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Quinta-feira, 30 de Junho de 1988 II Série - Número 21 -RC

DIÁRIO da Assembleia da República

V LEGISLATURA 1.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1987-1988)

II REVISÃO CONSTITUCIONAL

COMISSÃO EVENTUAL PARA A REVISÃO CONSTITUCIONAL

ACTA N.° 19

Reunião do dia 24 de Maio de 1988

SUMÁRIO

Deu-se continuação à discussão do 6.º relatório da Subcomissão da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional (CERC), respeitante aos artigos 53.° a 62.º e respectivas propostas de alteração.

Durante o debate intervieram, a diverso título, para além do presidente, Rui Machete, pela ordem indicada, os Srs. Deputados José Magalhães (PCP), Maria da Assunção Esteves (PSD), Miguel Macedo e Silva (PSD), António Vitorino (PS), Vera Jardim (PS), Almeida Santos (PS), José Luís Ramos (PSD) e Jorge Lacão (PS).

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O Sr. Presidente (Almeida Santos): - Srs. Deputados, temos quorum, declaro aberta a reunião.

Eram 16 horas e 10 minutos.

Em primeiro lugar, Srs. Deputados, devo referir que esta reunião, embora estivesse marcada para as 10 horas, só teve inicio agora porque de manhã não foi possível reunir um número suficiente de deputados, o que é lamentável.

Srs. Deputados, vamos iniciar o debate do artigo 60.a-A da proposta apresentada pelo PCP, sob a epígrafe "Garantias especiais", cujo teor é o seguinte:

1 - A duração do trabalho será progressivamente reduzida.

2 - O salário mínimo é impenhorável e sobre ele não poderão incidir quaisquer compensações, descontos ou deduções, salvo por dívidas de natureza alimentar e nos limites da lei.

3 - Os créditos salariais emergentes do contrato de trabalho, da sua violação ou cessação são pagos com preferência a quaisquer outros.

4 - A lei estabelece garantias civis e penais do pagamento pontual da retribuição devida aos trabalhadores por conta de outrem, assegurando em caso de atraso a sua adequada protecção.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, ainda que a epígrafe procure unificar os conteúdos normativos cuja consagração o PCP propõe, é bom de ver que se trata de preceitos de natureza bastante distinta. São realmente todos eles unificados pelo facto de acrescerem a margem de garantia constitucional de direitos dos trabalhadores em domínios que nos parecem particularmente sensíveis. Creio que valerá a pena procurar abordá-los separadamente.

Começo pelo último. Todos sabemos as circunstâncias que rodearam a aprovação de Lei n.° 17/86, de 14 de Junho, sobre os efeitos jurídicos especiais produzidos pelo não pagamento pontual da retribuição devida aos trabalhadores por conta de outrem. Batemo-nos por essa lei contra a proliferação de salários em atraso, cuja vigência desejaríamos, no entanto, o mais possível transitória. Ela insere-se dentro da criação de normativos a que se vem chamando, com propriedade, "direito laborai da crise" e cuja excessiva incrustação no corpo constitucional é tudo menos desejável. Não foi, pois, isso que desejámos. Não quisemos fazer a pura transposição da legislação ordinária em matéria de salários em atraso para a Constituição. Aquilo que quisemos foi sublinhar a importância de uma explícita e reforçada garantia constitucional da retribuição devida aos trabalhadores. Trata-se apenas de criar uma incumbência adicional - que, neste momento, foi de um certo modo preenchida mas que, em circunstâncias diferentes, pode ser preenchida de maneira distinta - para garantir os salários. A norma é económica e não tem, em termos de conteúdo constitucional, um teor excessivo. Limita-se a prever que a lei deve estabelecer garantias, quer de cunho puramente civilístico quer de cunho penal, "do pagamento pontual da retribuição devida aos trabalhadores por conta de outrem, assegurando em caso de atraso a sua adequada protecção".

Sabemos todos que a garantia do direito à retribuição é uma obrigação, inclusivamente por força de compromissos internacionalmente assumidos - lembro-me em particular daquele que decorre da Convenção n.° 95 da OIT, sobre a protecção do salário. E a criação de mecanismos que efectivem essas obrigações terá que ser feita de maneira flexível e adequada às circunstâncias concretas. Trata-se tão-só, em sede constitucional, de mencionar a necessidade de existência dessas garantias, civis e penais: assim reza o preceito proposto.

Devo dizer que no processo de debate que ulteriormente desencadeámos sobre este preceito nos veio a parecer que a mera alusão ao atraso pode ser algo redutora. Podem existir outras circunstâncias em que se afigure ou se revele necessária a imaginação legal e a responsabilidade do legislador para garantir a protecção dos trabalhadores e o cumprimento das obrigações nessa esfera em situações de crise. Sabe-se que no próprio âmbito das Comunidades essa é uma matéria que deu origem, atempadamente, a directivas, directivas essas cujo sistema de vigência na ordem interna é, no entanto, aquele que os Srs. Deputados conhecem. Pela nossa parte, consideramos que a norma que propomos se mantém dentro dos limites de concisão recomendados para circunstâncias como aquela que enfrentamos.

O segundo tema que o PCP quis introduzir através das suas propostas é o da duração do trabalho. Quanto a isso, não se trata, em sede de revisão constitucional, de trasladar toda a discussão que a problemática da duração do trabalho vem suscitando na nossa realidade laborai e em particular na esfera sindical. Sabe-se que vem sendo preconizada por organizações representativas dos trabalhadores a redução da duração semanal máxima legal do trabalho para as 40 horas, sem prejuízo das durações inferiores consagradas e portanto sem prejuízo das conquistas alcançadas nesse domínio. O preceito cuja consagração propomos não alude - e nisto se distingue de uma proposta convergente ou similar que o PCP apresentou na primeira revisão constitucional - a qualquer quantitativo preciso, na medida em que nos pareceu que isso poderia vir a ser constritivo e, nesse sentido, indesejável. O preceito aponta para o estabelecimento de um princípio que exprime uma tendência, um objectivo, uma finalidade, qual seja, tão-só, a da "redução progressiva da duração do trabalho", o que permite diversas diferenciações, tendo-se em conta as diversas realidades dos diversos sectores. Tal não é excludente da multiplicidade de soluções, mas é seguramente útil para fixar um rumo. Seria extremamente importante em nosso entender que, em sede de revisão constitucional, pudesse ser dado um contributo positivo para definir esse rumo.

A terceira proposta do PCP diz respeito à tutela constitucional do salário mínimo. Tratou-se aqui de proclamar, em termos mais estritos e mais terminantes do que aqueles que decorrem da lei geral, o seu carácter impenhorável e a impossibilidade de o purgar ou o expurgar, a título de compensação, desconto ou dedução. Excluíram-se, naturalmente, as dívidas de natureza alimentar, salvaguardando-se ao legislador uma certa margem de definição, designadamente dos pertinentes limites.

O último dos contributos que o PCP adiantou nesta sede diz respeito à tutela constitucional dos créditos salariais. Trata-se aí de uma matéria do maior melindre, em relação à qual as deficiências do regime legal

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vigente são patentes, mas em que a margem de manobra, em sede de revisão constitucional, é relativamente apertada. Haverá que conceder aqui ao legislador ordinário poderes de conformação que sejam bastantes e flexíveis, salvaguadando-se, porém, um objectivo. Foi com esse objectivo que nos preocupámos, isto é, com a alteração substancial do regime de que beneficiam os créditos salariais. Parece-nos urgente e importante que haja uma alteração sensível do regime dos privilégios creditórios, que coloque realmente o trabalhador em posição de ser pago pelos créditos salariais ou de indemnização pela violação ou cessação do contrato, de preferência a outros credores. Tem-se como motivo relevante e decisivo a natureza dos créditos salariais. Há que atender à própria função alimentar de que o salário se reveste. Conceder-lhes a qualidade jurídica de "supercredores" visa tão-só colocar os trabalhadores em condições de rivalizar com outros credores, com todas as garantias inerentes, numa posição tal que lhes permita exercer uma real influência nas decisões que respeitem ao futuro da empresa. Sabemos que é possível agir nesta esfera através de meios de natureza financeira, em situações em que a empresa enfrente um quadro difícil; sabemos que podem estabelecer-se sanções as mais diversas para as entidades patronais que pratiquem ilícitos; podemos, em situações críticas, jogar com os instrumentos de carácter financeiro e económico. Sabemos, também, que tudo isso pode falhar! E, se tudo isso falhar, é importante reforçar a margem de intervenção e de negociação dos trabalhadores enquanto detentores de alguma coisa que foi o fruto do seu trabalho, créditos salariais que podem ser relevantes para orientar o próprio rumo que as coisas tomam. Isto é perfeitamente compatível com a noção de democracia laborai plasmada constitucionalmente e é extremamente importante, em termos práticos e materiais, para que o futuro da empresa seja coisa em que os trabalhadores tenham uma palavra a dizer, mesmo em situações de crise ou sobretudo nelas. É óbvio que, ao propor-se o aditamento de garantias deste tipo, se está a aditar aquilo que é já o conteúdo rico da Constituição laborai. Como é evidente, sabemos que quem tenha concepções minimalistas encarará algumas das propostas com uma prudente reserva, para não dizer com uma marcada hostilidade.

Só que, pela nossa parte, não concebemos a revisão constitucional como um "negócio puramente amputativo". Não a vemos como "negócio" no sentido sórdido, mas seguramente não a vemos como uma sucessão de amputações. O problema do PSD, tal qual tem vindo a ser revelado nestes debates, é que não só encara nenhuma prótese positiva na Constituição como pensa em algumas próteses perversas e sobretudo numa grande, grande sequência de amputações. Creio que é uma má posição ou, pelo menos, que é uma posição que torna o diálogo extremamente difícil. Porque ou se encara a Constituição como um todo, e logo, em sede de revisão, como um lugar de fluxos de diversos sinais que busquem um desejável equilíbrio, ou então a revisão constitucional não é pura e simplesmente possível. As propostas que apresentámos colocam por excelência este problema. Trata-se de saber se, aqui ou ali, a sua formulação é correcta, demonstrar a sua perscindibilidade ou imprescindibilidade. Estamos inteiramente cientes disso. Coisa inteiramente diversa é a exclusão abinitio ou em termos terminantes de tudo aquilo que sejam melhorias de sinal favorável à defesa dos direitos dos trabalhadores.

A indisponibilidade para considerar tais melhorias, o fechamento subjacente a tal concepção torna o discurso sobre a revisão constitucional um monólogo de apostilha favorável aos direitos das entidades patronais. Mas essa não é a nossa concepção da revisão constitucional. É portanto com um apelo no sentido de que estas propostas sejam ponderadas nos seus méritos e seguramente nos seus deméritos que terminaria esta curta introdução.

O Sr. Presidente: - Não tenho dúvidas sobre a saúde que subjaz à intenção destas propostas, mas tenho algumas quanto à sua formulação e também quanto à sua constitucionalização.

Diz-se no n.° 1 que "a duração do trabalho será progressivamente reduzida": formulada neste termos, esta alínea estabelece uma obrigação de reduções sucessivas, sem limite. Quer dizer, só se lhe não fixa a cronologia. Parece-me que está no vosso espírito uma meta, um objectivo. A tendência será para a redução do trabalho e não para o seu reforço. É uma coisa que se poderia conceber, embora seja discutível a necessidade da sua constitucionalização.

A impenhorabilidade do salário mínimo pode dar lugar à irresponsabilidade por dívidas. Quer dizer, entre o indivíduo que recebe o salário mínimo e aquele que recebe um pouco mais, o primeiro poderia disfrutar da vantagem de poder contrair dívidas sem as pagar. Hoje, o limite da penhorabilidade do salário é um terço. Poderia passar a ser um quinto, por hipótese. Mas a impenhorabilidade absoluta parece-me susceptível de provocar a irresponsabilidade, o que também não me parece correcto. É preciso que se não desproteja a boa fé de terceiros, neste caso, credores.

Por outro lado, quando o Sr. Deputado José Magalhães fala em dívidas de natureza alimentar, refere-se à obrigação jurídica de prestar alimentos, ou também ao preço das batatas, da carne e do peixe, que também são alimentos?

Fala-se em "créditos salariais emergentes do contrato de trabalho" e depois na "sua violação ou cessação". Penso, no entanto, que, se os créditos salariais "emergem" de contrato de trabalho, já nisso se inclui quer a sua violação quer a sua cessação. Porém, não é esta a minha preocupação, mas sim o seguinte: a "preferência em relação a quaisquer outros" aplica-se também relativamente ao crédito hipotecário? Temos de nos entender. Se a preferência opera igualmente em relação ao crédito hipotecário, discordo, por considerar inaceitável que sejam abrangidas todas as garantias e privilégios, inclusivamente as do Estado. Se, porém, se trata de colocar a protecção do crédito por salários a coberto de uma preferência sólida, vamos discutir essa questão.

Por outro lado, o estabelecimento de garantias penais significa que vamos abrir a porta à prisão por dívidas? Como se sabe, não há prisão por dívidas, salvo no caso de não pagamento de alimentos. Ao estabelecermos garantias "penais", não estaremos a abrir a porta à prisão por dívidas?

Refere-se ainda o atraso. Trata-se apenas de atraso? E se houver mesmo recusa ou impossibilidade de pagamento? Nesse caso já não existe protecção? E no

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caso de falência também não? A expressão "adequada protecção" é prudente. Mas gostaria de ver a expressão "garantias civis e penais do pagamento" concretizada, sob pena de justificar alguns receios.

Colocadas estas questões, que não constituem ainda uma tomada de posição, dou a palavra à Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Muitas das afirmações que pretendia aqui deixar foram já feitas, pelo que correrei o risco de alguma repetição. No entanto, gostaria de colocar algumas questões ao Sr. Deputado José Magalhães.

A estatuição contida no n.° 1 deste preceito, ou seja, a de que "a duração do trabalho será progressivamente reduzida", das duas uma: ou é uma disposição de carácter preceptivo, caso em que existirão todas as inconveniências já referidas pelo Sr. Deputado Almeida Santos, ou é uma disposição programática que aponta para um certo modelo de relações de trabalho, e mesmo de sociedade ideal e que, quando li pela primeira vez, me fez de certo modo lembrar os escritos dos socialistas utópicos.

É óbvio que, por uma questão de evolução das condições de trabalho e de dignificação do homem, a duração de trabalho terá de ser progressivamente reduzida. A questão que se coloca consiste em saber se este princípio deve ser inserido na Constituição e, a sê-lo, se com uma perspectiva programática ou preceptiva, e, neste caso, qual o seu sentido e alcance.

Quanto ao n.° 2, o problema da impenhorabilidade do salário está, de certo modo, já previsto no Código de Processo Civil relativamente aos "bens relativamente impenhoráveis", quando o artigo 823.°, na alínea e) - o Sr. Deputado, com certeza, tem isso em conta - já refere que são relativamente impenhoráveis bens que digam respeito a "salários de quaisquer empregados ou trabalhadores". É óbvio que aqui se pretende uma "isenção" maior, mas é óbvio que esta isenção deixa totalmente impenhorável o salário mínimo, o que pode criar distorções no tratamento igual da responsabilidade por dívidas, entre os que recebem o salário mínimo e os que, excedendo-o, andam muito próximo dele.

Relativamente ao n.° 3, ou seja, à expressão "são pagos com preferência a quaisquer outros", pergunto: que "outros" são estes? São os créditos comuns? São os créditos garantidos por garantias reais? São os privilégios imobiliários? Isto é, estes créditos ultrapassam mesmo os créditos privilegiados que digam respeito ao Estado, ou a outros entes públicos, e que atendam à qualidade especial destes sujeitos? Como é que se vai, no fundo, alterar esta lógica se estes "quaisquer outros" são todos?

Isso obrigaria a uma profunda alteração ao nível do direito civil, a uma revolução a esse mesmo nível, se quiser!

Finalmente, bem mais grave parece-me a formulação do n.° 4 do artigo 60.°-A. Quando se fala em "garantias penais" é isto, de facto, a consagração constitucional da prisão por dívidas? É óbvio que há aqui uma referência e uma remissão para a lei, é óbvio que esta lei poderia não existir, e é óbvio que existem garantias da mediação da lei, bem como toda a razoabilidade dos critérios de decisão que estão na sua base. Mas o que é verdade é que há aqui um apontamento constitucional que repugna. Isto é consagrar a prisão por dívidas? Isto é voltar atrás.

Relativamente às garantias civis parece-me que a Constituição não adianta mais. Nós sabemos que o Código Civil tem já todos os mecanismos sancionatórios pelo não cumprimento dos contratos e parece-me que eles têm já plena suficiência para resolver os problemas do atraso de pagamento. Era exactamente todo este conjunto de questões que queria pôr ao Sr. Deputado. Faltou-me mencionar uma nota que é a referência ao artigo 737.° do Código Civil, alínea b), em que já figuram também os créditos salariais como privilégio relativo, visto que gozam de privilégio mobiliário geral.

Isto chega ao PCP? Ou, de facto, o privilégio mobiliário geral vai transformar-se e ultrapassar toda a lógica de coordenação entre os vários critérios privilegiados possíveis?

Era, de facto, este conjunto de questões que eu lhe queria pôr.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Em relação às questões atinentes aos limites da duração do trabalho; é sabido, Srs. Deputados, que os esforços feitos para se atingir uma norma razoável podem sempre ser coroados de êxitos muito variáveis. Até podem ser francamente lamentáveis e não ter êxito nenhum, no caso de as propostas serem inteiramente mal redigidas, absolutamente incomportáveis, refundíveis a título nenhum e, portanto, imprestáveis. Não creio que seja o caso. E as perguntas que fizeram são susceptíveis de resposta, não devolvendo puramente a pergunta, mas procurando aprofundar o debate em torno do texto constitucional em vigor. Como os Srs. Deputados sabem, o artigo 60.°, n.° 2, já estabelece esta coisa "terrível" e verdadeiramente "preocupante" (pelo seu carácter "preceptivo" ou "programático", logo se verá!):

Incumbe ao Estado assegurar as condições de trabalho, retribuição e repouso a que os trabalhadores têm direito, nomeadamente:

b) A fixação, a nível nacional, dos limites da duração do trabalho;

Ora bem, a fixação dos limites da duração do trabalho tem de ter já hoje um conteúdo constitucional mínimo. Os comentaristas vêm-lhe assinalando o seguinte conteúdo constitucional mínimo: por um lado, a ideia de que haja um requisito quanto ao carácter nacional (portanto deve haver uma duração que seja vinculativa, fixada pelo legislador, sem variações regionais - de contrário chegaríamos às 15 horas em Setúbal e às 12 horas em Trás-os-Montes ou às 8 horas ou a sol a sol alhures, ou vice-versa, naturalmente). Nenhuma dúvida também de que é ao Estado e só ao Estado que cabe essa fixação - as entidades patronais não hão-de poder ter a possibilidade de estabelecer, mesmo pactuadamente, alterações nessa esfera, pelo menos no sentido de alargamento. E, por outro lado, um princípio, de diferenciações, isto é, pode haver durações diferentes em função da natureza, do tipo de trabalho, designadamente do seu carácter mais penoso ou menos penoso, etc. Falta aqui, naturalmente, um referencial, um elemento, que é a questão da duração.

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É evidente que a Constituição poderia inscrever peremptória e directamente, como programa seu, com todas as consequências jurídico-vinculativas, a semana das 40 horas, ou das 38, quiçá. Parece excessivamente limitativo, uma vez que, se apontássemos para 40 horas, teríamos de diferenciar os horários em relação a certas profissões, a certas áreas. E, por outro lado, teríamos de estabelecer isso sempre com cunho mínimo, sem prejuízo de regime jurídico mais favorável. Foi por isso que evoluímos entre 1982 e 1988 para um princípio de redução tendencial e progressiva. Dizem-me: "Ah, mas isso é utópico, isso é o Sr. Fourrier a dobras com a Constituição de 76!" Creio que não! Aliás, nessa matéria, penso que uma Constituição civilizada que não aponte para uma redução do trabalho está virada para outro mundo e para outro horizonte, porventura para outro século, mas não para o século XXI; e que é difícil conceber que o homem, na sua caminhada histórica, se dirija no sentido de um alargamento da jornada de trabalho, e não da colocação dos benefícios da ciência e da técnica ao serviço da redução dos tempos de trabalho.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Não era para dizer que é utópico, Sr. Deputado, era para dizer que já não é utópico.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas então, Sra. Deputada, não percebo o argumento que V. Exa. usou há pouco, porque no fundo penalizava-nos por aquilo que julguei ser um tributo nosso à utopia. Mas, afinal de contas, agora parece-nos estar mais disponível para nos penalizar por uma incapacidade de sonho, se bem a percebo, o que verdadeiramente não é coerente e, em todo o caso, não é aquilo que estamos a discutir. Porque aquilo que estamos a discutir é uma coisa bastante mais comezinha: é o saber se adicionamos ao conteúdo constitucional vigente, com o cunho que decorre do artigo da Constituição que citei, um mais. E estávamos a discutir a medida desse mais. Sucede que a medida que nós propusemos é, apesar de tudo, relativamente modesta. Devo dizer-lhe, francamente, que li a diatribe que o presidente do PSD fez numa recente realização a que se chamou muito britanicamente Lisbon meeting e que vem publicada no órgão oficial do PSD de 11 de Maio de 1988. É uma tentativa de reflexão de carácter ideológico e político, enfim um pouco menos terra terrista que as elucubrações que se fazem nas inaugurações de chafarizes. Nessa ocasião o presidente do PSD, ao reflectir sobre as malhas ideológicas do conservadorismo e daquilo a que se chama o "socialismo de Estado" conduzindo a becos sem saída, não anatemizou, que me tivesse apercebido, o encurtamento da jornada de trabalho. Há no texto vários anátemas, mas não encontro, nesta reflexão de carácter político e ideológico, nesta "recusa de receitas pré-fabricadas para os problemas que afectam os países", designadamente os países em vias de desenvolvimento, uma verdadeira anatemização deste ponto. Esta não é uma das questões em que se inscreva como marca de diferenciação do Govêrno e da oposição o não à duração excessiva da jornada de trabalho. Podemos ter diferenças seguramente grandes em relação à semana das 40 horas. Temo-las seguramente, uma vez que o Govêrno é contra e nós somos a favor, e esse é um ponto em negociação e em discussão que não é pacífico. Agora, em relação a um princípio de redução tendencial e progressiva da jornada de trabalho, devo dizer francamente, Srs. Deputados, que tenho grande dificuldade em ver a fundamentação de uma recusa, sobretudo com base nos argumentos que aqui foram expendidos pela Sra. Deputada Assunção Esteves. Porque não me traumatiza absolutamente nada saber se a natureza do nosso preceito é preceptiva ou programática. É a mesmíssima do actual artigo 60.°, n.° 2, Sra. Deputada!

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as plavras iniciais da oradora.) ... eu nem sequer me movi contra esta disposição, até porque, de todas, foi a que me levantou menos problemas. Pus-lhe uma série de questões, a que o Sr. Deputado responde, ou não, se quiser, afirmo-lhe que não há uma recusa pré-compreensiva da nossa parte a este tipo de disposição.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sra. Deputada, congratulo-me pelo facto de, ao fim de alguns denodados esforços argumentativos, lhe ter conseguido extrair essa declaração de benevolência em relação à proposta, porque eu estaria (pelos vistos mal) a admitir uma pré-compreensão rejeitativa do PSD em relação a esta matéria. Por isso me dei, até ao trabalho de fazer um pouco de arqueologia ideológica nos caboucos do PSD (sem vislumbrar nenhuma razão anatemática naquilo que tem vindo a ser o conjunto de concepções expressas por arautos qualificados do seu partido sobre esta matéria). Não me dei naturalmente ao trabalho de citar o Ministro do Emprego, mas isso também creio que seria demasiado (não era necessário um tão grande esforço, nem porventura seria a fonte mais idónea para esse efeito). Isto quanto à primeira das questões suscitadas.

Na primeira revisão foram feitas "obras", na alínea a), quanto ao salário mínimo. A discussão em relação à alínea b) processou-se em termos distintos. A alínea b) rezava: "a fixação de um horário nacional de trabalho".

O Sr. Presidente: - É confusão minha. Exacto.

O Sr. José Magalhães (PCP): - A alínea b) actual dispõe: "a fixação a nível nacional dos limites da duração do trabalho", o que é realmente mais correcto para poder abranger os diversos tipos de situações aplicáveis e para ter em conta a própria realidade do trabalho na maneira como ele é praticado hoje entre nós.

Aquilo que se visa através da nossa proposta é, precisamente, na esteira dessa adequação à realidade, estabelecer um limite, um limiar, um tecto.

O Sr. Presidente: - De qualquer modo, nunca deveria ser esta a formulação. Porque o "será" de "será progressivamente" seria, na verdade, programático, como disse a Sra. Deputada Assunção Esteves. Mas compreendo a ideia. Esse é um objectivo a atingir, o que não me parece negativo.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não percebi, no entanto, Sr. Presidente, se se orientava para uma formulação de cunho menos programático.

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O Sr. Presidente: - Pela nossa parte, se víssemos uma formulação não programática que se dirigisse à definição de uma meta - "é um objectivo a atingir" -, nós poderíamos considerar uma formulação desse tipo. Assim "será progressivamente" é demasiado programático para podermos concordar.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, não temos nenhuma objecção em reformular a norma, designadamente utilizando uma redacção igualmente frequente no léxico constitucional, que é o "com vista à redução progressiva".

O Sr. Presidente: - Veríamos qual a vossa formulação.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Ou outra similar.

O Sr. Presidente: - Desde que - repito - não fosse uma norma programática, mas definidora de uma meta, de um objectivo, de um valor. Não seríamos contra isso.

O Sr. José Magalhães (PCP): - De resto era essa, Sr. Presidente, basicamente a nossa ideia, uma vez que é extremamente difícil baiar o legislador ordinário em termos de lhe impor a consecução, momento a momento, de metas concretas, directas e vinculativas para uma matéria desta natureza que tem de ser objecto de uma ponderação global que tenha em conta, designadamente, os recursos nacionais, elementos relacionados com a situação económica, e outros.

O segundo bloco de questões origina, quanto a nós, mais problemas. Sabemos que a instituição de uma garantia, como aquela para que apontamos no n.° 2 do nosso projecto, suscita problemas melindrosos. Alguns deles foram despistados e oportunamente anotados, sobretudo pelo Sr. Presidente.

Sabemos todos que, face ao artigo 95.°, n.° 1, da LCT, "a entidade patronal não pode compensar a retribuição em dívida com créditos que tenha sobre o trabalhador, nem fazer quaisquer descontos ou deduções no montante da referida retribuição". No entanto, o n.° 2 do mesmo preceito salvaguarda o seguinte: "O disposto no número anterior não se aplica aos descontos a favor do Estado, da Previdência ou de outras entidades, ordenados por lei, por decisão judicial transitada em julgado ou por auto de conciliação quando da decisão ou do auto tenha sido notificada a entidade patronal; às indemnizações devidas pelo trabalhador à entidade patronal, quando se acharem liquidadas por decisão judicial transitada em julgado ou por auto de conciliação; às multas a que se refere o n.° 1, alínea c), do artigo 27.°; às amortizações e juros de empréstimos concedidos pela entidade patronal aos trabalhadores,", em certas condições e para certos efeitos; "aos preços de refeições no local de trabalho, de utilização de telefones, de fornecimento de géneros, de combustíveis ou de materiais, quando solicitado pelo trabalhador, bem como a outras despesas efectuadas pela entidade patronal por conta do trabalhador, consentidas por este e segundo esquema aprovado pela entidade competente; aos abonos ou adiantamentos", etc. E depois o n.° 3 do preceito referido estabelece: "Os descontos referidos nas alíneas b), c), é) e f) do número anterior não podem exceder no seu conjunto um sector da retribuição."

Ora bem, às compensações ou descontos por dívidas dos trabalhadores previstos nas alíneas b), c), é) e f) do n.° 2 aplica-se o limite deste n.° 3 que citei, e a todas as restantes o artigo 823.°, n.° 1, alínea e), do Código de Processo Civil, segundo o qual "estão isentos de penhora dois terços [...] das soldadas, vencimentos e salários de quaisquer empregados ou trabalhadores", podendo, porém, o "juiz, segundo o seu prudente arbítrio e tendo em atenção as condições económicas do executado, reduzir a parte penhorável entre um terço e um sexto" - é o que diz a segunda parte do n.° 4 do citado artigo 823.° do Código de Processo Civil.

É este o quadro. E é evidente que uma norma como a proposta pelo PCP coloca alguns dos problemas que o Sr. Presidente situou. Não somos, porém, culpados de confusão sobre a natureza do conceito de alimentos. "Alimentos" são aqui usados no sentido jus-civilístico, com o sentido técnico rigoroso que decorre das normas legais aplicáveis...

O Sr. Presidente: - Seria mau, seria mau. Uma pessoa vai à mercearia, compra, não paga. Muda de mercearia, compra, não paga. Cuidado com isso.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, não quisemos usar a expressão senão no sentido técnico-jurídico que tem e que decorre do nosso Código Civil, do Código de Processo Civil, por aí adiante.

Percebo que o estabelecimento de um regime nesta matéria poderá exigir algumas cautelas. Agora, sei também que a própria...

O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado não acha que se deveria estabelecer uma norma genérica de reforço da impenhorabilidade que definisse também aqui uma meta, não um programa? Ou seja, qualquer coisa do género: "as dívidas por salários beneficiarão de garantias consistentes no reforço da sua impenhorabilidade e das garantias do seu pagamento".

Uma norma genérica que aponte uma meta.

Normas que são de difícil consagração na Constituição porque são normas típicas de lei ordinária e, mesmo aí, discutíveis. Da Constituição não deverá constar tudo o que seja mais do que um valor, uma meta, uma seta indicativa.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - O Sr. Deputado Almeida Santos diz - e estou de acordo- que esta disposição seria recomendável, seria uma espécie de tópico apontando ao juiz um modo de decidir adequado. Agora, isto assim é de mais. É um enxerto quase violento na lei que temos.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Srs. Deputados, este nosso enxerto "violento" das duas uma: ou pega ou não pega. O que nos interessa é que, verdadeiramente, seja um ponto de partida - não pretendendo ser uma lápide nem, seguramente, um ponto de chegada. Creio que, se se caminhasse para uma norma do tipo daquela que a Sra. Deputada Assunção Esteves agora sugere, isto é, que tenha alguma utilidade para que o prudente arbítrio do juiz possa exercer-se dentro de parâmetros, não só legais, como de condicionamento genérico constitucional, a nossa sugestão teria alguma materialização.

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Não me parece que seja impossível caminhar-se para uma norma desse tipo pois, no fundo, basta que tenhamos em conta o disposto no artigo 95.° da LCT, o disposto em outras disposições da mesma lei e, por exemplo, na Lei dos Acidentes de Trabalho e nos diversos regimes salariais em relação às garantias da retribuição em questão, que já hoje comporta o facto de estas não poderem ser absorvidas por certas cangas, onerações ou descontos. Não é por acaso que o Código de Processo Civil prevê esta ideia de isenção de penhora de dois terços das soldadas e vencimentos. De resto, a norma tem raízes muito antigas no direito civil e no direito laborai.

No fundo, a preocupação é, em primeiro lugar, reduzir a parte penhorável, garantir uma certa margem de impenhorabilidade e garantir critérios...

O Sr. Presidente: - Reforçar a margem de impenhorabilidade, ou seja, reforçar as garantias até onde não entrem em colisão com garantias reais ou privilégios, nomeadamente do Estado, que devam continuar a sobrepor-se às garantias em que estamos a pensar. Será correcto um tratamento especial, pois trata-se, em regra, da subsistência de uma família ou do logro de quem presta trabalho e não recebe o respectivo pagamento. Compreendo isso perfeitamente.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Essa é a nossa intenção e estamos disponíveis para conjugar capacidades de formulação para se chegar a uma norma. Parecer-nos-ia que seria uma benfeitoria bastante relevante. O mesmo digo em relação à questão dos créditos salariais, mas aí reconheço que a dificuldade é maior. Poderemos caminhar por uma vereda similar àquela para que se aponta aqui, mas o problema é extremamente complexo porque estamos a jogar com noções com campos operatórios extremamente diferentes, consoante a saúde das empresas, e é preciso ter consciência disso.

É evidente que o nosso direito é aqui extremamente deficiente e que a nossa circunstância económica tem originado peripécias muitas vezes dramáticas que dificultam o ver claro, mas o que, em todo o caso, é fácil ver claro é o grau de atraso em que estamos. Este é o primeiro tópico de reflexão!

Em segundo lugar, é fácil, também, ver que as componentes desse atraso são a fluidez na criação e, sobretudo, na extinção de empresas, isto é, a ilimitação ou as dificuldades que se relacionam com a possibilidade de arbítrio na extinção - e é sobretudo isso que nos preocupa, como compreenderão; a ausência real e preocupante de controle e de responsabilização do património dos titulares do capital social pelas dívidas contraídas pelas empresas; a enorme dificuldade na fiscalização e no controle das alienações dos patrimónios, com as incertezas e os perigos que daí fluem para a própria estabilidade e para os interesses dos trabalhadores; a dificuldade que decorre dos próprios contornos do nosso direito comercial e das debilidades ou flancos que há no próprio instituto do trespasse e de outras formas de transferência das posições jurídicas e económicas que existem em dados momentos no próprio tecido empresarial; a debilidade em relação à tutela da retribuição, mesmo nos casos em que ela esteja vencida há enorme tempo, sem que seja prestada; o caos que há em relação às dívidas à Segurança Social; o panorama preocupante que também existe em relação aos problemas da fraude e de evasão fiscal; e as debilidades que o instituto da falência tem entre nós, apesar dos zigues e dos zagues e das evoluções do legislador ordinário (algumas de forma descoordenada, com o Ministério da Justiça a trabalhar nas costas do Ministério das Finanças e com as empresas verdadeiramente vitimadas, também pelas costas, por regimes que se vêm sucedendo uns aos outros, sem que a questão seja discutida e tomada globalmente).

A questão da tutela dos créditos salariais tem de ser encarada tendo tudo isto em conta. A norma que buscamos é uma norma de fixação de critérios gerais. Isto nos salva e nos facilita, de certa forma, a tarefa. Em todo o caso, o panorama condiciona-nos imenso. Estamos num quadro em que não há garantias públicas do pagamento de salários, a não ser aquelas que foram instituídas pela Lei n.° 17/86, de 14 de Junho. Não se caminhou ainda no sentido para que aponta a directiva de 20 de Outubro de 1980 do Conselho das Comunidades Europeias sobre a aproximação das relações dos Estados membros da CEE relativa à protecção do estatuto dos assalariados, em caso de insolvência do empregador. E, como não avançamos nesse domínio, como o regime de encerramento de empresas se presta ainda, enormemente, ao arbítrio e o regime das falências, em particular, não acautela os direitos dos trabalhadores de forma bastante, há que avançar -entendemos nós- em relação à protecção dos créditos salariais.

No fundo, aquilo que se pretende é uma melhoria da posição jurídica do colectivo dos trabalhadores em relação à massa do património. Isso está estabelecido em termos correctos na nossa proposta? Eis o que está oferecido à discussão, e nesse sentido a pergunta do Sr. Deputado Almeida Santos é pertinente: "Deseja-se o quê? O privilégio absoluto? Isto é, que seja tão absoluto que se sobreponha às garantias reais?" Eis o que devemos medir para que possamos estabelecer algo em condições que procurem uma articulação de interesses.

O Sr. Presidente: - É que isso, além do mais, tornava tão inseguras as garantias reais, que hoje têm o valor que têm, que todo o comércio jurídico entraria em crise. Ninguém mais teria confiança numa hipoteca e o crédito seria fortemente restringido. A certeza do direito é um bem inestimável. Entre o valor que está em causa e o valor da segurança do direito, este não pode ser menorizado.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, tenho alguma ideia da dimensão da mudança possível, isto é, há certas mudanças que abalam os alicerces de uma determinada concepção ou de uma determinada ordem. Tenho, também, ideia da contingência, do carácter marcado ou do carácter historicamente determinado de certos pilares. É sabido que as certezas jurídicas de um determinado momento não são obrigatoriamente as certezas jurídicas da época seguinte: uma ordem jurídica fundada no carácter absoluto das garantias reais não está condenada a ser eterna (pelo contrário!) e, portanto, haverá circunstâncias históricas em que a mutação desses valores e desse quadro de referência se torne inevitável. Pela nossa parte, lutamos por isso.

O Sr. Presidente: - Claro! Nada é eterno no direito e eu pretendi apenas realçar as dificuldades concretas da vossa proposta.

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O Sr. José Magalhães (PCP): - Agora, compreendo que, num determinado quadro histórico, se entenda que esse abalo é inviável.

Aquilo que creio ser razoável entender é que, neste quadro, se busque um determinado reforço dos créditos salariais, porque - repare - o próprio artigo 25.° da modesta LCT e o Decreto-Lei n.° 49 408, com a origem que todos conhecemos, estabelece: "Os créditos emergentes do contrato de trabalho ou da violação ou concessão deste contrato pertencentes ao trabalhador gozam do privilégio que a lei geral consigna." Ora, sucede que todos sabemos que esse privilégio é ínfimo e mesquinho e que, sobretudo, não está adequado a circunstâncias como as das profundas crises económicas em que os colectivos dos trabalhadores ou os trabalhadores podem ver cilindrados os seus direitos e destruída a própria empresa pelo facto de não terem uma tutela jurídica adequada dos seus créditos salariais.

Os créditos salariais não são forçosamente um elemento estagnante, não são um elemento que obrigue à destruição da empresa, para que, devolvida aos trabalhadores, seja feita em bocados. Podem ser o contrário, podem ser um elemento fortemente adstringente e até viabilizador da assumpção, em certas circunstâncias, da gestão por um colectivo de trabalhdores e da assumpção da titularidade do património como compensação de créditos. Isso pode acontecer e pode ser positivo. Pode ser até a única solução em determinado momento.

O Sr. Presidente: - Se assumirem o estabelecimento como universalidade, perturba menos. Nesse caso não há a lesão da garantia de um terceiro que, de boa fé, conceda um crédito, pressupondo a solidez da garantia e que, de outra forma, deixaria de o conceder. A própria empresa seria vítima da relatividade da garantia imobiliária. Se deixasse de ser absoluta, como é hoje, o crédito era reduzido em percentagens impensáveis, a própria empresa era a primeira vítima, repito, e, consequentemente, os seus trabalhadores também. É preciso cuidado com isso.

Se é só uma ideia de reforço que se pretende, isso tem conteúdo positivo e seria de procurarmos a fórmula apropriada. O Sr. Deputado sabe bem que as nossas propostas iam nesse sentido em sede de lei ordinária. Mas uma coisa é isso, outra a natureza absoluta das garantias reais. Seria a subversão dos equilíbrios actuais do mundo jurídico e negociai.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, estamos disponíveis para considerar essa hipótese de trabalho, uma vez que, não sendo nós adoradores dos equilíbrios momentâneos ou estruturais existentes numa determinada sociedade e lutando para os transformar, admitimos que, num determinado momento, se entenda que a mutação é incomportável. No entanto, consideramos extremamente positivo que se consiga trabalhar no sentido que acabou de situar e de apontar. Pela nossa parte, faremos tudo o que pudermos para que esse esforço seja coroado de êxito.

O último aspecto que queria referir diz respeito ao n.° 4 proposto pelo PCP. Creio que algumas das observações focam questões relevantes e indicaria, desde já, a primeira e a que me pareceu mais sensibilizadora. É evidente que, o Sr. Deputado Almeida Santos refere que a cláusula que alude ao atraso é uma cláusula limitativa, tem toda a razão. Eu próprio tinha começado por acentuar que talvez se tivesse deixado aqui a cicatriz de uma realidade que é muito preocupante - e que, de resto, é persistente -, mas essa preocupação foi tão longe que levou a omitir alguns outros aspectos que são igualmente relevantes.

A hipótese de recusa e de impossibilidade que o Sr. Deputado situou não é menos justificativa de protecção. A nossa opção de referir apenas os salários em atraso - como a Sra. Deputada Assunção Esteves lembra - tem a justificação histórica dramática que todos conhecemos, não sendo, de resto, nenhuma opção, mas uma preocupação justa. As lições do passado não devem tolher-nos a mão no sentido de abrirmos a lei e não no de a fecharmos. É, portanto, evidente que, a caminharmos para sistemas em que seja assegurada aos trabalhadores protecção, essa protecção deve ser para a gama de situações em que a retribuição não esteja assegurada, qualquer que seja o motivo e qualquer que seja a circunstância que conduza a esse resultado, pois, aqui, o resultado é o que interessa.

Idem aspas, em relação à observação feita quanto à "adequada protecção". As cláusulas desse tipo são sempre um exercício de modéstia, que é o contrário da arrogância. Nesse sentido, a cláusula é virtuosa, podendo, no entanto, não ser bastante, o que me leva a compreender que seja achada excessivamente modesta. Há outras formulações mais avançadas e, pela nossa parte, não estaríamos indisponíveis para as considerar a todas. Se algum dos Srs. Deputados entende, por exemplo, que é preferível aludir à existência de sistemas públicos que assegurem adequadamente ou que assegurem a protecção destes interesses e direitos, pela nossa parte, entendemos que isso seria perfeitamente correcto.

Já não gostaria de ficar com a responsabilidade de patrocinar uma proposta de regresssão em relação ao nosso direito sancionatório. Isto é, sabemos que a lei vigente de combate aos salários em atraso prevê, no seu artigo 29.°, sanções, ou seja, multas e coimas, e que, no seu artigo 28.°, prevê apenas, incluindo a pena de prisão, para outros crimes. O crime que está previsto com pena de prisão é o da indução em erro do Fundo de Desemprego, com a finalidade de este obter para si ou para outrem o pagamento indevido do subsídio previsto na alínea b) do artigo 6.° e no artigo 7.°, bem como aqueles que, conscientemente, beneficiarem desse erro. Portanto, esses ficam sujeitos à pena prevista nos artigos 313.° e 314.° do Código Penal. Estão, nesse caso, formas particulares do crime de burla e esse crime, como sabem, é punido com prisão até três anos, enquanto a burla agravada é punida com a prisão de um até dez anos.

Quis o legislador, propositadamente, limitar estes ilícitos criados de novo à obtenção do subsídio de desemprego e do subsídio social de desemprego nos casos do exercício dos direitos à rescisão e à suspensão de prestação de trabalho. Podem ser autores destes crimes, na lógica desta lei, tanto os trabalhadores a quem venham a ser pagos, indevidamente, os subsídios, como as entidades patronais que beneficiem conscientemente desses pagamentos. Não é obrigatório, porém, que o legislador se circunscreva a isto, e num dos projectos do PCP sobre esta matéria - concretamente o projecto n.° 2/IV, para não citar os anteriores -, previam-se, nos artigos 31.° e seguintes, algumas outras disposições

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penais que seriam, em nosso entender, formas adequadas de procurar garantir o cumprimento das obrigações de retribuição pontual. A lei pode sempre utilizar esse instrumento, que é o direito penal, para enfrentar circunstâncias em que exista uma ofensa grave à obrigação do pagamento pontal dos salários e fica na disponibilidade de o legislador prever os tipos de crimes, as penas, etc., não devendo, portanto, aqui nenhum "regresso a um direito penal do passado". Longe disso! Aliás, como os Srs. Deputados sabem perfeitamente, no passado, o direito penal punia os trabalhadores...

O Sr. Presidente: - A própria formulação, ligando a defesa penal ao pagamento pontual e não à violação da obrigação de pagar, criaria um pena de carácter exclusivamente preventivo e ligar uma pena ao não pagamento de dívidas poderia abrir a porta à consagração da prisão por dívidas em termos mais latos do que os que hoje existem.

A Sra. Assunção Esteves (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras da oradora.)

O Sr. Presidente: - E aqui era responsabilidade contratual pura.

Compreendo o que o PCP quer. Mas... garantias penais do pagamento pontual da retribuição?...

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais da oradora.) Estas "garantias penais", junto com as garantias civis, no quadro de um contrato (e são duas noções que estão aqui, a da garantia e a de contrato), acabam por ser profundamente graves. A ideia de uma garantia penal, que funcionará com, digamos, uma morfologia idêntica à garantia civil no âmbito dos contratos e toda esta mistura de contrato com garantia penal é excessivamente alarmante, é isso que de facto faz muita impressão...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Srs. Deputados, é evidente que a atitude em relação ao uso dos instrumentos de direito penal para tutelar direitos e interesses de trabalhadores varia, naturalmente, consoante os posicionamentos políticos e ideológicos de cada força. Aí há algumas diferenças a assumir e há um caminho bastante longo a percorrer.

Não temos nós, pela nossa parte, ideia de que o direito penal seja arma a brandir a torto e a direito, indiferentemente. Temos a ideia de que o espaço reservado ao direito penal deve ser definido com rigor, para a ofensa a valores de carácter particularmente importante. Não preconizamos a banalização e a proliferação de ilícitos penais, só que também não partilhamos a concepção nos termos da qual tudo aquilo que diga respeito à tutela de direitos e interesses dos trabalhadores deva situar-se obrigatoriamente na esfera contra-ordenacional (como no passado se situava no domínio das transgressões) e de que portanto não seja lícito, desejável e correcto lançar mão dos instrumentos de direito penal propriamente dito (isto é, a instituição de verdadeiros e próprios crimes) para sancionar a violação de determinados valores ligados à defesa dos trabalhadores. Este parece ser um valor extremamente relevante: se o legislador não entende que, dada a natureza alimentar destes créditos (no fundo de créditos se trata) e sendo tão fundamental para a sobrevivência dos trabalhadores que não haja uma crise neste ponto, ou que essa crise, uma vez atingida, seja ultrapassada, a ofensa desse valor pode justificar punição, quando feita com carácter doloso, pode ser qualificada como verdadeiro crime e sancionada com os meios próprios do direito penal.

Cabe ao legislador, em cada momento, aferir se se verificam as condições adequadas para isso. Repito: o legislador, por exemplo na lei em vigor de combate aos salários em atraso, entendeu não ir por aí, mas também é verdade que, no artigo 31.° do projecto de lei que o PCP na altura apresentou, se ia por aí, precisamente porque nos pareceu que em determinado momento a intensidade da ofensa era de tal forma generalizada, era tal a sua expansão, verificava-se com tal velocidade que importava sinalizar claramente, através do uso de todos os meios, e logo também dos meios de direito penal, que a infracção desse valor era intolerável.

Não foi assim entendido, o que prova como está nas mãos do legislador ordinário consagrar ou não instrumentos penais que actuem em termos que ele próprio estabelecerá.

O Sr. Presidente: - Estamos esclarecidos. Na altura própria veremos qual a formulação que poderá ser aceite por maioria de dois terços. Já definimos a nossa posição. Quanto a isto, veremos depois qual é a posição que assumem os demais partidos.

Quanto à proposta do PEV sobre o artigo 6O.°-A, segundo a qual "incumbe ao Estado dinamizar, apoiar e cooperar na criação e manutenção da laboração em condições de higiene e segurança e promover o ensino e formação relativo à higiene e à prevenção de acidentes de trabalho e doenças profissionais": relaciona-se com a actual alínea b) do n.° 1 do artigo 60.°, que já se refere à organização do trabalho em condições socialmente dignificantes por forma a facilitar a realização pessoal. Digamos que é, de algum modo, uma pormenorização e um reforço em relação a este dispositivo. Querem dizer algo sobre isto? Não está cá, infelizmente, ninguém do PEV.

Pausa.

Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Pela nossa parte, é só para dizer que o artigo 60.°-A proposto pelo PEV não é mais do que a repetição das alíneas b) e c), no seu conjunto, do artigo 60.° e, portanto, é desnecessário. É quase um decalque.

O Sr. Presidente: - Sim, Sra. Deputada, a alínea c) também o é - "[...] prestação em condições de segurança e higiene [...]"

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - É só isso, Sr. Presidente

O Sr. Presidente: - Aí, nessa parte, até reproduz. Quanto à parte do ensino e formação, relativos à higiene e prevenção dos acidentes de trabalho e doenças

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profissionais, nem sei se teria aqui lugar. Mas enfim. Parece-nos que esta proposta está aqui, de algum modo, metida a martelo, se querem a nossa reacção.

O Sr. Miguel Macedo e Silva (PSD): - Já agora, Sr. Presidente, completando a intervenção da minha colega Assunção Esteves, eu diria o seguinte: eu julgo que, e como, de qualquer forma, já estão contempladas algumas destas matérias constantes da proposta do PEV nas alíneas b) e c) do artigo 60.° da Constituição, carece de fundamento a autonomização em artigo próprio destas questões. E, em segundo lugar, queria, no entanto, dizer que, apesar de esta ser a nossa posição de princípio, não estamos, obviamente, fechados a incluir numa outra questão que se julgue de relevo e com suficiente dignidade constitucional e atinentes a esta matéria, precisamente numa daquelas alíneas já citadas no artigo 60.° Mas isso é uma questão para vermos depois. Se, na discussão posterior, que não deixaremos de ter em relação a esta matéria, se entender que é muito importante constitucionalizar este tipo de obrigação, nós não vemos grandes razões para isso, mas, se se entender, julgo, que então se poderá arranjar uma outra formulação, porque esta, de facto, não é a mais aconselhável e incluir numa das outras alíneas do artigo 60.°, porventura ...

O Sr. Presidente: - Esta é a concepção do Estado como bengaleiro em que se penduram todos os deveres, até ao mais ínfimo pormenor. Às tantas começam a perder dignidade os outros os que cá devem estar pela sua própria importância e natureza. Não se podem banalizar.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - No fundo, isto é atribuir ao Estado uma tarefa pedagógica que é condição do êxito das tarefas que já lhe estão assinaladas constitucionalmente. Parece-me desnecessário estar a consagrar isto num artigo autónomo.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Há dificuldade em encontrar uma boa norma, porque o problema estará mais - seguramente, chegaríamos todos rapidamente a essa conclusão com mais dados em cima da mesa - no facto de não haver impulsos no terreno da Administração e da legislação ordinária para dar resposta à situação que existe.

Realmente temos índices de sinistralidade verdadeiramente assustadores, a todos os títulos. Toda a gente sabe isso, e sabemos também quais as debilidades das estatísticas do INE quanto aos acidentes de trabalho. Com uma situação de economia subterrânea como aquela que existe no País (e é mal conhecida), o número de acidentes verificados é bastante superior ao número de acidentes participados, como toda a gente sabe. A sua qualificação tem problemas também. Se os indicadores pecam por alguma coisa, não é, certamente, por estarem ampliados. Idem aspas, em relação a doenças profissionais. A situação da medicina laborai ainda esta tarde se estará discutindo no Plenário da Assembleia, no quadro da interpelação promovida pelo PCP sobre política de saúde. É, aí, pelo menos indigente a situação registada, e portanto as estatísticas dos casos de doença que são reparados pela Caixa Nacional de Seguros de Doenças Profissionais não servem, a título nenhum, para medir a extensão do mal existente. O número de acidentes sofridos por jovens, designadamente, é chocante, dados precisamente os problemas de formação profissional. Suponho que é daí que vem a preocupação do PEV com a questão do ensino e formação relativa à higiene e prevenção de acidentes de trabalho e doenças profissionais. Realmente a questão existe e coloca-se de maneira bastante aguda. É necessário que se faça uma reflexão que conduza a alguma alteração sensível.

O que é que cabe ao legislador em sede de revisão constitucional? É a boa questão, porque, como é evidente, poderíamos falar aqui durante horas das debilidades da intervenção da Administração em matéria de higiene e segurança no trabalho. O que é que faz a Administração Pública? O que é que faz a Inspecção-Geral do Trabalho nesta esfera? Que carências e que problemas é que há, designadamente, nas pequenas e médias empresas? É óbvio que a situação é caracterizada por omissões de actuação perfeitamente chocantes. É evidente que não há técnicos competentes para agarrar nestes problemas. É evidente que as estruturas técnico-científicas deixam a desejar. É evidente que o quadro legislativo e o quadro regulamentar são lacunosos. É evidente que a própria vigilância médica, em sentido estrito, é deficiente. A cobertura dos trabalhadores portugueses pelos serviços médicos de trabalho é estimado em quantos por cento? Em 10%, o que é ridículo, e é perigoso, como se está a ver. E nem quero falar dos aspectos da medicina preventiva, porque envolve necessariamente a quase inexistente educação para a saúde, etc.

Portanto que o problema existe, existe, e de que a Constituição nesse ponto é "magra" e poderá ser um pouco mais "pesada" também não tenho dúvidas. Que sítio para inserir isso? Provavelmente, o sítio é, mais correctamente, o n.° 1 do artigo 60.°, nas alíneas respectivas, do que um preceito autónomo. Isso não acarretará o risco que o Sr. Deputado Almeida Santos considerava pertinente, o risco de "omniestadualização", porque o corpo do preceito, como os Srs. Deputados sabem, reza: "Todos os trabalhadores sem distinção de idade, sexo, raça, etc., têm direito a [...]" Portanto, as incumbências do Estado estão no n.° 2. Se trabalhássemos nas alíneas do n.° 1, a questão não se colocaria nos termos que o Sr. Deputado Almeida Santos há pouco considerava indesejáveis e daríamos aí também uma indicação, que não seria negativa, para a necessidade de uma maior actuação, ainda que, aí, não resolvamos muitos problemas.

É evidente, por exemplo, que o Estado, o Govêrno em concreto não se preocupa minimamente em publicar regulamentação que actue, no direito interno, três directivas comunitárias sobre matéria relativa à segurança e à protecção de saúde nos locais de trabalho, que já estão neste momento em aplicação em todo o espaço comunitário. Entre nós, não estão. As Directivas 76 710, de 29 de Junho de 1978, 83 605 e 83 477 estão por actuar! Bem, mas quanto a isso não é nesta esfera que podemos fazer o que há a fazer com urgência.

O Sr. Presidente: - De qualquer modo, parece-me, para ser franco, que nesta matéria, ao contrário do que me pareceu deduzir da sua intervenção, a Constituição é "gordíssima", porque, repare, no artigo 59.°...

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O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, o que eu estou a dizer é que é algo "engordável", com mérito.

O Sr. Presidente: - Mas, espere, ela já é "gorda". Veja a alínea c) do n.° 3 do artigo 59.°, que se refere à formação cultural, técnica e profissional dos trabalhadores, que é uma das ideias da proposta do PEV. Depois, no artigo 60.°, fala na "organização do trabalho em condições socialmente dignificantes". Depois refere "a prestação de trabalho em condições de higiene e segurança". E na última alínea e) do n.° 2 à "protecção das condições de trabalho e a garantia dos benefícios sociais dos trabalhadores". É capaz de haver outras...

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais da oradora.) O artigo 9.°, alínea d), da Constituição aponta como tarefa fundamental do Estado a efectivação dos direitos económicos, sociais e culturais...

O Sr. Presidente: - Não! Não é seguramente esta a matéria em que a Constituição está mais "magrinha".

Mas vamos passar à frente. Já retivemos uma ideia, vamos ver se conseguimos recuperar algum destes valores para as actuais alíneas.

No artigo 61.°, o CDS propõe algo que vejo pela primeira vez. É garantir o direito à liberdade. Até hoje, temos distinguido os conceitos de direito e de liberdade. Agora surge, quanto a mim pela primeira vez, o direito à liberdade. Por outro lado, corta a expressão "enquanto instrumento de progresso colectivo". O que também faz o PS, mas para a substituir por outra que me parece mais "rica" - "tendo em conta o interesse geral". O interesse geral pode não coincidir com o progresso colectivo, pode até coincidir com o progresso, não de todos, mas de apenas alguns. Uma ideia de "interesse geral" é mais "rica" e menos responsabilizante.

O PSD também corta a expressão "enquanto instrumento de progresso colectivo". Parece-nos que esta expressão pode ser substituída por outra, mas nunca eliminada, porque a ideia de a iniciativa económica não dever ser indiferente ao interesse geral já ficou lá para trás. Inclusivamente, no Código Civil do Prof. Antunes Varela, a função social da propriedade e da iniciativa privada aparecia com ênfase assinalável. Não vamos agora recuar.

A ideia de que o interesse geral deve subjazer a toda a iniciativa económica é construtiva. Esta expressão, "enquanto instrumento do progresso colectivo", é uma expressão que me não parece feliz.

Quanto ao n.° 2, o CDS acrescenta uma referência à lei e elimina o n.° 4, que se refere ao "direito à autogestão". O PSD e o PS não cortam essa referência.

Também o PRD, relativamente ao n.° 3, inclui uma referência à Constituição e à lei, o que é uma inutilidade pela razão simples de que dizer isto e não dizer é exactamente o mesmo. Sempre terá de ser no quadro definido pela Constituição e pela lei.

Aqui têm as alterações, agradeço que se pronunciem sobre elas.

Pausa.

Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Macedo e Silva.

O Sr. Miguel Macedo e Silva (PSD): - Sr. Presidente, no fundo, é para reafirmar as palavras que V. Exa. disse quando considerou a proposta do PSD e dizer que nós não vemos grande utilidade na expressão "enquanto instrumento do progresso colectivo" aplicado à norma constitucional que prescreve a liberdade de iniciativa económica privada. É essa a alteração que propomos a este artigo, e só essa alteração, na medida em que entendemos que, estando a actividade económica privada obviamente subordinada àquilo que prescreve a Constituição e a lei, estarão salvaguardados aqueles limites que poderão impressionar em termos de situações abusivas no quadro do exercício desse direito.

É este o sentido da alteração do PSD. Naturalmente que bem compreendemos que o Sr. Presidente diga que é diferente dizer "enquanto instrumento de progresso colectivo" de dizer "tendo em conta o interesse geral". Julgo que esta expressão, proposta pelo PS, é bem mais ampla e cobre um número de situações mais aceitáveis do que propriamente aquela que está inscrita na Constituição. No fundo, em relação a esta matéria julgo que não há, em todas as propostas, nenhuma grande contradição, nenhuma grande dificuldade insuperável. É capaz de não ser muito difícil chegarmos rapidamente a um consenso em torno desta matéria.

O Sr. Presidente: - Esta expressão tem paralelo noutras constituições da CEE. A ideia de um interesse geral subjacente a toda a iniciativa económica é positiva.

O Sr. Miguel Macedo e Silva (PSD): - Concluiria dizendo que é este o sentido da nossa proposta. Estamos abertos, em relação a este artigo, a discutir outro tipo de formulação, que pode ou não ser aquele que o PS propõe.

O Sr. Presidente: - Alguém mais quer usar da palavra sobre estes artigos? Sr. Deputado José Magalhães, "tacet" ou "non est hic"?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Tacere non possum, Sr. Presidente.

Creio que esta é a primeira das alterações relativas à Constituição económica em que o PSD pretende alterações sensíveis que, todavia, só são perceptíveis fazendo uma leitura integrada. Não sou capaz de ler esta alteração proposta quanto ao artigo 61.° sem ter em conta qual é o modelo de Constituição económica que consta do projecto do PSD. Sendo certo que, entre nós, a liberdade de iniciativa privada tem limites, e é desses limites que o artigo 61.° explicitamente trata; e sendo certo que tal direito, tal qual se encontra descrito - ao lado, de resto, de outras formas de iniciativa -, não tem um carácter absoluto, não prevendo a Constituição mais do que o direito a um mínimo de conteúdo ou de relevância impostergável, mas não proibido sequer que sejam estabelecidos limites de actua-

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e não estando excluído que, além das questões de delimitação negativa do âmbito do direito de iniciativa, sejam possíveis outras restrições quanto ao exercício do direito com o âmbito que ele tenha, o PSD pretende muito mais do que aquilo que inculca o desmantelamento aqui adiantado. O PSD pretende, simultaneamente: um desarmamento dos direitos dos trabalhadores (com diversas restrições), uma redução geral, para não dizer uma inversão de sinal, na intervenção do Estado na vida económica (designadamente com supressão do Plano - uma vez que aquilo que ficaria, se as propostas do PSD fossem consagradas, nada teria a ver com o sistema de planeamento democrático, cuja irrealização é, porém, um fenómeno manifesto da nossa circunstância política dos últimos anos), uma supressão das possibilidades de interferência directa na vida das empresas - vejam-se as propostas sobre o artigo 85.°, n.° 2; além disso, ainda propõe a supressão de outras restrições especiais - designadamente as decorrentes do artigo 64.°, n.° 3, e dos artigos 65.°, 69.°, etc. E, como o PSD pretende, também, a supressão dos limites à apropriação privada dos principais meios de produção, é evidente que, se o projecto fosse aprovado, a iniciativa económica privada que se poderia exercer livremente "nos quadros definidos pela Constituição e pela lei" seria outra iniciativa privada, que não aquela que hoje decorre dos quadros constitucionais. Porquê? Porque os quadros constitucionais seriam outros e, naturalmente, aquilo que a lei poderia estabelecer seria muitíssimo diferente daquilo que a lei é obrigada a estabelecer no presente quadro constitucional. Digamos que aqui a alteração não é de palavras. Não é um jeu de mots que se está aqui a discutir.

No caso da proposta do PS, gostaria que fosse explicitada. Ela suprime a expressão constitucional "a iniciativa económica privada pode exercer-se livremente" por "a iniciativa económica privada exerce-se livremente".

O Sr. Presidente: - É a mesma coisa!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Deputado, é que aquilo que o PS verdadeiramente quer suprimir é esta expressão "enquanto instrumento do progresso colectivo" por "tendo em conta o interesse geral". O que eu gostava que fosse explicitado é qual o alcance exacto desta mudança, porque o significado da expressão "enquanto instrumento de progresso colectivo" é sabido. O significado da expressão "tendo em conta o interesse geral" é, manifestamente, o de uma "flexibilização", como sei dizer-se. O problema das flexibilizações não é saber onde é que começam, mas antes saber até onde é que vão.

Por outro lado, era interessante saber como é que o PS vê esta "flexibilização" tendo em conta as outras peças da arquitectura constitucional nesta área. Isso é decisivo para se poder medir a operação. Por isso é que eu comecei por situar o sentido da proposta do PSD. Creio que seria extremamente importante que o mesmo pudesse ser feito quanto à proposta do PS.

O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado António Vitorino pediu a palavra para lhe dar um esclarecimento.

O Sr. António Vitorino (PS): - É, muito sucintamente, para adiantar a minha opinião sobre o dilema que o Sr. Deputado José Magalhães acabou de colocar à proposta do PS que, salvo melhor entendimento, me parece colocar-se ao contrário. Parece-me que se conhece melhor o que é o "interesse geral" como limite do exercício de direitos, liberdades e garantias, do que uma noção programática, como a noção de "instrumento do progresso colectivo". Naturalmente que sobre os conhecimentos de cada um cada qual se manifesta, e, portanto, eu não estou a dizer que o Sr. Deputado José Magalhães não conheça melhor a noção de "instrumento do progresso colectivo" do que a noção de "interesse geral". Contudo, o que me parece, em termos de rigor técnico-jurídico, é que a expressão do projecto do PS é uma expressão mais rica porque, em última instância, mais liberalizadora - se o Sr. Deputado José Magalhães assim quiser -, mas também mais rigorosa do ponto de vista jurídico. Não é uma expressão exclusivamente orientada do ponto de vista programático, na medida que, ao referir-se "enquanto instrumento do progresso colectivo", parece que esse critério constituiria critério único para aferir os quadros de exercício da iniciativa privada, quando a realidade dos factos demonstra que a apreciação das várias formas de iniciativas económicas não é reduzível a um critério único para cada uma dessas formas de iniciativa económica. Há sempre uma pluralidade de vertentes no exercício de uma dada iniciativa económica, por um lado. Por outro lado, o PS teve a preocupação de utilizar aqui uma expressão com origens "jus-civilistas", e verter na Constituição em casos concretos afloramentos deste critério geral de enquadramento das iniciativas económicas. Se o Sr. Deputado José Magalhães atentar no artigo 62.°, n.° 2, da proposta do PS, onde se delimita o critério orientador do recurso à requisição e à expropriação, aí encontra um afloramento claro do que é que nós entendemos o que seja o interesse geral de limitação do direito de propriedade privada. É uma vertente do critério do "interesse geral" no que diz respeito ao estatuto constitucional da propriedade privada, mas podemos encontrar outras vertentes desse critério ao longo da Constituição. Portanto, parece-me que a proposta do PS é, apesar de tudo, mais rigorosa do que aquela que a Constituição hoje consagra.

O Sr. Presidente: - Peço desculpa por repetir, mas o interesse geral pode não coincidir com o progresso colectivo. A ideia de progresso não esgota o interesse geral. O conceito de utilidade geral é mais vasto - como diz o Sr. Deputado António Vitorino -, mas é mais rico e menos programático.

O Sr. Miguel Macedo e Silva (PSD): - Se me permite, quero somente fazer dois apontamentos, antes que - conforme presumo - o Sr. Deputado José Magalhães use novamente da palavra.

De facto, a última intervenção do Sr. Deputado José Magalhães é uma fundamentação para a alteração que nós propomos a este artigo. Com efeito, do que aqui se trata é de dar resposta àquilo a que o Sr. Deputado José Magalhães, com alguns preciosismos, mas não menos objectividade, chamou e rotulou de "outra iniciativa privada". É que, de facto, esta norma da forma como está redigida no actual texto da Constituição tra-

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duz, a nosso ver, uma profunda desconfiança do texto constitucional em relação à iniciativa privada. E nós julgamos que essa desconfiança não tem razão de ser, da forma como é apresentada e da forma como é explicitada e, mais do que isso, julgo que traduz um pouco uma ideia que não nos parece também muito correcta, que é a de encarar a iniciativa privada como um mero instrumento de outros objectivos que não aqueles que ela também tem, e que naturalmente lhe dizem respeito. E, portanto, nesse sentido, julgo que esta intervenção do Sr. Deputado José Magalhães reforça a nossa convicção e a nossa ideia de que também aqui nesta artigo da Constituição era necessário, de facto, alguma alteração no sentido de conferir à iniciativa privada o relevo e a importância que ela tem na nossa sociedade.

O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado José Magalhães quer ter uma última palavra sobre este tema ou dá por dito aquilo que já disse?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Presidente.

É evidente que em matéria de conceitos constitucionalmente indeterminados cada qual pode ter a sua paixão, e, portanto, o Sr. Deputado António Vitorino põe no top o conceito de interesse geral e outros porão o conceito de progresso colectivo. Porém, a questão que eu tinha colocado era a de tentar situar com um pouco de rigor quais podiam ser as vantagens da substituição de um conceito indeterminado como o actual - portanto carecido de todas as possíveis densificações imagináveis - por outro conceito. Nesse sentido, limitei-me a dizer - quando aludi à questão de sabermos o que este significa - uma coisa um pouco banal: que há um património hermenêutico quanto ao artigo 61.°, n.° 1, neste ponto. Não estamos amarrados a esse património hermenêutico e, portanto, pode obviamente o legislador nesta sede "deitar fora" essa hermenêutica e substituí-la por uma melhor. Eu estava a tentar perceber em que é que consistiriam as melhorias. Fiquei um pouco perplexo porque - tanto quanto percebo, sobretudo por causa da explicitação um pouco perversa do Sr. Deputado Almeida Santos - pode haver uma diminuição do conteúdo.

O Sr. Presidente: - "Perversa" porquê?

O Sr. José Magalhães (PCP): - "Perversa" neste sentido: o Sr. Deputado António Vitorino tinha-se limitado a adiantar com carácter um bocadinho obscuro - embora, naturalmente, não desprovido de conceptualismo - que se tratava de assegurar a "pluralidade de vertentes" no exercício de uma iniciativa. Eu tenho um grande respeito pela "pluralidade de vertentes" e pelas mais diversas vertentes. Agora, ao que eu me apegava, e me preocupava em concreto, era saber se, dobrado o cabo dessas vertentes, nós não ficaríamos com o preceito diminuído de conteúdo. O que o Sr. Deputado Almeida Santos vem trazer a terreno é que a ideia de "progresso" - coisa que, como nós sabemos, dá para chorudas reflexões - pode não coincidir com aquilo que decorre do "interesse geral" saudavelmente interpretado. O "interesse geral" pode colidir directamente com a ideia de progresso colectivo.

O Sr. Presidente: - Não é "colidir". Pode é não "coincidir". Quer dizer: não esgota.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Parece, pois, que há muito mais no céu e na terra fluindo da noção de "interesse geral" do que aquilo que flui da noção de "progresso colectivo". Ora, o que eu queria perguntar era se dessa noção de interesse geral decorreria que a iniciativa privada se deve mover dentro de parâmetros que tenham em conta aquilo que decorre dos imperativos de aumento, por exemplo, do bem-estar colectivo, da qualidade de vida dos cidadãos, da necessidade de boa utilização dos recursos produtivos, da necessidade de defesa da independência nacional, da necessidade de assegurar o crescimento equilibrado dos diversos sectores e das regiões, da necessidade de defesa do ambiente e utilização racional dos recursos naturais, etc. É isso que se pretende?

O Sr. Presidente: - Isso e muito mais! No conceito de interesse geral cabe muito mais!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, que caiba mais satisfaz-me imenso. A minha preocupação é que não caiba isto, ou caiba menos do que isto!

O Sr. Presidente: - Cabe muito mais e também cabe o "progresso colectivo". O problema é esse: a nossa expressão é mais rica, mais ampla, ainda que não seja tão precisa. Questão é saber se deve sê-lo!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Seria possível Sr. Presidente, pedir ao PS que precisasse um pouco mais esta questão para que pudéssemos medir com mais exactidão aquilo que não cabe, e aquilo que cabe, uma vez que se trata de verter conteúdos constitucionais?

O Sr. António Vitorino (PS): - Devo confessar que não sei se se torna necessário precisar mais, porque o Sr. Deputado José Magalhães já foi tão abundante que eu tinha a veleidade de pensar que a intervenção do Sr. Deputado Almeida Santos tinha sido suficiente para deixar o Sr. Deputado José Magalhães com a consciência tranquila. Mas talvez possamos ir um pouco mais além, pelo que avançaria com duas reflexões complementares.

A primeira é a de que não creio que o Sr. Deputado José Magalhães tenha razão sobre a valiosa hermenêutica do conceito de "instrumento do progresso colectivo". Não conheço jurisprudência constitucional que tenha feito passar pelo crivo deste critério, exclusivamente, a apreciação da constitucionalidade de actos legislativos acerca da iniciativa económica. E, se nós ajuizarmos, por exemplo, a jurisprudência em matéria de lei de delimitação de sectores, verificaremos que não é através deste inciso programático e da sua hermenêutica que se obtêm conclusões sólidas em termos de interpretação da Constituição económica. Daí que eu ache que, sinceramente, este conceito é um conceito algo estéril em termos de interpretação constitucional, e que inclusivamente tem um pendor negativo porque inculca uma leitura vocacionalmente dirigista da economia. E não me parece ser esse sequer o sentido que resulta do actual texto constitucional, quanto mais perante interpretações que se pretendem mais liberais ou liberalizadoras.

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Não creio também que se possa dizer que a justificação que apresentei da nossa proposta tenha sido obscura, porque a pluralidade de vertentes a que fiz referência é aquela que o Sr. Deputado José Magalhães esforçadamente acabou por enumerar e o mais que ainda se possa acrescentar. Pergunta o Sr. Deputado José Magalhães qual a garantia jurídica que lhe posso dar e que a minha interpretação é válida. Bom, a garantia reside no facto, exactamente, de o PS manter no preceito a referência aos "quadros definidos pela Constituição e pela lei". Todo aquele extenso lençol de limitações ao exercício das iniciativas económicas que o Sr. Deputado José Magalhães referiu está garantido pela Constituição e pela lei nos precisos termos do n.° 1 do artigo 61.° na redacção actual que nós propomos que se mantenha inalterada. Até direi mais: está tão garantido que não constitui exclusivamente limitação para o exercício da iniciativa privada, ou sejam, o bem-estar colectivo também é uma limitação para o exercício da iniciativa económica pública, ou da iniciativa económica cooperativa. Portanto, os limites aí não são limites ad iniciativam (não são limites contra uma certa e determinada iniciativa); são limites à iniciativa económica em geral que têm um afloramento específico neste artigo em relação à iniciativa económica privada.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas, Sr. Deputado António Vitorino, eu creio que compreendo a tenaz argumentativa que o Sr. Deputado está a colocar. Acabei de lhe captar a extrema esquerda; gostava de lhe captar a extrema direita.

Quanto à extrema esquerda, eu creio que há um lapso na argumentação: o artigo 65.° aplica-se exclusivamente à iniciativa não pública, sendo mesmo o que o caracteriza; portanto, se queremos buscar limites para a iniciativa pública, não os poderemos buscar no artigo 61.°, e haveremos de os ir buscar ao artigo 9.°, etc.

O Sr. António Vitorino (PS): - Claro, Sr. Deputado. Mas eu estava dizendo que por isso mesmo não é nenhum...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Eu penso que o PS não propõe o alargamento nem a criação de uma cláusula geral aplicável a todas as iniciativas, isto é, não apresenta nenhum preceito que diga: "Todas as iniciativas pública, privada, cooperativa, autogestionária devem ter em conta o interesse geral[...]"

O Sr. António Vitorino (PS): - Não, Sr. Deputado. O PS não propõe isso nem apoiaria tal proposta.

O que eu estava a querer dizer, e provavelmente não fui suficientemente explícito, é que estas considerações que estou a tecer acerca do artigo 61.° e dos termos em que ele está redigido na nossa proposta não invalidam que se reconheça a existência em paralelo de limites explícito ou implícitos ao exercício das outras iniciativas económicas, limites esses fundados numa preocupação de "interesse geral".

Portanto, o que gostaria de sublinhar é que não me parece que se deva considerar empobrecedora a expressão utilizada no nosso projecto de lei. Ela não é, na nossa inerpretação, empobrecedora do que devem ser, num Estado de direito democrático, os limites ao exercício da iniciativa económica privada, tal como o artigo 61.° a consagra.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, gostaria de agradecer as explicações e os complementos aditados pelo Sr. Deputado António Vitorino, embora creia que as nossas apreensões serão justificadas para quem conheça o projecto de revisão do PSD, bem como o significado da alteração do PS, que pode ter implicações sensíveis, tanto directas como decorrentes de alterações imprimidas aos artigos 9.°, 64.°, n.° 3, 81.°, 87.°, 88.°, 109.° e por aí adiante.

A última observação do Sr. Deputado António Vitorino é susceptível de provocar alguma emoção na Câmara, uma vez que, se o conceito em causa não é empobrecedor, então muito do regozijo que o Sr. Deputado Miguel Macedo e Silva aqui exprimiu terá sido precoce. Portanto, ele tem que ser abandonado depois deste debate, ou então o Sr. Deputado Miguel Macedo e Silva tem uma expectativa benévola em relação a artigos que não a este e isso fundará o seu regozijo. Nesse caso, a ter em conta as palavras do Sr. Deputado António Vitorino, o artigo 61.° não poderia ser matriz dessa alteração. Ela teria, assim, uma outra matriz, qualquer que ela fosse (é um enorme mistério!).

O Sr. António Vitorino (PS): - Quando lá chegarmos, logo veremos.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado António Vitorino, V. Exa. compreenderá a minha expectativa e, por outro lado, a minha pouca conformação com as tácticas de progressão lenta no terreno nestas matérias, em que os menores mistérios são aqueles que decorrem do que a comunicação social revela em relação a certos encontros de trabalho.

O Sr. António Vitorino (PS): - O Sr. Deputado lê de mais os jornais!

O Sr. José Magalhães (PCP): - O Sr. Primeiro-Ministro tem essa ideia dos seus ministros, de modo que a vitorinante transposição disso para a Comissão e realmente emocionante.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Deputado, em alguma coisa eu havia de estar de acordo com este Primeiro-Ministro!

O Sr. Vera Jardim (PS): - Não é obrigatório!

Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Presidente Rui Machete.

O Sr. Presidente (Rui Machete): - Srs. Deputados, talvez pudéssemos passar à apreciação de outro artigo.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Ou de outra matéria!

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, há outras propostas de alteração relativas a esta matéria para serem analisadas.

Vozes.

O Sr. José Magalhães (PCP): - No caso da proposta do PRD, caberá ver se ela contém uma alteração de conteúdo ou se se traduz apenas na introdução de uma cláusula alusiva ao papel a desempenhar pela lei relativamente ao regime de funcionamento das cooperativas.

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O Sr. Miguel Macedo e Silva (PSD): - Não, Sr. Deputado, esse é o texto do n.° 2 do artigo 62.° e a alteração do PRD refere-se ao n.° 3 no sentido de nele ficar estabelecido o seguinte: "As cooperativas desenvolvem livremente as suas actividades e podem agrupar-se em uniões, federações e confederações." O n.° 2 mantém-se, e, portanto, a fidelidade aos princípios cooperativos no projecto de lei do PRD mantém-se, tanto quanto eu entendo.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Tem razão, Sr. Deputado.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vamos passar à apreciação do artigo 62.°, "Direito de propriedade privada", relativamente ao qual foram apresentadas propostas de alteração pelo CDS, pelo PCP, pelo PS e pelo PSD.

Como o CDS está ausente, perguntaria ao PCP se gostaria de justificar brevemente a sua proposta.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - O projecto de lei apresentado pelo PCP é um projecto equilibrado, que visa dar resposta, a partir dos nossos pontos de vista e tendo em conta os grandes objectivos que nos norteiam, não apenas a um conjunto de questões mas aos diversos conjuntos de questões que se nos deparam.

Este é um projecto que, como há pouco vimos, visa claramente o aperfeiçoamento dos direitos dos trabalhadores, mas simultaneamente não deixa de dar resposta àquilo que são limitações indébitas do regime constitucional na parte em que tutela o direito de propriedade. Isto é o que meridianamente atesta a proposta que apresentamos para o n.° 2 do artigo 62.°

Aí se adianta a ideia de que todas as formas de expropriação apenas possam ser efectuadas com base na lei mediante pagamento de justa indemnização. Visa-se, assim, suprimir a restrição constitucional que reduz o regime a que se refere o n.° 2 aos casos de expropriação por utilidade pública. Sabemos, designadamente, da análise da problemática legal das expropriações, que há outras espécies de expropriação em que é não menos justificável a garantia de uma justa indemnização e, por outro lado, a garantia de uma lei prévia e enquadradora.

Sr. Presidente, Srs. Deputados: É este o sentido da proposta apresentada pelo Grupo Parlamentar do PCP. Ela é, de resto, idêntica a uma proposta que posteriormente veio a ser apresentada pelo Grupo Parlamentar do PS, a qual merece, portanto, a nossa concordância.

Contudo, creio que outro tanto não acontece em relação à proposta apresentada pelo CDS. Oportunamente poderemos perguntar aos Srs. Deputados do CDS o que pretendem exactamente, uma vez que a história do confisco é bastante abundante nas actas e nos trabalhos preparatórios, quer da feitura da Constituição quer da primeira revisão constitucional.

Finalmente, não me pronunciaria acerca da proposta do PSD uma vez que ela será oportunamente apresentada pelos Srs. Deputados proponentes.

O Sr. Presidente: - Há uma observação feita pelo Sr. Deputado José Magalhães que gostaria de ver confirmada pelos Srs. Deputados do PS. Creio que o n.° 2 em que se consubstancia a proposta socialista é idêntico ao n.° 2 da proposta apresentada pelo CDS.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Não, Sr. Presidente, um texto é o reverso do outro. Eliminamos os dois únicos casos de confisco previstos na Constituição.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, não me refiro ao n.° 3. Relativamente ao n.° 2, a redacção parece ser idêntica.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Não, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - A diferença é que o CDS não menciona a expropriação.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sim, e além disso, o texto proposto pelo CDS para o n.° 2 do artigo 60.° tem as palavras trocadas em relação ao respectivo texto apresentado pelo PS.

O Sr. Presidente: - Mas é a única diferença, o resto é idêntico. O n.° 3 é que é diferente entre as redacções apresentadas pelos dois partidos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sim, Sr. Presidente, embora por razões diferentes. É que o CDS proíbe o confisco e nós simplesmente o eliminamos. Pareceu-nos perigoso proibir na Constituição a figura do confisco porque ele é um instrumento de que o direito penal pode não poder prescindir nalguns casos.

O Sr. Presidente: - Sim, e em matéria tributária tem algumas ressonâncias a jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Como eliminamos os dois únicos casos, não se justificaria a referência aos casos previstos na Constituição, porque, segundo a nossa proposta - se os Srs. Deputados concordarem com a medida -, eles deixam de existir.

O Sr. Presidente: - O Partido Socialista justifica deste modo a sua proposta de alteração, ou pretende acrescentar algo mais?

O Sr. Almeida Santos (PS): - Mais nada, Sr. Presidente. Apenas propomos a eliminação da expressão "fora dos casos previstos na Constituição" porque já havíamos proposto a eliminação dos dois únicos casos de confisco previstos no texto constitucional.

O Sr. Presidente: - Solicitaríamos agora ao PSD que justificasse a respectiva proposta de alteração, a qual é de ordem sistemática.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Como o Sr. Presidente acabou de dizer, o PSD entende que o direito de propriedade privada deve fazer parte do elenco dos direitos, liberdades e garantias. Por essa razão é que se propõe a alteração do artigo 62.°, ou seja, pela reinserção sistemática do seu conteúdo no artigo 47.°-A. Posteriormente, e em sede de revisão constitucional, haverá uma arrumação mais completa desta questão.

Entendemos que o direito de propriedade privada deve fazer parte do elenco dos direitos, liberdades e garantias, não deve ser tido como um direito de natureza análoga, como até agora. Além disso, deve existir uma ligação directa entre a garantia da propriedade

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e a tutela da autonomia privada, bem como da liberdade e da dignidade pessoais. Por essas razões, e somente por essas, entendemos que o direito de propriedade deve mudar em termos de sistemática.

Aliás, no que respeita às várias componentes do direito de propriedade, há uma delas que não é aqui expressamente referida e que consiste na possibilidade de o particular usar e fruir da propridade. Ela própria estaria assim contida se fosse englobada como um direito, liberdade e garantia qua tale e se se fizesse a conjugação possível entre este e os outros direitos, liberdades e garantias.

Por outro lado, e em relação à proposta apresentada pelo PS - digo-o em termos individuais, mas julgo que esta será também a posição do PSD -, creio que estamos abertos a que não se faça a referida restrição fora dos casos previstos na Constituição, apesar de a mantermos para já. Sublinhamos que somos a favor de que qualquer requisição e expropriação por utilidade públicas só possa ser feita com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização.

Assim, se se eliminarem mais adiante os artigos referentes ao confisco, julgo que o PSD também retirará do n.° 2 do artigo 62.° a referida expressão - o qual, no nosso caso, passará a 47.°-A, ou qualquer outro número possível em sede de direitos, liberdades e garantias -, por forma a adequar o articulado com aquilo que o PSD sempre preconizou. Por outras palavras, qualquer limitação à propriedade nos casos de requisição e de expropriação por utilidade pública, ou qualquer outra limitação que não estas duas - não pretendo fazer doutrina constitucional -, deve sempre ser compensada mediante pagamento de justa indemnização.

Também não é aqui referido, mas pensamos que, se a justa indemnização não for prévia, pelo menos deve ser concomitante.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, esta proposta que o PSD apresenta à Comissão não é verdadeiramente inovadora. Trata-se de um caso de reincidência, digamos assim, na medida em que já na revisão constitucional de 1982 o PSD, subscritor do projecto da Aliança Democrática, tinha apresentado uma proposta semelhante.

Nessa altura realizou-se um debate exaustivo, ponderando quais os direitos que na redacção originária estavam integrados em sede de direitos económicos, sociais e culturais e que deviam ser escolhidos para integrarem o elenco dos direitos, liberdades e garantias e, consequentemente, beneficiarem do especial regime de protecção e de eficácia que o artigo 18.° da lei fundamental confere a estes últimos.

Ora, supunha eu, naquela ingenuidade que de cinco em cinco anos é abruptamente interrompida pelos projectos do PSD, que o debate dessa altura tinha conduzido a conclusões sólidas. Sólidas no sentido de que o direito de propriedade privada era um daqueles casos em que não se justificava proceder à sua integração nos direitos, liberdades e garantias, e em fazê-lo beneficiar desse especial regime jurídico de protecção e de eficácia constante do artigo 18.° da Constituição.

Assim julgava eu, na precisa medida em que, em primeiro lugar, haveria que explicar o porquê de passar a aplicar ao direito de propriedade privada, aquele especial regime jurídico, tendo em linha de conta que nos movemos num domínio do direito de propriedade que se reveste de um certo melindre em função dos valores que estão em causa no seu tratamento jurídico-constitucional. Mas, sobretudo, porque propostas deste género - receio bem - acabam por ter consequências não pretendidas pelos seus próprios autores ao almejarem mais alto do que aquilo que eventualmente seria razoável.

Deste modo, uma das consequências directas e imediatas dessa alteração de ordem sistemática seria integrar toda a matéria referente ao direito de propriedade no âmbito da esfera de competência exclusiva da Assembleia da República. Nos termos do artigo 168.°, n.° 1, alínea b), é da competência exclusiva da Assembleia legislar sobre direitos, liberdades e garantias.

Ora o facto de se tratar de matéria atinente a esta área constitucional, e como o PSD não propõe que os direitos, liberdades e garantias deixem de integrar a esfera da competência exclusiva da Assembleia da República, esta proposta acarretaria como consequência uma alteração muito significativa no plano mesmo da repartição de competências legislativas entre os órgãos de soberania.

Assim aconteceria, na medida em que, sempre que o Govêrno pretendesse legislar acerca de matéria atinente ao direito de propriedade - e não se tratava apenas de regulamentação do exercício do direito de propriedade privada, mas, sim, de todas as matérias que directa ou indirectamente tivessem a ver com restrições ou condicionamentos desse direito -, o Governo não teria legitimidade para o fazer, porque tratar-se-ia de matéria da competência exclusiva da Assembleia. Portanto, para o efeito teria que apresentar uma proposta de lei ou munir-se da necessária autorização legislativa, nos termos do artigo 168.° da Constituição.

A verificar-se tal situação, operar-se-ia um desequilíbrio interno em termos de competências legislativas muito significativo entre o Governo e a Assembleia da República, dado que a competência parlamentar não se limitaria apenas às bases gerais do direito de propriedade privada, mas a todo o respectivo regime jurídico, por força da alteração sistemática proposta pelo PSD, ou seja, ao proceder-se à transferência do artigo 62.° para o capítulo dos direitos, liberdades e garantias, integrando-o como artigo 47.°-A.

Portanto, a primeira observação que me parecia pertinente fazer neste momento do debate é que, de facto, se trata aqui de uma reincidência. Podemos por isso reabrir o debate que teve lugar em 1982, e para isso bastaria consultar as respectivas actas e reler o que então dissemos. Então como hoje parece-me que se continua a não responder à questão que foi considerada como não resolvida, e que esteve aliás na base do consenso em 1982 alcançado no sentido de que não se procedesse à transferência do artigo 62.° para o capítulo dos direitos, liberdades e garantias.

Na verdade, a proposta do PSD acaba por ter efeitos negativos no que diz respeito às formas institucionais de regulamentação do direito de propriedade.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

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O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Presidente, gostaria apenas de, em complemento do que disse o Sr. Deputado António Vitorino, realçar a lealdade com que estamos a argumentar, porque, se deixássemos aprovar esta vossa proposta, criar-vos-íamos não pequenos embaraços no futuro.

Por outras palavras, aquilo que pretenderiam funcionaria exactamente ao contrário: limitariam o exercício do direito de propriedade e, sobretudo, não poderiam impor-lhe qualquer restrição não prevista na Constituição e que não fosse de carácter genérico. E eu concebo a necessidade de restrições ao direito de propriedade existentes ou a existir que não devam deparar com esses obstáculos.

Julgo, por isso, que esta proposta está em contradição com o espírito que terá presidido à sua elaboração.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, tenho aqui duas inscrições na mesa, uma do Sr. Deputado José Luís Ramos e outra de mim próprio.

Devo dizer que achei muito interessante os problemas suscitados pelo PS - de resto, tive oportunidade de ler as actas relativas ao debate travado. Penso que, nestas matérias, não há caso julgado, portanto não pode justificar-se, pela simples circunstância de já se ter travado um debate, que o assunto fique definitivamente encerrado. A menos que os argumentos sejam decisivos. O argumento que foi utilizado é ponderoso, interessante, de carácter sistemático, ligado a um problema de repartição de poderes entre a Assembleia da República e o Governo; penso que é um argumento que vale alguma coisa, como é evidente, mas não tem que infirmar o primeiro problema, que é o fundamental que se põe e é o de saber se, efectivamente, a propriedade deve ser concebida como um direito fundamental de liberdade ou, pelo contrário, deve ser um direito, mas com uma natureza mais caracterizadamente económica e instrumental.

Supunha, aliás, que o PS iria enveredar por uma outra crítica, que era a de considerar que esta mudança sistemática de posição do direito de propriedade estava filiada numa velha ideia liberal que levou, de resto, a considerar que as questões, em matéria de liberdade e de propriedade, eram a nota do conceito material de lei. Eu perceberia melhor, porventura, esse tipo de crítica, embora me pareça que também não é procedente.

A ideia que tivemos ao fazer esta modificação foi justamente a de sublinhar que o conceito constitucional de propriedade como direito fundamental - que não é a mesma coisa que o conceito de propriedade do direito civil, e bastaria invocar a jurisprudência dos tribunais constitucionais italiano e alemão para se perceber o que é que se quer significar com isso - tem uma natureza que transcende o simples aspecto economicista da propriedade. E, aliás, está relacionado com aquilo que justifica, na doutrina social da Igreja - para não irmos socorrer-nos de outras doutrinas que não tenham o peso do ensino da doutrina social da Igreja -, que ela seja apresentada como um direito fundamental de liberdade. Porquê? Porque não se encontrou, em termos de estruturação dos direitos, para além do direito de liberdade propriamente dito, em sentido estrito, outro direito que fosse tão importante para salvaguardar a esfera da autonomia da pessoa face ao Estado ou às entidades políticas, muito embora, naturalmente, depois se aceitem todas as limitações, e muitas são, que devem dar à propriedade não aquele sentido absoluto romanista, mas um sentido natural e profundamente social e de justiça distributiva.

Essa é a questão fundamental. Na nossa Constituição, não foi por acaso que este direito de liberdade, logo em 1976, foi relegado para uma situação de menoridade - e isso tem um significado ideológico que nós, justamente, pretendíamos retirar-lhe ou, se se quiser, dar um sinal ideológico diverso. Essa é a questão nuclear, é a questão essencial. Isto é tanto assim que, como eu dizia há pouco, quando se analisa a estrutura liberal que não foi ultrapassada no Estado social, justamente o ponto de destrinça entre o que é a competência das assembleias e ou é considerado como matéria de lei ou lei em sentido material são as questões relativas à liberdade e à propriedade - não apenas as relativas à liberdade. Daí se retira um sem-número de consequências que não se justificaria agora estar aqui a desenvolver ou explicitar, porque são todas por de mais conhecidas. Portanto, repito, a questão básica essencial não é a de saber se depois, em termos de artigo 168.° da Constituição, as coisas funcionam bem ou mal, mas a de saber se é razoável, importante, ou não colocar o direito de propriedade naquilo que é a tradição das constituições ocidentais. Foi por isso que voltámos a ser reincidentes ao não considerarmos que a matéria tivesse passado em julgado.

Argumentam os Srs. Deputados António Vitorino e Almeida Santos com a circunstância de isso levantar grandes problemas em termos de repartição de competências, que foi, obviamente, pensada noutro tipo e noutro esquema. Eu diria, admitindo que essa crítica é válida, admitindo que pela via interpretativa não se pode chegar aos resultados pretendidos, que isso só significa que a proposta é incompleta e que há que mexer, em matéria do artigo 168.°, para nos pormos de acordo - porque o artigo 168.° tem, apesar de tudo, uma natureza técnica e instrumental de repartição de competências e não devemos subverter as coisas e, por razões de ordem técnica e distributiva de competências,...

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, é um apelo irresistível para que não se subvertam as coisas - designadamente, também, a nossa argumentação; não é só a questão do artigo 168.°, é a questão do artigo 18.° V. Exa. acha que o objectivo pretendido pelo PSD é, de facto, aplicar o artigo 18.°, na íntegra, às restrições do direito de propriedade privada? Nós aceitamos que nos digam que sim; não vemos até objecção nenhuma em que essa seja a resposta que nos dêem.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado António Vitorino, o que eu lhe diria é o seguinte: por exemplo, se cotejar com aquilo que se passa num ordenamento jurídico onde existe um artigo similar ao artigo 18.° e onde o direito de propriedade é considerado como um direito fundamental, que é a grundgesetz alemã, verificará que as interpretações feitas não têm tido os inconvenientes em que V. Exa. está a pensar. Isto justamente porque, e esse tem sido e foi o papel importante da jurisprudência alemã, designadamente, não foi concebido o direito de propriedade em termos do Código Civil ou

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não - foi um conceito de direito fundamental de propriedade que, simultaneamente, abrange mais coisas e menos coisas, consoante as perspectivas, do que o direito de propriedade definido no BGB.

Eu diria que por aí não me parece que haja dificuldades intransponíveis e, repito, a questão fundamental é esta: estamos de acordo ou não - eu, naturalmente, respeito, inteiramente as ideias e opiniões contrárias - em repor o estatuto do direito de propriedade dentro dos direitos fundamentais, como era a tradição ocidental liberal. Depois, as acomodações que eventualmente tenham de vir a fazer-se, diria eu, pois façam-se; embora algumas delas sejam mais aparentes do que reais porque, repito, aquilo que é a experiência, em matéria de direitos fundamentais, na RFA, no que diz respeito ao direito de propriedade, onde há, como se sabe, um artigo similar ao artigo 18.° - não há, realmente, o problema do artigo 168.°, que é uma questão diversa -, tem conduzido a resultados...

O Sr. António Vitorino (PS): - Mesmo do 18.°...

O Sr. Presidente: - Não. O 18.º tem algumas diferenças, mas não são em termos de aplicação imediata do direito fundamental e o problema, a única questão que poderá pôr é em matéria de condicionantes concretas; é a única questão, à primeira vista e sem ter aqui à mão a Lei Fundamental de Bona, onde poderão surgir alguns problemas. Mas mesmo aí penso que pode haver interpretações que, razoavelmente, ultrapassem a dificuldade.

E repito, para não me alongar mais: a questão de 168.° - que é uma questão real, em termos de ter de se encontrar uma fórmula que permita ultrapassar o facto de ser excessivo que essa competência legislativa da Assembleia, embora numa acepção relativa, abrangesse todos os aspectos - consegue resolver-se quer pela interpretação do conceito da propriedade, em termos constitucionais, quer eventualmente por alguma obra que tenha de vir a fazer-se no artigo 168.° O que não me parece, francamente, é que se possa argumentar com uma questão técnica, em termos de esquecer o problema primário que pomos - por isso lhe chamei uma subversão; é uma argumentação que me parece de um extremo positivismo.

O Sr. Almeida Santos (PS): - No mínimo, podemos admitir que VV. Exas. não pensaram nisso, se não teriam adequado as vossas propostas às críticas que acabamos de fazer. Não pensaram nisso, se não teriam feito propostas no lugar próprio, para que o artigo 18.° não se aplicasse - ou querem mesmo suportar as consequências? Ah, sim? Muito me espanta!...

O Sr. Presidente: - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)

O Sr. António Vitorino (PS): - É essa a resposta por que ansiamos, mas não fora do microfone!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não basta o querer! Ao que parece, para o PS, o "sim" furtivo e ad hoc não chega: têm de dizer "sim" no casamento. É um "sim" significativo!

O Sr. Almeida Santos (PS): - Só posso deixar aqui registado o meu espanto, mais nada.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Admitamos a atenuante da precipitação.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Almeida Santos, o que eu referi foi explicitado com algum cuidado e, repito, não penso que a interpretação correcta do que seja o conceito de propriedade, em termos constitucionais, leve às consequências desastrosas face ao artigo 18.° Quanto ao problema do artigo 168.°, não me custa reconhecer as vossas observações, desde que mereça acolhimento - a questão básica é essa - a nossa tese quanto à questão substancial e prioritária, em termos de ser mais importante; o problema técnico da acomodação do 168.° é uma questão que poderá ser resolvida oportuna e convenientemente.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Ramos.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Eu diria aqui a minha opinião pessoal, que é a seguinte: em relação a estas duas questões, que foram colocadas pelo Sr. Deputado António Vitorino, o que tenho a dizer é que, mesmo que o artigo relativo ao direito de propriedade continue no título m, é facto que deve ser considerado um direito de natureza análoga dos direitos, liberdades e garantias. Há quem defenda a aplicação aos direitos de natureza análoga de artigos que dizem respeito aos direitos, liberdades e garantias. Assim, resta discutir quais os artigos daquele regime que se excepcionam. Pelo que diz respeito ao artigo 18.°, defendo a sua aplicação.

O Sr. António Vitorino (PS): - Está a seguir os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira!

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Sr. Deputado António Vitorino, dir-lhe-ei que não são só os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira que defendem esta posição, em sede de direitos de natureza análoga. Tanto a aplicação do artigo 18.° - parece-me que isso é adquirido e quase unânime - quanto do artigo 168.° reconheço que é discutível.

O Sr. António Vitorino (PS): - Mas a pergunta que faço é a seguinte: o Tribunal Constitucional alguma vez declarou organicamente inconstitucional um acto legislativo do Governo, em matéria de restrição de direito de propriedade, por não ter sido precedido de uma autorização legislativa? As posições doutrinárias têm a liberdade que têm, mas a verdade é que temos de julgar com base em dados de interpretação constitucional consolidada - e essa é a jurisprudência constitucional. Claro que não conheço toda a jurisprudência do Tribunal Constitucional.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Também eu não a conheço toda, nem conhecerei algum caso destes, mas o que poderei dizer, neste sentido, é que não dou de barato nem deito pela janela a doutrina constitucional nesta matéria - bem pelo contrário, julgo que nos ajuda muito. Aliás, o próprio Tribunal Constitucional em muitos casos se socorre dela, e bem. Portanto, quanto à questão de saber o que é que o Tribunal Constitucional aplicará em determinada medida, julgo

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que se pode, em termos de artigo 168.°, se o problema é esse, fazer uma adequação. Julgo que o problema, já hoje, não é assim tão pacífico ou tão líquido como o que o Sr. Deputado António Vitorino poderia fazer crer.

Por outro lado, a questão é esta: é facto que, para nós, o direito de propriedade privada deve ser um direito de liberdade e garantia qua tale, deve constar do seu elenco; as consequências disso parece que não serão muito graves, porque hoje existem diversas interpretações. Mais: a mim não afecta nada, bem pelo contrário, que seja a Assembleia da República a aprovar o Código das Expropriações - por que não?

O Sr. Almeida Santos (PS): - É que não se trata apenas disso!

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Eu sei que não é ou que poderá não ser só isso, mas, por exemplo, em relação ao Código das Expropriações, não vejo qual o mal disso, bem pelo contrário. De todas as maneiras, penso que esta será a situação; mesmo, em termos de afirmação de princípio, não vi qualquer argumento que nos levasse a pensar o contrário. Quanto às consequências, podemos pensar quais elas sejam e, obviamente, estamos abertos a que nesse regime e nessa sede sejam apreciadas devidamente.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Se aceitam estas consequências, estamos dispostos a reexaminar o problema. Quisemos formular um aviso. Se aceitam as referidas consequências, podemos reexaminar o problema!...

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Julgo que é o único caminho a seguir. Aliás, como já disse, hoje mesmo as restrições do artigo 18.° se colocam no que concerne ao artigo 62.°

Vozes.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Isso acontece hoje em dia, Sr. Deputado Almeida Santos! Essas consequências já existem. Não é nada de novo.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Acho que não existem. Acabámos de citar o facto de nenhuma lei relativa à propriedade ter sido alguma vez julgada inconstitucional por não ser lei da Assembleia.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Sr. Deputado Almeida Santos, o entendimento relativamente ao artigo 18.° é pacífico.

O Sr. Presidente: - Embora eu goste muito dos Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, prefiro manter-me no conceito constitucional do direito de propriedade.

Vozes.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Queria também exprimir a minha opinião sobre algumas objecções postas especialmente pelo Sr. Deputado António

Vitorino, e tentar acrescentar àquilo que foi dito alguns fundamentos pelos quais o PSD pretende esta transposição sitemática do direito de propriedade do conjunto dos direitos económicos para o dos direitos, liberdades e garantias.

Relativamente às objecções, devo dizer que não deixaria de ser muito mais espantosa a hipótese de vir a competência da Assembleia da República a alterar o elenco dos direitos, liberdades e garantias ou a sua estrutura, do que o contrário - e é o contrário que o PS pretende prevenir. Não me causa nenhum espanto que a alteração do elenco de direitos, liberdades e garantias crie uma alteração automática do elenco de competências da Assembleia - de facto, as competências são definidas tendo em conta a estrutura dos direitos que vão ser tratados pela Assembleia. Parece-me que o PS lavra no erro contrário, que é promover a competência da Assembleia ao ponto de a considerar um impedimento da possibilidade de alteração do elenco dos direitos, liberdades e garantias. Seria confundir uma questão substancial com uma questão formal e de competência. Ou então seria alterar, de certo modo, os critérios de hierarquia entre aquilo que é substância e o que é a forma.

Relativamente à transposição da sistemática dos direitos económicos para o título II da Constituição, creio que aqui há ainda a aduzir dois argumentos: o primeiro tem a ver com a estrutura do direito em causa, que queremos de certo modo promover aqui na Constituição; o segundo tem a ver com aquilo que o direito comparado nos diz e que já foi, de modo amplo, adiantado pelo Sr. Presidente Rui Machete.

Relativamente à estrutura do direito, não se pode negar - e a comparação é feita pela própria inserção sistemática deste direito nalgumas declarações, de direitos, algumas mais, outras menos, vinculativas a nível internacional - que se trata de um direito que tem uma estrutura de defesa perante o Estado. Não é sem razão que temos logo um n.° 2, que tem necessidade de fazer uma consagração constitucional do regime da requisição e da expropriação, o que contribui para reforçar o sentido deste direito de defesa; é essa ideia de defesa que vem fazendo com que a doutrina assente na ideia de uma natureza análoga do direito de propriedade privada ao conjunto de direitos, liberdades e garantias.

Essa estrutura de defesa é comprovada, por exemplo, pela inserção do direito de propriedade na Convenção Europeia dos Direitos do Homem que, sabemos, tem uma preocupação de direitos de liberdade, mais do que de direitos económicos e sociais, até dado o contexto sócio-histórico em que foi redigida; e ainda a própria Declaração Universal dos Direitos do Homem, para já não falar em constituições como a de Bona, também já referida, ou a espanhola. Aí também não há - refiro-me a estas constituições - o pavor de um regime filtrante do artigo 18.°, com as suas implicações na limitação da propriedade; não há esse pavor, porquanto sabemos, por exemplo, que na Constituição de Bona não é só o artigo 1.° que diz respeito à vinculatividade directa dos direitos, liberdades e garantias; é a sua conjugação com o artigo 19.° que nos dá um regime praticamente decalcável sobre o artigo 18.° da Constituição Portuguesa. Não é por essa razão que a Constituição Alemã deixou de incluir este direito no artigo 14.° desse elenco que vai dos artigos 1.° ao 19.°

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em que o direito de propriedade é encarado como um direito fundamental com um regime idêntico aos direitos, liberdades e garantias da nossa Constituição. E digo isto para já não falar no artigo 33.° da Constituição Espanhola, a que corresponde o regime dos direitos, liberdades e garantias consagrado no artigo 53.° do mesmo texto.

Em resumo, devo dizer que não me causa nenhum espanto a necessidade de alteração de competências, dado o carácter acessório e instrumental que a competência sempre exerce relativamente aos direitos que vão estar em causa; por outro lado, o direito de propriedade tem uma estrutura que respeita à chamada liberdade negativa. Possui, de facto, uma raiz histórica ligada ao liberalismo - por que não dizê-lo e assumido?! Faz sentido, por todas as considerações feitas, uma transposição sistemática que dê a este direito a estatura de um direito, liberdade e garantia nos termos em que eles são consagrados e defendidos pela Constituição Portuguesa.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Estou um pouco perplexo com o fluir deste debate, porque ele começou de maneira tão clara e inequívoca e, neste momento, desenvolve-se de forma tão turbulenta que é difícil prever o desfecho, mas também sei que não é obrigatório que as coisas que se iniciam tenham um desfecho previsível. A questão está, antes, em que haja um desfecho razoável. Isso é o que nos preocupa mais, porque aquilo que o PSD quer não é demasiado obscuro. É, de facto, violento, audacioso e traduz uma inversão completa de sinal da Constituição. Entretanto, a argumentação é que é, a todos os títulos, original. Nesse sentido, teria sempre valido a pena o debate. Mas desta vez valeu talvez mais do que noutras ocasiões.

Digo isto porque à ideia que o PSD tem da revisão constitucional - e creio que o próprio secretário-geral do PS a baptizou de revisão tipo "contrato de adesão" (ou seja: "adere ao meu projecto de lei de revisão e boa tarde") - o Sr. Presidente aditou hoje um pormenor capitoso, qual seja, "adere ao meu mal redigido projecto de revisão, ajuda-me a corrigi-lo e boa tarde". É uma concepção de contrato de adesão leonino! O PSD reconheceu que não tinha meditado numa consequência da sua proposta que é um terramoto jurídico, do ponto de vista material e de repartição de competências dos órgãos de soberania. Porém, simultaneamente, culmina esse raciocínio com uma espécie de apelo que só pode, ele próprio, desembocar numa solução ainda mais monstruosa do que a proposta originariamente. De facto, se o PSD pretende, além daquilo que sabemos quanto à reinserção sistemática do estatuto constitucional do direito de propriedade privada, somar a isso uma norma de limitação da norma constitucional referente às competências da Assembleia da República (que exclua esse direito do regime próprio quanto à reserva de competência parlamentar), então não faria somente o "negócio do século", porque fá-lo-ia com majoração amputativa das competências parlamentares! Surpreendo-me, aliás, com a disponibilidade manifestada pelo PS ao querer somar àquilo que é proposto, quanto à deslocação sistemática do artigo 62.°, uma diminuição de competências parlamentares na proporção desejada pelo PSD. Isso levar-nos-ia para um mundo %...

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Desculpe interrompê-lo, Sr. Deputado, mas, quanto ao aspecto das competências da Assembleia da República, parece-me que o que haverá na nossa proposta é um aumento e não uma diminuição.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado José Luís Ramos, sei que V. Exa. está a raciocinar segundo os seus parâmetros. Porém, eu estava a raciocinar segundo os parâmetros que outros Srs. Deputados do PSD enunciaram. Confesso, aliás, que estava francamente mais a pensar no Sr. Deputado Rui Machete do que em si. O Sr. Deputado admitia (embora eu pense que é um ímpeto circunstancial!) um correspondente alargamento da área da competência parlamentar.

Entretanto, o Sr. Deputado Rui Machete, mais prudentemente, medindo as consequências do terramoto, estava a pensar em distanciar o epicentro e diminuir as vagas do impacte da medida proposta. Parece-me, em todo o caso, que, numa versão ou noutra, a proposta de alteração sistemática coloca problemas mais fundos e graves do que os que decorrem da análise apreciadora das suas consequências do ponto de vista de competência da Assembleia da República ou do impacte da aplicação do artigo 18.° da Constituição.

Creio que esta é a prova provada, e uma das más provas - aliás, ela é "boa" apenas num sentido que os Srs. Deputados compreenderão - de que o projecto de lei apresentado pelo PSD é maximalista, ao contrário do que dizia há dias alguém que não está entre nós porque exerce mais altas funções do que tomar assento nesta Comissão. Refiro-me ao Sr. Ministro Fernando Nogueira, que, segundo parece, não lê os jornais, nem sequer, como é óbvio, as actas da CERC - talvez leia esta! No entanto, esta é a demonstração de que o projecto do PSD visa objectivos máximos e não é seguramente minimalista, nem de objectivos médios. Ele visa antes obter alterações significativas no estatuto constitucional do direito de propriedade. E, como o Sr. Deputado António Vitorino sublinhou, trata-se de uma reincidência.

Gostaria tão-só, nesta circunstância, de sublinhar que da parte de um dos seus autores não é realmente uma reincidência, mas, sim, uma primeira vez, em contraste directo e aberto com a posição que tinha publicamente sustentado. Refiro-me ao Prof. Barbosa de Melo, que é co-autor do projecto de revisão constitucional do PSD. Porém, no projecto de lei de revisão que apresentou em 1981 por encomenda do ex-coordenador da AD, isto é, o tão citado "Estudo e projecto de revisão da Constituição", o referido professor e dirigente ou redirigente do PSD sublinhava, a propósito do artigo 57.° do projecto em questão, que o direito de propriedade se mantinha na lógica desses autores "enquanto direito económico não sendo transferido para o capítulo dos direitos, liberdades e garantias", querendo-se, deste modo, "exprimir a superação definitiva (sublinho: definitiva!) do conceito liberal de propriedade privada como mera condição intrínseca de realização da pessoa. Embora se confira maior dignidade

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e se dê maior amplitude à iniciativa privada, o instituto da propriedade continua a ser desenhado com a sua função caracterizadamente social".

Este mestre está, pelo menos, inibido de repetir hoje aquilo que então doutamente afirmava, porque o projecto de lei, de que é subscritor - o têmpora! O mores! -, refere precisamente o contrário. Isto é inequívoco!

De facto, aquilo que o PSD pretende, independentemente de considerações de carácter acessório, processual, é que se promova a "estatura" do direito. Aliás, a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves é demasiado impetuosa nesta matéria, pois entende que a substância é fulcral enquanto que a forma é secundária ("viva a substância, abaixo a forma do direito de propriedade"!). É um jogo de palavras.

Claro que, ao promover-se a estatura do direito de propriedade, como o Sr. Deputado António Vitorino objectou, rebenta-se com a casa da Assembleia da República. Não obstante isso, o que nos preocupa mais não é esse aspecto, pois, além de se rebentar com a casa da Assembleia da República qua tale, ainda se rebentaria com a Constituição económica. E creio que é mais isso que interessa aos Srs. Deputados do PSD.

O Sr. Presidente: - Ah, bom!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Esta questão pode ser tratada em termos abertos e directos - e creio que o deve ser. Aquilo que os Srs. Deputados propõem é um retorno ao passado, invertendo a douta filosofia que em tempos foi bebida na pura fonte pelo Sr. Dr. Barbosa de Melo. VV. Exas. desejam um retorno a uma concepção constitucional que pela vossa boca se assume pouco - e creio que se deve assumir mais abertamente - como de matriz abertamente liberal burguesa, embora com uma adaptação aos tempos (suponho que isso também é táctica!).

Na verdade, na concepção liberal burguesa era suposto que VV. Exas. começassem a elencagem constitucional dos direitos, liberdades e garantias com a propriedade, o pilar, o princípio e o fim. Neste caso admitem, pelo que vi da vossa proposta, colocar a propriedade "modestamente" no fim, como o artigo 48.° Teríamos de "sofrer" antes desse preceito outros direitos, tais como o direito à vida, à integridade pessoal, à liberdade e segurança, até as questões relacionadas com a informática, o asilo político, a liberdade de criação cultural, o direito de deslocação e emigração, de reunião e manifestação, liberdade de associação, de escolha de profissão e de acesso à função pública e, finalmente, last but not least, o direito de propriedade. É uma notável "concessão" aos tempos. No entanto, e infelizmente, seria realmente uma pequena concessão, quase irrelevante para o efeito que nos preocupa.

Não se trataria, ao contrário do que o Sr. Deputado Rui Machete sinalizou, seguramente por boa vontade e por esforço negociai, apenas de "mudar o sinal ideológico em termos emblemáticos", como sugeria. As consequências jurídicas seriam bastante flagrantes, não tanto e não só no plano da repartição de competências entre órgãos de soberania, mas em relação a outras dimensões, uma vez que o PSD associa esta alteração a outras e, designadamente, esbate ou desnatura aquilo que é neste momento o estatuto específico da propriedade relativa a meios de produção. Esse regime constitucional específico que é o que flui, designadamente, dos artigos 82.°, 87.°, 97.°, 99.°, etc., seria, pelo cotejo das disposições respectivas do projecto de lei da autoria do PSD, pura e simplesmente pulverizado. O facto de se reinserir sistematicamente o direito de propriedade colocando-o como um dos direitos, liberdades e garantias logo no capítulo I da Constituição teria também, por si só, um conjunto de implicações que é inútil disfarçar, atenuar e secundarizar.

Curiosamente, porém, ouvindo a argumentação expendida pela Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves, quase se julgaria, a certa altura, que esta alteração era desnecessária. De facto, os Srs. Deputados têm de encontrar um juste milieu na vossa argumentação, porque ela, cruzada, tem um brutal efeito de mútua destruição: o Sr. Deputado Rui Machete destrói a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves e vice-versa!

A Sra. Deputada argumenta que tudo isto flui já dos quadros jurídicos aplicáveis, uma vez que sabemos que há uma coisa chamada Convenção Europeia dos Direitos do Homem e até um Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos. Perde-se, então, o sentido da própria alteração proposta pelo PSD! Se é isso tudo, então que o seja. Logo se verá se é assim... Na nossa opinião, não é nada! E é óbvio que o projecto do PSD também assenta neste pressuposto!

Por isso, talvez, o deputado Rui Machete está a agir um bocadinho ao contrário da sua colega. Abstém-se de invocar para esta lide um qualquer valor específico e relevante da Convenção Europeia dos Direitos do Homem para dirimir a talhante questão da inserção constitucional do direito de propriedade privada, porque toda a gente sabe - e, em geral, sabe-se - que essa inclusão é aquela que a lei fundamental estabelece, e não a que seja decorrente da Convenção Europeia, que neste ponto não talha ponto, nem linha. Não é absolutamente chamada para o caso. É inútil invocada face à opção legislativa claríssima decorrente do facto de a Constituição inserir o direito de propriedade privada no artigo 62.°! É este preceito que está em causa e não o artigo 47.° Daí que o PSD queira que seja o artigo 47.° a regular a matéria, e não o 62.° Quer o que não há, ou então a lógica é verdadeiramente circular e nula.

Finalmente, a última observação é a de que os argumentos decorrentes do direito comparado nesta matéria são bastante melindrosos. Sensibiliza-nos muito o argumento deduzido pelo Sr. Presidente em relação à Lei Fundamental de Bona. V. Exa. pode ser um apaixonado dessa Constituição, mas ainda há pouco discutimos extensamente um outro direito e pudemos constatar coisas que são insubscritíveis face à nossa lei fundamental. E são tão insubscritíveis como esta que agora verificamos a propósito do direito de propriedade. De facto, como todos estamos lembrados, a Lei Fundamental de Bona não tem garantia explícita do direito à greve. Foi, aliás, a jurisprudência do Tribunal Federal do Trabalho que veio estabelecendo o recorte das greves lícitas e das ilícitas. Posteriormente, conseguiu-se, penosamente, delimitar os próprios contornos do lock-out, que é admitido só para determinadas hipóteses, mas é admitido, facto que não ocorre entre nós. Podemos situar entre a Lei Fundamental de Bona e a Constituição da República Portuguesa de 1976, na redacção originária ou na decorrente da revi-

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são de 1982, mais do que as sete diferenças do clássico observador do Diário Popular: diversidades em relação ao direito à greve e no que concerne ao direito de propriedade privada. No respeitante a este último, toda a questão está em saber se o terramoto jurídico, na sua repercussão na Constituição económica e numa determinada componente da Constituição política na parte das competências da Assembleia da República, é comportável em relação à nossa posição sobre esta matéria. Sobre isto dizemos claramente que não. No entanto, fiquei verdadeiramente intrigado com o sentido da frase do Sr. Deputado Almeida Santos quando manifestou a sua disponibilidade para considerar a "posição revista" do PSD quanto ao alcance exacto deste preceito.

Terminaria, pois, esta intervenção com a seguinte pergunta: se o PSD mantiver esta proposta, considerando aquilo de que se esqueceu na altura em que a redigiu, o PS vai admiti-la? O debate provou que, se o PSD bem pensou o que pensou, não pensou de forma nenhuma na hipótese da projecção disto tudo no artigo 168.° Porém, não tendo pensado, está a tempo de pensar. E se - repito - o PSD pensar, e, pensando, chegar a uma conclusão tendente a ampliar as competências da Assembleia da República em matéria de propriedade, embora em geral esteja fechado à hipótese de as alargar (alargava-as, na opinião do Sr. Deputado José Luís Ramos, em relação à propriedade, embora não as alargue no respeitante a outras matérias); se o PSD, revendo a sua posição em torno desta matéria, alargar as competências da Assembleia da República ma non troppo (resta saber qual será esse non troppo), está o PS disponível para considerar essa mutação fulcral no coração da Constituição económica? Devo dizer que não está presente o Prof. Cavaco Silva para dizer quem tem razão, se o Sr. Deputado José Luís Ramos, se o Sr. Presidente. Mas, de qualquer das formas, somos todos livres de ajuizar e os Srs. Deputados do PSD são libérrimos de apurar ainda uma posição maioritária...

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - O Sr. Deputado, que é tão inteligente - e isso é óbvio -, poderia talvez ter pensado em que, quando formulei a pergunta nos termos em que o fiz foi para provocar exactamente a resposta que acabei de obter.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, queria tranquilizar-me apenas quanto a esse aspecto.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Se assim foi, verifico que o fez para ter a certeza. Aliás, uma certeza que já devia ter antes de me formular a pergunta.

Ora, se o PSD quer ou pretende o nosso acordo para transferir o direito de propriedade para o título II, em sede de direitos, liberdades e garantias, e se está disposto a aceitar todas as consequências desse facto, esse é um problema que merece reflexão. E, pela nossa parte, estamos dispostos a reflectir, mas não dizemos que vamos aceitar. Entretanto, o que nunca poderíamos entender nem aceitar era que o PSD pretendesse

as vantagens da qualificação do direito de propriedade como direito, liberdade e garantia e, simultaneamente, alijar os respectivos inconvenientes. Com isso, o direito de propriedade passava a ser um direito à parte.

Daí a minha questão: se a proposta é global e coerente com todas as consequências, logo uma proposta séria, poderemos reflectir sobre ela. Querer as vantagens e, simultaneamente, querer alijar as desvantagens é que não pode ser. Este é o sentido da minha pergunta, ou seja, provocar a clarificação da resposta que obtive.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, tenho de confessar que me inscrevi para responder à Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves, porque julgo que face a uma intervenção como a dela seria uma extrema indelicadeza não responder. Contudo, como ela não está presente peço que me relevem esse facto, mas creio que não é conveniente que se faça silêncio da nossa parte sobre algumas afirmações que fez em referência à minha intervenção.

O Sr. Presidente: - Sim, Sr. Deputado. Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, não intervenho propriamente para responder à Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves, mas para produzir algumas considerações em função das expendidas pelos Srs. Deputados do PSD.

Em primeiro lugar, penso que o Sr. Deputado Almeida Santos acaba de colocar a questão com total pertinência. Ou seja, inserir a norma no regime dos direitos, liberdades e garantias para logo de seguida querer excepcionar todos os efeitos previstos quanto a esse regime significaria a criação de um regime único para um só artigo em matéria de direitos, liberdades e garantias. Esta solução seria, do ponto de vista da técnica constitucional, extremamente curiosa e gostaríamos de conhecer como é que o PSD a procuraria moldar.

Mas, enquanto estamos a reflectir sobre o regime dos direitos, liberdades e garantias, tal como nos surge no artigo 18.°, não deixaremos de verificar que a simples inserção deste direito como direito fundamental acarretaria, por exemplo, a imediata inconstitucionalização de todos os demais direitos reais que implicam restrição ou compressão do direito de propriedade. O direito de usufruto, o direito de servidão e o direito de uso, como direitos que comprimem o direito de propriedade, ou estavam também previstos na Constituição para serem susceptíveis de excepcionar a plenitude do direito de propriedade, ou então ficavam inconstitucionalizados pela inserção desta norma no regime dos direitos fundamentais. É, pelo menos, a interpretação que faço e penso que dificilmente o PSD poderia sair desta contradição. Seria curioso verificarmos como esta solução nos arrastaria à inconstitucionalização de um dos capítulos fundamentais do nosso Código Civil.

Penso que a questão aqui subjacente é uma questão ideológica. Há constituições que têm uma matriz ideológica confessada e há constituições que têm uma matriz ideológica inconfessada. Já nos pusemos de

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acordo para retirar da Constituição a alusão à matriz ideológica do socialismo como princípio conformador da nossa Constituição. Mas os Srs. Deputados do PSD porventura pretendem que a Constituição fique definida por uma matriz inconfessada, mas explícita por esta fórmula, como sendo a matriz de um Estado liberal. Só que os Estados liberais faliram enquanto modelo de Estado algures na transição do século XIX para o século XX. Nós aprendemos muito com os exemplos da história: depois da Segunda Guerra Mundial, os Estados sociais de direito vieram implementar-se - e não foi por acaso -, tendo tido muito mais contenção na definição de certas categorias de direitos fundamentais ligados à propriedade. Nesse sentido, penso que todos aprenderíamos mais e melhor, e de maneira mais prudente, se, tendo cooperado - como todos estamos disponíveis para cooperar - em retirar a matriz socialista como princípio inspirador da Constituição, não viessem agora os Srs. Deputados do PSD querer afirmar-lhe uma matriz liberal, estritamente liberal, que, afinal de contas, constituiria uma alteração da própria matriz ideológica constitucional, para a qual, por razões mais que óbvias, muito dificilmente contariam com o consenso do PS.

O Sr. Presidente: - Tendo-me inscrito como parte, gostaria em primeiro lugar de dizer ao Sr. Deputado Jorge Lacão que existe já uma certa concordância nos países, nos ordenamentos jurídicos em que o direito de propriedade é inscrito na Constituição, em que se trata não da pura e simples transposição do Código Civil e do regime do Código Civil. Consequentemente, não é o problema dos direitos reais menores, do seu estatuto e das suas limitações relativamente ao direito pleno que está em causa. Quando se fala no problema do direito de propriedade como um direito fundamental e de liberdade, pretende-se justamente assegurar uma antepara face ao Estado em relação ao seu conteúdo essencial e com a função que lhe foi efectivamente atribuída no Estado liberal. Como há pouco referi, e como V. Exa. conhece, existe um livro muito interessante de Jesch, Gesetz und Verwaltung, onde esta questão vem explicitada ao longo da história do direito alemão. Mas também pode encontrar-se no direito francês, no direito italiano, no direito espanhol e no direito português. Foi sublinhada a importância das matérias atinentes à liberdade e à propriedade como defensivos do status libertatis dos cidadãos. Digamos que não é o problema do Código Civil, da regulamentação dos direitos reais no direito privado que está em causa. De resto, essa interpretação foi feita quer pela doutrina quer pela jurisprudência dos ordenamentos jurídicos onde esse direito de propriedade está consignado nos termos "liberais" - como V. Exa. referiu, no direito italiano e no direito alemão.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Dá-me licença que o interrompa, Sr. Presidente?

O Sr. Presidente: - Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - O quem me parece diferente relativamente a outros ordenamentos constitucionais aqui citados é que a Constituição portuguesa é explícita quanto à circunstância de a restrição de direitos só ser admissível nos casos constitucionalmente previstos e não noutros. É esta pequena diferença a grande diferença entre a nossa ordem constitucional e outras ordens constitucionais que aqui estão a ser referidas.

O Sr. Presidente: - Salvo o devido respeito, não é. Mas diria que esse problema não me apoquenta.

A segunda questão que colocou, essa sim, seria importante, caso fosse essa a interpretação que deve ser dada à nossa proposta.

Julgo que, pela circunstância de estarmos num Estado que já não corresponde ao Estado liberal clássico do século XIX, não devemos deitar fora algumas das coisas fundamentais que esse Estado nos legou. Designadamente, penso que V. Exa. não deitará fora os direitos e liberdades que foram direitos consignados no Estado liberal. O problema não está em qualificar como liberal esta ou aquela coisa para lhe dar um sentido pejorativo e assim a condenar e retirar da Constituição, mas sim em saber se se justifica manter ou não determinadas questões fundamentais. Porque o Estado social de direito não é um Estado que, nesse aspecto, se contraponha ao Estado liberal. Mantém muitas das suas estruturas, mas acrescenta-lhe outras. E esse é o problema que se coloca.

O Sr. Deputado José Magalhães não está presente, mas a verdade é que não posso concordar com o tipo de reacção que teve à proposta, para além de considerações que não posso obviamente subscrever no que diz respeito à ideia do contrato de adesão quanto ao nosso projecto. Porque, se, justamente com honestidade intelectual e humildade, estamos dispostos a aceitar sugestões ou correcções que possam traduzir melhor o nosso pensamento ou impedir algumas consequências não queridas das nossas propostas, tal significa, em meu entender, uma homenagem ao diálogo que aqui estamos a estabelecer, não podendo encarar-se, como o faz o Sr. Deputado José Magalhães, numa perspectiva imperialista de querermos impor as nossas ideias. É justamente o contrário. Como tal, se o Sr. Deputado José Magalhães estivesse presente, eu tiraria outras ilações nessa matéria. Assim, passo adiante. Mas, na verdade, não veja que isso se traduza em algo que menorize ou menos considere esta Comissão. Pelo contrário, o inverso é que é verdadeiro. Porém, a reacção que o Sr. Deputado José Magalhães teve, no que respeita ao significado da nossa proposta, vem, afinal de contas, realçar que a manutenção do carácter economicista estrito do direito de propriedade tem um profundíssimo alcance jurídico-político, sendo justamente por essa razão que o Sr. Deputado José Magalhães tão energicamente protestou, e não pela circunstância de se colocar uma questão de repartição de competências entre a Assembleia da República e o Governo, não por uma questão de manter o fácies sistemático na Constituição...

Pausa.

Sr. Deputado José Magalhães, V. Exa. entra na altura oportuna, na medida em que me estava a referir à sua intervenção. Não foi por isso que o Sr. Deputado protestou, porque, no fundo, vai ao cerne de um problema ideológico-político fundamental. E eu compreendo, mas apraz-me registar que a sua reacção sublinhou a importância da proposta e a razão de ser da prioridade que atribui às questões substantivas e não ao problema da repartição de competências.

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A última questão que gostaria de abordar é uma tentativa de esboçar uma resposta à pergunta apresentada pelo Sr. Deputado Almeida Santos. Não tenho dificuldades de maior -pelo contrário, é esse um dos objectivos da proposta, para além do seu significado em termos político-ideológicos, se quiser, tomando a expressão "ideologia" no seu sentido mais nobre- em aplicar o artigo 18.° no que respeita às questões da aplicação directa, desde que, evidentemente, não se tenha do direito de propriedade a ideia de que se está a transpor o artigo do Códido Civil respeitante a este direito. Se tiver essa ideia, teremos algumas dificuldades... Mas que as garantias sejam directamente aplicáveis e vinculem directamente as entidades públicas e privadas é uma aplicação que não tenho dificuldades em fazer. E, quanto à questão de as restrições só poderem fazer-se tendo em atenção direitos ou interesses constitucionalmente protegidos e de acordo com as limitações, julgo que as formulações legislativas poderão cumprir sem dificuldade este desiderato. E mesmo, Sr. Deputado Jorge Lacão, no que respeita à questão que há pouco sublinhei, em que, aí sim, me parece haver uma diferença em relação à Lei Fundamental de Bona, esta é na matéria das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias... É bom não confundir o problema das leis com o da sua aplicação concreta e, poventura, não é assim tão difícil respeitar também nesta matéria a prescrição constitucional consignada no artigo 18,°, n.° 3. Dir-me-á que a questão subsiste no que concerne ao problema da repartição de competências relativamente à Assembleia da República. E aí a única dificuldade que surge e que entendo que devemos ponderar dentro desta óptica é a de que este problema do conceito constitucional de propriedade pode, apesar de tudo, ser excessivo em termos de obrigar a Assembleia da República a ter uma reserva de competência em todos os aspectos que ainda estão cobertos pelo direito fundamental. Mas, mesmo aí, gostaria de fazer uma reflexão um pouco mais longa, porque admito que se encontre, quer por uma via interpretativa, quer pela própria formulação do artigo 62.°, uma solução que, ao contrário do que diz o Sr. Deputado José Magalhães, não diminua os poderes da Assembleia da República e os aumente na medida razoável. Mas insisto em que dar uma solução à questão que é posta na base exclusiva do problema da repartição de competências me parece ser algo que significa um inversão de prioridades.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Dá-me licença que o interrompa, Sr. Presidente?

O Sr. Presidente: - Faça favor, Sr. Deputado. Aliás, tenho estado a falar como mero membro desta Comissão. Senão, não me teria atrevido a tecer as considerações engagées que fiz.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Segundo julguei compreender, o Sr. Presidente disse que o conceito de direito de propriedade para efeitos constitucionais não deveria ser assimilado ao conceito de direito de propriedade na sua configuração técnico-jurídica e tal como está definido em sede de direito civil.

O Sr. Presidente: - No aspecto do regime... É exacto.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Se é esse o seu ponto de vista, então significará que o direito de propriedade na acepção constitucional é algo que tem um conteúdo muito mais doutrinário do que preciso, do ponto de vista jurídico.

O Sr. Presidente: - Não é o Código Civil, isso não é...

O Sr. Jorge Lacão (PS): - E, se o que eu digo tem algum alcance, para que este sentido doutrinário, que o Sr. Presidente pretende configurar à expressão "direito de propriedade" em sede de Constituição, seja coerente teria a seguinte contrapartida: se é um direito fundamental, como tal reconhecido a todos os cidadãos, obrigaria a que um dos deveres fundamentais do Estado fosse o de garantir a todos os cidadãos o acesso à propriedade em condições de igualdade. Aceitaria o Sr. Presidente a formulação desse dever do Estado como contrapartida coerente da afirmação deste pleno direito dos cidadãos no acesso à propriedade?

O Sr. Presidente: - Em primeiro lugar, V. Exa. desculpará, mas não tem nenhuma coerência necessária. De facto, pode pô-lo ou não o pôr, o que depende da concepção que tivermos sobre o carácter dirigente ou vinculante da Constituição, para usar uma terminologia posta em voga por uma conhecida dissertação. Más não tem que ser assim.

Em segundo lugar, não sei bem o que é que ganharemos com isso: não vejo nenhuma conexão directa entre uma coisa e outra. Porém, gostaria de explicitar, apenas a título de exemplo, que uma matéria que, como é óbvio, pode dizer respeito à estrutura fundamental do direito de propriedade e nada tem a ver com o Código Civil é a das autorizações para edificar. Estas autorizações são consideradas como uma matéria do direito administrativo e, todavia, num certo sentido, o direito de propriedade só pode ser concebido tendo em atenção esse aspecto. E não encontra, nessa matéria, nenhuma regulamentação no Código Civil. No entanto, trata-se de algo a que a protecção constitucional não pode ser indiferente. Cito este exemplo apenas para demonstrar que as duas realidades, a realidade constitucional e a realidade do Código Civil, são diversas. Têm certamente uma zona coincidente, mas são diversas.

Em todo o caso, não pretenderia prolongar este debate em termos que começam a ter um pendor doutrinal demasiado acentuado. Gostaria apenas de sublinhar, do ponto de vista político, aquilo que me parecia essencial dizer para justificar a proposta do PSD. Em todo o caso, evidentemente, não me recusarei a fazê-lo se VV. Exas. insistirem nesse domínio...

Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Ramos.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Pouco mais terei a acrescentar depois daquilo que o Sr. Rui Machete disse.

Mas, relativamente à intervenção do Sr. Deputado Jorge Lacão, gostaria de referir duas coisas muito simples. Em primeiro lugar, parece deduzir-se da sua intervenção que a transferência do direito de propriedade privada para o regime dos direitos, liberdades e garantias constituiria algo próprio do Estado liberal, puro liberalismo nada tendo a ver com o Estado social de direito...

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O Sr. Jorge Lacão (PS): - Eu não disse isso, mas sim que a pretensão do PSD, tal como eu a via, consistia em configurar a matriz ideológica implícita nesta Constituição como uma matriz de Estado liberal e não como uma matriz de Estado social de direito. Não deixo de reconhecer, porque é uma evidência, que ela absorve muito do legado positivo do Estado liberal. Mas essa é uma questão diferente.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Matriz ou não, o que estamos a fazer é a transferir o direito à propriedade privada para o elenco dos direitos, liberdades e garantias. Se isto é Estado liberal, se isto é liberalismo, fiquemos com o liberalismo. Mas julgo que não é isso. Aliás, o Estado social de direito não rejeita - bem pelo contrário - os direitos, liberdades e garantias. Primeira questão.

Por outro lado, a segunda questão já foi respondida pelo Sr. Presidente. Porém, gostaria apenas de acrescentar, se me permitem, que uma coisa é o direito de propriedade e os direitos reais menores contidos no Código Civil, outra é o direito de propriedade como direito fundamental. As disposições do Código Civil não são restrições, nos termos do artigo 18.°, ao direito de propriedade, uma vez que, neste caso, em termos constitucionais, quando desaparece um desses direitos menores, o direito real máximo alarga-se novamente. Consequentemente, não é propriamente, nem pode ser visto no mesmo campo, que é ou que podem ser vistas aquelas que se contêm no n.° 2 do artigo 62.° Aliás, hoje em dia discute-se até na doutrina se às servidões, não as de passagem ou outras constantes do Código Civil, mas por exemplo as servidões administrativas, também dão ou não direito a uma justa indemnização. Se formos por aí, estaremos inteiramente de acordo. Mas todo o debate em sede do direito de propriedade não pode ser visto nos mesmos parâmetros do direito de propriedade do Código Civil e muito menos - o que me parece absolutamente destituído de qualquer fundamento - dizer que, se consagrarmos o direito de propriedade como direito, liberdade e garantia por força do artigo 18.°, inconstitucionalizaríamos qualquer direito real menor, nomeadamente o usufruto, a superfície ou qualquer outro. Bem pelo contrário, as questões não estão no mesmo âmbito e não têm o mesmo denominador. Assim sendo, essa questão nunca se levantou nem se deve vir a levantar.

Quanto às situações previstas no n.° 2 do artigo 62.°, ou seja, a requisição e a expropriação por utilidade pública - há quem fale apenas em "expropriação" e não em "expropriação por utilidade pública", como acontece no projecto do PCP - levanta-se, por outro lado, a questão de saber se cabem nesta norma outras figuras para além das que estão expressamente previstas. Ainda está aqui prevista uma espécie de expropriação temporária. E o caso da requisição em que o titular fica expurgado do seu direito de propriedade, mas o qual, passado algum tempo e desde que o bem não seja necessário, pode voltar para a sua posse. Nestes casos, e só nestes, trata-se de saber se podem existir outras situações em que, dentro destes parâmetros e com este paralelismo, haja lugar ao pagamento de justa indemnização. Trata-se de um campo em que ninguém propôs qualquer alteração, mas julgo, em termos pessoais, que o debate poderia evoluir por aí.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Peço licença ao Sr. Presidente, muito rapidamente, não para discutir a questão de fundo, mas apenas para precisar o pensamento do Sr. Deputado José Luís Ramos. Entende, do seu ponto de vista, que "expropriação por utilidade pública" e "expropriação por interesse público" seriam expressões equivalentes? É esse concretamente o seu ponto de vista, ou não?

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Julgo que há muito a tentativa de fazer expressões sinónimas no português e depois dizer-se que juridicamente têm o mesmo significado. Todavia, creio que não serão expressões equivalentes por uma razão muito simples: a utilidade pública é um conceito que está bem trabalhado em termos jurídicos, enquanto com a expressão "interesse público" relativamente a esta matéria isso já não acontece. E então das duas uma: ou terá de coincidir com utilidade pública e aí não haverá qualquer diferença, ou não coincidirá, facto esse que, segundo julgo, não fará qualquer sentido. Pela minha parte, prefiro expropriação por utilidade pública.

Contudo, eu estava a insistir em discutir o regime de outras figuras, que não a requisição e a expropriação por utilidade pública, que possam também estar contidas neste n.° 2.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - O seu esclarecimento ajudou-me muito a manter e a aprofundar as minhas razões de divergência com o seu pensamento.

O Sr. Presidente: - Talvez nós pudéssemos ver rapidamente o que falta ainda dizer sobre este artigo 62.°, para depois passarmos ao artigo 62.°-A.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Eu creio que nesta matéria, assim como nas outras e sobretudo como nos casamentos, falta o "sim" para se poder consumar a produção dos próprios preliminares!

O Sr. Presidente: - Estamos só no casamento rato! Ainda não estamos no casamento consumado!

Risos.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Eu tenho grandes esperanças, Sr. Presidente, que seja mesmo um falhadíssimo casamento rato! Porque a não ser assim...

O Sr. António Vitorino (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)

O Sr. José Magalhães (PCP): - Eu sei que o Sr. Deputado António Vitorino é mais sensível a outros direitos que não o canónico, mas neste caso concreto todos entendemos bem o alcance desta questão da "não consumação", sobretudo dados alguns preliminares, e muito especialmente dada a intangibilidade de uma das expressões utilizadas pelo Sr. Deputado Rui Machete. Porque a questão está realmente na medição e filtragem finais, ao crivo de critérios políticos, de algumas das razões e argumentos aqui esgrimidos.

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Se bem percebi, a posição final do PSD, em termos de retrato de situação, é a de que quer o que quer, quanto à propriedade, admitindo um aumento razoável da correspectiva competência da Assembleia da República.

Devo dizer que isto pode motivar muitas horas de elucubração, de reflexão, de conversa, de encontros de trabalho, de cimeira, de mineira, ou do que quer que seja. A questão está em que mesmo com o "aumento razoável" - é essa a minha interrogação - seria sempre um péssimo negócio, porque ninguém sabe o que é isto do "aumento razoável", pelo que teria de ser trocado por miúdos. De qualquer das formas, mesmo que assim fosse, creio que a mutação produzida seria da mais extrema gravidade.

Aquilo que o PSD - por mais argumentos que tenha deduzido, verdadeiros ou falsos, argumentos ou não argumentos - não conseguiu evidenciar foi que não houvesse uma contra-ruptura em relação à ruptura constitucional com a concepção liberal burguesa do direito de propriedade. O PSD assumiu, com uma cosmética melhor aqui, pior ou péssima ali, uma ideia de retorno. E creio que é indisfarçável (não é uma questão "ideológica", no sentido que por vezes se dá à palavra, uma acepção pérfida), que é mesmo uma questão de definição estrutural, componente essencial da identidade da Constituição. Quer-se essa ou quer-se outra, mas tem de se assumir aquela que se quer. As opções a praticar neste ponto devem ser assumidas com toda a responsabilidade e gravidade. Neste caso, qualquer obra - no sentido preconizado pelo PSD -, quer com uma "contrapartida" de A + B, quer de A + C ou de A + F, seria sempre da maior gravidade e envolveria uma alteração do próprio perfil constitucional.

O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado José Magalhães não estava há pouco presente, mas referi que era uma questão de estrutura constitucional, e portanto estamos de acordo. E até sublinhei que a sua intervenção tinha realçado a importância da nossa proposta, o que lhe agradecemos, obviamente.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, não há nenhum agradecimento devido, porque se trata de declarar uma evidência. Se nós ambos, olhando lá para fora, constatarmos que o céu é azul e que há nuvens, nenhum terá de agradecer nada ao outro. O PSD não tem nada a agradecer ao PCP e o PCP não agradecerá ao PSD coisa nenhuma, quando se trata de evidências...

Vozes: - Ah! Disso não tenho dúvidas!... As pessoas delicadas é que agradecem!

O Sr. José Magalhães (PCP): - A delicadeza não nos exige tal, sobretudo quando está em jogo uma opção tão brutal como esta que aqui temos estado a debater. Insisto num aspecto: aquilo que o PSD pretende ao alterar a inserção sistemática é todo o conjunto de decorrências que essa alteração sistemática implica. Trata-se de uma mutação de conteúdos e de uma mutação profunda na própria arquitectura da Constituição económica. Mais: essa mutação é acompanhada de obras nos outros compartimentos do edifício, isto é, o projecto do PSD prevê explicitamente alterações fundamentais nos artigos 80.°, 81.°, 82.°, 87.°, 97.° e 99.°, isto é, nos próprios artigos que estabelecem um estatuto específico e diferenciado para a propriedade dos meios de produção, e até pretende a revisão do limite material de revisão constitucional atinente à mesma matéria. Isto é, aquilo que o PSD pretende é uma demolição sistemática dos limites que caracterizam o estatuto presente da propriedade privada! É isto, clara e abertamente! Bom, que isso seja acompanhado de algumas considerações sobre a noção de propriedade e sobre uma suposta distinção entre a noção constitucional de propriedade e a noção puramente civilística, visando-se com essa distinção minorar ou inculcar uma conceptologia diferente e supostamente menos grave, menos abrangente do que aquela que decorreria de nos situarmos no terreno puramente jus-civilístico, é coisa que não me parece convincente, nem em termos cosméticos. Sabemos que, por exemplo, não há específica credencial constitucional para certas figuras correntes do direito civil português, nestes casos até restritivos do direito de propriedade, como sejam os tais casos de perda ou de transmissão forçada. E o Sr. Deputado Jorge Lacão, que parece ter uma particular predilecção, pelo que eu vi há bocado, por certas figuras de direitos reais menores, pode reflectir sobre uma figura não menos apaixonante: refiro-me à usucapião. Qual é a cobertura constitucional a atribuir-lhe? Não se sabe! Quer dizer, é difícil encontrá-la e enquadrá-la! Digamos que a matriz constitucional teve isso pouco em atenção, que era, aliás, o terreno histórico herdado do jus-civilismo.

O Sr. Presidente: - Era o acesso à propriedade de que falava o Sr. Deputado Jorge Lacão em matéria de usucapião?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Creio que era uma das coisas que referia, em termos e argumentos cujo conteúdo material careceria de uma vista mais apurada para poder ser totalmente contestada. O que interessa aqui é o seguinte: se a mutação preconizada pelo PSD fosse incorporada e aprovada, então não só ficariam resolvidos, no sentido negativo e perverso, vários dos problemas respeitantes à propriedade (designadamente à propriedade dos meios de produção, o que não é pouco relevante), como logo seriam produzidos efeitos gerais refrangíveis e suceptíveis de projecção dos diversos ramos de direito, incluindo o direito civil. Portanto, não vale a pena tentar minimizar, com distinguos, pelo menos dúbios, o alcance de uma mutação que é realmente estrutural. Devo dizer que não me conforta excessivamente - mas o PSD também não é rigoroso, nem é preciso - que se admita como "razoável" ou, tanto quanto percebi, que se considere "digna de atenção" (excepto no sentido gnoseológico geral em que todas as coisas o merecem, mesmo as horrendas) a proposta do PSD corrigida, qualquer que venha a ser a correcção - uma vez que não sabemos verdadeiramente qual é a posição final do PSD em relação a esta matéria. Mas, a presumir que seja aquela que o Sr. Deputado Rui Machete enunciou ("47°-A + 168°-N"), essa é a equação de uma demolição de um aspecto vital da Constituição, e isto gostaria de declarar aqui.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

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O Sr. António Vitorino (PS): - Era só para responder à intervenção da Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves. Supunha que a intervenção inicial que fiz tinha sido de uma candura tocante.

Risos.

Mas, depois de a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves me ter imputado tantas perfídias argumentistas, acusando-me de subverter a essência da questão pelo apelo a normas meramente instrumentais, fiquei cheio de problemas de consciência. De tal modo que até comecei a pensar que a Sr." Deputada Maria da Assunção Esteves estava a fazer uma profissão de fé, no sentido de que o PSD estaria disponível para aceitar alargamentos da competência legislativa da Assembleia da República com o mesmo voluntarismo com que acabava de admitir que a Assembleia da Repúbica "deglutisse" de forma tão avassaladora as competências do Govêrno apenas por força desta alteração sistemática e sempre que estivesse em causa regulamentar o direito de propriedade. Ainda haveremos de ver algumas vozes do PSD, para serem fiéis a tal princípio, defenderem verdadeiramente um governo de Assembleia!...

Pondo de lado a ironia, creio que a matéria que está aqui em causa não poderá ser tratada com a rapidez que, aparentemente, a última intervenção do Sr. Presidente pressupunha. Se é verdade que a intervenção do Sr. Deputado Rui Machete foi tranquilizadora quanto à possibilidade de aplicar, em virtude da alteração sistemática, os critérios da proporcionalidade constantes do artigo 18.° em matéria de restrição de direitos e da salvaguarda das restrições apenas em função de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos - e aí foi verdadeiramente tranquilizador -, já foi, contudo, em meu entender, algo tímido em relação aos demais elementos do artigo 18.°, designadamente quando fez uma referência prudente ao facto de todas as restrições terem de ter carácter genérico e abstracto e sobretudo quanto ao facto de elas terem de salvaguardar a extensão e o alcance do conteúdo essencial do direito. E, acima de tudo, foi particularmente omissivo quanto ao facto - nos termos do artigo 18.° - de as restrições ao direito de propriedade apenas poderem verificar-se nos casos expressamente previstos na Constituição. São três graduações distintas do posicionamento do Sr. Deputado Rui Machete em relação à consequência directa e imediata da aplicação do artigo 18.° E, se é verdade que em relação ao regime jurídico foi tranquilizador, mas também tímido e até omissivo, por contraponto, pareceu-me particularmente ousado quando explicitou a ideia de que, nesse caso, feita a alteração sistemática, o direito de propriedade a que aqui se faria referência não seria, de certeza, o direito de propriedade do Código Civil. Então teríamos, nesse caso, uma nova figura, inevitavelmente a estudar, que era a dos "enfoques" jus-publicistas do direito de propriedade privada, que não seriam, portanto, esticáveis ou extensíveis a todo o conteúdo do direito de propriedade, aos múltiplos afloramentos que dele conhecemos, entre os quais no âmbito do próprio Código Civil, mas que estariam confinados a um núcleo essencial caracterizado pela natureza e relevância social e pública do direito de propriedade privada, o que é um conceito interessantíssimo e que decerto levará a escrever páginas saborosas sobre a matéria.

O Sr. Presidente: - Já estão escritas muitas delas! Não por mim.

O Sr. António Vitorino (PS): - Não posso crer que estejam escritas à luz do artigo 18.° da Constituição. Já sei que me vai citar os autores alemães de certeza absoluta!

O Sr. Presidente: - Por acaso estava a pensar em autores italianos.

O Sr. António Vitorino (PS): - Mais me ajuda, porque os alemães ainda teriam alguma razão de ser, pelo paralelismo com a Lei Fundamental de Bona, enquanto os italianos não!

O Sr. Presidente: - Na Lei Fundamental de Bona?! Não!

O Sr. António Vitorino (PS): - Tal operação traduzir-se-ia, ao fim e ao cabo, por reconhecer ao direito de propriedade um estatuto constitucional e uma eficácia jurídica que não tem paralelo no nosso ordenamento constitucional português. Não vale a pena socorrermo-nos de argumentos estrangeiros. Estaríamos a conferir ao direito de propriedade uma amplitude, uma eficácia que não tem paralelo na própria Constituição de 1933, onde era reconhecida a função social da propriedade e onde, contudo, ninguém poderá considerar que o estatuto do direito de propriedade na Constituição de 1933 beneficiava do regime de protecção nos termos do artigo 18.° da Constituição de 1976, tal como ele hoje existe. E mais significativo para caracterizar a posição do Sr. Deputado Rui Machete é quando ele diz que, se a Constituição não pudesse, ela própria, nos seus termos, salvaguardar todas as eventuais sequelas negativas da transposição sistemática e da aplicação do regime do artigo 18.°, sempre teríamos a via interpretativa para salvaguardar os devidos limites da aplicação da alteração sistemática proposta pelo PSD. Creio que é demais pedir-nos um excessivo esforço de imaginação para determinar o papel dessa via interpretativa correctora e redutora das sequelas negativas da aplicação do regime do artigo 18.° ao direito de propriedade.

E, se me permite uma nota final, penso que a posição do PSD ao longo deste debate foi evoluindo de forma muito interessante, demonstrando que é naturalmente um partido com princípios e fiel à outrance aos seus princípios. Recorda-me a posição daquele comandante de navio que tinha por princípio recusar-se a lançar os salva-vidas ao mar e por isso preferia que o navio se afundasse a quebrar esse princípio.

Risos.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Eu queria dizer o seguinte, depois de ter ouvido deslumbrado: primeiro, o PSD - nomeadamente nas pessoas dos Srs. Depu-

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tados Rui Machete, Maria da Assunção Esteves e José Luís Ramos - foi talentosíssimo na justificação das consequências de uma proposta em que manifestamente não pensou. Segundo ponto: parece muito difícil jogarmos com dois conceitos de direito de propriedade - um na Constituição, outro no Código Civil. Isso lançava a maior confusão jurídica. Terceira questão: fiquei a conhecer muito bem as vossas opiniões e pontos de vista, mas preferia, neste momento, conhecer os pontos de vista de todos os elementos do Tribunal Constitucional em cada momento concreto.

Risos.

O Sr. Presidente: - Eu penso que é um desejo muito legítimo o de conhecer todos os pensamentos concretos! É mesmo uma forma de ordinalismo concreto levada à outrance, pensaria eu. Mas devo dizer que, julgo, essa matéria já foi suficientemente debatida para esta incursão relativamente rápida que estamos a fazer nos textos constitucionais.

Na realidade, gostaria de responder ao Sr. Deputado António Vitorino - oportunamente haveremos de o fazer -, mas penso que não tem razão quando pensa que pelos vistos a Constituição é um Código Civil noutra matéria. De resto está bem acompanhado, suponho - mas lá iremos.

Risos.

O ser fiel aos princípios é algo que é muito importante e não só fiat justitia, pereat mundus.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Isso é a resposta relativa à tese do barco em afundamento!

Risos.

O Sr. Presidente: - Eu vou deixar de citar autores alemães, mesmo traduzidos!...

Iremos recomeçar amanhã às 15 horas e 30 minutos, pedindo ao Sr. Deputado José Magalhães o favor de assegurar inicialmente os trabalhos, e reuniríamos até às 18 horas.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Certamente, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, está encerrada a reunião.

Eram 19 horas e 35 minutos.

Comissão Eventual para a Revisão Constitucional

Reunião do dia 24 de Maio de 1988

Relação das presenças dos Srs. Deputados

Rui Manuel P. Chancerelle de Machete (PSD).
António Costa de Sousa Lara (PSD).
Carlos Manuel Oliveira da Silva (PSD).
José Álvaro Pacheco Pereira (PSD).
José Luís Bonifácio Ramos (PSD).
Licínio Moreira da Silva (PSD).
Luís Filipe Garrido Pais de Sousa (PSD).
Manuel da Costa Andrade (PSD).
Maria da Assunção Andrade Esteves (PSD).
Mário Jorge Belo Maciel (PSD).
Miguel Bento da Costa Macedo e Silva (PSD).
António de Almeida Santos (PS).
Alberto de Sousa Martins (PS).
António Manuel Ferreira Vitorino (PS).
João Cardona Gomes Cravinho (PS).
Jorge Lacão Costa (PS).
José Eduardo Vera Cruz Jardim (PS).
José Manuel Santos Magalhães (PCP).
José Manuel Mendes (PCP).

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