O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Página 871

Quarta-feira, 27 de Julho de 1988 II Série - Número 30-RC

DIÁRIO da Assembleia da República

V LEGISLATURA 1.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1987-1988)

II REVISÃO CONSTITUCIONAL

COMISSÃO EVENTUAL PARA A REVISÃO CONSTITUCIONAL

ACTA N.° 28

Reunião do dia 15 de Junho de 1988

SUMÁRIO

Finalizou-se a discussão do 9.° relatório da Subcomissão da CERC, respeitante aos artigos 80.º a 90.° e respectivas propostas de alteração.

Iniciou-se a discussão do 10. ° relatório da Subcomissão da CERC, relativo aos artigos 91.° a 95.º e respectivas propostas de alteração.

Durante o debate intervieram, a diverso título, para além do presidente, Rui Machete, pela ordem indicada, os Srs. Deputados Rui Gomes da Silva (PSD), Almeida Santos (PS), José Magalhães (PCP), Carlos Encarnação (PSD), Vera Jardim (PS), Rui Salvada (PSD), António Vitorino (PS). Raul Castro (ID), Maria da Assunção Esteves (PSD), Guilherme da Silva (PSD), Costa Andrade (PSD), Alberto Martins (PS), José Manuel Mendes (PCP), lida Figueiredo (PCP). José Luís Ramos (PSD) e Jorge Lacão (PS).

Página 872

872 II SÉRIE - NÚMERO 30-RC

O Sr. Presidente (Rui Machete): - Srs. Deputados, temos quorum, pelo que declaro aberta a reunião.

Eram 10 horas e 45 minutos.

Vamos iniciar os nossos trabalhos com a análise do artigo 86.Q, sob a epígrafe "Actividade económica e investimentos estrangeiros". Foi apresentada pelo CDS uma proposta de eliminação deste preceito e pelo PSD uma proposta que substitui a parte final deste artigo "e defender a independência nacional e os interesses dos trabalhadores" por "e a defesa do interesse nacional".

Para justificar a proposta do PSD, tem a palavra o Sr. Deputado Rui Gomes da Silva.

O Sr. Rui Gomes da Silva (PSD): - Sr. Presidente, a justificação será breve.

Pensamos que, de certa maneira, a independência nacional e o interesse dos trabalhadores constituem conceitos que se subsumem quando o PSD os substitui pelo conceito de "defesa do interesse nacional". É evidente que a independência nacional é um princípio consagrado constitucionalmente e, também por isso, defendido pelo PSD e que o conceito de "interesses dos trabalhadores" é mais marcadamente ideológico, não propriamente pela sua "redacção", mas pelo significado que num determinado período histórico se lhe deu.

Assim sendo, o PSD aponta para a substituição destes dois conceitos pelo de "defesa do interesse nacional". No fundo é esta, de forma muito simples e muito resumida, a justificação da alteração que o PSD entende introduzir no artigo 86.º da lei fundamental.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Pretendia apenas dizer que compreendemos mal a insistência com que o PSD procura cortar tudo quanto constitua uma referência aos direitos dos trabalhadores, tendência que, mais uma vez, aparece aqui...

O Sr. Presidente: - Aqui são interesses...

O Sr. Almeida Santos (PS): - Serão interesses. Mas sempre que se trata seja de interesses seja em geral de direitos dos trabalhadores o PSD corta. O PSD tem uma fúria amputatória em matéria de direitos dos trabalhadores que não compreendemos, sobretudo porque não vemos que tal seja saudável para que a Constituição possa ser pacificadora do mundo do trabalho, das relações entre o poder e os trabalhadores, como resulta aliás dos últimos acontecimentos.

Por outro lado, a defesa da "independência" tem aqui significado concreto. É mesmo a independência que pode estar em causa e não um vago interesse, sem significado no quadro daquilo que de facto está em causa.

Em nosso entender, vaguificar as referências não valoriza a Constituição.

O Sr. Presidente: - Penso ser evidente que esta alteração proposta pelo PSD não é substancialmente muito importante. Em todo o caso, como o Sr. Deputado Rui Gomes da Silva referiu, a sua justificação assenta em dois pontos. Por um lado, a Constituição estava tão desequilibrada na acentuação dos interesses dos trabalhadores que se procurou reequilibrá-la, não no sentido de suprimir aqueles interesses, que devem naturalmente ter, dentro do contexto adequado, a relevância que lhes é devida, mas sim, justamente, no sentido de evitar esta predominância excessiva na constelação de todos os outros interesses que devem ser considerados.

O Sr. Almeida Santos (PS): - (Por não ler falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)

O Sr. Presidente: - Mas, é evidente que o ponto de vista dos titulares do direito é sempre um ponto de vista parcial...

A segunda observação que pretendia aqui deixar é a de que sentimos, tal como o Sr. Deputado Almeida Santos, que o problema da independência nacional, da autonomia nacional, é muito importante em matéria de investimento estrangeiro. Simplesmente, existem outros valores importantes a atender. Trata-se mais de uma questão de sensibilidade de formulação do que de outra coisa. Quer dizer, não existe nenhuma divergência substantiva. Parece-nos constituir uma perspectiva excessivamente defensiva perante o problema do investimento estrangeiro o facto de, nesta matéria, se chamar a atenção para o problema da independência nacional. É porém evidente que esse é um dos aspectos fundamentais do interesse nacional a ter em conta.

Assim, queria apenas sublinhar que com isto não pretendemos minimizar a importância dessa dimensão, que é obviamente fundamental. No entanto, a formulação expressa desse aspecto tem por vezes efeitos perversos, contrariamente àquilo que poderia parecer. Trata-se, portanto, de uma questão de sensibilidade na formulação.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Creio que a questão que se suscita com mais intensidade e porventura com mais pertinência é provavelmente aquela que foi enunciada pelo Sr. Deputado Rui Machete no termo da sua intervenção- provavelmente, exactamente ao contrário. Refiro-me à questão dos efeitos perversos. Julgo que o que há a ponderar é qual seja a gama dos efeitos perversos susceptível de ser induzida pela supressão, pela alteração proposta pelo PSD. Neste, como noutros pontos, o PSD usa a mesma démarche: ao mesmo tempo que faz uma eliminação ou uma desnaturação sistemática, quando confrontado com cada uma das eliminações, das alterações ou das desnaturações - o que por vezes é a mesma coisa - em concreto, alega que a desnaturação não é desnaturação e que a perda de conteúdo não é perda de conteúdo. Trata-se de tirar para que tudo fique exactamente na mesma, trata-se de alterar expressões para que o conceito não seja alterado. Creio que casos haverá em que isso acontece - nesses casos assim o temos assinalado. Em outros casos é difícil que isso seja sustentável, com a tal bona fides mínima que nestas matérias é exigível.

Essa hermenêutica de tipo prestidigitativo é no caso em apreço extremamente difícil de operar. De facto, de que a Constituição alude a dois conceitos que têm um significado bastante preciso e que vêm devidamente qualificados noutros domínios, noutros locais de enunciação no texto constitucional, não sobram dúvidas.

É evidente que, se há algum campo onde a Constituição aflore, e deva aflorar, em termos adequados, o princípio de defesa da independência nacional, é este. E sempre o será, por força de todos os comandos constitucionais, a não ser que, como por exemplo no projecto de revisão constitucional do PSD, esses comandos sejam suprimidos: basta olhar a proposta do PSD respeitante ao artigo 9.° e até a

Página 873

27 DE JULHO DE 1988 873

proposta respeitante às relações internacionais. Mas sem essa amputação não se sustente que há entre o texto vigente e o texto proposto pelo PSD uma equivalência conceptual, porque não há. É extremamente difícil, nesta sede, medir segundo uma bitola apertada quais sejam as desequivalências, as dissemelhanças e até o grau de desvio induzido por esta alteração. E isto aplica-se também aos interesses dos trabalhadores.

O Sr. Presidente: - Eu não disse que existia uma equivalência, mas sim que o interesse nacional abrange não só a independência nacional e os interesses dos trabalhadores como também outras coisas. E abrange dentro de uma constelação de valores em que não são minimizados outros aspectos extremamente importantes, o que é diferente de dizer que existe uma equivalência. Penso que não só é equivalente naquilo que é necessário e útil, como vai mais além.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, as considerações que vinha fazendo não se afastam de forma nenhuma disso, precisamente até criticam isso. O PSD pretende substituir uma determinada constelação de valores, enunciada com um carácter preciso e com o rigor que decorre dos espaços conceptuais constitucionais tal qual estão delimitados, por uma outra constelação de valores em que certas estrelas estão apagadas ou atenuadas e em que outras brilham muito. Curiosamente, não diz quais são as que brilham, isto é, quais são os valores que importaria que brilhassem aqui. Quais são os valores que importaria que fossem acentuados? Quais são os valores que aqui são menos acentuados e quais são as realidades susceptíveis de serem recobertas pela noção de defesa do interesse nacional que não o são por esta cláusula? Virtualmente nenhumas, a não ser uma, que e uma pré-compreensão, para não dizer mesmo um preconceito de carácter ideológico e que consiste em entender que qualquer alusão ao conceito de independência nacional, num quadro constitucional, só serve para afugentar investidores. Os investidores chegam aqui, vêem o artigo 86.°, vêem a independência nacional e horrorizam-se: "Neste país não se pode investir..." O que é uma coisa totalmente contraditada pela realidade, pelo fluxo de investimentos nos últimos anos em Portugal, e mesmo nos últimos meses. Consequentemente, esta alteração não tem provavelmente qualquer significado, a não ser o de um despojamento susceptível de preparar outros despojamentos. E é em relação, em concreto, aos interesses dos trabalhadores que isso se pode colocar com uma intensidade não subestimável, qualquer que seja o alcance desta cláusula. Como sabemos, extraímos dela determinadas implicações, do ponto de vista de legislação tendente a definir o regime dos investimentos estrangeiros. Porém, ninguém ignora qual tenha vindo a ser a evolução do Código do Investimento Estrangeiro e a história labiríntica das suas sucessivas alterações, muitas das quais colocam problemas gravíssimos em termos de tutela adequada dos interesses dos trabalhadores. Não se extraia daqui a conclusão de que a disposição constitucional é inerme, inútil, e que, como tal, poderia ser suprimida, porque isso seria, evidentemente, extrair a conclusão de que, "feito o homicídio, enterra-se o cadáver". Pela nossa parte, não corroboraremos minimamente nessa tarefa de liquidar ou de enterrar disposições constitucionais que outros, ao longo de anos, se dedicaram a procurar liquidar.

Por outro lado, e em relação às hermenêuticas perversas, é bem sabido qual poderia ser a consequência da eliminação desta disposição. Para quem acompanhe minimamente as escalas judicativas que nesta matéria vêm sendo aplicadas, para quem leia os próprios pareceres que o PSD, quando tem a autoria e a responsabilidade da respectiva elaboração, faz sobre o saldo ou o resultado da revisão constitucional de 1982, nenhuma dúvida sobra de que uma alteração deste tipo seria susceptível de ser invocada no sentido de atenuar a margem de conformação a que o legislador se encontra sujeito e de assim viabilizar ou reforçar a viabilização de normas susceptíveis de pôr em perigo o desenvolvimento do País e a defesa do interesse nacional, uma vez que o PSD se preocupa com outras constelações de valores.

Não estamos portanto de acordo, Sr. Presidente, em que esta alteração seja inócua e não estamos naturalmente de acordo com a sua substância e as suas implicações.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Presidente, em função da intervenção que V. Exa. acabou de fazer, penso que a minha seria quase desnecessária.

De qualquer forma, gostaria de aclarar que não vejo os interesses perversos que o Sr. Deputado José Magalhães referiu, como também não vejo a complicação que adviria nem, como disse o Sr. Deputado Almeida Santos, uma especial tendência para a obstinação do PSD em alterar esta norma. Penso que aquilo que resulta da substância das intervenções anteriores do PSD é fundamentalmente claro. Nós entendemos que o interesse nacional tem de resultar de um equilíbrio, e que é em si mesmo o exercício de um equilíbrio, nele estando abrangidos, como é evidente, os interesses de todos os cidadãos assim tutelados, incluindo, como também não pode deixar de ser, os interesses dos trabalhadores. Nesta matéria, como noutras, existem interesses de outros cidadãos, que não apenas os trabalhadores, que têm de ser considerados e salvaguardados. E não vemos razão para, declaradamente, apenas mencionar uns e não mencionar outros.

Por outro lado, a independência nacional é uma das bases fundamentais do interesse nacional. Deste modo, o interesse nacional não pode deixar de ser entendido como um efeito complexivo, como uma tentativa de abarcar todas estas coisas e muitas outras que porventura não estão incluídas neste preceito e que deveriam estar. É nisso, diria eu, que se pode buscar a intenção do PSD, que, repito, não é uma intenção de obstinação nem de eliminação de direitos ou de restrição relativamente a questões que aqui venham declaradas.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Saí por uns momentos da sala, Sr. Presidente, mas era minha intenção pedir a V. Exa. a palavra logo no início da reunião a fim de apresentar um protesto, levantar uma questão e procurar o seu esclarecimento. Visto ter chegado uns minutos atrasado, não pude apresentar este problema no inicio da reunião, como seria mais cabal. Porém, se V. Exa. me der a palavra para esse efeito, apresentaria agora o meu protesto, dado nada ter a dizer sobre a matéria em discussão.

O Sr. Presidente: - Suponho que não há mais inscrições relativamente ao artigo 86.°, pelo que tem V. Exa. a palavra para apresentar o protesto.

Página 874

874 II SÉRIE - NÚMERO 30-RC

O Sr. Vera Jardim (PS): - Antes de mais, como autor do relatório sobre esta matéria, pediria a V. Exa. para proceder a uma correcção do meu relatório. Onde se diz, relativamente ao artigo 87.°, que "O PSD mantém o actual n.º 1", não é o PSD, mas sim o PS. Se bem que me pareça que o PSD pode também fazer sua essa proposta...

Risos.

Sr. Presidente, a minha intervenção destina-se a procurar situar e a situar-me dentro do seguinte âmbito: como membro desta Comissão, pretendia saber qual é o estatuto dos membros desta Comissão no que diz respeito a intervenções públicas - portanto fora do âmbito estrito desta Comissão- relativas à revisão constitucional, nomeadamente através da comunicação social. O tema revisão constitucional tem sido naturalmente discutido nos jornais, na rádio e na televisão. Vários membros desta Comissão tem tomado parte em debates, em entrevistas, e têm comentado o problema da revisão constitucional, não estando, obviamente, proibidos de tal tipo de intervenção. No entanto, a minha intervenção refere-se em especial a um artigo publicado na última edição do jornal Semanário, assinado por um deputado da bancada do PSD e também comentador do referido jorna!, o Sr. Deputado Pacheco Pereira. O Sr. Deputado Pacheco Pereira não está presente nesta sala, mas é evidente que até o facto de pouco estar presente não me poderá inibir de me pronunciar sobre o referido artigo.

De facto, o Sr. Deputado Pacheco Pereira não se limita a tecer considerações acerca da revisão constitucional; tece, sim, considerações concretas sobre projectos apresentados por outros partidos, critica esses projectos, afirma-se como "um duro" em relação à revisão constitucional, dá a entender que as negociações levadas a cabo pelo PS no quadro da revisão constitucional são de certo modo logro ou que pretendem fazer cair outras formações partidárias em logro, terminando com a frase que passo a ler:

Conhecendo-se o que o PS é hoje, compreende-se como ele precisa, vitalmente, de encontrar em soluções de artifício constitucional a força que lhe falta em votos. Só não vê quem não quer ver.

Sr. Presidente, queria em primeiro lugar, deixar aqui lavrado o meu protesto por tal forma de intervenção pública. Efectivamente, julgo - mas gostaria que me elucidassem - ser completamente inadmissível que um membro desta Comissão se permita tecer considerações deste teor na comunicação social. Acentuo: deste teor! Na verdade, já o mesmo não se passará, como se tem passado com muitos outros membros desta Comissão, quando o tipo de intervenção seja o de intervenção serena sobre a revisão constitucional, sobre os problemas da revisão constitucional e até sobre as boas e más qualidades de alguns dos projectos, mas não como um ataque virulento e gratuito a um partido que se tem mostrado empenhado, como o PS, no processo de revisão constitucional.

Assim, queria lavrar o meu protesto por este tipo de intervenção e solicitar a V. Exa. - se o entender por bem - que pudéssemos esclarecer até que ponto e que tipo de intervenções é que serão, de um ponto de vista ético-político, julgados curiais a membros desta Comissão.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): -Sr. Presidente, queria apenas dizer o seguinte: é evidente que tudo o que se passa dentro da CERC constitui uma realidade na qual se manifesta a nossa capacidade de intervenção, e não quero deixar de salientar o excelente ambiente em que os trabalhos desta Comissão têm decorrido, designadamente pela participação dos membros do PS e do PSD. No entanto, entendo que se não pode, nem deve, coibir o direito de intervenção política de qualquer cidadão, esteja ele integrado ou não na CERC, porque, realmente nessa circunstância, colocá-lo-íamos numa situação de desigualdade perante os demais agentes políticos.

Então, se o Sr. Deputado Lopes Cardoso ou o Sr. Deputado Vítor Constando resolvem fazer intervenções atacando o PSD e a sua estratégia, nomeadamente, da revisão constitucional ou política, isso é permitido, mas um deputado do PSD que esteja na CERC não pode emitir juízos políticos nem escrever artigos de opinião? Parece-me substancialmente injusto fazer um juízo de valor desta natureza e devo dizer, com toda a certeza - pelo menos assim o tenho feito, sendo VV. Exas. testemunhas dos debates em que tenho participado -, que, justamente, o que se tem procurado fazer é a discussão concreta dos temas de revisão constitucional da forma mais morigerada possível e de forma a que o ambiente da própria revisão constitucional se não altere. Mas, como não pode deixar de ser, também ninguém deve proibir ninguém de emitir opiniões mais contundentes acerca de uma qualquer estratégia do seu companheiro de CERC.

Penso que, no fundo, esse artigo de opinião mais não visa do que desenvolver uma determinada forma de intervenção política a que está acopulada uma determinada estratégia e que, do nosso ponto de vista, não estaremos aptos a julgar e a condenar.

O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado Vera Jardim lavrou o seu protesto, o Sr. Deputado Carlos Encarnação, digamos que, não usando a figura regimental do contra-protesto, fez um comentário, mas, como fui directamente interpelado, gostaria de referir o seguinte: julgo que o problema que o Sr. Deputado Vera Jardim põe é um problema naturalmente delicado, mus que não pode ser resolvido em sede de mesa e de presidência da CERC, a não ser - e não li o artigo, portanto não conheço o conteúdo das afirmações feitas - num ponto que se eventualmente existir ou quando eventualmente existir matéria de facto que seja referida inexactamente, isso sim, permitirá uma actuação com um critério, pelo menos em princípio, claramente objectivo.

Nesse capítulo, penso que, obviamente, se em relação àquilo que se passa nesta Comissão - e que, aliás, é comprovado pelas respectivas actas - houver referências enganosas em matéria de facto, estaremos legitimados para intervir, repondo a verdade dos factos, quer a autoria da intervenção pertença a um membro da Comissão, quer não, porque me parece importante que, numa matéria deste tipo, não haja tergiversações quanto à verdade material dos factos que aqui se processaram.

No que respeita às apreciações, penso que, obviamente, elas serão objecto de um juízo político por parte dos diversos intervenientes e, eventualmente - se as pessoas assim o quiserem fazer -, de um juízo de carácter ético. Mas V. Exa. compreenderá que não está dentro das competências da Assembleia da República em geral, nem da mesa desta Comissão em particular, estar a ajuizar em cada caso sobre se houve ou não um excesso em termos de apreciação, sobretudo quando existe uma zona em que se sobrepõem os aspectos políticos e as questões de apreciação ética. Este protesto ficou aqui registado, o que a outros já tem acontecido, e esperamos não vir a haver necessidade de

Página 875

27 DE JULHO DE 1988 875

muitos mais. Penso não ser possível ir para além desse ponto, que, aliás, tem obviamente também um significado político.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Dá-me licença, Sr. Presidente?

O Sr. Presidente: - Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Presidente, eu não pretendia mais nada senão o esclarecimento de V. Exa. Talvez me tenha feito compreender mal.

Por outro lado, se me desse licença, só para esclarecer muito rapidamente o Sr. Deputado Carlos Encarnação, diria que longe de mim pretender que as pessoas não possam ter intervenções em matéria de revisão constitucional. Eu próprio n3o me sinto coibido de as ter publicamente, na altura que julgar própria, e já participei, aliás, em debates públicos. Era apenas ao tipo de intervenção que me referia.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, o Sr. Deputado Vera Jardim colocou uma questão relacionada com o estatuto dos membros desta Comissão. A mesa não teve ocasião de reunir para discutir essa questão, não restando, portanto, qualquer alternativa que não seja a de fazer a discussão em andamento e em movimento alargado.

Creio, Sr. Presidente, que a preocupação enunciada e a resposta coenvolvida no protesto do Sr. Deputado Vera Jardim são compreensíveis. O folhetim do deputado Pacheco Pereira vai no segundo capítulo e creio que é normal que tenha outros capítulos durante a revisão constitucional e, seguramente, depois dela (a dobrar-se o tal Bojador de que falava há dias outro membro desta Comissão em declarações igualmente públicas). Sucede que o segundo episódio do folhetim agravou, evidentemente, algumas das debilidades e alguns dos aspectos de acinte e de agressão política que caracterizavam o início dessa saga ou dessa cruzada do PSD.

Podemos adoptar, em relação a isto, uma atitude displicente e de minimização assente num raciocínio deste tipo: o PSD tem os agentes políticos que entende e que pode - como dizia o deputado Carlos Encarnação - pode usá-los como entender (como pode e como eles deixam). Há alguns com vocação determinada, há outros com vocação oposia, há quem entenda que as vassalagens são coisas abjectas, há quem as adore, há quem se sinta bem nelas, há quem cumpra serviços e há quem os faça à linha. No caso do deputado Pacheco Pereira, eu não dedicaria uma só linha a propósito das linhas que ele vem escrevendo semanalmente e poderia partir do princípio de que ele é, aqui na CERC, de uma estranha espécie: se fosse uma academia, era um sócio correspondente; se fosse uma escola, linha chumbado o ano por faltas, como é óbvio. O seu papel aqui não é em termos de parlamentar de revisão constitucional, não é esta a sua trincheira, e percebemos, lendo aquele jornal, qual é a sua trincheira e qual é também a sua arma.

Para aquele tipo de trincheira não é preciso ter a mínima informação sobre as coisas, não é preciso, sequer, comparecer nos trabalhos da CERC. Aquilo "pré-tem-se" porque é também um "pré-texto" e é também um "pós-texto". O texto voga em função de uma bitola que não tem nada a ver com a realidade em concreto, tendo a ver com um estão que o Eça tornou inesquecível e que o Abranhos, naturalmente, sintetiza eternamente.

Tudo isto seria matéria para gargalhadas fundas, não fosse dar-se a hipótese, também conhecida, de estar aqui uma campanha do PSD que revela duplicidade. E isso é que me impressiona. É possível ouvir, da parte de um deputado do PSD, com responsabilidade na Comissão, no seu debate e intervindo nesse debate, a aceitação, com um ar natural, de que tudo é o reflexo de uma estratégia. Que assim é que devem ser as coisas! Aqui, na Comissão, comemos chá e torradas e discutimos com elevação e, no exterior, o Primeiro-Ministro pode ir à TV, descabeladamente, fazer uma operação de pressão e de ultimato contra um órgão constitucional e pode dizer que "algo de errado está no nosso sistema político-constitucional" se a Constituição não é aquilo que algum PSD entendia que deveria ser.

Um deputado que se entende sicofanta encartado dessa estratégia pega na pluma todas as semanas e desanca quem quer que seja. Desanca a Comissão, desanca deputados individualmente considerados, além de desancar a Constituição, que é o bei de Tunes e tem posse para ser desancada. E isto, evidentemente, tem resposta pelas vias próprias. Quando alguém assume este papel, arrisca-se a ser tratado exactamente ou senão pior do que trata, com uma diferença talvez, ou seja, com alguma elevação se possível e se merecida, o que nem todos os dias é o caso.

Há para isso regras e, consequentemente, o PS pode dirigir-se ao jornal Semanário, exercendo os seus direitos previstos na Lei de Imprensa sobre esta matéria, pode entender que a questão merece uma resposta mais elevada e dirigir-se à tribuna da Assembleia da República e pode, naturalmente, fazer o protesto que aqui fica registado para os devidos efeitos, com a resposta sem conteúdo, portanto, fugitiva e fugidia dos Srs. Deputados do PSD que aqui têm assento. Dificilmente podemos deixar de recorrer a outros mecanismos que não esses. Pessoal e politicamente, acho que declarações como a do Primeiro-Ministro e outras constantes do folhetim do deputado Pacheco Pereira, nas vestes de colunista - tenho-o escrito sempre que posso em jornais não talvez no Semanário, mas noutros -, são afloramentos constitucionalmente infundamentados, sem o mínimo de consistência, de uma matiz bastante inquinada, são inaceitáveis se partirmos de qualquer ideologia constitucional que tenha ultrapassado os primores do setecentismo.

O deputado Pacheco Pereira exclamava e repetia, há dias, no primeiro episódio desse mau Roque Santeiro constitucional, ser absolutamente insuportável haver uma Constituição que proíbe uma solução de livre despedimento e que é absolutamente inconcebível uma constituição vedar soluções de despedimento livre, quiçá oral! Que é monstruoso! Que é uma aberração! Que é absurdo! Isto quer dizer que o Sr. Deputado não entrou no propedêutico da própria ideologia constitucional e que a própria ideia de constituição é alheia ao seu pensamento.

A minha ideia é de que este pensamento é perfeitamente compaginável com a ideia que o Primeiro-Minisiro exibiu na TV, ou seja, a ideia de que a Constituição não deve existir, de que desejável é não haver Constituição, que esta seja qualquer coisa de diáfano, de despível por dá cá aquela palha, que, verdadeiramente, o "monarca" tenha plenos poderes e, de quatro em quatro anos, se faça eleger de acordo com uma boa lei eleitoral para ditar tudo o que seja preciso durante esse período, sem oposição, sem instituições, sem Assembleia funcionando em termos normais, sem Tribunal Constitucional e, evidentemente, sem qualquer dos outros

Página 876

876 II SÉRIE - NÚMERO 30-RC

controles, incluindo o da opinião pública. Creio que essa concepção 6 a do deputado Pacheco Pereira, e este não a vem defender porque, se o fizesse aqui, teríamos uma discussão seguramente interessante. Fá-lo, portanto, nas colunas do Semanário amigo, que é o seu direito.

Creio que, em relação às ilações que possamos extrair deste folhetim para os nossos trabalhos, qualquer posição como aquela que o Sr. Presidente enunciou é equilibrada, neste sentido exacto: o nosso estatuto não nos torna nem imunes à crítica nem impotentes para a actividade política nas suas diversas vertentes. O único limitei, naturalmente, a verdade e a dignidade inerentes ao exercício das funções. O juízo sobre isso cabe, em última análise, aos eleitores que nos terão de julgar, mas, em todo o caso, creio que seria sem fundamento extrair Qualquer limitação que nos tolhesse quanto ao uso e até ao abuso das nossas liberdades de expressão. Entendo, portanto, Sr. Presidente, que a Comissão só deve tomar qualquer posição de reposição da verdade onde ela tenha sido infringida e onde sejam invocados factos que sejam do nosso domínio e que constem nas actas em termos que desvirtuem o seu exacto conteúdo e teor. Haverá que distinguir entre as coisas opinativas e as coisas de resenha ou de traslado de informações, como tais qualificáveis. Não há, portanto, qualquer fundamento para que usemos mecanismos adicionais em relação àqueles que, constitucional e legalmente, estão previstos para dar resposta a ataques, mesmo soezes, descabidos e virulentos, como aquele que foi proferido, nessa sede, pelo deputado Pacheco Pereira.

Creio, também, que o tipo de resposta que ataques desse género propicia tem sempre uma enorme limitação, a mesma limitação que acontece em certos processos escandalosos. E que o pior serviço que se pode prestar à causa da verdade é, muitas vezes, o dar-se ao autor do ultimato, da chantagem ou do escândalo o pretexto para adensar, com novas peças lodacentas, um dossier já por demais conspurcado. Creio que a leitura desta acta propiciaria ou propiciará, em seu tempo, ao deputado Pacheco Pereira alguns episódios adicionais para o seu folhetim e, pela minha parte, não gostaria de aditar muito mais que possa pretextar ou servir de base a essa forma de continuação pérfida de alguma coisa que considero ser realmente lamentável, mas que tem de ter a sua resposta noutra sede e de outra forma.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, naturalmente, este tipo de debates tem as suas regras dialécticas próprias e, portanto, iremos, em vez de fazer a revisão da Constituição, gastar mais algum tempo nesta matéria, o que é inevitável, mas não profícuo.

Queria, além disso, referir, para que fique claro, que a minha intervenção foi feita, exclusivamente, interpretando aquilo que me parece ser o papel da presidência desta Comissão e não formulando quaisquer juízos de valor sobre a matéria em debate. Isto para que se entenda claramente o que há pouco referi.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, dá-me licença que faça uma pequena observação?

O Sr. Presidente: - Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Creio que, pela nossa parte, temos administrado com alguma prudência este direito de fazer declarações políticas de conteúdo crítico sobre a marcha do processo de revisão constitucional por factores exógenos, para lhes chamar assim, porque o não são tanto como isso e acabam por se repercutir e traduzir, por vezes, mais a "verdade da revisão" do que algumas das discussões que aqui temos. É isso que nós, PCP, lamentamos profundamente.

A razão da prudência é tanto mais reforçada quanto as declarações susceptíveis de originar protestos, como o do Sr. Deputado Vera Jardim, se multiplicam. Provavelmente, só o facto de não ter chegado a Portugal o jornal Estado de São Paulo é que leva o PS a fazer esta declaração sobre uma personagem perfeitamente periférica e menor e não dizer absolutamente nada sobre a declaração do Primeiro-Ministro no Brasil, segundo o qual "o PS precisa mais da revisão constitucional do que o PSD" porque "o Governo já mostrou que é capaz de governar, já ganhou a sua própria credibilidade, e agora será o PS quem tem de ganhar essa credibilidade, mostrando à sociedade" (ou à saciedade - deve ser à saciedade, Deus sabe, mas tem de se lhe perguntar -), à sociedade e à saciedade, "que tem ideias flexíveis e modernas e que se for governar não governa de forma muito diferente da do PSD".

"Penso que vamos chegar a um consenso" - disse S. Exa. no Brasil, no mesmo contexto em que, com toda a calma, foi explicar aos Brasileiros outras coisas verdadeiramente abracadabrantes. Algumas delas devem ter deixado os Brasileiros de boca aberta, como seja a de que "o governo anterior nomeou para o Tribunal Constitucional algumas pessoas, uma das quais é o Vital Moreira do PCP e deputado na Assembleia da República". Perante isto, os pobres brasileiros poderão ficar, se não forem mais cultos do que isso, a julgar que este é um país de hotentotes em que os juizes do Tribunal Constitucional são, simultaneamente, deputados, julgam e fazem o produto julgado! Pensarão: "Este Portugal avôzinho degradou-se muito desde que chegou cá, pela nau do Cabral..." Este Primeiro-Ministro de Portugal vai para o Brasil dizer dislates deste tipo. E, realmente, só resta ir-lhes à mão através dos meios constitucionais próprios e, designadamente, através da liberdade de imprensa. Portanto, não vou fazer nenhuma crítica excessiva, além do que já deixei implícito, à selecção de alvos do PS. O PS atirou a uma mosca quando tem um elefante gordíssimo ao lado. É uma escolha significativa, quiçá...

O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado José Magalhães deixou implícito e explícito. Mas, enfim, as actas permitirão fazer a justa análise, a distribuição per capita dos tempos usados nestas matérias.

Tem a palavra o Sr. Deputado Rui Salvada.

O Sr. Rui Salvada (PSD): - O meu colega Carlos Encarnação já tinha dito alguma coisa sobre isto, mas eu não posso deixar de dizer alguma coisa face a esta intervenção do Sr. Deputado José Magalhães, porque sinto ser meu dever fazê-lo.

Antes de mais, parece-me que esta verborreia é absolutamente desnecessária. Quando, a pretexto de um artigo, se invoca a ética política e se vem em termos de revisão constitucional, na Comissão, fazer uma verborreia que é claramente para a acta, penso que é absolutamente desajustado e inadequado e queria claramente expressar esse sentido.

Tenho de lhe dizer ainda o seguinte: aquilo que se tem estado nesta sede a assistir desde o protesto do Sr. Deputado Vera Jardim até à intervenção do Sr. Deputado José Magalhães é uma clara tentativa de censura ideológica. O Sr. Deputado José Magalhães pode rir-se à vontade, pode fazer o que quiser, mas eu sou livre de lhe dizer isto,

Página 877

27 DE JULHO DE 1988 877

porque o Sr. Deputado Pacheco Pereira é absolutamente livre de expressar a sua opinião, e era só o que faltava, era só agora o que faltava, ouvir aqui os Srs. Deputados do PS e do PCP virem aqui terçar armas por uma dama como esta. É claramente a censura política às formas de intervenção dos deputados, sejam desta Comissão ou de outra qualquer. Aliás, não é a primeira vez que o PS utiliza instrumentos deste género em termos de uma pretensa dualidade de critérios quando as pessoas utilizam mais do que um estatuto público.

Queria, pois, reforçar aquilo que o Sr. Deputado Carlos Encarnação disse. Penso que é de uma infelicidade atroz este tipo de intervenções; não concordo minimamente que se lance aqui um labéu em relação a qualquer intervenção, de qualquer deputado, que, na sua qualidade de político e de cidadão, faça intervenções sobre qualquer matéria. E, aliás, assistimos todos os dias a deputados do PS ou membros da sua direcção política ou do PCP a fazerem intervenções públicas nos jornais ou em qualquer sítio, quando em boa verdade, se fizermos uma interpretação extensiva daquilo a que estamos a assistir nesta reunião, deveriam fazê-las apenas no Plenário da Assembleia da República. São deputados da Assembleia da República, façam-no no Plenário da Assembleia da República, não venham cá para fora fazer. Isto é perfeitamente desajustado, e o que eu queria era reforçar o que o Sr. Deputado Carlos Encarnação disse. É absolutamente inadequado, Sr. Presidente, este tipo de intervenções. E, do meu ponto de vista pessoal, rejeito totalmente isto, que me parece consubstanciar um verdadeiro terrorismo verbal.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Srs. Deputados, penso que, na verdade, já estamos a perder tempo de mais com isto. É o meu pensamento concreto em relação a este incidente. O Sr. Deputado Vera Jardim fez o protesto (estava no seu pleníssimo direito); eu fiz um contraprotesto (estava no meu pleníssimo direito); o Sr. Presidente esclareceu a questão; o Sr. Deputado José Magalhães colocou mais algumas achas na fogueira, como é seu timbre e seu costume. Não penso que as referências à posição do Sr. Primeiro-Ministro quanto à Constituição possam passar sem um protesto por parte do PSD. É isso que nesta altura estou aqui a fazer, na forma e, principalmente, na extensão com que o Sr. Deputado José Magalhães as fez. Uma coisa é utilizar frases do Sr. Primeiro-Ministro; outra utilizar intenções escondidas nas frases do Sr. Primeiro-Ministro; outra ainda fazer citações incompletas, citações imperfeitas, citações fora do contexto em que as afirmações foram proferidas, basear-se em notícias das quais não conhecemos a veracidade, basear-se em pequenos apontamentos dos quais não conhecemos o fundamento verdadeiro e partir daí para um discurso substancialmente distorcido em relação àquilo que deve ser a nossa interpretação quanto a algumas afirmações e pensamentos - que todos nós temos o pleníssimo direito de fazer quanto a textos, sejam ou não textos fundamentais, com os quais não concordemos. Do que se trata aqui, Sr. Deputado José Magalhães, não é de fazer um inventário do que se escreve no Semanário ou no O Diário. Gostaria de lhe salientar o seguinte: no O Diário variadíssimas vezes, por exemplo, se tentou colocar a questão, fazendo uma análise letral da revisão constitucional, dizendo-se nomeadamente que o PS e o PSD já estavam de acordo no negócio; já não era preciso fazer mais nada, a Constituição já estava revista; o PCP estava de fora. Variadíssimas coisas destas têm sido ditas; variadíssimas análises políticas destas têm transparecido na imprensa através de altos responsáveis, por exemplo, do PCP.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Desafio-o, aliás, a especificar isso, nesses termos.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Penso que qualquer destas coisas têm aparecido variadíssimas vezes no O Diário, mas têm também acontecido em intervenções públicas do secretário-geral do PCP, Dr. Álvaro Cunhal.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Nesses termos garanto-lhe que não!

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Várias vezes, têm sido várias vezes proferidas afirmações desse género.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Desse género, desminto formalmente a qualquer título.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - É evidente que aquilo que o Sr. Deputado José Magalhães veicula, nesta altura e nesta Comissão, acaba por situar-se dentro dessa vossa linha de estratégia política que compreendo muito bem. Ao fim e ao cabo, ela tenta, como disse desde o princípio, lançar mais achas para que o ambiente seja toldado, aproveitando declarações de a, b, ou c, que poderão estar no foro íntimo de cada um, que toda a gente tem o direito de expressar, mas que podem não corresponder, como é evidente, ao pensamento das direcções políticas dos partidos envolvidos, designadamente do PSD e do PS.

Era este o ponto que queria formular nesta sede. É simultaneamente um protesto em relação às declarações do Sr. Deputado José Magalhães e uma chamada de atenção para a exacta medida em que as declarações de responsáveis políticos podem e devem ser interpretadas, quanto a nós, à margem da revisão constitucional. Diz o Sr. Deputado José Magalhães que na revisão constitucional lhe é difícil admitir que se actue a chá e torradas. Julgo que é perfeitamente natural estarmos nesta sede a fazer um trabalho muito sério, muito ponderado, simultaneamente político e técnico, e, portanto, o ambiente desta Comissão não pode ser, de maneira nenhuma, o ambiente do que se passa lá fora e a nenhum de nós, como lhe digo e repito, como agente político, pode ser vedado expressar opiniões políticas de forma diferente das que expressamos aqui dentro. São realidades completamente diferentes.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Naturalmente que a declaração do Sr. Deputado Rui Salvada não pode passar em claro sem um protesto por parte do PS. O Sr. Deputado fez um discurso sobre a censura que provavelmente estaria pensado para apreciar a decisão do conselho de gestão da RTP em relação ao programa Humor de Perdição e não, decerto, para apreciar as declarações de intenção do meu colega de bancada Vera Jardim. Eu diria ao Sr. Deputado Rui Salvada que nós, PS compreendemos que o Sr. Deputado, pessoalmente, esteja muito sensível a tudo o que diz respeito ao posicionamento do PS. Mas é, naturalmente, uma sensibilidade subjectiva que lhe assiste. O que não lhe assiste, em nosso entender, é o direito de afirmar ou qualificar como inadequado o comportamento do

Página 878

878 II SÉRIE - NÚMERO 30-RC

Partido Socialista na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional. Se o Sr. Deputado Rui Salvada vier mais vezes a esta Comissão, compreenderá melhor qual é o comportamento do PS na CERC.

Segunda questão: quanto ao problema que o Sr. Deputado Vera Jardim levantou, o que está aqui em causa (como o Sr. Deputado Vera Jardim muito claramente disse) é que, se se tratasse da negociação de um tratado internacional, estaríamos no âmbito das chamadas CBMs (Corfidence Building Measures); o que está em causa é o PS protestar nesta Comissão (que é, aliás, seu direito) por uma atitude de um deputado do PSD que faz parte desta Comissão e que, em nosso entender, não contribui para a criação de um clima de confiança necessário à revisão constitucional. É só isto, e nada mais. Não há qualquer intuito censório, até porque compreendemos que haja pessoas que tenham mais vocação para fazer artigos de jornal do que para fazer artigos da Constituição. O Sr. Deputado Pacheco Pereira tem tido intervenções ião escassas e parcas nesta Comissão que todos nós somos prejudicados, como acabamos de ver, porque depois acabamos por tomar conhecimento de tais intervenções através dos jornais. Entendemos que seria bastante mais vantajoso que o Sr. Deputado Pacheco Pereira colaborasse mais activamente connosco, na Comissão, a expender as suas opiniões. Se ele próprio vier cá mais vezes, verificar-se-á que não é apenas "não vê quem não quer ver", mas também "não vê quem, pura e simplesmente, apenas vê aquilo que quer ver". Não queríamos transformar isto num incidente parlamentar e, por isso, entendemos que sobre este caso concreto devíamos tomar a atitude que o Sr. Deputado Vera Jardim transmitiu, que é muito clara e não tem intuitos censórios, mas que visa sublinhar uma tomada de posição que não pode ser ignorada.

Um último apontamento: quanto às declarações "tropicais" do Sr. Primeiro-Ministro, penso que o calor e a humidade, entre outros aspectos, explicam muitos dos comportamentos estranhos que os portugueses têm lido ao longo da história, no Brasil.

O Sr. Presidente: - Antes de dar a palavra ao Sr. Deputado José Magalhães, gostaria de sublinhar um ponto que me parece importante para ver se podemos rapidamente passar adiante. É que, colocada a questão, como aliás me parece correcta em termos de CBMs, cada um tem a interpretação subjectiva sobre as mesmas que entende, ou cada partido tem a sua. Não se justifica muito, para além do posicionamento que cada um queira referir, estarmos a discutir se as medidas contribuem ou não para a confiança da outra parte. E talvez nós, rapidamente, possamos voltar à tarefa de rever a Constituição.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Serei brevíssimo, correspondendo à sugestão ou apelo do Sr. Presidente.

Focaria apenas quatro aspectos:

Primeiro, as conclusões em relação ao estatuto dos membros da Comissão;

Segundo, o significado e alcance dos trabalhos da Comissão;

Terceiro, as questões de entendimento e relacionamento político em geral;

Finalmente, a importância de se chamar Primeiro-Ministro.

Quanto ao estatuto dos membros da Comissão, pouco tenho a acrescentar, exprimi uma posição que me parece extremamente equilibrada, que de resto não diverge minimamente, excepto para a desatenção e falta de hábito de ouvir e perceber, daquela que foi enunciada pelo Sr. Presidente. Entendo que, vivendo nós num país em que a liberdade de expressão, sendo no quotidiano por demais espezinhada, é constitucional e legalmente garantida (e, portanto, quem a puder ter que a tenha!), não poderei ser compelido a dar parabéns ao deputado Pacheco Pereira e a exultar cada vez que ele rapa da pluma para fazer serviço de homenagem ao Primeiro-Ministro, coisa que já não deve parecer ao deputado Salvada verborreia, ainda por cima estampada nas páginas de um semanário enfeudado ao grande capital. A coisa deve reunir todas as vantagens e todos os méritos para produzir um profundo gozo (não verborraico), aos fins de semana do deputado Rui Salvada.

É normalíssimo que isto seja dito. É para ser dito para a acta, e só tenho pena que não seja dito com possibilidades de difusão imediata, não censurada na RTP, na rádio e nos jornais. É isso que não está assegurado graças ao famoso "império laranja", com as suas conhecidas possibilidades de censura. A censura está aí, não aqui. Qualquer tentativa de pôr as coisas de pernas para o ar não surte grande efeito e a alusão ao "terrorismo ideológico" e outras coisas que tais, que são para assustar criancinhas à meia-noite, aqui não têm nenhum efeito. Toda a gente está habituada a fazer discussões políticas nesta Comissão, sobre questões bastante mais complicadas do que um "artiguelho" do deputado Pacheco Pereira, e a colocação das questões em termos abertos e frontais não é de molde a pôr ninguém aos rugidos, a berrar que isto é "terrorismo ideológico", "aqui d'el-rei", "querem censurar", etc., etc., etc.....

Não é nada disso! Só a falta de hábito da discussão e a falta de chá democrático na discussão mais elementar é que pode motivar reacções desse tipo. Aqui não tem grandemente lugar. Tudo se filia para alguns na tal concepção trauliteira da política de que falava um deputado do PSD, na qualidade de deputado ou de presidente, não sei.

Quanto ao posicionamento e estatuto dos membros desta Comissão, creio que a solução correcta só pode ser aquela que aqui foi enunciada. Se alguém faltar de forma grosseira, nítida, manifesta, à verdade em relação aos aspectos factuais dos trabalhos da Comissão, esta não pode ser indiferente.

Quanto ao mais, a asneira é livre, o insulto político é objecto de resposta pelas formas adequadas (em Portugal, pelo jogo normal dos diversos mecanismos, excluída a censura). E, em matéria de deputados, não há Hermans, porque, realmente, nós podemos subir à tribuna e dizer o que entendermos. O Sr. Deputado Salvada e os restantes 147 deputados do PSD ouvem e obviamente respondem, se quiserem, se puderem, se entenderem, se forem capazes. Se não, calam, como é óbvio.

Quanto ao significado e alcance dos trabalhos da Comissão, tenho alguma dificuldade em compreender a teoria da duplicidade, que aqui foi enunciada com afloramentos vários. O Sr. Deputado Carlos Encarnação chega ao ponto de dizer que as declarações dos principais responsáveis, no actual sistema político português, devem ser interpretadas à margem da revisão. O Primeiro-Ministro pode ir para os trópicos, para o Pólo Norte ou para o Pólo Sul e dizer que "o PS precisa mais da revisão constitucional que o Partido do Governo, porque se ela não se faz o PS terá de ficar na oposição até ao ano 2000 pelo menos", etc.. Isto é "perfeitamente normal", "não tem nenhum efeito na revisão constitucional"! Podem-se fazer observações mais provocatórias e gratuitas, como a

Página 879

27 DE JULHO DE 1988 879

respeitante ao facto de o "Governo anterior" (!) ter "nomeado" para o Tribunal Constitucional pessoas "que são políticos": não acontece nada, tudo isto "é normal". Dir-se-ia que para o Sr. Deputado Carlos Encarnação lá fora pode ser o inferno, cá dentro há-se ser leite e mel; lá fora a estalada, a agressão, o insulto, aqui o chá e as torradas. Não se pode ser tão dúplice!

Terceiro aspecto da duplicidade: a uns o trabalho da censura doce, a outros o trabalho da traulitada. É perigoso, Srs. Deputados, porque sendo a família a mesma e sendo a responsabilidade política a mesma, há um momento em que chegam ao fim essas duplicidades: é o momento da decisão, e o momento em que há que fazer efeito conglobado, é o momento em que é necessário extrair do leite e do café a conclusão se o galão é mais preto do que branco, ou que é uma mixórdia absolutamente intragável.

Isso leva-me ao terceiro e último aspecto. Ao ouvir o Sr. Deputado Carlos Encarnação e as acusações que verteu, de resto sem o mínimo fundamento factual, ao PCP (e desde logo ao seu secretário-geral) ocorre-me sublinhar que não encontrou em parte nenhuma a informação que invocou e seguramente não encontrou nenhuma afirmação com o grau de insulto político daquelas que vêm resumidas em alguma imprensa sobre o desvario tropical do Primeiro-Ministro. Nada desse género, e sobretudo nada nessa área de acusação ao PS. Quando ao PSD estamos entendidos. O PSD quer um projecto de ruptura e, mais do que isso, está disposto a recorrer aos meios mais inverosímeis, como revela a comunicação televisiva do Primeiro-Ministro, para o conseguir, antecipada ou atempadamente, pela via própria ou por outra qualquer, com este Tribunal Constitucional ou com outro, com estes juízos, se sobreviverem, ou com outros desejavelmente, e de preferencia "eminentes juristas" laranjas. Isto e público, notório, descarado. Isso sim é um elemento que vem perturbar fortemente o normal prosseguimento do trabalho da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional e de todo o processo de revisão constitucional. A não ser que os Srs. Deputados entendam que, quando o Primeiro-Ministro fala, deve gerar-se um silêncio tumular e cabeças que acenam! Farão VV. Exas. como entenderem, nós não! Usaremos todos os direitos regimentais contra isso, além dos direitos constitucionais respectivos. Quanto a reflectir se isto é bom para as CBMs, ou mau para as CBMs, pegando nas palavras do Sr. Deputado Carlos Encarnação, eu diria que o melhor contributo para as más CBMs, para o non-building, são intervenções como as do Sr. Deputado Pacheco Pereira, que ironicamente se revela um perigoso agente do processo de combate à revisão constitucional desejada pelo PSD. Constitui-se até num factor, como prova esta reunião da Comissão, de perturbação, que dá que pensar. Quando S. Exa. desempenha esse papel no processo de revisão constitucional, quando S. Exa., em vez de funcionar como aditivo e lubrificante, funciona como areia e, mais ainda, como elemento de agressão virulenta, estulta e empecilhante - basta ver o início, o desenvolvimento e, talvez, o termo desta discussão para se perceber em que grau é que S. Exa. consegue isso -, é caso para pensar se não estará enfeudado a alguma estratégia esquisita, estranha, relacionada com o processo de revisão constitucional, uma estratégia, essa sim, obstaculizante. Talvez seja essa a situação oculta no processo de revisão constitucional, talvez se lhe tenha descoberto uma vocação que está à altura das suas vocações anteriores desde os tempos áureos das actividades de "pum-pum" ou aparentado até às actuais.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Permita-me que o interrompa. Espero que V. Exa. não diga que o Sr. Deputado Pacheco Pereira está ligado ao PCP.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, não está! De certeza, Sr. Deputado Carlos Encarnação. Porque essa estratégia seria de tal forma primitiva, de tal forma virulenta, de tal forma ataralhoucada, que não a subscreveríamos a título nenhum. Será agente de muita gente, mas nosso não.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Já estou descansado, então, Sr. Deputado.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Repito, poderá ser agente de quem for, nosso não é, seguramente!

Vozes.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, esse ponto eu não esclareço mesmo. Só o deputado é que poderá esclarecê-lo. O último aspecto refere-se às achas para a fogueira e às intervenções do Primeiro-Ministro - Sr. Deputado Carlos Encarnação, eu gostaria, realmente, de ter as declarações integrais...

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Também eu!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Porque receio bem que nelas vá encontrar bastante pior e bastante mais do que aquilo que encontrei no resumo que foi difundido. Aliás, o resumo não foi desmentido, talvez não por acaso, pois o Primeiro-Ministro já tinha dito coisas bastante similares noutras declarações, incluindo em reuniões solenes do PSD.

Não creio que tenha cometido qualquer vício de citação inexacta. Creio, pelo contrário, que toquei em alguns aspectos gravosos e não pude tocar em outros porque, pura e simplesmente, não temos o conteúdo integral das declarações. Logo que o tenhamos, não deixaremos naturalmente de fazer uma avaliação ponto a ponto e depois global.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Estou satisfeito, Sr. Deputado. V. Exa. disse que se reportou a um resumo.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Posso até precisar que me reportei ao resumo constante da p. 3 do jornal Expresso, de 10 de Junho de 1988.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Que, ainda por cima, é uma transcrição de outro jornal.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto. Que revela ser a transcrição de uma extensa entrevista publicada no Brasil pelo jornal O Estado de São Paulo. Fiz isso, naturalmente, Sr. Deputado Carlos Encarnação, porque não podemos levar a distância que nos separa do outro lado do Atlântico ao ponto de ignorarmos o pouco que nos chega sob a forma de resumo - que não me parece tenha sido objecto de desmentido por parte do PSD, a não ser que V. Exa. esteja, neste momento, a desmentir o Primeiro-Ministro, coisa que muito me alegraria porque significaria que alguém no PSD teria o bom senso de pôr cobro a este tipo de dislates numa matéria de tão grande melindre, por parte do mais alto responsável do PSD, a uns dias de um congresso! Srs. Deputados, é de mais!

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

Página 880

880 II SÉRIE - NÚMERO 30-RC

O Sr. Vera Jardim (PS): - Uma breve intervenção, apenas motivada pela intervenção do Sr. Deputado Rui Salvada. Em linguagem telegráfica, eu diria, ou recordaria ao Sr. Deputado Rui Salvada: a Câmara de que somos deputados é uma câmara política, esta Comissão também; a censura política é, naturalmente, uma das funções primordiais da Câmara e desta Comissão também; o julgamento ético sobre o comportamento político de deputados ou outrem é, naturalmente, um segmento importante dessa censura política - pelo menos, julgo sê-lo. O meu protesto teve apenas como objecto uma censura ao nível ético quanto ao comportamento do Sr. Deputado Pacheco Pereira, ao fazer um nítido processo de intenções ao PS no artigo que citei. Para não ir mais longe e pretender chamar aqui a estratégia, ao serviço da qual o Sr. Deputado Pacheco Pereira poderá estar. O Sr. Deputado Rui Salvada tem certamente ideias confusas sobre o que seja o terrorismo, ou o que seja a ideologia - por maioria de razão, tem uma ideia confusíssima sobre o que seja o terrorismo ideológico.

O Sr. Presidente: - Penso que podemos dar por encerrada esta parte do nosso debate político, que não sobre a revisão constitucional.

Gostaria, todavia, de pedir a VV. Exas. duas coisas, na medida em que achem que esse pedido seja pertinente: primeiro, que, embora reconhecendo o carácter político da Comissão, tentássemos, sempre que possível e na maior parte dos casos, evitar um período de antes da ordem do dia; segundo, julgo que o calor da discussão explica algumas das adjectivações utilizadas, mas penso que seria conveniente, também nesse capítulo, tentarmos morigerar-nos um pouco - mas isso é um desejo meu, que VV. Exas. satisfarão se assim o entenderem.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Em relação ao artigo que estivamos a debater antes da questão suscitada pelo Sr. Deputado Vera Jardim, gostaria de formular uma outra observação. Há pouco, insisti que era difícil sustentar que a proposta de supressão do segmento final da norma do artigo 86.º, apresentada pelo PSD, fosse coisa inocente, ou apenas susceptível de ser defendida nos termos em que o estava sendo pelos autores.

Como sublinha o Prof. Sousa Franco, no seu conhecido artigo sobre a revisão da constituição económica publicado na Revista da Ordem dos Advogados, ano 42, de Dezembro de 1982, n.° 111, p. 674, a Constituição continuou, e continua, depois da primeira revisão constitucional, a afirmar dois princípios fundamentais, princípios orientadores relativamente às relações económicas externas; um, o princípio da independência nacional; outro, o da cooperação. Em relação à primeira directriz, que ora importa, sublinha o Prof. Sousa Franco, parece claro que, tendo ela significado global e, antes do mais, político, lhe cabe relevância particular na política de relações económicas internacionais, tanto no tocante à prática de actos externos e à conformação das estruturas exteriores, como na actuação e conformação interna do Estado; é o que decorre da alínea g) do artigo 91.°, que estabelece um princípio de cooperação sem discriminação, limitado pela independência nacional e, em seu prolongamento, pelos interesses dos Portugueses e da economia nacional do País. também a independência nacional figura entre as directrizes da disciplina legal do investimento estrangeiro, que não tem constado da lei, com manifesta inconstitucionalidade, o qual há-de respeitar a independência nacional (artigo 86.° da Constituição) e também se inclui entre as directrizes da intervenção do Estado no comércio externo (artigo 109.°, n.º 2, da Constituição).

Este é o problema, porque neste, como noutros pontos, aquilo que o PSD visa - mas, já agora, podia dizer isso com mais abertura, com mais transparência - é pôr a Constituição de acordo com uma realidade que é inconstitucional, pôr a marcha dos acontecimentos constitucionais de acordo com uma certa marcha dos acontecimentos no terreno. Nesta matéria, uma coisa é o facto de, entre as directrizes da disciplina legal do investimento estrangeiro, não se terem incluído directrizes como as que referi; outra coisa é, além de poder o PSD gabar-se desse tipo de orientações, pretender pôr a Constituição de acordo com elas. "Pôr a Constituição de acordo com a lei" é uma concepção que inverte o posicionamento razoável, correcto e, de resto, obrigatório entre os dois tipos de normas, as constitucionais e as de lei ordinária. Poderá acontecer que esta inconstitucionalidade tarde em ser declarada ou tenha, no caminho da sua declaração, trezentos escolhos, incluindo esse conjunto de criaturas horrendas que, a julgar pela charla televisiva do Primeiro-Ministro, se albergam no palácio Ratton - aludo, obviamente, à sede do Tribunal Constitucional -, que é um dos sítios mais horríveis de Portugal, como se sabe. Mas isso não nos deve levar a que, em sede de revisão constitucional, acolhamos a pretensão de eliminação que o PSD exibe.

A questão coloca-se nestes termos, e não em termos de minoração do alcance da proposta apresentada - ela tem um conteúdo, tem uma razão; a sua ratio não é estimável e o seu conteúdo é indesejável.

O Sr. Presidente: - Inscrevi-me como parte para referir, muito brevemente, o seguinte, em comentário à intervenção do Sr. Deputado José Magalhães: em primeiro lugar, a segunda intervenção de V. Exa. não traz, a meu ver, nada de novo em relação à primeira; em segundo lugar, a observação de que se está a inverter os processos é a pôr a Constituição de acordo com a lei ordinária também é irrelevante para este efeito, como bem se compreende, visto que estamos a tratar neste momento de um problema de revisão e não de um problema de constitucionalidade ou inconstitucionalidade da lei ordinária.

O Sr. José Magalhães (PCP): - É evidente que, se o PSD obtivesse a supressão do segmento final do artigo 86.°, a questão de constitucionalidade deixaria de se colocar - portanto, a legislação sobre investimentos, que não tem em conta este factor, seria absolutamente intangível, do ponto de vista da constitucionalidade.

O Sr. Presidente: - É óbvio, Sr. Deputado José Magalhães, não valeria a pena demorar dez minutos para dizer isso. Toda a gente sabe, não é verdade?

Mas, independentemente desse aspecto, gostaria de reiterar aquilo que há pouco referi. A nossa proposta tem dois pontos: primeiro, a supressão à menção dos interesses dos trabalhadores significa que pensamos existirem outros interesses igualmente dignos de consideração - e que não têm senão uma justificação, alicerçada na ideia de que o exercício do poder político pelas classes trabalhadoras vai permitir a transformação desta sociedade numa sociedade sem classes, portanto, é uma afirmação de um princípio estruturante de tipo colectivista, marxista-leninista -, não tem outro sentido senão restabelecer o equilíbrio e dizer que há outros interesses em causa, não se justifica o exclusivismo desses. Já há pouco, a propósito de uma intervenção do Sr. Deputado Almeida Santos, dei essa explicação

Página 881

27 DE JULHO DE 1988 881

- não acho que isto seja um programa despiciendo, nem que esteja a escamotear a realidade; não é um problema fundamental, mas é, obviamente, essa a nossa posição e dizemo-lo com toda a clareza: há outros interesses igualmente dignos de consideração; depende muito das circunstâncias do caso concreto; de qual a prevalência que deve ser dada a uns e a outros. Não queremos dizer que os interesses dos trabalhadores não devam ser considerados - devem, obviamente, ser considerados; só que não são o alfa e o ómega de toda a actividade dos cidadãos, que são mais importantes do que os trabalhadores.

Segunda observação: gostaríamos também de ser muito claros a propósito da questão da independência nacional - quando substituímos a expressão "independência nacional" pela expressão "interesse nacional" não pensamos estar a minimizar a independência nacional. Pensamos, isso sim, duas coisas! Por um lado, existem, numa política de investimento estrangeiro, outros aspectos relacionados com o interesse nacional que não são exclusivamente o da independência; por exemplo, tem interesse a questão das assimetrias regionais - é uma questão óbvia e não se refere, nem sequer remotamente, a não ser com interpretações perversas, à independência nacional. Por outro lado, parece-nos que, nesta matéria, chamar a atenção para o interesse nacional, evidentemente, sublinha o carácter importante que este tem, por exemplo, na estratégia das empresas, na preservação da autonomia das empresas portuguesas face às empresas estrangeiras, que não é propriamente dado ou vertido de maneira tão clara com o conceito de independência nacional.

Foi isso que pretendemos dizer: o problema do interesse nacional, em toda a literatura, quer económica quer jurídica, inclui os aspectos da independência nacional, nem teria sentido de outra maneira, nem teria - por outro lado, naturalmente, salvo uma interpretação insultuosa da proposta do PSD - qualquer significado de minimizar a independência nacional; o problema de saber se, na legislação ordinária, deve haver referência a isso ou não é uma questão diversa.

Isto não é minimizar a proposta do PSD; é dizer que, repetindo o que disse há pouco ao Sr. Deputado Almeida Santos, estamos de acordo em que a independência nacional tenha de ser preservada, obviamente, mas gostaríamos de ver uma formulação mais ampla. Claro que não é tão importante que seja por esta via, pelo desacordo existente entre o PS e o PSD nesta matéria. Não será por isso que a revisão constitucional deixará de se fazer - pesem muito embora, naturalmente, os receios ou os desejos que o PCP possa ter.

Era isto que eu queria dizer, para que não haja a ideia de que estamos aqui a escamotear algo - isto é extremamente claro, é muito nítido, e depois, naturalmente, está-se de acordo ou está-se contra; isso é óbvio, e é para isso que estão aqui a processar-se os debates.

Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.

O Sr. Raul Castro (ID): - Penso que as explicações que o Sr. Presidente, Rui Machete, agora formulou não serão bastantes para convencer da razoabilidade ou da aceitabilidade das propostas do PSD.

O Sr. Presidente: - Nunca chegarão, Sr. Deputado Raul Castro, para V. Exa. nunca chegarão! Já sabemos isso, mas está bem! É natural.

O Sr. Raul Castro (ID): - Se o Sr. Presidente me permitisse, eu diria que o problema não é o de nunca serem para mim, mas das razões objectivas que eu iria apresentar - é essa a questão. Porque, então, limitar-me-ia a dizer "Discordo! E termino aqui a minha intervenção!" Não se trata disso. Já que o Sr. Presidente não apresentou a proposta no sentido "consideramos que a proposta é perfeitamente aceitável e não quero dizer mais nada!", mas apresentou razões, logo penso que com isto quis colocar as razões ao alcance da discussão de qualquer deputado que quisesse sobre ela pronunciar-se.

O Sr. Presidente: - Tem toda a razão, Sr. Deputado Raul Castro. Peço desculpa. Estou atento às razões que V. Exa. vai dizer, novas em relação àquilo que já conhecemos da sua posição.

O Sr. Raul Castro (ID): - Não sei se vou dizer novas ou antigas. Agradeço, de qualquer forma, a atenção de V. Exa. - ainda que não sejam novas, porquanto nem sequer ouvi as intervenções anteriores (porque, quando cheguei, já tinham sido produzidas). Daí que não saiba se são novas ou não.

O que penso é o seguinte: a eliminação, na proposta do PSD, dos direitos, dos interesses dos trabalhadores e da expressão "independência nacional" não se coadunam com as explicações que V. Exa. apresentou. Em primeiro lugar, a epígrafe do artigo mostra claramente que o que está em causa é a actividade económica e os investimentos estrangeiros. Nesta matéria de investimentos estrangeiros, a preocupação constitucional foi, em primeiro lugar, salvaguardar a independência nacional, o que não é a mesma coisa do que substituir esta fórmula pela expressão "interesse nacional", porque a defesa do interesse nacional é uma expressão que se situa num puro terreno imediatista de uma negociação em relação a investimentos estrangeiros. Não é a mesma coisa, está longe de ser a mesma coisa, que a salvaguarda da independência nacional - penso que são duas expressões com significado bastante diferente. Quer dizer, o que preocupou os constituintes e os que reviram a Constituição em 1982 foi que, em matéria de investimento estrangeiro, não fosse posta em causa a independência nacional. Naturalmente, é fácil ver que a independência nacional pode ser, nomeadamente, posta em causa pela penetração e domínio do capital estrangeiro em Portugal - o que é mais do que uma simples, mera e restrita defesa do interesse nacional. Pode argumentar-se que se está a defender o interesse nacional ao permitir a entrada em Portugal de actividades de capitalistas estrangeiros, nomeadamente de multinacionais, sem isso pôr em causa que se fira ou não a independência nacional. Há aqui duas ideias diferentes. Há uma ideia de base...

O Sr. Presidente: - Não estou de acordo consigo, Sr. Deputado.

O Sr. Raul Castro (ID): - Também não esperava que o Sr. Presidente estivesse de acordo comigo.

O Sr. Presidente: - Não estou de acordo com a sua intervenção.

O Sr. Raul Castro (ID): - Mas, pelo que vejo, parece que alguma novidade haverá na argumentação.

O Sr. Presidente: - Tem toda a razão, há uma novidade na argumentação.

O Sr. Raul Castro (ID): - Quanto ao problema dos interesses dos trabalhadores, na realidade um dos limites materiais da revisão é a salvaguarda dos direitos dos

Página 882

882 II SÉRIE - NÚMERO 30-RC

trabalhadores e, nesta matéria, compreendo a preocupação constitucional de aqui se colocar a expressão "e os interesses dos trabalhadores", visto que os investimentos estrangeiros, no que diz respeito à actividade económica, trazem consigo um grave perigo em relação aos interesses dos trabalhadores que a lei consigna. Temos exemplos recentes de frequentes afirmações de convite a investimentos estrangeiros em Portugal, argumentando-se que em Portugal a mão-de-obra é barata, e por aqui se vê como foi realmente compreensível a preocupação de se inserir aqui esta expressão, não só porque isso corresponde a um limite material da revisão, mas porque é uma matéria que é especialmente sensível no que diz respeito aos investimentos estrangeiros, o que é demonstrado pela própria prática.

Por estas razões, Sr. Presidente, e porque, na realidade, as explicações que o Sr. Presidente apresentou para nós não são convincentes nem suficientes para justificar a eliminação da expressão "interesses dos trabalhadores" e a substituição da expressão "independência nacional" pela expressão "defesa do interesse nacional", devo dizer que estamos em discordância com elas.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, suponho não haver mais intervenções e poderíamos passar ao artigo seguinte - artigo 87.º - relativo aos meios de produção em abandono.

Existe uma proposta do CDS no sentido da sua eliminação, uma proposta do PS que mantém o actual n.º 1 e que dá uma nova redacção ao n.° 2 e uma proposta, de ordem sistemática, do PRD, no sentido de o fazer passar ao artigo 89.º do seu projecto.

Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Srs. Deputados, a Constituição hoje consagra apenas dois casos de confisco. Este e o primeiro, e entendemos que se não justifica esta pequena mancha numa Constituição que é toda ela afirmativa de direitos, nomeadamente o de propriedade, e que procura restringir ao máximo as excepções a esses mesmos direitos. Parece-nos que não teve nunca aplicação prática esta expropriação sem indemnização prevista no n.° 2. Pensamos que o princípio geral da indemnização ligada à expropriação dever manter-se sem excepção e sem mácula e que é mais realista e até conducente a melhores resultados. Sujeitar os meios de produção com abandono injustificado a medidas de arrendamento compulsivo ou de cessão de exploração igualmente compulsiva é mais realista. Não se desapropria ninguém daquilo que é seu, mantendo-se intacta a garantia do direito de propriedade. Por outro lado, se viesse a ter consagração, embora não veja como isso possa acontecer, a transformação do direito de propriedade num direito, liberdade e garantia, tal como o propõe o PSD, seria uma excepção e seria mais uma razão para a consagração desta nossa proposta. Não creio que a proposta do PSD venha a ter consagração - pelo menos, neste momento, não a encaramos como susceptível de merecer o nosso acordo -, mas, mesmo assim, entendemos que se devem banir estes dois casos.

O outro caso está ligado ao problema dos resultados de actividades económicas ilícitas, e parece-nos não ser necessária a constitucionalização deste caso de confisco para que, de acordo com os princípios gerais de direito, se possam apreender os instrumentos do crime e frustrar os respectivos ganhos. Parece-me que os dois limites que propomos são mais razoáveis, na medida em que são mais susceptíveis de ser concretizados, e a experiência diz-nos que nunca foi feita nenhuma expropriação sem indemnização por abandono injustificado de terrenos.

Penso que nunca se fez a regulamentação por lei ordinária do que seja um terreno abandonado - e note-se que há os terrenos dos emigrantes, bem como os terrenos das pessoas que, por velhice ou perda de saúde, deixaram de ter condições para trabalhar as suas terras - e só quando se trate de grandes propriedades é que se justificará uma intervenção deste tipo. Eu diria que hoje, nas aldeias, começa a ser normal o não cultivo de terras, em resultado do êxodo das populações juvenis para os grandes centros ou para o estrangeiro, faltando mão-de-obra. Seria uma sanção de algum modo violenta na maioria dos casos.

Assim sendo, parece-nos que esta nossa proposta é razoável e nestes termos a fundamentamos.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): -Sr. Deputado Almeida Santos, em primeiro lugar, queria manifestar a minha concordância e a concordância do PSD em relação a esta sugestão proposta pelo PS, A única pergunta que gostaria de fazer é a seguinte: se, embora a eliminação do n.° 2 faça inferir que o direito a indemnização venha a existir, não seria melhor declarar o direito de indemnização no próprio n.º 1.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Deputado, nunca nos batemos pelo desdobramento da redacção, salvo quando isso se justifique. Se se entender que uma redacção que englobe os dois números é melhor, não nos oporemos.

O Sr. Carlos Encarnação (PS): - É que, eliminando o n.º 2, concluir-se-á que o direito à indemnização aparece. No entanto, tratava-se apenas de acrescentar, no n.º 1...

O Sr. Almeida Santo (PS): - É que o n.º 1 admite que o abandono pode ser justificado e, nesse caso, não se aplica o n.º 2, pois o n.º 2 trata apenas do abandono injustificado. Poderiam dizer, no n.º 1, por exemplo: "podem ser expropriados [...] podendo ser imposto o arrendamento compulsivo ou a concessão de exploração quando esse abandono for injustificado". Mas isso é já uma questão de redacção e depois veremos qual será a melhor.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - On.8 1 não trata apenas do abandono justificado. Só a sua parte final é que se refere a ele; a primeira parte não.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Na primeira parte, trata-se do abandono puro e simples, ou seja, o que não é infustificado. A segunda parte trata do injustificado. Mas, no caso de abandono não justificado, compreende-se a expropriação com a indemnização pura e simples. É claro que, se houver interesse nacional na expropriação de um terreno abandonado, mesmo que o abandono não seja injustificado - e a porta já está aberta lá atrás -, nem precisamos de o dizer aqui. No entanto, a novidade é eliminar o caso de abandono injustificado com expropriação sem indemnização, passando agora a ser substituída esta medida drástica e draconiana pelo arrendamento compulsivo ou pela concessão de exploração igualmente compulsiva.

O Sr. Presidente: - Quer dizer, a eliminação da excepção obviamente, repõe a regra geral do direito de indemnização.

Página 883

27 DE JULHO DE 1988 883

O Sr. Almeida Santos (PS): - Claro.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, a proposta do PS suscita algumas interrogações porque pressupõe uma inflexibilidade que não existe. Há uma certa assintonia entre o discurso e a proposta e uma certa dêcalage entre a fundamentação e o resultado, porque a situação que o Sr. Deputado Almeida Santos descreveu relativa à relação conturbada entre os emigrantes e a terra e outros meios de produção em abandono não é susceptível, constitucionalmente, de ser equacionada em termos penalizadores dos emigrantes, a qualquer título.

De resto, o PS não propõe sequer a alteração do n.° 1, desde logo porque a Constituição não estabelece uma obrigação de expropriação. A Constituição estabelece uma faculdade de expropriação. Isto quer dizer que a norma é susceptível não de uma só leitura e de uma aplicação, mas de muitas aplicações e até de algumas não aplicações, obedecendo a juízos de pura oportunidade política que são o resultado normal do funcionamento das instituições com a conformação que resulte, em cada momento histórico, do sufrágio. Nem mais, nem menos.

Por outro lado, o PS não me parece alterar o fito básico do preceito, ou seja, o enjeitamento da ideia de que, quanto a meios produção, o abandono possa ser tão lícito como o uso, que o aproveitamento integral possa ser tão relevante constitucionalmente como o desproveitamento integral. Essa ideia não é consagrada no preceito proposto pelo PS.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Substituímos a pena.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto. Só isso. A norma actual aponta, aliás, para o dever de exploração, deixando, porém, à lei uma margem de conformação enorme, desde logo na definição do que é que sejam "meios de produção abandonados" que é que se deva entender por injustificação e justificação, quanto ao lapso de tempo necessário para que se configure um verdadeiro e próprio abandono...

O Sr. Almeida Santos (PS): - A lei ordinária tem de dizer alguma coisa, como é óbvio.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto. O legislador ordinário tem um vastíssimo campo de flexibilização in itinere e na aplicação da norma, que realmente me interrogo, nesta primeira leitura, sobre o que é que se está a exorcizar com esta supressão, porque, verdadeiramente, tudo ponderado, aquilo que o PS pretende é que haja indemnização no caso de haver abandono injustificado, nos termos que a lei considere que o processo conduz a esse resultado e nos casos em que, face a essa situação de abandono, o Governo ou a entidade competente entenda expropriar.

O PS parece, portanto, configurar como impossível ou indesejável - pois talvez se situe mais nesse campo da indesejabilidade do que no da impossibilidade - a existência de casos" tão graves de abandono de meios de produção que se justifique a expropriação sem indemnização. Dir-se-ia que admite que a expropriação sem indemnização é uma espécie de "pena de morte" e que entende que as únicas penas aplicáveis aí devem ser o arrendamento compulsivo ou a concessão de exploração compulsiva. É isto? Parece ser isto, mas...

O Sr. Almeida Santos (PS): - Posso dar-lhe uma explicação, para simplificar. É que nos parece que, estando em causa o abandono, o que se quer não é que as pessoas deixem de ser proprietárias daquilo que é seu e que têm em abandono, mas que aquilo que está abandonado deixe de o estar. O mal é o abandono e não a propriedade do indivíduo que abandonou. Por consequência, ataca-se o abandono e não a propriedade, mantendo-se a expropriação no n.° 1, pois, se o Estado entender que deve expropriar, paga, seguindo a regra geral da indemnização. Se entender bastar a expropriação do uso, é expropriado o uso com indemnização. Assim, expropria-se o uso, não se expropriando a propriedade porque foi uso que foi colocado em causa pela falta e não a propriedade em si, ou seja, há aqui um reforço do direito de propriedade.

O Sr. Raul Castro (ID): - O Sr. Deputado Almeida Santos permite-me que lhe faça uma pergunta?

O Sr. Almeida Santos (PS): - Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. Raul Castro (ID): - Sr. Deputado, é que parece que se cria com esta fórmula que o PS sugere um estímulo ao abandono injustificado, pois, se, por hipótese, o sujeito não consegue arrendar ou ceder a exploração de um meio de produção, abandonava-o injustificadamente, e o prémio é substituir-se a isso um arrendamento compulsivo.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Só que o arrendamento compulsivo é uma faculdade e não uma obrigação do Estado. O sujeito não pode contar com isso, pois, se abandona alguma coisa que vale a pena não ser abandonada, o Estado intervém, mas, caso contrário, o Estado deixa-a ficar em abandono. Como já disse há pouco, o Estado não vai intervir no abandono de todas as folhas de cultura das aldeias, mas apenas nos casos em que se tratar de uma grande folha de cultura injustificadamente abandonada. Penso que é mais eficaz esta medida do que a outra, e digamos que é menos injusta.

É que o caso do confisco é um caso excepcional em todas as constituições. A expropriação ou a nacionalização chegam e sobram para desapropriar um bem da titularidade de alguém. Mas o confisco é odioso. Sempre o foi e sempre o será. Valerá a pena que na nossa Constituição, que é tão nobre na defesa de direitos fundamentais, permaneçam estas duas mazelas? A Constituição, sem elas ficará mais ... "bonita"!

O Sr. Raul Castro (ID): - Mas o conceito de beleza é uma coisa que não estará talvez aqui em causa. Outra coisa é o que isto significa na realidade.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Então não está em causa a beleza que há na defesa impecável dos direitos fundamentais? É uma forma de beleza como outra qualquer.

O Sr. Raul Castro (ID): - Isso é em matéria de saúde!

O Sr. Almeida Santos (PS): - Se quiser, também é mais saudável!

O Sr. Raul Castro (ID): - Mas o que aqui impressiona - e mais ainda até com a resposta que me deu - é que não se trata apenas da substituição de uma fórmula imperativa, tratando-se antes de uma fórmula facultativa.

Página 884

884 II SÉRIE - NÚMERO 30-RC

O Sr. Almeida Santos (PS): - Não, já hoje é facultativo, pois o n.° 2 está submetido ao n.° 1, do qual consta uma faculdade, dizendo também o n.° 2 que "poderão incluir, como efeito da pena, a perda dos bens". Onde se diz "a expropriação não confere" é no caso facultativo do n.º 1, ou seja, se houver expropriação.

O Sr. Raul Castro (ID): - Tem razão.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Agora, neste caso, se houver expropriação, então aí terá de ser com indemnização. Creio que estamos todos de acordo em que o confisco é odioso e, se ele for eficaz, é-o tão pouco que ninguém lançou mão dessa bomba atómica. No entanto, se for aplicada uma pena mais ajustada à realidade, que é no fundo a expropriação do uso e não da propriedade, talvez o Estado, em casos justificados, intervenha na base de uma lei que diga quando é que o abandono é injustificado, como, por exemplo, quando o proprietário nem esteve ausente, nem doente, nem pode alegar falta de mão-de-obra, etc.

O Sr. Raul Castro (ID): - Mas a renda reverte...

O Sr. Almeida Santos (PS): - À renda reverte a favor do titular da terra, como é óbvio. Se não, lá estavam a mesma expropriação e o mesmo confisco.

O Sr. Raul Castro (ID): - Pois. Mas, assim, uma atitude reprovável, que é o abandono injustificado de um meio de produção, vem a ter um prémio. O Sr. Deputado Almeida Santos diz que isto é uma mancha, mas é preciso ver se o será realmente, porque é também uma situação anómala, visto tratar-se de um abandono injustificado.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Mas é a lei ordinária que vai dizer como é que se determina a renda. E a renda poderá ter implícito algum grau de penalização do abandono. Se o direito de propriedade foi considerado absoluto e intocável, hoje já não o é. Tem uma função social, e nós próprios, em artigos anteriores, o vinculámos à consideração do interesse colectivo. Ora, quando o interesse colectivo está em causa no abandono injustificado de uma propriedade, o Estado intervém dizendo: "Você não cultiva, alguém o vai fazer por si." A lei ordinária definirá a renda. Note-se que é também verdade que ou a renda é aliciante para quem substitua o titular ou não encontraremos ninguém que o substitua. Essa definição é a lei ordinária que a vai fazer e não vamos fixar aqui qual deva ser a renda, quais os critérios, etc.

O Sr. Raul Castro (ID): - É evidente. Não é isso o que está em causa, mas o princípio. É que, ainda que a renda não seja aliciante, é um rendimento que é atribuído a quem não teria direito a ele, porque abandonou injustificadamente. O Sr. Deputado Almeida Santos diz que não se justifica esta pequena mancha. Mas que mancha? Parece que a mancha é o abandono injustificado.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Por isso ele fica de fora na negociação de arrendamento. Não será ouvido. É notificado e ou agriculta ou perde o uso da sua propriedade.

Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Vice-Presidente Almeida Santos.

O Sr. Presidente (Almeida Santos): - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Presidente, era para o acompanhar nas considerações que produziu e para contraditar as considerações do Sr. Deputado Raul Castro...

O Sr. Raul Castro (ID): - Como esperava...

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Como esperava, com certeza. Sempre pensei que não esperasse outra coisa, ou seja, que pensasse que eu estava mais próximo do Sr. Deputado Almeida Santos do que das suas opiniões.

Mas o que eu estava a dizer era o seguinte: esta formulação que o PS apresenta é uma formulação substancialmente pensada e substancialmente justa. Porquê? Porque, tanto quanto eu compreendi - e o Sr. Deputado Almeida Santos falou na sua terra, que até nem é muito longe da minha -, reporta-se à realidade do País que não são só as cidades. Aí o que acontece é isto, e creio que a sanção da intervenção do Estado é já em si mesma uma sanção. Daí que esteja perfeitamente de acordo com aquilo que aqui se diz: "O arrendamento ou a concessão não faça reverter para o titular quaisquer rendimentos." O que não se lhe retire é a propriedade. Portanto, ele perde a posse útil, perde a fruição, mas não perde a propriedade, isso é que seria a tal medida extremamente antipática e, em certa medida, contrária ao espírito da Constituição, da ofensa do direito de propriedade. Compreendo que aqui esteja o verdadeiro equilíbrio da norma.

O Sr. Presidente: - Eu já dou a palavra à Sr.! Deputada Assunção Esteves.

Queria só dizer o seguinte: quem é jurista, e sobretudo penalista - como o Sr. Deputado é -, sabe que as penas mais pesadas não são em regra as mais eficazes. Quando uma pena é desmedida em relação à falta, os juizes tendem a não a aplicar. É o caso desta, que nunca foi aplicada, porque é violenta. Uma pena mais suave será aplicada, logo a eficácia da pena pode ser muito maior em caso de moderação da pena.

Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Não queria mais do que acrescentar-me ao Sr. Deputado Carlos Encarnação nesta apreciação da proposta do PS. Afigura-se-me que se o que se pretende acautelar com o artigo 87.9 é o problema da função social da propriedade e evitar o não uso da propriedade, não uso esse que tenha efeitos que a Constituição entende desvantajosos e reprováveis. O que está aqui em causa e que a Constituição pretende salvaguardar, no meu entender, é o não uso da propriedade; neste caso o não uso dos meios de produção. Se é isso, a proposta contida no n.8 2 vem exactamente remover a causa que se pretende evitar, isto é, vem repor o uso sem ter a obsessão de penalizar. A intervenção do Sr. Deputado Raul Castro norteia-se por uma obsessão penalística, que não pela tentativa de através da Constituição obviar à remoção da causa que, essa sim, é objecto de consideração do artigo 87.Q, isto é, pretende o Sr. Deputado Raul Castro que o n.° 2 seja, a nível constitucional, uma disposição de carácter sancionatório, de tipo penal, ou pretende antes que através do artigo 87.° se evite o não uso dos meios de produção, que, esse sim, tem um efeito socialmente contraproducente, criando a Constituição alternativas que removam essa causa sem entrar naquela obsessão penalística e de certo modo numa distorção de todo o teor de considerações que a Constituição vem fazendo a propósito de direitos funda-

Página 885

27 DE JULHO DE 1988 885

mentais. Parece-me que aqui o problema da propriedade nem é o fundamental; o problema é o do uso dos meios de produção, e parece-me que o uso forçado criado pelo n.° 2 da proposta do PS poderá eventualmente resolver todos os problemas que se colocam a nível do artigo 87.° Devo dizer que, nessa lógica, nem sequer me espanta nem sequer me causa perplexidade o facto de virem os proprietários dos meios de produção em abandono a receber as rendas correspondentes ao arrendamento compulsivo ou à concessão de exploração compulsiva, isto na medida em que o problema está resolvido através do uso forçado, porquanto é o não uso que o artigo 87.° pretende - passe a expressão, que tanto lhe parece agradar - incriminar.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães tem a palavra.

O Sr. Raul Castro (ID): - Se me permite...

O Sr. Presidente: - Faça favor, Sr. Deputado Raul Castro.

O Sr. Raul Castro (ID): - Eu queria fazer uma pergunta à Sra. Deputada Assunção Esteves, porque não entendi muito bem a explicação. A pergunta resulta da intervenção do Sr. Deputado Carlos Encarnação, que afirmou que concordava com a proposta do PS, até admitindo - creio que foi isso o que disse - que o rendimento resultante não revertesse a favor do proprietário. Ora, na intervenção da Sra. Deputada Assunção Esteves surgiu uma posição diferente e, além disso, a Sra. Deputada circunscreveu a sua intervenção ao abandono, retirando-lhe o que é essencial, o abandono injustificado. É que o n.º 2 visa em especial o abandono injustificado e a gravidade do abandono; é essa qualificação; é não ter justificação; por assim dizer, o proprietário com a sua conduta é que provoca a intervenção do Estado, porque deixa de exercer os direitos que devia exercer como proprietário. Aliás, os meios de produção não são só a terra; há meios de produção industriais, fábricas, etc.. De qualquer forma, a hipótese é: em face disto, como sancionar? Não é o problema, que aliás o Sr. Deputado Almeida Santos levantou, de isto ser uma questão penalística, isto é a norma constitucional, é a sanção para o não uso do direito de propriedade sem justificação para isso. O que fica em aberto é saber se a Sra. Deputada, por um lado, teve presente que se trata de um abandono injustificado e, por outro, admite, como o seu colega de bancada, que o rendimento que resulta do arrendamento ou da exploração não reverta a favor do proprietário.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Antes de responder, queria fazer ao Sr. Deputado outra pergunta. Entende que o artigo 87.° deve salvaguardar o problema do não uso ou deve preocupar-se com o problema da não justificação? O que é que é socialmente danoso? É a não justificação ou o abandono em si? E é em função desta resposta que temos de encontrar uma alternativa à redacção actual do artigo 87.°

O Sr. Raul Castro (ID): - São as duas coisas, porque o que diz o n.º 2 é "1 - Abandono; 2 - Injustificado, ou seja abandono injustificado"...

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Mas não me interessa o que diz o artigo 87.°, porque eu estou aqui na revisão constitucional a tentar encontrar uma alternativa melhor ao artigo 87.° e os efeitos que são atribuídos.

O Sr. Raul Castro (ID): - Eu respondi à pergunta de V. Exa. e espero que responda às minhas.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - A pergunta que me fez foi exactamente sobre o problema de o proprietário vir ou não receber a renda, e eu disse a V. Exa. claramente que, embora tudo isto tenha a ver com as condições concretas e com o modo como venha a ser regulado de modo subordinado à Constituição, isto é, a nível de lei ordinária, não me repugna, do ponto de vista da defesa da razão de ser do artigo 87.°, que o proprietário que foi sujeito ao arrendamento compulsivo dos seus bens ou à exploração compulsiva dos mesmos venha a receber a renda no mesmo sentido em que o abandono tivesse sido justificado, porque a razão de ser do artigo está salvaguardada, e não se pretende aqui criar limitações e penalizações do proprietário; pretende-se aqui salvaguardar aquilo que é a chamada função social da propriedade, e o n.° 2 salvaguarda-a claramente sem entrar em formas restritivas dos direitos fundamentais.

O Sr. Presidente: - Antes de passar a palavra ao Sr. Deputado José Magalhães, queria fazer duas considerações para ele levar em conta. As propriedades, os bens, as fábricas, as terras são a garantia geral das dívidas do próprio titular. Vamos pôr as coisas nos seus termos: um indivíduo tem uma propriedade, uma fábrica e deve dinheiro. O Estado apropria-se delas sem indemnização e desaparece a garantia geral dos credores. Além de outras consequências, o confisco tem de negativo esta: fazer desaparecer a garantia geral dos credores, que é o património do devedor.

Por outro lado, se nós queremos eliminar este caso de confisco - e já veremos qual é o outro no artigo seguinte -, é evidente que, se a renda não fosse para o proprietário da terra, ou da fábrica, ou do bem de produção de que se trate, haveria um confisco parcial, não da propriedade mas do uso. Existiria sempre uma margem de confisco logo a Constituição não ficava limpa desse pecado.

Gostaria que tomasse em consideração estas duas considerações; daí que, em nosso entender, a medida só se justifique se na totalidade ou em parte não houver confisco.

Por outro lado, queria que pusesse a tónica da vossa apreciação nisto: qual tem sido a eficácia desta medida; qual poderá ser a eficácia da nova pena se ela for mais adequada à gravidade da falta. Também não está em causa o prazo. Estaríamos abertos a que a lei ordinária previsse um prazo de 50 anos ou mais. Se um indivíduo tiver um arrendamento compulsivo por 50 anos, é uma medida bastante dura, mas sem confisco.

Diga, Sr. Deputado Raul Castro.

O Sr. Raul Castro (ID): - Queria fazer uma pergunta.

Na sequência do debate, o Sr. Deputado Carlos Encarnação abriu outra possibilidade, e é sobre essa que questiono V. Exa. qual é o destino da renda ou do montante da exploração?

O Sr. Almeida Santos (PS): - Nesse aspecto, pelo nosso lado, acabei de fechar a porta a qualquer margem de dúvidas: a renda é do titular da coisa abandonada. Qual seja

Página 886

886 II SÉRIE - NÚMERO 30-RC

essa renda? Com que critérios vai ser fixada? É a renda justa? Se é apenas a renda que como indemnização costuma ser atribuída às nacionalizações, que não tem de coincidir necessariamente com a renda justa, se expropriarmos uma parte da renda, o confisco parcialmente subsiste, o resultado que queremos atingir só parcialmente será atingido.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Esqueci-me de dizer ao Sr. Deputado Raul Castro algo que tinha pensado e que acabou por me esquecer, que é o seguinte: dá a impressão, da sua intervenção, de que não há aqui nenhum meio limitador relativamente ao proprietário dos meios de produção que os não usa. De facto, mesmo com a solução apontada no n.° 2 do projecto n.° 3/V há claramente uma limitação e uma espécie de sanção para o proprietário, que é o subtrair à sua disponibilidade o não uso da propriedade, este artigo penaliza o não uso, quer dizer, acaba por não deixar na disponibilidade do titular dos meios de produção essa faculdade, e isso é também uma forma de sanção, é uma restrição às suas faculdades inerentes ao direito de propriedade, é limitá-lo, é restringi-lo, é subtrair-lhe a faculdade de não uso. Também aqui, se quiser, há uma espécie de penalização, porque deixou de estar dentro da margem do arbítrio do proprietário fazer o que quer dos seus meios de produção.

O Sr. Raul Castro (ID): - Ó Sra. Deputada, penso que aquilo que acabou de dizer não tem lógica. Então é penalizado pelo não uso? Mas ele está desinteressado, pois injustificadamente abandonou a sua propriedade.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Não é penalizado pelo não uso; ele não tem é a faculdade de não uso, nos termos do artigo 87.° Isso já é uma forma de limitação.

O Sr. Raul Castro (ID): - É penalizado por deixar de usar, na medida em que na proposta do PS é arrendado ou sujeito a exploração; mas é isso mesmo, que penalização é essa, se ele próprio abandonou e a Sr.* Deputada nunca acrescenta o adjectivo "injustificadamente". Mas, mais do que isso, não há penalização nenhuma, mas um prémio, porque o montante da renda ou do contrato de exploração na sua interpretação e naquilo que esclareceu o Sr. Deputado Almeida Santos, reverte a favor do proprietário; logo não tem penalização nenhuma. Se foi ele próprio que deixou de usar a propriedade, onde é que está a penalização?...

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - A pergunta que lhe faço é se, nos termos do n.° 2, quando há sujeição à concessão da exploração ou há arrendamento compulsivo se mantém a faculdade do não uso do proprietário? Entendo que não se mantém, e isso é uma forma de restrição do direito de propriedade que a Constituição consagra claramente, justificadamente. O n.° 2 é o mesmo que dizer ao proprietário: "Já não existe a faculdade do não uso".

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Creio que, por um lado, é de acentuar que não entendemos que a Constituição não esteja limpa por conter esta solução tal como, de resto, a do artigo seguinte. Não nos rege a preocupação de apagar os "pecados" da Constituição neste domínio, sobretudo face aos resultados do debate.

O Sr. Presidente: - É o seu ponto de vista, não é nosso. Nós sempre entendemos que o confisco é odioso.

O Sr. José Magalhães (PCP): - O problema é que a função desta norma constitucional não é a instituição de uma forma de intervenção odiosa: visa-se garantir, entre muitos outros, um objectivo que é respeitável, qual seja o da plena utilização das forças produtivas.

O Sr. Presidente: - O problema é o da adequação da pena.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Quanto a isso a discussão pode ser travada, se bem que a nossa posição não parta de um preconceito ou de alguma culpa em relação ao actual conteúdo da Constituição.

Gostaria de acentuar que o PSD não propôs coisa nenhuma nesta matéria. É facto histórico, inequívoco e inapagável que o PSD não tem essa proposta entre as suas propostas, coisa que não o lerá apoquentado na altura...

O Sr. Presidente: - Todos nós temos as nossas próprias motivações...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Como o PSD rebenta pura e simplesmente com o artigo 81.° e designadamente com a alínea na qual se alude à incumbência prioritária do Estado no domínio da organização económica do social de "assegurar a plena utilização das forças produtivas". Talvez tenha sido isso que levou os doutos proponentes do PSD a não insistir nesta proposta uma vez que, esvaziada, era a incumbência que lhe daria algum vigor. Assim, ficaríamos com uma faculdade de exercício inteiramente livre, sem sequer estar o Estado obrigado a assegurar por qualquer forma algo que se assemelhasse a uma plena utilização.

O problema está talvez aí. É extremamente erróneo considerar esta proposta desanreigadamente. Dir-se-ia que o PS tem por líquido que esta sua proposta é para aprovar. O facto de o PSD se ter mostrado tão entusiasmado com ela é indiciador disso; só que resta saber quais são os pressupostos de ambos. Aparentemente o PS pressupõe que isto será assim, mas nada acontecerá ao artigo 81.° além daquilo que o PS propõe. O PSD provavelmente conjuga o artigo 81.° que propõe com o acquis proporcionado pelo PS em relação a este artigo que agora estamos a apreciar. Devo dizer que é um casamento fatal, susceptível de fazer uma prole bastante indesejável, mais perversa que a pura conjugação de cada um dos cônjuges. E é isto que me preocupa, porque é óbvio que é impossível deixar de ler este preceito sem fazer as articulações adequadas com os outros preceitos da constituição económica, incluindo os respeitantes ao uso e não uso da terra.

Quanto à proposta do PS sobre este artigo, é evidente que é negativo espalhar pela Constituição avisos sem conteúdo. E digo que é negativo porque a isso se chama o "equilíbrio do terror": guardar em grandes stocks armas atómicas que não são para usar. A virtualidade defensiva desses stocks é bastante pequena e encarece muitíssimo os "preços constitucionais". Isto também se sabe.

Porém, o que resta saber é se isto tudo que se sabe em geral é de aplicação a este caso concreto. Devo, sobre isto, dizer que tenho grandíssimas dúvidas, porque este é o único caso constitucional de expropriação sem indemnização após a primeira revisão constitucional. A Constituição no seu texto originário previa no n.° 2 do artigo 70.° que a lei pudesse determinar que as expropriações dos latifundiários e de grandes proprietários, empresários ou accionistas não

Página 887

27 DE JULHO DE 1988 887

dessem lugar a qualquer indemnizarão. Sabemos bem dos debates que nos apoquentaram desde 1977 em que o PS entendeu não plasmar em lei ordinária o que quer que estivesse inserido nesta filosofia, mas sim substituí-la, o que veio a ser consumado em sede de primeira revisão constitucional. Trata-se agora de levar às últimas consequências esse princípio, eliminando o último vestígio de uma figura que teve mais expansão no texto originário da Constituição. É esse caminho ou descaminho que, por um lado, não nos mercê aplauso nem apreço. Por outro lado, devo dizer que, em relação à questão da expropriação e ao aperfeiçoamento do seu regime jurídico, nós próprios, quanto ao artigo 62.°, temos uma proposta que visa aperfeiçoá-lo. Porém, ela visa aperfeiçoá-lo garantindo que, mesmo nas expropriações fora dos casos de utilidade pública, só possam ser efectuadas nos casos previstos na lei e mediante pagamento de justa indemnização. Não deixamos, no entanto, de preservar o caso em que isso pode acontecer sem indemnização nos termos da própria Constituição. E, portanto, a nossa proposta não abrange isto mesmo que o PS agora propõe.

Curiosamente, o PS não deixa de ater-se àquilo que é o intuito fundamental do preceito. De facto, a ratio básica do preceito é garantir o não abandono, o assegurar a plena utilização, o não incluir como uma das faculdades ínsitas no próprio conspecto dos poderes e demais aspectos relacionados com o direito de propriedade o abandono, o não uso, a não utilização e a não extracção dos meios de produção daquilo que é próprio da sua virtualidade. Isso leva-me a fazer algumas considerações. De facto, esse desiderato só será alcançável se se opuser ao titular do direito de propriedade qualquer coisa que seja susceptível de não funcionar como elemento de atracção, mas antes como elemento de repulsa. É por isso que se torna impossível - e não vale a pena alegar muito sobre os vesos e obsessões penalísticas deste, daquele e daqueloutro deputado - fazer o raciocínio sobre a eficiência deste preceito sem ter em mente uma qualquer noção de dissuasão. A dissuasão só é conseguível se o mal com o qual se confronta o destinatário for suficientemente relevante para o impressionar e lhe influenciar a conduta concreta. Se esse mal não for mal, mas antes um elemento indiferente ou até de sedução, não estaremos então a fazer dissuasão, mas sim incitamento, convite e prémio. E foi essa a preocupação primacial que inspirou as intervenções do Sr. Deputado Raul Castro.

Muitas das coisas que VV. Exas. disseram não têm a mínima virtualidade para se projectar na legislação ordinária. E digo isto porque o Sr. Deputado Carlos Encarnação admitiu generosamente que a renda não pudesse reverter para o proprietário, pelo que estaria disponível para configurar um processo qualquer de apropriação pública da renda por força deste contrato de arrendamento compulsivo. Por sua vez, o Sr. Deputado Almeida Santos estaria disponível até para considerar a hipótese da renda simbólica ou diminuta ou, então, do arrendamento com duração ad terrorem, ou seja, uma hipótese que infundisse respeito, como seja, 50 anos. Seria, portanto, uma norma deste tipo: "Usa ou tens meio século de privação".

No entanto, não sei se este meio século de solidão, em relação ao uso que não à propriedade, infundirá o efeito preventivo e até sancionatório que os Srs. Deputados lhe atribuem ou procuram emprestar-lhe. Desde logo porque está emprestado, ou seja, não está dado. De facto, nada da norma apresentada pelo PS obriga o legislador ordinário a esse regime e a que configure um regime tal em que a renda seja sancionatória e apropriada publicamente, ou qualquer outro sistema através do qual o abandono se transforme num mal temido e não num bem ao qual se seja indiferente. Quero com isto dizer que a proposta do PS, para ser minimamente consequente com os objectivos dos quais se reclama, carecia de ter não uma carga odiosa, mas um mínimo de cominação que lhe permita eficácia. Caso contrário, é uma norma postiça e a sanção simbólica. Logo, é nula a sua projecção no terreno de que se reclama.

Por conseguinte, a proposta é bastante mais funda e tem muitíssimas mais consequências do que aquilo que o PS afirma. Nesse caso, o caminho a seguir seria suprimi-la. É, no fundo, o que faz o CDS. De facto, este partido elimina o artigo em causa.

Entretanto, reassumiu a presidência o Sr. Presidente, Rui Machete.

O Sr. Almeida Santos (PS):-Não, Sr. Deputado, o CDS faz mais, ou seja, proíbe o confisco e excepciona os casos previstos na Constituição. Portanto, o CDS eliminou o artigo somente quanto a este caso, embora admita expressamente outras situações de confisco. Não sei, porém, quais são as situações que o CDS tem em mente, mas chamo-lhe a atenção para o facto de que o PS só desconstitucionaliza estes dois casos de confisco. Isso não quer dizer que o proíba.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, a proposta de aditamento do CDS é relativa ao n.° 3 do artigo 62.°, cujo texto é o seguinte: "Não haverá confisco de bens, salvo nos casos expressamente previstos na Constituição."

O Sr. Almeida Santos (PS): - Mas, como os únicos casos são os previstos nos artigos 87.° e 88.°, o conteúdo da expressão "salvo nos casos" não tem significado, porque não há mais situações de confisco na Constituição.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Essa norma contida na proposta de aditamento de um novo n.º 3 ao artigo 62.° é hipócrita. Contudo, ela é frontal.

O Sr. Almeida Santos (PS): - V. Exa. admitiu que o CDS fez mal as contas e admitiu que houvesse outros casos. No entanto, o PS não proíbe o confisco na Constituição. Admite que o legislador ordinário possa vir a necessitar do instrumento do confisco, nomeadamente em matéria de direito criminal.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Com base em que norma, Sr. Deputado?

O Sr. Almeida Santos (PS): - Com base na não proibição constitucional.

Além disso, o Sr. Deputado José Magalhães falou - e muito bem - em termos de eficácia da nova formulação. Perguntaria, então, qual foi a eficácia da actual pena nos últimos doze anos. Quantas vezes foi utilizada a "bomba atómica"? Penso que nunca.

O meu ponto de vista é que, não obstante as deficiências que possa ter a nova pena, tem condições para ser mais eficaz do que a anterior.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sucede que o PS pode responder claramente com pormenores e responsabilidade à pergunta que V. Exa. formulou, ou seja: qual foi a eficácia no passado? Digo, aliás, que essa resposta pode ser satisfeita plenamente pelo PS...

Página 888

888 II SÉRIE - NÚMERO 30-RC

O Sr. Almeida Santos (PS): - Não tenho dúvidas de que um governo do PCP teria feito aplicação deste número em vários casos. Contudo, cada um tem a sua filosofia e a sua maneira de encarar estas coisas.

O PS não é favorável a uma intervenção abusiva do Estado no direito de propriedade. Pensamos que essa intervenção deve ser excepcional.

Entretanto, invoquei há pouco um argumento que não vi ainda respondido: e a garantia geral dos credores? Se o Estado se apropriar de uma propriedade, o que é que acontecerá aos credores? Ficam "a ver navios"? De facto, os credores poderão argumentar que emprestaram dinheiro ao proprietário na convicção de que, se tal fosse necessário, penhorariam a propriedade. Tudo isto tem de ser considerado. Parece-me, pois, que pode ser mais eficaz uma pena mais adequada à gravidade do não uso da terra.

Devo dizer que não estou, na prática, a ver os tribunais a considerar com frequência injustificado um abandono. Na maioria dos casos haverá justificações: doença, ausência no estrangeiro, falta de mão-de-obra ou de fundo de maneio. Haverá, como é obvio, mil causas de justificação.

O Sr. Presidente (Rui Machete): - Tem a palavra o Sr. Deputado Guilherme da Silva.

O Sr. Guilherme da Silva (PSD): - Sr. Presidente, tal como referiu a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves, não há dúvidas de que este artigo 87.º tem em vista evitar situações de ofensa do interesse colectivo por desaproveitamento social da propriedade dos meios de produção.

Ora, a proposta de eliminação da expressão "fora dos casos previstos na Constituição" do n.° 2 do artigo 62.º, apresentada pelo PS, além da bondade dos vários aspectos que se tem referido nesta sede, parece que traz um que, entretanto, se esqueceu: o acento tónico do artigo 87.°, na forma como está redigido, é realmente penalizante. De facto, a preocupação ínsita nele prende-se com o facto de os meios de produção em caso de abandono serem alvo de expropriação sem indemnização. E quase que se fica um pouco por aqui, ou seja, dir-se-á que na sua filosofia estará a ideia da expropriação para uma futura exploração pelo expropriante.

Contudo, a verdade é que sabemos existirem muitas situações com uma determinada finalidade que são frustradas na prática. Entretanto, o Sr. Deputado Almeida Santos disse que este normativo nunca foi aplicado. Pela minha parte, teria um segundo receio na utilização deste expediente, ou seja: não dispunha de garantia absolutamente nenhuma de que o Estado, penalizando o proprietário do meio de produção, por estar abandonado, e estando tão pouco vocacionado para explorações de tipo privado, viesse, ele próprio, a dar utilização social a esse meio. Não estava, pois, acautelada nenhuma dessas situações. Perguntaria, então, o seguinte: quantas áreas cultiváveis do território pertencentes ao Estado não estarão abandonadas e não aproveitadas?

Ora, a proposta de eliminação da autoria do PS, embora seja penalizante, arrasta na sua fórmula o aproveitamento social, porque o arrendar a terceiros ou a concessão de exploração compulsória é óbvio que tem inerente, em si mesma, a imediata exploração dos meios de produção abandonados. E isto é uma virtude que na anterior redacção não estava minimamente alcançada Além disso, põe-se termo a esse segundo risco que sei que existiria, ou seja, o de o próprio Estado expropriar e não dar, de imediato, forma adequada de exploração e o aproveitamento social que se tem em vista com esta norma.

Relativamente ao Sr. Deputado José Magalhães, verifiquei que ficou muito surpreendido pela circunstância de o PSD estar a veicular uma adesão a esta solução proposta pelo PS, na ausência de qualquer alternativa própria por parte do meu partido nesta área. Penso, porém, que o Sr. Deputado José Magalhães não tem de ficar surpreendido com esta atitude do PSD, porque este é um partido aberto às soluções que se entendam como as melhores para o País. E mal seria que, numa matéria como a da revisão constitucional, com a importância que ela tem, não manifestasse essa abertura.

O Sr. Deputado José Magalhães receia, naturalmente, que esta situação pontual possa ser um indício de consensos mais vastos entre o PSD e o PS em matéria de revisão constitucional. Oxalá que assim seja! É uma atitude que não se antevê possa existir por parte do PCP, porque penso que dificilmente sairá da letra expressa do seu próprio projecto de revisão.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, penso que podemos terminar esta discussão do artigo 87.° e passarmos no período da tarde à discussão do artigo 88.Q Este preceito respeita às actividades delituosas contra a economia nacional.

Entretanto, tem ainda a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, gostaria apenas de fazer dois brevíssimos comentários.

O primeiro prende-se com o facto de nos preocupar realmente mais o futuro do que o passado. A palavra "nunca" é um termo muito pesado para ser dito e a faculdade aqui prevista, não passando disso, é, porém, uma faculdade.

Quanto aos "nuncas", devo dizer que em política há o velho preceito que refere o seguinte: "Nunca digas nunca." E é difícil sair disto.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Em relação ao passado é fácil, Sr. Deputado.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Em relação ao passado é evidentemente facílimo. Aliás, é também facílimo constatar como, onde, quem e a que é que se chegou, bem como ainda quem é que disse o quê. Tudo isso está registado e comentado.

O Sr. Almeida Santos (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)

O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto, Sr. Deputado, também se sabe historicamente que determinados governos conduziram a outro com proveito de alguns e desproveito de outros. No entanto, isso é uma questão mais funda para ser discutida em outros momentos...

Quanto ao alcance deste artigo 87.°, lamento muito desiludir o Sr. Deputado Guilherme da Silva, mas não foi minha intenção censurar o PSD pelo facto de aproveitar as oportunidades. Nestas matérias quem aproveita as oportunidades está no seu direito. O problema é quem lhas dá...

Portanto, a questão está mais no terreno da avaliação rigorosa daquilo a que se chega do que no do aproveitamento. Não se peça a ninguém que não coma o que tem à frente. É humano, pelo que não é preciso ser darwinista nem pavloviano para se chegar a essa conclusão. Em qualquer dos casos, não creio que se possa deixar de ponderar algumas das questões que foram nesta sede enunciadas.

Página 889

27 DE JULHO DE 1988 889

O Sr. Presidente: - Trata-se de uma reflexão muito apropriada para o intervalo do almoço, Srs. Deputados.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, a metáfora é, no entanto, patente e sensível em relação e em ligação à realidade. Limitei-me a alertar para dois aspectos: o primeiro já foi abordado por mim; o segundo aspecto diz respeito à articulação entre o artigo 87.° e outros preceitos, que nos preocupa evidentemente. Além disso, há o pormenor do próprio conteúdo do preceito. É inútil procurar fazer do preceito aquilo que ele não é. De facto, o artigo 87.° só abrange os abandonos injustificados. Não é, pois, uma arma ad terrorem; não é propriamente a pistola com que a Constituição partiu ao assalto dos próprios, e, coitadinhos, proprietários que dispunham de meios de produção abandonados. Trata-se, sim, de uma faculdade e de um último recurso, limitado em condições que permitirão historicamente à lei ordinária fazer e não fazer, como é óbvio.

Ora, um tribunal não teria o problema que o Sr. Deputado Almeida Santos colocou, porque, pura e simplesmente, a malha legal é tão irrita e lassa que a margem de judicação é mais do que vasta e a margem de opção enorme. A questão é, pois, ponderar os resultados a que se chega com a via de supressão que o PS propõe. E, se o valor dissuasor desta norma não é aquele que o PS adianta, acaba então por tapar mal um desarmamento constitucional cuja justificação haveria de ser produzida. É esta a questão básica que o PCP adianta.

Quanto a questões como o futuro de Portugal e o mercado único e ao problema de saber o que é que acontece aos credores, a questão é relevante, mas sucede que o Estado não está desarmado para dar resposta adequada aos interesses legítimos destes últimos. E digo isto porque uma coisa é a expropriação sem indemnização e outra é deixar inteiramente desamparados os credores que por alguma razão não tenham feito valer os seus direitos antes da expropriação.

O Sr. Rui Salvada (PSD): - Desculpe-me interrompê-lo, Sr. Deputado, mas o Estado paga aos credores.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Penso que é melhor que o Estado pague aos credores do que não haja ninguém que se encarregue disso. E bem se compreende que não exista nenhum interesse da parte do PSD numa assunção pública da garantia da satisfação adequada de interesses privados: é evidente o fascínio que sobre ele exerce a selva do mercado. Repito, a discussão é travada em tese geral, mas seria interessante descer à realidade nas suas diversas dimensões.

Em segundo lugar, o amor do PSD aos credores cessa quando eles são os trabalhadores. Veja-se a experiência dos salários em atraso e o excelente campo, o labirinto, que isso ofereceu para as duas partes em desigualdade - os trabalhadores cheios de direitos, credores até à ponta dos cabelos, mas, realmente, indefesos e inermes perante uma máquina judicial completamente paralisada e perante devedores bastante renitentes e com defesas, a maior das quais é obviamente a obstrução dos mecanismos todos de efectivação dos créditos. Isto, evidentemente, tem a ver com o minimal State e com os outros aspectos de filosofia económica do PSD, é questão muito funda. Compreende-se que isso seja sensível para os Srs. Deputados, mas haverá que ver qual é o saldo global que isso produz se atentarmos nas transformações que o PSD pretende obter do PS. Por isso digo, e esse é o último aspecto em que insisto: este artigo só pode ser entendido e perspectivado em todas as suas implicações quando soubermos a que resultados é que se chega em relação aos artigos que atrás enunciei, designadamente aos artigos 80.° e 81.°

O Sr. Almeida Santos (PS): - Como deve calcular, não somos indiferentes a esse tipo de conclusão.

(Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras finais do orador.)

O Sr. Presidente: - Vamos interromper para o almoço. Recomeçamos às 15 horas e 30 minutos. Veremos nessa altura como é que as coisas se irão processar.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, pode suscitar-se alguma necessidade de ajustamento em função da realização do debate das impugnações sobre delimitações de sectores, em que terei de intervir.

O Sr. Presidente: - Em termos razoáveis, veremos como é que vamos resolver o problema.

Srs. Deputados, está encerrada a reunião.

Eram 13 horas e 15 minutos.

Srs. Deputados, está reaberta a reunião.

Eram 16 horas e 10 minutos.

Em relação ao artigo 88.° ("Actividades delituosas contra a economia nacional"), há duas propostas, uma do CDS e outra do PS, no sentido da eliminação do artigo, e há uma proposta do PRD, no sentido da sua passagem a artigo 90.°

Pediria ao PS que justificasse sucintamente a sua proposta.

Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Suponho que o CDS eliminou este artigo como eliminou muitos outros, em matéria de constituição económica. Um "buraco" de vinte artigos em trinta, não é preciso dizer mais nada.

Quanto à posição do PS, a justificação é simples: o n.º 1 é uma norma absolutamente inútil. Dizer-se "as actividades delituosas contra a economia nacional serão definidas por lei e objecto de sanções adequadas à sua gravidade" é a mesma coisa que dizer-se que os crimes em geral serão definidos por lei e objecto de sanções adequadas. E óbvio que não há delitos sem definição por lei - é o princípio da tipicidade -, como é óbvio que não há crime sem sanção.

Quanto ao n.° 2, "as sanções poderão incluir, como efeito da pena, a perda dos bens, directa ou indirectamente obtidos com a actividade criminosa", pensamos que isto não é necessário sequer para o direito criminal. E o Dr. Costa Andrade di-lo-á melhor do que eu. Pode-se sempre consagrar isto mesmo, ou como efeito da pena, ou com pena acessória. Há sempre a possibilidade de ser assim sem que a Constituição o diga, desde que o não proíba.

Há muitos países em que, sem autorização constitucional expressa, há correspondência penal a esta perda de bens, seja dos instrumentos do crime, seja do lucro resultante do próprio crime, em relação aos quais não se pode falar em propriedade. Nenhum indivíduo poderá invocar a propriedade dos lucros de uma actividade delituosa, como é óbvio. Ele não é proprietário, ele é criminoso, é o que ele é.

Página 890

890 II SÉRIE - NÚMERO 30-RC

Portanto, parece-me que o n.° 1 é inútil e o segundo é desnecessário, além de uma mancha na pureza da Constituição da República. Neste domínio das actividades delituosas e das penas, melhor fora que tivéssemos de dizer isto para que houvesse crimes, sanções e perda dos instrumentos do crime ou produto do próprio crime.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Deputado Almeida Santos: Quero somente fazer uma curta intervenção, à laia - tudo leva a crer - de epitáfio.

Risos.

Em primeiro lugar, devo dizer que o artigo, apesar de tudo, tem alguma utilidade. E tem uma utilidade de certa maneira acrescida, na medida em que o sentido da revisão constitucional, mais ou menos lograda, será sempre o da redução da intervenção do público na economia. Ora, à medida que isto se acentua, acentua-se, por outro lado, uma certa necessidade de prever e punir as actividades delituosas contra a economia nacional. Dado que assim a presença do Estado é menor nessa área, maior deve ser uma certa regulamentação. Mas isso não justifica, só por si, o artigo, porque senão teríamos em relação a todas as actividades possíveis a Constituição a prescrever em cada capítulo, que os crimes relativos a esta e àquela matérias serão previstos por lei e objecto de sanções adequadas à sua gravidade. Já hoje se fala muito, por exemplo, dos crimes em matéria de informática, e julgo até que já foi apresentado um projecto de lei sobre a matéria, que dentro em breve irá ser discutido na Assembleia da República. Ora, a Constituição não tem de dizer que as condutas lesivas do ordenamento em matéria de informática serão objecto de sanções adequadas à sua gravidade.

Esta norma, apesar de tudo, tinha um sentido importante que penso ser já hoje património do pensamento constitucional português: o princípio da proporcionalidade. O princípio da proporcionalidade, que é um princípio importante, não encontra na Constituição outro afloramento que não o deste preceito. É neste artigo que o princípio da proporcionalidade das penas, isto é, a adequação das penas à gravidade do ilícito e da culpa, encontra o único afloramento. E era para este artigo que a doutrina apelava quando se tratava de ancorar na Constituição fundamento para o princípio da proporcionalidade. Parece-me que este é hoje um dado tão evidente do nosso pensamento jurídico que já mio se torna necessário tal afloramento expresso.

Por estas razões, também não vemos qualquer razão para nos empenharmos na manutenção do preceito. Se for eliminado, não acreditamos que se perca algo de útil.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sem prejuízo de, no sítio adequado, recuperarmos o princípio da adequação das penas à gravidade dos delitos.

O Sr. Presidente: - Iríamos passar ao artigo 89.°, mais exactamente ao título n, sob epígrafe "Estruturas da propriedade dos meios de produção", em relação ao qual há duas propostas de eliminação do título e da epígrafe, uma do CDS e outra do PSD. Talvez não valha a pena, neste momento, estarmos a discutir isto; podemos discutir mais adiante quando fizermos uma análise do conspecto geral do título.

E depois ao artigo 89.°, "Sectores de propriedade dos meios de produção". Há uma proposta do CDS no sentido da sua eliminação. Há uma proposta do PS no sentido do aditamento de um artigo, que é o artigo 81.°-A e que foi aqui colocado por razões sistemáticas. Há uma proposta do PSD de alteração dos diversos números do artigo. Há uma proposta do PRD no sentido de passar este artigo a artigo 82.fi e uma proposta nova de um artigo 88.°, "Sectores estratégicos da economia".

Como a proposta do PS se reporta, no fundo, aos sectores de propriedade e dos meios de produção, penso que poderíamos, e na ausência do CDS, começar pela proposta socialista, pedindo a apresentação sucinta da sua justificação.

Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Posso encarregar-me disso sem prejuízo de, depois, os meus colegas defenderem com maior profundidade a proposta.

Nós, em vez de "existência", falamos em "coexistência" - parece que significa o mesmo, mas é mais claro - "de três sectores de propriedade". Eliminamos a referência aos recursos naturais e aos solos, na medida em que entendemos que é apenas uma explicitação de alguns meios de produção - falando-se em meios de produção, está tudo dito -, mas, evidentemente, não recusaremos que permaneça a expressão "dos solos e dos recursos naturais". O sector público é definido em termos novos: não com as três alíneas que hoje constam do n.° 2 do artigo 89.°, mas no sentido de que é constituído "pelos meios de produção cujas propriedade e gestão pertençam ao Estado ou a outras entidades públicas", o que continua a afastar a possibilidade de o Estado deter só a propriedade e poder alienar a gestão. O sector privado é definido tal como hoje, mas sem a necessária referência, que nos parece absolutamente inútil, ao disposto no número seguinte. Deixamos de falar em sector cooperativo, e passamos a falar em sector social - um pouco em compensação de termos proposto a abolição do artigo seguinte, que trata do desenvolvimento da propriedade social. Entendemos que, em vez de propriedade social, deve falar-se em sector social. E este sector social passa a ser constituído pelo sector cooperativo, como hoje, mas além disso pelos bens comunitários hoje inseridos no sector público, e ainda por outras formas de exploração colectiva por trabalhadores. Isto nos daria a nós fundamento para eliminarmos o artigo 90.° o que melhor explicitaremos quando se discutir este artigo.

O Sr. Presidente: - Passávamos ao PSD.

Daria uma justificação sucinta. Esta matéria do artigo 89.°, quanto aos "sectores de propriedade dos meios de produção", inclui a titularidade dos meios de produção, mas também inclui a titularidade de direitos quanto aos solos, o que envolve, portanto, também aqui, a ideia de abranger o domínio público. É uma matéria que se encontra insuficientemente regulada na Constituição - haja em vista, por exemplo, o que acontece em matéria de baldios, em que os dispositivos da Constituição não dão uma solução muito clara. Todavia, apesar das deficiências de carácter técnico, pareceu útil não introduzir alterações radicais neste artigo 89.°, e daí que o PSD tenha mantido a epígrafe, tenha mantido, no n.° 1, a afirmação da existência de três sectores de propriedade dos meios de produção, muito embora suprimindo a referência ao "modo social de gestão" por "modo de gestão", visto que essa referência ao "modo social de gestão" poderia induzir em erro quanto àquilo que exactamente se quer significar e também estabelecer alguma confusão com a ideia da propriedade social, da qual o PSD propõe, no artigo 90.8, a eliminação do respectivo artigo.

Página 891

27 DE JULHO DE 1988 891

E depois procura-se, no n.º 2, simplificar a enumeração do que é o sector público, dizendo apenas que "o sector público é constituído pelos bens e unidades de produção pertencentes a entidades públicas ou a comunidades locais e por elas geridos", de modo a incluir no sector público, para além daquilo que são as empresas públicas e o domínio público, também o sector da antiga propriedade com características germânicas em relação aos baldios. E, portanto, simplificando a redacção hoje constante do n.º 2, alíneas a), b) e c), do artigo 89.°

E, no que diz respeito ao sector privado, também se mantém a mesma redacção do actual artigo 89.°

Idêntica redacção se mantém quanto ao n.° 4 relativo ao sector cooperativo.

Assim, há é uma eliminação da referência às alíneas a), b) e c) do n.º 2, em especial quando se fala dos "bens e unidades de produção com posse útil e gestão dos celectivos de trabalhadores", em consonância com a ideia da supressão do desenvolvimento da propriedade social no artigo 90.°

Gostaria de sublinhar que este problema daquilo a que a Constituição actualmente chama "bens comunitários com posse útil e gestão das comunidades locais", e que se refere basicamente à ideia dos baldios, é uma matéria que tem suscitado alguma dificuldade de enquadramento doutrinal. Como sabem, os autores têm hesitado entre a simplificação de considerar isto uma matéria pura e simples de domínio público, como equivalente ao domínio público - portanto sujeito ao regime da desafectação, nos termos em que são desafectados os bens do domínio público, e às características próprias do seu regime-, e a manutenção do sistema tradicional traduzido na ideia de ser uma propriedade germânica, de algum modo um resquício da ideia da propriedade do zur gesamte Hand, que era tradicional, nesta matéria, no nosso direito. Afigurou-se-nos que era preferível não resolver esse problema em termos constitucionais, mantendo a ideia do sector público, e não havendo aqui uma referência ao domínio público. Mas devemos dizer abertamente que temos algumas dúvidas quanto a esta solução porque - e agora falando a título puramente pessoal - eu preferiria manter, clara e indiscutivelmente, distintos os problemas relativos ao domínio público das questões relativas àquilo a que, na actual terminologia da Constituição, se chama "bens comunitários com posse útil e gestão das comunidades locais".

Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, só para tentar seriar as três questões que se colocam em relação a este artigo.

A primeira consiste em sublinhar o facto de o PS propor a consagração da coexistência de sectores, e não apenas da mera existência, o que nos parece ser a adopção, nesta sede, de uma perspectiva mais dinâmica. Este artigo 89.° sempre foi considerado como uma garantia institucional da existência dos sectores de propriedade nele constantes. A proposta do PS vai um pouco mais além e garante essa existência em termos de convivência, de coexistência concorrencial desses próprios sectores. Daí que se fale de coexistência dos três sectores de propriedade, o que compreende totalmente o estádio de garantia que a Constituição actualmente já lhes confere. Quem garante a coexistência também garante, por maioria de razão, a própria existência.

A segunda ordem de questões, que não ficou muito clara na exposição do Sr. Presidente, é a questão do critério definitório de cada um dos sectores. A Constituição hoje fala em titularidade e modo social de gestão. O PS mantém esse critério, embora deixe de lhe fazer referência no n.° 1, na medida em que eliminámos a referência à existência para passarmos a referir a coexistência. Contudo, a verdade é que a descrição que se faz de cada um dos sectores de propriedade tem a ver com a utilização desses dois critérios: o critério da titularidade dos meios de produção e o critério da sua forma de gestão. Parece-nos, neste domínio, preferível ou que se proceda à eliminação do inciso final do n.° 1, como nós fazemos, mantendo na definição de cada sector, contudo, a utilização do critério definitório, ou manter a Constituição tal como ela está hoje, com a referência ao modo social de gestão no n.° 1, sem consagrar o conceito de "coexistência" dos sectores. A solução do PSD é que me parece pouco clara e, ao contrário do que o Sr. Presidente disse, acaba por introduzir mais confusão do que clarificação, na medida em que "modos de gestão" é uma fórmula mais vaga do que "modo social de gestão". Quando se fala em "modo social de gestão", há um entendimento pacífico de que tem a ver com a caracterização das entidades que assumem a gestão, o que é uma forma de permitir que bens que têm uma determinada titularidade não sejam geridos pelos seus titulares, mas possam ser entregues à gestão de entidades diferentes desses titulares, e a gestão por parte destas entidades é integradora do conceito de modo social de gestão. Social porquê? Porque caracterizador do tipo de entidades que assumem a gestão.

A expressão "modos de gestão" envolve a dificuldade de existirem vários modos de gestão, vários independentemente da caracterização de quem assegura a gestão. Entidades privadas podem exercer a gestão de bens e unidades de produção de diversas maneiras, e aí identificamos diferentes modos de gestão dos mesmos bens. A forma como uma concessionária de um serviço público, por exemplo, é gerida por uma entidade privada é ainda um modo de gestão, o que não significa que seja um modo social de gestão. Não vejo onde está o instrumento clarificador da omissão do termo "social".

Uma coisa é o PS optar pela omissão, no n.8 1, da referência quer à titularidade quer ao modo social de gestão e depois, a propósito de cada sector de propriedade, fazer a referência à titularidade e ao modo social de gestão, que é o que fazemos na nossa proposta...

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, gostaria de fazer uma pergunta que simultaneamente é um esclarecimento.

O Sr. António Vitorino (PS): - Faça favor, Sr. Presidente, pois nesse caso pode poupar-se tempo.

O Sr. Presidente:-Reconheço que esta matéria não prima, já na actual redacção da Constituição, pela sua clareza e por uma exactidão terminológica, mas o que queria referir, e insisto, é que não me parece que a sua crítica seja nesse aspecto bem sucedida, porque quando se fala em "modo social de gestão" podem entender-se duas coisas. Pode entender-se como sinónimo de "modo de gestão", isto é, quem faz a gestão, e portanto a expressão "social" no sentido de organizatório tendo o mesmo sentido que quando é utilizada nas sociedades comerciais. Aí diria que a sua crítica, se fosse apenas isso, estava correcta. Porém, atendendo teleologicamente à finalidade, ao resultado da gestão, a verdade é que, quando no artigo 90.° se fala do "desenvolvimento da propriedade social" e quando se atende à gestão dos colectivos dos trabalhadores, pode entender-se que há aqui uma certa preocupação social, mas em outro sentido completamente diferente.

Foi por essa razão que nos pareceu preferível usar uma expressão mais enxuta, embora, na realidade, pela definição

Página 892

892 II SÉRIE - NÚMERO 30-RC

que depois é dada nos n.ºs 2, 3 e 4, se verifique a equivalência entre "modo de gestão" e "modo social de gestão" tal como V. Exa. interpretou. Essa foi a razão de ser...

O Sr. António Vitorino (PS): - Compreendo isso, mas a interpretação do artigo 89.°...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Dá-me licença que o interrompa, Sr. Deputado?

O Sr. António Vitorino (PS): - Faça favor.

O Sr. Costa Andrade (PSD):-Não lhe parece, Sr. Deputado, que o que é contraditório, ou pelo menos tecnicamente mal formulado, é o artigo 89.º, n.º 1, vigente?

De duas uma: ou "social" tem o tal sentido neutro, amplo, que abrange todas as formas em sentido societário e, portanto, vale tanto para o privado como para os outros sectores; ou então, se tem o sentido que foi definido como teleológico, está errado, porque o modo social de gestão não vale para os três sectores. Como aqui está, só terá sentido se tirarmos o "social", ficando garantida a existência de três sectores - o privado, o público e o cooperativo - definidos em função da sua titularidade e do modo de gestão. A expressão "modo social de gestão" será válida para os sectores público e cooperativo, mas não para o sector privado, A expressão que aqui está abrange todos os sectores, mas estes só se distinguem entre si no que à gestão concerne, se não qualificarmos desde já o modo de gestão, ou seja, se referirmos o modo de gestão em abstracto, que pode ou não ser "social".

O Sr. António Vitorino (PS): - Começando pela observação do Sr. Presidente, direi que a interpretação do artigo 89.° da Constituição, na parte que diz respeito ao modo social de gestão, só pode dar origem a confusões com a noção de propriedade social, constante do artigo 90.º, na precisa medida em que a propriedade social do artigo 90.° constitui a resultante de uma amálgama entre meios de produção integrados, nos termos do artigo 89.°, em diferentes sectores de propriedade, e é exactamente essa confusão que o PS pretende eliminar ao propor a eliminação do artigo 90.° e ao propor a alteração do artigo 89.° nos termos em que o faz.

O Sr. Presidente: - Nisso estamos de acordo.

O Sr. António Vitorino (PS): - Hoje em dia a propriedade social, nos termos do artigo 9O.fi, não é um sector de propriedade, mas é uma propriedade com características sociais que resultaria do desenvolvimento progressivo de três sectores de propriedade, ou até, para ser mais exacto, de um sector de propriedade e de dois subsectores de propriedade, na lógica do artigo 89.° actual. Nos termos do artigo 90.°, a propriedade social resulta da justaposição do sector cooperativo, que nos termos do artigo 89.y actual é um sector de propriedade qua tale e de dois subsectores da propriedade pública - o subsector comunitário local e o subsector autogestionário ou de gestão por colectivos de trabalhadores.

A confusão advém do facto de o artigo 90.° compreender meios de produção integrados em diferentes sectores de propriedade e de falar de propriedade em sentido de sector quando essa interpretação, em meu entender, é ilegítima, pois não há, nem mesmo à luz do texto actual da Constituição, nenhum sector da propriedade social. Sectores de propriedade são apenas aqueles que se contêm no artigo 89.° da Constituição.

Nesse sentido há que reconhecer que o conceito de propriedade social no artigo 9O.Q é um conceito ideológico, carecido de uma rigorosa base técnico-jurídica e, por isso mesmo, o PS propõe a eliminação desse conceito no artigo 90.° Assim, deixar-se-ia de falar em propriedade social como a resultante da evolução do sector cooperativo e dos dois outros subsectores do sector público a que fiz referência, para passar a referir um novo sector de propriedade, o terceiro na emuneração do artigo 89.°, o sector social.

Revertendo agora ao artigo 89.º, o PS faz o seguinte: no n.9 4 dá-se relevância à criação de um novo sector de propriedade, agora, sim, correctamente designado como sector social, onde se dá relevância ao critério do modo social de gestão mais do que ao critério da titularidade, e portanto, neste contexto, não abdicamos do critério do modo social de gestão. O que é fundamental na caracterização do terceiro sector de propriedade que o PS propõe - o sector social- é o modo social de gestão e não propriamente o da titularidade, porque, a dar prevalência absoluta ao critério da titularidade, então sempre se deveria entender que o subsector comunitário local e o subsector autogestionário deveriam continuar a inserir-se no chamado sector da propriedade pública, como a Constituição hoje faz.

A proposta do PS procede à assimilação num novo sector de propriedade do actual sector cooperativo e dos actuais subsectores comunitário local e autogestionário, porque considera que existe identidade de razões quanto à forma de gestão desses mesmos meios e unidades de produção susceptível de justificar a integração num mesmo sector de propriedade, o da propriedade social, e isto porque pode haver cooperativas que obedeçam aos princípios cooperativos que têm uma forma de gestão que se assemelha mais à dos colectivos de trabalhadores e até mesmo, se quisermos, dos bens comunitários locais do que propriamente à estrutura do sector público empresarial do Estado, e este, em meu entender, é o critério que preside à junção no novo n.º 4 daquilo que estava no anterior sector cooperativo e do que estava nos subsectores do sector público - subsector comunitário local e subsector autogestionário. Portanto, salvo o devido respeito, em meu entender, continua a haver aqui uma relevância inegável da caracterização dos sectores de propriedade em função do modo social de gestão como critério predominante na caracterização do sector que integramos no n.º 4.

Só assim é que se explica que quanto à titularidade neste n.º 4 - sector social -, como o PS propõe, possam caber meios de produção com titularidade muito diversa, desde logo com titularidade pública estadual. É que, com efeito, não pretendemos alterar, por exemplo, a titularidade das empresas em autogestão ou a titularidade dos bens geridos e possuídos pelas comunidades locais e que integram o subsector comunitário local.

O Sr. Presidente: - Percebo o que está a dizer, mas, em primeiro lugar, não misturemos, penso eu, aquilo que é o projecto do PS e a justificação do PS com aquilo que é o projecto e a lógica da proposta do PSD. Nós não tínhamos nenhum sector social no nosso artigo 89.° e por isso, com toda a liberdade, podemos suprimir toda essa referência social por um propósito clarificador, repito, e apenas por esse. Percebemos, pois, que o PS ao juntar um sector

Página 893

27 DE JULHO DE 1988 893

social assim caracterizado, como o Sr. Deputado acabou de referir, não queira sequer definir a forma de caracterização dos sectores.

Todavia, não percebo muito bem a proposta do PS, que tem aspectos que parecem poder merecer a nossa atenção, quando, na epígrafe "Sectores de propriedade dos meios de produção", diz que "é garantida a coexistência de três sectores de propriedade", fazendo com que, afinal de contas, o quarto sector não seja um sector de propriedade - o n.° 4 "sector social" não é um sector de propriedade.

O Sr. António Vitorino (PS): - Mas é um sector de propriedade.

O Sr. Presidente: - V. Exa. considera, portanto, que este n.º 4, apesar de ser uma amálgama, por razões ligadas ideologicamente ao modo social de gestão, não é garantido, sendo, em todo o caso, um quarto sector que se acresce aos três que são garantidos.

O Sr. António Vitorino (PS): - Não, não, é claramente um terceiro sector. No n.° 4 consagra-se p terceiro sector de propriedade dos meios de produção. É o sector social, e esse sector social, que é o terceiro sector de propriedade - público, privado e social -, é...

O Sr. Presidente: - Substitui, ampliando, o sector cooperativo e mudando o critério.

O Sr. António Vitorino (PS): - Mantém o sector cooperativo e recupera do actual sector público estadual os dois subsectores a que fiz referência - o subsector autogestionário e o subsector comunitário local -, considerando que a lógica prevalecente já actualmente nesses subsectores não é a lógica da titularidade, mas a lógica do modo social de gestão, e que de acordo com esta lógica esses dois subsectores se aproximam mais da lógica do modo social de gestão típico e característico do sector cooperativo e não do sector público estadual. Se quiser, é uma visão desestatizante do que são os sectores de propriedade dos meios de produção na Constituição, porque onde hoje se dá prevalência, na definição do subsector comunitário local e do subsector autogestionário, à titularidade, passará a dar-se, nos termos da proposta do PS, ao modo social de gestão.

Não sei se me fiz entender desta feita sobre o conteúdo do terceiro sector de propriedade.

O Sr. Presidente: - Fez, Sr. Deputado.

O Sr. António Vitorino (PS): - O que me parecia importante deixar sublinhado é que da nossa proposta não resulta nenhuma amputação da riqueza de formas de propriedade que a Constituição consagra. Resulta apenas um rearranjo onde se dá menos relevância ao critério da tilularidade na definição dos subsectores, hoje autogestionário e comunitário local, e maior relevância ao critério do modo social de gestão, em virtude de que se procede à integração daqueles dois subsectores no n.° 4, onde antigamente só se continha o sector cooperativo, nem sequer é uma medida de desprestígio do sector cooperativo, porque este continua a ter a sua dignidade enquanto parte integrante (e quiçá maioritária em termos quantitativos) nos termos do n.° 4 da nossa proposta do chamado sector social da propriedade.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Quero apenas deixar a seguinte nota: o PS, pela voz do Sr. Deputado António Vitorino, começou por fazer uma crítica à nossa solução, crítica que assentava, sobretudo, na ideia de incoerência e de falta de lógica.

O Sr. António Vitorino (PS): -Não, também não vamos tão longe. O que disse, se me permite, Sr. Deputado Costa Andrade, foi que me parecia fazer mais sentido a proposta do PS de omitir, pura e simplesmente, no corpo do n.° 1, que os critérios definidores dos sectores de propriedade são o da titularidade e o do modo social de gestão e depois utilizar esses critérios em concreto na definição de cada um dos sectores de propriedade, do que a solução do PSD, que é uma solução mitigada, que se limita a retirar o "social" do "modo de gestão" sem que, em meu entender, daí advenham benefícios claros e justificativos do significado da alteração proposta pelo PSD. Foi só isso; não é uma crítica, é considerar em alternativa o que me parece mais correcto.

O Sr. Presidente: - É uma ponderação.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - É crítica no sentido de uma observação que se afasta da nossa posição.

Penso que o nosso projecto é, do ponto de vista lógico, mais coerente que o do PS, independentemente da bondade da sua proposta. O PS faz um esforço muito grande no sentido de encontrar uma boa solução, mas à custa de uma certa equivocidade conceptual: começou por declarar que há dois conceitos fundamentais, um relativo aos sectores de propriedade e o outro relativo ao desenvolvimento da propriedade social (este é, de facto, um conceito que não se ajusta bem ao critério categorial a que obedece a lógica do artigo 89.°), mas tenta agarrar neste conceito ideológico e extrair dele mais um, a par de outros que obedecem a outro critério. O artigo 89.° obedece fundamentalmente ao critério da titularidade, ao passo que o outro obedece a uma outra lógica (assim chamada por comodidade de expressão e à falta de melhor). O PS, num esforço cujo resultado, numa primeira consideração, me parece adequado (até porque nem sempre as soluções lógicas, no que toca à solução normativa dos problemas, são as melhores), persiste, apesar de tudo, em certa equirocidade. O artigo 81.°-A proposto pelo PS passa agora a ser um artigo que obedece a dois critérios; na passagem do n.° 3 para o n.° 4 muda-se de partitura.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Deputado Costa Andrade, penso que não, penso que o facto de o PS eliminar o artigo 90.° torna claro que não há qualquer linha de contiguidade entre esse conceito, a que chamei, por comodidade de expressão, ideológico, do artigo 90.°, "propriedade social", e os critérios definitórios dos sectores de propriedade dos meios de produção no artigo 89.° Não há, portanto, uma continuidade, não se trata de dizer que o artigo 90.º é transposto para o artigo 89.°, por acaso artigo 81.°-A na proposta do PS. O artigo 90.º é pura e simplesmente extinto.

Há um rearranjo dos subsectores comunitário local e autogestionário, que antes estavam integrados no sector público estadual, no sentido de os identificar com o sector cooperativo e de criar um novo sector de propriedade, que é o sector da propriedade social, se assim o quisermos de facto designar, resultante da justaposição do antigo sector cooperativo e dos subsectores comunitários, mas não se trata de erigir o conceito de propriedade social do actual

Página 894

894 II SÉRIE - NÚMERO 30-RC

artigo 90.º em bandeira ideológica transposto para o artigo 89.°, que é por natureza um artigo de definição dos sectores de propriedade.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Tenho de ir ao Plenário, pelo que pedia só um minuto, dado que já não voltarei a intervir nesta matéria.

A nossa proposta para o artigo 89.° está ligada à eliminação do artigo 90.º, também por nós proposta. Não aceitaremos a eliminação do artigo 90.º se porventura não vier a ser aceite uma solução do género da que nós propomos para o artigo 89.°

Achamos estes dois artigos altamente confusos. Aliás, têm sido fonte de polémica, sobretudo na doutrina, e parece-nos que deveríamos deixar de trabalhar com três conceitos que nos parecem confusos, e que são os conceitos do "modo social de gestão", de "posse útil" e de "propriedade social". Quando o Sr. Deputado António Vitorino diz que não abdicamos nem eliminamos o conceito de "modo social de gestão" é evidente que assim é, mas apenas quando referido ao sector social. Se o sector é social, é tudo social, é social a posse e é social a gestão. Só que mudámos o qualificativo como preço de podermos eliminar o artigo 90.º

O que é que no vosso artigo nos parece duvidoso? Que não há que eliminar a referência a outros meios de exploração colectivos por trabalhadores, porque eles existem e a vossa proposta tem a desvantagem de os deixar de fora. Não se sabe onde ficam, porque, sendo propriedade do Estado, não são geridos pelo Estado. E, como se define o sector público na base da propriedade e da gestão do Estado, ficar-se-ia com o pé no ar. Dizemos o seguinte: os bens comunitários aproximam-se muito mais das cooperativas do que dos bens públicos. A verdade é que identifico mais o social com os bens comunitários do que com qualquer outro sector da propriedade! Se temos de arrumar nalgum lado a exploração colectiva por trabalhadores, deve sê-lo no sector social. De algum modo, sacrificámos o conceito autónomo de sector cooperativo - que também tem um forte conteúdo social - e juntámos num sector social o cooperativo, o comunitário e as explorações colectivas por trabalhadores. Parece-nos que a nossa proposta tem equilíbrio, conjugada com a eliminação do artigo 90.°

O Sr. Costa Andrade (PSD): -Terá, Sr. Deputado, alguma dificuldade nesse sentido. Só que põe no sector social bens cuja titularidade é do Estado.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Mas isso não tem mal!

O Sr. António Vitorino (PS): - Mas, Sr. Deputado Costa Andrade, também aí incluímos bens cuja titularidade é privada. Veja, por exemplo, as cooperativas. Ou não cabem no sector cooperativo cooperativas geridas segundo os princípios do cooperativismo, cujos bens são titularidade privada? Claro que cabem no sector cooperativo. É por isso que há pouco sublinhava que o que é critério definidor do n.fi 4 é, exactamente, o modo social de gestão, porque, quanto à titularidade, pode haver várias titularidades dos bens que incluímos no novo n.° 4. Isto nem sequer é novidade porque, como V. Exa. sabe, segundo certas interpretações da Constituição, já há quem entenda que há bens cuja titularidade é pública e cuja gestão pode ser entregue a entidades privadas, sem que isso implicasse uma mudança de sector, isto é, que esses bens saíssem do sector público e passassem para o sector privado pelo facto de a gestão ser privada. Portanto, o facto de não haver uma correspondência integral entre a titularidade e o modo social de gestão já é uma característica consentida hoje pelo actual texto da Constituição - o que nos limitámos a fazer foi um rearranjo, dando prevalência ao critério do modo social de gestão, na definição do n.° 4 da proposta do PS.

O Sr. Presidente: - Gostava de fazer uma referência sobre isto para ver se consigo situar as zonas de divergência e as zonas de convergência.

Em primeiro lugar, todos nós reconhecemos que este artigo 89.° é algo confuso, até porque mistura a regulamentação de duas realidades distintas, que são as empresas ou unidade de produção e os bens que integram essas empresas e são objecto das sociedades ou integram a universalidade da empresa. E é assim que o problema do domínio público pode estar aqui incluído como estão incluídas aqui as empresas públicas, sendo estas pessoas colectivas, pelo menos na maior parte dos casos, ou são pelo menos universalidades que têm um tratamento unitário e mais perto do sujeito de direito, enquanto o domínio público são bens que são objecto de direitos. Isso é uma fonte manifesta de complicações. É verdade - e há pouco sublinhei, mas, porventura, não suficientemente - que, quando nós alteramos o n.º 2, eliminamos basicamente as alíneas a), b) e c), e nessa eliminação -e isto importa que seja dito porque não queremos que nos venham dizer que não destacamos suficientemente as alterações- deixamos de dar uma garantia constitucional aos bens e unidades de produção com posse útil e gestão do colectivo de trabalhadores como entidade com autonomia jurídica. É essa uma das grandes diferenças em relação à proposta do PS, e será, naturalmente, o objecto das críticas das forças políticas que estejam contra esta eliminação da relevância constitucional desta instituição. O PS, na sua redacção, apresenta um projecto que nós achamos que tem aspectos dignos de ponderação e muito interessantes, mas no seu n.° 4 amalgama várias realidades. E a dúvida que tenho é: uma das realidades já existia e, no fundo, é o núcleo central, é o sector cooperativo; o PS junta-lhe agora duas outras coisas, junta-lhe as formas de exploração colectiva por trabalhadores, podendo fazer uma interpretação que de algum modo aproxima de facto às cooperativas as unidades de trabalhadores, mas junta-lhe também os meios de produção possuídos e geridos por comunidades locais. E aí tenho maiores dúvidas porque, no fundo, o que é que se pretende atingir: referir ou disciplinar com estes meios de produção possuídos e geridos por comunidades locais? Suponho que é exactamente aquilo que está na alínea c) do n.fi 2 do artigo 89.° na sua actual redacção, que são "os bens comunitários com posse útil e gestão das comunidades locais" e que, no fundo, são os baldios. Não conheço e não estou a ver outra realidade que não esta. E aí tenho grandes dúvidas que, afora essa ideia teleológica de que comunga tudo na mesma ideia da utilidade social, e que justifica dar o qualificativo "social" a este sector, haja, do ponto de vista do regime e do ponto de vista da maneira como eles se estruturam e aparecem, similitudes que justifiquem a sua integração. Quer dizer que - abstraindo do problema que, há pouco, referi de que o PSD não está a dar relevância aos bens e unidades de produção com posse útil e gestão colectiva dos trabalhadores, ao contrário do PS - percebo que haja uma similitude suficiente para os enquadrar no mesmo sector, mas já vejo que há uma discrepância tão grande, sob o ponto de vista do regime e da estrutura, como figuras jurídicas, entre essa parte cooperativa e mesmo as formas de exploração colectiva pelo trabalhadores e os baldios, que se me afigura que foi por razões puramente geométricas que se levou a essa inclusão.

Página 895

27 DE JULHO DE 1988 895

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, tentarei responder a esta segunda observação levantando outra em relação à sua exposição.

Quanto a esta segunda parte, salvo o devido respeito, o regime jurídico dos bens comunitários com posse útil e gestão das comunidades locais -e é naturalmente aos baldios que nos estamos a referir - permite que hoje em dia estes sejam geridos por assembleias de compartes nos termos da lei em vigor, o que não é outra forma senão uma forma colectiva de gestão dos baldios, cuja titularidade é estadual e cuja gestão - ou reportando-nos aos termos da própria constituição "posse útil e gestão" - está a cargo de uma entidade que é um colectivo de habitantes locais, que se auto-organizam para gerir esse baldio, de acordo, aliás, com as formas tradicionais de gestão desses mesmos baldios. O que o Sr. Deputado Rui Machete me poderia dizer é que o PSD tem na Mesa da Assembleia da República um projecto de lei de alteração do regime jurídico de gestão dos baldios que, ao cometer essa gestão às autarquias locais, designadamente às juntas de freguesta, os aproxima mais das fórmulas de gestão do sector público estadual e não do sector social, mas isso é um desvio estatizante do PSD, se me permite a blague. Compreendo o silencio, mas é, de facto, um desvio estatizante -não direi que colectivista, marxista-leninista, chavão que tantas vezes é usado nesta Comissão para caracterizar algumas propostas mais estatizantes do PS.

O Sr. Presidente: - Direi que é antes municipalizante.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - É descentralizante.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sim, não é um Estado central sufocante; é um Estado descentralizado e apenas asfixiante pontualmente.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, se V. Exa. me der licença, eu acho que, independentemente do problema de considerar que há um aspecto publicizante nesse projecto de regulamentação dos baldios, não é de subscrever essa ideia. Concordo, todavia, consigo que pode ser municipalizante ou paroquializante, e, portanto, viria em sentido diferente daquele que me parece útil. Com efeito, a verdade é que apesar de ser sugestivo esse símile, estabelecido entre a gestão colectiva dos trabalhadores tendo a posse útil da terra e os baldios, há, todavia, diferenças profundas. Acho até que poderia ser objecto de uma tese interessante a hipótese de se considerar esses colectivos de trabalhadores como uma espécie de propriedade zur gesamt Hand, mas tenho grandes dúvidas de que as características principais se lhe possam aplicar. Devo também dizer que sempre seria possível entender que os compartes funcionavam como órgãos especiais da freguesia para a gestão desses bens. Tudo isso são construções jurídicas possíveis, mas a verdade é que, em qualquer circunstância, isso não faz alterar a realidade de profunda diferença entre as duas coisas.

O Sr. António Vitorino (PS): - Naturalmente reconheço que não há uma identidade absoluta e que, portanto, a questão da gestão a cargo das assembleias de compartes é apenas o afloramento de uma componente que me parece importante nos termos da proposta do PS; nem me parece, por exemplo, que a interpretação desses bens comunitários locais num sector de propriedade social ilegitimasse a possibilidade de entregar a gestão dos baldios às juntas de freguesia - aí o problema é, essencialmente, o problema de os baldios não dizerem respeito à totalidade dos fregueses, à totalidade da população da área administrativa da freguesta, mas dizerem respeito apenas às populações que tradicionalmente os utilizam, porque instaladas contiguamente a esses baldios; portanto há uma diferença, apesar de tudo, de âmbito da jurisdição, mas, pessoalmente, não me repugna que a junta de freguesia, directamente ou através de um órgão específico de gestão dos baldios, seja encarregue da sua gestão, mesmo que eles venham a integrar-se num sector de propriedade social, como propõe o PS no seu n.° 4 do artigo 81.°-A.

Onde, se calhar, há divergências substanciais entre nós é que me parece - com a devida vénia - que o Sr. Deputado Rui Machete procura, excessivamente, uma uniformidade de critérios caracterizadores do sector de propriedade social, onde, em meu entender, não deve tentar encontrar essa sufocante uniformidade de critérios porque, se há diferenças -que aliás o Sr. Deputado Rui Machete aponta - entre os colectivos de trabalhadores que gerem empresas, por exemplo, ou as UCPs, e a gestão dos baldios, ou até os cooperadores que gerem uma cooperativa, também há abissais diferenças entre a gestão de baldios por assembleias de compartes e uma empresa pública. O Sr. Deputado Rui Machete não argumenta dizendo que os baldios não devem ser integrados no sector público estadual, mau grado essa abissal diferença, desde logo, dado que os gestores públicos se pagam regiamente e as assembleias de compartes o exercem a título gratuito, o que não é de somenos importância.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado António Vitorino, percebo que haja uma grande diferença entre os compartes e os gestores públicos que, apesar de tudo, não são tão regiamente pagos como isso.

O Sr. António Vitorino (PS): - Comparados com os deputados são!

O Sr. Presidente: - O problema não é esse. Há pouco, comecei por dizer que este artigo integra, de um lado, sujeitos de direito, empresas públicas e, do outro, bens. Por isso é que se pretende regular, simultaneamente, a questão do sector público empresarial e os bens do domínio público - o que é uma trapalhada monumental.

O Sr. António Vitorino (PS): - Exacto! Tem razão, mas...

O Sr. Presidente: - E é por essa razão que pode depois fazer esse efeito relativamente fácil em termos de oratória. Enfim, o artigo facilita isso. Mas é claro que o que seria correcto - segundo presumo, caso estivéssemos a fazer doutrina e não apenas a revisão da Constituição, ou, melhor dizendo, se estivéssemos apenas a fazer doutrina e não a tarefa grandiosa de rever a Constituição - era dar-lhe uma redacção completamente diferente, porque este artigo, efectivamente, é difícil de endireitar. Agora, em matéria de coerência o princípio da rigidez é uma lógica que vem de Aristóteles e o problema é que, enquanto, relativamente aos dois primeiros sectores que V. Exa. define, é perceptível o critério pelo qual são definidos e estruturados, o terceiro é uma amálgama.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, penso que V. Exa. neste debate é excessivamente tributário de uma formulação jus-privatista ou comercialista, que leva à prevalência ao critério da titularidade e a dizer que tudo o

Página 896

896 II SÉRIE - NÚMERO 30-RC

que é definido pelo critério da titularidade é claro; tudo o que seja definido pelo critério do modo social de gestão é uma amálgama, é ambíguo, é confuso. Mas não! O conceito de modo social de gestão é diverso, é plural, é diferente, mas não é forçosamente menos conseguido enquanto instrumento jurídico. Se o legislador ordinário, eventualmente, em 1976 tivesse definido o conceito de posse útil - como, aliás, houve tentativas legislativas de o fazer -, se calhar hoje não estaríamos aqui a ter este debate. Porém, que fique claro que não estou a dizer que o meu critério é coerente e o seu é incoerente. Não estou a dizer isso! Não estou a reivindicar para mim nenhum estatuto de coerência, mais a mais numa matéria que é melindrosa e difícil, conforme acabamos de ver. Apenas quero dizer qual é a linha Maginot de defesa do projecto do PS. Agora onde noto incoerência - agora sim, o termo aqui é que está correcto- é na posição do PSD, dizendo que o PSD deixou de conferir qualquer relevância constitucional aos bens e unidades de produção com posse útil e gestão dos colectivos de trabalhadores. Aqui, o debate não pode ser um debate de relevância constitucional - tem de ser bem mais importante, um debate sobre a base constitucional mínima dos sectores de propriedade. O PSD retira base constitucional aos bens e unidades de produção com posse útil e gestão dos colectivos de trabalhadores e, ao retirar-lhes base constitucional, pergunto: das duas uma, ou eles devem considerar-se ilegítimos, nos termos do projecto do PSD, se ele viesse a ser aprovado, e uma vez entrada em vigor a revisão da Constituição deveriam ser tidos por ilegítimos; ou, então em que sector da propriedade é que eles se incluíam, após a amputação produzida pelo projecto do PSD?

O Sr. Presidente:-Peço imensa desculpa, mas o Sr. Deputado António Vitorino esquece-se que aqui não estamos a fazer uma classificação aristotélica em que aquilo que aqui não está não está no mundo, porque aquilo que aqui se estabelece é uma garantia constitucional e os sectores que eventualmente existam fora daquilo que aqui se encontra enunciado simplesmente não estão garantidos constitucionalmente. É aquilo que diz o artigo.

O Sr. António Vitorino (PS): -Pode haver coisas que estão no mundo e não estão aqui -não digo o contrário -, mas têm de ter base aqui, porque só existem três sectores de propriedade e em algum dos que referi têm de estar integrados.

O Sr. Presidente: - Aquilo que aqui está dito é apenas que é garantida a existência de três sectores de propriedade, e não que não possa haver outros sectores de propriedade.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, não creio, salvo o devido respeito, que a sua tese resista a uma segunda reflexão sua sobre o significado que ela tem. Com efeito, estamos perante uma tese revolucionária, perigosíssima, aliás, colectivista, marxista, leninista, estalinista, maoísta.

O Sr. Presidente: - Não é isso.

O Sr. António Vitorino (PS): - A vingar a sua tese, haveria uma cláusula aberta em matéria de definição dos sectores de propriedade. A Constituição só garante os três sectores que aqui estão; fora destes, todos os demais que a imaginação do legislador ordinário prefigurasse! Não pode ser!

O Sr. Presidente: - Veja lá se o legislador ordinário é tão imaginativo como isso.

Isto, porque há zonas marginais, e uma delas é precisamente esta.

O Sr. António Vitorino (PS): - Estou de acordo que haja zonas marginais, mas mesmo dentro da marginalidade tem de haver uma certa coerência em termos de lógica de integração das várias formas de propriedade dentro do quadro constitucional, e o problema é saber em que sector de propriedade é que o PSD inclui os bens e unidades de produção com posse útil e gestão dos colectivos de trabalhadores, à luz da redacção que adoptou para o artigo 89.° da Constituição.

O Sr. Presidente: -Eu diria, pura e simplesmente: em sítio nenhum, porque não há uma garantia constitucional. Não estou a dizer isto em termos de simples argumentação, pois penso que a Constituição não tem de dar uma base jurídica a todos os tipos de propriedade e a todos os sectores. Tem sim de garantir determinados sectores com determinados propósitos, e é óbvio que isso abrange aquilo que é a esmagadora maioria, mas existem fenómenos que, até pelo seu grau de marginalidade em termos estatísticos e de importância social, não têm de ser objecto de uma garantia constitucional, e, em todo o caso, isso não significa que estejam proibidos. É apenas isto que quero dizer. E essa tese parece-lhe aberrante na medida em que entende - ideia que não subscrevo - que na Constituição deve estar tudo incluído até ao mínimo pormenor e que aquilo que não está na Constituição não está no ordenamento jurídico. Não é assim, nesses termos. É evidente que a Constituição pode proibir e, de algum modo, de uma maneira indirecta, admite implicitamente que existiu. Mas isso é outra coisa. Agora que tenha de fazer uma referência em termos de chaveta a todos os institutos jurídicos não é exacto...

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, eu não disse que era aberrante - embora me pareça -, mas sim que era perigoso. E, se me permite, Sr. Presidente, numa segunda reflexão sobre essa tese terá de reconhecer que a cláusula aberta que defende para as formas de propriedade é completamente inadmissível na medida em que, por absurdo, nos seus termos, o legislador comum poderia reduzir à ínfima expressão os sectores de propriedade que a Constituição consagra e inventar n formas de propriedade, fora dos sectores constitucionalmente consentidos, esvaziando de sentido a Constituição!

O Sr. Presidente: - O legislador não é um ser aberrante e cheio de preocupações mais ou menos freudianas cujo intuito básico seja o de defraudar a Constituição... Mas estamos a ver que podem existir - e existem efectivamente -, e essa é uma, mas poderia haver situações de compropriedade, por exemplo... Estou a pensar em algumas situações insulares que são dificilmente compagináveis nas alíneas a), b) e c) do n.° 2 do artigo 89.° da Constituição. Podem sê-lo, mas não têm de ser, não estão aqui garantidas em termos constitucionais no sentido de que a sua existência, a sua protecção e os termos em que é definida tenham uma protecção constitucional determinada. Trata-se de outro tipo de protecções constitucionais...

O Sr. António Vitorino (PS): - Mas são sectores de propriedade e o exemplo que deu, de compropriedade, é felicíssimo porque o regime jurídico da compropriedade não

Página 897

27 DE JULHO DE 1988 897

iliba a necessidade de definir a titularídade nos casos dos bens em compropriedade. E essa titularídade tem de caber numa das formas constitucionais consentidas.

O Sr. Presidente: - Quer dizer, se pertencerem 50% ao Estado e 50% aos privados, onde é que V. Exa. integra? No sector público, no sector privado ou no sector social?

O Sr. António Vitorino (PS): - Depende de quem gerir.

Devo dizer que o Sr. Deputado está totalmente isolado na doutrina. Nunca ninguém interpretou o artigo 89.° nos termos em que V. Exa. o está a fazer, como uma cláusula aberta e meramente exemplificativa...

O Sr. Presidente: - Não se trata de uma cláusula aberta, mas sim de uma garantia... Pretendo dizer, e mantenho, que não é de excluir a existência -e neste momento uma das hipóteses possíveis seria o problema dos baldios- de certas fórmulas que são necessárias, estatística, social e economicamente marginais em relação a estas situações e que não se enquadram neste tipo de definições.

O Sr. António Vitorino (PS): - Mas na proposta do PSD os baldios enquadram-se muito claramente.

O Sr. Presidente: - Se a proposta do PSD for a proposta que está neste momento em debate e que é a de atribuir a sua propriedade e gestão às freguesias.

O Sr. António Vitorino (PS): - Mesmo na versão "assembleias de compartes", cabem claramente no n.° 2, no "sector público". "O sector público é constituído por bens e unidades de produção pertencentes a entidades públicas ou a comunidades locais e por elas geridos."

O Sr. Presidente: - Realmente, nas comunidades locais cabe.

O Sr. António Vitorino (PS): - O problema não é o dos baldios; a omissão é dos colectivos de trabalhadores...

O Sr. Presidente: - Como lhe expliquei, quando digo que não é dada relevância significa que não é dada garantia constitucional...

Vozes.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Pretendia avançar aquilo que é uma interpretação muito pessoal da questão que o Sr. Deputado António Vitorino está a debater, ou seja, a da previsão ou não pelo artigo 89.º desta realidade, que é o problema dos colectivos de trabalhadores e da gestão por esses colectivos dos bens e unidades de produção.

Do meu ponto de vista, é possível uma outra interpretação - ao lado e com o melhor respeito pela interpretação do Sr. Deputado Rui Machete - no sentido de se admitir essa realidade no n.º 2 da nossa proposta. Não há dúvida de que o problema da gestão dos bens e unidades de produção pelos colectivos de trabalhadores é um problema ligado à realidade autogestionária, sabido que é que esta realidade tem a sua sede natural e fundamental no sector público. Nesse sentido, seria de somar a esta ideia de "pertencentes a entidades públicas", que pode conter uma ideia de propriedade ao lado da de gestão e de modo de gestão, a própria natureza autogestionária dos colectivos de trabalhadores e do modo como se organizam em função da gestão dos bens e unidades de produção. Dada essa natureza fundamental da autogestão enquadrada no âmbito do sector público, não se vislumbrará grande dificuldade em recolher do n.° 2 a realidade dos colectivos de trabalhadores e da gestão de bens e unidades de produção por esses colectivos. Parece-me que, por via do n.° 2, pode resultar claramente uma garantia indirecta da gestão dos colectivos de trabalhadores.

O Sr. Presidente: - Sra. Deputada Assunção Esteves, a autogestão tem de ser necessariamente do sector público?

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Não, mas, por via de regra, tem a sua ligação natural ao sector público. Nesse sentido, dada a natureza autogestionária da realidade que são os colectivos de trabalhadores, e tendo em conta a fórmula "é constituído pelos bens e unidades de produção pertencentes a entidades públicas", sendo que aí se pode incorporar a ideia de propriedade nua e não de gestão, então não teria dificuldade em inseri-la no n.° 2. É uma interpretação possível a acrescentar ao debate que está a ser aqui travado. Pode, porventura, não ser a melhor interpretação! É um contributo.

O Sr. Presidente: - Penso que este debate é muito interessante, embora estejamos já numa zona um pouco marginal relativamente ao essencial. Mea culpa!

Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sra. Deputada Assunção Esteves, essa interpretação teria pés para andar se eventualmente o n.° 2 da proposta do PSD não tivesse o inciso final "e por ela geridas". O problema é que é claramente dissociada a titularidade da gestão e portanto as empresas em autogestão...

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Isso é referente as comunidades locais...

O Sr. António Vitorino (PS): - Não pode ser...

A Sr.ê Maria da Assunção Esteves (PSD): - Porquê?

O Sr. António Vitorino (PS): - Essa interpretação é verdadeiramente niilizadora do vosso n.º 2.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - O problema virá de ambos os sujeitos estarem no feminino?...

Vozes.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Gostaria que estivesse presente o Sr. Deputado António Vitorino...

O Sr. Vera Jardim (PS): - Nós transmitimos, Sr. Deputado...

Página 898

898 II SÉRIE - NÚMERO 30-RC

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Srs. Deputados, estou a ver que, depois de toda esta discussão, que foi importante, estamos porventura a chegar a um ponto de algum equilíbrio. Desde logo, porque o ponto de partida é este: não há dúvida de que a versão do artigo 89.° proposta pelo PSD, é, do ponto de vista global, mais lógica. Penso que ninguém o recusará. O PS apenas entende ser ela de certo modo restritiva, designadamente em relação aos problemas da autogestão. Se a questão levantada pela Sra. Deputada Assunção Esteves viesse a ter uma resolução concreta e se houvesse possibilidade de, no n.º 2, conseguirmos discernir entre os dois factores que, no entender do Sr. Deputado António Vitorino, seriam susceptíveis de fazer confusão, penso que quase chegaríamos a uma redacção óptima.

Também não queria deixar de, a título pessoal, declarar o meu apreço pelo esforço feito pelo PS na combinação entre a redacção que apresenta para o novo artigo 89.8, com a designação de artigo 81.°-A, e a eliminação do artigo 90.° Embora, do ponto de vista lógico, não aconteça de facto qualquer coisa de tão essencial como acontece com o artigo proposto pelo PSD, embora na verdade haja aqui uma confusão ou duplicação de critérios na construção do artigo 81.º-A, existe todavia nesta versão algo bastante positivo. Apenas tentaria chamar a atenção, designadamente do Sr. Deputado António Vitorino, do PS e do PSD neste caso, na medida em que, creio eu, estamos a chegar a um momento em que é perfeitamente possível atingirmos um bom entendimento sobre esta versão alternativa,

O Sr. Presidente: - A nossa discussão foi predominantemente técnica, porque do ponto de vista político estamos, nesse aspecto, muito próximos. A proposta do PS tem muitos méritos.

Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Em certa medida, interpreto o n.º 4 do projecto apresentado pelo PS como um elenco dos meios de produção e da propriedade social admitidos no artigo 90.° Dessa forma, tentando articulá-lo com a proposta do PSD, creio que, na sequência da discussão que temos estado a travar quanto ao sector público e ao sector privado, é dada a prevalência à titularidade - julgo que contrariamente até ao que eventualmente terá sido afirmado -, enquanto no sector cooperativo a prevalência é dada ao modo de gestão. Porque, se nos ativermos e prestarmos a atenção devida à parte final do n.° 3 do artigo 89.°, a expressão "sem prejuízo do disposto no número seguinte" significa que, não obstante a titularidade enquanto propriedade privada, certos bens são incluídos no sector cooperativo, subvertendo, digamos, uma lógica enquadradora em termos de titularidade. Nesse sentido poder-se-á concluir que as cooperativas que funcionem com base em bens cuja titularidade seja privada não se integram no sector privado. Consequentemente, isso significa que esse n.º 4 já não erege como seu desiderato fundamental a titularidade, mas sim o modo social da gestão, o que, por arrastamento, nos colocaria, ao definir este n.º 4 na proposta do PSD, no mesmo terreno interpretativo que a proposta do PS para o n.° 4.

A questão que se levanta é a de saber a extensão deste sector que é definido pelo modo de gestão. Na solução do PSD, é apenas o sector cooperativo; na solução do PS, são abrangidos mais dois sectores. Levanta-se então, e desde logo, a questão da exclusão do sector autogestionário, assim chamado por facilidade. Na proposta do PSD este sector é excluído, e a questão dos baldios ou do domínio público, que na proposta do PSD é apontada, no fundo, por uma circunstância territorial idêntica àquela que subjaz à ideia de Estado, seria portanto integrada no domínio público. Na proposta do PS, o factor prevalecente será o modo social de gestão, que parece ser aquele que talvez melhor se adequa à realidade das soluções autogestionárias...

O Sr. Presidente: - Dá-me licença que o interrompa, Sr. Deputado?

O Sr. Alberto Martins (PS): - Faça favor, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, na nossa proposta não queremos integrá-lo necessariamente no domínio público... É no sector público.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Exacto, Sr. Presidente, talvez tenha sido uma incorrecção minha. Mas, na ideia de integração no sector público, a ideia de territorialidade será compaginável com a do Estado. No entanto, não me parece ser aquela que faz ressaltar o valor fundamental, que é o da gestão, e que vai ao encontro da ideia tradicionalmente consagrada no texto constitucional e no n.º 1 do artigo 90.º em vigor.

Consequentemente, digamos que o grande problema que aqui se levanta e que, creio eu, estará neste momento em aberto consiste no facto de o sector autogestionário ser ou não definido e no problema de os baldios se integrarem no sector público ou no sector social. Em meu entender, definir o problema no sector público poderá parecer um excesso, dado que a sua prevalência mais característica não é a titularidade, mas, sobretudo, a forma de gestão.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Presidente, a meu ver, importava dizer ainda algumas coisas, se bem que, dado ter chegado agora, não tenha ouvido as intervenções antecedentes.

Em primeiro lugar, quanto à sua interpretação do que seja esta norma de garantia, é evidente que ela tem sido várias vezes qualificada como uma norma de garantia dos três sectores de propriedade. Simplesmente, reparará V. Exa. que - e confirmo aquilo que o meu colega António Vitorino referiu - não conheço nenhuma interpretação que vá claramente no sentido da sua, o que não quer dizer que a sua seja má. A interpretação que me parece mais curial é a de que é garantido p sistema em que coexistam três tipos de propriedade. É isto que a Constituição pretende dizer. E tanto assim é que fizemos um esforço para a tornar mais clara. Reparará V. Exa. que o PS diz "é garantida a coexistência" e não "a existência", o que vai precisamente no sentido da garantia de um sistema em que coexistam estes três tipos de propriedade. Era esta a primeira nota que importava aqui deixar: o termo "coexistência" não está aqui por acaso, mas sim para tentar clarificar aquilo que pensamos sobre a finalidade, a causa última deste artigo 89.º

O Sr. Presidente: - É uma coexistência pacífica?

O Sr. Vera Jardim (PS): - Esperamos que assim seja, esperávamos que assim tivesse sido; nem sempre foi, mas esperamos que assim seja. Mas este termo "coexistência"

Página 899

27 DE JULHO DE 1988 899

tem precisamente esse sentido, ou seja, o de clarificar qual a causa deste artigo 89.°

A minha segunda intervenção é para me regozijar com o projecto do PSD, ao deixar intacto o n.º 3 do artigo 89.° Nem sempre tem sido clara a linha do PSD nesta matéria. De facto, ainda agora vim do Plenário, onde tive ocasião de perguntar ao nosso colega deputado da bancada do PSD Dr. Mário Raposo qual o seu entendimento quanto aos meios de produção de titularidade do Estado mas cuja gestão estivesse entregue a entidades privadas.

O Sr. Presidente: - Concessões, portanto...

O Sr. Vera Jardim (PS): - A resposta veio muito clara, e aliás no sentido exacto do parecer da 1.ª Comissão sobre a chamada Lei de Delimitação dos Sectores. Esses meios são públicos, continuam públicos. Chamei-lhe imediatamente a atenção para o projecto do PSD, para o n.°3 do artigo 89.°, que não diz isso mas uma coisa absolutamente contrária, ou seja, que "o sector privado é constituído pelos bens e unidades de produção cuja propriedade ou gestão pertençam a pessoas singulares ou colectivas privadas". Não pode, portanto, sofrer qualquer dúvida que o PSD propende a entender - não sou administrativista mas sei que existem discussões sobre esta questão, inclusivamente, até em matéria de concessão- que, em casos como o da concessão a entidades privadas, pertencem ao sector privado. É isto, a meu ver, que cá está.

O Sr. Presidente: - V. Exa. dá-me licença que o interrompa?

O Sr. Vera Jardim (PS): - Faça favor, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Pretendia referir, na medida em que chamou à colação o entendimento dos administrativistas, que, como sabe, existem duas grandes linhas de orientação: uma linha que defende que os concessionários são órgãos, embora indirectos, da Administração Pública e outra que, pelo contrário, entende que existe uma transferência de poderes, como quer que ela venha a ser estruturada, para entidades diferentes, com personalidade jurídica diferente, e portanto, para órgãos que manifestam vontades que não são imputáveis ao Estado. E isso leva a ponderar em que termos a actuação dos concessionários é relevante para o direito público. Devo dizer que, em qualquer das teses, essa actuação é sempre relevante, sendo, por exemplo, inclusivamente possível, na maior parte dos casos, recurso contencioso dos seus actos para os tribunais administrativos, tanto no caso português, pelo menos o contencioso da administração local, como noutros países, designadamente em França.

Mas, quando se trata já não de uma perspectiva de regime jurídico de actuação mas de uma perspectiva de sectores de propriedade, digamos que a orientação prevalecente vai no sentido de considerar que os concessionários s3o empresas privadas, até porque podem ser concessionárias numa parte e noutra não. Essa é a orientação prevalecente. É verdade que tem havido algumas opiniões em sentido diverso, mas, do ponto de vista económico, digamos assim, é essa, tanto quanto conheço, a opinião prevalecente.

O Sr. Vera Jardim (PS): - É isso também que me parece estar claramente dito no n.º 3 do artigo 89.º da proposta do PSD, o que faz perder - e relevar-me-ão que fale disto, mas isto é tão actual que temos de falar mesmo- uma boa parte do sentido à proposta do Governo no que diz respeito à Lei de Delimitação dos Sectores, visto que o parecer que sobre ela foi dado é no sentido de que essas unidades entregues em regime de concessão continuam a ser públicas. Esta era uma segunda nota que pretendia referir, ou seja, convém que o PSD clarifique a questão, e ainda bem que V. Exa. já contribuiu para essa clarificação.

O Sr. Presidente: - Em todo o caso, estava a falar nos concessionários...

O Sr. Vera Jardim (PS): - Está bem, mas o que aqui se estabelece é que "o sector privado é constituído pelos bens e unidades de produção cuja propriedade ou gestão pertençam a pessoas singulares ou colectivas privadas". Parece-me relativamente claro e é muito diferente daquilo que estabelece o parecer da 1.ª Comissão.

Não assisti à discussão, certamente brilhante e interessantíssima que aqui houve quanto aos critérios, mas penso que esta matéria do artigo 89.9 é, como todos sabemos, daquelas que mais tinta tem feito correr aos cultores do direito económico, aos constitucionalistas, enfim a todos aqueles que se preocupam com esta problemática. É uma problemática difícil porque não vejo outra maneira senão a de usar critérios que uma vezes serão predominantemente de titularidade e outras predominantemente de gestão. Porém, penso que o PS até fez um esforço para que esta matéria saísse relativamente clarificada. De facto, VV. Exas. repararão que em todos os números 2, 3 e 4, se refere o critério da gestão. Ou seja, parece que o critério da gestão - e isso já foi certamente dito pelos meus colegas- é para nós o critério prevalecente. Penso, portanto, que há uma certa lógica interna da nossa proposta, que não é assim tão ilógica ... A lógica pode-se retirar lendo "a gestão". Quando a gestão é feita pelo Estado ou por outras entidades públicas, é sector público; quando e gestão feita por outras pessoas singulares ou colectivas privadas, é sector privado; quando é gerido por qualquer das outras entidades, é sector social.

Por outro lado, parece-nos que a unificação destas várias figuras (cooperativas, comunidades locais e outras formas de exploração colectiva) num sector social clarifica um pouco a questão, dá-lhe, digamos, uma relevância diversa daquela que é constituída por um único sector cooperativo e pela inclusão do sector social, em parte, no sector público. Penso que é um esforço de clarificação e que não tem assim tanta falta de lógica.

Repito que só ouvi a última parte da discussão e que, portanto, estou talvez a repetir argumentos que os meus colegas de bancada já referiram.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Manuel Mendes.

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Nesta matéria, o PCP tem uma excelente proposta: é a que consta do texto constitucional que os Srs. Deputados se estão encarregando de esbarrondar de alto a baixo. Estava a ouvi-los e a colocar a mim próprio a questão de saber se é possível fazer uma ementa inovadora com um prato credível que seja uma espécie de sardinhas com ovo a cavalo, se é possível casar a hidra com o gafanhoto. Ou seja, trata-se de saber se este modelo miscigenatório contido no n.° 4 da proposta do PS acaba ou não acaba resultando e, por outro lado, se, eliminando os subsectores do sector público hoje cons-

Página 900

900 II SÉRIE - NÚMERO 30-RC

tantes do n.º 2 e das suas diferentes alíneas e o privilégio do modo social de gestão em claro detrimento da titularidade, será, pese embora toda a vastíssima discussão a que na doutrina e noutros textos se vem procedendo, tão de acolher como à primeira vista lhes parece.

Do nosso ponto de vista, as propostas contidas na fórmula avançada pelo PSD são clarificadoras de um entendimento rotundo dos sectores de propriedade dos meios de produção, vindo obviamente na lógica da postura política global assumida pelo partido de Cavaco Silva. O mesmo poderá dizer-se, mutatis mutandis, no que concerne à proposta originária do PS. No fundo, a verdadeira discussão está feita quando, a propósito dos artigos 80.8, 81.8 e 83.°, aqui pudemos avançar com os nossos próprios contributos e dizer quais eram, do nosso ângulo, os verdadeiros enquadramentos objectivos das propostas formuladas.

Para nós, é claro que, nos termos daquilo que acaba de ser dito pelo Sr. Deputado Vera Jardim, por exemplo, as unidades entregues ao regime de concessão continuam a ser privadas do ponto em que, na nossa óptica e segundo os pontos de vista constitucionais que temos vindo a defender, o modo de gestão define o próprio sector. Esse não é o entendimento generalizado da bancada do PSD e já pudemos verificar até que ponto as dificuldades nesta matéria são assumidas por quase todos. Há formas diversificadas de entender o problema. Aquilo que o Sr. Deputado Rui Machete há pouco referiu não é, de forma nenhuma, o que o Sr. Deputado Mário Raposo, pessoa que todos conhecemos muito bem, defendeu nos pareceres elaborados pela 1.ª Comissão e nos debates que nela vêm tendo lugar.

O Sr. Presidente: - Dá-me licença que o interrompa, Sr. Deputado?

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Faça favor, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Desconheço o que diz o Sr. Deputado Mário Raposo, mas o que eu disse, e repito, é que, do ponto de vista do concessionário, a sua actividade está integrada no sector privado, o que não significa que o concedente passe ao sector privado. Em consequência, consoante a óptica que se utilizar relativamente à empresa objecto da concessão, assim ela pode ser percebida como do sector privado ou do sector público. Depende, portanto, das ópticas que se utilizarem.

Neste preceito, em função daquilo que se está a atender, justifica-se, em meu entender, a redacção dada na proposta do PSD. Foi apenas isto o que pretendi dizer, e não gostaria que das minhas posições fossem retiradas ilações de alcance superior àquelas que estão contidas...

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Não o farei, Sr. Presidente. De resto, elas são isoladas, havendo outras vozes originárias do PSD que, como é sabido, sintonizam com a sua.

Creio, porém, que, numa pura concepção factualista - se é que é possível a ela proceder, independentemente de observações de natureza político-ideológica -, nada justifica que o PSD elimine quaisquer referências a "explorações colectivas por trabalhadores", uma vez que elas existem, e procure defender essa atitude de um cais de partida segundo o qual elas não têm suficiente dignidade constitucional. Desculpar-me-á, mas temo que, levada às últimas consequências a tese expendida pelo Sr. Deputado Rui Machete, cheguemos uma vez mais a uma tal abertura, a uma tal admissão da mera exemplificação que, a determinada altura, o que é bom é, de facto, a não Constituição, é a disponibilização de tudo ao legislador ordinário, que passará a ser aquele que, em cada momento, pode talhar e retalhar, a bel-talante, sem a mínima vinculação a qualquer lei fundamental, com características similares àquela que aprovámos em 1976 e que mantemos...

O Sr. Presidente: - Não me sabia ser interpretado de um modo tão revolucionário, mas está bem!...

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Aí está uma justa interpretação possível: é a completa disponibilização ao legislador de tudo aquilo que, do ponto de vista do PCP, deve merecer alguma escorreita e franca vinculação constitucional.

Creio que, no geral, como há pouco referi, as grandes questões estão de alguma forma debatidas; outras virão mais adiante. Para já, sinalizava, desta forma simples e lhana o nosso distanciamento e o nosso desacordo em relação às propostas formuladas pelo PSD e pelo PS, uma vez que delas cuidamos no imediato.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Deputado José Manuel Mendes, confesso que não percebo a vossa crítica à proposta do PS. Será assim tão fundamental para defesa dos interesses em jogo, nos quadros actuais da Constituição, que continue a figurar no sector público aquilo que hoje consta das alíneas b) e c) do n.° 2? Não será porventura melhor se essas e outras experiências, outras formas de gestão, constituam um sector autónomo? Não percebo qual é a crítica do PCP ao nosso projecto. Com o nosso projecto, em que é que se perde relativamente à actual formulação?

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Sr. Deputado Vera Jardim, bem compreenderá que este sector social proposto no n.º 4 da proposta do PS é, de facto, a tentativa de miscigenar com harmonia, de promover uma coexistência não beligerante entre o sector cooperativo e os subsectores autogestionário, comunitário e social, constantes das alíneas b) e c) do n.° 2 hoje inscrito na Constituição. E bem compreenderá, como há pouco se debatia aqui, mediante intervenções de vários Srs. Deputados, que, circunstanciadamente, se pode apelar ora para a natureza pública, por exemplo, e com toda a clareza, de alguns aspectos do subsector comunitário social, como hoje consta, ora o contrário, e portanto fazer misturar realidades que em si mesmas são distintas. Há pouco, o Sr. Deputado António Vitorino, num exercício que muito apreciei, procurou demonstrar que havia uma linha continuadora capaz de aglutinar estas três realidades numa só, que era exactamente - e ele reforçava - a do modo social de gestão e não coisa outra. É óbvio que essa é uma hipótese de trabalho; enquanto hipótese de trabalho, não lhe nego validade, mas não a coonesto.

Permitir-me-á, assim, que opte por soluções diferentes. Acusar-me-á de imobilista, de fixista e de outras coisas quejandas, mas as soluções pelas quais opto são as que hoje constam de formulação constitucional, isto é, da consagração do subsector autogestionário e do subsector comunitário social como subsectores do sector público, nos termos expressos do artigo 89.°

O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Deputado, não nego obviamente o vosso direito a ser imobilistas. O imobilismo, por si só, não é defeito.

Página 901

27 DE JULHO DE 1988 901

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - É uma forma de movimento, quando se opõe a marchas de retrocesso...

O Sr. Vera Jardim (PS): - Só é defeito quando as alternativas são melhores.

Mas o Sr. Deputado ainda não conseguiu explicar-me em que é que a natureza pública destes sectores defende melhor os interesses em jogo. A nosso ver, esses interesses são melhor defendidos com a autonomização do sector, que pode ser muito mais pujante, muito mais rico, do que incluir no sector público umas coisas e outras num sector social ou cooperativo - chamemos-lhe assim. Efectivamente, sendo para nós o modo social de gestão a grande natureza distintiva dos vários sectores, só se ganha na constituição de um sector social pujante e com as suas próprias regras do jogo. E o Sr. Deputado certamente concordará que existe uma muito maior analogia entre o sector cooperativo, o sector comunitário e o sector - chamemos-lhe assim - de outras formas de exploração colectiva por trabalhadores do que há entre alguns destes sectores e o sector público. Penso que concordará comigo.

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Não, Sr. Deputado, não concordo. Como sabe, nós somos, como costumam dizer, publicistas anquilosados...

O Sr. Vera Jardim (PS): - Aí, Sr. Deputado, terei de lhe dar razão. Se efectivamente a razão da vossa posição é porque querem ser publicistas à força, então fiquem com o publicismo. Mas, como deve compreender, esse argumento não me convence.

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Não prescindo, como é óbvio, de, na altura própria, emitir juízos relativos de aproximação aos textos concretos formulados.

O Sr. Presidente: - Suponho que já tratámos o essencial quanto ao artigo 89.°, pelo que talvez pudéssemos iniciar a análise do artigo 90.°, sob a epígrafe "Desenvolvimento da propriedade social". Relativamente a este preceito, o CDS apresenta uma proposta de eliminação, o PS propõe a eliminação dos n.ºs 1 e 2 e uma alteração ao n.º 3 e, por fim, o PSD propõe a eliminação do artigo.

Para justificar a proposta do PS, tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Nunca soubemos muito bem o que é a propriedade social. Admitimos que é defeito nosso, havendo talvez quem saiba. Eu não sei. Sei o que são "as bases do desenvolvimento da propriedade social", porque o diz o n.º 1 do artigo 90.°; sei o que são as condições de desenvolvimento dessa propriedade, mas nunca vi definido nem sei o que essa propriedade seja. Talvez valha a pena eliminar esse equívoco sem diminuição das preocupações sociais que ligamos à propriedade e à definição dos sectores de propriedade. Aliás, já anteriormente propusemos a substituição da expressão "desenvolvimento da propriedade social" pela ideia de "protecção do sector social da propriedade", na medida em que concebemos uma ideia de protecção deste sector mas não do seu desenvolvimento por forma a vir sobrepor-se aos outros sectores.

Desde que aprovada a nossa proposta para o artigo 89.°, que constitui uma unidade com a eliminação deste artigo 90.º, deixa de se justificar neste preceito mais do que a recuperação da segunda parte do n.° 3, que transformámos na base da nossa proposta. Se conseguirmos deixar de lidar

com conceitos tão pouco claros como os de "posse social autónoma", não incluída nas preocupações sociais da propriedade, e de posse referida à "propriedade social", e até com o de "posse útil" - e não vejo bem o que possa ser uma posse inútil -, clarificaríamos, creio eu, os sectores da propriedade, sem quebra da preocupação social onde ela deve existir, antes com acentuação dessa preocupação, na medida em que - repito - passámos para o sector social os bens comunitários que hoje estão no sector público e os bens possuídos e geridos por colectivos de trabalhadores. A outra face da eliminação da propriedade social é a criação de um sector social da propriedade em que, como propusemos, se inclua o sector cooperativo, o sector autogestionário e o sector comunitário. Creio ser muito discutível que devamos considerar como pública a propriedade comunitária. No mínimo, opor-se-ia sempre a essa qualificação o facto de não ser possuída nem gerida pelo Estado.

Fica portanto bem claro - neste local em coincidência com o PSD - que a propriedade de que o Estado tenha apenas a titularidade, e não a gestão dos bens, deixará de ser pública.

O Sr. Presidente: - Deixará de ser pública para efeitos deste artigo...

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sim, como é óbvio. Na medida em que dizemos que para a propriedade ser pública é necessário que o sejam a propriedade e a gestão, não fazia sentido continuar a considerar pública uma propriedade gerida por uma entidade privada.

A nossa proposta é bastante equilibrada e, saindo dela, enveredaremos por dificuldades e imprecisões conceptuais. A constituição não ganhará em clareza nem na defesa dos valores que estão em causa, os quais são mais bem defendidos pela nossa proposta do que pelo actual texto constitucional.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, segue-se a proposta do PSD. Daria uma justificação muito sucinta da razão por que preconizamos a supressão do artigo 90.°, a qual, de resto, se liga ao que dissemos anteriormente quanto ao artigo 89.°

Na realidade, parece-nos que não só o conceito de desenvolvimento de propriedade social é, do ponto de vista conceptual, confuso, como tem um significado ideológico que consiste, não obstante a óptica do Sr. Deputado António Vitorino, numa manifestação do tal princípio colectivista, estalizante, marxista-leninista. De resto, o texto em questão contém uma ideia dinâmica de desenvolvimento e de alargamento...

O Sr. Almeida Santos (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)

O Sr. Presidente: - É, Sr. Deputado, porque refere as nacionalizações, o plano democrático, o controle de gestão, bem como a intervenção democrática com o sentido que a Constituição lhe atribuiu. De facto, trata-se aqui de um preceito cheio de significado nesse sentido.

Mas não valerá a pena demorar-se acerca desse ponto. As respectivas razões são as que nos levam a apresentar noutros pontos da Constituição propostas de redacção diversas quanto ao problema das nacionalizações, do plano, do controle de gestão e da intervenção democrática dos trabalhadores, relativamente à qual preferimos a palavra "cidadãos".

Página 902

902 II SÉRIE - NÚMERO 30-RC

Quanto ao n.° 3, e quanto à proposta que de algum modo representa a recuperação desse número por parte do PS, realmente não somos, do ponto de vista ideológico, contra a ideia de que haja uma participação dos trabalhadores na gestão das pessoas colectivas, públicas, e temo-lo manifestado em diversas oportunidades.

Existem, sim, algumas dúvidas sobre se essa participação deva registar-se em todos os casos de empresas públicas. E a verdade é que a prática tem evidenciado que o legislador ordinário tem sido extremamente relutante, inclusivamente em obedecer a algumas injunções nessa matéria.

Neste âmbito, posso citar uma caso típico e conhecido, que é o do banco emissor, o Banco de Portugal, onde a questão tem sido amplamente discutida. E, de resto, quem conheça o funcionamento do banco central sabe que os trabalhadores têm aí uma ampla participação em múltiplos aspectos da vida da empresa pública, mas há determinadas zonas tipicamente ligadas a certas funções governativas que o Banco exerce onde se registam dúvidas significativas acerca dessa intervenção.

Há empresas públicas e empresas públicas, e esta consignação, com este carácter geral e, ainda por cima, com uma garantia constitucional, suscita-nos algumas dúvidas.

Preferimos a solução que propomos; todavia, essas dúvidas não são de molde a considerar totalmente inadmissível a reponderação dessa posição, se isso vier a ser justificado.

Há mais algum Sr. Deputado que queira fazer uma intervenção acerca deste ponto?

Pausa.

Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Deixei de referir na minha intervenção um aspecto. Conscientemente, substituímos a ideia de participação "crescente" dos trabalhadores por participação "efectiva". É mais realista consagrar uma ideia de efectividade da representação do que de representação crescente. Talvez por ela estar assim expressa acabou por não ser nenhuma. O que é necessário é ou colocarmos a Constituição de acordo com a realidade ou vice-versa.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, aprecio muito a sua interpretação da tensão entre a realidade fáctica e a normativa, mas gostaria de perguntar o seguinte: admite o PS, na redacção que propõe, que essa intervenção dos trabalhadores possa ter lugar em casos particulares, que não são os casos normais das empresas públicas? Estes não se diferenciam fundamentalmente nas suas funções das empresas privadas que actuam no mesmo sector e, portanto, os problemas não se põem aí com acuidade.

Mas citei o caso do banco central, e poderá haver outras situações em que justamente a natureza pública das empresas resulta das especialíssimas funções que elas exercem e que não podem, pura e simplesmente, qualificar-se como funções de ordem económica ou integradas apenas na Administração Pública.

Admite V. Exa. que aí possa considerar-se que para certos aspectos menos ligados àquelas que são as actividades e os interesses normais do estatuto laboral, e mais articulados com a função governativa, possam encontrar-se fórmulas que evitem alguns dos inconvenientes que têm até agora justificado a ausência dessa intervenção?

O Sr. Almeida Santos (PS): - Penso que para nós seria mais fácil tentar encontrar soluções para esse problema ao nível da lei ordinária do que ao nível da lei constitucional. Consagrado como direito irrestrito, é para nós difícil aceitarmos a restritividade desse direito.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, a sua resposta, para mim, e do ponto de vista daquilo que me preocupa e que justifiquei sumariamente, é satisfatória.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Chegámos a encarar, num dos governos de que fiz parte a ideia de que a participação dos trabalhadores ao nível da gestão deveria processar-se no quadro de uma comissão executiva, a qual seria um órgão restrito da própria administração.

É uma solução possível. Não digo que seja inteiramente boa, mas é uma solução possível, embora não seja com certeza a única.

Ao nível da lei ordinária compreendo que essas preocupações possam ter resposta. Mas, ao nível da Constituição, teria de haver sempre uma remissão para a lei ordinária, sob pena de estabelecermos no texto constitucional uma lista de casos. Não estamos preparados para aceitar uma solução deste tipo.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Almeida Santos, a minha preocupação é, digamos, satisfeita pela sua resposta. O que penso que é inconveniente é que a Constituição impusesse um modelo uniforme.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Quando substituímos o termo "crescente" pela palavra "efectivo" foi no sentido de que a participação, que é um direito reconhecido na lei fundamental, seja efectiva e não nominal. Que não continuemos a assistir a essa forma de hipocrisia que é termos um direito consagrado e, todavia, estarmos em pecado de omissão constitucional.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Gostaria de dizer ao PS, de resto na linha da pergunta que foi formulada, que esta participação, para ser efectiva, terá de ter uma certa plasticidade em função da natureza das próprias empresas.

O Sr. Almeida Santos (PS): - É uma participação na gestão. A verdade é que se toma necessário que se arranje uma forma de os trabalhadores participarem na gestão que salvaguarde as preocupações em cada caso justificadas.

Repito que um determinado governo aprovou uma lei - não sei se chegou a ser publicada - no sentido de os trabalhadores participarem num órgão restrito a sair de um executivo mais vasto.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Deputado, formularia outra pergunta: se, por exemplo, essa lei fosse agora elaborada e esta proposta de alteração constitucional do PS aprovada, considera o PS que tal lei hipotética seria constitucional?

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sem dúvida nenhuma, pela simples razão de que se trata de um órgão de gestão. Não seria constitucional se se tratasse de um órgão de fiscalização, como propõe o CDS e julgo que o PSD.

De qualquer modo, essa lei seria perfeitamente constitucional.

O Sr. Presidente: - Mais algum Sr. Deputado pretende intervir a propósito do artigo 90.º?

Pausa.

Página 903

27 DE JULHO DE 1988 903

Tem a palavra a Sra. Deputada Ilda Figueiredo.

A Sra. Ilda Figueiredo (PCP): - Gostaria de dizer algo acerca deste problema da participação dos trabalhadores na gestão e da sua possibilidade de intervenção, nos termos em que hoje isso se encontra definido no artigo 90.° da Constituição Portuguesa. Penso que o desenvolvimento da propriedade social só pode ser assegurado nos termos do n.º 2 do artigo 90.°, que diz que "são condições de desenvolvimento da propriedade social as nacionalizações, o plano democrático, o controle de gestão e a intervenção democrática dos trabalhadores". No n.° 3 do artigo 90.° aponta-se para a participação crescente dos trabalhadores, através de formas de gestão, nas unidades de produção pertencentes ao Estado e a outras pessoas colectivas públicas.

Através da proposta do PSD, ou pela fórmula muito mitigada que o PS apresenta, retirar-se-ia da Constituição um dos preceitos principais que dão conteúdo a este desenvolvimento da propriedade social. Sabemos que já hoje existem formas de participação dos trabalhadores nos órgãos sociais das empresas públicas. Naturalmente que não pode ser dado como exemplo relativamente a esta questão o Banco de Portugal, pois trata-se de um caso à parte. Estamos a falar da gestão das empresas públicas em geral, nos termos definidos no texto constitucional e sob as formas que a lei prevê actualmente.

Um aspecto a considerar é o do cumprimento ou não da lei. Sabemos que não tem sido cumprida quanto à participação dos trabalhadores nos órgãos sociais das empresas. No entanto, há casos em que tem sido cumprida, e bem. Recordo, por exemplo, o caso da EDP, que tem elementos representativos dos trabalhadores em órgãos sociais da empresa. E tal facto não tem criado problemas; pelo contrário, tem contribuído não só para uma gestão mais eficaz e mais interveniente através da participação dos trabalhadores no crescimento da própria empresa e na resolução dos seus problemas internos, como até para o aumento da produção nacional. Quando actualmente a Constituição assegura este princípio claro nos seus diferentes aspectos, sendo um dos mais relevantes o controle de gestão e a intervenção democrática dos trabalhadores, está a assegurar algo que é fundamental em toda a Constituição da República: a progressiva ampliação da participação dos trabalhadores na gestão da propriedade social.

Em relação à posição do PSD de, pura e simplesmente, eliminar o artigo 90.c, naturalmente que tal proposta de eliminação vem na sequência das posições políticas que o PSD tem assumido quanto às nacionalizações, à não participação dos trabalhadores, em geral, na gestão das empresas, à não existência de um plano democrático, etc.

Quanto à posição que o PS aqui apresenta -e retomando as palavras do Sr. Deputado Almeida Santos -, gostaria de dizer o seguinte: se se retira da Constituição este princípio, fica, de facto, sem sentido o que o PS pretende com o n.° 4 do artigo 89.° (ou artigo 81.º-A), sobre o que designam por "sector social". Reduz-se, então, toda a parte do sector social às cooperativas e pouco mais e retira-se do sector público toda e qualquer possibilidade de participação dos trabalhadores, bem como de controle de gestão e de intervenção democrática, hoje definida na Constituição. Assim, Sr. Deputado Almeida Santos, foi com bastante preocupação que ouvi as suas afirmações a este respeito, porque ao reduzir-se tal possibilidade está a ser dada uma machadada muito forte no que hoje são as nacionalizações e o sector público, neste seu duplo aspecto. Creio que a gestão do sector público é uma questão fundamental, nos seus objectivos e na sua forma, não apenas para a definição dos sectores público e privado mas, essencialmente, para o interesse da economia nacional.

Esta é a temática fundamental que aqui se coloca.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sra. Deputada, gostaria de lhe responder, porque V. Exa. colocou-me questões muito concretas relativamente às minhas afirmações. Portanto, de algum modo, fez uma intervenção em que estão incluídas perguntas.

A Sr.1 Deputada disse-me que estava preocupada com o que retirámos do texto constitucional. De facto, não retirámos nada, mas alterámos o que está estabelecido num sentido mais realista.

Devo dizer-lhe que nem sei se esta medida representará verdadeiramente uma redução, porque a verdade é esta: tem cá estado expressa a participação crescente, e ela não só não tem crescido como não tem sido praticamente nenhuma nas principais empresas, embora haja uma ou outra em que, quase sem significado, se verifica a participação dos trabalhadores na respectiva gestão.

Mas, se a vossa ideia é a de concretização de uma participação crescente, sem limites, estamos contra. Não vislumbramos nenhuma razão, pelo menos no sistema económico em que nos integramos, para, progressivamente, os trabalhadores virem a ser maioritários nos órgãos de gestão.

Assim, não diria que reduzimos. A ideia de uma participação crescente poderia, ela própria, ser facilmente frustrada, ainda que cumprida. Eu não asseguraria a inconstitucionalidade de uma norma que dissesse o seguinte: os trabalhadores terão um representante no conselho de administração das empresas públicas, que assistirá e votará nas reuniões em que forem aprovados o plano de trabalhos, as contas finais, os salários ou qualquer coisa deste género. Isto por hipótese. Depois, dir-se-ia: dentro de dez anos, os trabalhadores passariam a participar também não sei em quê. E assim sucessivamente, sem real significado.

Deste modo, respeitar-se-ia a ideia do crescimento mas não a da efectividade. A nossa proposta é mais realista, mais positiva, mais concreta, menos distanciada do mundo em que vivemos. A ideia de um crescimento sem limites é irrealista.

Estamos numa economia de mercado e não vejo que mesmo o sector público deva evoluir sem limites para o domínio da administração pelos trabalhadores.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Sra. Deputada Ilda Figueiredo, pareceu-me ver uma contradição importante naquilo que acabou de afirmar e naquilo que há pouco foi afirmado pelo Sr. Deputado José Manuel Mendes, mas a Sra. Deputada esclarecer-me-á.

A Sra. Deputada diz que é muito importante que os trabalhadores participem na gestão das unidades do sector público. Mas como é que isso se coaduna com o intransigente publicismo confessado pelo Sr. Deputado José Manuel Mendes há poucos minutos? Far-lhe-ia mesmo uma outra pergunta, Sra. Deputada. A Sra. Deputada também admite a intervenção dos trabalhadores na gestão das empresas privadas? Parece-me ser lógico que, sendo o PCP tão publicista e lutando para que os trabalhadores tenham uma intervenção na gestão, o que nós também

Página 904

904 II SÉRIE - NÚMERO 30-RC

fazemos - duvidamos apenas da seriedade de uma proposta que não tem qualquer contorno realista, como disse, e muito bem, o meu camarada de bancada deputado Almeida Santos-, veja uma profunda contradição na posição assumida pelo seu partido. Por um lado, é estatista confesso; por outro, quer os trabalhadores na gestão daquilo que é público. Em que é que ficamos?

E agora uma outra pergunta, Sra. Deputada. Certamente por lapso, a Sra. Deputada, ao comentar o nosso n.fi 4 da proposta do artigo 83.º-A, disse: "para o n.fi 4 vai o sector cooperativo e pouco mais". Pouco maior. Sra. Deputada? Então a gestão pelos colectivos dos trabalhadores e a gestão pelas comunidades locais é para V. Exa. "pouco mais"? Repito a pergunta que há pouco fiz ao Sr. Deputado José Manuel Mendes. Então não se defenderá muito melhor este sector autogestionário - se o nome ofende, chamamos-lhe outra coisa...

A Sra. Ilda Figueiredo (PCP): - Não, não ofende, Sr. Deputado.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Fico muito contente por isso. Chamamos-lhe formas de exploração colectiva de trabalhadores. Será que não se enriquecerá essa natureza própria ao englobá-la na propriedade social juntamente com as cooperativas? Será tão pouco como isso, Sra. Deputada?

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Ilda Figueiredo.

A Sra. Ilda Figueiredo (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, penso que há mesmo na proposta do PS uma redução relativamente ao texto constitucional. Era disso que estava a falar, não da realidade. Aí o Sr. Deputado terá alguma razão. Não estava a falar da realidade presente relativamente a esta questão, embora possa dizer que, se a participação dos trabalhadores nos órgãos sociais das empresas não é superior, isso não se deve ao facto de não haver desejo e vontade expressa dos trabalhadores, que inclusivamente têm eleito os seus representantes para a participação nos órgãos sociais das empresas, mas são, todavia, impedidos de tomar posse, não sendo, portanto, cumpridos os preceitos constitucionais e legais atinentes a esta matéria. É isso o que se passa e é em relação a isso que penso haver uma redução na proposta apresentada pelo PS relativamente ao texto constitucional actual.

Quanto à realidade, devo dizer que há que distinguir dois aspectos: por um lado, a realidade daquilo que tem sido imposto aos trabalhadores, isto é, o facto de não ter sido admitida por parte dos conselhos de gestão, por determinação ministerial e governamental, a tomada de posse dos representantes dos trabalhadores; por outro, a vontade expressa dos trabalhadores, de acordo com o texto constitucional de elegerem os seus representantes (como o Sr. Deputado sabe) na generalidade das empresas.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Não é grande a possibilidade prática de os trabalhadores virem a conseguir a efectivação do seu direito. A verdade é que não o conseguiram até hoje. Eu sei isso e já o disse anteriormente a propósito de outro artigo. Consegue-se melhor esse resultado através do estandarte de uma participação efectiva do que da ideia vaga de uma participação crescente ... O crescente parte do zero, como se sabe.

A participação - repito - pode ser crescente sem ser efectiva. Quando os trabalhadores tiverem a bandeira da efectividade, dirão que a Constituição prevê uma participação efectiva e exigirão a sua efectivação. É um instrumento mais valioso para a concretização do direito pelos trabalhadores do que a vaga ideia de uma participação crescente.

A minha convicção é essa. Mas, como sempre, admito que possa estar enganado.

A Sra. Ilda Figueiredo (PCP): - Sr. Deputado, naturalmente que respeito a sua posição. Quero, porém, dizer que coisa diversa é o que consta do texto constitucional actual, que, como todos sabemos, partiu de uma situação e que essa participação não existia. Isto para dar sentido ao sector público -e com isto respondia também ao Sr. Deputado Vera Jardim -, para não ser uma posição estatista e imobilizadora, mas uma posição pública, interveniente, com participarão dos trabalhadores. É essa que defendo, não a estatista. E o sector público com uma participação activa, interveniente, dos próprios trabalhadores através dos seus representantes, nos termos do texto constitucional. Aí partiu-se, de facto, de um zero para algo que foi preciso criar, e o texto constitucional consagrou esse princípio. A concretização posterior tem sido difícil, mas isso não se deve ao facto de os trabalhadores não terem mostrado esse interesse, não o expressem, não façam a eleição dos seus representantes, não tentem assegurar o que é possível na actual situação de participação efectiva, de intervenção democrática nos diferentes níveis - não apenas a nível do conselho de administração ou de gestão, mas nos diferentes níveis de intervenção na vida democrática da empresa. Queria também referir estes outros aspectos e não apenas a participação no conselho de administração ou de gestão. O texto do PS refere apenas este aspecto, sendo, em minha opinião, bastante redutor. Julgo que clarifiquei melhor o que quis dizer quando aludi à redução. De facto, a proposta do PS limita-se a referir a "participação efectiva dos trabalhadores na respectiva gestão" e deixa de fora toda a participação possível dos trabalhadores na vida da empresa. A intervenção na gestão é um aspecto importante, mas não o único, pois há muitos outros aspectos em que os trabalhadores podem e devem participar.

Quanto à questão colocada pelo Sr. Deputado Vera Jardim, devo dizer que penso não haver nenhuma contradição entre as minhas afirmações e as do meu camarada José Manuel Mendes (ele dirá de sua justiça) quanto ao sector público da economia nos termos previstos na Constituição.

Quanto à participação na gestão por parte dos trabalhadores nas empresas privadas, defendemos o controle de gestão, exactamente nesses termos, nas empresas privadas, o que, aliás, está previsto na Constituição e na lei das comissões de trabalhadores. Defendemos esse princípio, como o Sr. Deputado bem sabe.

Relativamente à autogestão, devo dizer que também a defendemos. Lamentamos, porém, que não sejam criadas condições às experiências interessantes que ocorreram e que, por falta de condições de facto efectivas, em geral não puderam continuar.

Lamentamos também, em relação às cooperativas, a falta de apoios efectivos à sua subsistência e ao seu desenvolvimento. Esse é que é o problema.

A nossa posição é, portanto, de defesa desses sectores e desse tipo de gestão, de posse e de propriedade. Lamentamos, no entanto, a falta de apoio que se tem registado, à sua efectiva realização plena.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Portanto, o PCP defende a participação na gestão nas unidades do sector público e o controle de gestão nas unidades do sector privado. É isto?

Página 905

27 DE JULHO DE 1988 905

A Sra. lida Figueiredo (PCP): - É o que está na Constituição, Sr. Deputado.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Manuel Mendes.

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - "Estava a linda Inês posta em sossego"... Basta masculinizar o verso e ver-se-á como fui desafiado pela intervenção do Sr. Deputado Vera Jardim, e de sobressalto em sobressalto, eis-me obrigado a ter de dizer algumas coisas.

Eu creio, em primeiro lugar, que é óbvio que a solução protagonizada pelo PS decorre de opções assumidas,...

O Sr. Almeida Santos (PS): - Nunca disse isso.

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - ... de eliminação da continuação do princípio socialista consagrado no artigo 2.°, nos termos que hoje se lêem no artigo 9O.Q, na eliminação do princípio do desenvolvimento da propriedade social como factor de consagração desse princípio socialista, na eliminação da propriedade social -como bem lembrava o Sr. Deputado Almeida Santos-, e que, a esta luz, faz todo o sentido, mas todo, aquilo que o PS propõe, fará mais sentido ainda que o mesmo Sr. Deputado Almeida Santos nos diga com toda a clareza, apertisverbis, preto no branco, que estão dispostos a dar quase de barato o que aí propõem para o artigo 9O.fi e que, concomitantemente, neste jogo de checks and balances...

O Sr. Almeida Santos (PS): - Eu também não disse isso.

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Não foi isto? Então corrija-me, Sr. Deputado.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Defini o preço de uma forma tão clara que só pode ser esse e nenhum outro. Não é, nomeadamente, o que o Sr. Deputado possa accionar.

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Também não causa nenhum espanto que o Sr. Deputado Rui Machete, arguto como é, tenha vindo dizer, em nome do PSD, que admite como última das últimas possibilidades, apesar de tudo, reconsiderar, em torno da proposta do PS, uma qualquer formulação que lhe sirva. E um jogo de cheks and balances, repito. Vamos ver o que sai destes regateios de preço. Obviamente, terão de compreender, desde logo o Sr. Deputado Vera Jardim, que nós, PCP, nos coloquemos do lado de fora deste tipo de negócio, o que não quer dizer...

O Sr. Almeida Santos (PS): - Tem toda a nossa compreensão. Só não tem o nosso aplauso.

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Isto nem sequer é injurioso. Mantemos, no entanto, a visão política estruturante do actual artigo 90.2 e as suas óbvias decorrências. Por exemplo, entendemos que aquilo que se faz ao chegar aqui já não é, ex nihilo, a destruição significativa de quase tudo. O que se foi fazendo até ao presente é que significou, em primeiro lugar, o derrubar do muro; a seguir, o depredar da casa; depois, o constatar os destroços e, finalmente, pela voz do PSD, o proclamar que esses destroços não são úteis ou, até, que nem sequer existem. O PS diz então que há, efectivamente, uns destroços, mas que, apesar de tudo, os considera apropriáveis por uma nova nomenclatura constitucional em favor de um processo segundo o qual ainda se covole na propriedade social, no sector social, alguma coisa do que estava constante do artigo 91.° Isto é verdade ou não é? E verdade, isto foi afirmado reiteradamente pelos Srs. Deputados Almeida Santos, António Vitorino e Vera Jardim.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Há mais do que destroços. Entendemos que a Constituição deve deixar de conter elementos colectivizantes. É nosso direito tal como é vosso o de manter o que está. Não chame a isto destroços.

O Sr. José Manuel Mendes (PCP):-Chamo eu, qualificando os vossos actos, o que não me está vedado. Espero que não me leve a mal porque nem sequer sou estremamente expressivo.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Apenas substituímos um edifício por outro.

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Pensamos que o que hoje consta do n.° 3 do artigo 90.º - chamo a atenção para isto, sobretudo devido à troca de impressões que estava a manter com o Sr. Deputado Vera Jardim - tem apenas a ver com as unidades de produção pertencentes ao Estado e a outras pessoas colectivas públicas, entendendo esse n.° 3, obviamente, não como a socialização do sector público directo, mas como uma progressiva ampliação da participação dos trabalhadores na sua gestão. Reiteramos este princípio com a consciência de que também é legítimo, digno, dizer com toda a clareza que, do nosso ponto de vista, o horizonte último, o sentido último, a última ratio deste n.° 3 está naquilo a que chamaríamos a transferência de toda a responsabilidade, nestas empresas, da gestão para os trabalhadores. Isto é evidente e assumimo-lo inteiramente. Eu assumo-o e aqui está como mantenho, nas rigorosas proporções devidas, a afirmação um pouco brejeira de há pouco, e que o Sr. Deputado Vera Jardim bem entendeu, sem lhe retirar nada, redizendo as coisas eventualmente novas que tenha dito - porventura não tão novas quanto isso, pois já andamos, há muitos anos, a defendê-las por aqui.

O Sr. Presidente: - Registo com prazer a consonância que tenho como Sr. Deputado José Manuel Mendes no sentido de achar que efectivamente o artigo 90.° é um princípio estruturante de uma certa visão da Constituição, colectivizante, estatizante, marxista-leninista. Estamos perfeitamente de acordo.

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Diria, como o Sr. Deputado Almeida Santos: o verbo é seu, Sr. Presidente, embora neste caso sintonize, naturalmente, com algumas das suas observações.

O Sr. Presidente: - O verbo é nosso.

Se VV. Exas. estivessem de acordo, iríamos passar ao artigo 9O.°-A, que é uma proposta do PCP relativa ao domínio público. Pergunto se o PCP pretende justificar a proposta ou se prefere passar a discussão para uma fase ulterior.

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Sr. Presidente, preferiria discutir ulteriormente esta questão.

O Sr. Presidente: - Portanto, fica de remissa para um momento posterior esta análise do artigo 90.°-A, apresentado pelo PCP.

Página 906

906 II SÉRIE - NÚMERO 30-RC

Iríamos passar aos artigos 91.c e seguintes, título m, "Plano". Proporia que adoptássemos a conduta que já adoptámos quanto à epígrafe do título n, isto é, que não a discutíssemos neste momento, visto que há uma proposta de eliminação da epígrafe e de supressão dos dois títulos, o segundo e o terceiro, e iniciaríamos, portanto, a análise pelo artigo 91.°

No artigo 91.°, "Objectivos do Plano", há uma proposta de substituição integral do artigo por um novo normativo com dois números por parte do CDS; há uma proposta de alteração do PS; há uma proposta de eliminação por parte do PSD, e há ainda...

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Não faz por menos.

O Sr. Presidente: - Como verá, iremos mais longe; não há só uma, há várias propostas de eliminação.

Como dizia, há ainda uma proposta de alteração por parte do PRD. Se estivessem de acordo, iríamos começar pela proposta do PS, pedindo-lhe uma sucinta explanação dos motivos da sua proposta.

Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Entendemos, como se verá no decurso de todo este título, que a omnipresença do Plano em tantos aspectos da Constituição não teve tradução na realidade. E de duas uma: ou fazemos um esforço para pôr a realidade de acordo com a Constituição, uma vez mais, ou temos de adequar a Constituição a uma realidade de que já temos uma experiência de doze anos.

O que propusemos foi alguma simplificação das referências constitucionais ao Plano e alguma clarificação no sentido da eficiência desse instrumento, que continuamos a considerar útil.

Neste artigo as alterações não são de tomo. Depois veremos, passo a passo, o sentido global que têm. Aqui, em vez de falarmos em organização económica e social do País, falamos no desenvolvimento económico e social. Não nos parece que o Plano tenha tanto a ver com a organização económica e social do País. O Plano tem mais a ver com o desenvolvimento, não tanto com a organização.

As três intervenções que estão aqui traduzidas nos conceitos de orientação, coordenação e disciplina reduzimo-las à coordenação e à orientação. Não nos parece que o Plano deva ser considerado um instrumento de "disciplina" da economia, para além de a coordenar e orientar. Também substituímos a ideia da garantia que está no n.° 2 pela ideia da promoção. E introduzimos duas ideias novas: a ideia da modernização, que enriquece o dispositivo, e uma referência também à economia nacional, pois, se estamos no Plano, é evidente que faltava aqui uma referencia à economia nacional. No fim eliminamos a referência ao povo português, porque, estando nós a fazer uma Constituição para Portugal, não parece que a qualidade de vida pudesse ser outra que não a do povo português.

Por outro lado, a qualidade de vida de que se trata não é só a do povo português. Os estrangeiros e os turistas também tem direito a essa qualidade de vida.

O Sr. Presidente: - Segue-se o PSD. Daria uma justificação, o mais sucinta possível, acerca das propostas, não apenas para este artigo 91.°, mas para todo o conjunto do título III, sob a epígrafe "Plano", que vai dos artigos 91.° a 95.º, inclusive.

Como é sabido, na nossa proposta propomos a eliminação de todos estes artigos e a sua substituição, por um único artigo, que na nossa proposta tem a numeração 91.°-A, sob a epígrafe "Elaboração e execução dos planos de desenvolvimento". Quais são as razões que justificam esta proposta de eliminação de todos estes artigos, que são cinco, e a sua substituição por um outro? Elas residem, fundamentalmente, em duas razões básicas.

A primeira é de que pensamos que dentro do modelo económico que deve estar pressuposto e posto pela Constituição não se justifica que seja dedicado ao Plano este conjunto de artigos e sobretudo que se diga que a organização económica e social do País é orientada, coordenada e disciplinada pelo Plano. Isso teria uma explicação compreensível enquanto se pensava que o sector essencial da economia era o sector público, que nós nos encontrávamos num estado transitório a caminho de uma sociedade sem classes e da realização de um certo tipo de socialismo de via única, orientado pelos princípios do marxismo-leninismo, mas não se justifica uma Constituição que reja a vida de uma sociedade aberta e pluralista e em que se pensa que esse pluralismo e essa abertura são, naturalmente, situações estáveis e não para serem mudadas pelo exercício revolucionário do poder através das classes trabalhadoras tuteladas por um qualquer movimento militar ou pelo Movimento das Forças Armadas. Por essas razões, entendemos que não tem justificação estarmos a dedicar ao Plano estes cinco artigos com o conteúdo que a Constituição lhe deu, e preferimos substituir por um artigo em que se refira, naturalmente, que há um plano, como é natural no desenvolvimento programado de uma economia, mesmo numa economia com as características de uma economia mista com prevalência do sector privado, como nós pensamos que deva ser a nossa. Refere, também, por outro lado, quem elabora o Plano, quem o aprova e alguns dos aspectos fundamentais do seu regime, designadamente também a participação das organizações representativas dos trabalhadores e das organizações representativas das entidades económicas e profissionais na elaboração dos planos, e ainda o papel que quanto a nós deverá caber a uma nova instituição a constituir, o conselho económico e social.

A segunda razão, essa já menos de carácter fílosófico-político, mas no que respeita ao entendimento que quanto a nós deve existir acerca daquilo que deve ter consignação constitucional, diz respeito à circunstância de não se justificar na Constituição uma pormenorização excessiva no que respeita às formas de elaboração e execução do Plano, a certos aspectos da sua estrutura, que, aliás, não têm sido cumpridos, como é do conhecimento público, e ainda outras questões como a parte relativa à sua força jurídica e objectivos, que estão ligados à filosofia que há pouco exprobrámos.

Nestas circunstâncias, o PSD, como disse, propõe um único artigo sobre a elaboração e execução dos planos de desenvolvimento e dá-lhes a característica de planos de desenvolvimento e não de planos que orientem e disciplinem a actividade total do País, independentemente de estarem ou não ligados a uma ideia de desenvolvimento económico e social, consubstancia esses princípios num único preceito, o artigo 91.°-A.

O PRD não está presente; poderíamos passar a discutir o artigo 91.°, porque temos de ir, naturalmente, por partes.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Ramos.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - A minha intervenção destina-se fundamentalmente a formular um pedido de esclarecimento ao Sr. Deputado Almeida Santos.

Se bem entendi, V. Exa. referiu que a omnipresença do Plano não teve até agora tradução na realidade e que é neces-

Página 907

27 DE JULHO DE 1988 907

sário mudar o estado das coisas. Ora bem, a proposta do PS refere no n.° 1 que "o desenvolvimento económico e social é coordenado e orientado pelo Plano", mas retira a expressão "disciplinada pelo Plano". A minha questão é saber em que é que consiste esta supressão. Será que o PS deixa de considerar o modelo económico português dirígista? Entende que o Plano não é absolutamente obrigatório, mas indicativo, ou, pelo contrário, entende que o modelo económico, apesar de eliminar a expressão que há pouco referi, subsiste na sua inteireza como até aqui, apesar de se reconhecer, como o PS reconhece, que o Plano não teve tradução na realidade e todos os mecanismos que até agora foram propostos em sede constitucional não tiveram aceitação ou sequer cumprimento? Em resumo: em termos de modelo económico, em sede de Plano, qual é, concretamente, a orientação do PS?

O Sr. Almeida Santos (PS): - Uma vez mais o PS situa-se entre duas posições extremas: entre os partidos que acham que o Plano deve continuar a ter a dimensão que hoje tem na Constituição - provavelmente será essa a posição do PCP - e aqueles que acham que o Plano não deve ter expressão nenhuma, ou perto disso. Eu não vejo como é que a proposta do PSD dá minimamente cumprimento ao limite material consistente no planeamento democrático da economia. Que o Plano não deva ter a expressão estatizante que tem hoje, isto é, um conceito de planificação em uso em certos países de Leste, estamos de acordo. Mas que se deva saltar do oitenta para o oito é de mais. O PS encontra-se mais uma vez no meio termo em que costuma estar a virtude, e com ela a razão. Para começar, diz o PSD: "O Governo, de acordo com o seu programa, submeterá à aprovação as grandes opções dos planos de desenvolvimento económico." Em primeiro lugar, não se sabe quantos são. Em segundo lugar, "de acordo com o seu programa" parece eliminar os planos de longo prazo, porque nunca se pode conceber um plano de longo prazo de acordo com um programa de quatro.

O Sr. Presidente: - Exacto. A ideia é justamente fazer coincidir os programas de desenvolvimento com governos de legislatura, e eu explico porquê. Os planos consignam claramente determinados objectivos políticos, é muito difícil que um plano que tenha sido proposto e aprovado por uma determinada maioria venha depois, no último ano, a ser realizado, porque tem a duração de cinco anos, por uma maioria de um sentido bastante diverso. Isso poderia explicar-se e justificar-se em determinadas circunstâncias na óptica da planificação prevista aqui na Constituição. Não assim numa óptica de planeamento do desenvolvimento, que é diferente. Tem, portanto, toda a razão, a ideia é essa.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Nem a Constituição dura dez anos! É revista ao fim de cinco. Por que é que não há-de haver planos de dez anos? Vamo-nos limitar às vistas curtas, a só programar o futuro em termos de quatro anos? Isso é não querer antever o futuro, ou não querer programá-lo, é navegar à vista. Nós continuamos a entender que os planos de longo prazo têm uma função insubstituível. Um exemplo: uma central nuclear demora dez anos a executar. Se me disser que não deve constar muita coisa do Plano a dez anos, digo-lhe que não deve. A maior flexibilidade e a maior concisão. De resto, um plano a dez anos pode ser alterado, não é imutável. Temos um plano a dez anos e de repente verificamos que o mundo, em vez de caminhar na direcção prevista, caminha na direcção oposta. Nesse caso, corrige-se o Plano. É uma lei como qualquer outra. No entanto, continuamos a entender que não se deve conceber o Plano como um outro programa. Nada há de mais inútil do que um plano de quatro anos que se baseie no programa.

A nossa concepção do Plano não é essa. Para que lado vamos? Vamos para o turismo? Vamos para a indústria pesada? Vamos para a indústria ligeira? Na agricultura, vamos para a floresta? Para a aquacultura? Para a criação de ovinos? Vamos definir metas? Temos navegado à vista - repito -, ninguém sabe se queremos o nuclear ou não. Se queremos centrais a carvão, se queremos centrais a fuel. Vão-se tomando medidas. Avulsamente. No imediato vamos tendo ideias, a quatro anos já não temos. E eu sei, tendo feito programas em três, quatro dias, com que vertiginosidade se fazem.

O Sr. Presidente: - E aos planos?

O Sr. Almeida Santos (PS): - Porque o PSD e este governo passam a vida a dizer "Deixem-nos cumprir o nosso programa! O Tribunal Constitucional não nos deixa cumprir o nosso programa!" Como se houvesse algum programa com direito a violar a Constituição e a não respeitar os direitos da oposição!

Faça-se a história do respeito por todos os partidos do seu próprio programa. Todos lhe ligam bastante pouco!

O programa, a meu ver, não dispensa a planificação, e a planificação não pode ser essa coisa vaga que seriam "as grandes opções dos planos de desenvolvimento económico". Isso, em nosso entender, não dá cumprimento mínimo à exigência constitucional. Temos de cumprir - é esse o nosso ponto de vista- os limites materiais da revisão. Estamos dispostos a acabar com a actual omnipresença do Plano. Mas a vida económica e social do País deve ser planificada com alguma antecedência, com a definição de caminhos. Nós entendemos que o Plano, com letra grande, deve querer significar o sistema global de planificação. Os planos, anual, quinquenal, decenal, de longo e médio prazo, são planos com letra pequena, são instrumentos da concretização do sistema de planificação.

É esta a nossa ideia. Como verão, eliminamos muitas referências ao Plano nalguns sectores onde nos parece que estão a mais. Nada de grandes sonhos de planificação de tudo e mais alguma coisa. Vamos limitar o Plano a limites razoáveis e vamos ver se a experiência nos permite desta vez - porque fomos menos ambiciosos - fazer o que nunca conseguimos e que foi uma efectiva planificação.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Também há grandes alusões a governar mal com o Plano.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Isso de governar bem é o vosso ponto de vista. Mas presunção e água benta cada um toma a que quer. A nossa ideia é corrigir os excessos, não aniquilar a planificação e o que representa na vida económica e social.

A isso não daremos nunca o nosso assentimento.

Dou-me conta de que não respondi a uma questão: quando eliminamos a palavra "disciplinada", é porque nos parece que o Plano não disciplina nada. E não disciplina porquê? Porque o Plano tem de prever, a sua função é fundamentalmente prever, quando muito coordenar. Disciplinar a economia, o Plano? Não concebemos um plano que tenha essa função! A ideia de disciplina não desposa, quanto a nós, uma economia baseada nas leis do mercado.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Coloquei a V. Exa., Sr. Deputado Almeida Santos, exactamente essa questão a que já respondeu, o que agradeço. Dada a supressão da

Página 908

908 II SÉRIE - NÚMERO 30-RC

expressão "disciplinada", compreenderia tudo o que V. Exa. acabou de explicar sem o artigo 92.B, onde se contém o normativo respeitante à força jurídica do Plano. Ora, o PS, se bem entendo, mantém o n.° 1 - "o Plano tem carácter imperativo para o sector público estadual e é obrigatório", isto é, tem carácter imperativo para o sector-público estadual. Se se visse a alteração só em sede do artigo 91.° com a supressão da expressão "disciplinada", eu entenderia tudo o que Sr. Deputado Almeida Santos acabou de explicar, mas, dada a ligação que se tem de estabelecer com o que se estipula em sede de força jurídica no artigo 92.fi da proposta do PS, continuo a não entender. Afinal, na proposta do PS o Plano é omnipresente, tem, e continua a ter, a força jurídica que já tinha no passado em termos de estipulação na Constituição. Ou não será assim?

O Sr. Almeida Santos (PS): - Mas, então, se o Estado acha bem um certo caminho para o futuro, como é que se pode admitir e compreender que ele não tenha um carácter indicativo mesmo para o sector privado? Como sabe, "indicativo" é bem pouco! Trata-se apenas de uma mera indicação, e do que daí decorre.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Mas o PS mantém a indicação em termos de sector público não estadual.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Estou apenas a referir-me ao sector privado. Com efeito, para o sector privado, para o público não estadual e para o social, como é que nós podemos conceber que o Plano não seja sequer, indicativo? Agora, que o Plano não possa ou não deva ser imperativo para o sector público estadual pressupõe que o que o Estado acha bom não o hão-de achar as suas próprias empresas! Quer dizer: o Estado traça como bom e positivo certo caminho, e uma empresa pública de querele próprio é dono tem o direito de entender o contrário? É claro que tal será assim, embora com a relatividade de todas as coisas.

Como sabe, o Plano não inclui sanções, ou seja, não vai ninguém para a cadeia por o não respeitar. Não é isso. É imperativo apenas no sentido de que, porventura, o gestor público que não respeitar o Plano terá uma boa expectativa de vir a ser substituído na primeira oportunidade.

Relativamente ao sector privado, é mera indicação, que este cumpre ou não. O mais que lhe pode acontecer é sujeitar-se às consequências de remar contra a maré.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Almeida Santos, se V. Exa. me permite, e com toda a amizade, devo dizer que a sua intervenção suscita-me algumas perguntas/observações que eu gostaria de fazer.

Julgo que nem sempre o in médio virtus, como virtude burguesa, é a melhor solução para algumas matérias. E, nesta questão do Plano, gostaria de sublinhar que hoje nos países ocidentais, na Europa da CEE, se acredita muito pouco nas virtudes do planeamento tal como foram desenvolvidas pelo Comissariat du Plan nos anos cinquenta e sessenta. Até mesmo nos países de Leste os planos quinquenais caíram um pouco no favor dos responsáveis soviéticos e seguidores dos outros países. É que se reconhece que a previsibilidade dos fenómenos económicos não é tão grande como se julgava, bem como, sobretudo, a capacidade de os influenciar nos termos que a doutrina do planeamento defendia na altura em que a França se apresentava como modelo. Com efeito, o que na prática se verificou é que essa previsibilidade era extremamente ilusória, e há hoje um grande cepticismo nessa matéria.

Em segundo lugar, o problema do Plano e a sua articulação como Programa do Governo não pode pôr-se, a meu ver, nos termos que V. Exa. refere, porque, na realidade, o Plano é de algum modo uma forma de executar em termos sistemáticos o Programa do Governo, e contradições entre este e aquele são inaceitáveis. Ora, isso leva a aconselhar a existência de uma íntima articulação entre o Programa do Governo e o Plano e a parecer contraditório que possa um ser indiferente em relação ao outro.

Portanto, é de pensar ser útil que os dois tenham períodos de vigência similares e que, de algum modo, um seja veículo da execução do outro. Porque, na verdade -e nesse aspecto estou de acordo com V. Exa. -, o Plano não é exactamente uma questão de programa, tendo antes vinculação e efeitos jurídicos, que em todos os países onde a figura do Plano vigora, seja o plano de ordenamento territorial ou o plano de direcção municipal, sejam planos de ordem económica, se lhes reconhece. Daí que não seja tão despiciendo como isso essa articulação entre os programas do Governo e o Plano.

Depois, há ainda uma razão adjuvante para retirar importância a esse problema do planeamento. E que, hoje, uma parte das actividades económicas de longo prazo são orientadas, nos países membros da CEE, não em termos dos planos nacionais mas em termos das directrizes fundamentais resultantes dos órgãos comunitários.

E depois, ainda, V. Exa. referiu os problemas de opções nucleares em matéria de plano energético. Todavia, há planos e planos, e nós estamos a tratar de um plano com uma vocação ampla e quase globalizante da actividade económica. É completamente diferente dos planos sectoriais. Aí, em matéria de planos sectoriais, é possível, efectivamente, pelo carácter mais elevadamente técnico e por incidências políticas mais delimitadas, fazer planeamentos a um prazo mais longo, até pela natureza das coisas, como é o caso do plano energético. Mas, em planos globais, isso é extremamente difícil, e isso tem levado a que nuns países abertamente - como é o caso da Alemanha -, outros países de uma maneira mais à sorrelfa - como é o caso da França -, tenham na prática abandonado essa ideia dos planos em termos de um planeamento geral tal como era preconizado, repito, pelo Comissariat du Plan.

Eu percebo que o PS no fundo tenha alguma necessidade de se ater ao Plano, talvez não por razões ideológicas, e penso que não seria justo estar a pensar que eram esses os motivos determinantes, mas pelo famigerado artigo 290.º Quer dizer, no fundo, é para prestar um preito ao artigo 290.º

E, aí, diria que a nós não nos preocupa essa matéria nem temos esse culto oficial pela interpretação que já tive ocasião de explicitar acerca do artigo 29O.e Essa preocupação obsessiva com a letra da lei nós não a temos. Por exemplo, penso que o PS vai reconhecer a importância das organizações populares de base porque vêm no artigo 290.°, e daí vai naturalmente consignar um preceito a essa instituição tão dinâmica e tão relevante para o funcionamento da Administração Pública portuguesa... Mas a realidade é que, apesar de tudo, neste caso nós sempre mencionamos o Plano. Mencionamos o Plano em termos de um tipo ideal, eberiano, pequenino, mas quantum satis para que se lhe reconheça alguma coisa que é verdadeiramente útil, que é a disciplina da actividade de desenvolvimento que está prevista, ou deve estar prevista, nos programas do Governo. Daí que, embora, naturalmente, com todo o respeito pela sua opinião, e, repito, com toda a amizade que V. Exa. me merece, pense que neste caso não é no meio que está a virtude.

Página 909

27 DE JULHO DE 1988 909

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Presidente, eu admito que nem sempre in médio virtus est mas posso garantir que quase nunca in extremis virtus. Não é por acaso que o aforismo existe. E não fomos nós que o fizemos, foi a realidade que o consagrou.

De um modo geral, quem está no meio de posições extremas não está mal.

O Sr. Presidente: - O CDS que o diga muito rigorosamente!

O Sr. Almeida Santos (PS):-Não Sr. Presidente, in extremis raris. A verdade é que há planos noutros países com maior ou menor expressão. Não reconheço nenhuma economia que viva à base de nula planificação, isto é, não conheço nenhuma economia que não preveja o futuro em termos mais ou menos latos.

Além disso, o artigo 290.° para nós não é de modo nenhum famigerado. Será tão famigerado como qualquer outro artigo da Constituição. Foi aprovado pelo PS, pelo PSD, e nenhum social-democrata o contestou na devida ai lura. Por isso, não vejo razão nenhuma para o distinguir dos demais artigos relativamente ao dever de obediência que lhe devemos. Não se trata de uma questão de culto oficial, mas sim do respeito normal que se deve a uma Constituição no seu conjunto, sem a parcelar em artigos bons e maus. Isto e que seria perigoso! Relativamente às organizações populares de base em concreto, nós eliminamo-las para o futuro, aceitando o princípio da dupla revisão. Mas a verdade é que também não vemos mal nenhum em que onde se fala em organizações populares de base se fale agora em comissões de moradores, já que é isso o que na realidade são. Até pode ser que agora, como são tratadas pelo nome ajustado, comecem efectivamente a funcionar.

Diz ainda V. Exa. que a capacidade ou o poder de previsibilidade não é grande e é, de algum modo, progressivamente decepcionante e difícil. Concordo, mas também quanto mais difícil for a previsão mais esse papel tem de caber ao Estado e não aos particulares. Com efeito, por ser difícil prever é que o Estado tem de fornecer a si próprio e aos particulares estrelas polares. Quanto mais difícil for saber-se para onde caminha o mundo e o espaço económico em que nos inserimos, mais o Estado deve chamar a si a obrigação de ser ele a fazer alguma previsão. É tão-só isto e mais nada. Depois, veremos caso a caso onde as referências ao Plano podem ser eliminadas. Nós próprios tomamos a iniciativa de as eliminar em muitos casos.

Devo dizer que, verdadeiramente, nunca tivemos um plano. Portanto, não se ponham defeitos a uma experiência que, de facto, ainda não se tentou. Somos mesmo navegadores à vista. Improvisadores impenitentes. Temos alta capacidade para resolver de imediato problemas difíceis, mas não somos muito aptos a prever. É, pois, mais um desafio que devemos impor a nós próprios: "Somos ou não capazes de prever?" Pessoalmente, não me considero definitivamente incapaz de elaborar um verdadeiro plano.

O Sr. Presidente: - De fazer um plano somos capazes. O que acontece é que não vai servir de nada!

O Sr. Almeida Santos (PS): - Desculpe, Sr. Presidente, mas o Plano vai servir de muito se formos capazes de fazer um plano que diga coisas tão simples e concretas como estas: "queremos investir na educação", ou "o grande sacrifício vai ser feito na saúde nos próximos anos".

Vamos enveredar na economia pelos serviços e em especial pelo turismo? Ou pela indústria? Ou reforçar a agricultura? Ou as pescas? Ou as vias de comunicação? Será assim tão difícil? Não o sendo, será inútil? Creio firmemente que não!

É esta a forma como concebo a ideia de um plano. Não se trata de um plano todo poderoso que tudo determina e condiciona. É, muito simplesmente, a previsão do caminho ou do destino para onde vamos.

Quanto à sua relação com o Programa do Governo, este até tem de preceder o Plano, porque o Governo tem de apresentar o seu programa em dez dias, e não é nesse curto espaço de tempo que vai fazer o Plano, como é óbvio. Assim, começa-se pela elaboração do Programa e só depois vem o Plano.

Nada impede que o Governo faça uma reflexão mais profunda, não apenas em dez dias, com a precipitação e o cansaço depois de um acto eleitoral, para onde quer, de facto, ir.

Diz-se hoje que "o Orçamento deve ser a expressão financeira do plano anual". Por que não há-de ser? O plano anual define metas e, portanto, o Orçamento dá mais dinheiro para os projectos por ele seleccionados. Eliminados os exageros da actual macroplanifícação prevista, julgamos que o Plano continua a ter utilidade.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Deputado Almeida Santos, como V. Exa. sabe, tenho apreciado sempre as suas posições de equilíbrio e de bom senso. Nesse sentido, é evidente que reconheço uma modificação substancial em relação ao Plano, ou em relação aos preceitos sobre o Plano, pelo menos na intenção que está na base dos preceitos alternativos apresentados. Só que, realmente, lendo cada um deles, essa intenção -como, aliás, há pouco salientou, e com um exemplo bastante a propósito, o Sr. Deputado José Luís Ramos - fica diminuída. Compreendo, ou penso ter compreendido, a intenção subjacente às alterações propostas pelo PS. Só me parece é que este partido, nas alterações que fez artigo a artigo, é demasiado seguidista em relação ao texto da Constituição.

Não estou aqui a colocar a questão de saber se estamos ou não a respeitar os limites materiais, porque podemos perfeitamente tirar aquele conteúdo, que é além do mais fora do contexto do País e é, fundamentalmente, fora do contexto da realidade de hoje. Aquilo que o Sr. Deputado Rui Machete disse há pouco tem toda a verdade. Realmente, o que se passa em relação ao planeamento a nível nacional, ou ao planeamento em relação à maior parte dos países, designadamente europeus, é completamente diferente daquilo que se passava nos anos sessenta.

As realidades são completamente diferentes. Os planos que nesta altura se fazem é evidente que obedecem a realidades também completamente diferentes, que passam, designadamente no caso do nosso país, por planos de natureza comunitária, por planos de natureza regional, por planos de natureza municipal, e são todas essas realidades que integram um conceito diferente de planificação. A planificação económica tende a ser em todos estes países substancialmente menos estruturante e menos rígida.

Daí que a minha sugestão seja, fundamentalmente, neste sentido: que o PS repensasse a sua posição, para que, embora dando de barato que não caíssemos na redução que advém da proposta do PSD relativa ao artigo 91.°-A, tal como está proposto, também não caiamos no exagero manifesto que me parece ainda ser algumas posições do PS, designadamente aquilo que advém do n.º 1 do artigo 92.°,

Página 910

910 II SÉRIE - NÚMERO 30-RC

tal como é mantido pelo PS na Constituição, e de alguma pormenorização que, quer no artigo 91.°, quer no artigo 93.°, quer ainda no artigo 94.°, se mantém.

Porque - e com isto faço a minha conclusão - aquilo que disse em relação ao que se passa com os programas do Governo e a similitude que se fez em relação ao Programa do Governo e ao Plano, a adequação temporal entre um e outro, e entre um plano do Governo de legislatura e um programa do Governo para quatro anos, acabaria por apenas indiciar que se deveria manter na Constituição como indicação genérica do ponto de vista económico o Plano de dez anos. O outro seria, ou poderia ser, despiciendo. E aqui também chamaria a atenção para a redacção que VV. Exas. propõem e mantêm para o artigo 93.°

Neste momento, assumiu a presidência o Sr. Vice-Presidente, Almeida Santos.

O Sr. Presidente (Almeida Santos): - Já vamos a essa questão, mas, muito rapidamente, queria dizer apenas o seguinte, na sequência do diálogo que iniciámos: é claro que o PSD admitiu agora que não fomos tão longe como poderíamos ter ido nas alterações redutoras e que ele próprio foi longe de mais na sua alteração redutora. Já é alguma coisa. E claro que, se nos fizerem propostas concretas e substitutivas das nossas propostas e considerarmos que merecem o nosso aplauso, considerá-las-emos. Não somos fanáticos do que propomos do ponto de vista formal. O que não admitimos é uma planificação que não tenha um conteúdo que consideremos razoável. Primeiro, que dê satisfação ao artigo 29O.º; em segundo lugar, que implique alguma previsão daquilo que vai acontecer no futuro. Devo dizer que, de todos os planos, o que pessoalmente menos valorizo é o anual. É, de algum modo, uma duplicação do Programa do Governo, elaborado depois deste. O que faz mais sentido é o de cinco anos. Por isso, propomos uma regra de precedência cronológica, do de dez anos em relação ao de cinco e do de cinco em relação ao de um. Essa regra justifica-se porque não faz sentido definir o que queremos no ano seguinte sem saber o que queremos dentro de cinco e dez anos. Mas não se esqueçam também de que nas nossas reduções há coisas tão importantes como a eliminação do Conselho Nacional do Plano, órgão pesado que também nunca funcionou. Eliminamo-lo e substituímo-lo por outro em que cabem também outras competências. Eliminámos as regiões plano e a necessidade de coincidência em área com as regiões administrativas.

Não somos rígidos, nem estamos fechados. Mas não tenham ilusões, pois uma posição liberalizante, em termos de apenas mencionar o Plano, não nos dá a mínima satisfação.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Concordando, naturalmente, com tudo o que disse o meu colega Carlos Encarnação, a verdade é que nem todas as propostas do PS são no sentido da simplificação e da atenuação do significado.

O Sr. Presidente: - Qual é que não é?

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Fundamentalmente a do artigo 94.º Todo este complexo sistema de precedências aumenta extraordinariamente a complexidade e a rigidificação do sistema em relação ao que temos agora.

O Sr. Presidente: - Confere-lhe lógica. Não faz sentido começar do mais curto para o mais longo.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sendo certo que o plano a longo prazo - como o Sr. Deputado disse há pouco, e que, de resto, se compreende perfeitamente - tem a vigência, a duração e a estabilidade própria de uma lei, que uma nova maioria pode a todo o tempo alterar em função da alteração das condições económicas. Qual a precedência lógica de um plano a longo prazo com a consistência que lhe dá o PS, que tem suspensa sobre ele a possibilidade de a todo o tempo ser modificado, renovado, de serem mudadas as orientações? Qual a lógica de fazer depender do plano a médio ou curto prazo esse plano hipotético, sujeito a modificações a todo o tempo?

O Sr. Presidente: - Se o Sr. Deputado souber qual é o seu ponto de chegada, escolherá melhor o caminho para lá chegar. No fundo é esse o problema.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - É sempre esse ponto de chegada que é problemático.

O Sr. Presidente: - Não há nada que não seja problemático em matéria de previsão. A previsão é, toda ela, problemática. Mas, se souber que em dez anos quero construir 2000 km de auto-estradas, também me convém saber se nos primeiros cinco anos vou construir em direcção ao Algarve ou se vou construir no sentido do Norte do País. Sabemos onde vamos gastar predominantemente o nosso dinheiro, se na saúde, se na educação, e em ambos os casos com que progressão.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Mas à medida que nos distanciamos, à medida que aumenta a amplitude e a perspectiva do Plano, diminui a sua consistência. Cada vez se entra mais no problemático, no contigente e no "depois se verá". São os planos com menos consistência que são mais problemáticos, que a todo o tempo podem mudar, que condicionam aqueles que devem por princípio ser mais definidos (porque a curto e médio prazos sabemos o que podemos fazer).

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, o farol que está na costa não dispensa a Estrela Polar.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - A Estrela Polar é fixa. Mas o plano a médio prazo pode estar a leste e na manhã seguinte a oeste.

O Sr. Presidente: - O farol da costa é necessário para não embater nos escolhos, mas quero ir em direcção à Estrela Polar. Uma coisa não substitui a outra e a visão para o largo tempo é necessariamente esquemática. Concebo um plano a dez anos com quatro folhas que diga quais são as prioridades do Governo a dez anos. Chega-me isso e deixemo-nos de fantasias e literaturas.

Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Tinha pedido a palavra há pouco com o propósito de colocar algumas perguntas ao Sr. Deputado Rui Machete, mas, na sua ausência, endereçaria naturalmente as perguntas ao PSD. Ficarei grato se responderem às perguntas.

Antes disso, porém, gostaria de fazer duas ou três considerações. Penso que a realidade da previsão é hoje um facto e uma necessidade que ninguém contesta. Quanto mais complexa é a vida económica e social mais as exigências da previsão são necessárias, e a previsão está indissoluvelmente ligada à ideia de planeamento. Onde a

Página 911

27 DE JULHO DE 1988 911

questão se põe com pertinência é quanto ao significado desse planeamento e ao alcance que esse planeamento tem para o conjunto dos agentes económicos e sociais. Uma visão colectivista pretenderá que um planeamento definido centralmente pelo Estado abranja com força jurídica vinculativa o conjunto dos agentes económicos e sociais. Uma visão que liberte as forças produtivas naturalmente tenderá a consignar apenas essa força jurídica à própria administração estadual.

Penso que é inequivocamente nesse sentido que se orientam as propostas apresentadas pelo PS. Elas serão discutíveis quanto ao grau de medida, mas este ponto creio que está clarificado. Onde não consigo encontrar clarificação é no sentido das propostas apresentadas pelo PSD, e passo a referi-las. O PSD não exclui a existência do Plano, e a prova é que dedica todo um artigo ao modo de elaboração e de execução dos planos de desenvolvimento. Curiosamente, porém, fala da elaboração e execução de planos, mas não define constitucionalmente a sua natureza e, portanto, ficamos, como se viu no diálogo que acabou de se travar, no reino de uma certa ambiguidade. Para que servem os planos? Do ponto de vista das propostas do PSD, ficamos sem saber para que servem. Provalmente servirão para garantir que o Estado cumpra as suas incumbências prioritárias constantes do artigo 81.° É uma interpretação sistemática que nos ajudará a compreender para que servirão os planos na óptica do PSD, mas, se assim é, e parece que não poderá deixar de ser de outra maneira, então os planos tem de ter uma articulação necessária com o OE - e é aqui que encontro uma outra perplexidade.

Mais à frente, o PSD, na sua proposta relativamente à elaboração dos orçamentos, retira a norma que agora refere que o OE é elaborado de harmonia com as GOPs, ou seja, liberta na sua proposta o OE da necessidade de dever ser elaborado de acordo com as opções dadas pelo Plano. Será então caso para perguntar para que serve juridicamente o Plano, que força vinculativa tem, na tradução das propostas orçamentais. Aqui penso que não há qualquer coerência quanto à existência do Plano na proposta que o PSD faz, uma vez que o desliga completamente da sua articulação necessária com o OE, não se tratando, pois, de discutir as implicações do Plano relativamente à iniciativa dos agentes económicos, tratando-se, antes, de discutir a articulação do Plano relativamente às próprias iniciativas estaduais. Aqui essa articulação desaparece, o que não me parece muito coerente na própria perspectiva em que o PSD se coloca.

Para além desta questão, gostaria de suscitar uma outra que tem a ver com o próprio processo de elaboração do Plano. Na proposta de artigo 91.°-A do PSD, verificamos que na elaboração do Plano participam as organizações representativas dos trabalhadores e as organizações representativas das actividades económicas e profissionais. Desaparece expressamente qualquer referência à participação das populações através das autarquias locais e das regiões autónomas. A minha pergunta é a de saber se uma visão de planeamento que articule uma visão centralizada de objectivos estaduais com uma visão descentralizada dos objectivos regionais e das próprias regiões autónomas não deveria preocupar-se em formular uma articulação mínima em que essas entidades territoriais também tivessem alguma forma de participação no processo de elaboração do Plano. Ora, ocorre que o PSD de facto apenas confere o direito à participação na elaboração às organizações representativas dos trabalhadores e das actividades económicas e profissionais. Penso que isto é retirar toda a realidade regional e municipal da participação articulada na formulação de algumas opções existenciais ao planeamento e, portanto, também aqui a proposta do PSD pecará por carência.

São estas duas questões que gostaria que o PSD, se o entendesse, nos ajudasse a clarificar melhor.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Gostaria de fazer uma breve nota quanto à condução dos trabalhos. Quem da nossa parte conduziu este trabalho foi o Sr. i Deputado Rui Machete. Talvez fosse melhor, uma vez que foi encarregado de preparar esta matéria, que...

O Sr. Presidente: - Mas ele disse-nos para continuarmos.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sim, mas as perguntas feitas à nossa bancada deveriam ser-lhe colocadas. O Sr. Deputado Rui Machete é, da parte do PSD, aquele que respostas mais satisfatórias pode dar, porque foi ele quem preparou esta matéria. Será, pois, do interesse dos Srs. Deputados que seja ele a responder.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, visto isto, creio que deveremos encerrar a reunião. Está encerrada a reunião.

Eram 19 horas e 15 minutos.

Comissão Eventual para a Revisão Constitucional

Reunião do dia 15 de Junho de 1988

Relação das presenças dos Srs. Deputados

Rui Manuel P. Chancerelle de Machete (PSD).
Carlos Manuel de Sousa Encarnação (PSD).
António Costa de Sousa Lara (PSD).
Carlos Manuel Oliveira da Silva (PSD).
José Luís Bonifácio Ramos (PSD).
Licínio Moreira da Silva (PSD).
Luís Filipe Garrido Pais de Sousa (PSD).
Maria da Assunção Andrade Esteves (PSD).
Manuel da Costa Andrade (PSD).
Mário Jorge Belo Maciel (PSD).
Miguel Bento da Costa Macedo e Silva (PSD).
Rui Alberto Limpo Salvada (PSD).
Rui Manuel Lobo Gomes da Silva (PSD).
José Augusto Ferreira de Campos (PSD).
Guilherme Henrique Valente Rodrigues da Silva (PSD).
António de Almeida Santos (PS).
Alberto de Sousa Martins (PS).
António Manuel Ferreira Vitorino (PS).
Jorge Lacão Costa (PS).
José Eduardo Vera Cruz Jardim (PS).
Alberto Manuel Avelino (PS).
José Manuel Santos Magalhães (PCP).
José Manuel Mendes (PCP).
Herculano da Silva Pombo Marques Sequeira (PEV).
Raul Fernandes de Morais e Castro (ID).

Página 912

Descarregar páginas

Página Inicial Inválida
Página Final Inválida

×