devesse conjugar um limite subjectivo de representatividade com um limite de dignidade ou de relevância objectiva. Aio porque sou um adepto fervoroso do fenómeno futebolístico, penso que se levantam por vezes certos problemas que em lermos nacionais assumem o carácter de pequenas questiúnculas, mas que em termos locais são extremamente importantes. Não e difícil, por exemplo, surgir uma petição sobre um clube que em dado jogo fosse prejudicado pela arbitragem; a ser aceite a proposta do PS, a Assembleia da República leria de se pronunciar sobre essa petição. É um interesse relevantíssimo, tem muita geme atrás dele, mas, em meu entender, deveria ser conjugado com outro limite, que e o da relevância das maiorias.

O Sr. António Vitorino (PS): - Nalguma coisa haveríamos de ser mais radicais que o PCP.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Gostaria de dar um esclarecimento com o qual não sei se concordará. É natural que a nossa redacção não esteja muito concretizada, mas também foi um pouco esse o objectivo do nosso projecto. Se bem que admita que não esteja muito clara, fala-se, porém, não só em "mínimo de representatividade" como em "apreciação por uma comissão especializada". Ora, ao apontar para essa "apreciação por uma comissão especializada" tivemos precisamente em vista que houvesse algum crivo. Efectivamente, a representatividade não chega, sendo também necessário que se trate de um assunto que tenha a dignidade suficiente para ser discutido em Plenário.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - (Por não ler falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador)... sobre o legislador ordinário impenderia sempre, de certo modo, o facto de o limite de representatividade ser imperativo ou indicativo...

O Sr. Vera Jardim (PS): - Talvez possamos tratar melhor esta redacção...

O Sr. Presidente: - A questão da representatividade suscita-me uma outra consideração. Julgo que uma das características mais essenciais do problema do direito de petição é o lacto de se tratar de uma figura extremamente maleável, não devendo ser objecto de uma regulamentação muito minuciosa a fim de que possa, precisamente, abarcar situações muitas diversas. Mas é evidente que a própria Constituição dá uma amplitude muito grande ao direito de petição. De fado, inclui aquilo a que alguma doutrina chama o direito de petição defensivo, que é o direito para protecção de determinadas situações subjectivas já existentes e radicadas na titularidade do cidadão. Trata-se dos direitos subjectivos, parecendo-me que também os interesses legítimos - a tal queixa para defesa dos seus direitos - devessem ser abrangidos, assim como também uma outra ideia, um outro tipo de petição que pode ser simultaneamente defensiva da legalidade, quer da legalidade constitucional quer das leis, e promotora do interesse geral. E este tipo de petições é completamente diferente. Estas, que têm uma função dinamizadora, propulsionadora, são mais susceptíveis de serem mensuradas em termos de representatividade do que aquelas que dizem apenas respeito à defesa dos interesses de um determinado sujeito de direito ou de vários sujeitos de direito. A regulamentação minuciosa desta matéria - e, de qualquer modo, a Constituição já vai inculcar a necessidade de uma lei que venha discipliná-la - pode também ter algumas dificuldades de concretização e, nalguns pomos, pode ser inclusivamente contraproducente.

Por outro lado, se bem que, no que respeita ao direito de resposta, a Constituição já o acautele hoje suficientemente no artigo 268.º n.° 1, citado pela Sra. Deputada Assunção Esteves, bem como no caso do artigo 48.°, n.° 2, não me repugna, porém, que seja consignado. Há, todavia, um ponto que é importante, que e habitualmente debatido quando se traia da regulamentação dos procedimentos administrativos ou dos processos administrativos graciosos: trata-se de acautelar que não seja, pela via da petição, obstrução ao normal funcionamento dos órgãos de soberania ou da Administração Pública, visto que o sujeito

Página 503

15 DE JUNHO DE 1988 503

passivo e definido neste artigo 52.º, n.º 1, com grande amplitude. Isto é, tem de aceitar-se o princípio básico de que o direito de petição não obriga a reexames sucessivos quando as petições já foram devidamente examinadas e respondidas, sob pena de abuso do exercício do direito de petição.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Presidente, não pensa que poderiam resolver em boa parte os problemas que enunciou dando poderes de uma certa amplitude de decisão a essa comissão especializada? Não se desce a grandes pormenores, mas atribui-se a essa comissão especializada uma certa amplitude de poder de apreciação, como crivo prévio a sua ida a Plenário.

O Sr. Presidente: - Admito que sim, desde que se ressalve, como há pouco foi salientado, que não haja para a comissão uma obrigatoriedade em determinados casos, ou seja, que lhe seja atribuída discricionariedade suficientemente ampla.

Por outro lado, mantenho desde o princípio uma dúvida que só agora explicito e que e a de saber se esta maioria não leria a sua sede mais apropriada no Regimento do que propriamente na Constituição.

Em todo o caso, e com estas observações, parece-me valer a pena meditar sobre esta questão, não a rejeitando in limine, como, aliás, foi salientado pelos Srs. Deputados Assunção Esteves e Costa Andrade.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Gostaria de dizer que também partilhamos o ponto de vista de que vale a pena fazer o aprofundamento, que, aliás, se faz com um espírito e com um clima que me parece mais positivo do que outros registados a propósito de certas questões. De facto, embora se entenda da pane de alguns Srs. Deputados...

O Sr. Vera Jardim (PS): - Vai melhorando, Sr. Deputado.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Espero que sim, embora tema que não (a não ser que o Sr. Deputado tenha alguma informação decorrente de alguma cimeira, caso em que eu tomaria as suas palavras com um valor não apenas semântico e espiritual...).

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Penso que, de um certo ponto de vista, não tem melhorado nada. A receptividade do Sr. Deputado José Magalhães em relação às nossas propostas e de indiferença. Nós e que, como vê, concordamos quando as achamos boas.

Não tem havido melhoria...

O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Deputado, espere pela parte económica e vai ver as concessões!

O Sr. Presidente: - Quando chegarmos ao artigo 83.º, teremos certamente uma recepção amistosíssima e um discurso abracadabrante!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Diria mesmo com salvas, Sr. Presidente!

O Sr. Presidente: - Com salvas e que e mais grave!...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Com salvas políticas...

Gostaria também de referir que não podemos partilhar de certos pontos de vista e que sobretudo me choca o facto de, sabendo nós que a revisão constitucional tem encruzilhadas e feixes de problemas bem delimitáveis, haja uma tão geral indisponibilidade do PSD para considerar as questões relacionadas com direitos, liberdades e garantias, e até apresente algumas propostas perversas, ao mesmo tempo que todas as suas expectativas e desejos estão concentrados em torno de aspectos relacionados com a demolição da constituição económica, o que nos parece particularmente pernicioso.

Em relação a esta matéria, creio que a nossa preocupação, como aliás foi sublinhado, foi a de garantir duas coisas: de um lado, abertura, e, de outro lado, prudência. Talvez por isso a proposta tenha agradado ao PSD.

Devo, aliás, dizer que foi redigida tendo em conta les bons et les mauvais esprits, isto é, tendo em conta que a revisão constitucional não é para ser feita entre bons esprits, é para ser feita entre espíritos que estão opostos em aspectos absolutamente fulcrais e que ou se encontram para uma fórmula compromissória, ou tornam inviável qualquer revisão constitucional. Foi esse o ponto de vista do qual partimos. Neste caso concreto, a abertura é tanto mais fácil quanto a prudência é grande e fácil de consumar.

Na verdade, porque encarar em sede de revisão constitucional aquilo que tem a sua sede própria no terreno da lei ordinária? Ou seja, não há necessidade absolutamente nenhuma de transpor para a Constituição tudo o que são problemas a resolver pelo legislador ordinário - tem ele uma vastíssima gama de meios para responder a todas as dúvidas suscitadas.

É mau fazer o debate, como parece ter aflorado aqui, à luz de dois paradigmas de patologia: num, o cidadão absoluta e infrenemente peticionário, o "arquibloqueador", o "incontinente peticionário", aquele que irava a Administração Pública a golpes de petições, de manhã ate à noite, e, portanto, a obstrui. Sabemos todos, Srs. Deputados, que a obstrução através das petições, sobretudo em Portugal, onde são arquiengavetadas com toda a displicência, por de mais, é um risco nulo (e se não fosse nulo, ainda aí a boa da Administração Pública teria, à sua mão e na sua mão, a possibilidade de aprovar o famoso Código de Processo Administrativo não Contencioso, onde tudo isso seria resolvido - o que não acontece e talvez não por acaso). O outro paradigma que deveríamos enjeitar é, apesar de tudo, mais próximo de um risco real: é o do "Estado indiferente" (neste caso não só indiferente, como também liquidador de petições). Entre nós, creio que estamos mais próximos da indiferença do que da liquidação, da cilindração propositada: esta resulta de um cumular de vícios, vindo de muito longe, e também, no fundo, da não reforma da Administração Pública - talvez seja até essa a questão central. Não é aqui e hoje que vamos fazer essa reforma e não e aqui e hoje que temos, mais uma vez, a alavanca de Arquimedes, para dinamitar toda a herança do passado. Mas reforçar o direito de petição será um passo positivo.

Isto quanto à questão do fio condutor e da filosofia que poderíamos adoptar para perspectivar as questões que estão em jogo aqui, partindo do princípio de que é preciso alterar a prática do Estado, podendo contribuir para isso a inclusão de uma norma em sede de revisão constitucional.

A norma deve ser, como referi, aberta mas prudente. Nesse sentido, gostaria de dizer que questões como as respeitantes aos requisitos de admissão e as respeitantes ao processo têm a sua sedo própria na lei ordinária, o que leva a encarar questões como as que aqui foram alteradas quanto à representatividade de uma óptica totalmente diferente. Por que é que os habitantes de Almodôvar, neste momento preocupados com a questão da instalação de um certo dispo-

Página 504

504 II SÉRIE - NÚMERO 17-RC

sitivo integrado na problemática da guerra das estrelas - talvez, não se sabe bem o que é - chamado GEODESS, não hão-de ter o direito de fazer uma campanha nacional, através da qual recolham 10 000, 20 000, 30 000, 100 000, 1 000 000 de assinaturas, e lazer projectar isso no Plenário da Assembleia da República? Por que e que uma questão dizendo respeito a uma povoação talvez de 500 ou 600 almas (que pode ser o sítio onde, por acaso, será instalada uma central nuclear!) não há-de poder erguer uma campanha nacional - ou regional, o que for - com x mil assinaturas, incluindo, naturalmente, as de cidadãos das regiões autónomas, para conseguir que essa matéria seja debatida no Plenário da Assembleia da República? Por que não? Não estamos constitucionalmente em condições de definir qual seja a bitola, se se devem articular critérios de representativida dc medida por indicadores quantitativos, se devem ser tidas em conta questões como a relevância nacional ou outra.

Por outro lado, a intervenção de comissões parlamentares pode ser perfeitamente encarada. Mas tem de o ser em revisão constitucional? Não é obrigatório. Não é mau, não e maldito que o seja (nesse sentido compreendemos a proposta do PS, naturalmente), mas não tem obrigatoriamente de o ser porque, em termos de processo, podemos imaginar, em sede de lei ordinária, n trâmites depuradores e jociradores do relevante e do irrelevante. No caso do sistema constitucional espanhol há alguns mecanismos para joeirar que até conferem aos cidadãos algum efeito de intervenção e de recurso e são perfeitamente respeitáveis. Creio, no entanto, que estamos dispensados de lazer essa reflexão nesta sede.

O Sr. Presidente: - Alguma reflexão temos sempre de fazer para medirmos as consequências das nossas opções, mas podemos chegar à conclusão a que V. Exa. chega.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não me considerará V. Exa. suspeito de anarquia e de desrazoabilidade.

O Sr. Presidente: - De anarquia, seguramente que não.

Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Pedi a palavra na decorrência de um ponto de vista expresso há pouco pelo Sr. Presidente sobre se eventualmente não seria melhor sede para ira lar esta matéria o Regimento da Assembleia da República. Apenas quero dizer que, do meu ponto de vista, a questão não está apenas em definir qual o dever de comportamento por parte do sujeito passivo - neste caso seria a Assembleia da República e, sem dúvida, através do seu Regimento, mas vinculando tão-só a própria Assembleia; mais do que isso, trata-se de alargar o conteúdo de um direito de participação política dos cidadãos. Entendida deste ponto de vista, a questão não e, portanto, estritamente regimental, relativa ao comportamento do sujeito passivo, mas leria de ser consignada em lermos de direito de participação política, com o conteúdo próprio que lhe pretendêssemos dar.

Dito isto, estamos naturalmente de acordo e sensíveis a algumas das objecções aqui levantadas e pensamos ser possível encontrar uma redacção que resolva algumas dessas objecções. Bastaria que, por exemplo, no n.º 2 do projecto do PS, sem prejuízo de outras fórmulas, se acrescentasse um "designadamente" para algumas dessas objecções serem resolvidas. Imaginemos que se passava a ler: "as petições e representações dirigidas à Assembleia da República que reunam os requisitos mínimos determinados por lei, designadamente de representatividade, serão obrigatoriamente apreciadas", etc. Ou seja, havendo de facto uma comunhão quanto ao efeito essencial desta norma, a questão não será, seguramente, de redacção.

O Sr. Presidente: - Penso que e interessante a sua observação acerca da circunstância do alargamento processual, incluindo a obrigatoriedade, em determinadas condições, de a discussão no Plenário ser considerada como um alargamento do conteúdo do próprio direito; e porventura se-lo-á, o que significa não serem os aspectos processuais tão despiciendos como por vezes pareceram transparecer de algumas intervenções.

Iríamos passar agora, se estivessem de acordo, à segunda parte da discussão do artigo 52.º, relativa ao direito de acção popular, que, aliás e curiosamente, está incluído no capítulo n, relativo à participação política - como sabem, as leis de liberdades e garantias de participação política começam no artigo 48.º A única proposta feita nesta matéria e a proposta do PCP, no aditamento que faz para o n.º 4.

Para fazer a respectiva justificação, certamente sucinta, tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Todos sabem que em 1976 a Constituição veio reconhecer o direito da acção popular, no entanto, remeteu para a lei ordinária a determinação dos casos e dos termos do respectivo exercício. A Assembleia da República chegou a apreciar na generalidade um projecto de lei do PCP tendente a dar expressão legal a este normativo constitucional - nesse projecto considerávamos imperioso que fosse alargado o âmbito da acção popular por aquilo que, na altura, considerámos motivos inquestionáveis. O primeiro era a necessidade que sentíamos e era geralmente sentida, aliás, de concretizar e potenciar o interesse dos cidadãos na própria vida política e na actividade do Estado, designadamente na actividade das autarquias locais. Por outro lado, visava-se assegurar o respeito pela legalidade da Administração em domínios nos quais a reserva de legitimidade aos titulares de interesse pessoal e directo e notoriamente insuficiente. Considerámos ainda fundamental usar esse instrumento para defender o património do Estado, das autarquias locais e das próprias empresas públicas e de outros entes públicos que se movem na esfera económica.

A iniciativa do PCP, embora lenha sido sucessivamente renovada, não chegou nunca a ser objecto de apreciação e de aprovação que viabilizasse a sua conversão em lei. Encetado o primeiro processo de revisão constitucional, o PCP propôs que o texto da Constituição fosse enriquecido no sentido que acabei de referir. No entanto, a proposta que apresentámos não obteve a maioria qualificada necessária para a sua inclusão na redacção com que a Constituição hoje se apresenta. O direito à acção popular continuou a existir no nosso direito ordinário apenas em relação à administração local e nos termos muitíssimo acanhados constantes do Código Administrativo. Entretanto foram sendo criados, em diplomas avulsos, afloramentos do direito à acção popular - há-os em relação à administração eleitoral, em relação ao recenseamento eleitoral, em relação ao direito do ambiente, aos direitos dos consumidores.

No entanto, é hoje claro que o sistema português e um sistema amputado, diminuído. Não é por acaso que juristas de diversos quadrantes, incluindo alguns que não navegam em águas muito distantes das do PSD, vêm sustentando que, no tocante aos pressupostos processuais, é especialmente desejável o alargamento da acção popular ao contencioso da administração central. Não é afirmação "herética",

Página 505

15 DE JUNHO DE 1988 505

nem traduz qualquer postura verdadeiramente "demolidora" na própria óptica do PSD e dos que se reclamam das suas posições gerais, sustentar a incompletude do actual sistema, a sua debilidade e a necessidade do seu alargamento ao contencioso da administração central. Aí, verdadeiramente, as restrições que estão em vigor significam uma interdição ou substancial limitação da capacidade de defesa do interesse público em casos em que este pode estar fortemente afectado.

A proposta de alteração apresentada pelo PCP é económica, no sentido exacto de não gastar excessivo número de palavras. Pretende abrir as portas ao artigo 52.º, n.° 2, no sentido de se passar a designar ou elencar, ainda que a título meramente exemplificativo, um conjunto de domínios em que o direito de acção popular pode ser especialmente relevante. Seleccionámos, como especialmente relevantes, os domínios do ambiente, da qualidade de vida, do património cultural, da propriedade social, dos interesses dos consumidores e dos direitos fundamentais dos trabalhadores. Parece-nos que aí a consagração de modalidades da acção popular, em termos que naturalmente dependem, dependem sempre, do legislador ordinário - gostaria de sublinhar este aspecto por todas as razões compreensíveis -, seria um contributo bastante importante para o revigoramento ou a vitalização do próprio processo de defesa da legalidade democrática. Que se incentive isso através da inclusão de uma norma deste tipo, não e quanto a nós despiciendo, poderá ser bastante útil e bastante relevante. Também aqui abertura e prudência, uma vez que o juízo final sobre os termos, as modalidades, a extensão e os próprios trâmites fica na disponibilidade do legislador ordinário.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Relativamente à proposta de aditamento do n.° 4, nos termos em que é feita, entendemos que esta formulação não avança muito mais do que a definição que já se contém no n.º 2 do artigo 52.° tal como existe - ou melhor, não avança mesmo nada. O direito está garantido no n.° 2 e remete para a lei, tal como faz a proposta de aditamento do PCP; o que o PCP acrescenta é uma forma pormenorizadora, regulamentadora, que, em si, nem sequer esgota as possibilidades do direito de acção popular. Este direito tem já afloramentos constitucionais, como se sabe, no artigo 66.º, n.º 3, para a defesa do ambiente; no artigo 78.º, n.º 3, para a defesa do património cultural; e todas as outras questões que são aqui afloradas podem efectivamente, mesmo ao nível da legislação ordinária, encontrar possibilidades, dada a tutela constitucional do n.º 2 do artigo 52.º, na redacção que tem de vir a ser objecto possível do exercício do direito de acção popular. Há também o esquema legitimatório introduzido pelo modelo de intervenção processual, que é o das class sections, estou a pensar nos direitos dos consumidores e nos direitos dos cidadãos relativamente à defesa do ambiente, que acabam por abarcar, senão mesmo estender-se, para além do elenco referido no n.º 4 do projecto do PCP.

O que acho ser de ponderar aqui é o que, efectivamente, a Constituição deve garantir com suficiência e o que está a mais para ser matéria de direito constitucional - parece-nos que este acrescentamento está a mais, que o n.º 2 do artigo 52.º já consagra com suficiência todas as potencialidades do direito de acção popular.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Embora neste artigo 52.Q nós tenhamos deixado ficar o n.º 2 tal qual estava, não lhe introduzimos qualquer alteração ou melhoria, queria só chamar a atenção para o facto de termos denotado uma preocupação em aperfeiçoar os esquemas de acção popular e em torná-los mais claros, no que diz respeito aos consumidores, ao ambiente e qualidade de vida e à defesa do património cultural; portanto, introduzindo algumas melhorias nos respectivos articulados dos artigos 62.°, 66.º e 78.º Não será, talvez, agora a altura de nos debruçarmos sobre isso, mas queria fazer esta ligação entre a proposta do PCP e propostas nossas, que afinal tem, no fundo, textos parecidos ou idênticos, a propósito dos pontos relativos aos consumidores, ao património cultural e ao ambiente e qualidade de vida, que nos parecem os três sectores que o justificam. Já não compreendemos tão bem uma chamada de atenção para a acção popular no que diz respeito à propriedade social e aos direitos fundamentais dos trabalhadores - parece-nos que isso não será genericamente caso de acção popular, mas mais caso de acção pura e simples. Portanto, era só esta chamada de atenção para essa qualidade do nosso projecto - optámos por introduzir melhorias nos vários articulados que pudessem de alguma forma relacionar-se com mecanismos de acção popular.

O Sr. Presidente: - Também me inscrevi para uma curta intervenção, e começaria por dizer que sou dos que subscrevem a ideia de que a acção popular está, neste momento, demasiado confinada no nosso direito e que se justifica algum alargamento, embora se deva fazer isso por uma via cautelosa.

Em primeiro lugar, porque julgo ser útil substituir, em vários casos, a acção pública pela acção popular - a acção pública, isto é, do Ministério Público, no domínio do contencioso administrativo, é ainda hoje construída de uma forma demasiado colectivizante e tem por consequência, na maior parte dos casos, a indisponibilidade, por parte dos particulares, das situações subjectivas que eles defendem em juízo. O que se traduz, em última análise, numa colectivização. Se distinguirmos comedidamente o que são interesses gerais daquilo que são interesses individualizados e que podem ser objecto de uma tutela autónoma, ganharemos em termos de garantir a privacidade, a autonomia dos cidadãos e o robustecimento dos seus direitos efectivos públicos e dos seus interesses legítimos. Nesse sentido, e provável que haja vários campos em que se possa, até com vantagem, substituir a acção popular à acção pública.

Por outro lado, existe - e todos nós, nos anos 70, tivemos ocasião de ver, designadamente nas discussões que sobre isso foram travadas na Itália e na Alemanha e, menos caracterizadamente, em França - um conjunto vasto de interesses, designados, numa das terminologias, por interesses difusos, nomeadamente em matéria de ambiente, de qualidade de vida, de defesa do património. O grande problema que se debateu foi o de saber se haverá que esperar pela formalização, em termos de sujeito de direito com outorga de personalidade jurídica, das entidades que devem defender esses interesses, ou se a simples circunstância de serem entidades de facto, embora já suficientemente caracterizadas, permite o exercício da acção popular. Porque a acção popular conseguida pelo cidadão isoladamente em relação a estas matérias pode existir e não deve ser negada, mas e muito difícil que seja verdadeiramente concretizada.

No entanto, o que me deixa intrigado na proposta apresentada pelo PCP e a circunstância de ao lado de interesses difusos serem colocados interesses muito concretos e que estão encabeçados em pessoas, ou seja, é o

Página 506

506 II SÉRIE - NÚMERO 17-RC

caso dos direitos fundamentais dos trabalhadores. É que justamente aí, e ainda de uma forma mais nítida, acumulam-se os inconvenientes da chamada acção pública na colectivização dos direitos, isto e, quando Vamos garantir certos direitos -como seria o caso relativamente a algumas matérias de direito da família, para citar um caso de direito privado em que o Ministério Público pode intervir -, do mesmo passo sublinha-se a indisponibilidade desses direitos no sentido de que a própria tutela não cabe em exclusivo às pessoas que deles são titulares. Isto tem, naturalmente, as suas vantagens, mas tem lambem grossos inconvenientes, porque um dos princípios básicos e o da autonomia da vontade no sentido de saber se quer ou não tutelar as suas próprias situações e de não permitir interferências alheias.

Ora, compreende-se o propósito generoso que encerra o facto de se pretender utilizar nesta matéria uma acção popular para a defesa dos direitos fundamentais dos trabalhadores, mas, a meu ver, essa é uma medida tecnicamente errada e, por outro lado, ela pode implicar altos inconvenientes. De modo que não se compreende bem qual é a concepção que o PCP tem da acção popular quando a alarga a estes casos.

Além disso, lambem a mim se me afigura que e preferível verificar, nos respectivos sectores, se se justifica ou não aperfeiçoar o normativo constitucional já existente, indicando com precisão a existência de uma acção popular, do que estar a consignar uma norma genérica do tipo desta, que, no fundo, não acrescenta verdadeiramente nada ao n.º 2 do artigo 52.º, a não ser na parte em que se refere aos direitos fundamentais.

Já agora mutatis mutandis, o mesmo que referi em relação aos direitos fundamentais se aplicaria ao conceito de propriedade social. Aliás, não se sabe bem o que é que rigorosamente se pretende dizer com este conceito.

Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, gostaria apenas de lazer duas rápidas observações.

Uma delas é no sentido de corroborar este seu último comentário. De facto, creio que constitui prova de um insufragável conservadorismo constitucional propugnar-se pela manutenção da técnica legislativa da Constituição na fórmula actual, isto é, no sentido de que no artigo 52.º nos limitássemos a consagrar uma norma genérica de reconhecimento de acção popular, e que onde fosse caso disso se colocasse um ênfase específico em alguns casos concretos, norma a norma. Aliás, actualmente já se verifica isso quando se consagra um caso de acção popular na Constituição em sede de direitos, liberdades e garantias económicos, sociais e culturais propriamente ditas.

Esta técnica parece-me vantajosa na medida em que se torna claro que, para haver acção popular, criada pela lei ordinária, não é necessário existir nenhuma norma constitucional habilitadora em concreto. Portanto, todas as enumerações em concreto que se possam fazer na Constituição são enumerações meramente exemplificativas, e nesse sentido não se joga neste debate o futuro de nenhuma acção popular, tanto na vertente positiva como negativa. Assim, reconduzamos desde já esta troca de impressões às suas devidas proporções, tornando deste modo menos decisivo o próprio sentido do posicionamento acerca de cada uma das propostas aqui apresentadas no que respeita a esta matéria.

A segunda observação, igualmente rápida, que gostaria de fazer e para exprimir que o verdadeiro desafio perante o qual estamos aqui colmados e um desafio que se coloca menos em sede de revisão constitucional e mais na ausência de legislação ordinária que consubstancie este princípio da eficácia da acção popular no nosso ordenamento jurídico. Na realidade, hoje em dia o sistema está praticamente reduzido, por força das circunstâncias, aos normativos desactualizados do Código Administrativo e no âmbito da competência dos órgãos da administração local. Todas as questões aqui sublinhadas estão para além deste âmbito, na medida em que o que se trata aqui, para além da figura - já referida pelo Sr. Presidente - bastante inconsequente da representação de interesses difusos através da figura do assistente na acção promovida pelo Ministério Público, a qual se tem mostrado insuficiente e tímida, é de permitir um alargamento da legitimidade processual a esses interesses e grupos, prescindindo da clássica limitação do interesse directo, pessoal e legítimo na promoção, por exemplo, de acções relativas, a decisões ou omissões da Administração.

De facto, reconheço que se trata de uma temática difícil de concretizar na legislação ordinária. Daí que não possamos ignorar as consequências dessas dificuldades quando se trata, em sede de revisão constitucional, da fazer um elenco, ainda que exemplificativo, dos sectores onde o legislador constitucional coloca especial relevo na consagração da acção popular.

Dito isto de outra maneira, para mim o problema em questão está na proposta do PCP quando refere a acção popular para defesa dos direitos fundamentais dos trabalhadores. É aí que me parece que verter na lei ordinária os contornos do que é a legitimidade processual num caso destes, ao admitir-se a acção popular para a defesa dos direitos dos trabalhadores, implica grandes dificuldades. Dificuldades que me levariam a não colocar no mesmo pé de igualdade a defesa dos direitos dos trabalhadores através da acção popular e os demais casos exemplificativos dessa mesma acção popular.

Não se trata de um preconceito ideológico, não e um posicionamento político no sentido de dizer que os direitos dos trabalhadores são menos relevantes do que os direitos dos consumidores ou do que o direito de acção popular para protecção do ambiente. Trata-se de uma questão de natureza técnico-jurídica e da dificuldade de definição da legitimidade processual nestas circunstâncias. O caso da acção popular de dolosa dos direitos dos trabalhadores, por muito imaginativos que sejamos, parece-me levantar mais dificuldades do que os demais casos de acção popular referidos na Constituição, relativamente aos quais parece, apesar de tudo, ser mais fácil chegar à conformação dos contornos de um sistema adequado de legitimidade processual.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Sr. Presidente, tenho grandes dúvidas acerca desta matéria e inclino-me para a solução que foi agora defendida pela generalidade dos interventores, nomeadamente pelo meu colega António Vitorino. Mas há um problema sistemático de ordem conceituai a considerar e que diz respeito à questão do habeas corpus, que é, digamos, um direito de acção popular concretizado. Claro que ele corresponde a um interesse público mas não difuso e, portanto, alguns dos óbices de natureza técnico-jurídica que foram levantados, relativamente a este caso concreto de acção popular, estão resolvidos à saciedade há muito tempo. Ele consiste num interesse muito específico, e, de facto, existe o mecanismo de acção popular.

Página 507

15 DE JUNHO DE 1988 507

O Sr. Presidente: - Repare, Sr. Deputado, que este e um problema de difícil discussão sem fazermos uma análise sector a sector.

Mas a figura do direito subjectivo pressupõe em princípio que exista uma tutela na disponibilidade do seu titular. Quando, por razões ligadas ao interesse público, se admite que a legitimidade e alargada a outras entidades, designadamente ao Ministério Público, obtêm-se dois resultados: por um lado, torna-se mais forte essa tutela no sentido de que ela não é claudicante pela falta de vontade ou pelas pressões que sofra o seu titular, isto e, existe uma outra entidade que pode substituir-se-lhe e agir em juízo. Citei o caso do direito da família, onde isso e patente, ou seja, essa e a zona mais publicizada do direito privado clássico.

Por outra parte, essa admissão encerra um aspecto negativo, que e o de traduzir um enfraquecimento da autonomia individual nessa zona. E quando volvemos para o campo do direito público, e aceitamos, pelo menos na doutrina dominante, que o Ministério Público pode intervir sempre - inclusivamente ele tem um prazo alargado até um ano, enquanto o recorrente particular, ou seja, o titular do interesse directo, pessoal e legítimo só tem para provimento de recurso, em princípio, o prazo dos dois meses da praxe - isso traduz-se frequentemente em significar que, em rigor, essa disponibilidade e esse direito subjectivo na verdade não existem. No fundo, essa é uma maneira de funcionalizar, de tornar o recorrente particular num caso especial de promotor público.

Ora, o mesmo não acontece nos interesses difusos em que não existe nenhum titular; aí os riscos são inexistentes. Pelo contrário, o que acontece é que, não havendo ninguém que possa arrogar-se um interesse directo, pessoal e legítimo para defesa desse direito, há que encontrar uma fórmula de alargamento da legitimidade. E como, por outro lado, se reconhece que, embora em relação a alguns casos em que já aparecem verdadeiramente consignados na lei esses interesses, o Ministério Público pudesse intervir, mas, por circunstâncias conhecidas, ele não o faz, admite-se que haja ou instituições de jure, já com personalidades jurídica, havendo, portanto, imputação de direitos e obrigações, ou também instituições que sejam puramente realidades de lacto, a quem essa capacidade judiciária seja conferida e simultaneamente seja dada legitimidade.

Assim, julgo que e importante distinguir o problema relativo a essas situações de interesses difusos daquelas que estão perfeitamente encabeçadas em titulares, como e o caso dos direitos fundamentais. É evidente que nada impede, do pomo de vista técnico, que construamos do modo preconizado pelo PCP. Isso tem e um certo significado e foi para ele que eu quis chamar a atenção.

Quanto ao problema do habeas corpus, os ordenamentos ocidentais admitem que outros que não os titulares dos direitos fundamentais sejam titulares do exercício do habeas corpus, porque se aceita que a situação em que se encontra o seu titular natural possa ser de tal modo diminuída que justifique essa especial protecção para evitar o carácter desfalecente do titular do direito. Mas, esta é uma solução já há muito tempo admitida, que tem essas consequências, limitadoras da autonomia as quais suponho que são justificadas pela particularíssima situação que e defendida, e na qual há como que uma pesunção da vontade. Se generalizássemos o exercício do habeas corpus por terceiros, as consequências seriam, porém, negativas.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Creio que o Sr. Deputado António Vitorino disse uma coisa em relação à qual é impossível que alguém esteja em desacordo. Perguntou: "Onde e que estará o verdadeiro desafio?" O verdadeiro desafio está na capacidade de edificar a acção popular através dos vários instrumentos que para tal é necessário accionar. Assim, ou há uma lei ordinária que a consagre e ulteriormente uma adequada utilização pelos cidadãos, e da será vivificada, ou há um bloqueio legal, que e aquilo a que se assiste hoje, e uma prática impossibilidade de utilização por parte dos cidadãos.

Evidentemente que, parafraseando alguém, se "a prova do pudim é comê-lo", neste caso a prova da acção popular e conquistá-la, é concretizá-la, e c óbvio que não vamos fazer tudo isso na revisão constitucional. Mas aquilo que se fizer na revisão constitucional não é indiferente para o impulsionamento de uma alteração no terreno da ordem jurídica portuguesa, afectada pelos factores de bloqueio que conhecemos. Tudo aquilo que de bom nesta sede for incrustado no corpo constitucional não lerá consequências negativas.

O que me preocupa, até, é ver os resultados do silêncio. Na primeira revisão constitucional o frustrar-se de um enriquecimento não deixou de pesar, creio, na modorra ulteriormente verificada. Claro que não pode funcionar aqui uma razão do tipo post hoc ergo propter hoc; seria estulto dizer-se que "a culpada de tudo" foi a primeira revisão constitucional. Isso é falso, sabemos que não é assim.

Em todo o caso, nenhum de nós é capaz de avaliar em que medida lerá pesado o facto de se ter feito uma rejeição. Se se tivesse inventado uma cláusula, à semelhança do que se adoptou relativamente à Lei de Defesa Nacional e a outras -poderão dizer-me que a questão não tem a mesma importância, não sei -, que obrigasse à fixação do regime jurídico aplicável pelo legislador ordinário em prazo certo, era mais provável que esse desiderato tivesse sido atingido.

Creio, inclusivamente, que em relação a algumas das normas a emanar nesta sede ou é mesmo isso que se faz ou o esforço de elaboração da revisão constitucional será um esforço falível e um compromisso falso, por outras palavras: será um compromisso precário: não digo compromisso com reserva mental, mas pelo menos susceptível de ser não efectivado com uma extrema facilidade. Isso e muito perigoso em termos políticos e inaceitável em lermos de debate e de boa fé política.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Deputado José Magalhães, não sei se iria referir posteriormente na sua exposição um aspecto, mas como estou muito curioso vou adiantando algo. Gostaria que me desse exemplos, quer em relação à propriedade social quer em relação aos direitos dos trabalhadores, do que julgue poderem ser casos típicos de acção popular.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Certamente, Sr. Deputado Vera Jardim.

A primeira questão é a do desafio. Creio que ele está expresso na lei ordinária mas lambem pode estar aqui estabelecido. Aliás, o PS não está em desacordo com isso, apenas tem uma outra consepção quanto à via a utilizar. O que me leva à segunda questão, ou seja, exactamente a questão da via. Como reforçar o direito à acção popular? Através da densificação do artigo 52.°, n.º 2, ou mantendo a formulação genérica hoje existente e fazendo especificações nas sedes próprias, quaisquer que elas sejam?

Em relação a três delas não se suscitam problemas, uma voz que vários partidos têm um entendimento acerca da defesa do ambiente e da qualidade de vida - pressuponho

Página 508

508 II SÉRIE - NÚMERO 17-RC

que isso implica uma noção que abarca também a própria questão da qualidade de vida. Quanto ao património cultural, suponho que a questão lambem não vos choca, e em relação aos interesses dos consumidores problemas não haveria. Os problemas situar-se-iam, então, na questão de saber se deveríamos incluir ou não nesta família, por assim dizer, os direitos de família e a propriedade social.

Quanto à vertente da propriedade social, creio que essa é uma das áreas cm. que pode ser relevante esta forma de intervenção. Pode, é claro, discordar-se ferranhamente que haja qualquer utilidade ou pertinência numa consagração deste tipo. Mas conceder-se aos cidadãos a possibilidade de reagirem contenciosamente contra a alienação ou concessão de bens do domínio público, por exemplo, não é irrelevante e na nossa óptica pode ser particularmente interessante. Suponho que não esquento a imaginação de ninguém ao sugerir, por exemplo, as consequências que leria em relação a determinadas concessões de bens públicos a possibilidade de haver acção popular.

O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado falou em propriedade social. Está á referir-se à propriedade pública?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas não só. Imagine-se, por exemplo, o interesse que poderia haver no lacto de, em relação a certos bens de empresas públicas ou nacionalizadas, ou relativamente à desafectação ele bens do domínio público, haver uma possibilidade de reacção contenciosa em caso de violação da lei, naturalmente. A reacção contenciosa não serve seguramente para a crítica política, mas sim para exprimir uma discordância em relação a violação da lei ou da Constituição.

O Sr. Presidente: - Como é óbvio!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Mais ainda lhe digo: e tão fácil lobrigar que isto seja pertinente que ale já foi pertinente deveras na história da nossa legislação ordinária. Mais do que pertinente já foi lei e, naturalmente, não é impossível que volte a sê-lo (até o foi com o voto favorável do PS in illo tempore!). É essa confiança que também não queremos deixar de exprimir.

Além disso, relativamente à alienação de quotas ou de partes sociais de qualquer entidade pública com vista à formação de empresas privadas ou mistas, a questão também não e propriamente impensável. Julgo até que é muito pensável. Imagine-se lambem n situação no que concerne à revogação de certos actos de expropriação. Eis, a título de exemplo, alguns dos campos em que a acção popular de defesa da propriedade social - e chamo-lhe assim depois de uma pequena viagem hoc sansu por alguns dos sentidos possíveis - poderia ter alguma utilidade.

No respeitante à outra objecção, essa tem implicações mais fundas. De facto, não são do estranhar as observações feitas pelo Sr. Presidente - em tese geral, são até pertinentes - quanto ao terreno onde nasceu, se difundiu e cresceu entre nós o direito de acção popular. E é evidente que a actualidade da problemática dos interesses colectivos, dos direitos difusos, ele, e enorme (embora pouquíssimo ainda entre nós, salvo em sede doutrinária e de alguma paixão pessoal, de natureza jurídica). Por isso, as ilações extraídas quanto às consequências de a lei adoptar futuramente tal figura devem, quanto a mim, ser temperadas. É difícil ver a autonomia privada em termos excessivamente exuberantes, sobretudo porque isso pode levar a que ela seja sacrificada em circunstâncias em que é falível, ilusória, e em que só existe em abstracto. Refiro-me à situação na qual não se está no reino da igualdade das partes, ou seja, em que uma das parles e mais débil e fraca do que a outra. Daí o facto de a questão da sua tutela e protecção não dever ser somente encarada na perspectiva-auto, mas também na da junção de esforços "colectivos (posso mesmo precisar que a minha autonomia privada seja reforçada pela acção de outros). Isso acontece frequentemente, como se sabe. De facto, não temos uma visão filosoficamente idealista das relações jurídicas e logo da projecção processual dessas mesmas relações, o que não justifica, só por si e em tese geral, a proposta que apresentámos. A proposta só pode ser justificada à luz de duas coisas.

A primeira justificação baseia-se numa certa concepção dos direitos fundamentais dos trabalhadores. Não entendemos que a inclusão e caracterização constitucionais desses direitos como fundamentais seja aberrante. É evidente que isso rompe com o conceito liberal e bastante ultrapassado de que só determinados direitos do homem é que podiam ser consagrados no capítulo dos direitos, liberdades e garantias (tinha-se em vista o "homem" tomado em abstracto, de preferência bem abonado com uns pingues dinheiros, proprietário até à ponta dos cabelos). Acontece que esse modelo proprietarista está ultrapassado, já não tem consagração entre nós. O modelo que está previsto na nossa Constituição incluiu - e a primeira revisão constitucional reforçou essa vertente! - os direitos dos trabalhadores em sede de direitos, liberdades e garantias.

A segunda justificação diz-nos que é necessária ter uma certa visão do modelo adequado das relações de trabalho - relações essas em que se pressupõe um determinado papel para a lei, para as organizações de trabalhadores e até para autonomia colectiva. De facto, e perfeitamente possível conceber um modelo de relações laborais de cariz adequadamente compromissório, como alguma coisa em que as relações entre a lei e a autonomia sejam diferentes daquelas que existem à data. É defensável que haja um menor papel atribuído à lei (o que traduz uma posição de "desregulamentação virtuosa"!) e um maior papel para a autonomia das partes. Em contrapartida, preconizamos reforços dos dircilos dos trabalhadores, bom como da sua capacidade de actuação colectiva. E, sobretudo, mais e melhores instrumentos de interferência para conseguir defender posições onde haja litígio.

E neste ponto que se pode inserir a reivindicação de uma forma de acção popular (a dirimir legalmente) para defesa de certos direitos fundamentais dos trabalhadores. Quais são os direitos mais aptos, propícios o vocacionados para essa defesa?

Refiro-me sobretudo a certos direitos (verdadeiras garantias institucionais), que têm a ver com a defesa dos trabalhadores contra ingerências patronais particularmente violências, direitos de garantia de higiene e segurança, de efectivação do liberdade sindical e outros direitos colectivos que são factores insubstituíveis da promoção da igualdade entre as parles. É mais nessa área que suponho que a quebra da legitimidade processual clássica poderia ter o seu pleno cabimento.

O Sr. Presidente: - Desculpe interrompê-lo, Sr. Deputado, mas desejaria fazer-lhe uma observação que é simultaneamente um pedido de esclarecimento.

De facto, quanto à circunstância de se consignarem os direitos dos trabalhadores como fundamentais não tenho nenhum óbice a formular. Parece-me, ao invés, uma boa solução.

Entretanto, a primeira ideia que me assaltou quando ouvi a sua exposição tem a ver com o seguinte: V. Exa. aceita, no fundo, que exista uma certa interpretação funcionalizante

Página 509

15 DE JUNHO DE 1988 509

dos direitos fundamentais dos trabalhadores justamente em função dos objectivos que estão em causa. E é isso que percebi que V. Exa. quis acentuar. Na verdade, afigura-se-me que é um pouco contraditória com a consagração dos direitos dos trabalhadores como fundamentais essa funcionalização. No entanto, compreendo que noutras perspectivas isso possa ser entendido como muito útil.

Uma outra ideia que me aflorou ao espírito é esta: se os direitos são colectivos, penso que os sujeitos que os podem exercer são todos aqueles que estão abrangidos pelo colectivo, mas para isso não e necessária uma acção popular. Não estamos, de facto, fora dos critérios normais do exercício que os seus titulares fazem da tutela judicial. O direito de acção popular coloca-se rigorosamente quando os normais critérios de legitimidade para a efectivação da tutela por via judicial não chegam, pelo que e necessário, extravasando disso, dar-lhes uma legitimidade própria. Porem, se eles estiverem abrangidos pelo conjunto dos titulares do direito colectivo, esse problema não se coloca, nem há nenhuma especificidade, nem lambem nenhuma acção popular. É, pois, uma dúvida que coloco.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, em relação ao primeiro aspecto que referiu, ou seja, a interpretação funcionalizante...

O Sr. Presidente: - Ou funcionalista, se V. Exa. quiser!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto, a interpretação funcionalística só pode entender-se num certo sentido pejorativo, na medida exacta em que se entende que a funcionalização é uma depreciação, uma perda de conteúdo, uma limitação fone e uma canga susceptível de conduzir ao próprio esvaziamento do direito, à sua negação, ao sacrifício do indivíduo em função de finalidades, inclusivamente de carácter transpessoal ou ideológico-polílico.

O Sr. Presidente: - Isso é um uso extremamente instrumental. Por exemplo, V. Exa. lê essa problemática em qualquer livro que trate de problemas de direitos fundamentais; quer seja do Sr. Dr. Vieira de Andrade ou de outro autor. É, pois, uma instrumentalização do direito fundamental.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sei isso, Sr. Presidente. Aliás, e esse agradável diálogo interposto que estamos, de resto, travando, porque, como e evidente, e a partir de concepções de carácter idealista sobre direitos fundamentais que normalmente esse tipo de posições e aduzido com um receio, por vezes bastante postiço, de que através da preocupação de salvaguarda de determinadas condições, designadamente de carácter económico, social e material, se pretenda lançar sobre os indivíduos uma canga ião enorme que lhes sacrifique e desvitalize os seus próprios direitos: "Serás feliz, quer queiras, quer não!" "Serás feliz cumprindo uma determinada cartilha ou orientação, ainda que isso viole a lua própria consciência e te reduza a coisa nenhuma!" Eis aquilo que se receia!

O Sr. Presidente: - V. Exa. - expressa isso muito bem!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, não posso deixar de exprimir isso nestes exactos termos. Creio, aliás, que esses receios, partindo de certos sítios, são inteiramente postiços, porque vêm precisamente de fontes e de alfobres de carácter ideológico e político, que são eles próprios a maior fonte de sujeição e de milificação do indivíduo.

O Sr. Presidente: - V. Exa. terá razão desde que concordemos sobre a fonte, o que não sei se será o caso.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Encontraremos, com certeza, nesse ponto uma divergência dificilmente suprível.

Em todo o caso, parece-me que, mergulhando nessas raízes ou águas, se deduzirá demais neste caso concreto. E porque? Porque o sistema em que nos estamos a mover é o constitucional e apenas esse. E aí a laxa de "funcionalização" é a que decorre da Constituição, ou seja, o conceito constitucional não se erige, nem se define, em lermos de funcionalização, mas sim de conjugação de elementos, de garantias institucionais (c não apenas institucionais), de efectivação de direitos e de uma preocupação da sua inserção num sistema geral, cujas características não creio que possam ser apodadas de redutoras da pessoa e do trabalhador. Pelo contrário, são fortemente defensoras de um determinado estatuto e de uma certa protecção não apenas sectorial mas de carácter global e envolvente do trabalhador e do seu papel na própria sociedade.

Essa dimensão laboral da Constituição ou de defesa do trabalhador, enquanto revestido desse estatuto (ao lado do trabalhador enquanto cidadão e pessoa), e uma característica básica da lei fundamental neste ponto, que não será, evidentemente, alterada por um qualquer aditamento como o que propomos. Seria antes muito alterado e bastante esvaziado se o conjunto de propostas de alteração da autoria do PSD em matéria de constituição económica fosse avante nos termos em que ele próprio os enuncia. Isso, sim, esvaziaria várias das peças e das parles que na Constituição impedem essa funcionalização perversa, que é deixar o indivíduo submetido à canga da livre actuação dos monopólios.

Insisto: não há nenhuma funcionalização, mas sim um novo meio a utilizar pelos trabalhadores, que poderão sempre deduzir objecção: "Ninguém poderá ser defendido contra a sua vontade" - eis um princípio que se deve dar por adquirido.

O Sr. Presidente: - É importante colocá-lo no vosso texto! No entanto, isso não resulta da pré-compreensão subscrita pelo PCP.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas se a questão e essa, devemos então colocá-la. Não lemos, aliás, a mínima objecção a isso.

Entretanto, temos a questão dos direitos colectivos. Dir-se-á: "Se os direitos dos trabalhadores são de natureza colectiva, então que o colectivo se defenda." E, portanto, o problema suscitado pelo PCP seria um falso problema assente num equívoco. Se isso pudesse ser sustentado, daríamos a mão à palmatória. No entanto, sucede que, em relação a determinados direitos colectivos, pode acontecer que não baste ou que não seja até aconselhável ser o próprio colectivo, enquanto colectivo directamente atingido, a reagir. Por que e que a questão das condições de salubridade da Fábrica de Braço de Praia tem de ser obrigatoriamente um assunto susceptível de originar só acções pelos próprios membros do colectivo atingido? Por que e que as organizações que velam pela defesa dos direitos dos trabalhadores hão-de ser impotentes para intervir nessa esfera e nessa área? Por que e que não há-de haver a possibilidade de gerar outras formas de interesse, de empenhamento social, e até jurídico, de outros cidadãos que não os colectivos directamente atingidos?

Página 510

510 II SÉRIE - NÚMERO 17-RC

O Sr. Presidente: - Os contitulares?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Exactamente, Sr. Presidente. Por que e que hão-de ser só os contitulares? Quais as formas de solidariedade que se pretende tolher? E quais as formas de solidariedade que facultamos através de uma via como esta? É isso que não me parece que seja contraditório.

Poderão dizer que isso é desmesuradamente ambicioso e que "esse tipo de solidariedade não nos interessa", interessando, ao invés, outras. Porem, isso e uma outra objecção que tem, aliás, um carácter político, ideológico, mas não técnico (a questão até nem se coloca do ponto de vista técnico!). É evidente que o legislador ordinário ficaria investido de uma responsabilidade e de um poder que não é de exercício isento de dificuldades. Ele teria de estabelecer, como nós fazemos em relação a lugares paralelos, condições, requisitos, limitações e normas que impeçam uma perversão que faça chocar os interesses do colectivo directamente atingido face a cortas solidariedades. De facto, há certas solidariedades que não interessam nada ou que podem ser indesejáveis e perigosas. Deve, então, o colectivo poder impedir que essas solidariedades se manifestem.

Estou a pensar em situações que já hoje se verificam e que temos de encarar. Pense-se na hipótese de uma associação de defesa do consumidor intervir num dado processo: tem de haver uma adequada articulação entre a intervenção processual do lesado e da dita associação, sob pena de uma certa vítima poder, contra a sua própria vontade, ser transformada num "herói nacional martirizado" por uma associação de consumidores. Isso sucederia se a lei permitisse uma intervenção processual massacrante, uma campanha nacional indesejada, esvaziando a vida privada do "mártir", triturando-lhe a sua tragédia enquanto consumidor e obrigando o cidadão a ver violados os seus direitos em certos domínios (pense-se nas limitações à privacidade, etc.).

Também isso pode acontecer numa hipótese destas. Devemos buscar adequada resposta, tal como encontrámos solução para similares situações. Veja-se a nossa lei processual, que impede que, além de determinados limites, a intervenção processual de outros prejudique a vontade, os interesses e a sua própria visão pessoal. O "direito à própria morte" dos colectivos (facto que, de certeza, sensibiliza o Sr. Deputado Costa Andrade) pode ser devidamente satisfeito pelo legislador ordinário.

Em síntese: a proposta do PCP tira ilações, numa perspectiva aberta e de futuro, do facto de os direitos dos trabalhadores não terem entre nós a acepção, nem a estrutura, nem a dimensão, nem a arquitectura liberalóide que poderia fluir de cenas concepções.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, gostaria apenas de dizer o seguinte: esto debato e bastante interessante e tem oscilado entre o já denunciado idealismo filosófico e o agora referido, noutro sentido, apego às bandeiras de lula. Contudo, penso que o saldo útil da intervenção produzida pelo Sr. Deputado José Magalhães sintetiza-se na expressão "certos direitos", ou seja, não são "todos os direitos fundamentais", mas sim, e repito, "certos direitos fundamentais" dos trabalhadores.

Ora, onde se esporava coisas hard core - passe a expressão- do tipo "despedimento e direito à greve" sai-nos "higiene e segurança no trabalho". Isto não é menos relevante e estimável, acabamos em certa medida de assistir a um "passe de mágica". Sem ofensa, isto faz-me lembrar aquele filme com o Paul Newman e o Robert Redford, chamado A Golpada, onde o assistente é defraudado pelo próprio autor até ao último minuto do filme...

Ora, a questão está em saber se não será aconselhável, exactamente por causa desses "certos direitos" que não todos, não nos deixarmos embevecer por declarações pro-clamalórias do estilo da proposta de alteração do PCP. Refiro-me ao facto de saber se não seria mais prudente deixar exactamente para a legislação ordinária a definição em concreto de quais entre os direitos fundamentais dos trabalhadores podem merecer e justificar ale a consagração de um regime do tipo acção popular e, portanto, afastamos neste momento do nosso horizonte esta declaração proclamatória consubstanciada no termo "os direitos fundamentais dos trabalhadores".

A outra questão que gostaria de realçar prende-se com a mera curiosidade, talvez já desvirtuada pela última parte da intervenção do Sr. Deputado José Magalhães, de saber, mesmo nesses casos dos direitos dos trabalhadores, a quem seria reconhecido o direito de acção popular. Aos sindicatos? As comissões de trabalhadores? Ao colega de trabalho atingido individualmente por uma medida repressiva da entidade patronal dentro da empresa? A um qualquer colectivo de trabalhadores?

O Sr. Presidente: - E V. Exa. pode acrescentar outra hipótese, como seja "ao empresário enquanto cidadão".

O Sr. António Vitorino (PS): - Mas "ao empresário" fica bom ao Sr. Deputado Rui Machete.

Risos.

O Sr. Presidente: - Mas o empresário é uma hipótese divertida como argumento ad terrorem.

O Sr. António Vitorino (PS): - E refiro-o a concluir senão não os colocava a serem defendidos pelo Sr. Deputado Rui Machete.

O Sr. Presidente: - Isso vai ficar registado, Sr. Deputado.

Risos.

Suponho que isso era uma pergunta. Talvez seja preferível o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia fazer agora a sua intervenção, que terminará, certamente, com algumas questões.

Para encerrarmos esto debate, o Sr. Deputado José Magalhães responderia no final.

Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Presidente, penso que a acção popular é útil para a defesa de interesses difusos compartilhados. No entanto, também pode ser útil para a dolosa de interesses difusos alheios, designadamente quando há ameaças generalizadas sobro grupos sociais que nenhum interessado directo ousa defender por lhe faltar a coragem - e há casos em que é necessário coragem para assumir a defesa de direitos próprios. É razoável que entidades alheias assumam a defesa quando essa lesão se traduzir na ofensa de um direito fundamental. Parece-me também razoável que se reconheça a acção popular para defesa de interesses do direitos fundamentais dos trabalhadores.

Digo isto na minha concepção liberal, que não e do liberalismo possessivo. Muito pelo contrário!

Página 511

15 DE JUNHO DE 1988 511

O Sr. António Vitorino (PS): - Nem liberalismo filosófico!

O Sr. Presidente: - Essa do liberalismo possessivo é divertida e faz-me lembrar um livro de Macpherson sobre isso.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Macpherson escreveu sobre individualismo possessivo, como elemento do liberalismo clássico. Citá-lo não significa aderir ao seu pensamento doutrinário.

O Sr. Presidente: - Espero bem que não, Sr. Deputado.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Significa mesmo que considero que nem lodo o liberalismo e possessivo. Alterando ligeiramente a fórmula de Macpherson, creio ter encontrado uma expressão ajustada ao presente momento da controversa ideológica, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP):- Sr. Presidente, creio que o debate, além de ser um excurso sobre as concepções respeitantes a uma matéria que não e despicienda e que e fulcral na nossa ordem jurídico-constitucional, qual seja a relativa ao direito dos trabalhadores, ao seu papel e à concepção que temos da forma adequada para a sua defesa, talvez não tenha, em lermos de input/output, um saldo negativo. Se se conclui que há que optar por um reforço, se se duvida que esse reforço deva ler lugar em sede de cláusula geral, se se admite que deve ler lugar através de particularizações a inserir em seu sítio e se se admite que "em seu sítio" significa, além de ambiente, consumidores, etc., quiçá algum sítio relacionado com certos direitos de trabalhadores - e não posso recuar mais porque, senão, diria certos direitos de certos trabalhadores...

Risos.

O Sr. Presidente: - Já não foi mau, Sr. Deputado. Já recuou alguma coisa.

Risos.

O Sr. José Magalhães (PCP): - ... -, então, o saldo do debate foi positivo. Creio que todos seremos capazes de imaginar - e digo imaginar no sentido de criar, de reflectir sobre a realidade e transformá-la - casos em que a violação de leis atinentes a direitos de trabalhadores e ião evidente e clamorosa que todos os meios parecem poucos para enfrentá-la.

Neste caso a abertura do processo, isto é, a abertura do meio judicial, qualquer que seja a sua importância, qualquer que seja o seu poso o a sua eficácia -o que entro nós é muito pouco-, pode ser extremamente relevante para os outros que não as próprias vítimas. Podo ser relevante, embora isso não deva ser irrestrito, embora isso não deva ser consagrado em termos tais que não respeite algumas fronteiras intransponíveis em que o próprio devo ler uma palavra decisiva, mas verdadeiramente livre. Essa e a questão central!

Depois há que saber se os beneficiários são todos ou alguns sindicatos, iodas ou algumas centrais sindicais, os colectivos de trabalhadores definidos como CT ou outras estruturas representativas, portanto ORT, qualquer cidadão, etc. Parecem-me coisas de somenos porque isso só pode ser aferido em função de uma particularização que nós não estamos em condições de fazer em sede de revisão constitucional - aliás, nem podemos faze-lo. Devemo-nos preocupar com a criação de cláusulas com uma outra dimensão.

A questão que aqui se coloca 6 a de saber se há algum consenso para uma abertura nesse sentido e em relação a uma área em que isso seja absolutamente relevante e generalizadamente considerado como tal.

Referi, em termos de explicitação, a higiene e a segurança porque, pura e simplesmente, é uma preocupação circunstancial que só psicanaliticamente poderá ser encontrada e que se deverá relacionar com as condições de trabalho nesta Sala ou com qualquer outro fenómeno que nos esteja perturbando e preocupando particularmente. Poderia ter focado outras questões. Nilo me movi no domínio de A Golpada ou qualquer fenómeno desse tipo. Estava a mover-me mais no domínio dos horários infernais de trabalho que o PSD imprime nesta Casa, embora, naturalmente, não queira a acção popular contra isso. Isso há-de ser feito pelas nossas mãos ou não será feito.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, quando há pouco a discussão relativa dos direitos dos trabalhadores evoluiu para a questão de sabor quem e que seriam os titulares dessa acção pública, penso que, ipso facto, ficámos fora da temática. É que nunca ninguém ainda pensou em considerar como acção pública o problema de saber se, por exemplo, os sindicatos tem legitimidade para defender os interesses individuais e os direitos resultantes das relações de trabalho dos seus associados. É o caso, por hipótese, da Ordem dos Advogados ou da Ordem dos Médicos, que defendem os interesses dos seus membros. O problema da acção pública põe-se quando a legitimidade e mi eives e não quando já há uma enunciação concreta.

Daí há pouco, apesar de isso ter permitido uma manifestação de socialismo militante ao Sr. Deputado António Vitorino, ter comentado, ironicamente, que se fosse uma acção popular mula impediria que o empresário defendesse, animado do um idealismo - como agradaria certamente ao Sr. Deputado José Magalhães -, os interesses de algum trabalhador. É uma temática diferente! Não estou a dizer que isso não possa ser consignado e até penso que a evolução do direito do trabalho pode caminhar nosso sentido, independentemente da consignação constitucional desse alargamento da legitimidade, mas não é uma matéria que se discuta propriamente em termos de acção popular. Na acção popular a ideia base é a do que o universo - e, como e evidente, pode não ser o universo do lodo o povo português - é suficientemente vasto para não haver uma enumeração identificadora de A, B e C como os limiares da legitimidade para propor as acções.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - O Sr. Presidente identificaria então acção popular com aquela que seria exercida - e sempre e unicamente a exercível - por qualquer cidadão no pleno gozo dos seus direitos civis e políticos.

O Sr. Presidente: - No doseamento é, por vezes, difícil referir se e só nestas circunstâncias, mas têm de ser um universo suficientemente vasto, sob pena de não ser popular. Isto do acordo com a tradição dogmática que existe sobre esta matéria o que tem sido sempre seguida em iodos os ordenamentos onde essa instituição tem sido consignada.

Parecia-me útil precisar o sentido da observação que foi lei ia há pouco.

Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

Página 512

512 II SÉRIE - NÚMERO 17-RC

O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Presidente, depois destes recuos tácticos ou estratégicos do Sr. Deputado José Magalhães a propósito dos direitos fundamentais dos trabalhadores, n3o queria deixar de dizer o seguinte: poderíamos tentar seguir nesta matéria uma outra via - essa bastante mais rica - e que seria a do alargamento da acção popular à protecção de interesses difusos de minorias sociais. Aliás, a intervenção do Sr. Deputado José Magalhães, sobretudo no que diz respeito aos direitos dos trabalhadores, inseriu-se um pouco nesta análise das minorias. Ouvi essa sua intervenção não só a propósito da higiene e segurança, mas lambem no que toca aos direitos fundamentais. Lembro-me, por exemplo, das mulheres. Por que não perante fenómenos sociais com o conteúdo que conhecemos, como, por exemplo, os fenómenos de agressão às mulheres - e eslava até à espera que a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves...

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Mas são maioria, não são minoria.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Não, Sra. Deputada. Minoria social no sentido de minoria com uma voz socialmente menos nítida. Aí é que me parece que pode ser uma via de desbravamento deste capítulo da acção popular.

O Sr. Presidente: - Considerar a Condição Feminina como um interesse difuso!!!

Risos.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Por que não, Sr. Presidente? Não, direitos de minorias. Não digo que as mulheres sejam melhor exemplo...

Vozes.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Presidente, só gostaria de dizer ao Sr. Deputado Vera Jardim que nunca tomaria essa iniciativa. Por princípio, penso que essa não e a melhor táctica para defender os direitos das mulheres.

Vozes.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, temos de nos manter nos estritos limites da revisão constitucional relativos ao artigo 52.º Isto não significa, como é óbvio, que o Sr. Deputado Vera Jardim os tenha extravasado. A minha observação e apenas preventiva.

Suponho que esta maioria já está dilucidada. Não sei se podemos retomar a discussão do n.º 3 do artigo 50.º da proposta do PCP relativa às inelegibilidades para garantia da liberdade eleitoral, isenção e independência do exercício dos cargos.

O projecto do PCP propõe o aditamento de um novo n.° 3, com a seguinte redacção:

3 - No caso de cargos electivos só podem estabelecer-se as inelegibilidades necessárias para garantir a liberdade eleitoral a isenção e independência do exercício dos cargos.

Não sei se os Srs. Deputados querem passar agora à discussão deste n.º 3.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, não estamos nem estaremos em condições de discutir este n.º 3 na medida exacta em que o levantamento da questão está a ser ultimado, mas exige uma troca de impressões, que gostaria de fazer. Penso que seria vantajoso fazer isso para que se pudesse imprimir mais produtividade aos próprios trabalhos. Não creio que isso seja possível no horizonte desta sessão de trabalho.

O Sr. Presidente: - Fico muito, sensibilizado com a sua preocupação pela celeridade dos trabalhos.

Portanto, abordaremos essa listagem num momento posterior que seja mais oportuno.

Pausa.

Srs. Deputados, vamos passar ao capítulo m, "Direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores", mais precisamente ao artigo 53.°, que tem como epígrafe "Segurança no emprego".

Existem propostas de alteração do CDS, do PCP, do PSD e do PRD.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Exacto, embora nem todos igualmente interessados pela segurança no emprego.

O Sr. Presidente: - Embora nem todos igualmente interessados em formular da mesma maneira a segurança no emprego. Enfim, vamos ver!

Uma vez que o CDS não está presente, poderíamos começar pela proposta do PCP. Só que a proposta do PCP refere-se já ao problema do despedimento colectivo, enquanto a proposta do PSD representa, no fundo, um desdobramento do artigo. Assim, penso que seria mais útil começarmos por discutir a proposta do PSD, porque ela diz respeito a um desdobramento e a uma alteração (Ia última parlo do actua! artigo 53.° relativa à proibição de despedimentos por motivos políticos ou ideológicos. Depois voltaríamos a seguir a ordem normal.

Tem a palavra o Sr. Deputado Sousa Lara.

O Sr. Sousa Lara (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Quero fazer um pequeno comentário, a propósito e a despropósito, que tem a ver com a minha sedimentação após a presença em duas reuniões desta Comissão.

Em 1982 participei nos trabalhos da revisão constitucional e noto que há uma diferença qualitativa em termos dos participantes nesta Comissão, que, de alguma forma, não deixa de me chocar. É que no anterior processo de revisão constitucional um conjunto de pessoas não juristas tomou assento e colaborou activamente no processo de revisão, o que, penso, enriqueceu extraordinariamente tais trabalhos. Isto a propósito de neste momento se ir encetar um capítulo novo sobre o qual talvez fosse útil e positivo a participação de pessoas ligadas ao mundo do trabalho. Não sou jurista mas participarei, com muito gosto, nesta discussão.

É esta a nota, que queria deixar registada, que veio aqui a talhe de foice. Não a quis fazer em outra altura, mas penso que para todos os efeitos e oportuna.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Sousa Lara, para que a sua observação não fique sem a devida consideração, gostaria de esclarecer que, obviamente, não cabe a esta Comissão responsabilidade sobre a sua própria composição. Ela foi indicada pelos diversos partidos políticos, pelos diversos grupos parlamentares. Todavia, temos alguns Srs. Deputados, com maior frequência e maior permanência, na

Página 513

15 DE JUNHO DE 1988 513

Comissão que não são juristas, V. Exa. é um deles, mas existem outros que podem apontar-se. É o caso, por exemplo, dos Srs. Deputados Sottomayor Cárdia, Mário Maciel, etc. De resto, devo acentuar que tem havido uma rotação com alguma velocidade de alguns deputados com assento nesta Comissão. Aliás, o Sr. Deputado José Magalhães fez há alguns dias um comentário - e, salvo o devido respeito, não tinha razão, sobretudo porque dizia respeito a assuntos alheios, a assuntos do PSD - acerca da substituição de deputados que habitualmente não estavam nesta Comissão. Aliás, creio que o PCP também tem feito isso e nunca ninguém pensou em suscitar problemas.

Creio também que o Sr. Deputado Rui Salvado, que hoje não está presente, mas que faz parte desta Comissão, não é jurista. É isso o que suponho, pelo menos essa sua qualidade não é patente. Portanto, o domínio dos juristas não e tão esmagador como à primeira vista poderia parecer. Em talo o caso, espero que V. Exa. não se sinta mal na companhia dos juristas.

O Sr. Sousa Lara (PSD): - Com certeza, Sr. Presidente.

Como V. Exa. ê bem indicou, o projecto do PSD constitui um desdobramento do artigo actual. Neste desdobramento, quero frisar que as expressões "políticos" e "ideológicos" foram reduzidas, no n.° 2 proposto pelo PSD, apenas à expressão "ideológicos", uma vez que entendemos que "políticos" e "ideológicos" são sinónimos. Não há motivos políticos que não sejam ideológicos, e vice-versa.

Queria também esclarecer que no n.º 2 proposto pelo PSD é mantido o princípio geral da proibição do despedimento por motivos ideológicos, ressalvando-se apenas casos perfeitamente excepcionais e delimitados, que são os da "violação do dever de fidelidade confessional, doutrinal ou ideológica em relação a entidades empregadoras de carácter confessional, sindical ou partidário", e mesmo assim "quando tal carácter esteja expresso nos respectivos estatutos ou seja público e notório". Prevê-se, pois, que tal ressalva só funcione quando estas condições se reunam, o que delimita a casos perfeitamente excepcionais a ressalva agora introduzida.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, a observação feita pelo Sr. Deputado Sousa Lara em relação à questão da marcha dos trabalhos e da formação das equipas de debate sugere-me a necessidade de consultar a minha equipa sobre essa matéria. Pediria a V. Exa. - que não prosseguisse os trabalhos por alguns momentos. Assim, poderíamos lazer um intervalo regimental para um rápido acerto de equipas. Isto não significa que daqui a minutos não regresse ao terreno. É só para poder trocar algumas impressões, porque estamos a virar de página e gostaria de dilucidar uma dúvida que entretanto se colocou, não sobre isto mas sobre a fase ou a parte em que agora vamos entrar.

O Sr. Presidente: - É regimental, Sr. Deputado.

É regimental, é um direito potestativo.

Srs. Deputados, está suspensa a reunião.

Eram 18 horas.

Srs. Deputados, está reaberta a reunião.

Eram 18 horas e 40 minutos.

O Sr. Deputado Sousa Lara leve já a oportunidade de explicitar as motivações da proposta do PSD. Diria aos Srs. Deputados que não se encontravam presentes antes da interrupção dos trabalhos que estamos a discutir o artigo 53.° e que, por razões atinentes à circunstância de a proposta do PSD representar um desdobramento do artigo 53.°, preferi começar pela discussão dessa proposta em vez de começar, como tem sido habitual, pelas propostas do CDS, do PCP, do PSD e do PRD, isto é, pela ordem de apresentação. Solicitei ao Sr. Deputado Sousa Lara que fizesse uma sucinta justificação dos motivos da proposta; isso já foi feito e estamos agora, portanto, na fase das intervenções.

Ainda em termos de elucidação e informação, devo dizer que não vamos votar nada agora e que estamos apenas a analisar os textos, a perceber as consequências que a adopção de cada proposta envolve, formulando as perguntas e as apreciações críticas que cada Sr. Deputado entende ser útil fazer. E nesse sentido que perguntaria se algum dos Srs. Deputados solicita a palavra.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, gostaria de lazer uma pergunta ao Sr. Deputado Sousa Lara, uma vez que, creio, poderíamos encetar o debate lendo em conta a fundamentação que este apresentou.

Não se trata, de resto, de solicitar que o Sr. Deputado Sousa Lara repila o que disse, mas sim que o fundamente. O Sr. Deputado limitou-se a descrever o regime que vem proposto pelo PSD. Tratava-se de situar as razões que levam o PSD não só a propô-lo como a propô-lo nos termos em que o propõe. O PSD quer suprimir no texto constitucional a formulação actualmente existente e introduzir excepções. Trata-se, portanto, claramente - e esta é, de resto, a única coisa clara -, de estabelecer excepções àquilo que não as comporta, nos termos constitucionais, neste momento. Excepções essas consistindo em admitir o despedimento por motivos ideológicos (ou assim chamados: o PSD tem uma noção muito lata de ideologia), em casos de filiação ou de ligação a entidades caracterizadas pelo seu carácter confessional, doutrinal ou ideológico, que depois o PSD situa no universo confessional, sindical e partidário.

Como isto é de uma latitude que todos somos capazes de conceber (e que poderia conduzir, pura e simplesmente, ao livre e irrestrito despedimento nestas estruturas organizativas), o PSD sentiu necessidade de o qualificar, dizendo que só assim acontecerá quando esse carácter estiver expresso nos respectivos estatutos. Dir-se-ia que isto ainda tem algum significado delimitativo. Mas a seguir o PSD introduz uma disjuntiva e essa disjuntiva desemboca na conhecida expressão "público e notório", isto é, liberdade de despedir quando o carácter dessas organizações patronais seja público e notório.

Gostaria de perguntar ao Sr. Deputado Sousa Lara qual é o fundamento, por uni lado, da via aberta, isto é, como entende e em que termos configura cada um dos universos para os quais prevê esta possibilidade de excepção. Em segundo lugar, gostaria de saber como é que o Sr. Deputado considera que a excepção proposta esteja bastantemente delimitada - o que é uma questão técnico-jurídica de não pouca importância.

Por exemplo - e isto talvez permita considerar melhor a questão -, uma determinada estrutura que tenha actividades de carácter doutrinário e que seja "público e notório" estar ligada a um determinado partido leria esse estatuto? Isto é, os seus funcionários e elementos seriam livremente despedíveis nessa óptica? A Fundação Oliveira Martins teria esse estatuto? Uma fundação que estivesse

Página 514

514 II SÉRIE - NÚMERO 17-RC

ligada não a um partido mas a um conjunto de partidos - suponhamos que ao PS, PSD, CDS, etc.- teria essa natureza? Aqueles que estivessem relacionados com essa estrutura por um vínculo jurídico-laboral seriam livremente despedíveis se, porventura, alterassem a sua postura de carácter ideológico e, portanto, incorressem numa mutação como aquela que o PSD, pelos vistos, configura como relevante? Já viu que tipo de implicações e que uma proposta desse tipo tem, dada a presença dos partidos políticos na vida portuguesa, presença essa que não se circunscreve à esfera directa e imediata que V. Exa. parece ter pressuposto quando apresentou a proposta?

Se não e isso que o PSD quer, quer o PSD menos do que aquilo que indica a proposta nos termos em que está formulada? E se quer menos, o que e que quer?

O Sr. Presidente: - Darci seguidamente a palavra ao Sr. Deputado Sousa Lara, mas, já agora, não resisto a comentar que, naturalmente, agradeço ao Sr. Deputado José Magalhães a referência à Fundação Oliveira Martins. No entanto, como V. Exa. sabe, a Fundação Oliveira Martins não é uma instituição confessional, não é um sindicato, nem tem natureza sindical.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Nem e partidária?

O Sr. Presidente: - Não tem a natureza de uma entidade integrada na orgânica de qualquer partido político.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Nem e doutrinária?

O Sr. Presidente: - Doutrinal é, mas não e uma entidade empregadora de carácter confessional, sindical ou partidária.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, creio que e bastante útil V. Exa. prestar-nos essa informação - que fica em acta - quanto à natureza da fundação em questão, mas isso, como bem compreenderá, não dirime todas as dificuldades de interpretação decorrentes do facto de não ser líquido que seja "público e notório" o que V. Exa. acaba de dizer. E e tão pouco público e tão pouco notório que ate V. Exa. sentiu necessidade de o dizer para a acta. Imagine o que seria isso em processo laboral.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, V. Exa. perdoar-me-á, mas não e o problema do ser público ou notório, é sim, o de que o universo considerado e que pode ser só este. Quer dizer, a questão existe só em relação a essas entidades, quando tal natureza seja expressa nos respectivos estatutos ou seja pública e notória. Fora destes casos não cabe no universo a considerar.

Existe um problema, como V. Exa. - não ignorará, que, inclusivamente, pode vir a tornar-se um pouco mais grave - e há pouco até citámos o Avante. Mas suponha que alguns dos ilustres militantes profissionais do Avante de repente se recovertem às graças da social-democracia.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Ou vice-versa, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Ou vice-versa. Por que não? E o vice-versa já tem acontecido, ate porque, na altura, não se sabiá, à partida, de alguns casos. Houve coisas muito curiosas e um caso de que me recordo, quando era director do jornal Povo Livre, foi o caso muito curioso de uma pessoa que só mais tarde - e não foi por conversão, mas por tornar aparente a sua opção filosófico-política - se verificou ser, na realidade, militante do PCP, o que, naturalmente, lhe faz muito bom proveito. No entanto, o problema não é esse, mas o de, perante estas circunstâncias, se saber se se justifica ou não abrir-se uma excepção. E devo dizer que isto não e para nós uma questão vital nem de uma grande importância, mas uma questão de coerência, que, de resto, abrange todas as forças políticas, abrangendo as confissões religiosas, os partidos e os sindicatos e apenas estes sectores assim delimitados. O problema ideológico assume aqui, por natureza, uma legitimidade que não tem noutras circunstâncias, ou seja, é de pressupor que quem vai trabalhar num partido político, num sindicato, ou, por exemplo, quem vai trabalhar para a Intersindical ou para um sindicato da mesma Intersindical não vai trabalhar, em princípio, para a UGT, sob pena de, provavelmente, as pessoas considerarem que há traição. E vice-versa. Daí que, naturalmente, os "submarinos" gozem de má fama. É esta a questão.

Agora, V. Exa. pode dizer-me que existem alguns problemas de formulação e que poderemos eventualmente corrigi-los. Penso que a primeira questão importante que se coloca - e por isso é que, a propósito da Fundação Oliveira Martins, me permiti intervir - é a de saber se este problema é justificativo de uma ponderação autónoma, e, se assim for, justificar-se-á então a questão do universo. Tem a palavra o Sr. Deputado Sousa Lara.

O Sr. Sousa Lara (PSD): - Sr. Presidente, agradeço o esclarecimento que deu, pois, no fundo, respondeu já a uma parte das dúvidas que o Sr. Deputado José Magalhães acabou de colocar. No entanto, ocorrem-me ainda duas clarificações que me parecem pertinentes.

Em primeiro lugar, quero referir o caso das igrejas católicas que existem por este país fora, sem estatuto, e que são, sem dúvida nenhuma, em pregadoras de carácter confessional. Ora, quem normalmente tem estatuto é a fábrica tia igreja, mas não é essa fábrica que contrata, por exemplo, os sacristãos. É um exemplo de uma entidade empregadora que, não tendo estatuto, tem pública e notoriamente carácter confessional.

Dar-lhe-ia ainda uma segunda precisão que me parece oportuna e que tem a ver com a expressão "salvo havendo violação do dever de fidelidade confessional", uma vez que esta excepção pressupõe a pré-existência de um dever de fidelidade confessional, doutrinal ou ideológico. Parece-me que este é um aspecto muito importante, porque há algo que antecede a própria relação contratual, que e, no fundo, o dever de fidelidade. Só nesse caso se justificaria a aplicação do disposto no preceito proposto.

Penso que estas duas clarificações podem ser esclarecedoras, mas, como não esgotam a sua pergunta, talvez algum dos meus colegas queira juntar mais algum aspecto de carácter técnico, para o qual me sinto incompetente.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Presidente, são compreensíveis as motivações do projecto do PSD nesta matéria - são claras -, só que não parecem aceitáveis qua tale. Efectivamente V. Exa. - pôs um problema prático exemplar, mas posso voltar a questão às avessas e pôr também um outro problema. Suponhamos, por exemplo, que há um órgão de comunicação social ideologicamente marcado, ou seja, em que é público e notório que tal órgão tem uma determinada ideologia e que, a certa altura, esse

Página 515

15 DE JUNHO DE 1988 515

órgão é vendido a uma outra entidade, passando a ter uma ideologia completamente diferente, porventura às avessas da que tinha ate então. Ora, os trabalhadores foram contratados na perspectiva de uma determinada linha ideológica e é bom de ver que a nova entidade patronal poderá ter uma ideologia completamente diversa. Já se passaram casos destes entre nós - não são casos virgens - e lembro-me, por exemplo, de um caso na aurora da Revolução, o caso do Jornal Novo. Esse jornal linha um certo cariz ideológico e depois passou a ter outro.

Consequentemente, este problema e complicado e implica saber qual o conteúdo do dever de lealdade.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Vera Jardim, eu percebo a sua argumentação, mas por isso mesmo e que o universo das entidades que consideramos poderem ser excepcionais era, na nossa perspectiva, muito reduzido. Isto é, o Jornal Novo não seria uma entidade partidária, nem uma entidade confessional, nem uma entidade sindical.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Mas poderia ser. Ninguém nos diz que o PSD não possa vender o jornal Povo Livre. Poderá vender o título, o jornal e as instalações a uma outra entidade. Desistiu de ler um jornal, vendeu-o, e porventura o Povo Livre e adquirido por uma organização de ideologia completamente diferente.

O Sr. Presidente: - Se deixar de ser um órgão partidário, o problema deixa de se pôr.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Mas, de qualquer forma, não podemos desligar este debate de debates recentes sobre esta matéria. E aí está o debate do pacote laborai em que o Govêrno - pressuponho o PSD - deu uma indicação segura de até onde ia, por um lado, aquilo que julgava ser a justa causa de despedimento, por outro lado, daquilo que julgava ser o conteúdo do dever de lealdade e, por outro lado ainda, se, sim ou não, estaria prevista qualquer coisa que pudesse corresponder a este n.º 2 do artigo 53.º da proposta do PSD. Ora, nesse projecto do Governo, que nos serve de elemento histórico e comparativo, aparece, no artigo 53.º, nos fundamentos de justa causa, o comportamento desleal relativamente à entidade empregadora. Mas com que limites? Designadamente: "Negociando por conta própria ou alheia, entrando em concordância com ela e divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócios, ou desviando clientela do fornecedor."

A minha ideia é que, embora se compreendam - repito - as razões que estão na base deste projecto, não chega, a meu ver, um juízo que tem manifestamente muito de subjectivo. Perguntar: Qual é a sua ideologia? É muito subjectivo, embora possa ter aspectos marcadamente mais objectivos - você está inscrito no partido x? -, o que também se poderá admitir. Quando falamos de ideologia, este é um aspecto marcadamente subjectivista, pois e subjectivo perguntar: Você é mais colectivista? Você tem uma ideologia marxista? Você é um liberal? É que chamamos liberais a pessoas que se ofendem com isso e chamamos marxistas a outras que se ofendem também, dizendo não serem liberais, e tudo isto é, como sabemos, muito discutível.

Assim, iria no sentido de me manter não no quadro constitucional mas no quadro da legislação ordinária, dentro dos estritos limites do comportamento desleal. Quer dizer, quando o facto de haver uma ideologia diversa conduzisse o trabalhador a um comportamento desleal, então não seria pela ideologia ser diversa, mas porque essa ideologia tinha como resultado que ele deixasse de merecer a confiança da entidade patronal por ter um comportamento desleal.

É que deixar isto nos puros e estritos termos de um julgamento sobre se a sua ideologia é idêntica à da entidade patronal ou se e completam ente de sentido contrário parece-me extremamente perigoso. E mais do que isso: não vejo que, mesmo em iniciativas recentíssimas da parte do PSD, essa preocupação tivesse estado presente, nem sequer a vejo aqui ao nível da legislação ordinária. Iríamos fazê-lo agora ao nível do texto constitucional? Parece-me extremamente perigoso por todas estas razões.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Vera Jardim, esta excepção é nitidamente restritiva, ou seja, não é para todos os casos em que haja um comportamento desleal, mas para facilitar que não exista um impedimento pelo motivo de ser de carácter ideológico, de forma a não haver uma dificuldade para a ideia de interpretação do conceito de justa causa. Daí que a nossa preocupação tenha sido predominantemente a de delimitar o círculo das entidades empregadoras que o podem utilizar.

Há pouco, o Sr. Deputado José Magalhães fez uma observação crítica; lenho dúvidas de que ele lenha razão, mas estamos abertos a encontrar melhores formulações. No entanto, na nossa perspectiva, o exemplo do Sr. Deputado Vera Jardim referente ao Jornal Novo não se aplica e suponho até que na redacção não cabe de forma nenhuma aqui. E não penso que devamos excluir, aprioristicamente, o enriquecimento do critério, dizendo que e preciso que, simultaneamente, haja uma violação do dever de lealdade. No fundo, e essa a base, pois, se as pessoas forem leais e correctas, o problema não se põe. Penso, portanto, que poderemos reflectir sobre isso, mas devo dizer que não excluímos a possibilidade dessa integração.

Em todo o caso, gostaria de chamar a atenção - porque isso me parece reconduzir o debate às suas dimensões - para o facto de esta ser uma excepção em que pensamos que o universo deve ser muito limitado. Se esse universo e as notas que o caracterizam são insuficientes, corrijamo-lo, mas não penso que devem existir quaisquer nebulosas institucionais à volta dos pai titios políticos, dos sindicatos ou das confissões religiosas, e que os elementos em causa devem claramente fazer parte tia organização dos mesmos partidos políticos, confissões religiosas ou sindicatos.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Aí lemos duas coisas que podemos explorar. Por um lado, os sindicatos, os partidos políticos e as organizações religiosas têm muitos tipos de organizações. Têm organizações empresariais, e julgo que não tem qualquer influencia que, por exemplo, um sindicato comunista que tenha uma tipografia para fazer o seu jornal lenha lá um trabalhador da UGT ou de outro sindicato. Desde que faça marchar as máquinas... Caso contrário, estaremos no tal Bentfsverbot, na tal proibição de emprego. E isso é que é perigoso. Temos, porém, de admitir que há tarefas que são por si só ideológicas. Quer dizer, se a Igreja ou um partido político tem um jornal, por exemplo o Povo Livre, temos de admitir que não é um trabalhador comunista que vai escrever os melhores editoriais para o Povo Livre. É claríssimo! E o exemplo contrário de um trabalhador social-democrata - para ficarem todos contentes e excluindo o PS, claro -, um trabalhador social-democrata, dizia, que trabalha no Avante também não escreverá certamente os melhores editoriais para este jornal. E, às tantas, colocam-se posições de tal maneira que não e pela infidelidade ideológica, é pela própria impossibilidade

Página 516

516 II SÉRIE - NÚMERO 17-RC

da prestação de trabalho. Teríamos, pois, de demarcar bem os vários tipos de organizações e os vários tipos de trabalho.

O segundo problema reside no facto de uma linha ideológica diversa fazer incorrer o trabalhador em faltas ao dever de lealdade, linha essa que consta da legislação laborai. Porque se o trabalhador, pelo facto de ser comunista, mete areia na máquina da tipografia, não 6 por ser comunista, mas porque violou o dever da lealdade. E aí temos a legislação laborai.

Penso, portanto, que temos de andar muito cautelosamente, pesando todos os prós e os contras. Dir-me-ão talvez que estou marcado pelo Berufsverbot, e talvez esteja um pouco, na medida em que pensei nesses problemas também nessa óptica. E isto tem alguma coisa a ver com a tal proibição do emprego em certas zonas de actividade. É por pensar que uma formulação como aquela que aqui está e perigosa que me preocupo...

O Sr. Presidente: - Se esta formulação existisse na Alemanha, talvez o Berufsverbot não tivesse lido a amplitude e o debate que teve.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Como V. Exa. sabe, o Berufsverbot chegou ao cúmulo de que se proibisse um empregado comunista de ser condutor de caminho de ferro. Temos de ser muitos cautelosos, sobretudo em matéria constitucional, embora, como e óbvio, lambem tenhamos que o ser em matéria de lei ordinária. Porém, consagrar-se na Constituição um articulado deste tipo, genérico, é perigoso. E se bem que existam as restrições para as quais V. Exa. chamou a atenção, penso que não são suficientes.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Presidente, a proposta do n.º 1 do artigo 53.º apresentada pelo PSD parece-me inconveniente. Há factos políticos que não têm qualquer dimensão ideológica. Podem, por consequência - e não é difícil imaginar exemplos -, ter lugar despedimentos por motivos políticos que não sejam ideológicos. Há pouco o Sr. Deputado Vera Jardim referiu precisamente circunstâncias que podem ser integradas nessa possibilidade. Consequentemente, afigura-se-me que a referência à proibição de despedimento por motivos políticos não é razoável, devendo explicitar-se que o que se proíbe e o despedimento por motivos políticos ou ideológicos.

Passando à questão da proposta do PSD, naquilo que ela contém de inovador, tenho dúvidas de que constitua um acto de deslealdade o facto de um funcionário de um partido usar um emblema de outro partido. Tenho dúvidas de que seja um acto de deslealdade um sacristão declarar-se agnóstico e afigura-se-me...

O Sr. Presidente: - V. Exa. leva o seu cepticismo muito longe... Mas está bem.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - ... que esta situação deve ser acautelada.

O Sr. Presidente: - O direito dos sacristãos ao agnoslicismo? Tenho dúvidas...

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Não, Sr. Presidente, pelo contrário...

O Sr. Vera Jardim (PS): - São os sacristãos que ajudam à missa, não esqueçamos esse pormenor.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Eu sei muito pouco sobre tal matéria... Mas chega para o efeito.

VV. Exas. ainda não me permitiram concluir o meu pensamento nem apresentar a minha sugestão, que é quase uma proposta. Não lhe chamo proposta porque não está formulada em termos suficientemente rigorosos.

Diria que são permitidos despedimentos sem justa causa por motivos políticos, religiosos ou sindicais, por entidades políticas, religiosas ou sindicais, respectivamente, quando tal direito se encontre consignado nos respectivos estatutos.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sr.- Deputada Odeie Santos.

A Sra. Odete Santos (PCP): - Relativamente a esta proposta do PSD, também sou da opinião de que não há necessidade - bem pelo contrário, existem iodas as vantagens - em se consagrar este n.º 2 na Consumição. De facto, estas entidades estão perfeita mente salvaguardadas por aquilo que a legislação laboral já comem no que se refere à violação do dever de lealdade. Parece-me até que a própria alteração da palavra "lealdade" para "fidelidade" assume aqui um significado muito mais gravoso. Pela forma como está redigido este n.º 2, exige-se mesmo uma identidade completa de pensamento. Fiel como um cão!...

O Sr. Presidente: - Isso e uma concepção de fidelidade canina.

A Sra. Odete Santos (PCP): - Talvez seja a concepção deste n.º 2.

O Sr. Presidente: - Não é, não!

A Sra. Odete Santos (PCP): - Creio que se pode chegar á conclusão de que, se, por exemplo, um trabalhador de um sindicato da UGT estiver filiado num sindicato da CGTP, e vice-versa, ele poderá ser despedido só por esse motivo. Ainda por cima, o conceito aqui formulado nem sequer estabelece a necessidade de um comportamento culposo do trabalhador; nem sequer significa que a relação de trabalho tenha de ser irremediável e estar totalmente comprometida. A meu ver, isto é extraordinariamente perigoso.

Não estou, pois, de acordo com esta formulação e penso que a legislação laboral e perfeitamente suficiente para salvaguardar as violações culposas por parte do trabalhador.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - A proposta vale o que vale, tem os méritos e os deméritos que tem. Esperava, porém, que não lhe fossem imputados os deméritos que não tem.

É evidente que não é por acaso que se fala em dever de fidelidade. De facto, o dever de fidelidade é mais forte do que o dever de lealdade, é mais raro. A existência e a violação de um dever de fidelidade constituem uma garantia do emprego.

A nossa proposta pode ou não ser aceite - não é isso o que está em causa -, mas a exigência de violação do dever de fidelidade pressupõe, em primeiro lugar, a existência de

Página 517

15 DE JUNHO DE 1988 517

um dever de fidelidade. E este dever existe em casos muito mais estreitos do que os do dever de lealdade, que é um dever normal da relação de trabalho. Prevêem-se apenas os casos em que exista o dever de fidelidade, o que estreita ainda mais o universo de aplicação desta possível causa de despedimento. Se virmos bem as coisas - e nós podemos naturalmente aperfeiçoar a redacção -, esta norma dificilmente se aplicaria a um tipógrafo, mas já se poderia aplicar a um jornalista que escrevesse os editoriais num jornal ou que estivesse ao microfone numa emissora exprimindo opiniões próprias, sendo algo mais do que um mero leitor de nelas.

Independentemente dos méritos da proposta, que já foram analisados, mas cuja cotação não foi muito alta, pelo menos por parte dos partidos que até agora se pronunciaram, pedir-vos-ia que tomassem em consideração o lacto de a violação de dever de fidelidade pressupor em primeiro lugar a existência desse dever, que existe em muito menos casos do que o dever de lealdade e constitui um conceito muito mais estreito. Consequentemente, restringe as possibilidades de despedimento em virtude da clausula que abrimos.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Mas, a seu ver, o dever de fidelidade existe sempre que exista uma relação laborai com uma destas entidades.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Não, Sr. Deputado. Em meu entender, se um sindicato tem um supermercado, não se coloca nesse caso o dever de fidelidade...

O Sr. Vera Jardim (PS): - Mas, tal como a redacção está...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Talvez. A nossa imenção foi muito clara. Numa primeira aproximação, dissemo-lo em termos impressivos e c natural que devamos proceder a correcções. Mas a nossa intenção foi sempre a de estreitar ao máximo o universo de incidência objectiva desta causa de despedimento. Pressupõem-se os casos em que exista o dever de fidelidade confessional, sindical ou partidário. Confesso que continuamos a não ver bem como é que um jornalista do Povo Livre, do Avante ou da Acção Socialista possa ser alguém cujas concepções políticas, sindicais ou religiosas - no caso, por exemplo, da Rádio Renascença - sejam contrárias às das entidades marcadamente confessionais, partidárias ou sindicais.

O sentido da minha intervenção foi não o de defender a proposta - já foi defendida pelos meus colegas -, mas apenas o de explicitar a ideia de fidelidade. É que a fidelidade, contrariamente ao que a Sra. Deputada Odete Santos entendeu, não resulta...

A Sra. Odete Santos (PCP): - Dá-me licença que o interrompa, Sr. Deputado?

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Faça favor, Sra. Deputada.

A Sra. Odete Santos (PCP): - Gostaria de lhe perguntar se, por exemplo, um jornalista da Rádio Renascença, pelo simples facto de ter ideias diferentes da ideologia da Rádio Renascença, já viola esse dever de fidelidade. É o que concluo daqui. Pode não escrever nada, não fazer nada, mas tem ideologia contrária...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sra. Deputada, cogitationes poenem nemo palitar; manifestamente ninguém sofre, nem pode sofrer, sanções por causa dos seus pensamentos. Não se trata de concepções políticas, porque em relação à Igreja tem de valer apenas o paradigma religioso; em relação a um partido, apenas o paradigma ideológico-partidário; em relação a um a sindicato, apenas o paradigma político-sindical. Trata-se, sim, por exemplo, do caso de um jornalista da Rádio Renascença que, sendo marcadamente ateu, o declare aos microfones da citada emissora...

A Sra. Odete Santos (PCP): - E se ele é marcadamente ateu mas só faz programas musicais? Já viola o dever de fidelidade?

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Se tivéssemos de aplicar em concreto o conteúdo normativo a um caso desses, não me parece que um locutor que tivesse a seu cargo, por exemplo, um programa musical ou os comentários sobre os Top Ten violasse o princípio da fidelidade.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): -Sr. Presidente, Srs. Deputados: Creio que a intervenção do Sr. Deputado Costa Andrade é a melhor demonstração dos caminhos que são percorríveis quando se abre a porta que o PSD quer abrir. Porque, se isto ocorre na boca do Sr. Deputado, que e um conhecido e bastante antigo jurista, imagino o que é que não aconteceria se fosse objecto de tergiversações deste jaez ou piores ainda, convertido primeiro em Constituição e depois em lei ordinária (porque e óbvio que esta norma leria de ser actuada por via da lei ordinária). E é isso que, desdobrando a apreciação desta questão em dois planos - o dos conceitos usados e o do campo de aplicação que o PSD, pela voz do Sr. Deputado Costa Andrade, entende plausível -, me leva a considerar tratar-se de um desastre o resultado a que por essa via se chegaria.

No plano conceptual, a interrogação que o Sr. Deputado Costa Andrade aqui lança é verdadeiramente angustiosa. "O que é a fidelidade"? Na boca de Oleio, de Shakespeare, a pergunta deu o resultado que se sabe. Aplicada com o mesmo zelo e com a mesma obsessão, pode originar resultados não menos infaustos na vida jurídico-laboral. Porquê? Porque, se V. Exa. define a fidelidade, naturalmente não talvez como uma identificação canina, mas como um conceito que envolve alguma homologia entre quem define orientações genéricas e quem as cumpre, substitui nesse caso ao conceito de lealdade que se encontre conceptualmente delimitado um outro cuja margem de indefinição é maior.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Dá-me licença que o interrompa, Sr. Deputado?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Em que é que o conceito de lealdade é mais estreito que o conceito de fidelidade?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Muito mais...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Em quê?

Página 518

518 II SÉRIE - NÚMERO 17-RC

O Sr. José Magalhães (PCP): - Podemos abrir sobre essa matéria uma interessantíssima discussão, mas sobretudo, se a aplicarmos ao campo jurídico-laboral, teremos um campo fertilíssimo. Porquê? Porque eu, para dar um exemplo próximo, posso ser extremamente leal para com V. Exa. ? - e talvez me possa honrar de o ter sido sempre - discordando completamente de V. Exa. s e sendo-lhe completamente infiel. Devo dizê-lo com toda a honra e com todo o gosto: sou completamente infiel ao Sr. Deputado Costa Andrade - sinto muito orgulho nisso e não quereria ser o contrário - sem que tenha de ser desleal. São conceitos operatórios totalmente diferentes!

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Devemos ditar para a acta que não há dever de fidelidade entre nós...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas, mesmo que existisse tal dever, eu não me encontraria em situação de adultério unicamente pelo facto de praticar determinados actos, correspondendo à minha vontade, que,, de alguma forma, pudessem ferir alguns zelos - zelos no sentido de ciúmes - daquele que está na outra posição jurídica, do outro lado da relação, que vamos admitir ser sinalagmática. Isto é, se o Sr. Deputado Costa Andrade fosse eventualmente o detentor ou o titular dessa posição jurídica, teria direito a exigir-me certas coisas. Mas, na delimitação exacta dessas exigências, uma coisa e a fidelidade e outra é a lealdade. Pode-se ser lealmente infiel. V. Exa. ou percebe isto ou nada percebe. Isso pode, aliás, originar-lhe problemas horríveis...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - O que o Sr. Deputado está a referir acaba por confirmar aquilo que eu vinha dizendo quanto ao universo de aplicação desta norma por via da fidelidade. Entre nós está manifestamente excluído que não existe - nem imagino que exista - um dever de fidelidade. Mas talvez um dever de lealdade possa um dia existir. Consequentemente, pode vir a colocar-se o problema da violação do dever de lealdade, mas nunca se colocará o da violação do dever de fidelidade. Como tal, o universo de situações cobertas por um é muito mais estreito do que o do outro. Era isto que eu pretendia demonstrar, e não me parece que o Sr. Deputado tenha demonstrado o contrário.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Deputado...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Peço-lhe desculpa, mas, por obrigações partidárias, tenho de me retirar.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Compreendo que a fidelidade o obriga a isso.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Exactamente, Sr. Deputado.

Risos.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas, Sr. Presidente, a questão está precisamente no segundo termo de análise. Admitamos que o conceito de fidelidade e um conceito com um campo operatório distinto do conceito de lealdade. Não discutamos nem aprofundemos quais são exactamente as diferenças, se constitui um mais ou um menos, porque, pode ser um aliud, como é óbvio: pode situar-se a diferença num outro plano (quem é que disse que a fidelidade é um mais em relação à lealdade? Trata-se de algo diferente, de uma realidade que se situa num outro plano e que, consequentemente, abrange um outro universo de beneficiários ou de vinculados).

Parece-me, porém, que este ponto de vista quase filosófico não é o mais relevante porque estamos a tratar do enquadramento jurídico-constitucional de um conceito que o PSD quer consagrar e que remete para um universo semântico, ele próprio delimitado num outro terreno, num outro campo. A questão que me interessa é outra: é que se delimitamos um conceito como o de fidelidade, qualquer que seja o critério e qualquer que seja o patamar em que o insiramos, alguém tem de julgar a sua aplicação. Quem é que pode julgar a sua aplicação? É o empregador. Isto é, quem julga a fidelidade é o empregador, só ele podendo ajuizar se, em determinado momento, o Sr. Deputado Costa Andrade é fiel ou infiel. É uma relação em que o juízo e eminentemente subjectivo e em que, como se trata de fazer um confronto por tabelas, sejam "tabelas de almas" ou de carácter ideológico, o juízo há-de pertencer à entidade que e o fiel das tabelas ou o julgador dos julgadores. O que coloca problemas de avaliação muito difíceis, porque - isto há-de ser mediado pelos tribunais e é uma apaixonante questão - como é que um tribunal avalia da heresia? Como é que um tribunal avalia se o indivíduo A, vinculado ao dever de fidelidade (definido pelo Sr. Deputado Costa Andrade, não sabemos muito bem como), infringiu esse dever de fidelidade? Se o ministro da religião se tornou infiel a essa religião? Só a entidade hierárquica adequada pode definir um juízo sobre isso. É muito difícil num Estado laico que o tribunal venha a dizer que a entidade patronal, neste caso a igreja "tal", "tal" ou "tal", tem absolutamente "toda a razão": o "ministro 'tal' enunciou, anunciou e denunciou, por actos e palavras, que tinha uma concepção oposta àquela considerada correcta pela hierarquia da respectiva igreja; nós, tribunal, o certificamos, portanto está despedido e muito bom despedido - é um infiel, vá-se embora!" O tribunal num Estado democrático está em péssimas condições para emitir esse juízo.

Este é o primeiro aspecto que me parece tornar o conceito imperatório, porque, ainda que pudesse ser aplicado, ou era "livremente" aplicado, isto e, anarquicamente aplicado, irrestritamente aplicado, insindicavelmente aplicado, ou então, para poder ser controlado por qualquer entidade do estado laico - naturalmente, é o subexemplo das confissões religiosas que me parece pertinente neste caso -, o tribunal estava a ingerir-se na emissão de juízos sobre a fidelidade teológica, até. O que e completamente aberrante! O tribunal laico não tem absolutamente nada que julgar se A ou B está bem, se o Sr. Lelèbvre está mal e se o Sr. Bispo da teologia da libertação está completamente mal ou, se face à última leitura da última encíclica, do último documento, do último juízo papal, estão todos muito bem, no seio da mesma família, preenchendo, em arco-íris de variedade, o seu lugar na mesma comunidade ecuménica. O tribunal e totalmente impotente em tais terrenos e deve ser completamente alheio a coisas destas - não deve haver nenhuma ingerência do Estado nisto. O que me leva a considerar ser uma exigência do próprio Estado laico que não haja possibilidade de nenhum juízo deste tipo ser emitido.

Concluo então que não é isso que nos interessa, mas sim uma outra questão: a hipótese configurada pelos Srs. Deputados do PSD, e que pode ser relevante, é totalmente resolúvel pelos meios do direito em vigor. Se se colocam em apreciação questões relacionadas com atitudes e comportamentos - comportamentos que terão que ser

Página 519

15 DE JUNHO DE 1988 519

culposos-, que hão-de caracterizar-se não só por uma certa ilicitude como pelo facto de tornarem insuportável a manutenção da relação jurídico-laboral, nesse caso a relação jurídico-laboral cessa. Mas cessa já! Porquê? Porque há justa causa, no sentido pleno que ela tem na Constituição vigente! A proposta é, se visa só isto, inútil!

Terceiro patamar de raciocínio: se isto fosse consagrado, com os equívocos referidos, e como o normativo teria de ser mediado através da acção do legislador ordinário, correríamos o risco de o PSD ter, nesta matéria, a mesma capacidade interpretativa que revela em relação à cláusula contida no artigo 53.°, n.° 1 - isto é, nenhuma. Ter um conceito interpretativo de justa causa tão lato, tão lato, tão lato, que consideraria, por exemplo, justa causa ou, neste caso, violação do dever de fidelidade, tal qual aqui é (mal) desenhado, situações como as que caracterizam os tais mirabolantes e infindáveis comportamentos que constam do "pacote laborai" que hoje está a ser apreciado nas instâncias competentes de fiscalização de constitucionalidade, isto é, uma caterva de comportamentos que dificilmente se pode cogitar que caibam dentro do conceito de justa causa e, neste caso, dificilmente se poderia cogitar que coubessem dentro do conceito de dever de fidelidade. Ou seja, arriscávamo-nos a uma dupla perversão: em sede constitucional e em sede de legiferação ordinária - o que é um risco insuportável.

Ultimo patamar de raciocínio: que campo de aplicações viabilizaria a proposta do PSD? Admitamos que o legislador constitucional ou de revisão constitucional era suficientemente complacente para adoptar um conceito vago ou nulo e com estas dificuldades que situei; que o legislador ordinário o alargava, ou mesmo o mantinha dentro dos limites vastos que acabei de situar. Que campo de aplicação é que se abriria? O Sr. Deputado Costa Andrade foi claríssimo: é tão viciosa a concepção do PSD que o PSD até entende que têm carácter confessional empresas, sociedades comerciais, como é a Rádio Renascença, que prosseguem não um múnus apostólico, nem um múnus espiritual, mas actividades em que se misturem ou amalgamem realidades de índole diversa - desde o anúncio da bebida Tala-Tala, ou do produto Popo-Popo, ou de outra mercadoria qualquer, tudo isto misturado com a missa, com o múnus espiritual. Isto é, o PSD considera que um jornalista da Rádio Renascença (isso ficou na acta e é verdadeiramente espectacular!) poderia, no exercício das suas funções, incorrer na violação do dever de fidelidade confessional - o que é verdadeiramente absurdo e não pode imaginar-se que se aplique. Aliás, conheço muito poucas pessoas que sustentem uma tese desse tipo, isto é, que transformem os homens e mulheres da Rádio Renascença em monges, que confundam a entrada para as Carmelitas com a entrada para a Rádio Renascença. Não é assim! Realmente, não é a título nenhum! E mesmo com uma norma deste tipo não o seria. O Sr. Deputado Costa Andrade, puxado à terra, admitiria perfeitamente haver uma grande diferença entre o monge e o jornalista que faz o noticiário ou o cidadão que limpa a sacristia: será que o honesto trabalhador que limpa a sacristia tem de ser sindicado por se ter convertido ao budismo? Teve uma crise de consciência, transformou-se em budista, mas continua a limpar a sacristia - deve ser despedido ou pode continuar (e até é um dever de fidelidade económica e de bom relacionamento que continue)?

Risos.

Portanto, Sr. Presidente, não podemos concordar com a proposta, sobretudo depois das digressões da bancada do PSD. A causa é má, não é muito fácil de defender, mas defendida em tais termos é francamente desastrosa. Sobretudo sabendo nós que o PSD tem do artigo 53.° a opinião que ressalta sinistramente da proposta de lei sobre os despedimentos.

O Sr. Presidente: - Espero que o PCP aplique rigorosamente a todos os seus militantes a doutrina que neste momento expendeu. Há alguns casos que neste momento ecoam nos jornais e irão permitir ter a pedra de toque desse comportamento.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, se V. Exa. quiser abrir um debate sobre essa matéria, em sede de revisão constitucional,...

O Sr. Presidente: - Não, não!

O Sr. José Magalhães (PCP): -... proponho que estabeleçamos as balizas e os parâmetros; depois partiremos para esse debate.

O Sr. Presidente: - Um debate em sede de revisão constitucional, não.

O Sr. António Vitorino (PS): - Pode ser um debate livre, sem balizas.

O Sr. Presidente: - Um debate livre seria divertido.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Se valer tudo, Sr. Presidente, vamos a isso!

O Sr. António Vitorino (PS): - É de homem! Risos.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Pela minha parte, estou de acordo com algumas das afirmações do Sr. Deputado José Magalhães no que diz respeito à muito difícil sindicabilidade deste conceito de fidelidade ou infidelidade. Queria chamar apenas em ajuda disto a própria dificuldade do conceito de lealdade-já esse é difícil; e tanto é difícil que a lei do trabalho, as leis laborias, normalmente e ao contrário de outros deveres, procuram abrir caminhos para facilitar essa interpretação.

É o caso até da última proposta do Govêrno que li há pouco - comportamento desleal, designadamente: negociando por conta própria, concorrendo, divulgando informações -; faz um esforço para manter este dever de lealdade dentro de certos limites, já porque ele é de difícil sindicância, efectivamente. Quanto mais este dever de fidelidade! Parecia-me realmente perigoso que se fosse por este caminho.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - A minha sugestão não interessa a VV. Exas.? A sugestão que há pouco fiz não interessa a VV. Exas.? É uma pergunta.

Página 520

520 II SÉRIE - NÚMERO 17-RC

O Sr. Presidente: - Julgo que todas as sugestões que os Srs. Deputados fazem, designadamente, e por maioria de razão, a que V. Exa. faz, devem ser objecto da devida ponderação, mas naturalmente essa ponderação requer algum tempo para poder ser devidamente examinada. A minha resposta não é que não interessa, mas nós não tivemos o tempo suficiente, ficou registada. De resto, não estamos aqui a fazer uma discussão final - nem mesmo as caricaturas que por vezes aparecem são finais, vai haver mais caricaturas ao longo do debate. Portanto, teremos oportunidade de a tomar na devida consideração.

Podemos passar, suponho, à análise do n.° 2 da proposta apresentada pelo PCP.

Para fazer a respectiva motivação, tem a palavra a Sra. Deputada Odete Santos.

A Sra. Odete Santos (PCP): - Penso que esta proposta é muito clara e resulta do que já temos dito, nomeadamente nas discussões sobre o conceito de justa causa de despedimento face à Constituição. Como sempre temos dito, entendemos que este conceito de justa causa não vai ao ponto de proibir os despedimentos exigidos para salvaguarda da empresa, com sacrifício de alguns postos de trabalho, que é a questão do despedimento colectivo. Por isso, e porque decorre de vários artigos da Constituição, entendemos que o assunto ficará devidamente clarificado transpondo para a Constituição o conceito de despedimento colectivo, que, aliás, assenta na lei ordinária existente.

O Sr. Presidente: - Algum dos Srs. Deputados deseja intervir ou VV. Exas. consideram estar suficientemente esclarecido o sentido da proposta do PCP?

Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Mais uma vez nos defrontamos aqui com o problema de constitucionalizar, ou não, matérias que já estão reguladas na lei ordinária. É o caso desta proposta do n.º 2 do artigo 53.º, que reproduz mais ou menos, penso que praticamente mantém, aquilo que está hoje aceite como fundamento do despedimento colectivo e também como garantias do próprio despedimento colectivo. Parece-me, apesar de tudo, que esta matéria do despedimento colectivo é daquelas que, mais recentemente e com a evolução do direito do trabalho, tem tido ou pode ter evoluções para um lado ou para o outro, sem que isso signifique perda das garantias dos trabalhadores, nomeadamente a garantia da autorização administrativa, do parecer prévio das organizações e do direito à indemnização - são estes três os pólos em que assentam as garantias dos trabalhadores neste tipo de despedimento. Apesar de tudo, eu seria levado a crer que este n.º 2 - não me parece que seja essencial, mas nada temos contra a sua aceitação - consubstancia aquilo que hoje é, no fundamental, tido como as condições legítimas de um despedimento colectivo.

A única dúvida que temos é se deveremos ou não constitucionalizar este adquirido, na medida em que se trata de uma matéria que está em mutação, desde logo nos tais tipos de despedimento tecnológico, que já aqui são introduzidos na proposta do PCP; portanto, temos um certo receio de que, constitucionalizando com tanto pormenor estas condições de despedimento colectivo, possamos arranjar uma fixação qualquer que possa revelar-se impeditiva de alterações que, repito, não são necessariamente em desfavor dos trabalhadores.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, creio que talvez não haja inconveniente em procurar reflectir de imediato sobre algumas questões equacionadas pelo Sr. Deputado Vera Jardim, salvo se algum dos Srs. Deputados do PSD entender que seria mais pertinente adiantar já interrogações ou observações que possam também ser consideradas. Se assim não for, eu adiantava um rápido comentário a uma das questões colocadas pelo Sr. Deputado Vera Jardim que me parece particularmente pertinente. Talvez seja positivo, até na óptica da intervenção do PSD.

Creio que se torna evidente aos olhos de todos que aquilo que o PCP pretende, ao introduzir propostas de aditamento deste tipo, é enriquecer a constituição jurídico-laboral. É evidente que se pode ter sobre ela o juízo que se tiver, mas haveremos todos de reconhecer que há zonas onde tem uma particular densidade e até concentração e precisão, há outras onde tem menos precisão e concentração. É evidente também que o PSD, nesta matéria, tem um projecto de revisão constitucional que aponta para um conjunto (que, em nossa opinião, é inquietantemente vasto) de supressões. E é evidente que o nosso projecto está precisamente nos antípodas e aponta para enriquecimentos.

A questão que se pode colocar é a de saber se esses enriquecimentos são enriquecimentos sem justa causa e, portanto, se são desmedidos, desproporcionados e infundados, ou se vão tocar em questões quanto às quais pode dizer-se que a Constituição precisa de obras. Nesta matéria sabemos todos que aquilo que o artigo 53.º, no seu n.º 1, exprime foi pensado em torno da problemática dos despedimentos individuais e que aquilo que se quis, sem duvida, excluir foi que os trabalhadores pudessem, por alguma forma, perder o emprego por coisas a que são totalmente alheios, uma razão baseada no arbítrio da entidade patronal, com sacrifício injustificado de interesses tão importantes como todos aqueles que se ligam à permanência do vínculo laborai, à continuação do contrato, etc. No entanto, sabemos também que, em boa e saudável hermenêutica, o facto de a proibição do despedimento sem justa causa se encontrar consignada nos termos em que o está não deixa de ter uma certa margem de projecção no próprio regime dos despedimentos colectivos e, portanto, é sustentável (é amplamente sustentado entre nós, e ainda bem, e por vezes censurado, criticado, quanto a nós mal) que ao proibir-se o despedimento sem justa causa, como se proíbe nos termos do n.º 1, fica vedado, ipso facto, ipso jure, o uso dos despedimentos colectivos como forma de tornear ou defraudar essa proibição, atingindo em massa aquilo que não se pode atingir caso a caso.

Por outro lado, ao proclamar-se e ao acautelar-se a segurança no emprego, há-de fluir da norma constitucional respectiva uma tendência para a restrição do despedimento colectivo por forma a abranger não todos os casos, mas apenas aqueles casos em que haja razões económicas relevantes - suficientemente relevantes - para justificarem o sacrifício da garantia constitucional respectiva. Isto leva a concluir, em saudável hermenêutica, repito, que o despedimento colectivo só possa ser admitido nos casos em que seja absolutamente necessário para efeitos de salvaguarda de um interesse atendível. Que é que nós propomos? Propomos que se defina, que se limite, a margem de conformação do legislador ordinário. Assumimos isso plenamente! O que queremos é conformar a margem de liberdade do legislador ordinário, é definir balizas dentro das quais ele haja de mover-se. Evidentemente, essas balizas hão-de ser, para terem utilidade, mais rigorosas do que são hoje.

Página 521

15 DE JUNHO DE 1988 521

Pergunta do Sr. Deputado Vera Jardim: mas a preocupação de rigor não terá levado a fechar-se o futuro e, portanto, a prejudicar-se os trabalhadores?

O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Deputado, suponha que, numa legislação sobre o despedimento colectivo, se chega à conclusão de que, em caso de acordo das entidades representativas dos trabalhadores, não é necessária a autorização prévia administrativa. Suponha. Nós tínhamos um preceito constitucional que diz "e está sujeito a autorização administrativa prévia". Parece-me que esta matéria tem um grau de evolução recente, bastante para que me faça temer estarmo-nos a prender aqui a uma formulação que é a de hoje, mas pode não ser a de amanhã. Suponha esta hipótese. Note-se: coisa que, aliás, já na discussão do pacote laborai foi admitida, em alguns pontos - se as organizações dos trabalhadores são as primeiras a concordar: sim, senhor, estamos de acordo com este despedimento colectivo de 50 trabalhadores, achamos que isto é importante para esta empresa; continua V. Exa. s preso a um dispositivo constitucional que lhe diz "só com autorização administrativa prévia". São estas as minhas preocupações.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Vera Jardim, compreendemos absolutamente a sua preocupação de não fazer cláusulas definidas em termos tais que inviabilizem situações possíveis e justas.

Não creio que seja esse o caso da cláusula que apresentamos. É evidente que, se se provasse ser esse o caso, estaríamos disponíveis para obter uma formulação eventualmente mais ajustada. No entanto, creio que, nesse ponto, salvo melhor opinião - e teremos ocasião de ponderar mais lata, basta e profundamente aquilo que acaba de afirmar -, não é sequer esse o caso. Se estabelecemos um regime em que o despedimento colectivo vem condicionado e balizado por um conjunto de pressupostos dos quais o primeiro é um elemento de carácter teleológico ou de definição pelo objectivo ("só com objectivos de carácter económico, financeiro ou tecnológico que o determinem" - porque, como sabe, nem todos os motivos de carácter financeiro, económico ou tecnológico são determinantes para um despedimento: poderão não ser); se se garante uma componente de intervenção pública na fiscalização da verificação desses pressupostos (ou seja, na integração entre o direito e o facto e, portanto, na actividade certificadora disso mesmo que pode ter naturezas muito diferentes); se se faculta a intervenção dos trabalhadores pela forma devida e própria com um carácter prévio e assegurar sempre; nessas hipóteses, uma indemnização - então V. Exa. poderá maleabilizar como entender a intervenção pública no processo.

A expressão "a autorização" decorre do facto de a nossa proposta estar moldada sobre o regime vigente, regime esse que não é, evidentemente, o único possível, embora comporte determinadas garantias. Na hipótese que o Sr. Deputado enunciou poderia até não se colocar nenhum problema do tipo daqueles que receia porque se se estabelece um acordo entre trabalhadores e a entidade patronal para obter esse efeito jurídico, isso pode conduzir à dispensa da intervenção pública.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Em sede de lei ordinária - disse eu. Pode chegar-se à conclusão de que há hipóteses em que não é precisa intervenção.

O Sr. José Magalhães (PCP): - É possível conceber muitas modalidades. Mesmo com uma cláusula constitucional deste tipo, haveria muitas modalidades adequadas para considerar esse efeito "autorizativo" preenchido. Poder-se-ia, em sede de lei ordinária, estabelecer que, havendo parecer positivo, prévio e favorável da organização dos trabalhadores, havia autorização automática ou autorização obrigatória. Isto é, fazer decorrências ou efeitos de simplificação e de decisão tácita, automática, condicionada e vinculada que não constituíssem impedimento à preocupação que o Sr. Deputado enumera.

Mas repare que pode nem ser assim - e não estudei suficientemente a questão nem troquei impressões com outros camaradas meus para poder apurar um ponto de vista mais fundado sobre a matéria. O que gostaria de sublinhar, nesta sede e neste momento, é tão-só que, se se chegar à conclusão - como creio que se pode chegar e V. Exa. não contrariou esse ponto de vista - de que há uma margem de enriquecimento possível nesta esfera e que essa margem de enriquecimento pode traduzir-se na consagração de certos critérios e critérios certos (quanto à finalidade a preencher, quanto aos pressupostos, quanto ao processo, quanto à intervenção dos trabalhadores e quanto às consequências pecuniárias em termos de indemnização); então teríamos dado um passo positivo para que a Constituição fosse enriquecida neste domínio. Isso pode ser extremamente importante, tendo em conta a situação e a vida jurídico-laboral em Portugal.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sousa Lara.

O Sr. Sousa Lara (PSD): - Sr. Presidente, quero fazer apenas um comentário, se me permite, a título pessoal. Gostaria de centrar esta questão, de certa forma, politicamente, que é o approach que me parece mais apropriado fazer.

Suponho que toda a legislação laboral tem de ter um equilíbrio interno e um equilíbrio nem abstracto nem meramente técnico, mas adaptado à circunstância política e conjuntural do nosso país, isto é de um país democrático integrado nas Comunidades Europeias. Penso que o Sr. Deputado Vera Jardim explanou um ponto de vista muito pertinente, que é o da novidade da legislação laborai sobre esta matéria. E esse ponto de vista encerra também o da ausência de não sujeição a uma certa função darwiniana da legislação, o que me carece ser um pecado da nossa forma de estar relativamente à legislação. Penso também que o despedimento colectivo é sempre uma solução má e indesejável e que o seu regime poderia ser apertado se houvesse uma maior flexibilidade noutros regimes. Julgo que neste momento é o regime possível.

Exactamente pelas razões que o Sr. Deputado acaba de invocar e que faço minhas com estas considerações, parecer-me-ia - a título meramente pessoal - que não seria de acolher esta proposta do PCP, apesar da pertinência da respectiva formulação em alguns aspectos concretos.

O Sr. Presidente: - Se mais nenhum dos Srs. Deputados deseja intervir, penso que não se justificará entrar agora na análise do artigo 54.º Temos, portanto, o seguinte panorama para a próxima semana: iríamos recomeçar as nossas actividades na terça-feira às 15 horas com a análise do artigo 54.°, admitindo que, nessa altura, já haja possibilidade de compulsar a listagem que tinha sido suscitada pela discussão do PCP quanto às inelegibilidades. Nessa altura poderíamos começar por aí, ou seja, pelo aditamento do n.º 3 ao artigo 50.°, proposto pelo PCP.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, estou de acordo com a ideia de atacar as inelegibilidades - salvo seja -, mas ainda não acabámos a análise das propostas de

Página 522

522 II SÉRIE - NÚMERO 17-RC

alteração referentes ao artigo 53.º Deixando de lado, mesmo, as questões das propostas apresentadas pelo CDS, há ainda outras propostas. Quanto ao PSD, o n.fi 1 não foi ainda apreciado, e há ainda um n.º 2 da versão proposta pelo PRD que não entrou sequer no debate.

O Sr. Presidente: - Tem toda a razão, eu precipitei-me. Poderíamos, de resto, aproveitar este quarto de hora para acabar a discussão do artigo 53.° O que penso é que não deveríamos iniciar a discussão do artigo 54.º Mas os pressupostos alteraram-se.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, dado não estarem aqui presentes dois dos portagonistas essenciais desta proposta, propunha que os mesmos fossem regularmente notificados e se produzissem aqui à hora regimental para apresentarem as criaturas de que são progenitores, de forma a podermos fazer um debate também com a presença dos interessados, embora, naturalmente, se isso for impossível, sejamos obrigados a discutir à revelia.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, como V. Exa. sabe, nós não seguimos esse procedimento porque todos os Srs. Deputados estão notificados e sabem que a discussão vai correndo. Infelizmente, vai até correndo com alguma lentidão. Se houver algum argumento ponderoso, nós poderemos reconsiderar. Agora esse argumento - salvo o devido respeito - não me parece que deva ser considerado.

O Sr. Vera Jardim (PS): - V. Exa. liberta-nos?

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, penso que deveríamos acabar de discutir isto. Só se VV. Exas. acharem que num quarto de hora não o conseguimos fazer...

Uma voz: - Penso que não será possível fazê-lo, até porque há votações no Plenário.

O Sr. Presidente: - Se VV. Exas. acham que é tão importante votar no Plenário nesta matéria, vamos fazê-lo.

Vozes: - Muito bem!

Risos.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vamos então ficar com a finalização do artigo 53.° Iremos depois para o artigo 54.° ou para a análise do n.º 3 do artigo 50.° Recomeçaremos as nossas actividades terça-feira às 15 horas e trabalharíamos terça e quarta-feira de tarde, quinta-feira de manhã e de tarde e ponderíamos a hipótese de trabalharmos na sexta-feira de manhã.

Srs. Deputados, está encerrada a reunião.

Eram 19 horas e 50 minutos.

Comissão Eventual para a Revisão Constitucional

Reunião do dia 12 de Maio de 1988

Relação das presenças dos Srs. Deputados:

Rui Manuel Parente Chacerelle de Machete (PSD).
Carlos Manuel de Sousa Encarnação (PSD).
António Costa de Sousa Lara (PSD).
Carlos Manuel Oliveira da Silva (PSD).
José Luís Bonifácio Ramos (PSD).
Licínio Moreira da Silva (PSD).
Luís Filipe Garrido Pais de Sousa (PSD).
Manuel da Costa Andrade (PSD).
Maria da Assunção Andrade Esteves (PSD).
Mário Jorge Belo Maciel (PSD).
Miguel Bento da Costa Macedo e Silva (PSD).
Rui Alberto Limpo Salvada (PSD).
Rui Manuel Lobo Gomes da Silva (PSD).
António de Almeida Santos (PS).
Alberto de Sousa Martins (PS).
António Manuel Ferreira Vitorino (PS).
Jorge Lacão Costa (PS).
José Eduardo Vera Cruz Jardim (PS).
José Manuel Santos Magalhães (PCP).
José Manuel de Melo Antunes Mendes (PCP).
Herculano da Silva Pombo Marques Sequeira (PEV).

Descarregar páginas

Página Inicial Inválida
Página Final Inválida

×