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Quinta feira 7 de Julho de 1988 II Série - Número 23-RC

DIÁRIO da Assembleia da República

V LEGISLATURA 1.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1987-1988)

II REVISÃO CONSTITUCIONAL

COMISSÃO EVENTUAL PARA A REVISÃO CONSTITUCIONAL

ACTA N.° 21

Reunião do dia 26 de Maio de 1988

SUMÁRIO

Iniciou-se a discussão do 7. ° Relatório da Subcomissão da CERC, respeitante aos artigos 63. ° a 72.° e respectivas propostas de alteração.

Durante o debate intervieram, a diverso titulo, para além do presidente, Rui Macheie, pela ordem indicada, os Srs. Deputados José Magalhães (PCP), Almeida Santos (PS), Carlos Encarnação (PSD), Sousa Lara (PSD), Vidigal Amaro (PCP), Ferraz de Abreu (PS), Luís Filipe Meneses (PSD), João Rui de Almeida (PS), Raul Castro (ID), Costa Andrade (PSD), Vera Jardim (PS), Maria da Assunção Esteves (PSD), José Luís Ramos (PSD), Luís Roque (PCP) e António Vitorino (PS).

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O Sr. Presidente: (Rui Machete): - Srs. Deputados, temos quorum, pelo que declaro aberta a reunião.

Eram 11 horas.

Srs. Deputados, vamos iniciar a análise do artigo 63.°, sob a epígrafe "Segurança social". Relativamente a este preceito, o CDS propõe a substituição nos n.ºs 2 e 3; o PCP propõe o aditamento de um n.° 5 e o PS o aditamento de dois números, o n.° 5 e o n.° 6; por fim, o PSD propõe o aditamento de dois incisos ao n.° 2 e a substituição do n.° 3 da actual redacção, passando este número (que substituirá o actual n.° 3) a n.° 4, e introduz um aditamento, que constituirá o novo n.° 3, passando o presente n.° 4, inalterado, a constituir o novo n.° 5.

Para justificar a proposta de aditamento apresentada pelo PCP, tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Ao contrário do que sucede em relação ao PSD e ao CDS, o PCP não visa alterar, a qualquer título, a lógica e a natureza do sistema de segurança social para que aponta a Constituição da República, cuja consagração constituiu em 1976 uma inovação significativa que veio coroar esforços de transformação empreendidos após o 25 de Abril. A nossa proposta visa enriquecer sem desnaturar, visa aditar sem amputar ou sem contrapartida em amputação.

Visa-se, em primeiro lugar, instituir um princípio para a definição não só da periodicidade da actualização, como também do conteúdo das actualizações das pensões e reformas mínimas. É isso que o preceito indica na sua exacta formulação:

As pensões e reformas mínimas serão actualizadas simultaneamente e em proporção pelo menos idêntica à do salário mínimo nacional aplicável ao respectivo sector, nos termos da lei.

Trata-se de consagrar constitucionalmente aquilo que, de resto, já teve na nossa experiência orçamental recente uma consagração num dos pretéritos exercícios orçamentais. Parece-nos que o princípio da actualização simultânea e da ligação ao salário mínimo nacional e aos seus mecanismos próprios de fixação constitui um critério objectivo, de cuja aplicação resultaria, sem dúvida, uma relevante garantia para os reformados e pensionistas portugueses.

Não se dá com isto resposta a todos os problemas que nesta esfera se suscitam. De facto, o regime previsto diz respeito tão-só às pensões e reformas mínimas. Existem outras soluções possíveis. Por exemplo, a solução constante do n.° 6 da proposta apresentada pelo PS tem um carácter menos específico, tem um carácter genérico, ao propor que se estabeleça que "o nível das pensões" - de todas as pensões, presume-se - "do sistema de segurança social acompanha o índice geral e oficial do aumento dos preços", ainda que não se especifique qual o critério de acompanhamento. Deduzo, porém, tratar-se de uma identidade de proporção ou, pelo menos, de alguma conexão com a proporção do crescimento dos índices inflacionários. Ao fazer-se uma opção deste tipo, caminha-se por uma vereda mais larga do que aquela que foi escolhida pelo PCP. Devo dizer que não decorre disso contraposição, que não há antítese: quando muito, haverá conjugação de ambições ou de preocupações! É possível estabelecer um estalão ou um critério, que, no entanto, deverá ser minimamente preciso para ser eficaz. Caso contrário, será apenas uma vaga indicação que se arriscaria a ser piedosa ...

Entre as fronteiras da regulamentação ou do regulamentarismo e a piedade das enunciações sem conteúdo preciso, haveremos de encontrar, Sr. Presidente, Srs. Deputados, uma solução que possa reforçar a margem de tutela constitucional dos reformados e pensionistas portugueses. É esse o voto que não queremos deixar de fazer. Não sei até que ponto é possível dissociar esta nossa preocupação (bem como aquela, que referi, do PS) da visão que se tenha de todo o sistema de segurança social. É possível assegurar este desiderato, no nosso caso, através de uma gestão adequada do sistema unificado de segurança social e é possível alcançar o objectivo fixado no n.° 6 da proposta constante do projecto n.° 3/V através de medidas igualmente de boa gestão do sistema de segurança social universalizado, unificado e descentralizado, tal qual é imaginado constitucionalmente. Será que a isso se opõe a concepção que o PSD tem do futuro do sistema? Eis a interrogação que é preciso formular.

O Sr. Presidente: - Para fazer uma justificação sumária da proposta do PS, tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Também não pretendemos introduzir nenhuma alteração profunda no sistema tal qual se encontra traçado na Constituição. Dos dois novos números aditados um deles tem uma explicação simples: entendemos que a ponte que hoje falta entre os vários sectores de actividade deve ser lançada no sentido de todo o tempo de trabalho contribuir - nos termos da lei - para o cômputo das pensões de aposentação ou reforma. Não vemos razão para que um tipo de trabalho seja, neste domínio, sobrevalorizado em relação a outro. O PSD também andou por aí. Não me lembro em que termos, mas tenho a impressão de que não navega fora destas águas.

Quanto ao ponto 6, a ideia é, evidentemente, a de uma aproximação à indexação. Não quisemos ir até à "indexação" stricto sensu para evitar a rigidez da solução. Seria a primeira vez em que na Constituição se utilizava esse termo. Daí a nossa preferência pelo termo "acompanhamento". Em todo o caso, este acompanhamento é referido às pensões em geral, e não apenas à pensão mínima, como ocorre na proposta do PCP, que, neste aspecto, é mais redutora do que a nossa.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Aproveitaria esta ocasião não só para apresentar a proposta do PSD, como também para fazer alguns brevíssimos comentários às propostas do PS e do PCP.

Penso que o PSD encarará estas propostas com algumas virtualidades, designadamente a do PS, cuja redacção é, em nosso entender, mais feliz e mais ampla do que a da proposta do PCP. De facto, a proposta do PS aproxima-se daquilo que variadíssimas vezes temos defendido quanto à tentativa de consagração de um sis-

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tema único, independentemente dos sectores de actividade em que os cidadãos prestem serviço. Neste domínio, penso que a proposta do PS poderá constituir uma boa ajuda para acabar com as desigualdades relativas dos cidadãos perante esta questão essencial.

Por outro lado, a questão, sempre discutível, sobre se se deve ou não acompanhar o nível geral dos preços ou a taxa de inflação constitui uma questão que sempre se coloca, que sempre desvaloriza todas as prestações de segurança social. Talvez seja bom que este ponto seja igualmente consagrado na Constituição, independentemente de entendermos ou não que isto não invalidará, se for caso disso, aumentos eventualmente maiores. Não poderemos porventura ficar limitados a que os aumentos sejam apenas estes, sendo certo que as nossas pensões são todas demasiadamente baixas no geral, e em particular algumas delas. Não invalidará, como é evidente, que outros aumentos maiores do que o acompanhamento do nível geral dos preços se façam, efectuando-se, portanto, um verdadeiro aumento, e não apenas uma actualização. É neste sentido que eu entenderia como boa a ideia sugerida.

Por sua vez, a proposta do PSD coloca o assunto de uma maneira um pouco diferente. O Sr. Deputado José Magalhães falou na lógica e na natureza do sistema de segurança social. E a questão principal que colocamos agora é a seguinte: sabemos que o chamado "Estado de bem-estar" entrou em crise, sabemos que provavelmente não são só os sistemas oficiais e únicos de segurança social que nos darão resposta a variadíssimas e gravíssimas situações que nos nossos dias se colocam. Neste sentido, a proposta do PSD, sem deixar de estabelecer, como refere o n.° 2, que incumbe ao Estado designadamente a garantia (étimo novo que se coloca neste n.° 2), a organização, a coordenação e a subsidiações de um sistema público de segurança social unificado e descentralizado, dá relevância no n.° 3 a dois outros aspectos. Por um lado, põe fim à mera permissividade das instituições de solidariedade social, como vem referido no n.° 3 do artigo 63.° da Constituição. Estas instituições têm desempenhado um papel relevante e penso ser importante que se consagre constitucionalmente o papel e a modificação que resulta da sua intervenção pública em termos do País. No entanto, entende-se abrir também a porta à constituição de outras instituições de solidariedade social, que podem porventura ser lucrativas e ancoradas em princípios praticados em muitos países. É o caso, designadamente, do recurso ao sistema de seguros que trazem complementos adicionais em relação aos sistemas obrigatórios, nacionais e públicos da Segurança Social e que são, diria eu, apetecíveis, apreciáveis e mais eficazes na maior parte dos casos. Esta proposta, para a qual chamaria a vossa atenção, visaria complementar o sistema oficial com um outro sistema possível, a meu ver em benefício, designadamente, dos trabalhadores.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, poderemos agora iniciar a discussão propriamente dita das propostas apresentadas.

Pela minha parte, gostaria de fazer uma pergunta ao Sr. Deputado Almeida Santos. Quanto ao n.° 5, afigura-se-nos tratar-se de uma proposta razoável, que, de resto, corresponde àquilo que também nós pensamos. Em consequência, poderá entender-se favoravelmente a nossa posição.

Quanto ao n.° 6, não estamos obviamente contra. Porém, como o Sr. Deputado Carlos Encarnação há pouco referiu, o que me parece importante, encontramo-nos numa situação em que as pensões são extremamente baixas. Compreende-se por isso perfeitamente que esse esquema de acompanhamento em relação ao índice geral e oficial do aumento dos preços seja o mínimo, sendo até desejável que se vá além disso. A dúvida que tenho é de introduzir através de um preceito constitucional uma rigidez tal que possa gerar algumas dificuldades, em termos de funcionamento orçamental, numa fase em que as pensões estejam um pouco mais elevadas. Quer dizer, infelizmente sabemos que os problemas do Estado de bem-estar têm vindo a colocar-se sobretudo em matéria de crise orçamental e fiscal, por um lado, e de défice, por outro. E temos algum receio em fazer esta relação em termos de indexação como uma relação obrigatória, muito embora pensemos ser útil e desejável que assim aconteça. A única dúvida é a de saber qual será o nosso comportamento perante uma situação de grave défice financeiro: violar a Constituição, fazer o défice ou, eventualmente, pôr em causa dois preceitos simultaneamente. Aliás, uma das razões por que, na nossa proposta, como o Sr. Deputado Carlos Encarnação referiu, insistimos na necessidade de escorar o sistema de segurança social público oficial através de apoios que possam resultar da iniciativa privada é justamente para diminuir o peso do ponto de vista orçamental, como, aliás, acontece em todos os outros países onde os problemas do Estado social ou do Estado providência se começam a fazer sentir, ou até se têm começado a fazer sentir mais cedo, em matéria orçamental. Não será introduzir uma rigidez de que nos venhamos eventualmente a ter de arrepender, sem prejuízo de, repito, estarmos substancialmente de acordo?

O Sr. Almeida Santos (PS): - Foi a pensar em coisas desse género que preferimos - repito - "acompanhar" a "indexar".

Por outro lado, também lhe devo dizer que, se o défice financeiro for de tal ordem que seja necessário cortar nas pensões sociais, de pouco valerá este acréscimo de garantias. Quando falamos em acompanhar o índice geral dos preços, temos apenas como objectivo assegurar, no limite mínimo, a manutenção das pensões. O nosso objectivo é tão modesto como isso. O orçamento não há-de ser tão escasso que, apesar de tudo, não garanta esse mínimo!

Se houver que fazer economias, que elas não exijam - senão seria o caos - que se ande para trás em termos de pensões sociais. Pretendemos garantir que não se diminua o poder de compra dos pensionistas, infelizmente modesto. Se temos medo disto, não somos capazes de nenhum arrojo. Não se pode andar para trás. Défices financeiros poderá haver sempre, mas há-de haver sempre também outro sítio para cortar que não no poder de compra dos pensionistas ...

O Sr. Presidente: - Infelizmente, as experiências de algumas economias mais evoluídas têm demonstrado que essa tem sido uma das zonas onde por vezes não se tem acompanhado o índice geral de preços.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Talvez se pudesse resolver isso comprando menos armas, por exemplo.

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O Sr. Presidente: - Estou de acordo e acompanho o Sr. Deputado Almeida Santos em que essa é uma solução obviamente correcta em termos de justiça distributiva.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Mas o termo "acompanhar" tem essa razão de ser; quer dizer, não é um termo tão imperativo como "indexar" .....E é em consideração de hipóteses raras desse género que cá está. No entanto, que o risco prevenido é tão longínquo que, se tivermos de poupar ao ponto de ser necessário cortar no poder de compra de um pensionista, então estamos mesmo falidos. Nesse caso, não se tratará de uma crise financeira, mas sim de uma falência absoluta. E aí não é a Constituição que nos salva.

O Sr. Presidente: - De facto, nessa matéria, a Constituição não nos salvará. Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, gostaria de desvalorizar substancialmente a proposta do PS e digo-o francamente. Dê facto, se bem que parecendo meritória, a referida proposta não tem mais méritos do que aqueles que o Sr. Deputado Almeida Santos enunciou. Isto é, a expressão "acompanhar" não é uma expressão com o rigor terrível que o Sr. Deputado Rui Machete lhe estava a emprestar. A título nenhum! Se se pode acusar a expressão "acompanhar" de ser qualquer coisa, não é seguramente de ser terminante e de impor ao Estado uma específica, directa e inequívoca vinculação a, por exemplo, decalcar os aumentos da taxa de inflação. É o que há de menos bom na proposta do PS.

O Sr. Presidente: - Quer dizer, V. Exa. preferia que a articulação fosse mais rígida.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, não tenho nenhuma dúvida de que uma articulação mais "rígida", para lhe chamarmos assim - por mim chamar-lhe-ia mais "precisa" -, garantiria melhor o objectivo visado.

O Sr. Presidente: - Ou mais precisa, se quiser. É a mesma coisa.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Porque, a ser adoptada esta redacção, nenhum governo que houvesse de cumprir esta norma deixaria de a cumprir, excepto se flagrante, inequívoca e grosseiramente "desacompanhasse" o índice geral e oficial do aumento dos preços, isto é, se, subindo o índice, baixasse o montante das prestações, operando-se crescimentos negativos, ou se, subindo muitíssimo o índice, o acompanhamento pela taxa de aumento das pensões fosse de tartaruga. Mas nem sequer esta equiparação ou nem sequer esta luta entre a lebre (dos preços) e a tartaruga (das pensões) fica excluída pela formulação. Consequentemente, creio que a crítica feita em termos de um exagero da redacção é francamente exagerada ela própria.

O Sr. Presidente: - Gostaria de fazer duas observações. A primeira é de que estamos naturalmente impressionados pelo baixo nível de pensões que neste momento se pratica em Portugal.

O problema poderá mudar de figura em termos macroeconómicos quando esse nível for diferente e é isso que acontece em outros países.

Em segundo lugar, estou de acordo com aquilo que o Sr. Deputado Almeida Santos propõe, mas o problema é que as questões macroeconómicas se não resolvem a golpes de decretos leis ou de revisões constitucionais, e era isso que gostava de deixar sublinhado, embora me pareça que a explicação dada é suficiente, isto é, a elasticidade que o Sr. Deputado Almeida Santos atribui, aliás espelhada no verbo "acompanhar", pareceu-me suficiente, mas a dúvida afigurou-se-me pertinente e necessitava dessa explicação para clarificar a proposta.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Compreendi, Sr. Presidente, e procurei, pela minha parte, sublinhar a parte em que ela é elástica, sem prejuízo de reconhecer a parte em que ela tem espessura e conteúdo constitucional susceptível de ser corroborado. Pela nossa parte corroboramo-la, isto é, não deixaremos de manifestar, mais do que a simpatia, o acordo que nos merece a ideia de consagrarão de um normativo deste tipo.

O problema é a sua interacção com o resto! Fazer descrições da situação da nossa segurança social pode levar a extraordinárias coincidências analíticas ou, menos do que analíticas, descritivas. Não foi impossível ver há dias o Sr. Primeiro Ministro afirmar publicamente, no encerramento do I Congresso Nacional da Segurança Social, que "anos e anos de modificações avulsas transformaram a base jurídica do sistema de segurança social português num emaranhado de normas, por vezes conflituais por vezes ultrapassadas", que "a situação dos pensionistas e reformados com pensões profundamente desvalorizadas relativamente à importância das contribuições pagas é preocupante", que "o envelhecimento progressivo da população e os atrasos nos pagamentos das contribuições não são menos preocupantes", que "as grandes ineficiências, burocratizações e desperdícios são abundantes", que "não haveria de limitar o leque dos benefícios a atribuir, mas adequar a sustentação do esforço financeiro aos recursos disponíveis do País", que, "no contexto europeu, a nossa situação é mesquinha, para não dizer mesmo vergonhosa" (coisa que um euro deputado do PSD também não deixou de corroborar na circunstância: enfim, aí qualquer um o pode fazer, na medida em que basta olhar!). Sabemos que o sistema instituído pela Constituição é um sistema que rompe com as velhas estruturas e esquemas de carácter meramente caritativista e assistencial, sabemos também que no percurso que fluiria de uma justa aplicação deste quadro constitucional se registaram estrangulamentos e sabemos também que esses estrangulamentos se agravaram ao longo do tempo e atingem hoje um ponto extremamente crítico. Do ponto de vista do utente, a situação é mais crítica, mas não sei se verdadeiramente se pode falar com um mínimo de rigor (para além daquilo que seja uma campanha inserida na tal ventania neoliberal) em "crise do Estado-providência português", porque, realmente, falarmos do Estado-providência português é motivador, no mínimo, de uma gargalhada europeia. Quem nos olhe a mais de 500 km, quer do ar, quer em terra (se isso for possível!), verá apenas não um monstruoso e tentacular Estado-providência,

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mas um sistema modesto nas suas dimensões, realmente emaranhado - temos de pensar de quem é a responsabilidade! Depois, fazendo perguntas muito directas e específicas - não perderia nada, apesar de tudo, em endereçar algumas ao Sr. Deputado Carlos Encarnação -, verá coisas como estas, que são sentidas na carne pelos cidadãos.

Primeiro, que as prestações, enquanto tais, designadamente as pensões e o abono de família, são, a todos os títulos, insuficientes. Qualquer um reconhecerá que estão abaixo do mínimo de subsistência e qualquer pessoa, fazendo contas, verá que o valor mínimo do regime geral é inferior em poder de compra em mais de 29% ao valor de 1974, isto é, foram dados passos atrás em termos materiais, em termos reais, a esse nível.

Também se sabe que o método do cálculo das pensões oferece porventura alguma vantagem para quem queira reter fluxos financeiros, mas não para os cidadãos que deveriam beneficiar deles. As pensões estão, por isso, fortemente degradadas, sobretudo em certos sectores profissionais (ferroviários, por exemplo).

Os financiamentos de modestas prestações que dependem da solidariedade do Estado, portanto da solidariedade nacional como tal, e que são da sua responsabilidade - refiro-me, entre outras coisas, aos encargos com os regimes não contributivos ou aos casos de reduzida contribuição e às despesas com a chamada "acção social" pelo regime geral - conduzem apesar dessa modéstia, a défices que entre 1973 e 1988, como os Srs. Deputados sabem, rondaram qualquer coisa como 692 milhões de contos, pura e simplesmente. Sabe-se também que as transferências do Orçamento do Estado para o orçamento da Segurança Social são insuficientes para cobrir os défices. Temos vindo, ano a ano, nas execuções do Orçamento do Estado, a discutir e a apreciar esta matéria e entre 1973 e 1988 essas transferências somaram apenas 191 milhões de contos, o que manifestamente não chega.

Sabemos também que as recomendações da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e da própria lei em vigor sobre as pensões mínimas não estão a ser cumpridas -a actual pensão mínima do regime geral, como sabem, é inferior a 50% do salário mínimo, enquanto a OIT aponta para valores correspondentes a 55 % do salário mínimo - e que o número de subempregados que recebem o subsídio de desemprego é francamente uma proporção ínfima do número de desempregados real - calcula-se que a taxa de cobertura seja inferior a 20%, neste momento, para já não falar nas situações de subemprego e outras que também deveriam ser computadas para termos uma imagem real. Sabe-se, igualmente, que os períodos de garantia são extremamente elevados, certamente para dissuadir e impedir que o apport financeiro do sistema unificado seja atempadamente prestado.

Por outro lado, ainda, se olharmos o panorama em matéria de acidentes de trabalho, desgarrar-se-á uma imagem de desproteção que é perfeitamente chocante.

Se pensarmos em que, quanto ao financiamento, há desde há anos situações críticas quanto à fuga às contribuições, quanto à sua utilização quase a título creditício, com problemas de gestão por inépcia, por desvio de verbas, por afectação de verbas segundo critérios que ninguém percebe, com marginalização das estruturas representativas dos trabalhadores do sistema de gestão e de decisão efectiva da Segurança Social, com a utilização das verbas para finalidades cujo mérito social é, pelo menos, discutível (e que tem sido efectivamente criticado e publicamente discutido), e se, finalmente, tivermos em atenção que o sistema de financiamento da Segurança Social tal qual está hoje erigido é manifestamente desajustado às modificações que se verificaram na realidade económica, designadamente às estruturas das empresas, uma vez que, como todos reconhecem, o sistema actualmente penaliza as empresas de trabalho intensivo e favorece as de capital intensivo (e, portanto, estimula o despedimento e o trabalho precário e acaba por deixar sem contribuição útil as empresas que se constituem com um número diminuto de trabalhadores, usando das vantagens da concentração do capital e da redução da mão-de-obra e da utilização capital-intensiva de factores de produção), então veremos bem como a situação criada é da mais extrema gravidade.

Chamar a isto "Estado-providência" ou dizer, como o Sr. Deputado Carlos Encarnação, que há uma "crise do Estado do bem-estar" e que, portanto, a solução é privatizar, é grave. Significaria substituir o actual sistema por um sistema de "abertura da porta", como disse, a instituições lucrativas que fornecem "complementos apetecíveis", como também disse, o que acarreta deixar os "complementos apetecíveis" para quem os puder pagar! Substituiríamos, então, o princípio constitucional -e nesse sentido registei como significativas as declarações do Sr. Deputado Almeida Santos quanto à manutenção da substância ou entidade do sistema- por um princípio de "quem quer segurança social paga-a!". Quem quer segurança social apetecível há-de poder pagá-la significa, evidentemente, uma inversão do sentido da Constituição neste ponto. Foi isso que o Sr. Deputado Carlos Encarnação não justificou e devo lamentar que, aliás, não tenha usado de toda a adequada transparência nesta matéria. Digo-o porque são conhecidos os planos, são conhecidas as declarações do Govêrno nesta matéria.

Sr. Presidente, solicitava, consoante o combinado, que interrompêssemos a reunião porque é agora que no Plenário da Assembleia da República ocorrerá, a produção de declarações de voto sobre o falecimento do meu camarada Francisco Miguel. Creio que isso não demorará mais de quinze ou vinte minutos e propunha, Sr. Presidente, que retomássemos depois os nossos trabalhos.

O Sr. Presidente: - Certamente que faremos isso, mas gostaria de saber se V. Exa. já acabou a sua intervenção.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Presidente, porque creio que seria útil especificar a observação ou a crítica de não transparência.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Estou perfeitamente de acordo.

O Sr. Presidente: - Eu também. Vamos então interromper, e recomeçaremos às 11 horas e 45 minutos. Srs. Deputados, está suspensa a reunião.

Eram 11 horas e 30 minutos.

Srs. Deputados, está reaberta a reunião.

Eram 12 horas e 20 minutos.

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Tomei boa nota do que o Sr. Deputado José Magalhães disse em relação ao Sr. Deputado Carlos Encarnação.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Adiantei, há pouco, que considerava particularmente negativo na postura do PSD neste debate o facto de ela não ser transparente. Com isso queria significar que, sendo conhecidas as propostas publicamente adiantadas pelo Govêrno e as declarações de diversos responsáveis do PSD sobre o futuro do sistema unificado de segurança social, não vale a pena minimizar o alcance das propostas do PSD em sede de revisão constitucional. Sabemos, porque o disse o Sr. Primeiro Ministro no citado I Congresso Nacional da Segurança Social, que é ideia do PSD, face à situação deste sistema anquilosado, carecendo realmente de cumprimento e potenciação, que se deveria não geri-lo melhor e cumprir a Constituição, mas demolir, nesta parte, a Constituição e caminhar para o "voluntariado social" organizado pelas instituições privadas de solidariedade social, para esquemas complementares privados, coisa que curiosamente o Sr. Deputado Carlos Encarnação docemente omitiu, para a criação de fundos e pensões. Entende o Govêrno ser adequado criar aquilo a que chamou "um centro nacional de voluntariado" e reforçar certas modalidades privadas como formas complementares de protecção social.

O grande problema, Sr. Presidente, Srs. Deputados, que me levou particularmente a fazer esta observação crítica é que em 1987, no quadro das GOPs, bastante esquecidas, o Govêrno tornou público aquilo que é um verdadeiro plano de desmantelamento do sistema de segurança social nos moldes em que está configurado na Constituição. Creio que o PSD deve, ou tem de, assumir inevitavelmente (para que haja uma discussão com tudo sobre a mesa, inteiramente transparente) aquilo que são as suas propostas conhecidas, publicamente defendidas, porque, de contrário, este debate será um debate minimizador da realidade e da dimensão das propostas e ideias do PSD. É ou não verdade que, de acordo com essas propostas publicamente anunciadas, o PSD vê a Segurança Social como uma materialização da chamada "teoria dos três patamares"? É verdade que encara o sistema de segurança social como um sistema em que haja, por um lado, prestações universais de baixíssimo nível e cobrindo modalidades restritas em função de carências (essas garantidas pelo Estado)? Num segundo patamar, o PSD imagina prestações contributivas através de um seguro social obrigatório, ao qual se teria acesso através de descontos até um certo limite do salário. Depois haveria um terceiro patamar, referenciado nas citadas GOPs, constituído pelos chamados "complementos de reforma", a que só teriam acesso aqueles que pudessem, "naturalmente", pagar. Se se caminhasse no sentido de consagrar a teoria dos três patamares estar-se-ia vibrando um golpe fatal no sistema constitucionalmente erigido! Creio que o PSD deve assumir isto, tal como seguramente tem de assumir o facto de propor publicamente a criação daquilo a que chama "um código da Segurança Social", para sistematizar, repensar e aperfeiçoar toda a disciplina jurídica do sistema, código esse enformado por princípios que não são rigorosamente os decorrentes da Constituição (enquanto está neste momento a bloquear a regulamentação da Lei n.° 28/84, Lei de Bases da Segurança Social!).

Estamos, Sr. Presidente, numa situação totalmente anómala e creio que isso deveria ser clarificado. O PSD diz ao País que está à espera da revisão constitucional para finalmente poder publicar o código da Segurança Social, reconhece os buracos do sistema, mistifica a nossa distância em relação aos países das Comunidades, o carácter mesquinho do nosso sistema, faz uma guerra sem quartel contra o welfare State num domínio em que ele pura e simplesmente não existe (não faz sentido falar de um Estado-providência pletórico e abundante nesta área!) e chega aqui à Comissão Eventual para a Revisão Constitucional numa bela manhã e não assume plenamente que é tudo isto que está em jogo. Faz-nos uma exposição melíflua, burilada, mas, mais do que isso, omissiva dos pontos de divergência fundamentais. Isso não é saudável nem ajuda a um debate frontal das questões que estão em apreço nesta Comissão.

Gostava, por isso, Sr. Presidente, de solicitar os aprofundamentos possíveis em relação às posições do PSD. Insisti em lançar um olhar que VV. Exas. seguramente consideram longo e penoso, mas que será longo e penoso sobretudo porque é longo o abandono e penosa a situação dos reformados em Portugal e, repito, é mesquinho o sistema tal qual está erigido. Faça-se o debate com plena frontalidade, pois não vale a pena estar a escamotear a abissal diferença de posições existente.

O Sr. Presidente: - Agora que retomámos os trabalhos, depois de os termos interrompido para a votação em plenário de voto de pesar pelo ex-deputado comunista Francisco Miguel, deputado nesta Casa durante longo tempo, e penso que foi uma homenagem que lhe foi prestada pela Comissão, estamos a analisar o artigo 63.° e gostaria de referir que naturalmente me agrada ver que o Sr. Deputado José Magalhães cita abundantemente os discursos do Sr. Primeiro Ministro, mas o problema é que estamos efectivamente a analisar a revisão constitucional e não estamos a fazer discursos de carácter político, e nesta matéria há duas ou três questões que não podemos perder de vista.

A primeira é que a dramática realidade em Portugal é que temos os inconvenientes do ponto de vista financeiro do welfare State sem termos chegado a beneficiar das suas vantagens. Isto é, infelizmente, um facto e, portanto, poderemos esbracejar e dizer o que quisermos, mas é uma realidade que os problemas dos défices orçamentais existem, têm de ser encarados, e que não é possível, justamente, ignorar essa situação pretendendo chegar ao welfare State para depois virmos a sofrer essa crise. Já estamos infelizmente nela, muito embora não tenhamos tido os benefícios do Estado-providência e estejamos muito longe deles, o que todos nós reconhecemos. A segunda questão que temos de referir é que as extrapolações que têm sido feitas em matéria de segurança social, das despesas com a Segurança Social e tendo em conta, em particular, o envelhecimento da população portuguesa, levam-nos a, infelizmente, ter de ponderar com muito cuidado este tipo de problemática e ser altamente irrealista e contrário aos interesses da população portuguesa que vai beneficiar das pensões sociais não podermos abrir à solidariedade privada e à iniciativa privada um campo

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de actuação e, pelo contrário, continuar, como faz a actual redacção da Constituição, que já o permite, atribuindo-lhe, em todo o caso, uma nota negativa - consente, mas não avança nesse sentido mais do que uma simples permissão, como aliás foi dito.

Não penso, portanto, que se justifique, em termos de Comissão, estarmos a debater em pormenor a situação da Segurança Social em Portugal. Esse debate terá, naturalmente, de ser feito no Plenário quando se discutirem as matérias pertinentes na questão da zona social, mas aqui o problema que se põe é, pura e simplesmente, no que diz respeito à proposta do PSD, este: estão os diversos partidos representados na Comissão abertos ou não a admitir que se acarinhem as iniciativas em matéria de instituições particulares de solidariedade social e de segurança social, sem prejuízo, obviamente, de termos um serviço nacional de segurança social que garanta aquilo que seja considerado mínimo? Isso, penso eu, beneficiará todos. É este o problema que se põe, e quem o quiser rejeitar, rejeitá-lo-á. Quem estiver aberto àquilo que penso ser, efectivamente, neste capítulo, um progresso significativo e, sobretudo, a eliminação de um preconceito ideológico, naturalmente recusá-lo-á.

Devo perguntar, aliás, se, porventura, não há um caso tão flagrante como este, do que é a abissal diferença entre aquilo que as normas preceituam e aquilo que é a realidade. Se dependesse apenas do legislador constituinte ou do legislador ordinário, quão fácil seria resolver o problema da Segurança Social em Portugal, bem como todos os outros. Seria apenas necessário consignar nas páginas do Diário da República as soluções que nos parecem mais adequadas. No entanto, verifica-se que aqui, como noutros casos, a realidade não é moldável a golpes legislativos e que há que ter em atenção as variáveis macroeconómicas, e tê-las em atenção cuidadosamente para que não se prejudiquem os objectivos fundamentais sobre os quais - penso eu - todos estaremos de acordo.

Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Presidente, como não estive presente, não sei se o Sr. Deputado José Magalhães continuou na senda das dissertações que estava a fazer, dissertações essas interessantíssimas, mas que penso - e muito bem, tal como o Sr. Presidente - não serem úteis para esta reunião e não serem adequadas a esta sede. De qualquer forma, o que queria dizer, e concordando, aliás, com tudo aquilo que o Sr. Presidente disse - o que me dispensa, como é evidente, de dizer muito mais -, seria negar a acusação de falta de transparência que o Sr. Deputado José Magalhães me fez.

O que eu quis dizer foi exactamente aquilo que disse. Quis apresentar a proposta do PSD tal como esta se corporiza, não abandonando o sistema nacional da Segurança Social e dando uma outra possibilidade e uma outra facilidade que entendemos ser adequada e que, do ponto de vista histórico, penso ser justificada. Não estou a dizer que o Estado e que o bem-estar português estão ou não em crise - e provavelmente ainda não se sentirá essa crise de uma maneira tão visível como em muitos outros países acontece -, mas penso que as nossas ideias devem avançar um pouco no tempo, ou seja, que devemos antecipar as questões, e não actuar apenas quando as grandes dificuldades se manifestam. É nesse sentido que vejo que a proposta do PSD é uma proposta prospectiva e útil e uma proposta que não desfigura e que é benéfica em sentido geral. Por isso a defendi.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sousa Lara.

O Sr. Sousa Lara (PSD): - Sr. Presidente, queria apenas deixar registado um pequeno comentário que me parece oportuno, sem querer desrespeitar a premissa posta por V. Exa., e que é o seguinte: o regime alternativo proposto pelo PSD assenta num critério fundamental, que é o da eficiência dos sistemas, na perspectiva do binómio custo benefício, e, de facto, essas instituições privadas de solidariedade social têm um ratio neste sistema do custo benefício que é incomparavelmente mais favorável, quando comparado com outros sistemas. Penso que este critério deveria ser também tecnicamente apreciado, porque, de facto, é um dos grandes fundamentos justificativos da alternativa que propomos. Assim, penso que a opção devia ser vista na óptica da economia do próprio sistema.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Presidente, em complemento do que tinha dito sobre a nossa proposta, repito que esta não visava alterar, no fundo, o actual sistema, mas queria dizer que, se víssemos concebida, em concreto, uma relação de complementaridade entre o serviço que lhe incumbe - e até realço que o PSD junta a esta incumbência a ideia de uma garantia -, desde que ficasse bem entendido tratar-se de uma relação de complementaridade e de subsidiariedade, não nos repugnaria, em princípio, que houvesse instituições particulares de solidariedade social e até de segurança social.

Aliás, já hoje a Constituição permite a solidariedade social não lucrativa e concebo mal instituições privadas de solidariedade social lucrativas, porque a ideia de solidariedade me parece afastar a ideia de lucro, o que não acontece relativamente à Segurança Social. Muitos países concebem a Segurança Social em termos de seguro e, desde que este não surja, por exemplo, como obrigatório, não me parece que deixasse de poder ter alguma utilidade.

Queria ainda dizer aqui o seguinte: no n.° 4 a redacção do PSD não é feliz. Ao referir "as instituições particulares de solidariedade social e as de segurança social de carácter não lucrativo" ...

O Sr. Presidente: - É para excluir a ideia de que os fundos de pensões são os tais de segurança social lucrativa, o que corresponde, de resto, à sua preocupação.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Mas é que a palavra "as" não é correcta. Penso que melhor se diria "bem como".

Apoiar o Estado instituições de solidariedade ou de segurança social de carácter lucrativo não faz o menor sentido. Este termo "as" não me parece correcto. Diz-se "as instituições particulares de solidariedade social e as de segurança social de carácter não lucrativo".

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Assim, parece que o Estado pode apoiar as instituições de solidariedade social de carácter lucrativo, coisa que, aliás, o Sr. Deputado Carlos Encarnação admitiu há pouco, dizendo que, em relação às duas, estas poderiam ser lucrativas. Ora, se se afastar a possibilidade do lucro relativamente às de solidariedade social, quanto a nós não haverá problemas.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Mas a ideia não é essa.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Bom, mas o que aqui se diz é: "as instituições particulares de solidariedade social e as de segurança social de carácter não lucrativo [...]". Portanto, parece que as instituições de solidariedade social poderiam ser de carácter lucrativo. Ora, se se cortar o termo "as", isso já não acontece.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Almeida Santos, parece-me que não valerá a pena estarmos a discutir. A nossa ideia é a sua, isto é, em princípio, o Estado só deve apoiar as instituições de carácter não lucrativo. Tenho, aliás, dúvidas de que existam instituições de solidariedade social de carácter lucrativo.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Parecem-me conceitos antitéticos. Solidariedade e lucro são de algum modo incompatíveis.

O Sr. Presidente: - Pessoalmente tenho dúvidas sobre a existência de instituições de solidariedade social de carácter lucrativo, mas não vamos discutir isso. A razão por que isto está escrito nestes termos é a de quem o escreveu admitir que não existiam instituições de solidariedade social de carácter lucrativo.

O Sr. Almeida Santos (PS): - De qualquer modo, em caso de acordo - o que parece já estar a acontecer -, deveria ficar bem claro que as instituições de solidariedade social de carácter lucrativo não estão incluídas e que, no caso de estas virem a existir, não seriam apoiadas pelo Estado. Em todo o caso, gostaríamos de ver isso mais bem configurado. Isto é, se a vossa ideia é a do seguro obrigatório, nós reagiríamos desforavelmente; se é a de um seguro facultativo, penso que o seguro tem, neste domínio, virtualidades que me parece não se deverem deitar fora. Esta é a nossa posição de base, sem prejuízo de reservarmos para um segundo momento, em formulação concreta, a nossa posição definitiva.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, creio que o desafio que o Sr. Deputado Sousa Lara aqui deixou é, na sua óptica, o lugar paralelo daquele que eu tinha começado por enunciar com o mesmo êxito que aquele que contemplou a proposta do Sr. Deputado Sousa Lara, isto é, nenhum! Por que discutir-se o modelo constitucional em termos de eficácia? É, quanto a mim, um dos pontos de vista possíveis e é um terreno em que a defesa - defesa, na nossa óptica - do sistema pode e deve fazer-se. É, realmente, preciso analisar as raízes da situação financeira actual, tentar dissipar as enormíssimas confusões, que, nas campanhas de tipo neoliberal contra os fantasmas que são conhecidos, normalmente são lançadas em matéria de segurança social: horrores e males da própria crise económica, malefícios estruturais que só os arautos dessas teses vislumbram, etc., etc. Era essa separação de águas que seria interessante fazer.

Pelo que me apercebi, o PSD não corresponde a esse desafio - que, pelos vistos, não é só meu -, recusando discutir, no terreno dos factos, as causas da situação actual do sistema de segurança social que quer mudar. Se o PSD não quisesse mudar o sistema, ainda admitia que a conversa fosse uma conversa ligeira e simples em que se discutiriam os retoques. Nesse caso, nós, de retoques se tratando, nem nos empenharíamos significativamente em aprofundar o que quer que fosse. Tomaríamos conhecimento, concordávamos ou não e íamos embora. Agora, o que está em causa para o PSD - não para o PS, tanto quanto me pude aperceber - é a alteração do perfil, do conteúdo, da identidade, do modelo de Segurança Social. Quer evoluir para um modelo que não tem nada a ver com o actual.

A polémica sobre os modelos possíveis para a Segurança Social é velha e perfeitamente balizável. Isto é, há modelos de diversos tipos, há sistemas os mais diversos, há mesmo sistemas de cunho puramente liberal em que as pessoas são deixadas entregues a si próprias. Nesses sistemas descontam, ganham e, consequentemente, têm seguro. Não descontam, não ganham, não têm seguro. Quer dizer, não se concebe a existência de pensão social ou de qualquer espécie de acção social no sentido que ela tem no nosso direito à Segurança Social. Se se estoura de fome, estourou! É um conceito que não tem nada a ver nem com o nosso conceito nem com o conceito constitucional.

O PSD não quer entrar por este debate, o que me leva a considerações que desembocam em algumas perguntas. É que considero isto realmente estranhíssimo. O direito da Segurança Social tem uma metalinguagem e é um direito que tale. Tem conceitos próprios, etc., mas não posso imputar ao PSD uma desinformação. Por isso, quando os Srs. Deputados do PSD vêm aqui sustentar que onde escrevem "garantia do direito à criação de instituições particulares de solidariedade social e de segurança social", não querem comportar entidades lucrativas, devo dizer que, em primeiro lugar, o querem (porque isso foi afirmado explicitamente pelo deputado que apresentou a proposta - o Sr. Deputado Carlos Encarnação), e o preceito está redigido em termos inequívocos...

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, dá-me licença que o interrompa?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Com certeza, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Desculpe, mas não vale a pena estarmos a discutir coisas que não foram ditas. O que referi a propósito do carácter não lucrativo foi quanto ao n.° 4 e não quanto ao n.° 3. É evidente que as instituições de segurança social podem ter carácter lucrativo e nós pretendemos que elas sejam plenamente admitidas - o que é claríssimo no n.° 3 -, mas o que achamos é que a essas instituições que têm carácter lucrativo obviamente não terão de ser apoiadas pelo

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Estado. Só o serão as de carácter não lucrativo, e isso é o que diz o n.° 4. Assim, não há nenhuma falta de transparência. Está dito apertis verbis, preto no branco.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, a acusação aí não era de falta de transparência, mas bastante mais grave, e eu não a formulei sem uma precisão prévia do PSD. Não foi casualmente que o fiz, porque é evidente que as palavras, nesta matéria como nas outras, devem ser medidas. Agora, o que o PSD não clarificou - e é a isso que eu dedicava alguma atenção em busca da qualificação possível - foi qual o papel que reservava às instituições particulares de segurança social. Aliás, já a expressão "particulares" é um eufemismo simpático. Visa-se, acima de tudo, as privadas, e não será bem o mutualismo apenas o que preocupa o PSD.

Qual é o papel dessas instituições no sistema? Não sou capaz de ouvir as declarações do Sr. Presidente ou as de um Sr. Deputado do PSD sem ter em conta aquilo que é o terreno real das elucubrações do PSD, publicamente assumidas e demonstradas - de resto até propostas à Assembleia da República - sobre esta matéria. Nesse sentido, tudo assume a devida forma. A repartição de fronteiras entre o público e o privado torna-se clara e nítida, as fronteiras entre os patamares 1, 2 e 3 tornam-se nítidas se lidas à luz, designadamente, do documento que citei - as GOPs de 1987. É isso que está aqui subjacente e, nesse sentido, creio que é extremamente ilusório declarar - seguramente de boa fé como fez o Sr. Deputado Almeida Santos - que, "se houvesse complementariedade, subsidariedade, etc., então tudo estaria bem".

Aquilo que a Constituição não pode estabelecer é uma rigorosa fronteira. É grave se liberaliza, isto é, se inclui qualquer cláusula que coloque a par as instituições, permitindo uma chaveta em que os termos sejam: 1.° instituições públicas; 2.° instituições privadas ou particulares, e dentro desse 2.° termo abrir nova chaveta em que os termos sejam, em primeiro lugar, as instituições privadas com fins de solidariedade social e outras de segurança social de carácter não lucrativo, havendo ainda as de segurança social de carácter lucrativo - e creio que reproduzi correctamente as chavetas do PSD ...

O Sr. Presidente: - Não reproduziu.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Então, peço correcção ao Sr. Presidente. Mas, se as chavetas do PSD fossem qualquer coisa como isto, então haveria uma reo-rientação do sistema num sentido que quase lembraria o artigo 89.° da Constituição, sem proporções entre as formações. Permitindo uma gradual redução do espaço reservado ao sistema unificado de segurança social e uma proliferação dos esquemas relativos aos patamares 2 e 3, caminharíamos, então, para uma segurança social minimalista. Compreendo que os arautos do minimalismo, que também são, por acaso, os arautos dos despedimentos, e que também são, por acaso, os arautos da desprotecção social, etc., etc., achem isso perfeito. Agora, que não se estabeleça nenhum equívoco e que beba dessa água quem quiser...

Gostaria que o PSD pudesse deixar muito claras as suas ideias sobre as fronteiras, porque encarei com bastante preocupação a declaração do Sr. Deputado Almeida Santos. Das duas uma: ou se instituem os limites dessa subsidiariedade ou, se se liberaliza o sistema - sobretudo se houver tantas confusões como aquelas que o Sr. Deputado Carlos Encarnação não deixou de ditar para a acta ...

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, tentemos ser o mais claros e simples possível, embora a matéria de construção civil e patamares não seja propriamente o meu forte.

A nossa ideia é esta: pretendemos que a Constituição, em matéria de segurança social, como, aliás, a seguir, em matéria de saúde - e já lá iremos -, não tenha este modelo de que o Estado seja abrangente e prevalecente e em que tudo aquilo que resulte da iniciativa particular é encarado como algo de tolerado, mas mal visto e não aproveitando as virtualidades da iniciativa privada. A nossa ideia é outra, e é esta: partindo do reconhecimento de que se torna necessário garantir, organizar e ter a funcionar um sistema organizado de segurança social, mas sabendo - e a experiência dos países que se integram na mesma orientação pluralista que temos, do ponto de vista político, atestam-no claramente - que o Estado tem limitações fortes em termos de segurança social, não vale a pena termos a ilusão de pensar, excepto se formos para um esquema colectivista, que vamos ter um serviço de segurança social maximalista, no sentido de as pensões atingirem níveis extremamente elevados. Terão de atingir um mínimo aceitável, compatível com a justiça social, e, por isso mesmo, não pretendemos introduzir, nesse aspecto, nenhuma modificação. Pelo contrário, pretendemos que as pensões tenham melhorias sucessivas, à medida que a riqueza vá aumentando - e daí o nosso n.° 2 ter ligeiríssimas alterações em relação ao n.° 2 da versão actual da Constituição -, e, mas ainda, aceitamos inculcar claramente a ideia de garantia. Por isso é que lá está o verbo.

Mas, por outro lado, entendemos que, neste campo, será absolutamente absurdo e será seguir uma ideologia cega e até abstrusa e estúpida fechar os olhos à realidade e negar as contribuições que possam resultar das iniciativas privadas, quer em matéria de solidariedade social, quer no que diz respeito à Segurança Social. Na Segurança Social sabemos - e, de resto, em Portugal já começaram a aparecer - existirem instituições de carácter não lucrativo e de carácter lucrativo, aliás como existem noutros países. Por exemplo, é conhecido o papel que os fundos de pensões têm assumido. E a nossa ideia é de que melhorará, certamente, as condições de uma parte substancial dos beneficiários da Segurança Social - se nós aduzirmos àquilo que é o serviço público, digamos assim, e que o Estado tem de assegurar a todos os cidadãos, até independentemente dos descontos que tenham feito para a Segurança Social - se pudermos acrescentar algo resultante da iniciativa privada e que o Estado - se essas instituições forem desinteressadas - deve até acarinhar. Eu não estou a pensar que esse carinho resulte de transferências orçamentais, mas estou a pensar que pode, por exemplo, resultar, isso sim, de uma política fiscal adequada, e pode haver outros aspectos em que o Estado venha a manifestar o seu favor, merecimento que atribui a essas instituições. Isto é para nós extremamente claro: não significa a destruição do sistema de segurança social; significa o repúdio da ideia de que nesta

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matéria os esquemas conservadores de um certo tipo de exclusivismo da segurança social estatal - que infelizmente se tem vindo a verificar, dada a evolução demográfica em Portugal e a evolução em termos orçamentais, dentro das perspectivas macroeconómicas que têm vindo a ser feitas - vai significar, mesmo para garantia desse mínimo aceitável, um esforço financeiro enorme - e há estudos que têm vindo a comprovar que, se não houver melhorias significativas da eficácia do sistema, ele pode vir a revelar-se até incomportável, o que é uma preocupação para todos nós. Pois, ao lado desse sistema, nós pretendemos que seja claramente aceite, reconhecido e até encorajado um outro esquema mais maleável resultante da iniciativa privada. É tão-só isto.

Depois, não pretendemos que na Constituição se consigne o programa do Govêrno ou as grandes opções do Plano de uma determinada maioria, que, pela natureza democrática, nós admitimos que seja contingente: que resulte de eleições, mas pode em eleições seguintes ser substituída. Portanto, pretender que nós escolhamos ou queiramos, de uma maneira maximalista, traduzir na Constituição aquilo que é o programa do PSD em termos de governo, ou as grandes opções que foram aprovadas pela maioria da assembleia, seria desconhecer os níveis do que é a Constituição e a revisão da Constituição e aquilo que é a lei ordinária e a actividade normal dos governos. Queremos deixar aberto o terreno para que em cada legislatura os governos possam ir traduzindo - justamente porque obtiveram o apoio popular traduzido no voto das eleições - aquilo que for mais conveniente. O que não queremos é que haja uma introdução de peias constitucionais resultantes de uma visão estereotipada, estreita e ideológica, como é aquela que - ainda hoje, apesar de tudo - transparece no artigo 63.°, muito embora se tolere e se admita - mas sempre com um olhar extremamente desconfiado, como, aliás, acontece praticamente em todos os artigos onde se refere a iniciativa privada - porque o modelo que a Constituição inicialmente teve era um modelo em que se pretendia uma situação de transitoriedade a caminho do socialismo. Tudo aquilo que era colectivismo e Estado era positivo. Tudo aquilo que o não fosse era suspeitosamente encarado. Isto é muito claro. Penso que não vale a pena estarmos a discutir em termos de saber o que é que foi o programa do Govêrno e o que é que foram as grandes opções do Plano, porque isso é uma matéria que terá lugar na sua altura e local próprios. É uma matéria que não tem a ver com a revisão constitucional, a não ser no sentido do que nós pretendemos claramente - como acontece em todas as Constituições dos países democráticos pluralistas - que seja possível aos governos terem um jus variandi em função dos seus programas, tal como foram sancionados pelo eleitorado. É isto.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: As coisas estão efectivamente um pouco mais claras. Acho notável que se pretenda qualificar a démarche que o PSD pretende operar em relação ao artigo 63.° como expressão de uma cruzada contra a "cegueira", a "abstrusidade" e a "estupidez"; contra as "visões estereotipadas", "estreitas" e "ideológicas". Tudo isso seria susceptível de devolução directa -se fosse caso disso, naturalmente -,

zurzindo-se impiedosamente, como merecem, as propostas de tipo neoliberaloide que são formuladas pela bancada do PSD e, pior do que isso, executadas já no terreno pelo próprio Governo. E é disso que estamos aqui a tratar! Não pratiquemos ou, pelo menos, não obriguemos os outros a praticar lições de ingenuidade! A questão é que em nome de um modelo que realmente não é o constitucional têm vindo a ser praticadas e adoptadas já medidas concretas que vão no sentido de uma alteração no terreno do papel do sistema de segurança social com a raiz e com o sentido que tem e o seu gradual confinamento a outras finalidades. O que se quer agora em sede de revisão constitucional é fazer a consagração, no topo e a nível constitucional, desse tipo de impulsos. Por isso, tudo o que aqui estivemos a dizer tem estreitamente a ver com as GOPs, tem estreitamente a ver com o penúltimo, o último e o próximo discurso do Primeiro Ministro e tem estreitamente a ver com as negociações entre os diversos partidos que neste momento a estão fazendo em matéria de revisão constitucional. E por isso é que prestámos a esta matéria a atenção preocupada de que procurei dar conta.

Que se diga que a Constituição não deve ser um programa do Governo, é uma observação que não necessitará de grande demonstração. A questão do jus variandi em Portugal coloca-se em termos de garantir a possibilidade de alternativa, por forma que não tenhamos uma situação de invariabilidade forçada decorrente das promoções "mexicanizantes" do PSD. Em matéria de "variações", são mais estas que se colocam do que o jus variandi em termos de programas de governo. O PSD deve estar a pensar no programa do próximo governo e no jus variandi em relação ao seu conteúdo, mas esse problema não é um problema relevante em termos nacionais, creio eu. A questão é que a Constituição estabelece um determinado enquadramento e determinadas balizas e o PSD tem tentado rompê-las. Eu creio que são factos objectivos que, por exemplo, os passos dados em matéria de fundos de pensões, que aqui foram citados como nec plus ultra, já acarretaram neste momento alterações na forma de funcionamento do sistema unificado de segurança social, por exemplo, traduzida, desde logo, no aumento do período de contribuição para adquirir o direito às prestações. É um sinal de que as pessoas são empurradas para esquemas privatísticos se querem ter segurança social a tempo. Se não querem ter segurança social a tempo, vão para a bicha e assumem os inconvenientes do malfadado funcionamento do "Estado-providência" a que temos direito, que é, ele próprio - pela forma como é gerido, e não é por acaso -, um desincentivo e um estímulo, de resto, a que se morra primeiro, antes que se obtenha a pensão. Portanto, os passos dados não podem deixar de ser tomados em consideração neste debate.

Por outro lado, a mera exaltação dos esquemas privatísticos, como seja o dos fundos de pensões, deve ser acompanhada, quanto a nós, de uma boa prevenção em relação ao seu sentido redutor do espaço dos esquemas públicos, naturalmente; mas, mais ainda do que redutor do espaço, extremamente propiciador de situações que os arautos desses esquemas nunca exaltam antes, embora reconheçam depois. Lembro o que aconteceu em relação aos esquemas privatísticos aplicados em certas empresas que foram extintas por diversos governos, cujos trabalhadores, neste momento, circulam

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por aí e dirigem petições, designadamente à 1.ª Comissão desta Casa, no sentido de verem reconhecidos os complementos de reforma a que tinham direito segundo esses esquemas e a que actualmente não têm direito, porque ninguém os assegura, pura e simplesmente. Portanto, caminhar para esse tipo de situações, diminuindo a responsabilidade pública, deixa as pessoas entregues a si próprias e, designadamente, entregues ao futuro das empresas que financiem esse tipo de esquemas.

Não vou agora aqui abrir polémica ou fazer aqui, digamos, a diatribe antifundos de A a Z. Mas, se trouxe esta reflexão, foi apenas para ilustrar que os benefícios de alguns dos esquemas exaltados pelo PSD sê-lo-ão apenas na estreita medida em que vibram um golpe num determinado esquema que é "garantístico" e que é extremamente importante para os trabalhadores, designadamente no sentido da sua manutenção quanto aos objectivos essenciais, sendo certo que pode ser melhorado e deve ser melhor gerido.

Um outro tópico de reflexão, que creio que não pode deixar de ser feito nesta sede, é o de saber para onde é que caminhamos em termos europeus. O Sr. Deputado Carlos Encarnação fez apelo à necessidade de avançar no tempo, de ter em conta a Europa ...

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Eu não falei na Europa!

O Sr. José Magalhães (PCP): - O Sr. Deputado não falou na Europa?! Peço desculpa, é que eu registei aqui uma alusão à Europa, mas deve ser nota minha. "Não nos desliguemos do tempo", terá sido, então, o que V. Exa. disse. Bom, suponho que terá incorrido, então, no "pecado" de esquecer o espaço comunitário! Em qualquer caso, creio que realmente toda a reflexão que se faça sobre a abissal distância que há entre o sistema português e os níveis, as características e as dimensões de sistemas vigentes em diversos países das Comunidades é positiva. Porquê aí os Srs. Deputados não encontram nenhuma possibilidade de harmonização pela base, pelo mínimo; aí haveríamos de extrair, ao menos para haver alguma coerência, a necessidade de construir a coesão social, que não se constrói a golpes de miseração. Ocorre, porém, o contrário! E este aspecto que eu acho notável que seja completamente omitido no discurso do PSD numa matéria deste tipo. Faz o discurso mais árido, mais abstracto, e quer, por último - para efeitos negociais, quiçá -, desligá-lo completamente de duas coisas: primeiro, os rumos dos sistemas nas Comunidades; segundo, a política concreta do Governo. Meus Senhores, é absolutamente impossível! Pela nossa parte, não poderemos coonestar essa operação de maquilhagem do sentido profundo e bastante grave da démarche que o PSD pretende nesta matéria.

O Sr. Presidente: - Ainda continuando a falar como parte, eu já sabia de antemão que nós não poderíamos contar com o PCP nesta matéria.

De resto, há um ponto que vale a pena sublinhar, e que é este: é que a inovação e o progresso que nos façam aproximar em termos económicos e sociais dos restantes países da CEE têm de fazer-se justamente aproveitando a capacidade criadora, a inovação e deixando o espartilho colectivista em que ainda hoje nos encontramos. Essa é que tem de ser a estratégia, porque, senão, vamos ter provavelmente montanhas de direitos extremamente ricos de conteúdo, mas que não passam pura e simplesmente do papel, que é aquilo que acontece já hoje. Esse é, infelizmente, o erro em que caíram os colectivistas portugueses no auge do entusiasmo revolucionário.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Conhecemos é, em matéria de segurança social, e infelizmente, o "espartilho cavaquista"! Mas isso é outra conversa.

O Sr. Presidente: - Há outros! Há outros! Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Deputado José Magalhães, muito prezo que não caia na tentação de argumentar a partir daquilo que não conhece, nomeadamente as posições do meu partido nas conversações sobre revisão constitucional que tem mantido com o PSD.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, faço questão de dizer que aludi a uma apreensão genérica, dada a posição do PSD.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Desculpe, mas o Sr. Deputado José Magalhães tira conclusões e faz referências frequentes às negociações, não sabendo o que nelas se passa. Não nos queira retirar o direito de negociar convosco; fá-lo-emos na primeira oportunidade.

Em contrapartida, também não lhe roubo o direito de acreditar em que é possível melhorar o sistema da Segurança Social e que o que está na Constituição não é imperfeccionável. Vamos tentar torná-lo mais perfeito.

Por outro lado, não nos recuse também o direito de acreditar em que há alguma contribuição da iniciativa privada neste domínio, desde que balizada e com as devidas seguranças. Reconheça-nos esse direito, por favor.

O Sr. Presidente: - Suponho que nesta matéria já todos os partidos aqui presentes tiveram a oportunidade de expender as suas posições.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Eu queria só chamar a atenção, se me permitisse, para o facto de que há uma proposta do meu camarada Sottomayor Cárdia que contém um contributo que deverá ser tomado em conta. O Sr. Deputado Sottomayor Cárdia propõe uma redacção que, na devida altura, gostaria que fosse tida em conta. Ele não está presente para a discutirmos, mas, no fundo, não anda muito longe da proposta do PCP. Penso que é uma outra forma de dizer a mesma coisa.

O Sr. Presidente: - Sê-lo-á, com certeza. De resto, uma das razões por que ordenei a distribuição foi justamente para que fosse tomada em consideração.

Nós vamos agora interromper os trabalhos. Recomeçaríamos com o artigo 64.° ("Saúde"), às 15 horas e 30 minutos.

Srs. Deputados, está suspensa a reunião.

Eram 13 horas e 5 minutos.

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Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Secretário José Magalhães.

O Sr. Presidente (José Magalhães): - Srs. Deputados, está reaberta a reunião.

Eram 15 horas e 55 minutos.

O Sr. Deputado Nogueira de Brito não nos deu qualquer informação sobre as intenções e possibilidades do CDS em participar no debate. Outro tanto aconteceu em relação à reunião de ontem.

Srs. Deputados, apreciámos da parte da manhã as propostas de alteração respeitantes ao sistema unificado de segurança social. Foi então possível proceder à apresentação e discussão de uma proposta de alteração, subscrita pelo Sr. Deputado Sottomayor Cárdia, sobre os critérios de fixação do aumento dos valores das pensões de reforma. Essa proposta de alteração é do seguinte teor:

O aumento do valor das pensões de reforma não será inferior ao que resultar da indexação ao valor do aumento das remunerações dos activos da respectiva categoria profissional.

Algum dos Srs. Deputados deseja ainda usar da palavra sobre as matérias do artigo 63.°?

Pausa.

Visto não haver manifestação de vontade nesse sentido, passaríamos à apreciação das propostas pendentes em relação ao artigo 64.° da Constituição. Há propostas apresentadas pelo CDS, PCP, PS, PSD, PEV e PRD.

O CDS apresenta propostas de substituição para os n.ºs 2 e 3 e pretende suprimir o n.° 4 do actual artigo 64.° Os n.ºs 2 e 3 do artigo 64.° do projecto do citado partido têm a seguinte redacção:

2 - Cumpre ao Estado organizar um serviço público de saúde que garanta o acesso dos cidadãos aos cuidados de medicina preventiva, curativa e de reabilitação.

3 - É assegurada a existência de estruturas privadas de saúde, cabendo ao Estado disciplinar e fiscalizar a respectiva actividade.

Por sua vez, o PCP propõe aditar ao n.° 4 do artigo 63.°, a seguir ao termo "participada", a seguinte redacção: "regulando a lei as formas de intervenção dos trabalhadores da saúde e das populações nos diversos níveis da sua planificação e controle".

O PS propõe a substituição da alínea c) do n.° 3 pela seguinte redacção:

Orientar a sua acção para a socialização dos custos dos cuidados médicos e medicamentosos.

Quanto ao PSD, verifica-se que propõe a substituição e desdobramento do actual n.° 2 em dois números, o n.° 2 e o n.° 3. O actual n.° 3 seria substituído por um n.° 4, suprimindo-se o presente n.° 4. Os n.ºs 2 e 3 passariam a ter a seguinte redacção:

2 - O Estado promoverá a criação de um sistema nacional de saúde, a que todos os cidadãos possam ter acesso, nos termos definidos por lei.

3 - Incumbe ao Estado criar as condições económicas, sociais e culturais que garantam a protecção da infância, da juventude e da velhice, a melhoria sistemática das condições de vida e de trabalho, bem como o desenvolvimento da cultura física e desportiva, escolar e popular e ainda da educação sanitária do povo.

O actual n.° 3 passaria a n.° 4, com as seguintes propostas de substituição: no corpo do número é usada a expressão "cabe prioritariamente ao Estado" em vez na actual "incumbe prioritariamente ao Estado"; na alínea a), em vez da actual expressão "independentemente da sua condição económica", usar-se-ia "independentemente das suas condições económicas"; a alínea b) não teria alterações; a alínea c) seria substituída por uma nova redacção; a alínea d) seria suprimida, e a actual alínea e) passaria a ser a alínea d). O texto proposto seria do seguinte teor integral:

4 - Para assegurar o direito à protecção da saúde, cabe prioritariamente ao Estado:

a) Garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente das suas condições económicas, aos cuidados de medicina preventiva, curativa e de reabilitação;

b) Garantir uma racional e efectiva cobertura médica e hospitalar de todo o País;

c) Incentivar as iniciativas em matéria de saúde das instituições particulares de solidariedade social, bem como outras formas autónomas de medicina que contribuam para a realização do direito à saúde, definindo as regras de actuação de umas e outras e fiscalizando a sua acção;

d) Disciplinar e controlar a produção, a comercialização e o uso dos produtos químicos, biológicos e farmacêuticos e outros meios de tratamento e diagnóstico.

No respeitante ao PEV, devo dizer que propõe o aditamento de uma nova alínea - a) - ao n.°3 do artigo 64.°, com a seguinte redacção:

Promover acções de informação e sensibilização, com vista à diminuição do consumo do tabaco, álcool e drogas.

Propõe ainda o aditamento de um novo n.° 5 ao referido preceito do seguinte teor:

O Estado assegura a preservação do património das medicinas populares.

Finalmente, no que concerne ao PRD, é proposta a supressão na actual alínea c) do n.° 3 e, no mesmo n.° 3, da actual alínea e), o aditamento seguinte:

[... ] bem como a comercialização e o uso de produtos alimentares ou de outra natureza, tendo em vista o cumprimento das regras de salubridade e higiene.

A referida alínea e) do n.° 3 ficaria, então, com a seguinte redacção:

Disciplinar e controlar a produção, a comercialização e o uso de produtos químicos, biológicos ou farmacêuticos e outros meios de tratamento e

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diagnóstico, bem como a comercialização e o uso de produtos alimentares ou de outra natureza, tendo em vista o cumprimento das regras de salubridade e higiene.

Srs. Deputados, é este o conjunto das propostas que foram apresentadas pelos partidos e forças políticas para efeitos de revisão constitucional. Como é uso, daria agora a palavra aos Srs. Deputados dos diversos partidos e forças políticas para fazerem a apresentação, nos termos que entenderem, das propostas que estão em debate.

Seguindo igualmente a ordem de apresentação dos projectos de lei de revisão constitucional, dou a palavra ao Sr. Deputado Vidigal Amaro, para apresentação das propostas de aditamento e de substituição, respeitantes ao artigo 64.°, da autoria do PCP.

Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. Vidigal Amaro (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: As nossas propostas são bastante simples e estão de acordo com a legislação já existente e com as normas internacionais.

Segundo as últimas normas emanadas da Organização Mundial de Saúde (OMS), que foram subscritas, inclusivamente, pelo Governo Português, fazem parte da gestão para planeamento, avaliação e execução dos serviços os utentes e os trabalhadores da saúde, a fim de participarem nessas formas de gestão. É isso que pretendemos constitucionalizar e que hoje já faz parte tanto da Lei de Gestão Hospitalar como das normas de outros serviços. Lembremo-nos, por exemplo, dos conselhos de saúde ou centros de saúde das autarquias.

Foi simplesmente com esse sentido que pretendemos constitucionalizar uma norma que actualmente já faz parte das leis portuguesas.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Ferraz de Abreu.

O Sr. Ferraz de Abreu (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: O nosso partido mantém quase integralmente a redacção actual do artigo 64.°, mas na alínea c) do n.° 3 introduz uma alteração que, no fundo, trata de esclarecer como é que interpretamos tal alínea. Pretende-se que o Estado oriente "a sua acção para a socialização dos custos dos cuidados médicos e medicamentosos". É, pois, a acção do Serviço Nacional de Saúde (SNS) a que nos queremos referir. Trata-se, antes de mais, de esclarecer melhor a redacção actual da referida alínea, que diz que incumbe prioritariamente ao Estado "orientar a sua acção para a socialização da medicina e dos sectores médico-medicamentosos". Queremos com esta alteração exprimir a ideia de que não se trata de socializar as farmácias, os laboratórios, etc., mas sim de caminharmos para um estatuto social do custo do medicamento, dos actos médicos, de modo a sintonizar esta norma com o n.° 2 do artigo 64.°, que refere, a certa altura, que o Serviço Nacional de Saúde é universal, geral e gratuito.

Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Vice-Presidente Almeida Santos.

O Sr. Presidente (Almeida Santos) - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Filipe Meneses.

O Sr. Luís Filipe Meneses (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: As propostas apresentadas pelo PSD relativas a este preceito visam globalmente aliviar a Constituição do carácter programático excessivo que, na nossa opinião, existe em muito do seu articulado. No caso específico do artigo 64. °, pretendemos criar as condições para um desenvolvimento de um sistema de saúde que, visando, no essencial, os princípios gerais consignados na Constituição de 1976, na versão actual, dotem o sistema de maior eficácia e de um pormenor que nos parece particularmente importante nesta área, ou seja, de o tornar solvente do ponto de vista financeiro.

Assim, propomos que o n.° 2 seja desdobrado em dois novos números, que no nosso projecto são os n.ºs 2 e 3. Essencialmente, as alterações que preconizamos passam pela substituição da expressão "serviço nacional de saúde" por "sistema nacional de saúde" e pela eliminação de determinadas expressões, em particular o termo "gratuito". E passo a explicar a razão de tal procedimento. A substituição da terminologia "serviço nacional de saúde" por "sistema nacional de saúde" decorre do facto de a primeira ter um significado preciso ligado ao tipo de serviço de saúde de que o Estado é quase o único financiador e prestador de cuidados de saúde, como, aliás, advém da expressão original ligada ao serviço nacional inglês, designado por Beverage. E digo isto não por razões estritamente de ordem ideológica, mas por acreditarmos que existem áreas em que a iniciativa privada e outras formas de organização e associação dos cidadãos, como as instituições privadas de solidariedade social, podem ser mais eficazes na prestação dos cuidados de saúde. Ressalvo, particularmente, as áreas de ambulatório, onde pensamos que a iniciativa privada pode obter melhores resultados, até do ponto de vista de humanização do próprio sistema.

Quanto à eliminação dos termos "universal", "geral" e "gratuito", relativos ao Serviço Nacional de Saúde, na redacção inicial do n.° 2, a nossa opinião é a de que a universalidade e a generalidade ressaltam do texto constitucional no n.° 4 do artigo 64.° Ao deixar cair o termo "gratuito", temos obviamente um objectivo. Não é segredo para ninguém, particularmente para as pessoas com mais conhecimento da problemática das políticas de saúde, que nos países ocidentais têm existido nos últimos anos crises difíceis de ultrapassar no respeitante ao financiamento das políticas de saúde, por razões diversas, das quais posso apontar algumas: as alterações dos padrões de saúde e doença; o aparecimento de novas situações multicausais, como o alcoolismo, as toxico dependências e as doenças degenerativas ligadas ao envelhecimento das populações, etc. Todas estas situações têm soluções muito dispendiosas, como seja o desenvolvimento tecnológico acelerado, com o aparecimento de ténicas auxiliares de diagnóstico e terapêutica que são também extremamente caras e, mais grave ainda, cujos resultados não se reflectem em poupanças a jusante da utilização dessas novas técnicas. De facto, estamos numa época de educação para a saúde que tem aspectos globalmente positivos, mas que se tem revestido de efeitos perversos, porque provocam um sobreconsumismo medicamentoso e do acto médico. Estas são algumas das razões que têm contribuído para que os sistemas de saúde tenham crescentes dificuldades de financiamento.

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Numa perspectiva social-democrata e pragmática, pensamos que se devem criar todas as condições para que não sejam os estratos da população mais carenciados, e com mais dificuldades enconómicas, a ser sacrificados. Julgamos, pois, que temos de criar condições, ainda que transitórias - e estamos esperançados que revistam apenas um carácter transitório -, para que, num futuro mais ou menos próximo, possamos assegurar a gratuitidade e a qualidade a todos os cidadãos. E entendemos ainda que se pode pedir um contributo adicional a determinados sectores da população no sentido de o Estado poder assegurar a gratuitidade dos cuidados médicos a esses estratos da população mais carenciados. Daí que, ao deixarmos cair essa expressão, abrimos as portas ao aparecimento de outras formas de financiamento do sistema de saúde, como os seguros de doença e os subsistemas organizados de formas diversas, das quais existem exemplos positivos em Portugal. Dessa forma criar-se-ão condições objectivas para a solvência de outros modos de organização da medicina que, como já disse, em determinadas áreas podem ser mais eficazes na prestação de cuidados de saúde. Não basta dizer que defendemos que a iniciativa privada ou as instituições de solidariedade social podem desempenhar um papel complementar ou associado aos serviços públicos na prestação de cuidados e depois não criarmos as condições objectivas para a solvência do que preconizamos.

No respeitante ao n.° 3, em que substituímos a alínea c), isso decorre em parte da argumentação que já formulei, ou seja, de retirar da Constituição aquilo que pensamos ser uma carga ideológica excessiva, mas também da própria acção governativa dos diferentes governos desde 1976, que não deram qualquer passo no sentido de levar à prática esta norma constitucional. E passaram pelo Executivo diversas forças políticas, inclusivamente, por várias vezes, o PS, que teve responsabilidade importante na forma como este artigo ficou redigido e na própria Lei de Bases do Serviço Nacional de Saúde, que dele decorreu. Na nossa opinião, daí decorre que tal norma deve ser retirada do actual texto constitucional.

As restantes alterações derivam naturalmente das modificações por nós introduzidas no n.° 2 deste artigo, sendo, portanto, corolário dessas propostas iniciais.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Luís Filipe Meneses, vou formular-lhe três perguntas.

Hoje, o Serviço Nacional de Saúde está ligado ao direito à saúde. No projecto de lei da autoria do PSD ele aparece desligado da concretização desse direito, pelo que lhe perguntaria se isso é intencional ou se é por acaso que tal acontece.

V. Exa. falou também nas crescentes dificuldades de financiamento. Pergunto-lhe, então, se está consciente do que tem custado a medicina convencionada e se tem a certeza de que esta é mais económica para o Estado.

Por último: quando suprimiram a referência à generalidade do "sistema" de saúde, que é como chamam ao Serviço Nacional de Saúde, significa isso que ele poderia ser apenas regional, dado que não vejo outro conteúdo para a palavra "geral" senão o sentido de que ele tem de beneficiar todo o País? Já quando omitem a característica de universalidade, a pergunta é se o sistema de saúde pode também ser só para alguns, e não para todos. E, embora se contenha na alínea a) do n.° 3 a expressão "garantir o acesso independentemente das suas condições económicas", entende V. Exa. que esta formulação chega para impedir que possa não se ter acesso a uma coisa que não se pode pagar por falta de meios? Tem a palavra o Sr. Deputado Ferraz de Abreu.

O Sr. Ferraz de Abreu (PS): - Sr. Deputado Luís Filipe Meneses, começaria talvez por comentar a última afirmação produzida por V. Exa., ou seja, a de não ter havido nenhum governo que fosse capaz de colocar em prática o previsto na actual alínea c) do n.° 3 do artigo 64.° V. Exa. referiu-se, nomeadamente, e a este propósito, ao PS. Nunca foi intenção do PS socializar, isto é, nacionalizar, as farmácias ou a indústria farmacêutica. Há pouco, na apresentação das nossas propostas referentes a este preceito, fui bastante claro: ao formularmos esta nova redacção, fizemo-lo para esclarecer qual o nosso entendimento, da referida alínea c) do n.° 3 do artigo 64.° De facto, ao dizer que queremos socializar, pretendemos que tal socialização incida sobre os custos dos cuidados médicos e medicamentosos. Se defendemos a tendência para a gratuitidade destes cuidados, isso está naturalmente de acordo com essa nossa afirmação. Aliás, quando preconizamos a gratuitidade, também defendemos na lei, que é da nossa autoria, que poderiam existir durante algum tempo e em certos momentos taxas moderadoras para fazer face, designadamente, a uma falta de preparação, má implantação ou má compreensão, ou, até, ao abuso nos consumos.

Em relação à eliminação, no n.° 2 do citado preceito, dos termos "universal", "geral" e "gratuito", julgo que vem contrariar o que consta do n.° 1, que refere que todos os cidadãos têm direito à saúde. Mas têm o direito à saúde em todas as suas vertentes, ou seja, nas de promoção, de prevenção, de tratamento e de reabilitação. Têm tal direito todos os cidadãos, seja qual for o local em que se encontrem a viver.

Quanto ao problema do financiamento, com que o PSD se mostra tão preocupado, todos nós nos mostramos preocupados com os desperdícios. Mas não nos mostramos assim tão preocupados porque no nosso país os gastos com a saúde estão longe de atingir as percentagens em relação ao produto nacional bruto (PNB) que já atingiram noutros países europeus, onde tal facto começou já a causar alguns receios.

Também não compreendo em que é que a substituição da expressão "serviço nacional de saúde" por "sistema nacional de saúde" vai aumentar a eficácia dos cuidados a prestar pelo Governo. Não compreendo onde é que está a diferença e gostaríamos que nos explicassem o que entendem por "sistema". É que não compreendo por que é que essa alteração vai aumentar tal eficácia.

Quanto ao recurso às instituições privadas, não temos nada contra a medicina privada, tanto assim que mantemos a alínea d), que diz "disciplinar e controlar as formas empresariais e privadas da medicina", articulando-as com o Serviço Nacional de Saúde. Há aqui uma larga abertura ao aproveitamento da iniciativa privada e de certas instituições que estão a aparecer, nomeadamente na área do combate à droga e ao alcoolismo. Entendemos que, dada a participação dos cidadãos, é extremamente útil o aparecimento dessas

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associações ou instituições. O que não pode acontecer é o Estado alhear-se desses problemas e deixá-los ficar apenas na dependência da iniciativa privada. Em relação às instituições de solidariedade social, julgo que cada vez menos cabe no âmbito da actividade das instituições de solidariedade que são as misericórdias - designemo-las pelo nome que de facto essas instituições têm - a actividade dos cuidados médico-hospitalares. Já lá vai o tempo em que as misericórdias fizeram a sua época e prestaram óptimos serviços aos cidadãos. Mas a tecnologia e a complexidade das actuais unidades hospitalares e de saúde são incompatíveis com os "bons homens" que normalmente gerem as misericórdias. Outro dia tive ocasião de citar no Plenário o caso típico do Hospital da Prelada, no Porto, que foi entregue à Misericórdia do Porto; esta veio anunciar publicamente que não tinha capacidade para gerir uma instituição daquelas e que, por isso, ia entregá-la a uma empresa privada.

Continuamos, portanto, a defender a existência da iniciativa privada. O que o Estado não pode fazer, de maneira nenhuma, é abdicar das obrigações que lhe competem para pôr em prática o direito dos cidadãos à saúde.

Termino com um pequeno pormenor, relativo ao problema dos seguros de doença e dos subsistemas. Também já tivemos ocasião de nos pronunciarmos sobre esta questão no Plenário. Entendemos que a criação do seguro de doença levaria, de facto, os cidadãos a terem uma medicina de primeira, de segunda ou de terceira, consoante a sua capacidade de suportar os custos das apólices de seguros nas suas várias modalidades.

Na realidade, somos contra a existência de subsistemas, mas não somos contra a existência de subsistemas complementares. Que uma empresa resolva complementar as regalias que o Serviço Nacional de Saúde confere, não temos nada contra. Mas já temos alguma coisa contra a existência de subsistemas, mesmo do próprio Estado. Refiro-me, nomeadamente, à ADSE; toda a gente sabe que muitas das pessoas com direito à ADSE recorrem ao Serviço Nacional de Saúde, sendo certo que nada os impede, como cidadãos, de fazer isso. Por este país fora há exemplos disso, quer em relação aos hospitais quer aos centros de saúde.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vidigal Amaro.

O Sr. Vidigal Amaro (PCP): - Queria começar por colocar o problema do direito à saúde. Pergunto se o PSD entende ou não que a saúde é um direito, se para chegar a esse direito não é necessária uma igualdade de acesso e se para se atingir essa igualdade de acesso não se passa pela gratuitidade. É que, se não houver realmente gratuitidade, se não se tratar de um sistema universal e gratuito, deixa de haver igualdade de acesso e, quando deixa de haver igualdade de acesso, deixa de haver o direito à saúde. Este é o problema fundamental, do qual temos de partir. Ou o PSD acha que a saúde não é um direito ou que, sendo um direito, pode não ser igual para todos, pagando as pessoas consoante a sua bolsa?

Se dizemos que é gratuito, tem de ser, evidentemente, gratuito. Mas nós pagamos, toda a gente paga! Quando dizem que são os pobres que pagam para os ricos, certamente que não deve ser assim. Se é pago através dos impostos, e sendo os impostos progressivos, quem ganha mais deve pagar mais para a saúde. O Sr. Deputado fez algumas considerações e depois disse que não podemos exigir aos mais pobres, aos mais sacrificados, mais sacrifícios, porque isso seria pedir-lhes mais dinheiro. Mas o que o Sr. Deputado propõe no seu projecto é isso mesmo: é pôr outra vez os pobres a pagarem mais, se quiserem ter melhor medicina. O que VV. Exas. acabam por propor são realmente vários tipos de medicina. Quem tem dinheiro tem melhor medicina, quem não tem dinheiro tem pior medicina - é o que acontece nas vossas propostas.

O Sr. Deputado diz que quer aliviar a Constituição. O Sr. Deputado não quer aliviar a Constituição, mas sim mudar a sua carga ideológica. É que qualquer Constituição tem uma carga. O que V. Exa. quer fazer é tirar a carga que actualmente tem para lhe pôr outra. Então, não diga que é para aliviar a carga ideológica, mas sim que é para colocar outra carga ideológica. É importante frisar isto. Toda a gente diz que a Constituição tem uma grande carga ideológica, mas o que é certo é que qualquer Constituição tem uma carga. Tudo depende da carga que desejarmos que ela tenha.

Depois, o Sr. Deputado fala em várias coisas e diz que hoje em dia o problema do financiamento dos serviços de saúde se torna difícil - e falou dos países ocidentais, em que isso se torna cada vez mais difícil. Lembro-lhe, contudo, que são precisamente esses países que têm o seguro de doença e que já suportam encargos com a saúde verdadeiramente insuportáveis. Não são os que têm o Serviço Nacional de Saúde, mas precisamente os que têm serviços nacionais de saúde, como é o caso da Alemanha Federal e da França, que estão a romper pelas costuras com os seguros de doença e as convenções. Isso tem sido bem demonstrado e ainda recentemente estiveram entre nós individualidades que o fizeram.

V. Exa. diz ainda outra coisa extraordinariamente curiosa: que a educação para a saúde é que leva ao maior consumismo, pois, se queremos que a população tenha saúde, é necessário que se consuma mais saúde, mais prevenção, que haja mais medicamentos, que haja pessoas a recorrer mais aos serviços de saúde. Isso é óbvio! O que é necessário é um maior financiamento, só que nós temos um financiamento de 3,3 % do PIB (produto interno bruto) para a saúde, o que não chega seguramente para aquele efeito.

Quanto ao problema das instituições privadas, acho muito bem que haja medicina privada. Não tenho nada contra a medicina privada ou contra o facto de as instituições de solidariedade social também fazerem medicina. Mas que sejam elas a suportar tal actividade. O que hoje se passa é que é o Serviço Nacional de Saúde a sustentar essa medicina, e V. Exa. sabe, melhor do que eu, que actualmente um terço do orçamento do Serviço Nacional de Saúde vai para o sector privado. Isto não é sã concorrência nenhuma! Que haja sectores bem definidos, que haja o sector privado, que haja a solidariedade social, mas que se autofinanciem, que não seja o Estado a financiar esses sistemas, para depois dizerem que eles é que praticam saúde. Temos de definir bem o que se quer. Se queremos realmente o acesso igual para todos, isso passa certamente por um serviço nacional de saúde universal, geral e gratuito.

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O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Devo dizer, face àquilo que ocorreu no Plenário, na sequência da interpelação que o Grupo Parlamentar do PCP realizou na passada terça-feira, precisamente em torno das questões da política de saúde e tendo em conta, em particular, o juízo final, emitido pelo Governo, através da ministra respectiva, quanto àquilo que o Governo e o PSD entendem ser os problemas fulcrais a dirimir em sede de revisão constitucional; tendo em conta, em particular, que o PSD exprimiu a ideia de que a política de saúde que desejaria "não é possível no actual momento, face às disposições constitucionais", e que o futuro passaria por uma modificação da Constituição que desse ao Governo, nomeadamente, maior margem de manobra para definir as regras que entende por desejáveis - eu esperaria que o PSD viesse aqui, à Comissão de Revisão Constitucional, que é a sede própria e adequada, exprimir rigorosamente quais são essas ideias ou, pelo menos, que não minimizasse o alcance daquilo que propõe.

Nesse sentido, a intervenção do Sr. Deputado Luís Filipe Meneses é um tanto surpreendente porque, de certa maneira, minimiza o alcance das transformações que o PSD pretende imprimir ao quadro constitucional neste ponto e, por outro lado, não deixa totalmente transparentes os fundamentos que levam o PSD a impulsionar essa alteração. Porque V. Exa. teve a ocasião de reconhecer no Plenário da Assembleia da República - tanto quanto eu pude aperceber-me através do registo escrito do seu discurso - que existe na actual situação da saúde portuguesa uma situação de ruptura e procurou historiar algumas das causas que levam a essa situação, escamoteando, naturalmente, as responsabilidades do PSD nesse domínio.

Quanto à terapêutica, apresentou um modelo que talvez se possa sintetizar (corrigir-me-á se estou a exprimir a ideia incorrectamente) nas ideias seguintes: seria necessário estabelecer "plataformas de entendimento" entre os protagonistas da revisão constitucional; essas plataformas deveriam ser no sentido de criar aquilo a que chamou "reformas de fundo", imprescindíveis e condicionadoras da saúde que vamos ter na entrada do próximo século. Ora, eu ouvi-o descrever essas alterações e, tanto quanto me pareceu, se aplicássemos o modelo que V. Exa. preconiza, uma coisa é certa: não teríamos, evidentemente, um serviço nacional de saúde com o carácter de universalidade, portanto dirigido à generalidade dos cidadãos sem discriminações, não teríamos um serviço nacional de saúde abrangendo todos, mas todos, os serviços públicos de saúde e todos, mas todos, os domínios e prestações de saúde e não teríamos um serviço gratuito, isto é, suprimir-se-ia a característica de acesso aos cuidados sem encargos, que é precisamente a característica básica, típica, do sistema que está instaurado entre nós.

Dir-me-á V. Exa.: "pois não teríamos nada disso, mas tínhamos, em contrapartida, mais eficácia". É isso que me deixa verdadeiramente perplexo, porque aquilo que V. Exa. evidencia nesta matéria não vem acompanhado, precisamente, de provas. Como o meu camarada Vidigal Amaro sublinhou já, e dispensa reforço, há certas eficácias privadas - suponho que é nessas que pensa sobretudo - que resultam de um chorudo financiamento público, e nisso reside o segredo do seu "sucesso" (que ponho entre aspas por razões compreensíveis). Por outro lado, esta ideia do financiamento público de negócios privados tem dado resultados que V. Exa. conhece perfeitamente. Gostaria que se pronunciasse sobre eles, uma vez que o Govêrno e o PSD consideram que isso é um fundamento para desmantelar o sistema em vigor (ou, melhor, o sistema previsto constitucionalmente e que os senhores não aplicam e, portanto, não está, em larga medida, em vigor).

Outro argumento que o ouvi desenvolver e que me parece chocante é o de que o desenvolvimento tecnológico obrigaria, fatalmente, a alterar o esquema constitucional. Até teve ocasião de sublinhar este subargumento que me parece de assinalar (e gostaria que o pudesse desenvolver se possível): há técnicas auxiliares de terapêutica extremamente caras, sem possibilidade de poupanças a jusante, o que aconselharia que fossem privadas, se eu bem o entendi. Eu gostava de perguntar a V. Exa. o que há de incompatível entre esses avanços tecnológicos e a manutenção do actual sistema, em que. designadamente, o financiamento público e a gestão pública são fundamentais para que os cidadãos, designadamente os de mais fracos recursos, tenham possibilidade efectiva de acesso? É óbvio; todos sabemos que, se eu quiser fazer um exame o mais caro possível e tiver dinheiro para o pagar, faço-o, e não tenho de estar na bicha, não tenho de esperar, tenho acesso. Se tenho dinheiro, logo tenho acesso. Mas a lógica do SNS é garantir àqueles que não têm dinheiro o acesso, quebrando as desigualdades. É essa a sua razão de ser! Eu gostava de perguntar a V. Exa. como é que consegue estabelecer essa correlação entre os imperativos do desenvolvimento tecnológico e o fim do Serviço Nacional de Saúde, que o PSD preconiza. Diria quê se justifica até o contrário: face à elevação de custos, há certos meios que só sendo públicos poderão ser susceptíveis de ser alcançados ou acessíveis aos cidadãos de mais fracos recursos! Portanto, encontrará aí razões não para a extinção do SNS, mas para o seu revigoramento, para a sua manutenção, para uma maior democratização do acesso à saúde.

Finalmente, gostava de perguntar a V. Exa. se pode concretizar aqui, nesta sede, as afirmações ou as exigências que a Sra. Ministra da Saúde sintetizou quando disse que considerava que "a actual Constituição, na sua redacção presente, não confere ao Governo margem de manobra". Gostava de perguntar a V. Exa. se seria capaz de precisar, rigorosamente, qual é a margem de manobra que considera necessária para resolver os problemas de saúde e em que é que a Constituição é obstáculo a essa margem de manobra.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado João Rui de Almeida.

O Sr. João Rui de Almeida (PS): - Julgo que todos nós daríamos uma contribuição válida para esta discussão se, no início, conseguíssemos manter uma uniformidade quanto ao significado das palavras. Creio que seria importante chegarmos a acordo no que se refere ao significado das palavras. Deveríamos precisar melhor a terminologia. Fundamentalmente, a terminologia que até agora tem vindo a ser utilizada traduz-se nas expressões "universal", "geral", "gra-

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tuito" e "nacional" (noutra altura precisarei isto melhor) e depois em "serviço nacional de saúde" ou "sistema nacional de saúde". O que é que os autores dizem a este respeito? Seria bom uniformizarmos a terminologia e sabermos qual o conceito que cada um tem desta questão.

Concretamente quanto à universalidade, o que é que os autores dizem sobre o conceito de "sistema universal" ou "serviço universal"? É universal porque visa a prestação de todos os cuidados de saúde, no seu tríplice aspecto de prevenção, cura e reabilitação, se bem que alguns autores também o integrem no conceito de "geral", embora isso não seja importante para a presente discussão? Então, qual é o conceito de "geral", como é que a maior parte dos autores o definem? É geral porque se destina a todos, sem qualquer discriminação no aspecto económico, social ou geográfico?

Não me prenuncio sobre o conceito de "gratuito", porque esse reúne o consenso de todos.

A seguir vem a questão mais importante, que é a de ser ou não "nacional". O que é que os autores entendem por nacional? "Nacional" pressupõe, à partida, uma regra base, que é o facto de ser pela via do Orçamento do Estado (OE) que se processa o financiamento. E aqui, de facto, surge alguma confusão. Um exemplo concreto de um sistema cuja participação é feita através do OE - é conhecido em todo o mundo - é o do Serviço Nacional de Saúde inglês. E tomou o nome de "nacional" precisamente porque era financiado pelo Orçamento do Estado. Daí que hoje em dia seja unanimemente aceite a designação "Serviço Nacional de Saúde". Depois vem aquilo que é uma novidade proposta pelo PSD: "sistema nacional de saúde". Ora, partindo do pressuposto de que aquela terminologia é universalmente aceite, a expressão proposta pelo PSD traduz um grande contra-senso porque, pelo facto de lhe introduzir o conceito de nacional (e não fomos nós que o inventámos), pressupõe à partida um financiamento através do OE - e dou mais uma vez o exemplo do inglês. Há vários sistemas conforme o financiamento, como, por exemplo, um sistema baseado no tipo de seguro de doença, que não é nacional. Há um sistema que é baseado no tipo de seguro de doença, como há também, por exemplo, um sistema baseado no tipo de convenções, mas que não são nacionais. O conceito que é unanimemente aceite como mais conforme ao de nacional é o do OE. Daí toda esta confusão em torno da designação.

O PSD, depois, clarifica melhor esta questão, porque propõe um modelo de sistema nacional de saúde que, não sendo financiado pelo OE, o é através do seguro de doença. Há esta errada interpretação sobre estas terminologias. Ou seja: o PSD, se quer, pelo menos, ajudar a clarificar isto, deveria, em nosso entender, retirar a palavra "nacional", porque, de facto, não propõe que o sistema seja financiado pelo OE.

Concretamente, quanto às virtudes que foram apontadas aos serviços, aos sistemas, aos modelos de saúde baseados no conceito de seguro de doença, hoje em dia sabemos que são mais discriminatórios e mais caros e não são tão eficazes. Os exemplos da Europa que geralmente são dados - julgo que não será de propósito - são-no de uma forma que creio não ser correcta. Dou o exemplo do SNS inglês, que goza, como sabem, de grande aceitação na população inglesa, mas que a Sra. Thatcher agora tentou desmantelar - aliás, a edição da revista The Economist de Agosto do ano passado traz um artigo muito interessante sobre isso - precisamente por causa desta questão fundamental que é a do financiamento, propondo-o na base de um seguro de doença. A Sra. Thatcher viu-se obrigada a voltar atrás, por se tratar de um serviço com muita popularidade e que tem prestado bons serviços, o que não quer dizer que esteja tudo bem em Inglaterra. Quanto a outros países cujos modelos de saúde sejam baseados no sistema de seguro de doença - é o caso da França, entre outros -, eles próprios consideram que as coisas não estão a correr tão bem como seria de esperar e que estão a pensar também em rediscutir a questão.

Outro ponto a debater é a questão da carga ideológica. Julgo que é um erro darmos uma carga ideológica ao SNS, até porque esse serviço foi criado precisamente por um governo conservador, em Inglaterra. Não tem carga ideológica nenhuma; a ter alguma, teria uma carga ideológica conservadora. Naquela altura chegou-se à conclusão de que era um modelo que hoje em dia, nas sociedades desenvolvidas, e não só, é capaz de resolver com mais facilidade, mais equidade e menos custos os graves problemas que se colocam a todos os países no que se refere à saúde.

Por último, julgo que não é muito correcto da parte do PSD estar frequentemente a apontar exemplos de alguns casos que acontecem de mau funcionamento do SNS português e permanentemente a utilizar tais exemplos para dizer que o SNS não resulta. Isso é um erro, desde logo porque, como sabem, a maior parte dos ministros que tiveram a pasta do Ministério da Saúde não gostam do SNS e tudo fizeram para não o implementar e para protelar o seu funcionamento. Por alguns erros que tenha, não culpem o SNS, não culpem o modelo; culpem, sim, todos aqueles que tentaram meter areia na engrenagem para sua melhor eficiência. Outra coisa que é muito importante - creio que isto não chegou a ser dito aquando da interpelação sobre política de saúde - é que não temos em Portugal aquilo a que se possa chamar um SNS. Infelizmente! Porque nalgumas áreas é uma manta de retalhos, está todo ele compartimentado, não há uma sequência; por culpa da maioria dos ministros que abraçaram esta pasta, por não gostarem do SNS, desarticularam-no. Não se pode dizer, se se souber o que é um SNS, que o que existe em Portugal é um SNS.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.

O Sr. Raul Castro (ID): - Gostaria de comentar duas afirmações do Sr. Deputado Luís Filipe Meneses: a primeira é a de que as propostas do PSD visavam, globalmente, aliviar a Constituição de um carácter ideológico; a segunda foi a referência a uma "perspectiva social-democrata", acrescentando "e pragmática" - como se já não fosse bastante ser social-democrata.

Começaria por lhe dizer que, efectivamente, o sentido das propostas do PSD não é sequer um sentido social-democrata - talvez por isso o Sr. Deputado tenha acrescentado o adjectivo "pragmático" - mas, sim, um sentido de alteração na perspectiva do neoli-beralismo. E no capítulo da saúde isso parece-me flagrante.

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O que é que caracteriza essa orientação que a partir dos anos 80 se instala em alguns países europeus e nos EUA, quanto ao neoliberalismo? O auto-equilíbrio do sistema capitalista e, por isso, a diminuição do papel do Estado no campo da sua intervenção? A valorização da iniciativa privada, que alguns autores chegam a considerar a "cavalaria" do nosso tempo? A substituição da justiça social pela solidariedade, no sentido de caridade? O afastamento das ideologias? Ou ainda, neste caso sem muito interesse, um conhecido rumo anti-inflacionista separado de qualquer new deal, isto é, com agravamento de condições sociais, nomeadamente do desemprego? Nas suas propostas, o PSD apresenta como justificação as ideias que acabei de referir. Torna-se evidente que o PSD se mostra entusiasmado com a iniciativa privada - aí está, por exemplo, a proposta que fala em incentivar iniciativas de instituições particulares - e com a redução do papel do Estado, como é característico do neoliberalismo.

Além do mais, o Sr. Deputado chegou a afirmar que as instituições de solidariedade social têm de ter condições para o exercício da sua actividade. Parece-me que esta sua afirmação permite a conclusão de que o Estado teria de as subsidiar, já que, só por si, tais instituições não poderiam desempenhar o seu papel; ou seja, não só se lhes atribui um papel fundamental, como para elas se desviaria parte das receitas do Orçamento do Estado (OE) que deveriam dirigir-se ao próprio OE. Aliás, há disso exemplos concretos: ainda há dias, na interpelação ao Govêrno sobre saúde, foi levantada pelo meu companheiro de bancada a questão do Hospital de Vila Nova de Gaia, do Sanatório de Joaquim Ferreira Alves, o qual foi doado ao Estado para um sanatório, mas parece que o Ministério da Saúde estaria a pensar em (em vez de recuperar o edifício para o transformar em sanatório, como consta do contrato de doação) recuperá-lo e entregá-lo à Misericórdia de Gaia, para esta aí fazer um lar da terceira idade, e depois alienar os valiosos terrenos que o circundam. Aqui está um exemplo concreto dessa mesma política.

Simplesmente, não se trata aqui de questões ideológicas - isto porque há uma outra característica importante do neoliberalismo que é o corte com as ideologias. Para imprimir a esta Constituição um carácter neoliberal, não é preciso falar em neoliberalismo; basta eliminar da Constituição todas as expressões que lhe atribuem o carácter que presentemente tem. Isto é: para o PSD poder ver na revisão da Constituição o carácter ideológico através do qual dirige a sua política, e para além de intervenções marcadas no sector no que diz respeito à iniciativa privada e a afirmações ideológicas, basta eliminar tais expressões, porque o campo branco das ideologias é o terreno do neoliberalismo.

A questão que se coloca, Sr. Deputado, é a de que o que está em causa na proposta do PSD quanto ao artigo 64.° é o facto de o objectivo não ser claramente o de beneficiar as classe mais desfavorecidas, isto é, a esmagadora maioria dos cidadãos carenciados. Pelo contrário, o desenvolvimento de instituições privadas abre um fosso entre a generalidade dos cidadãos carenciados e os que podem ter acesso a formas de medicina com custo, que exclui a capacidade de acesso dos outros. Naturalmente que o sentido profundo destas alterações que o PSD propõe se insere neste campo genérico. Por isso é fácil - foi sempre fácil - para o PSD dizer: "Não queremos que a Constituição se afirme como social-democrata". Não querem nem precisam, porque o que desejam é que a Constituição seja, não a Constituição de Abril, mas uma constituição neoliberal, com a eliminação das fórmulas ideológicas e a consagração do que é característico do neoliberalismo. São razões diferentes para não podermos dar concordância às propostas que o PSD apresenta, que iludem o sentido profundo das medidas contidas no artigo 64.° O Serviço Nacional de Saúde (SNS) - para nós, é isso o que fundamentalmente está em causa - foi criado para ir ao encontro dos problemas sanitários da grande maioria dos portugueses, ou seja, dos portugueses carenciados. Tudo o que seja introduzir dicotomias em função da iniciativa privada e favorecer o extermínio, a longo prazo do SNS, não pode, naturalmente, ter a nossa concordância.

O Sr. Presidente: - Antes de voltar a dar a palavra ao Sr. Deputado Luís Filipe Meneses, que, suponho, quererá responder às questões que lhe foram colocadas, colocava-lhe eu mais algumas. Embora não seja um especialista nesta matéria, aprendi já algum coisa no decurso desta troca de impressões.

Parece-me que a proposta do PSD, de algum modo, tenta uma inversão da situação actual. E, quando se trata de corrigir os defeitos que a Constituição possa ter, nem sempre esses defeitos se corrigem bem saltando para o pólo oposto. É um pouco o que acontece aqui.

E o que aqui acontece é que há um direito à saúde mas, tudo o mais, logo a seguir, não se relaciona com o exercício desse direito nem com a sua concretização - primeira observação. Depois, dizia-se: o direito à protecção da saúde é realizado pela criação, pelo Estado ... Não sei bem como é que o Estado promove essa criação, ficando de fora, ao que parece. Se não é a autocriação, e então diga-se que cria, que diabo é isto de "promover a criação"? O Estado promove a criação de um SNS? Pode ser alguma coisa estranha a ele próprio, exterior a ele próprio? Já foi caracterizado o problema da diferença entre o "serviço" e o "sistema". O Sr. Deputado João Rui já caracterizou isso e não direi mais nada.

Mas vamos por aí abaixo e é tudo redutor: enquanto hoje se fala na "promoção" da educação física desportiva, surge-nos o conceito de "desenvolvimento". Promoção é mais do que desenvolvimento. Além disso, até o diabo da palavra "incumbe" ao Estado aparece substituída por "cabe" ao Estado. Qual terá sido a determinante mental que levou o PSD a substituir "incumbe" por "cabe"? Apesar de tudo, "cabe" é menos do que "incumbe". Mas se não foi intencional...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Essa podemos eliminá-la já.

O Sr. Presidente: - Muito bem.

Depois, onde é que está a grande inversão? A grande inversão está nisto: nenhum de nós - sempre o dissemos - tem nenhuma espécie de alergia à medicina privada, antes pelo contrário. O que acontece é que hoje, porque a saúde é um valor fundamental da vida dos cidadãos e dos países, entendemos que a saúde deve ter o privilégio de ser, fundamentalmente, uma incumbência do Estado, como é a educação, como são

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as vias de trânsito, como são os transportes principais, como é a defesa, a segurança, deixando outras realizações à iniciativa privada, já que o Estado não pode fazer tudo. Porque não pode, tem de se seleccionar. Mas já teremos chegado ao momento de o Estado abdicar de intervir na saúde como agente promotor e de invertermos a situação, pondo o Estado na sombra, em vez de tentarmos explorar a virtualidade da coexistência de duas vias para a realização da saúde - a pública e a privada?

Quer dizer, enquanto hoje havia a ideia de ela existir disciplinada e controlada pelo Estado, o que nós compreendemos, passaria a ser incentivada - o que, no ponto de chegada, daria o apagamento do papel do Estado num sector onde se quer cada vez mais significativo. Quem me dera a mim que o Estado pudesse dizer: a partir de hoje a medicina é gratuita, os medicamentos são gratuitos.

Sobre isso, gostaria de colocar uma questão: tendo-se os partidos posto de acordo na lei ordinária para consagrar as taxas moderadoras - é uma pergunta que faço aos especialistas, particularmente do meu partido - e tendo o Tribunal Constitucional inconstitucionalizado a consagração por via de lei ordinária de algumas taxas moderadoras, deveremos nós - ao mesmo tempo que não estamos dispostos a abdicar de um ideal de gratuitidade, como meta, como valor a atingir -, não seria saudável que de algum modo se evitasse a inconstitucionalidade, pelo menos, das mais indispensáveis taxas moderadoras?

Por outro lado, também não vale a pena encarniçarmo-nos contra a ideia da socialização da medicina entendida como nós a entendemos - e está esclarecido na nossa proposta que é, não no sentido da colectivização da actividade, mas no sentido da equitativização dos custos. O que está em causa não é colectivizar a actividade, pois admite-se aqui, e continuará a admitir-se, a medicina privada.

Um último ponto: também não percebi bem o que é que levou o PSD a substituir a claríssima expressão "formas empresariais ou privadas de medicina" por "formas autónomas". Não sei o que isso é. É fugir à ideia do controle e da disciplina pelo Estado? É isso? Ficam fora do controle, como as regiões autónomas, as autarquias? Então já não são "formas empresariais e privadas"? É outra coisa? Ou, se é a mesma coisa, por que se mudou? Se não é a mesma, o que é?

Eram essas as questões que eu colocava, sobretudo ao Sr. Deputado Luís Filipe Meneses, que, nas suas considerações finais, fará o favor de tomar em conta.

Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Filipe Meneses.

O Sr. Luís Filipe Meneses (PSD): - Vou tentar responder brevemente às questões que me foram postas e aos comentários produzidos.

O Sr. Deputado Almeida Santos, na sua primeira intervenção, colocou uma questão respeitante à medicina convencionada. Perguntou se, sendo um dos nossos objectivos o de abrir a porta a outras formas de prestação de cuidados médicos, particularmente através da medicina convencionada, com o intuito de baixar os custos e viabilizar o sistema em termos financeiros, a proposta em si não encerrava uma contradição.

O Sr. Presidente: - Contradição não digo, mas tem a certeza de que embaratece?

O Sr. Luís Filipe Meneses (PSD): - Em primeiro lugar, digo-lhe que, quando defendemos a abertura a outras formas de organização, não é com o objectivo único e exclusivo de embaratecer globalmente o sistema - embora esse seja um dos objectivos - mas com o objectivo de poder em determinadas áreas melhorar os cuidados prestados. Em nossa opinião, existem áreas onde a medicina privada pode prestar tais cuidados de uma forma globalmente mais satisfatória - daí o exemplo dos cuidados de saúde primários. Penso que, nos diferentes sistemas de saúde que existem por essa Europa fora, é particularmente na área dos cuidados de saúde primários que a iniciativa privada se mostra mais capaz que o Estado. Indo ao exemplo comezinho, é muito mais aliciante para o doente que chega a casa, ao fim da tarde, com um problema do foro médico dirigir-se ao consultório médico situado em frente à sua casa, ao médico que conhece e com quem tem uma relação pessoal de certa intimidade e confiança, do que esperar pelo dia seguinte, faltar ao trabalho e ir ao posto dos Serviços Médico-Sociais. Esta realidade não se iria alterar, por mais que se viesse a optimizar o funcionamento dos cuidados médicos ...

O Sr. Presidente: - Permita-me uma pergunta intermédia, Sr. Deputado. Quando eu era Ministro de Estado e era Ministro da Saúde o Dr. Maldonado Gonelha, lembrei-me de pedir uma lista do que, no ano anterior, já vai para cinco ou seis anos, o Estado tinha pago aos médicos na infância da medicina convencionada. A lista que me foi entregue referia pagamentos até 7 000 contos a um só médico no ano anterior. Claro que não me dei ao trabalho de averiguar se todos pagavam o imposto correspondente àquilo que tinham recebido do Estado. Teria sido uma averiguação interessante. Grande parte desses médicos eram funcionários públicos, eram médicos do Estado. Não haverá melhor solução para esses médicos prestarem os mesmos serviços, igualmente pagos pelo Estado, sem essa qualidade de 80 miseráveis contos de ordenado e 600, 700, 800 e mais contos por mês na base da convenção? Há qualquer coisa de profundamente errado nisto.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Gostaria de pedir uma clarificação num sentido paralelo àquele que suscitou a observação do Sr. Presidente. Refiro-me a uma contraposição que ouvi fazer e que me parece um tanto chocante.

Quando o Sr. Deputado afirma que a abertura não seria para embaratecer, senão para melhorar, e depois refere que haveria áreas em que essa privatização seria particularmente favorável, e aduz o exemplo da área dos cuidados primários, vejo-o fazer uma contraposição que me parece despida de fundamento. O Sr. Deputado está a contrapor sistematicamente a imagem de uma "clinicazinha privada, simpática, ao pé da porta" e um "posto público horrendo, supostamente distante, frio e sem cuidados". Creio que fazer uma contraposição deste tipo é um excesso de retórica, má argumentação e não corresponde à verdade, porque não está escrito em sítio algum que os serviços de saúde públicos, designadamente os centros de saúde, tenham de ser, por um

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lado, distantes, por outro lado, incompetentes, por outro lado, brutais, desumanizados, desprovidos de meios e que não possam facultar ao cidadão cuidados de elevada qualidade com as características de proximidade. Até podem estar ao pé da porta, como V. Exa. sabe. Por que e que há-de fazer uma contraposição entre duas realidades extremas que podem não existir, sobretudo no momento em que, por exemplo, até se difunde a ideia do médico de família, figura que, ao que saiba, V. Exa. deve defender e é uma entidade pública, com características de proximidade, personalização, de ligação, de acompanhamento (e não deixa de ser público!). Portanto, não é preciso privatizar para conseguir esse desiderato. Gostaria que saísse, se possível, dessa contraposição um pouco mecanicista.

O Sr. Presidente: - Estou a ser egoísta, até porque estou a presidir, mas colocava-lhe uma última questão: Veria com idêntica naturalidade que se convencionasse com um professor, já que o ensino está ao nível da saúde - são dois valores fundamentais - que, além daquilo que ele recebe como professor do liceu ou da universidade, desse aulas privadas convencionando com o Estado pelas quais recebesse 600 ou mais contos por mês, admitindo mesmo que se tratasse de um professor de alta craveira? Por exemplo: o Sr. Dr. Costa Andrade receberia por ensinar Direito Penal 600 contos por mês, além de ter dado as suas aulas com aquela ridicularia que recebe no fim do mês. Aceitamos isto? Por que é que rejeitamos um caso e aceitamos o outro?

O Sr. Luís Filipe Meneses (PSD): - Quer a questão do Sr. Deputado Almeida Santos quer o comentário do Sr. Deputado José Magalhães são perfeitamente pertinentes.

Quanto à questão colocada pelo Sr. Deputado Almeida Santos, devo dizer que somos completamente contra esse estado de coisas e que é por sermos contra esse estado de coisas que abrimos a porta a este tipo de soluções. Não pensamos que a convenção, por exemplo, possa ser concedida a um médico que seja simultaneamente prestador de serviços nos serviços públicos. Penso que isso é altamente criticável, e é precisamente para acabar com esse tipo de situação que avançámos para esse tipo de propostas.

Em relação ao comentário do Sr. Deputado José Magalhães, devo dizer que o nosso atraso e o facto de partirmos um pouco de uma situação de desfavor no que diz respeito às prestações sociais que começámos já há uns anos a conceder aos cidadãos permitem-nos a vantagem particular de olharmos para as experiências alheias e não cometermos os mesmos erros. E, se é evidente que o retrato (que não fiz, mas que o Sr. Deputado José Magalhães fez) sobre a contraposição de um serviço privado acolhedor a um serviço público completamente deteriorado e sem grandes atractivos poderá ser exagerado, diria que o exagero foi seu. E a prova disso está nas experiências que existem por esse mundo fora, que vão realmente no sentido de que nessas áreas a iniciativa privada serve melhor os cidadãos.

Gostaria de responder cabalmente ao seu comentário, mas não me recordo da parte final da sua intervenção.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Outra ficção retórica e argumentativa utilizada é a de que a única forma de garantir adequadamente um bom relacionamento entre médico e doente seria avançar a passos largos para formas privatizadoras, como se não existisse no sistema de saúde, que entre nós está enquadrado constitucionalmente com as características de serviço nacional de saúde, a possibilidade de humanizar os cuidados, de estabelecer relações pessoais com todas as garantias de sigilo, de intimidade e todos os demais aspectos.

O Sr. Luís Filipe Meneses (PSD): - Sim, era sobre isso que queria invocar alguns argumentos, mas depois não me lembrei daquilo que tinha dito.

É verdade que fazemos um esforço de pragmatismo no sentido de colocar as soluções que preconizamos condicionadas pela realidade e pelos recursos que temos. Por isso somos socais-democratas (não "e pragmáticos"); mas somos pragmáticos porque somos sociais-democratas. Foi isso o que disse há pouco.

No que diz respeito aos cuidados de saúde primários e ao médico de família, sabemos que os avanços que foram feitos, em nossa opinião erradamente, para montar um determinado tipo de estrutura são a curto e médio prazo irreversíveis. O modelo que foi escolhido para os cuidados de saúde primários e para o médico de família torna impossível, ou pouco realista, ou excessivamente caro, e até pelos direitos adquiridos ao longo destes anos por um conjunto de cidadãos que não têm culpa dos erros cometidos, que queiramos desmantelar esse sistema. Admitimos, no entanto, que paralelamente existam outros tipos de prestação de cuidados, como o que aqui explanei, daí decorrendo que uma das nossas prioridades seja melhorar o actual estatuto do médico de família no sentido invocado pelo Sr. Deputado José Magalhães.

Gostaria ainda de tecer alguns comentários às considerações feitas pelo Sr. Deputado Ferraz de Abreu. Sobre uma das questões colocadas, o Sr. Deputado Almeida Santos já disse o essencial ou pelo menos tocou no ponto mais sensível da questão, referindo-se às taxas moderadoras. De facto, a Lei n.° 56/79 prevê as taxas moderadoras, e até vai mais longe ao justificar o seu aparecimento com a afirmação de que se destinam a combater um sobreconsumismo, uma sobreutilização dos cuidados (portanto, no sentido da argumentação do Sr. Deputado Almeida Santos), mas a verdade é que diferentes pareceres do Tribunal Constitucional inviabilizaram que certo tipo de taxas moderadoras preconizadas nesse espírito fosse implementado.

O Sr. Vidigal Amaro (PCP): - A única coisa que o Tribunal Constitucional considerou inconstitucional foi a taxa moderadora das consultas, ou seja, o facto de por cada "papelinho" ter de se pagar uma taxa. Foi apenas isso que foi considerado inconstitucional. Por cada receita tinha de se pagar uma taxa. As outras taxas não foram consideradas inconstitucionais; a Assembleia da República é que as aboliu.

O Sr. Luís Filipe Meneses (PSD): - Sr. Deputado Vidigal Amaro, cada receita corresponde a um acto médico e a x medicamentos receitados.

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Quanto ao financiamento, o Sr. Deputado Ferraz de Abreu disse que não há razões para termos desde já grandes preocupações quanto à falência do sistema em termos financeiros, na medida em que as verbas que derivam do OE para o SNS ainda são escassas. Em primeiro lugar, penso que não são tão escassas como isso, porque, como já várias vezes argumentámos, na ratio em relação ao produto interno bruto (PIB) estão ao nível daquilo que tinham outros países com sistemas de saúde como o inglês, que possuía um rendimento per capita semelhante àquele que hoje temos, e, além disso, porque temos um sistema de saúde que necessita nos próximos anos - todos sabemos disso - de um grande esforço de investimento, quer ao nível dos bens imobiliários, quer ao nível do apetrechamento, quer mesmo ao nível do alargamento de quadros de diferentes sectores. Esse esforço de financiamento irá ainda, se não tomarmos as providências necessárias, agravar mais as dificuldades globais do financiamento do sistema de saúde. E, por isso, temos a obrigação de começar a tomar as medidas cautelares necessárias.

Quanto às formas de organização alternativas ao SNS, já falei das instituições particulares de solidariedade social, embora a título de exemplo. Há muitas outras formas por esse mundo fora que começam a desenvolver-se e que já têm dado provas de poder em alguns casos aliviar, pelo menos transitoriamente, o investimento que o Estado pode fazer na área da saúde. Cito-lhe, por exemplo, o caso das Health Human Organizations nos Estados Unidos, que já têm associados, em alguns estados, correspondentes a cerca de 5°7o a 6% da população, os quais representam 3% a 4% da população global; e isso já se reflecte de uma forma muito marcada na redução dos investimentos que anualmente o Estado tem de destinar à área dos serviços de saúde.

O Sr. Deputado Vidigal Amaro não levantou questões; fez apenas alguns comentários, tendo dito que o sistema que queremos implementar iria fazer com que só aqueles que tivessem mais possibilidades económicas poderiam perfilar-se no sentido de exigir cuidados de melhor qualidade. Penso que será exactamente o oposto. Actualmente o sistema funciona dessa forma e são aqueles que têm mais possibilidades económicas que podem perfilar-se para ser internados em clínicas de luxo com outro tipo de atenções e de cuidados que muitas vezes não têm nos hospitais, pelo menos em algumas áreas. O sistema que queremos desenvolver é precisamente o oposto; vai no sentido de elevar globalmente o nível dos cuidados de forma a que os serviços públicos possam prestar esses serviços de qualidade a um baixo preço ou mesmo gratuito aos sectores da população mais desfavorecidos.

Há duas questões que estão interligadas e que foram objecto de comentários pelos Srs. Deputados Vidigal Amaro e José Magalhães, que se referiram às razões que invoquei para que hoje em dia os serviços de saúde sejam extremamente caros. Disse que nisso têm muita influência os projectos de educação para a saúde e o desenvolvimento tecnológico das técnicas de diagnóstico e terapêutica que têm aparecido nos últimos anos. É verdade que há todo um conjunto de condições que se reuniram para que realmente a saúde tivesse ficado mais cara, e estas são duas dessas condições. Não combatemos a ideia e a necessidade de grandes projectos e grandes iniciativas de educação para a saúde, mas não

há dúvida de que, pelo menos transitoriamente, esses programas acabam por se reflectir num acréscimo de procura de cuidados de saúde. Isso é conhecido e indiscutível, e existem estudos objectivos sobre a matéria. As nossas posições vão no sentido de conjuntural e circunstancialmente nos defendermos desse efeito perverso, embora tenhamos a esperança de que tal efeito perverso se diluirá com o tempo e que a partir desse momento ficarão apenas, óbvia e objectivamente, vantagens dessas campanhas de educação para a saúde, até se elas começarem a incluir, como devem, conceitos que levem os diferentes utentes, os cidadãos, a ter em conta que a saúde é um bem precioso mas extremamente caro e que, portanto, a procura deve ser feita com uma certa parcimónia.

No que diz respeito ao problema do desenvolvimento tecnológico, o Sr. Deputado José Magalhães solicitou-me que precisasse uma afirmação que fiz no sentido de que acréscimos de custos elevados não correspondiam a jusante dessas intervenções, através de técnicas muito sofisticadas, a uma poupança de custos. Vou precisar, por meio de um ou dois exemplos, aquilo que queria dizer. Hoje em dia, quando se tem uma dor de barriga mais forte, já não nos ficamos por uma palpação, por um exame físico objectivo bem feito, já não nos ficamos tão pouco (o que já seria em muitos casos mais do que suficiente) por meia dúzia de radiografias simples; vamos fazer tomografias axiais computadorizadas ou ressonâncias magnéticas nucleares ...

O Sr. Vidigal Amaro (PCP): - "Vamos fazer" diz quem tem dinheiro.

O Sr. Luís Filipe Meneses (PSD): - O que acontece é que, em grande parte das situações, esses exames não são necessários e o doente, a seguir, não vai ser curado de nada porque em muitas circunstâncias não tem nada para curar e o custo acrescido da prestação que lhe foi facultada aumentou exponencialmente. Foi isso que quis dizer.

Quanto às questões que o Sr. Deputado José Magalhães suscitou em relação à intervenção da Sra. Ministra da Saúde na recente interpelação sobre política de saúde, penso que em próxima oportunidade, no Plenário ou em Comissão, o Sr. Deputado poderá certamente colocá-las à Sra. Ministra, porque não me cabe certamente responder a essas questões.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Ferraz de Abreu.

O Sr. Ferraz de Abreu (PS): - Sr. Deputado, acredito nas suas boas intenções, até porque é médico e tem a experiência e a consciência que os profissionais da medicina adquirem no trato com os doentes, mas não há dúvida de que nas vossas propostas há duas coisas quanto a mim fundamentais. Uma é o n.° 2, que diz que "o Estado promoverá a criação de um sistema nacional de saúde [...] nos termos definidos por lei". Isto não nos diz nada, ficamos sem saber nada, ao passo que na lei actualmente em vigor tal matéria está clara. Na lei diz-se que vamos ter um serviço nacional de saúde com determinadas características, e os cidadãos sabem do que se trata; pelo contrário, a partir do que VV. Exas. aqui propõem, nenhum cidadão fica a saber o que vai acontecer. Dizem também que vêm

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incentivar as iniciativas da medicina privada. Nós dizemos que aceitamos a medicina privada e que até entendemos que ela deve ser articulada com o Serviço Nacional de Saúde, e vamos articulá-la. Estes dois aspectos são chocantes. É que, ao incentivar-se a medicina privada, isso vai apagar, pôr na sombra, desligar o Estado da qualidade de pioneiro na prestação dos cuidados médicos.

Além disso, há também uma outra afirmação sua de que discordo totalmente. Quando diz que a iniciativa privada poderá prestar melhores cuidados primários de saúde, eu diria que se passa o contrário. Num hospital ainda poderíamos admitir que isso se verificasse, mas não em relação aos cuidados primários de saúde. Em que é que interessa à iniciativa privada, que visa o lucro (e é justamente para isso que ela existe), promover medidas de saúde ou de prevenção da doença? Nada! Isso desapareceria. Como o Sr. Deputado sabe, essa é uma vertente importantíssima dos cuidados primários - e evidentemente que o Sr. Deputado Luís Meneses se referiu apenas aos cuidados médicos. Mas os cuidados primários, como sabe, devem fundamentalmente, ou pelo menos harmoniosamente, exercer uniu medíeis preventiva e uma medicina curativa. Sr. Deputado, o que está errado - e aqui dou-lhe razão - é a prática que tem estado a ser observada em relação à instituição médico-família, bem como a respectiva regulamentação. Isso é que tem dado lugar a um certo descrédito das unidades dos cuidados primários. Como V. Exa. sabe, do Govêrno foi emanada uma regulamentação erradíssima, que levou os médicos a certas práticas viciosas.

De qualquer modo, estamos de acordo que haja médicos-família e que deixe de haver convenções com os médicos que já são funcionários do Serviço Nacional de Saúde. E até estamos de acordo que em certos locais os doentes possam ter a possibilidade de escolher o seu próprio médico, quer entre os médicos do centro de saúde, quer entre os médicos que existam no local, desde que se altere o sistema de pagamento ao médico do centro de saúde. É que este médico foi pago de uma determinada maneira, quer trabalhe muito ou pouco, quer trabalhe bem ou mal, isto é, burocratizou-se como médico. Somos contra a burocratização, e no programa eleitoral do PS, apresentado quando da candidatura a Primeiro-Ministro do nosso camarada Almeida Santos, isso estava bem explícito.

O Sr. Presidente: - Não me lembre isso! Risos.

O Sr. Ferraz de Abreu (PS): - Nesse programa vinha referido claramente que gostaríamos de ver alterado e desburocratizado o Serviço Nacional de Saúde. A palavra "desburocratizar" foi, aliás, sugerida na altura pelo Sr. Deputado Almeida Santos. Defendia-se no programa do PS que era necessário desburocratizar o SNS, o que não estava a acontecer.

Em relação à questão do financiamento, confesso que não estive aqui a abordar a prática de taxas moderadoras de uma maneira definitiva, até porque a Lei de Bases do Serviço Nacional de Saúde prevê realmente a aplicação de taxas moderadoras temporariamente, isto é, enquanto se observarem práticas abusivas, etc. O que o Tribunal Constitucional deu como inconstitucional foi a forma como foram formuladas certas taxas no tempo do Ministro Luís Barbosa, ou seja, o modo como foram apresentadas juridicamente. Tanto assim que continuam a ser aplicadas hoje, mas de outra forma. Foram abolidas, sim, as taxas moderadoras aplicadas que tinham sido formuladas em termos jurídicos incorrectos. Foi esse aspecto que o Tribunal Constitucional considerou inconstitucional.

Nós próprios, quando estivemos no Governo, mantivemos certas taxas moderadoras. Todavia, acabámos com algumas das que haviam sido introduzidas pelo governo da AD, que não podiam realmente ser moderadas. Como é que se pode moderar o coser-se a cabeça num serviço de urgência? É dizer ao médico para dar ao paciente apenas três pontos em vez dos dez de que ele necessita? Não é possível. Então, que esse tratamento seja completamente gratuito. Como é que se pode moderar a aplicação de gesso num sujeito que partiu uma perna e se dirigiu ao serviço de urgência? É com a colocação de menos ligaduras de gesso? Não, não há razão nenhuma para se moderar. Como é que se pode moderar o tratamento pela cobaltoterapia ou pela radioterapia que o doente vai sofrer, não tendo ele a mínima interferência nessa aplicação? É somente o médico que comanda o tratamento dessa doença.

Devo dizer que eliminámos esse aspecto, assim como eliminámos as taxas moderadoras dos medicamentos, isto é, aumentámos a comparticipação do Estado até à gratuitidade em relação a medicamentos inteiramente necessários para tratar certas doenças e que não servem para tratar outras, em relação aos quais não pode haver abusos. Com grande mágoa nossa, verificámos agora que uma das doenças que tínhamos incluído nesta área - a dos asmáticos - saiu dessa área e passou para o escalão B, pelo que esses pacientes terão de pagar agora 20% do custo dos respectivos medicamentos. Só quem nunca viu um asmático e o sofrimento que corresponde a uma crise asmática é que pode não ter sensibilidade para este problema e ser capaz de dizer ao doente que ele tem de pagar se quiser tratar-se e impedir o seu acesso de asma. Estabelecemos oportunamente esses critérios, estabelecemos um certo critério de taxas moderadoras, o que significa que não estamos alheios ao problema.

Quanto ao problema do Serviço Nacional de Saúde, sua organização e implementação, devo dizer que estamos abertos a aceitar a colaboração desta medicina em certas circunstâncias. O que não devemos é incentivá-la.

Sr. Deputado, posso dizer-lhe que há cerca de três anos me encontrava doente. Tenho o azar de às vezes ficar profundamente doente. São consequências da idade, porque, quando era novo, nunca tive doenças.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Isso agora acabou, Sr. Deputado!

O Sr. Ferraz de Abreu (PS): - Estou a diagnosticar. Assim, fui fazer várias tomografias axiais computadorizadas, porque as pessoas pensavam, e bem, que eu deveria ter um cancro algures e numa fase já muito adiantada. Os médicos pretendiam saber onde se localizava o cancro que me esta a liquidar. Fui ao consultório de um médico e fiquei surpreendido quando lá vi uma fila de ambulâncias, vindas do Hospital de Santa Maria, com os respectivos doentes. Eles recorriam aos serviços de um consultório privado. Mais tarde procurei saber o que se passava, e posso dizer-

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-lhe, Sr. Deputado, que o que o Estado pagava anualmente apenas a esse médico era quase suficiente para comprar um aparelho de tomografia axial computadorizada (TAC) e instalá-lo no Hospital de Santa Maria. É por isso que digo que não se deve incentivar este estado de coisas.

Estou de acordo, sim, com o facto de, como aconteceu, por exemplo, em Bragança, alguém se ter antecipado ao Estado e ter tido a iniciativa de montar um TAC. Ora, se o número populacional dessa cidade não justifica a existência de dois aparelhos deste tipo, é natural que o Estado invista no seu hospital e aproveite o TAC existente. Mas deve fazê-lo em condições a estabelecer, de tal forma que o Estado não esteja assim a alimentar lucros excessivos da iniciativa privada. O que queremos realmente confirmar sempre é que a medicina, tal qual como a farmácia e os medicamentos, tem uma intervenção nitidamente social quanto a este problema e não pode confundir-se com um comércio qualquer.

Gostaria de referir algo a propósito da desumanização da medicina. Ela resulta, de facto, na maior parte das vezes, da relação que se estabelece entre o médico, o doente e o restante pessoal da saúde. Tal relação, nas unidades hospitalares, depende extraordinariamente da existência ou não de pessoal em quantidade e qualidade suficiente. Neste âmbito, informo-vos que acabo de visitar um serviço do Estado, um serviço público, e devo dizer que estou convencido de que em nenhum hospital privado haverá tanta humanização como encontrei na Unidade de Tratamento Intensivo das Coronárias (UTIC). Na UTIC há, em média, uma enfermeira por cama; no serviço de cardiologia, que funciona ao lado, há uma enfermeira para 30 camas. Naturalmente que cada uma desta enfermeiras não pode ter os mesmos carinhos, os mesmos cuidados e as mesmas atenções com cada doente do que aquelas enfermeiras, porque não há possibilidades físicas de o fazer. Na UTIC, sentíamos um cabelo a levantar-se no ar e aparecia-nos logo uma enfermeira a tranquilizar-nos e a explicar-nos as razões pelas quais isso estava a acontecer. Aí está a tal humanização da medicina! Quando se emprega essa expressão, ainda muita gente julga que significa aparecerem meia dúzia de senhores da alta sociedade a distribuírem rebuçados e cigarros pelos doentes e a fazerem-lhes visitas. O que realmente é necessário é dotar os hospitais do equipamento e do pessoal adequados, e assim essa humanização verificar-se-á. Teremos certamente alguns médicos e enfermeiros que descurarão as suas obrigações, mas encontraremos em muitos serviços - felizmente na maioria deles - a chamada "carolice", que nos deveria levar a apregoar as boas qualidades da classe médica e da classe de enfermagem em vez de andarmos a destruir a sua credibilidade.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado João Rui de Almeida.

O Sr. João Rui de Almeida (PS): - Desculpar-me-ão a minha ousadia de tentar esclarecer melhor esta questão do seguro de doença. Chego a pensar que o Sr. Deputado Luís Filipe Meneses talvez não tenha uma noção exacta - há-de compreender este meu atrevimento - de quais são as consequências do seguro de doença.

Vou dar apenas dois ou três exemplos para compreendermos melhor esta temática.

Como sabem, a regra do mercado em relação a qualquer seguro é a de quem paga mais tem mais benefícios, e não o contrário. Quanto mais se paga para um seguro mais benefícios se tem. Em termos de saúde, não se julgue que o seguro de doença é um seguro igual para toda a gente. E que, se uns pagam x, outros pagam o dobro para terem também o dobro dos benefícios. Sr. Deputado Luís Filipe Meneses, dou-lhe um exemplo: as mulheres, em iguais circunstâncias, de doença, pagam uma taxa x, mas, se a mulher está grávida, paga mais apenas por esse facto, ou seja, porque corre mais riscos. Não sei se o Sr. Deputado tem a noção disso.

O sistema do seguro de doença é semelhante ao do seguro dos automóveis: o seguro contra terceiros será de x, mas, se eu quiser um seguro contra roubo e todas as outras variantes, terei de pagar bastante mais. Não julgue, pois, que o seguro de doença é igual para todos.

Em relação aos mais idosos, evidentemente que os respectivos seguros são feitos pelas companhias seguradoras e não pelo Estado. O sistema de seguros tem modalidades variadíssimas, e não pensem que uma companhia deste ramo faz o mesmo seguro para um jovem e para um idoso; obviamente que o idoso pagará mais porque há um maior risco de ficar doente. Dou um exemplo concreto: no Hospital da Universidade de Coimbra existem quartos particulares e o critério actualmente seguido para a ocupação de quarto particular é o da gravidade da doença. Ou seja: se dá entrada nesse hospital um indivíduo gravemente doente, e pelas condições especiais da sua doença, é ele que ocupa um quarto particular. Com o seguro de doença isso não se processa assim: o indivíduo que pagou mais, o que tem o seguro mais caro, é que vai para o quarto particular e o que paga menos vai para a enfermaria.

O Sr. Deputado Luís Filipe Meneses talvez não tenha noção das consequências de tudo isto; ou, se a tem, terá de me explicar o texto da alínea a) do n.° 4 da vossa proposta, que diz: "Garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente das suas condições económicas, aos cuidados de medicina preventiva, curativa e de reabilitação." Os mais ricos pagarão naturalmente mais para terem seguros melhores. Mais grave ainda é o facto de este sistema criar também uma divisão etária, nomeadamente entre os idosos e os jovens. Isto acontece em termos gerais, mas realmente não sei o que poderá vir a acontecer em concreto.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado João Rui de Almeida, apresento-lhe um problema colocando-me na pele do Sr. Deputado Luís Filipe Meneses: não seria concebível criar-se um seguro organizado pelo próprio Estado, com risco ponderado, e, portanto, com um prémio ponderado?

O Sr. João Rui de Almeida (PS): - Não, Sr. Presidente. A outra questão nevrálgica nesta área é a de que ainda não está definido o sistema de seguros que o PSD propõe.

Por outro lado, deve ficar muito claro que ninguém é hoje em dia contra a iniciativa privada. Creio que todos somos apoiantes da ideia de que deve haver um sector privado no nosso país, desde que não seja parasitário do serviço público.

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Mas há algo que VV. Exas. estão a fazer que não segue nenhuma das regras do sistema privado, que é o facto de com dinheiros públicos construírem unidades que entregam depois aos privados, como é o caso, por exemplo, do Hospital da Prelada.

O Sr. Luís Filipe Meneses (PSD): - Não foi com dinheiros públicos!

O Sr. João Rui de Almeida (PS): - Foi construído e vai ser agora remodelado com dinheiros do Orçamento!

O Sr. Luís Filipe Meneses (PSD): - Mas não foi construído pela Santa Casa da Misericórdia!

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vidigal Amaro.

O Sr. Vidigal Amaro (PCP): - Sr. Presidente, gostaria apenas de fazer uma comparação rápida entre o sector público e o privado.

Temos de desmistificar a ideia de que o sector privado é melhor que o sector público. Todas, ou quase todas, as pessoas que exercem medicina privada trabalham também no sector público, ou pelo menos fizeram a sua formatura no sector público. Ora, que eu saiba, o sector privado não forma ninguém. Onde é que há hospitais privados que formem os seus técnicos, os seus especialistas? Todos eles vão receber a sua formatura no sector público. Além disso, hoje em dia não se pode dizer que um médico que acabou de abrir um consultório é muito bom e que as pessoas o vão consultar porque ele infalivelmente cura. Essa ideia está perfeitamente ultrapassada. Actualmente a medicina processa-se em termos de equipa. A relação médico-doente é uma relação que nasce de início, mas depois é toda uma equipa que funciona. Diz-se que as clínicas privadas são muito boas, mas o que é certo é que, quando estamos gravemente doentes, temos de recorrer ao sector público. Não se fazem transplantes cardíacos ou transplantes renais no sector privado, nem se pratica aí a alta tecnologia. E quem paga esses transplantes?

O Sr. Ferraz de Abreu (PS): - Pagam as pessoas com muito dinheiro que lá vão parar.

O Sr. Vidigal Amaro (PCP): - Acaba por ser o Estado a pagar isso. Essa é que é a questão fundamental: o que se passa é que o sector privado é sustentado pelo sector público, somos todos nós que o pagamos. Por outras palavras, acaba-se por pagar duas vezes; é o sector privado a viver à custa do público.

O que realmente é importante dizer não é que o sector privado é melhor do que o público, mas que o sector público funciona mal devido ao sistema existente. A Lei do Serviço Nacional de Saúde é que nunca foi regulamentada, e acabam por ser as mesmas pessoas a trabalhar num e noutro sector.

Quando se disse há pouco que é muito melhor cada pessoa dirigir-se à clínica situada em frente da sua casa, que tem lá o seu próprio médico, devo dizer que não compreendo isso porque, se essa pessoa for a um centro de saúde, a distância a percorrer será eventualmente a mesma e o médico também o mesmo. Por que é que pagar no sector privado será melhor do que ser abrangido por um Sistema Nacional de Saúde, em que todos pagamos? Não percebo qual é a diferença.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Na minha ignorância - só sei algumas pequenas coisas quanto a esta matéria -, devo confessar que médicos meus amigos sempre me recomendam, se alguém da minha família ou eu próprio nos sentirmos mal, que vamos ao Hospital de Santa Maria, embora eles sejam acérrimos defensores da medicina privada.

Sr. Deputado Luís Filipe Meneses, tenho duas questões a colocar-lhe. Uma relaciona-se com o que julgo ser uma nova figura da análise sociológica da bancada do PSD, e que é a seguinte: diz V. Exa. que temos uma percentagem ou um grau de despesa com a saúde, segundo entendi, comparável à dos países europeus quando tinham o mesmo nível de vida que temos actualmente. Ora, já é a segunda ou terceira vez que ouço isto vindo da bancada do PSD, ou seja, há umas semanas a esta parte o Ministro Silva Peneda também comparava a percentagem do Orçamento que gastávamos na Segurança Social com o que se gastava nessa área na Europa de há 30 ou 40 anos atrás. Receio, pois, que isto comece a ser uma nova figura - repito - da análise social do PSD e que qualquer dia, em desespero de causa, se possa dizer que temos muito mais aparelhos de vídeo por habitante do que tinha a Inglaterra há 30 anos, quando os mesmos não tinham sido ainda inventados. De facto, parece-me que é procurar mistificar a realidade vir fazer comparações com países europeus quando tinham o mesmo grau de desenvolvimento que nós, ou seja, há 30 ou 40 anos. E digo que é evidente que se trata de uma mistificação da realidade, uma vez que nessa altura não se dava o mesmo grau de necessidade, de tecnologia, etc., a certas matérias que hoje existem quer na Segurança Social, quer na saúde.

Assim, a primeira questão muito concreta que quero colocar é esta: é ou não verdade que a generalidade dos países da Europa dedica à saúde uma percentagem muito superior dos seus orçamentos do que nós? Acontece que o PSD dá sempre como exemplos a seguir os países da Europa, justificando, nomeadamente, o pacote laboral com o facto de estarmos integrados na CEE, mas que para outros casos já não os dá.

A segunda questão que lhe formulo prende-se com o facto de nesta alínea c) do n.° 4 do artigo 64.°, na versão do projecto do PSD, se referir a expressão "incentivar [...] as instituições particulares [...], bem como outras formas de medicina". Deste modo, parece-me que o termo "incentivar" tem um sentido técnico, ou seja, significa dar incentivos, que, por sua vez, podem ser incentivos financeiros, fiscais, empréstimos, etc. Pergunto, então, se é isto que o PSD propõe, ou seja, se pretende dar incentivos financeiros a estas instituições autónomas que não sei o que são. Será que pretende dar incentivos fiscais à medicina privada, etc.?

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

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O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, gostaria de fazer algumas observações decorrentes daquilo que pude apreender da marcha do debate, procurando com isso formalizar interrogações que podem ser ou não objecto de resposta. E digo isto porque, evidentemente, cada bancada é livre de manter silêncio ou de intervir.

As minhas observações vão neste sentido: há uma enormíssima desproporção entre os termos em que o PSD colocou a sua posição face às questões de saúde no Plenário, e, em concreto, perante a questão do modelo vigente em Portugal, e aquilo que flui em sede de Comissão.

Devo, entretanto, dizer que isso me surpreende um tanto. Dir-se-ia que estamos em "nó cego" ou, pelo menos, em "discurso devolutivo", recorrente e um tanto circular. O Governo e o PSD, enquanto executivo, remetem esta matéria - não sei o que é que dirá a moção de orientação apresentada a Congresso pelo respectivo presidente, mas suponho que não andará longe disso - para a Comissão Eventual para a Revisão Constitucional. Nesta, o Sr. Deputado, porta-voz deste assunto, remete para o Governo e, em todo o caso, não deixa claro qual seja o exacto modelo desejado e os vícios da aplicação do modelo vigente.

Creio que o debate - e neste sentido estou inteiramente de acordo como Sr. Deputado Almeida Santos - é extremamente rico para apurar tanto o estado de realização do modelo constitucional neste ponto como as causas dos vícios ou dos aspectos negativos na sua aplicação ou execução. Nessa perspectiva, foi extremamente positiva a precisão de conceitos que se procurou introduzir por parte das diversas bancadas. De facto, querer reduzir-se toda esta questão a uma questão terminológica é completamente impossível. Seria, pois, desnaturador e degradante. Não se trata de substituir a palavra "serviço" por "sistema". Trocaríamos de bom grado o termo "serviço" por "sistema", se isso não tivesse as consequências conceptuais, organizativas e até de filosofia de funcionamento desejadas pelo PSD. O debate corroborou claramente que as mutações empreendidas - e esta é a minha primeira conclusão - não são de carácter semântico mas, sim, de cariz conceptual, de filosofia de funcionamento e de concepção de uma certa forma de realização do direito à saúde. Não há, de facto, direito à saúde em sentido pleno e real se não houver, do ponto de vista institucional e organizativo, uma estrutura organizada e de responsabilidade pública clara, directa e assumida, que faculte aos cidadãos não apenas uma poesta, mas um tratamento quando estão doentes, uma prevenção, uma reabilitação e tudo o mais que está associado à ideia de garantia da saúde num sentido pleno. E isso inclui muito mais do que o SNS, porque insere, como VV. Exas. sabem melhor do que eu, outras vertentes, de carácter envolvente ou enquadrador, relacionadas com o ambiente, a arquitectura, a educação num sentido muito lato, etc. A saúde envolve, pois, toda uma série de componentes que não cabem ao sistema de saúde em sentido estrito. Quanto a esse ponto, não tenho grandes dúvidas, ou seja, as teses de carácter neoliberal são extremamente desapiedadas, perigosas, desigualitárias, sobretudo numa sociedade como a portuguesa.

Creio que o segundo mérito deste debate é precisamente o de escapar à tentação de fazer a discussão em abstracto como se estivéssemos a escolher, no super-mercado das ideias e dos modelos, um que mais nos apeteça hoje, que é um belo dia com céu azul quase de Verão. E, então, passaríamos do "modelo de beneficência" para o de SNS, que os Srs. Deputados do PSD consideram de démodé, incomportável (aliás, alguém, ontem, citava no Planário o bispo de York como pai da ideia do "Estado de bem-estar", mas acontece que os Srs. Deputados do PSD nem querem tal!). Pela sua parte, o PCP está de acordo com o sistema constitucional.

O que importa discutir é como é que na sociedade portuguesa a alteração do actual modelo funcionaria. Julgo que uma conclusão que se desgarra meridiana-mente deste debate é que esse outro sistema funcionaria pessimamente. Mais ainda: considero extremamente significativo que os Srs. Deputados do PSD nada tenham observado quando alguém em sede de Comissão - penso que foi o Sr. Deputado José Luís Ramos que fez esse alerta - advertiu para as possíveis consequências de uma alternativa que coloco entre aspas: "seguro de doença versus SNS".

Acontece que não houve resposta para esta questão, mas não desespero que ainda haja. Aliás, essa é a questão central. Como os Srs. Deputados do PSD avançam para a implementação e para o incentivo dos sistemas privatísticos na base da evolução das posses económicas fortemente desigualitárias, em que a cobertura dos riscos é proporcional ao montante das contribuições e em que tem saúde quem puder acorrer às mais elevadas e melhores formas de contribuição, perguntaria o seguinte: que consequências é que isso teria no nosso terreno concreto? Creio que é importantíssimo que se reflicta sobre isto, porque, se se proceder desse modo, se desgarrará que as propostas do PSD são impulsionadoras não de mais igualdade mas de desigualdades, não de elevação de qualidade mas de degradação de qualidade.

Um terceiro aspecto que julgo ser relevante é o seguinte: alguns aspectos da cruzada mística anti-SNS são autodesmentidos por aqueles que fazem ou tentam fazer evidenciação de provas. É significativo que os Srs. Deputados do PSD não tenham feito a evidenciação (porque creio também que isso era impossível) de que a saúde pública seja "totalmente má" e a privada seja "excelente". É particularmente desastrosa a tentativa de desenvolver essa tese aplicada aos cuidados primários de saúde. Mais: penso que é igualmente desastrosa a tentativa de fazer isso aplicado às tecnologias altamente desenvolvidas porque toda a gente sabe que é o Estado Português que financia com o seu dinheiro - e foi evidenciado quão alto é o preço que paga! - o uso dessas tecnologias por entidades privadas.

Há, portanto, uma apropriação privada de recursos públicos, uma utilização lucrativa e com fins lucrativos de bens que poderiam ser apropriados publicamente e colocados ao serviço de todos, incluindo aqueles que não têm dinheiro para os pagar porque são caríssimos. Mais uma vez, pois, um dos argumentos fulcrais da cruzada anti-SNS não se demonstra válido e probatório.

Finalmente, gostaria de sublinhar que a mudança preconizada é extremamente grave. Há até nesta área uma inversão de sinal. Não iria entrar na polémica sobre se a carga ideológica A é maior ou menor do que a B nesta matéria. E sei que são possíveis outros sistemas. Todos sabemos, aliás, que é possível imaginar um sistema - ele existe em outros países - em

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que certo tipo de doente seja tratado como um VIP e tenha tudo aquilo que é de melhor, inclusivamente todo um conjunto de meios complementares de diagnóstico postos automaticamente à disposição, tratamentos computadorizados altamente sofisticados, equipas médicas pluridisciplinares com todas as ramificações a montante e a jusante, etc. Esse tipo de sistema existe em muitos países, incluindo os Estados Unidos da América.

Entretanto, a importação desse sistema para um país com o nível de desenvolvimento como o nosso - com pessoal de medicina com as características que o nosso possui, em matéria de formação, raízes, atitudes, estatuto -, com os antecedentes, com este sistema constitucional e com esta história concreta, é impossível. Ou melhor, só seria possível ao preço de mais injustiça e desigualdade. Julgo, assim, que os Srs. Deputados do PSD deveriam assumir em plenitude as consequências que as suas propostas teriam para o povo português.

A última observação é sobre aquilo que está sob o ataque do PSD. De facto, o PSD no seu diagnóstico faz o retrado de um Estado-providência que considera excessivamente desenvolvido e investe contra ele. Neste caso concreto, confronta o SNS com um modelo que desenha em abstracto e muito mal, pois não dá pormenores, que considera "mais eficaz", "propiciador de bons serviços de saúde", de "economias para o Estado", de "vantagens para todos". Porém, não o demonstra! E visa escamotear com isso uma coisa muito simples: é que passámos de um sistema dualista, com segurança social e saúde pública, para um modelo constitucional que aponta para a prestação universal e integrada de cuidados de saúde, mas esse modelo não foi executado. É esta verdade nua, crua e quase elementar que creio que, apesar de tudo, vale a pena ter em conta quando se está a discutir esta matéria.

Na verdade, o nosso sistema, como os Srs. Deputados do PS sublinharam, é universal, geral e gratuito. Tiveram, aliás, o cuidado de enfatizar esse aspecto, que creio ser muito positivo. Está muito bem, mas há outros aspectos a realçar.

O primeiro é que não devemos esquecer que ele é apenas "quase universal" porque sabemos que há sectores da população que continuam fora dele e estão abrangidos por subsistemas. Estes continuam, como seja a ADSE com os seus quase 2 milhões de beneficiários e de familiares. Temos serviços privativos em diversas estruturas, incluindo em empresas pública, etc. Isto não pode ser esquecido. Portanto, o sistema não está realizado quanto a esse ponto.

O segundo é em relação ao carácter geral do sistema. É evidente que se tende a integrar num só serviço todas as actuações preventivas, curativas ou reabilitadoras. Porém, como sabem, isso também não está realizado: essa integração tem-se acentuado ao longo dos últimos anos, mas não está integralmente realizada.

O terceiro aspecto respeita à questão da gratuitidade. Sabemos que ela é tendencial, uma vez que em alguns cuidados primários há uma posição contributiva dos cidadãos e, portanto, há questões de apport diferenciado a colocar que, aliás, podem ser suscitadas mesmo face ao actual quadro institucional. É incorrecto descrever o sistema como sendo uma monstruosidade, uma gratuitidade "a granel", com cuidados e custos "absolutamente incomportáveis para o Estado", com os cidadãos "beneficiando justa e injustamente do mesmo tratamento quando deviam ter tratamento diferenciado". De facto, subsistem ainda desigualdades no acesso à saúde, situações de discrepância (que deveriam ser corrigidas face à Constituição e não desmantelando-a).

O outro aspecto é atinente à participação (que. o PSD quer suprimir, para governamentalizar a gestão hospitalar). Veja-se como suprime o actual n.° 4 do artigo 63.°

Além disso, é preciso não esquecer que este sistema constitucionalmente concebido não está em aplicação em todo o território nacional, pelo que há uma diferença ainda por cima geográfica. Como os Srs. Deputados sabe nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira tenho grandes dúvidas que se possa qualificar os sistemas em vigor como compatíveis com o modelo constitucional, o que quer dizer que temos uma situação extremamente anómala até deste ponto de vista.

Finalmente, importa aludir ao fenómeno anómalo decorrente do facto de a Lei do Serviço Nacional de Saúde não estar regulamentada, invertida, bloqueada de uma parte, subvertida na outra e desregulamentada no sentido pérfido numa outra parte. E é uma situação da maior gravidade.

Assim, pergundo ao PSD o seguinte: perante este quadro, como é que é possível acorrer ao apelo que fez no Plenário? VV. Exas. dizem que querem "um clima de diálogo", "a institucionalização de órgãos capazes de viabilizar esse diálogo" para "grandes alterações estruturais" no que respeita à revisão constitucional e à Lei de Bases do Serviço Nacional de Saúde. Pergunto: como é que são possíveis plataformas de entendimento entre os protagonistas da revisão constitucional se a proposta de plataforma do PSD é um antipopular contrato de adesão? Seria, de facto, um contrato de adesão a um projecto de revisão tendente à destruição do Serviço Nacional de Saúde. Não é uma alteração terminológica, mas sim uma destruição. Que contrato de adesão é que é possível nestas circunstâncias?

Devo dizer que, pela nossa parte, isso é totalmente impossível, mas também, já agora, gostaria de perguntar aos Srs. Deputados do PSD como é que encaram a proposta apresentada pelo PCP.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Luís Filipe Meneses, é agora a sua vez de usar da palavra, mas espero que aplique à duração da sua intervenção uma taxa moderadora.

O Sr. Luís Filipe Meneses (PSD): - Sr. Presidente, vou tentar ser mais breve do que os Srs. Deputados Almeida Santos e Sousa Tavares quando da última revisão da Constituição ...

O Sr. Presidente: - Falámos muito!...

O Sr. Luís Filipe Meneses (PSD): - ... e a propósito deste mesmo assunto em sede de Comissão.

O Sr. Deputado Ferraz de Abreu, na alocução proferida a propósito do direito à saúde e do papel do Estado nessa área, considerou também que, dadas as condições actuais da problemática da saúde, tal papel deve ser preponderante. Em nossa opinião, isso está, aliás, salvaguardado quando mantemos o n.° 1 do artigo 64.° e algumas das alíneas do n.° 3.

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Quanto ao facto de V. Exa. ter comentado a minha afirmação de que a iniciativa privada poderia ter um papel importante e ser até, em muitos casos, mais eficaz na área dos cuidados primários, entendeu, obviamente, que eu excluía a medicina preventiva e a saúde pública quanto aos cuidados primários. Referia-me, naturalmente, aos cuidados primários de ambulatório do tipo de consultas de clínica geral e algumas consultas de especialidade.

Quanto aos exemplos que V. Exa. deu de corrupção efectiva, nomeadamente quando se inviabilize o funcionamento de determinados serviços públicos e se é, ao mesmo tempo, prestador desses mesmos cuidados nos serviços privados, canalizando-se para aí os doentes, devo dizer que ambos sabemos que em alguns casos isso acontece. Penso que algumas das medidas legislativas recentes e certos princípios defendidos pelo PSD sobre, por exemplo, a colocação de grande parte dos prestadores de cuidados, particularmente os médicos, em exclusividade de funções nos hospitais, através da mudança do seu estatuto e da aplicação do estatuto remuneratório correcto, irão evitar esse tipo de fenómenos.

O Sr. Deputado João Rui de Almeida colocou a questão dos seguros de doença e admitiu que eu desconheceria o que seriam tais seguros. Devo dizer-lhe que tive a experiência pessoal de trabalhar num país onde existiam seguros de doença. É evidente que há vários tipos de seguros de doença. O tipo de modelo que V. Exa. descreveu é prevalecente, por exemplo, nos Estados Unidos da América ...

O Sr. João Rui de Almeida (PS): - Em França, por exemplo!

O Sr. Luís Filipe Meneses (PSD): - Desculpe, mas aí não! V. Exa. desconhece que em França o Estado assegura uma percentagem significativa - em alguns casos quase a totalidade, para determinados grupos sociais a totalidade e para a generalidade dos cidadãos uma percentagem importante que ronda quase sempre os 75% a 80% - do pagamento das prestações. Acontece, então, que o seguro de doença é só para os estratos sociais aos quais não é assegurada a gratuitidade total, para suprir os 10% ou 15% que o Estado não paga. É exactamente isto o que acontece em França e em outros países da Europa.

O Sr. João Rui de Almeida (PS): - Quem mais paga ...

O Sr. Luís Filipe Meneses (PSD): - É evidente que sim, Sr. Deputado. V. Exa. pode exigir, por exemplo, que seja internado no Hotel Sheraton ...

No entanto, para todos os efeitos, o modelo que defendemos prevê a gratuitidade para os estratos sociais economicamente débeis e para os sectores da população mais carenciados de cuidados de saúde.

O Sr. João Rui de Almeida (PS): - Quer isso dizer que esses não têm de fazer seguro de doença?

O Sr. Luís Filipe Meneses (PSD): - Obviamente que não têm de o fazer! Aliás, nunca pusemos isso em causa. De facto, o que queremos é o abrir determinadas válvulas de escape no sistema, ou seja, que possam vir contributos pecuniários diversos - o seguro de doença é uma modalidade - de estratos da população que, através das suas especificidades sócio-económicas, podem vir a suplementar as verbas globais da saúde. É, e sempre foi, esta a nossa filosofia.

O Sr. João Rui de Almeida (PS): - Desculpe, Sr. Deputado, mas tem toda a pertinência a pergunta que colocámos. No fundo, VV. Exas. vão propor para uns o SNS e para outros os seguros privados. Não é isso o que VV. Exas. preconizam?

O Sr. Luís Filipe Meneses (PSD): - Não estamos a propor dois sistemas, mas um único sistema. Aliás, o seguro de doença não é a única alternativa de financiamentos alternativos ao serviço de saúde. Não é a única, mas é perfeitamente possível, e não vejo que tipo de perversão possa existir nisto. O Sr. Deputado sabe muito bem que há países em que, durante largos anos, governos ideologicamente identificados com o seu partido preconizaram, e mantiveram, sistemas semelhantes. Foi o que aconteceu, por exemplo, na própria França.

O Sr. João Rui de Almeida (PS): - Sr. Deputado Luís Filipe Meneses, não há nenhum país que tenha um serviço nacional de saúde só para uns e um sistema de seguro de doença para outros. Ou é para todos ou, então, a confusão ainda é maior.

O Sr. Luís Filipe Meneses (PSD): - Sr. Deputado, há vários países europeus, como a França, em que o Estado assegura a gratuitidade aos estratos sociais mais débeis e uma prestação que quase se aproxima da gratuitidade - porque faculta 70% a 80% do pagamento dos cuidados médicos - à generalidade da população. O seguro de doença só existe para quem o quer fazer e para complementar esse pequeno diferencial entre os 70% e os 100%. Não vejo por que razão os senhores fazem contra isto numa cruzada.

O Sr. Presidente: - Se for assim...

O Sr. Luís Filipe Meneses (PS) - Pelo menos é essa a perspectiva. O PSD defende estetipo de alterantivas, e é essa a minha perspectiva.

Em relação às considerações produzidas pelo Sr. Deputado Vidigal Amaro, eu já tinha feito, previamente, os meus comentários.

Sr. Deputado Vera Jardim, quanto ao facto de o Sr. Deputado considerar a nossa argumentação como pouco válida, no sentido de que hoje gastamos uma percentagem do produto interno bruto (PIB) equivalente à que países com sistemas de saúde semelhantes ao nosso gastavam quando tinham um rendimento equivalente ao que hoje temos, considero que, levada ao extremo, a comparação será demagógica, mas que o contrário também o é. Sei, evidentemente, que houve um alargamento das responsabilidades do Estado através de conquistas sociais óbvias dos cidadãos e que o aumento de custos e muitas outras coisas fazem com que a comparação não possa ser feita liminarmente. Mas é também evidente que a situação económica portuguesa é aquela que o Sr. Deputado bem conhece, e não quero cometer a demagogia de comparar os ratios dos últimos dez anos e constatar que, por exemplo, foi

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um governo em que o Ministro da Saúde era socialista que teve a ratio mais baixo do PIDR. Não cometo essa injustiça porque conheço bem qual a situação económica da época e como nessa época se vivia.

Em relação à questão dos incentivos e de qual o seu tipo, penso que também nesta matéria o importante é criar as condições para que as tais válvulas de escape do sistema funcionem. Não me parece que seja muito importante estar aqui a explicar ao pormenor que tipo de incentivos podem ser criados e não vejo nada de mal em se criar determinado tipo de incentivos fiscais. No entanto, a razão da proposta é, pura e simplesmente, a de criar as tais válvulas de escape para o sistema, tanto quanto possível somando pequenos "nadas" e embaratecendo-o no sentido de o viabilizar. É esse o sentido da nossa proposta.

Quanto às considerações do Sr. Deputado José Magalhães, é bom que fique registada em acta uma questão.

O Sr. Deputado José Magalhães atirou-se violentamente aos subsistemas de saúde. Entendo que os subsistemas devem existir, embora tenham de ser regulamentados, pois não faz sentido que. globalmente, os seus gastos se possam somar aos gastos dos mesmos cidadãos no Serviço Nacional de Saúde, que é o que acontece actualmente. Há uma duplicação de benefícios, o que é uma profunda injustiça social. No entanto, quero lembrar que, em declarações recentes, o PCP - que hoje faz parte da direcção do Sindicato dos Bancários do Sul - se manifestou encarniçadamente em defesa dos Serviços de Assistência Médico-Social (SAMS), que é o subsistema mais caro que temos em Portugal, quatro vezes mais caro, em valores actuais, do que, por exemplo, o sistema da ADSE. Se há aqui contradição, é do PCP, que, ao sabor da conjuntura, vai defendendo uma ou outra posição. Não é a nossa.

O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado José Magalhães pediu um intervalo de dez minutos. Srs. Deputados, está suspensa a reunião.

Eram 18 horas e 5 minutos.

Entretanto, reassumiu a presidência o Sr. Presidente Rui Machete.

O Sr. Presidente (Rui Machete): - Srs. Deputados, está reaberta a reunião.

Eram 18 horas e 45 minutos.

Srs. Deputados, iremos tratar do artigo 65.°, relativo ao direito à habitação. Nesta matéria, existe uma proposta de substituição dos n.ºs 1 e 2 e ainda uma proposta de eliminação dos n.ºs 3 e 4, apresentadas pelo CDS; o PCP propõe o aditamento de uma alínea d) ao n.° 2; o PS propõe a substituição da alínea b) do n.° 2 e o aditamento, na alínea c) do mesmo número, de um inciso que diz "e o acesso a habitação própria", propondo ainda a substituição do n.° 3 e um inciso para o n.° 4; o PSD propõe a eliminação do n.° 4 e, no seu projecto, a Sra. Deputada Helena Roseta propõe o aditamento de uma nova alínea d) ao n.° 2; o PEV propõe a substituição da alínea a) do n.° 2. Esta é a resenha das alterações propostas.

Como o CDS não se encontra aqui representado neste momento, tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Trata-se, tão-só, de fazer um aditamento que visa precisar como incumbência do Estado aquela que consistiria em estabelecer um determinado regime de arrendamento urbano. Um regime susceptível de garantir determinados valores que o preceito enuncia, sendo eles a estabilidade do arrendamento e outros legítimos interesses do inquilino. Há da nossa parte uma preocupação especial com a situação jurídica dos filhos menores, dos idosos e dos deficientes e, por outro lado, a preocupação de que exista uma intervenção pública que permita, em determinadas situações, evitar o despejo daqueles que, por razões de insuficiência económica, se vejam impossibilitados de pagar a renda nas condições contratuais que estejam em vigor. Não se visa, em rigor, com este último segmento normativo a instituição de qualquer coisa que não exista, pois, como os Srs. Deputados sabem, foi instituído e sofreu evoluções um sistema de atribuição de subsídios por insuficiência económica, quer para obviar ao aumento extraordinário das rendas, quer para situações que venham a verificar-se no curso normal de execução dos contratos de arrendamento urbano.

As críticas que dirigimos a esse sistema e a essa operação política são conhecidas e dou-as por reproduzidas. Não se trata de transpor para o texto constitucional a polémica sobre o concreto sistema normativo que num determinado momento histórico foi instituído, mas tão-só de admitir, como regra constitucional, uma responsabilidade pública em impedir o despejo daqueles que, por razões de insuficiência económica - que a lei tem de qualificar, definir e tipificar -, não possam pagar renda.

Quanto ao primeiro segmento desta norma que propomos, ele é um lugar paralelo da norma constitucional já existente em relação ao arrendamento rural. Como os Srs. Deputados se recordarão, a Constituição estabelece regras quanto a esse ponto e não creio que seja menos relevante estabelecê-las em relação ao arrendamento urbano. A Constituição, como sabem, no n.° 3 do artigo 65.°, estabelece, como obrigação do Estado, a de adoptar uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar - é a opção por um sistema de renda rendimento. Trata-se, pois, de acrescentar ao conteúdo constitucional vigente, com as vicissitudes que todos conhecem, uma outra componente que o adense, o densifique, em suma, que o enriqueça.

Não fomos excessivos, nem creio que perdulários, na qualificação desse regime. A noção de estabilidade é suficientemente complacente, embora tenha um sentido e um conteúdo normativo que os Srs. Deputados não ignoram. A noção de legítimo interesse é susceptível das qualificações jurídicas sabidas. Não é uma norma que, em termos de malha vinculativa, possa ser encarada como temível - obviamente, não pretendo, também, desvalorizar a proposta que foi apresentada pelo PCP -, e entendemos que a sua conservação seria um reforço da tutela constitucional dos direitos dos inquilinos que nos mereceria apreço.

É este, Sr. Presidente, o sentido fundamental da proposta do PCP.

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Quanto à questão da protecção especial dos filhos menores, das pessoas idosas e dos deficientes, como os Srs. Deputados sabem, há já afloramentos no nosso direito civil desta preocupação de uma certa margem de protecção para esses cidadãos. Essa protecção pode, obviamente, ser alargada, não deve, em nosso entender, ser diminuída. A constitucionalização de uma norma deste tipo seria, evidentemente, um reforço da tutela legalmente obrigatória, com os limites e o sentido que decorre da sede e da economia que caracteriza o preceito que propusemos.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - A nossa posição é muito clara.

Em primeiro lugar, na alínea c) do n.° 2, fazemos uma referência à autoconstrução, que é um conceito que pode contribuir - não mais do que isso! - para a solução do problema da habitação. Na alínea b), limitámo-nos a fundir, numa só alínea, o estímulo à construção privada e o acesso à habitação própria, não havendo novidade em relação ao que já é. No n.° 2, propomos algo de muito semelhante ao que propõe, no fim da sua alínea d), o PCP, ou seja, um subsídio de renda para as famílias de menores recursos, tratando-se da constitucionalização do que já consta da Lei das Rendas por iniciativa do meu próprio partido, se não de mim mesmo.

Acho a nossa formulação - e o PCP não levará a mal - francamente melhor do que a do PCP, na medida em que a proposta do PCP propõe que se subsidiem as pessoas que, por insuficiência de meios, não possam pagar renda, referindo-se na nossa proposta uma adequação às possibilidades económicas, ficando assim também em aberto a possibilidade de um subsídio parcial. Embora este não esteja excluído da redacção proposta pelo PCP, penso que a nossa contempla melhor esta hipótese. Substituímos as referências às nacionalizações ou às municipalizações pela expressão "expropriação", porque nos parece que, nesta sede, o instituto que funciona como regra - e dificilmente poderá ser de outra maneira - é, efectivamente, a expropriação.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Presidente, o projecto do PSD mantém a redacção dos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 65.° e elimina o n.° 4 do mesmo artigo. As razões por que este n.° 4 é eliminado no nosso projecto obedecem, sobretudo, a uma preocupação de afastamento de alguma equivocidade de certas expressões aí contidas e mesmo da dificuldade de determinação de certos termos que se demonstra na própria variedade de propostas relativas a esse número.

Por exemplo, quando, no n.° 4, se fala em controle efectivo, em que sentido é que é referido esse controle? É no sentido da alínea a), quando se atribui ao Estado o dever de programar e executar uma política de habitação inserida em planos de reordenamento geral do território? Isto é, é um controle decorrente, naturalmente, de um certo planeamento em sentido amplo? Ou, mais do que isso, este controle pode significar um certo esbatimento da própria liberdade contratual, operado por via da intervenção do Estado no âmbito do parque imobiliário? Esse é o primeiro aspecto de ambiguidade que parece resultar da interpretação do n.° 4.

Mas há mais: por exemplo, a redacção contida no mesmo número, que diz "procederão à necessária nacionalização e municipalização dos solos urbanos", faz pensar numa certa relação de causa e efeito entre o controle efectivo e a nacionalização e municipalização. Dá a impressão de que a nacionalização e a municipalização são mais do que um meio necessário, eventual, ou seja, são um meio obrigatório e uma espécie de conditio da própria interferência e controle do Estado no parque imobiliário. Parece-nos que, a ser assim, essa expressão mais carece de ser afastada do que de ser mantida.

Há, também, outros termos que se tornam controversos face a uma conjugação do artigo 65.° com a própria Constituição no seu todo. Por exemplo, o termo aqui deveria ser "nacionalização" ou "expropriação"? Há quem entenda que a expressão "nacionalização" tem aqui um sentido verdadeiro e próprio, enquanto, por exemplo, o PS já propõe referir aqui "expropriação" em vez da expressão "nacionalização". Mas, seja qual for a conclusão a que se chegue na determinação do termo acertado, uma coisa é certa: no n.° 4, a Constituição aponta, originariamente, isto é, em sede própria, para as expropriações - neste caso para a nacionalização e municipalização -, em vez de o remeter para a lei.

Parece-nos haver aqui um adiantamento relativamente àquilo que se consagra no n.° 2 do artigo 62.°, quando a expropriação e as condições em que esta é operada são, de certo modo, remetidas para a lei e ao próprio artigo 82.°, em que o regime da nacionalização é, também ele, devolvido ao legislador ordinário. A questão que aqui se põe é a seguinte: este regime de nacionalização, operado por uma ordem originária da Constituição, é o mesmo regime dos artigos que referi? Ou, neste caso, tratar-se-á de um mecanismo expropriatório que abrange mais do que aquela permissão genérica da Constituição de expropriação por utilidade pública? Ou seja, é isto uma ordem que vai para além do âmbito da própria utilidade pública? E, nesse sentido, qual é o seu alcance?

Parece-me que resulta assim um conjunto de equívocos que o PSD pretende evitar pela eliminação, não o fazendo, no entanto, numa atitude simplista. De facto, o que aqui se contém de necessário resulta, por exemplo, da alínea a) do n.° 2, quando se refere a programação e execução de uma política de habitação pelo Estado, no sentido de assegurar, efectivamente, o direito à habitação. São, portanto, exactamente estas as questões que se colocam e que, do nosso ponto de vista, justificam que o n.° 4 seja afastado, sem haver um prejuízo ou um défice de conteúdo daquilo que o artigo 65.° pretende contemplar.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.

O Sr. Raul Castro (ID): - Sr. Presidente, relativamente ao projecto do PCP, pensamos que o contrato de arrendamento, sem deixar de ser um contrato, é um contrato com características muito especiais, pois assenta numa relação social em que os contraentes não

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se acham normalmente em condições de igualdade. Não quer dizer que isso suceda sempre, mas, por via de regra, o que acontece é que corresponde ao arrendatário uma situação de menor capacidade económica. Daí que, como já foi referido pelo Sr. Deputado José Magalhães, já existam no direito civil alguns afloramentos de uma certa protecção aos arrendatários, nomeadamente quanto aos idosos e também aos subsídios ao pagamento de renda.

Penso que o projecto do PCP, nesta parte, tem em conta estas características: a relação social específica que caracteriza o contrato de arrendamento e a necessidade de introduzir algumas medidas que completem as que já estão previstas na legislação civil e que se destinam a garantir e defender os interesses do arrendatário.

No que diz respeito ao projecto do PS, e relativamente à alínea b), penso que a única alteração consiste na expressão "cooperativas de construção e a auto-construção", invertendo-se, pois, em relação ao texto actual, a ordem das palavras. De qualquer forma, isso poderá corresponder a uma ideia de valorização das cooperativas de construção - não sei ao certo se é essa efectivamente a ideia do PS. Penso que a auto construção é algo - já no próprio texto constitucional o era - que tem em vista em especial a construção de habitações sociais no que diz respeito a associações de moradores. Esse é um exemplo característico de auto construção (naturalmente que não é apenas esse, mas é um dos exemplos). Fica por entender mais claramente a razão de ser desta troca, porque ela já constava da actual alínea b) da Constituição. . Em relação ao n.° 4 proposto pelo PS, a questão é bastante mais complicada. Efectivamente, parece-nos que não há paralelismo entre expropriação e nacionalização ou municipalização. "Expropriação" é um meio de levar a cabo a municipalização de solos urbanos, mas o objectivo de uma política autárquica é a "municipalização". Não me parece, pois, que tais expressões sejam equivalentes, que se possa trocar aquilo que está actualmente na Constituição pela palavra "expropriações", porque existem expropriações que são instrumentos para atingir a municipalização dos solos urbanos.

No que diz respeito à proposta do PSD, referiria, em primeiro lugar, contra a repetida afirmação, por parte do PSD, da sua preocupação com o poder local, que aqui, mais uma vez, se retiram poderes ao poder local. Na realidade, o n.° 4, que o PSD pretende eliminar, atribuía às autarquias locais, além do Estado, uma função que, a vingar esta proposta do PSD, desapareceria. As autarquias locais deixariam de ter o poder que actualmente a Constituição lhes confere, que é o do controle do parque imobiliário. Mas controle como? O que é que esta ideia pode ter de não aceitável para ser eliminada da Constituição? Naturalmente que tal controle passa até, quanto ao parque imobiliário, por exemplo, pelo papel importante que as autarquias podem ter na travagem da especulação imobiliária. É sabido que muitas vezes as autarquias procedem à venda de terrenos municipais, o que funciona como instrumento de travagem da especulação; funciona, ou deve funcionar - excepto quando essa finalidade é defraudada -, como meio de travar a especulação imobiliária. Daí que não possamos aceitar a eliminação proposta, porque não só se amputariam as autarquias locais dos poderes que actualmente lhes estão cometidos, como ainda está em causa algo que se afigura como um dos aspectos mais importantes da actividade autárquica no que diz respeito à municipalização dos solos urbanos, porquanto o próprio problema da habitação está estreitamente dependente do problema dos solos. Hoje, através de formas variadas, como, por exemplo, cooperativas de habitação ou associações de moradores, já é possível, de algum modo, mediante subsídios ou a concessão de taxas de juro mais baixas para a aquisição de casa própria, uma intervenção no domínio da construção, mas fica sempre de fora o problema do terreno, que continua a ser um problema muito difícil de ultrapassar - muito difícil se as autarquias locais não tiverem controle, controle que incide também no próprio direito de superfície. Sabemos que tem sido utilizada, nomeadamente em algumas autarquias importantes do nosso país, a concessão do direito de superfície como forma de possibilitar a construção de habitações sociais. Aqui está um dos aspectos da intervenção das autarquias locais que o n.° 4 do artigo 65.° permite. A ser retirada tal norma, como o projecto do PSD propõe, iria naturalmente inibir-se o exercício daquela função.

Por todas estas razões, temos uma posição de discordância em relação à proposta do PSD e aguardamos explicações em relação à do PS.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Ramos.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Quero, fundamentalmente, colocar uma questão ao Sr. Deputado José Magalhães. E não me vou deter muito na natureza do direito de arrendamento, se é propriamente um direito real ou um direito de natureza obrigacional. Não vou por aí. O facto é que, por um facto ou por outro, o direito de arrendamento, no seu conteúdo concreto, está estabelecido na lei, nomeadamente na lei civil.

Para além do que já disse, quais as razões para falar aqui em estabilidade do arrendamento urbano? Qual a natureza de ser desta questão? Estabilidade é impedir-se que, se houver violação das obrigações dos inquilinos, possa haver uma rescisão do contrato de arrendamento ou mesmo a interposição em tribunal de uma acção de despejo? Existiria uma estabilidade do contrato de arrendamento para além daquilo que tem sido permitido na lei? Revestir-se-iam de uma couraça de imutabilidade os direitos do arrendatário? É essa a intenção ou não? O que é que se quer dizer com "estabilidade do contrato de arrendamento"? De facto, estabilidade a se hoje em dia existe, em sede de direito de arrendamento. Dizer-se aqui da maneira que se diz pode ser entendido que o direito de arrendamento é adquirido e depois disso nada se pode fazer, a não ser que uma causa voluntária por parte do inquilino surja para que haja rescisão do contrato de arrendamento. Portanto, quais são as intenções concretas, em termos de se propor, como consagração constitucional, a questão da estabilidade do contrato de arrendamento?

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Roque.

O Sr. Luís Roque (PCP): - Falar de alterações ao artigo 65.° da Constituição, no que se refere concretamente à habitação, é um pouco complexo, porque nada disto tem sido cumprido.

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Efectivamente, as políticas prosseguidas pelos últimos governos não têm cumprido minimamente o preceituado na Constituição. Podemos ver um acréscimo em relação à promoção directa, um acréscimo em relação às cooperativas, mas também temos de atentar no contraponto. É que, em relação às cooperativas, deixou de se fazer o empréstimo colectivo e passou-se a fazer o empréstimo individual, o que ocasionou rupturas de vários tipos. A falta de ligação do cooperante à cooperativa originou a falta de equipamento social, que se tentou colmatar com a Portaria n.° 302/88, a qual pretendeu atribuir um subsídio de 5% do valor total do empréstimo para equipamento social, mas não resolveu minimamente o problema da habitação. Há toda uma camada da população que, devido ao empréstimo individual, não tem acesso à habitação. E tudo isto porquê? Porque, a partir do momento em que existe um contrato individual, o empréstimo pelo Governo é concedido só para a construção, o que significa que cada um dos cooperantes, a seguir, vai ao banco e faz o seu contrato individual. Portanto, só terão acesso a isso as camadas da população que efectivamente o teriam em promoção directa, simplesmente a mais baixos custos de construção. É um problema grave, porque vai deixar grandes camadas da população sem habitação - é o que já se está a verificar - e não resolve o problema da maioria das populações do interior, de baixos rendimentos.

Tudo isto vem a propósito da supressão do n.° 4, proposta pelo PSD. É evidente que a política de habitação não pode estar desligada da política de solos. Se a política de habitação já é má, mau seria se não houvesse controle, por parte dos municípios, por parte do Estado, dos solos. Ainda para mais depois de ter sido publicado o regulamento do PROT, que obriga à regulamentação dos planos directores municipais, (PDMs). Então isto seria uma "bagunçada"; os regulamentos não serviriam para nada, pois a interferência quer da parte do município quer da parte do Estado não seria nenhuma. As leis só existiriam para não se cumprirem, porque isto conduziria, como já está a conduzir, à especulação dos solos. E posso dizer a VV. Exas. que, em relação ao custo da construção de um empreendimento cooperativo em termos de infra-estruturas, neste momento 30% a 40% são onerados com os solos, já que as câmaras municipais tendem a dar os piores solos às cooperativas. Retirar isto da lei seria muito mau e poderia até prejudicar e encarecer brutalmente a habitação. Se já só certa camada da população - a camada média - tem acesso às cooperativas de habitação, imagino o desastre que seria com a eliminação desta norma, porque os municípios não teriam controle absolutamente nenhum!

Em relação ao n.° 3 proposto pelo PS - "o Estado adoptará um sistema de renda compatível com o rendimento familiar, nomeadamente instituindo um subsídio de renda para as famílias de menores recursos" -, diria que, se está constituído, nunca funcionou.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Funcionou mal, mas funcionou.

O Sr. Luís Roque (PCP): - Se virmos bem, em termos de percentagem, nem 20% da verba prevista foi concedida.

Parece-me, no entanto, que a vossa proposta é menos abrangente do que a nossa alínea d) ad n.° 2. A ideia é a mesma, mas a nossa proposta é mais abrangente; fala em casos particulares e, na generalidade, protege certos casos particulares.

O Sr. Almeida Santos (PS): - ... Casos em que não possam pagar a renda, e a nossa abrange mais claramente os que só podem pagar uma parte; era só isso que eu queria dizer. De resto, a ideia é a mesma.

O Sr. Luís Roque (PCP): - Temos de contar com uma grande parte da população, especialmente das zonas rurais do interior, que ainda são grande parte do País. É que não podemos pensar apenas em Lisboa ou no Porto. E estas leis, em termos de habitação, ultimamente têm sido dirigidas aos grandes centros urbanos - reconhecemos isso -, nos quais há uma grande capacidade de endividamento das câmaras, que, através da "lei 50 + 50", podem permitir-se praticar renda social, o que não acontece nos concelhos do interior. O problema reside nestes últimos. É por isso mesmo que consideramos a nossa proposta mais abrangente. Mas, no fundo, o sentido é-o mesmo.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Era só para dizer o seguinte: pareceu-me que, mais uma vez, nos vemos colocados entre dois fogos. É uma das nossas fatalidades. A Sra. Deputada Assunção Esteves acusa-nos de manter a ideia de expropriação. O Sr. Deputado Raul Castro diz que não são a mesma coisa expropriação, nacionalização e municipalização. Eu sei que não é a mesma coisa. Uma coisa é o meio, outra é o fim. Que esta é um dos meios de atingir esse fim.

Em relação à municipalização, parece-me que é o único meio. Não sei se existe outro meio de municipalizar que não seja a expropriação por utilidade pública.

Em relação à nacionalização não é assim; pode haver uma nacionalização directa. Mas nós sabemos que a ideia de nacionalização ganhou uma tal carga mítica que, se queremos que não se faça nada, é pôr cá a palavra "nacionalização". Nós queremos o resultado, o que não queremos é a carga que está ligada ao resultado. Por isso referimos o meio que nos permite chegar ao resultado.

Acho que não se pode banir deste artigo a única referência à intervenção das autarquias. É o que o PSD faz, a meu ver mal. Vamos pôr fora do problema da habitação a única referência constitucional ao papel das autarquias? De maneira nenhuma! E como é que podem as câmaras deixar, e o Estado deixar de ter, expressamente permitido na Constituição o controle do parque imobiliário. Queremos ainda mais bagunça do que tem havido, em que cada um constrói onde quer, como quer, com a cor berrante que quer...

O Sr. Presidente: - Com este magnífico n.° 4, é claro!

O Sr. Almeida Santos (PS): - Apesar de tudo, com este magnífico n.° 4. Que aconteceria se o tirássemos de cá? Era mesmo o ad libitum, o construam onde quiserem; onde constróem as cegonhas; cada um faça o

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que quiser, que não há nada que o impeça. As normas constitucionais nem sempre são cem por cento eficazes, mas, por serem pouco eficazes, vamos deitar fora a sua eficácia residual? Nós entenderíamos que as críticas da Sra. Deputada Assunção Esteves, relativamente à menção da nacionalização e municipalização, podemos dá-las por elemento do passado, na medida em que propomos uma solução que, supomos, provoca menos resistência. Mas a referência à expropriação, neste caso, é uma lembrança necessária, um instrumento fundamental. Não pareça que, quando nós eliminamos "nacionalização e municipalização" sem cá pormos "expropriação", não queremos mesmo que se recorra à expropriação quando se revele necessária e nos termos que forem definidos pela lei, como é óbvio.

Dito isto, penso que, relativamente à proposta do PCP, o que VV. Exas. querem são estrelas polares. Nisso estou de acordo. É bom que a Constituição consagre direcções, estrelas polares. Compreendo isso. Mas compreendo mal um apelo à estabilidade de um contrato sinalagmático, um contrato em que há recíprocos direitos e obrigações, em que duas partes têm que equilibrar as suas vontades. Os legítimos interesses do inquilino expressam um "favor" a favor do inquilino. Queremos mesmo que a iniciativa privada deixe de construir casas para arrendamento? Mais uma vez levanto esse problema. Se não queremos, temos de criar algum estímulo, não devemos banir todos os estímulos.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não se trata de inovar em absoluto. A questão é que aditemos constitucionalmente cláusulas que possam dar cobertura, que possam corroborar, estabilizar, no sentido adequado, algumas coisas que, não sendo novas (existem na lei), são virtuosas. Mas, como se sabe, podem deixar de o ser, uma vez que estão na disponibilidade do legislador ordinário.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Suponha que, amanhã, o Estado, para estimular a construção civil por privados, não para vender mas para arrendar, estabelece: "Quem toma conta dos arrendamentos de pessoas idosas com mais de 65 anos sou eu. Mas façam o favor de recuperar a liberdade de despejo em todos os casos." Suponha esta situação. Isso impedia...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Impediria? Não, se o Sr. Deputado me diz que esse sistema seria substituído por um outro em que o Estado assumiria as responsabilidades de garantia da habitação...

O Sr. Almeida Santos (PS): - "Um regime de arrendamento", diz o PCP, "que proteja as pessoas idosas". O Estado pode dizer, amanhã, que para se manter o regime de arrendamento no equilíbrio das prestações, ele próprio, Estado, tomará a seu cargo o direito à habitação das pessoas idosas.

Quer dizer, nem tudo se pode pôr na Constituição. Sou contra as formulações demasiado esmiuçadas porque, às tantas, a Constituição está a desempenhar o papel da lei ordinária. E nós podemos mudar a lei ordinária todos os meses, não a Constituição.

Devo dizer que na lei do arrendamento - de que fui um dos co-autores e que defendi no Parlamento - fomos, creio eu, tímidos no estímulo ao equilíbrio das prestações e na previsão da assunção, pelo Estado, de obrigações sociais neste domínio. Se se pretende a construção privada para arrendamento, tem o próprio Estado de assumir encargos que, até hoje, não se tem revelado disposto a assumir. Ninguém é obrigado a arrendar nem a construir para arrendar. Ou se criam estímulos ou adeus construção para arrendamento. E, se é isso que se pretende, estas medidas são boas. Acho as estrelas polares excelentes, mas talvez não sejam próprias da Constituição uma pormenorização e um esmiuçamento a este ponto.

(Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras finais do orador.)

O Sr. Presidente: - Tendo-me inscrito para intervir, pretendia, em primeiro lugar, louvar-me pelo que o Sr. Deputado Luís Roque referiu. Quer dizer, talvez eu não fosse capaz de fazer uma melhor defesa acerca da ineficácia da norma do n.° 4. O Sr. Deputado Luís Roque foi inclusivamente ao ponto de dizer - com o que estou de acordo e subscrevo - que os municípios dão às cooperativas os piores sítios. Donde se revela que, apesar deste magnífico n.° 4, as coisas não correm no melhor dos mundos. Penso que, porventura de uma maneira inadvertida, o Sr. Deputado Luís Roque fez o elogio da proposta do PSD. Porque o problema não se põe e, salvo o devido respeito - é a terceira ou quarta vez que digo isto -, não estamos a fazer legislação ordinária. A circunstância de aqui não se dizer que o Estado e as autarquias locais não podem expropriar, o facto de aqui não se mencionar que podem expropriar não significa que não possam expropriar.

Com isto, pretendia fazer uma observação aos comentários do Sr. Deputado Raul Castro. É evidente que não estamos a tocar no estatuto das autarquias locais nesta sede, nem é esse o significado. Aliás - e a Sra. Deputada Assunção Esteves teve a oportunidade de o dizer muito claramente -, quando na alínea a) do n.° 2 se fala em "programar e executar uma política de habitação inserida em planos de reordenamento geral do território", esses poderes, como é óbvio, já existem aí. Mas vou mesmo ao ponto de dizer que, se se considera - como o parece fazer o PS - ser extremamente importante e necessário consigná-lo expressamente, não vejo que a circunstância de não o fazer seja impeditiva da existência de um direito de expropriação por parte do Estado e dos municípios. Parece-me que isto é claro. Mas não nos repugna que tal venha a ser inserido se, porventura por razões de ordem histórica - na medida em que estava aqui consagrado e que agora é suprimido -, se considere necessária essa inserção.

O problema do n.° 4 surge também por uma razão histórica: VV. Exas. lembrar-se-ão de que este controle das autarquias locais e do Estado teve consagração numa lei. O Sr. Deputado Almeida Santos referiu que ninguém tem o dever de arrendar, mas a referida lei obrigava a arrendar. E este controle pode obrigar a esse tipo de arrendamento ou pode indiciar esse tipo de obrigação. Ora é isso que nós não desejamos. Não é tão abstruso como isso porque, como V. Exa. se recordará, uma lei de um governo provisório explicitava justamente que se as casas devolutas constantes de uma listagem não fossem arrendadas num prazo x, deveriam ser objecto de expropriação.

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O Sr. António Vitorino (PS): - Mas antes da Constituição.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Antes da Constituição. Aliás, a própria Constituição veio impor não o arrendamento compulsivo, como propomos agora, mas a expropriação sem indemnização das terras abandonadas. Não vejo razão para a Constituição consagrar isto quanto às terras, nem para ser considerada assim tão abstrusa a medida do arrendamento compulsivo de casas abandonadas, nas condições de tempo e modo em que foi votada. De facto, na altura - é necessário ver como é que historicamente surgem as coisas - assistia-se a um fenómeno de ocupação indiscriminada de casas vazias, sem resistência do Estado.

O Sr. Presidente: - É um mal menor.

O Sr. Almeida Santos (PS): - E nós ou consentíamos numa guerra social sem quartel, ou arranjávamos uma formulação, de que fui, de facto, um dos responsáveis. Mas responsabilizassem-me com referência à conjuntura de então, não à de hoje.

O Sr. Presidente: - Mas é por isso mesmo que hoje estamos a propor outras normas, Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - A solução encontrada foi uma solução de mal menor face a uma calamidade que estava a assumir proporções incríveis. Nessa altura, disse-se: "Notifique-se o senhorio para fazer o arrendamento. Não arrenda? Então o Estado obriga-o a arrendar!" E assim o Estado arrendava pelo senhorio, segundo um sistema da renda pretensamente justa, embora de facto nem sempre o fosse. Solução, de resto, menos violenta do que aquilo que a Constituição estabelece para os terrenos abandonados.

O Sr. Presidente: - Lá iremos aos terrenos abandonados ...

O Sr. Almeida Santos (PS): - O facto de um terreno não produzir é mau para a economia geral. Mas não mata ninguém. Porém, o facto de uma pessoa ficar na rua com filhos menores, sobretudo se doentes, pode matar.

O Sr. Presidente: - É, Sr. Deputado, mas o problema, extremamente importante como o Sr. Deputado há pouco reconheceu, é que com a legislação inaugurada pelo chamado Estado Novo - legislação de estabilização do arrendamento que não tinha em conta os diversos interesses em causa - acabou por se chegar, devido aos chamados efeitos perversos, a resultados dramáticos em matéria de construção de casas.

O Sr. Almeida Santos (PS): - E eu não sei?

O Sr. Presidente: - Eu sei que sabe. Por isso mesmo me permito lembrar. E portanto é esse tipo de considerações, para além do pendor intervencionista e colectivista que o n.° 4 indicia, que pretendemos ver banido.

Mas, se V. Exa. me diz que o Estado não vai necessitar de ter uma política de solos - que na verdade não tem tido -, que não vai necessitar de expropriar em determinados casos usando de um direito que existe não apenas nesta matéria mas também noutras, responder-lhe-ei com certeza afirmativamente. Mas não é o problema de estar ou não consignado no n.° 4 que impede que assim aconteça. Mas caso seja suficientemente importante, estamos dispostos a, nessa matéria, considerar o problema, porque não é essa a zona do n.° 4 que nos preocupa.

De facto, o que nos preocupa é a ideia do tipo de controle do parque imobiliário, exactamente pelas razões contrárias àquelas que o Sr. Deputado Raul Castro há pouco apontou, como é óbvio, e, por outro lado, as expressões "municipalização e nacionalização". Gostaria também de recordar que a municipalização pode ser, do ponto de vista jurídico, um tipo idêntico à nacionalização, isto é, uma expropriação feita a favor dos municípios. Mas não é propriamente uma expropriação ou, se quiserem, é uma expropriação generalizada como é a nacionalização, visto tratar-se de institutos intimamente aparentados. É esse o problema que colocamos e não o de haver um direito de expropriação.

Por outro lado, gostaria também de dizer que o problema do poder local não pode reconduzir-se a ter aqui neste n.° 4 do artigo 65.° uma expressão, aliás, duvidosa. Quando chegarmos ao problema do poder local, veremos qual deva ser a correcta formulação. Mas, insisto, não é pela circunstância de o n.° 4 ser suprimido que se diminuem os poderes que as autarquias devem ter, em termos da figura, do conteúdo essencial da garantia "autonomia do poder local". E o que está aqui em causa é saber se deve ter este tipo de controle. Francamente, entendo que não, e, aliás, pelas palavras do Sr. Deputado Almeida Santos, parece-me que o PS tem o mesmo entendimento, embora depois recue em tirar as conclusões lógicas dessa matéria.

Vozes.

O Sr. Presidente: - Quanto ao controle, não. Mantém-no. Embora tenha alguma preocupação de aformosear esse controle, substituindo as expressões "nacionalização" e "municipalização" por "expropriações", o que, apesar de tudo, é já um progresso. Ficam a meio caminho, mas trata-se já de um progresso assinalável, pelo que gostaria de o referir.

O Sr. António Vitorino (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)

O Sr. Presidente: - Eu ouvi falar muito nesse céu estrelado, mas o problema é que, além da Estrela Polar, existe o Cruzeiro do Sul, que tem um sentido exactamente contrário.

Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.

O Sr. Raul Castro (ID): - Sr. Presidente, depois de ouvir a explicação de V. Exa. no sentido de que o PSD, ao propor a elimação do n.° 4, não tem em vista retirar às autarquias o poder aqui consagrado, pergunto-me - visto ter dito que admitia que noutro local continuaria a ser um poder das autarquias - como é que o Sr. Presidente iria explicar aos autarcas deste país a razão da eliminação deste n.° 4. Afinal de contas, não

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pensa retirar este poder?! E retirar isto não seria uma forma um tanto bizarra de mostrar a sua identificação com estes poderes das autarquias?

O Sr. Presidente: - Não, Sr. Deputado Raul Castro. Ou não me expliquei bem ou fui mal interpretado. Relativamente à facilidade de explicar, presumo que os autarcas são destinatários de inteligência média, pelo que não teremos dificuldades de maior. Mas nesta matéria, no fundo, o problema reside em que a circunstância de se retirar este controle do parque imobiliário, com a carga ideológica que aqui tem, não significa - foi isso que disse e que agora reitero- que as autarquias não tenham competência para a política de reordenamento do território, como consta do seu estatuto - que tanto V. Exa. como eu conhecemos -nem o direito de expropriação. Não estamos a revogar esse aspecto. O que lhes é efectivamente retirado, tal como o é ao Estado, é essa ideia do controle do parque imobiliário, nos termos históricos que referi a propósito da lei ...

O Sr Luís Roque (PCP): - Nunca funcionou!

O Sr. Presidente: - A circunstância de nunca ter funcionado significa que devemos adequar a Constituição à realidade e não o contrário. V. Exa. ajuda-me e eu subscrevo inteiramente essa opinião: nunca funcionou nem devia funcionar! Por isso mesmo retiremos daqui uma coisa que não deve ser assim. Foi esse o sentido da minha interpretação, razão pela qual me louvei da exposição que V. Exa. fez quanto à matéria fáctica.

O Sr. António Vitorino (PS): - Mas a política não é propriamente a conformação com a realidade.

O Sr. Presidente: - A realidade é uma, normalmente.

O Sr. António Vitorino (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)

O Sr. Presidente: - Pois não, mas não é sobretudo pretender mudar a realidade através de normas inexequíveis.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, gostaria de começar por fornecer a explicação solicitada ao PCP quanto ao sentido da primeis das suas propostas, tendo em conta particularmente as interrogações suscitadas pelo Sr. Deputado Almeida Santos. Devo reafirmar que o lugar paralelo deste preceito adiantado pelo PCP é o artigo 101.°, n.° 1, da Constituição. Claro que se pode ter em relação a isto, que é um normativo constitucional, por exemplo a posição do CDS, ou seja, "elimine-se"! Sucede que em relação a este preceito nenhum dos Srs. Deputados e nenhum partido propôs a eliminação. Nem o PSD, o que verdadeiramente deve provocar infernais pesadelos ao Sr. Deputado José Luís Ramos, na medida em que vai passar a noite a cogitar por que é que o PSD não propôs a eliminação da mefistofélica expressão "os regimes de arrendamento e de outras formas de exploração de terra alheia serão regulados por lei de modo a garantir a estabilidade" -cá está a expressão maléfica - "e os legítimos interesses do cultivador" - cá está novamente outra expressão maléfica ...

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Mas aí entende-se melhor, dada a diferença de regime entre arrendamento urbano e rural.

O Sr. José Magalhães (PCP): - E estão na Constituição, não uma, mas duas expressões maléficas que escaparam à tesoura do PSD!

Gostaria de sublinhar que o sentido desta expressão proposta pelo PCP é o mesmo e tem idêntico alcance, transposto, mutatis, claro, do normativo que acabei de citar. Quando se pensa em estabilidade, não se está a pensar em imutabilidade - aí, creio que o Sr. Deputado José Luís Ramos pode ficar mais descansado. Cabem neste conceito não um modelo único de regime de arrendamento, mas vários, embora eu entenda, por exemplo, que o regime que o PSD acabou de propor na Assembleia da República quanto ao arrendamento rural não cabe e que viola, designadamente, alguns dos conteúdos quanto à estabilidade. Precisamente, instabiliza, desestabiliza e visa descaradamente o despejo e um desforço, até, de senhorios em relação a rendeiros, o que, de resto, reflecte ...

O Sr. Presidente: - Uma luta de classes, não é?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto. Uma luta que tem expressão nas relações jurídicas que se estabelecem entre os senhorios e os rendeiros. O PSD toma naturalmente partido a favor de uma das partes: no caso concreto, dos senhorios ricos!

No caso do arrendamento urbano, a questão que se coloca é diversa. Aí não há norma constitucional, e o que propomos é que se adiante uma norma. Quanto ao seu conteúdo, devo dizer que procurámos decalcar o lugar paralelo existente.

Diz o Sr. Deputado Almeida Santos que isto já é uma obsessão por estrelas polares! Creio que não é propriamente insusceptível de alguma estima a preocupação de enriquecer a Constituição se possível com algo mais do que uma estrela polar, isto é, com aquilo que seja uma indicação não regulamentar, não minudente, mas com um conteúdo normativo razoável que implique uma mudança favorável na ordem constitucional.

Neste caso, seja qual for o texto enxuto elaborado para esse efeito, vamos discuti-lo. E creio que é positivo que se estabeleça alguma sintonia, como me pareceu perceber, em relação a essa matéria.

Se a questão é estabelecer uma cláusula que permita salvaguardar outros regimes, designadamente certas formas de responsabilidade pública, do Estado ou de outros entes públicos; se a questão é estabelecer um proviso que salvaguarde certas situações excepcionais; se a questão é desabsolutizar alguma coisa que surja como tal, embora não tenha sido nossa intenção fixá-la como tal - então vamos a isso, concretize-se, formule-se! Pela nossa parte, colaboraremos nesse esforço.

Creio, no entanto, que não há razão para alguns temores, designadamente o receio que o Sr. Deputado Almeida Santos exprime de sustar a normal celebração de contratos de arrendamento. Porquê? Porque a

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norma, tal como ela se encontra formulada, visa seguramente contrariar a liberdade de despejar velhos, crianças e deficientes. Sem dúvida nenhuma.

O que pergunto é se o legislador deve ter algum prurido, se se deve interrogar, como o Sr. Deputado Almeida Santos fazia, sobre se a introdução na Constituição daquilo que hoje consta, em certa medida, da lei será um espanta senhorios, ou se daí resultará verdadeiramente uma fuga em massa ao arrendamento urbano e, logo, uma "demolição de uma fonte possível de oferta de habitação".

Sobre essa matéria há pontos de vista divergentes, há-os seguramente da nossa parte, mas não devemos abster-nos de tomar medidas.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Deputado, transfira-se esta matéria, com o correspondente reforço de dignidade, da lei ordinária para a Constituição, e ela funcionará como um espantalho.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, isso depende dos termos em que as cláusulas estejam formuladas.

O Sr. Almeida Santos (PS): - As casas hoje já voltam a ser construídas para arrendamento depois da alteração da Lei das Rendas. Antes ninguém construía uma. Agora creio que já de novo se começa a construir com esse objectivo, ao menos no quadro da renda livre.

Se o Sr. Deputado acredita que resolvemos o problema da habitação reforçando o favor do inquilino e criando mais desestímulos em relação ao senhorio, pode estar certo de que, qualquer dia, não haverá candidatos a senhorios.

Compreendo, uma vez mais, a vossa "estrela polar", e estou disposto a colaborar na consagração de valores e metas direccionais. Mas não concordo em que se faça aqui referência a filhos, idosos, etc. Deixemos isso para a lei. Amanhã pode, na verdade, ter de não ser assim, ou seja, poderá eventualmente o Estado ter de assumir estes encargos. Lamento se o interrompi.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, pelo contrário, agradeço-lhe a intervenção porque o objectivo é precisamente o de procurar aprofundar o caminho possível em relação a esta matéria.

Como sabemos, a Constituição já estabelece no artigo 72.° que as pessoas idosas têm direito à segurança económica e a condições de habitação e convívio familiar ... que superem o isolamento ou a marginalização social. O regime de arrendamento vigente comporta algumas formas de tutela, embora débeis e frágeis.

Quanto a encontrar-se uma fórmula, adiantámos a nossa. Temos realmente pontos de vista bastante diferentes quanto às virtualidades do arrendamento urbano para a solução do problema habitacional português. Creio que aí há da parte do Partido Socialista, pelo menos visível em determinadas intervenções, uma insistência bastante frustrada na via do arrendamento como fórmula para sanar as carências de oferta habitacional e naturalmente para reduzir as dificuldades que assinalam e caracterizam a procura entre nós.

Contrariamente ao que se disse, a alteração do regime do arrendamento urbano, relativamente à qual o PS depositara uma tão grande esperança e em relação à qual terçou armas de uma forma que, significativamente, foi punida eleitoralmente, não surtiu os efeitos benéficos que eram invocados para a justificar. Não creio, aliás, que a punição eleitoral, que o Sr. Deputado particularmente sentiu, deixasse de ter ligação ao próprio facto de o PS ter aparecido associado ao aumento súbito e drástico das rendas urbanas.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Deputado, assumimos essas e outras políticas impopulares numa altura em que, se o não fizéssemos, não estávamos hoje a gozar das vantagens de que dispomos. A verdade é essa.

Quando se pensa somente em votos, não resolvemos os problemas, ainda que eventualmente ganhemos eleições.

Nunca me arrependerei de ter contribuído para a feitura da Lei do Arrendamento Urbano, e considero que ela não foi suficientemente corajosa. Não sei se hoje já se constrói significativamente para arrendamento. Sei, sim, que antes não se construía rigorosamente nada.

Temos de considerar também a experiência da ineficácia do Estado nesse papel. Todos os governos, quaisquer que fossem, prometeram a construção de milhares de casas/ano. Faça-se o balanço e veja-se qual o resultado dessas promessas. De facto, o Estado não pode fazer tudo, principalmente numa economia de mercado, que é a nossa.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, o que eu estava a sublinhar é que no caso vertente a medida legal nem trouxe votos nem trouxe casas.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Não, penso que trouxe algumas. Já há quem construa para arrendamento e, em relação a certos regimes, sobretudo o da renda livre, não vejo por que é que não se possa construir.

Quanto à renda convencionada ou controlada - não sei bem agora qual é a designação dela -, os garantidos 8% e a garantia de correcção anual talvez não sejam um estímulo bastante. Mas, como a baixa da inflação e das taxas de juro, aqueles 8% podem estar a transformar-se num estímulo razoável. É evidente que o senhorio não faz política social, nem eu estou à espera disso.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, isso era capaz de ser difícil.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Na altura própria defendi que se estabelecesse um estímulo maior, que não foi aceite. Mas esse estímulo começa a crescer em termos de realismo crescente. 8%, com a valorização que, apesar de tudo, o imóvel sempre tem, não sei se não serão melhores do que pôr o dinheiro no banco.

O Sr. Presidente: - Principalmente se fizermos um controle do parque imobiliário.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Como não tenciono construir para arrendar, não estou muito interessado no rigor das contas.

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O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, a questão é que quem estiver interessado em construir para arrendar estará também muito interessado no rigor das contas; e, como a prova das contas é o que se constrói, creio que haverá indicadores, algures, susceptíveis de atestar minuciosamente o êxito, que creio ser o inêxito, dessa aposta.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Referiu uma tendência, não meça ainda o resultado!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Em todo o caso, tudo isto vinha a propósito das carências que continuam a assinalar a nossa realidade e à repetição incessante de várias consignas sem que deixe de repetir-se também o resultado.

O meu camarada Luís Roque tem aqui ao lado um recorte que titula berrantemente: "Ministro só dorme quando construir 50 000 casas por ano." O ministro mencionado é o actual titular da pasta, e a frase no seu conteúdo integral é ainda mais grandíloqua e eloquente do que o respectivo resumo porque refere: "Enquanto soubermos que há um português sem abrigo ou habitando em condições degradadas, não podemos dormir descansados. Bom seria que a breve prazo chegássemos aos 50 000 fogos concluídos em cada ano." As palavras são do actual Ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações.

O Sr. António Vitorino (PS): - Pode ter insónias!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Isto quer dizer que os Srs. Deputados do PSD têm direito a uma justa insónia porque estamos longe de conseguir este desiderato no quadro da política em curso.

Ora, sucede que a política de arrendamento não passa de uma das componentes da política de habitação. Portanto, ainda que a entendamos como um domínio estratégico, teríamos que reflectir sobre a política de subsídios, sobre aquilo que alguns designam o sistema institucional. Teríamos também que pensar no papel que as autarquias locais devem ter em relação à promoção habitacional, sabendo-se como a aposta no esvaziamento das autarquias ou, pelo contrário, na sua asfixia por devolução de encargos através do método do "toma lá e faz a tua habitação social, toda, paga-a, se quiseres" são vias que têm conduzido a resultados desastrosos.

Não nos cabe aqui dirimir esta questão no sentido exacto de a Constituição ter que apontar uma seta que tudo determine, mas temos ao menos a responsabilidade de não piorar o actual quadro constitucional. É disso que se trata acima de tudo aqui, e daí a nossa posição contrária à ideia básica do PSD.

Devo anotar aqui, e este é o segundo aspecto que gostaria de referir, que há uma deslocação do PSD, segundo percebi, uma vez que passa da sua proposta de eliminação do n.° 4 do artigo 66.° para aquilo que me pareceu uma adesão relativa à proposta do PS, ainda que gostando da segunda parte da proposta desse partido mas não da primeira.

Na primeira parte mantém-se o conceito e a obrigação de "efectivo controle do parque imobiliário". Na segunda parte faz-se uma decantação do conceito de apropriação pública aplicável, procedendo-se a uma substituição por razões que o Sr. Deputado Almeida Santos explicitou, e em relação às quais nos pronunciaremos oportunamente.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, o que pretendi dizer exactamente foi o seguinte: não nos choca que o Estado ou as autarquias locais procedam às expropriações dos solos urbanos que se revelem necessárias. No entanto, não pretendemos e não subscrevemos a ideia de que se mantenha no articulado a expressão "efectivo controle do parque imobiliário". Se essa expressão for substituída por uma outra do tipo "na política de reordenamento geral do território poderão verificar-se expropriações necessárias a esse reordenamento", aceitamo-la porque ela é algo de perfeitamente correcto. Mas, de facto, o controle não aceitamos.

O pensamento do PSD deveria ser explicitado nestes termos, se é que o não foi na altura em que fiz a respectiva observação.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, creio que é ver pouco e é ver traumaticamente entender assim o controle efectivo do parque imobiliário.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, é essa visão que pretendemos estabelecer.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Julgo que a leitura da Constituição por traumas leva muito longe porque, deveras, traumas há muitos.

Não podemos, por exemplo, deixar de ler este artigo da Constituição tendo diante de nós o trauma da irresolução gritante de carências habitacionais. Elas estão aqui à nossa volta. Aqui perto da Assembleia há uma série de bairros de lata...

Temos, pois, o trauma dos bairros de lata, que é bastante sério; temos o trauma dos bairros clandestinos, que também é gravíssimo; temos o trauma das populações sem capacidade de compra de habitação; temos o trauma das classes médias sem poder de aquisição de habitação própria, dadas as condições creditícias. Portanto, traumas temos imensos...

O Sr. Presidente: - E V. Exa. imputa ao n.° 4 em debate a solução miraculosa e taumatúrgica dessa situação calamitosa em que nos encontramos todos.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Presidente. Não imputo a nenhuma norma virtudes taumatúrgicas e, portanto, a esta também não, mas também não lhes imputo o que lá não está redigido, nem efeitos malévolos que não produziu.

O Sr. Presidente: - Os agentes económicos têm imputado, e tanto que se tem registado o que se registou.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, é altamente dúbio e falho de verdade que seja esta a norma causal da situação do mercado habitacional português!

O Sr. Presidente: - É uma delas, Sr. Deputado.

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O Sr. José Magalhães (PCP): - Por outras palavras, se V. Exa. entende que assim é, então pode limitar-se a aderir à proposta apresentada pelo PS, e ficará feliz, porque a partir desse momento estará suprimido o trauma que decorre, ao que parece, de uma expressão terrível, ou seja, "nacionalização ou municipalização", e tudo fluirá sobre rodas.

O Sr. Presidente: - Falta a palavra "controle", Sr. Deputado.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Quanto à palavra "controle", se V. Exa. a entende num sentido "contro-leirista", isso é péssimo, porque ela não tem esse significado.

O Sr. Presidente: - Quanto a essas matérias, não tenho nada a dizer.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sabe-se que as formas de controle efectivo do parque imobiliário são múltiplas, são as mais diversas. V. Exa. tem uma visão circunscrita e afunilada, e é interessante que tenha citado o caso extraordinário das ocupações, do arrendamento obrigatório de fogos devolutos e de outras coisas que tais. Porque a explicação que o Sr. Deputado Almeida Santos verteu para efeitos de registo na acta é extremamente curiosa e significativa acerca de algumas das causas reais das medidas que foram adoptadas. Talvez tenha faltado dizer apenas uma coisa: é que as medidas de arrendamento obrigatório não tiveram o mínimo impacte.

O Sr. Presidente: - Tiveram, tiveram, Sr. Deputado.

O Sr. José Magalhães (PCP): - E, portanto, se contribuíram para travar o movimento ocupacionista, não contribuíram para a celebração obrigatória de um número significativo de contratos de arrendamento.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, elas tiveram efeitos perversos!

O Sr. Almeida Santos (PS): - A inflação travou imediatamente essa medida e ela não teve quaisquer efeitos práticos.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, creio que é necessário ir mais fundo para descobrir as causas que sustaram esse movimento que V. Exa. referiu e as causas que levaram a que ele se exprimisse de outras formas cujos resultados também são conhecidos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Não sei se o fundo de que o Sr. Deputado fala é o mesmo em que estou a pensar agora, mas também creio que se deve ir mais fundo.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Teríamos mesmo que ir ao fundo para descobrir isso!

O Sr. Almeida Santos (PS): - Aos fundos! Risos.

O Sr. José Magalhães (PCP): - No caso vertente, creio que seria errado extrair de tudo isso, por um lado, uma espécie de hino ao descontrole do parque imobiliário, isto é, a uma fúria desregulamentadora e minimalista. Esse hino não o faremos a título nenhum.

O Sr. Presidente: - Já o sabíamos!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Em segundo lugar, creio que seria errado transpor também para a problemática do arrendamento urbano toda essa carga que está subjacente ao debate acerca do n.° 4. Porque isso poderia levar, e não deixei de notar isso também quanto à intervenção do Sr. Deputado Almeida Santos, a uma certa concepção que tende a colocar o contrato de arrendamento urbano no mesmo plano mercantil de outros contratos.

Considero curioso que tenha assinalado o seu carácter sinalagmático, quando aquilo que é provavelmente mais significativo é o facto de ele vir assumindo um cunho crescentemente social.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Deputado, por se ter deixado de o encarar como tal é que Lisboa está a cair de podre!...

A dada altura, o Salazar lembrou-se de resolver o problema habitacional deste país impedindo o aumento das rendas. O resultado está à vista: durante uns anos os inquilinos viveram satisfeitos, os senhorios foram-se distanciando da construção para arrendamento e Lisboa foi começando a ruir. A experiência é a favor da natureza sinalagmática do contrato. Não se pode esquecê-la, a menos que o Estado intervenha e garanta que a parte que o senhorio não queira aceitar no papel que lhe cabe ele a suporta.

Supondo um subsídio de renda, muito bem. Mas repare em que aí o equilíbrio das prestações fica assegurado. Sem este equilíbrio não há contrato viável no quadro da liberdade contratual.

Assim, esperar que alguém assine um contrato que ele não aceite de mo tu próprio é uma ilusão. E esperar que a política social de habitação seja feita à custa daqueles de quem esperamos iniciativas económicas sem o estímulo de um mínimo de rentabilidade é outra ilusão. O Estado não pode considerar a habitação como uma área alheia ao seu papel. Sempre disse isso aqui na Assembleia da República. Julgo que, se a saúde é com o Estado, bem como a educação, a construção das ruas, a ordem, a defesa exterior, em relação à habitação, que é um bem social tão importante como qualquer destes, até porque também põe em causa a saúde e o mais, o Estado não se pode pôr de fora. E foi isso que se pretendeu sempre: que se fosse construindo e arrendando na base de um equilíbrio entre a intervenção pública e a privada.

Assim, se se pretende construção por iniciativa privada na base de contratos livremente aceites - e não há outros neste domínio -, não se deve esquecer a natureza sinalagmática do contrato. Só isto é sensato e realista.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, não creio que o cerne da questão esteja na natureza sinalagmática do contrato, mas na forma como concebemos as posições jurídicas de cada uma das partes em relação a esta matéria. Creio, inclu-

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sive, que a questão também está em saber se somos capazes de construir a respectiva figura com um recorte que tenha em conta a sua evolução ao longo dos anos, designadamente no pós-guerra.

De facto, a experiência portuguesa contribui para introduzir extraordinárias confusões nesta matéria, sendo o Sr. Deputado Almeida Santos um dos responsáveis mais qualificados por algumas delas, no quadro da campanha em que se inseriu a alteração do regime do arrendamento urbano em Portugal...

O Sr. Almeida Santos (PS): - Tenho muitas culpas, tive alguns méritos e evitei alguns disparates!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Em todo o caso, independentemente de um juízo sobre essa matéria, e não seria esta a sede para o formular, creio que isso não nos deveria levar a deixar de pensar em algumas formas de conseguir dar resposta a certas situações de particular carência em que a vulnerabilidade económica conduz ao despejo sem alternativa. Essa é que é a questão.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Deputado, admito até que se possa estabelecer um regime com um conteúdo social mais acentuado em relação ao passado, mas também se deverão evitar excessos em relação ao futuro. O passado já lá vai. Já estivemos 50 anos sem corrigir as rendas, o que foi uma desgraça. Está tudo a cair, porque ninguém fez obras. A correcção das rendas já não chega para isso.

Essa desgraça passada está cumprida, corrija-se o melhor que se puder. Para o futuro estimule-se a construção para o arrendamento, porque o Estado não constrói o suficiente, nem nada que se pareça, para satisfazer as necessidades da procura de habitação para arrendamento. Não é só o que vai sendo necessário de novo que está em causa - vai-se felizmente progredindo -, mas aquilo que cai e se degrada ao ponto de já ninguém querer saber disso.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Quanto às formulações, eu tinha uma observação a fazer, bem como o meu camarada Luís Roque, no respeitante ao efectivo controle do parque imobiliário, designadamente em conexão com certas medidas possíveis quanto à gestão e controle dos solos propriamente ditos.

A minha observação é sobre a formulação que o PS escolheu no n.° 3 do artigo 65.° para a questão do subsídio de renda. Devo fazer o registo de que há uma perspectivação familiar da questão da atribuição de subsídios de renda, o que não é realmente obrigatório. E a perspectiva institucionalista subjacente a essa concepção, não sendo nós individualistas no sentido que os Srs. Deputados conhecem, é afuniladora. Portanto, creio que a questão está na atribuição do subsídio de renda a quem tenha menos recursos, independentemente de quem quer que seja. E digo isto porque um indivíduo isolado pode ser tão merecedor como aquele que tem uma prole numerosíssima. Submeter-se isto ao filtro da instituição "família" pode ser limitativo.

O Sr. Almeida Santos (PS): - A ideia foi esta e sou responsável por ela. Isto é: se numa casa vivem quatro ou cinco indivíduos da mesma família cujos salários somados permitem folgadamente pagar uma renda normal, não se justifica que recebam subsídios.

Portanto, não é só o rendimento do inquilino que está em causa. Tem de se atender ao rendimento familiar.

Foi isto o que quisemos dizer.

O Sr. Presidente: - Tem, então a palavra o Sr. Deputado Luís Roque.

O Sr. Luís Roque (PCP): - Sr. Presidente, começaria, no tocante à argumentação de V. Exa., pela questão da supressão do n.° 4 do artigo 65.°

Considerei - se V. Exa. me permite a ousadia - um bocado surrealista a sua argumentação, ao dizer que fiz um elogio à proposta de eliminação da autoria do PSD.

O Sr. Presidente: - V. Exa. não quis fazer, mas redundou nisso.

O Sr. Luís Roque (PCP): - Pelo contrário, parte-se da ideia de não fazer para que o PCP seja responsável. Posteriormente, como não se fez, entendeu-se que era melhor suprimir.

Acontece, porém, que não temos responsabilidade nisso...

O Sr. Presidente: - Não, Sr. Deputado. Têm grandes responsabilidades nisso, como, por exemplo, a apropriação colectiva dos solos e recursos naturais.

O Sr. Luís Roque (PCP): - Isto é como fazer o mal e a caramunha. Mas já iremos abordar a política de solos.

Entretanto, o problema que se coloca é apenas este: a supressão do n.° 4 do artigo 65.° pode trazer certas implicações, como seja a recuperação da Mouraria e de Alfama, que não sei como vai fazer-se; não sei como é que a Câmara Municipal de Lisboa vai fazer expropriações por utilidade pública através dos canais normais, que normalmente provocam esperas de um ou dois anos.

O Sr. Presidente: - Desculpe-me interrompê-lo mais uma vez, mas não entendo isso.

De facto, pergunto-lhe se V. Exa. julga que a lei das expropriações está assente neste n.° 4 do artigo 65.°

O Sr. Luís Roque (PCP): - Sr. Presidente, se isso for suprimido deste articulado haverá muitos mais obstáculos.

Como é que uma câmara municipal pode cumprir um PDM (plano director municipal), a que está obrigada desde a publicação dos PROTs (planos regionais de ordenamento do território)? Como é que vai evitar, por exemplo, que um terreno destinado a uma zona industrial se mantenha vago durante 20 ou 30 anos por incapacidade financeira? Quero ver como é que isso vai ser possível!

O Sr. Presidente: - Explicava-lhe, mas penso que não vale a pena.

O Sr. Luís Roque (PCP): - Como é que uma câmara municipal pode expropriar terrenos para habitação social? É evidente que V. Exa. pode dizer-me que já existe legislação referente a esse aspecto, mas tam-

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bém é fácil de ver que, se vamos retirar isso da lei constitucional, tal consistirá num novo entrave. Quer queiramos, quer não, sabemos qual é o nível de burocratização deste país. Isto irá, então, andar em roda livre. Se dura agora um ou dois anos, vai passar a durar cinco ou seis anos. Parece que não há absolutamente nenhum problema. Perguntaria se vamos assumir essa responsabilidade perante os autarcas e as autarquias. Até seria interessante que esse ponto fosse alvo de uma consulta por parte das autarquias, para vermos os pareceres que obteríamos - inclusivamente, até no âmbito das autarquias do PSD, porque ninguém concordaria com isto. De facto, este é um instrumento efectivo para as autarquias.

O Sr. Presidente: - foi sempre citado em todas as autarquias do meu conhecimento.

O Sr. Luís Roque (PCP): - Não estou a ver como se faz um plano director municipal sem haver um controle e uma política de solos.

O Sr. Presidente: - Eu não referi a expressão "sem haver uma política de solos". Disse, antes, que o controle dos solos está ligado ao princípio da apropriação colectiva dos principais meios de produção, solos e recursos naturais - e isto tem um significado ideológico evidente. Aliás, percebo que V. Exa. o defenda. Contudo, também deve perceber que eu seja frontalmente contrário. Creio que não vale a pena insistir nisto.

O Sr. Luís Roque (PCP): - Sr. Presidente, não coloco isto em termos ideológicos, mas sim em termos práticos, de execução prática.

O Sr. Presidente: - Não, Sr. Deputado, não o está a colocar em termos práticos, porque não é assim. Aliás, ainda há pouco reconheceu que havia legislação nesse sentido.

O Sr. Luís Roque (PCP): - Quanto à questão de se fazerem ou não contratos de arrendamento e as razões de tal situação, em relação à legislação do arrendamento urbano, o Sr. Deputado Almeida Santos considera-se muito culpado. Contudo, há duas questões a suscitar sobre esta matéria. A primeira é a de que a recuperação de casas degradadas neste momento em Portugal é mais cara do que a construção propriamente dita, porque não temos técnicas de recuperação. Daí que a recuperação de prédios leve às rendas condicionadas, facto que não vai dar incentivos à iniciativa privada. Além disso, e em relação à renda livre, mesmo a construção de base não se faz. Neste tipo de renda existe a possibilidade de se facturar a renda derivada de acordo entre senhorio e inquilino. E por que é que não se faz a construção de base? Porque é mais fácil e dá mais rentabilidade vender a curto prazo do que arrendar.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, suponho que ainda não podemos dar por terminada a discussão deste assunto, mas, como não há mais pedidos de intervenção, iremos recomeçar amanhã, pelas 10 horas, com a análise do artigo 66.°, cuja epígrafe é "Ambiente e qualidade de vida".

Aliás, para que façam o favor de irem fazendo os vossos cálculos - tenho algum pudor em o fazer porque não estarei presente na próxima semana -, a ideia que lançaria, face aos próximos feriados, era a de que trabalhássemos na terça-feira à tarde e à noite e quarta-feira de manhã e de tarde.

Na verdade, o problema é este - e permito-me voltar a repetir: estamos agora na análise do artigo 66.°, mas não temos nenhuma hipótese de conseguir fazer a discussão a partir de Outubro se não acelerarmos os nossos trabalhos. E, como não podemos, por vários motivos, poupar no tempo das intervenções, temos de aumentar o tempo dos debates. Tenho a impressão de que não há uma terceira alternativa.

Vozes.

O Sr. Presidente: - Como, entretanto, o Sr. Deputado José Magalhães colocou o problema de haver reunião da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias na próxima quarta-feira de manhã, a reunião da CERC nesse dia limita-se só à parte da tarde. Depois, VV. Exas. decidirão quanto à eventualidade de se prolongarem os trabalhos para o período da noite.

Srs. Deputados, está encerrada a reunião.

Eram 20 horas e 10 minutos.

Comissão Eventual para a Revisão Constitucional

Reunião do dia 26 de Maio de 1988

Relação das presenças dos Srs. Deputados

Rui Manuel P. Chancerelle de Machete (PSD).
Carlos Manuel de Sousa Encarnação (PSD).
António Costa de Sousa Lara (PSD).
Carlos Manuel Oliveira da Silva (PSD).
José Luís Bonifácio Ramos (PSD).
Licínio Moreira da Silva (PSD).
Luís Filipe Garrido Pais de Sousa (PSD).
Manuel da Costa Andrade (PSD).
Maria da Assunção Andrade Esteves (PSD).
Miguel Bento da Costa Macedo e Silva (PSD).
Luís Filipe Meneses Lopes (PSD).
Manuel António de Sá Fernandes (PSD).
António de Almeida Santos (PS).
Alberto de Sousa Martins (PS).
António Manuel Ferreira Vitorino (PS).
Jorge Lacão Costa (PS).
José Eduardo Vera Cruz Jardim (PS).
José Manuel Santos Magalhães (PCP).
Raul Fernandes de Morais e Castro (ID).

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