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Quinta-feira, 4 de Agosto de 1988 II Série - Número 32-RC
DIÁRIO da Assembleia da República
V LEGISLATURA 1.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1987-1988)
II REVISÃO CONSTITUCIONAL
COMISSÃO EVENTUAL PARA A REVISÃO CONSTITUCIONAL
ACTA N.° 30
Reunião do dia 17 de Junho de 1988
SUMÁRIO
Deu-se continuação ao 11.º Relatório da Subcomissão da CERC respeitante aos artigos 96.° a 104.° e respectivas propostas de alteração.
Durante o debate intervieram, a diverso título, para além do Presidente, Rui Machete, pela ordem indicada, os Srs. Deputados Vera Jardim (PS), Carlos Encarnação (PSD), António Vitorino (PS), José Magalhães (PCP), Almeida Santos (PS), Lino de Carvalho (PCP), Rogério de Brito (PCP) e Pacheco Pereira (PSD).
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O Sr. Presidente (Rui Machete): - Srs. Deputados, temos quorum, pelo que declaro aberta a reunião.
Eram 10 horas e 40 minutos.
Srs. Deputados, antes de entrarmos na análise do artigo 97.°, queria pedir-vos o favor de cada um dos grupos parlamentares indicar o seu representante para a próxima reunião da Subcomissão que há-de tratar da elaboração do 13.° Relatório, visto que, apesar da morosidade da nossa marcha, estamos a chegar praticamente ao termo dos artigos que foram objecto do trabalho da mesma Subcomissão. Isto é, a Subcomissão debruçou-se, no seu 12.° Relatório, sobre o artigo 110.° e hoje começaremos os nossos trabalhos com o artigo 97.°
Assim sendo, gostaria de marcar uma reunião da Subcomissão para Terça-Feira às 15 horas, o que permitirá distribuir o trabalho e depois continuarmos com a reunião da Comissão.
Pausa.
Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.
O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Presidente, queria apenas dizer a V. Exa. que, por razões pessoais, estarei ausente durante toda a próxima semana.
O Sr. Presidente: - Muito obrigado, Sr. Deputado.
Srs. Deputados, quanto ao artigo 97.°, com a epígrafe "Eliminação dos latifúndios", há uma proposta de eliminação apresentada pelo CDS, uma proposta de alteração, com a eliminação do n.° 3 por parte do PS, uma proposta de eliminação apresentada pelo PSD e propostas de alteração por parte do PRD.
Começaria por solicitar ao PS a exposição dos motivos da sua proposta.
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Dá-me licença, Sr. Presidente?
O Sr. Presidente: - Faça favor, Sr. Deputado.
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Presidente, queria apenas dar-lhe uma informação que penso será útil para a condução dos trabalhos de hoje. Quero dizer que ontem fizemos já uma apreciação global, pelo menos a maior parte dos partidos, sobre o conjunto de artigos destinados à política agrícola.
O Sr. Presidente: - Então, vamos fazer uma espécie de discussão na especialidade.
Srs. Deputados, antes de o Sr. Deputado António Vitorino usar da palavra e apenas para que fique registado em acta e facilitar os trabalhos, passarei a ler o que sobre o artigo 97.° está contido no relatório da Subcomissão. As propostas apresentadas são do CDS, do PS, do PSD e do PRD, como já disse. Em matéria de epígrafe, há uma proposta de eliminação do CDS e do PSD e uma proposta de alteração do PRD que a substitui pela redacção: "Limites da propriedade fundiária".
O CDS propõe a eliminação integral do artigo.
O PS propõe a substituição do actual n.° 1 pelo seguinte preceito: "O redimensionamento das unidades de produção agrícola que tenham dimensão excessiva do ponto de vista dos objectivos da política agrícola
será regulado por lei, que deverá prever, em caso de expropriação o direito do proprietário à correspondente indemnização e à reserva da área suficiente para a viabilidade e nacionalidade da própria exploração", propondo também o PS a substituição do actual n.° 2 pela redacção seguinte: "As terras expropriadas serão entregues, a título de propriedade ou de posse, nos termos da lei, a pequenos agricultores, de preferência integrados em esquemas de exploração familiar, a cooperativas de trabalhadores rurais ou de pequenos agricultores ou a outras formas de exploração colectiva por 'trabalhadores, sem prejuízo da estipulação de um período probatório da efectividade e da racionalidade da respectiva exploração antes da outorga da propriedade plena", e a eliminação do actual n.° 3.
O PRD propõe a substituição do actual n.° 1 pela seguinte disposição:. "1. A Lei fixa os limites máximos da propriedade e das unidades de exploração agrícola privada da terra", propondo ainda o aditamento ao actual n.° 2 da expressão "nos termos definidos por lei" e a eliminação do n.° 3.
Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.
O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, dela usarei, aliás muito escassamente, apenas para dizer que já fizemos a apresentação do essencial da proposta para o artigo 97.° no debate que ontem foi travado.
Quanto ao n.° 1, pensamos que a nossa proposta recupera a preocupação fundamental que está subjacente à sua actual configuração, designadamente naquilo que mais releva, que é a observância do limite material do artigo 290° referente à extinção do latifúndio, através de um conceito de redimensionamento das unidades de exploração agrícola, conceito esse que terá de ser naturalmente integrado pelo legislador ordinário, tal como hoje sucede com o próprio conceito de latifúndio, que está dependente da integração por via da lei comum. Esse redimensionamento das unidades de exploração agrícola terá um critério norteado, vinculado nos termos constitucionais, pelos objectivos da política agrícola constante de lei que, em caso de expropriação, terá de prever o direito à correspondente indemnização, consagrando-se, constitucionalmente, o direito de reserva da área suficiente para a viabilidade e racionalidade da própria exploração. No fundo, trata-se de acolher em sede constitucional regras e conceitos que já hoje constam da própria lei comum.
Quanto ao n.° 2, o objectivo fundamental é o de prever, recuperando o essencial do n.° 2 do actual artigo 97.°, que, em caso de expropriação, as terras objecto dessa mesma expropriação serão entregues, ou a título de propriedade ou de posse, nos termos a definir por lei, a pequenos agricultores, como hoje em dia a Constituição já consagra; de preferência integrados em esquemas de exploração familiar - porque é esse já hoje o destino preferencial das terras que forem expropriadas -, a cooperativas de trabalhadores rurais ou de pequenos agricultores, o que a Constituição hoje também já consagra, ou a outras formas de exploração colectiva por trabalhadores. Substitui-se o conceito de "outras unidades de exploração colectiva" pela expressão "trabalhadores" com vantagem porque, em nosso entender, esta abre as portas para um horizonte mais vasto. A consagração destes critérios quanto à transferência da terra é feita sem prejuízo da estipulação daquilo que designamos por período probatório da
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efectividade e da racionalidade da respectiva exploração antes da outorga da propriedade plena, em termos de consagrar um modelo evolutivo, que passaria por uma solução transitória deste género até à outorga da propriedade plena, como desiderato final deste processo de transferência das terras expropriadas com os limites previstos no n.° 1. Eis, Sr. Presidente, uma síntese da nossa proposta.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, em relação ao PSD, gostaria apenas de fazer uma referência muito sucinta, que não sei se ontem foi feita, no que respeita não tanto ao mérito da proposta - porque ela certamente ontem foi objecto, em termos globais, de uma explanação -, mas à razão por que não deparámos com dificuldades intransponíveis pela circunstância de haver uma referência, na actual redacção da alínea f) do artigo 290.°, à eliminação dos monopólios e dos latifúndios.
E a razão por que entendemos que essa referência não obsta à nossa proposta de eliminação resulta de duas considerações. Uma primeira de carácter mais geral pois, como já foi dito repetidas vezes, alguns aspectos da nossa Constituição que surgem de maneira mais marcada na redacção de 1976 e de uma maneira menos nítida, mas igualmente existente, na redacção da Constituição de 1982 assentam num princípio estruturante que entendemos ter caducado. Ele é particularmente nítido nesta matéria da Constituição económica, como tive já oportunidade de referir, quer a propósito das nacionalizações, quer a propósito do Plano. De resto, há, em matéria de plano e de reforma agrária, nesse aspecto, uma grande articulação, porquanto, na redacção do n.° 1 do artigo 91.° da Constituição de 1976, a propósito dos objectivos do Plano, se diz que, para a construção de uma economia socialista, através da transformação das relações de produção e da acumulação capitalista, a organização económica e social do país deve ser orientada e disciplinada pelo Plano, e, em matéria de reforma agrária, no artigo 96.°, se diz: "Objectivos de reforma agrária - A reforma agrária é um dos instrumentos fundamentais para a construção da sociedade socialista e tem como objectivos:..."
Como repetidas vezes tenho dito, entendemos que esta construção da sociedade socialista, nos termos em que ela foi conseguida originariamente, não tem hoje actualidade e, por consequência, digamos que esse objectivo já não é vinculado, em razão ou do desuso ou de um uso contrário.
A segunda observação que queria fazer, para evitar discussões sobre esta matéria que são certamente muito interessantes e que teremos oportunidade de ter, mais em geral, quando discutirmos os primeiros artigos da Constituição, resulta da circunstância de o PSD, no artigo que consagra os objectivos da política agrícola, naturalmente, entender que, se e quando isso se justificar em função de uma política agrícola que tem por objectivo o aumento da produção e da produtividade do sector agrícola, da promoção da melhoria da situação económica, social e cultural dos trabalhadores e do melhor uso e gestão, por forma racional, dos solos e dos diferentes recursos naturais, ou ainda para fomentar a constituição de explorações agrícolas viáveis, com dimensão fundiária adequada, haverá uma política apropriada, tanto em matéria de latifúndios, como também em matéria de minifúndios.
Nestas circunstâncias, não vemos que o facto de ter sido mencionada, dentro de uma terminologia bem conhecida quanto às suas raízes ideológicas, a ideia da luta contra os monopólios e latifúndios, na alínea f) do artigo 290.°, seja também um obstáculo à sua eliminação.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados, a intervenção ontem produzida pela bancada do PSD e a intervenção que hoje foi produzida pelo Sr. Deputado Rui Machete são, quanto a mim, uma boa introdução para os termos em que a questão está colocada e para as implicações, o conteúdo e as consequências da posição que, nesta matéria, o PS anunciou e aqui foi sustentada, sucintamente, pelo Sr. Deputado António Vitorino, deixando em aberto todo um mar de questões.
Não podia, obviamente, antecipar, ponto a ponto, aquilo que o Sr. Deputado Rui Machete agora acaba de sustentar; no entanto não se trata, propriamente, de algo que tenha escolhido para nos revelar hoje. Trata-se de uma posição que vem um pouco mais desenvolvida, na sua versão originária, num artigo que um dia destes há-de ser publicado na "Revista de Estudos Políticos" de Madrid e que está traduzido, de resto, em português.
Ora, sucede que a tese, sendo o que é, pode dar origem a interessantes discussões de carácter, porventura, académico sobre a caducidade ou não de limites materiais de revisão (para não dizer até mesmo da Constituição toda). Pode-se, evidentemente, especular a galope nessa matéria, fazer exercícios conceptuais de contraposição entre o princípio constitucional A e o princípio B - para proclamar, triunfantemente, a vitória do princípio B e não a do princípio A, especular sobre o desfile das forças sociais e políticas em luta pela aplicação da Constituição e sobre as regressões políticas impostas por circunstâncias históricas de determinado cariz. É igualmente possível procurar transformar à força a Constituição num eco "destruído pelos factos", empurrado pelas pressões e nidificado pela vontade política daqueles que, num determinado momento, se alcandorem em maioria e querem continuar, a todo o preço, a sê-la. Tudo isto pode ser dito - em longo ou em curto.
Tudo espremido, no entanto, a questão política que se suscita é esta: o PSD não se conforma com os limites materiais da revisão. Poderá quem quer que seja, em termos mais enérgicos ou mais flébeis, sustentar que no nosso regime democrático qualquer progresso, no sentido da construção do socialismo, terá de ser decidido pela vontade do povo, nos termos normais da concretização do princípio democrático pelo voto em eleições ou através de decisões dos órgãos que politicamente o representam: dirá uma evidência! Dirá o que a Constituição diz como resultado do compromisso constitucional originário de 1976. Se disser, por outro lado, que os ritmos, as regressões e os avanços na concretização dos princípios constitucionais dependem do impulso e do jogo de forças políticas e sociais que, numa determinada estrutura e num determinado sistema, se registem, dirá outra evidência.
Coisa totalmente diferente é extrair de tais evidências o corolário técnico-jurídico-constitucional de que se verificaria um fenómeno de caducidade dos limites de revisão. Sobretudo, por mais apetecível que seja a
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conclusão, como a Revisão Constitucional não é feita pelo Tribunal Constitucional e como não é feita sequer por uma conjugação entre esse Tribunal e outros órgãos de soberania para sancionar uma solução que não seja constitucional, o desafio que está colocado, a quem possa formar maioria de revisão constitucional, é saber se aceita, independentemente da veste e da argumentação - e estou-lhe a chamar assim com esforço -, a posição de força que está subjacente à teoria da caducidade que aqui foi expressa.
O PSD não se limita a proclamar, teoricamente, a caducidade do artigo 290.°, nestes e noutros pontos: desenvolve, no terreno, uma acção política - de há muitos anos, de resto - tendente a apagar do mapa, a nidificar na prática, a destruir caso a caso, ponto a ponto, meta a meta, aspecto a aspecto, artigo a artigo, a Constituição agrícola, a própria realidade de carácter económico, social e político, que é o fenómeno da reforma agrária em Portugal. Pretende constitucionalizar essa destruição.
Isto é sabido e dispensa reforço. O repto que está colocado é o de saber qual é a nossa posição face a isso, ou seja, qual a posição das forças e dos partidos que se reclamam da defesa da realidade criada e do processo de transformação operado em termos de realidade dos campos em Portugal, nestes anos e neste ponto. Essa é que é a questão central, tudo o mais nos parece completamente secundário.
Sustentar-se que objectivos constitucionais não são vinculativos, pelo desuso ou pelo uso contrário, é abrir, verdadeiramente, as portas do inferno constitucional, e o Sr. Deputado Rui Machete sabe-o perfeitamente. Aplicar tal medida a esta porção da Constituição implica a legitimidade para fazer o mesmo a outras porções da Constituição. Se se entende que é possível este tipo de caducidade em relação a esta parte da Constituição, o desuso, o não uso ou o uso contrário legitimariam o mesmo exacto efeito em relação a quaisquer outros aspectos - essa solução é radicalmente insustentável! Conduz à dissolução da Constituição e à sagração do império da força contra os imperativos da Lei Fundamental.
O outro aspecto basilar suscitado pelo PSD é também um repto, decorre das intervenções feitas ontem por alguns dos Srs. Deputados do PSD e até de um deputado independente do PSD.
Elas vazam, de maneira inteiramente radical (por revelarem raízes de um projecto de destruição), qual seja a intenção política e prática do PSD. O que é que o PSD pretende obter na Revisão Constitucional? Pretende obter mãos livres para consumar aquilo que vem consumando com proibições constitucionais, à custa da infracção do quadro constitucional de forma qualificada e reiterada. E fá-lo com um carácter revanchista.
O conteúdo das intervenções de ontem, concretamente a intervenção do Deputado Pacheco Pereira é o retomar da linha de revanchismo em relação à reforma agrária, mais arcaica e também mais brutal, que se pode traduzir em palavras como em coronhadas, que pode ser dito aqui "assim", podendo ser dito em GNR "assado"! Tristemente o sabemos e sabemos também enorme que isso tem significado, em termos económicos, políticos, sociais e até humanos. É um atentado gravíssimo e o PSD pretende sinal verde para o perpetrar "limpamente", Pretende legitimidade constitucional para realizar a Contra-Reforma Agrária, ou seja, a destruição da Reforma Agrária.
É esse o repto que nos está dirigido, é esse o repto que está dirigido ao PS. E é nesse sentido que me parece que a resposta do PS é inquietante, preocupante e desresponsabilizadora. Auto-desresponsabilizadora e, numa certa parte, não reveladora das palavras e daquilo que são as consequências i porosas das propostas que apresenta.
Ontem tivemos ocasião de ouvir, da boca do Sr. Deputado Almeida Santos, os argumentos fundamentais com os quais o PS sustenta as suas propostas e, desses, o principal - e esse foi intensamente repetido, questão é que fosse fundamentado - é o de que necessidades de pacificação, de supressão de pólos conflituais e de terminar com um determinado quadro polémico exigiriam a expurgação do conceito de reforma agrária.
Do conceito, dir-se-ía, mas não do conteúdo - sustenta o PS - uma vez que, dizia o Sr. Deputado Almeida Santos, se se vir bem mantêm-se inalterados os aspectos que são fundamentais. Pois diz a Constituição rigorosamente o que é o latifúndio? Pois diz a Constituição, bem, o que são pequenos e médios agricultores? O PS foi aos conceitos relativamente indeterminados, que constam deste ponto da Constituição, como constam de quase todos eles, o que é uma banalidade e uma normalidade constitucional, e suscitou, também o PS, a famosa interrogação do Sr. Deputado Capoulas: "o que é um pequeno ou médio agricultor?" O PS fez ontem essa interrogação. O que é um latifúndio? O que será? O que será um latifúndio?
O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Deputado, só é verdade a pergunta sobre o que é o latifúndio, não o que é o pequeno e médio. Pelo contrário, dei uma resposta sobre o que é um pequeno e um grande agricultor.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, ressaltei precisamente a diferença. O Sr. Deputado Capoulas...
O Sr. Almeida Santos (PS): - Não ressaltou, colocou as duas coisas. E eu só fiz a pergunta sobre o que é um latifúndio; dei a resposta sobre o que é um pequeno e médio agricultor e um grande agricultor. Portanto, não equipare as coisas.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, a acta traduzirá, rigorosamente, o que é que equiparei e o que é que não equiparei.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Sem dúvida nenhuma.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Certamente me fará a justiça de admitir que não estabeleceria uma confusão entre aquilo que disse e aquilo que disse o Sr. Deputado Capoulas.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Não, uma confusão intencional nunca. Uma confusão sem intenção, todos nós somos capazes disso.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas, de qualquer maneira, é fácil verificar isso em termos que não admitam qualquer dúvida.
Em todo o caso, a démarche utilizada pelo PS, e concretamente pelo Sr. Deputado Almeida Santos, foi
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a de aludir aos conceitos relativamente indeterminados constantes da Constituição, para os medir com quê? (E esse é o aspecto fundamental). Com os outros conceitos relativamente indeterminados que o PS introduz. E, para dizer indeterminação por indeterminação, esta é tão indeterminada como a outra. Não nos peçam, ou não nos julguem, ou não nos critiquem pela indeterminação, porque, se ela existe aqui, ele existia ali, etc.. Esta foi a démarche fundamental, e este é o problema principal. Porque pode sustentar-se que a proposta do PSD deixa inalterado o conteúdo constitucional fundamental, suprimindo os elementos de guerra, de polémica, as marcas e cicatrizes - de resto, positivas - das transformações ocorridas no país? Parece-nos - e daí o interesse deste debate - que existe um alto risco de que assim não seja. Interessará fazer - e era para isso que gostaria que os Srs. Deputados do PS pudessem dar o contributo, e estou certo de que o darão - uma confrontação, um exercício elementar: testar, face ao projecto de revisão constitucional do PS, a proposta de lei de revisão da Lei de Bases da Reforma Agrária apresentada pelo Governo do PSD. Importará verificar se, por exemplo, face ao projecto de revisão constitucional do PS, a proposta do PSD seria, não digo inteiramente constitucional, porque ela é arqui-inconstitucional e tem aspectos quase delirantes, mas seria ela inconstitucional nos seus aspectos fundamentais? De facto, a questão do PSD, neste momento, concretamente, não é a "caducidade" dos limites materiais da revisão (isso é um enfeite ideológico para ornar, quando muito, certos seminários e certas revistas, mas sem o mínimo valor político, em termos de discussão político-constitucional e jurídico-constitucional e em termos de revisão constitucional). Descontada a fumaça desse tipo, entrando no real problema político do PSD, poderá dizer-se que ele consiste simplesmente nisto: precisa de cobertura de carácter jurídico-constitucional inequívoca para um conjunto de propostas destrutivas. Vai obter essa cobertura, ou não vai obter essa cobertura? Proponho que façamos o teste da cobertura. E façamos o teste da cobertura face à maneira como o PS entendeu pronunciar-se sobre essa matéria no próprio debate que fizemos no Plenário da Assembleia da República, há alguns meses, mais exactamente no dia 6 de Abril de 1988, em que o Sr. Deputado Almeida Santos, a certa altura, resumindo e transcrevendo a parte fundamental, sublinhava: "Da versão" (da Constituição) "que saiu da primeira revisão dimanam os seguintes princípios constitucionais: o princípio de que deve promover-se a melhoria da situação dos trabalhadores rurais e dos pequenos e médios agricultores; o princípio de que essa melhoria deve ser promovida pela transformação das estruturas fundiárias e pela transferência progressiva da posse útil da terra para aqueles que a trabalham; o princípio de que este último desiderato será obtido (e não: "poderá ser obtido") através da expropriação dos latifúndios e das grandes explorações capitalistas; o princípio de que as propriedades expropriadas serão entregues (e não: "poderão ser entregues"), para exploração, a pequenos agricultores, a cooperativas de trabalhadores rurais ou de pequenos agricultores ou a outras unidades de exploração colectiva por trabalhadores; o princípio de que as unidades da exploração agrícola privada devem ter limites máximos, a fixar segundo critérios legais. Sintetizando: é defeito a propriedade ser grande de mais; é defeito ser explorada por quem não trabalha; é virtude corrigir esses defeitos."
E continuava: "onde a presente proposta de lei invade os domínios da inconstitucionalidade, ou no mínimo perigosamente deles se abeira, é no acto de reforçar os defeitos que a Constituição impõe que se corrijam. Acontece isso em vários momentos".
Ora bem, vejamos o que é que aconteceria em relação aos diversos momentos. Em relação à redução da menção constitucional de "transferência progressiva da posse útil da terra (...) para aqueles que a trabalham", uma simples referência tem a proposta do PSD ao "reforço e aperfeiçoamento da ligação do homem com a terra" - não tem esse defeito o projecto de revisão constitucional do PS, no artigo que já analisámos, no artigo 96.°
Verificamos agora, no entanto, um momento segundo. Quando aumenta, de 70 000 para 91 000, a equivalência em pontos da área limitada do direito de reserva, com duas agravantes: esse limite poderá acrescer vários bónus decorrentes das regras sobre cálculo, localização das reservas e regime de contitularidade; O Governo admite a reabertura dos processos de reserva já findos para a correcção do limite. Em relação às pontuações, Srs. Deputados, a "flexibilização" operada pelo PS que efeitos tem? Que a dúvida se suscite não nos deixa confortados. Caberia ou não caberia, na proposta apresentada pelo PS, em termos de revisão constitucional? Permitiria ou não permitiria as soluções respeitantes a indivisos constantes desta proposta governamental que estou referenciando? Permitiria ou não permitiria os outros aspectos de escancaramento que dessa proposta constam? Obviamente omito os aspectos da proposta governamental relacionados com a invasão de competências dos tribunais e com a aberração que consiste nas proibições dos efeitos normais das suspensões de actos administrativos, porque isso já invade outro domínio que é o próprio domínio da organização dos tribunais e do enquadramento jurídico da prática de actos administrativos, em que a aberração não resulta deste título, mas do atentado contra outros princípios e regras constitucionais.
Por outro lado, Sr. Presidente, Srs. Deputados, o PS, ao introduzir um conjunto de alterações como aqueles que venho referenciando, não o fez apenas nesta sede. É preciso não esquecer que o PS apresenta uma proposta de alteração, num aspecto fulcral, do artigo 80.° da Constituição respeitante aos princípios gerais de organização económica. Ora: se alude adiante, no artigo 97.°, ao "redimensionamento das unidades (...) que tenham dimensão excessiva" (e realmente o conceito de "dimensão excessiva" não é excessivamente diferente do conceito de "dimensão adequada", vem apenas qualificado por um elemento - o "excesso" - que é um elemento apenas um pouco menos não indicativo do que o elemento "adequado", portanto num concurso de vagueza está dois centímetros acima, mas não mais do que isso); se se prevê que o redimensionamento dessas unidades que tenham dimensão excessiva (o que quer que isso seja) do ponto de vista dos objectivos da política agrícola qualquer que ela seja) seja regulada por lei (seja feita por quem for); se se prevê que as "terras expropriadas" (se expropriadas - uma vez que a obrigação de expropriar não há, ou
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há, Srs. Deputados do PS?) sejam "entregues... a pequenos agricultores, de preferência integrados em esquemas de exploração familiar..." - então a ideia da "transferência da posse útil da terra e dos meios de produção directamente utilizados na sua exploração para aqueles que a trabalham" fica tocada desde logo na sua componente de progressão, fica sujeita a uma deliberação obstativa resultante de circunstâncias históricas de cunho determinado. E, portanto, o programa constitucional, nesse ponto, que é naturalmente vinculativo para os órgãos de soberania e que tem consequências conformadoras, não só da legislação ordinária, como dos próprios programas do Governo, é limitado na sua dimensão vinculativa. Quer isso dizer que a indicação constitucional passará a ser não uma directriz (ou melhor: uma norma impositiva) mas uma faculdade de exercício incondicionado e inteiramente livre? Creio que isto, Srs. Deputados, é a questão fundamental.
Gostaríamos, evidentemente, que algumas destas perguntas pudessem ser objecto de elucidação, estamos certos que o serão.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.
O Sr. António Vitorino (PS): - O Sr. Deputado José Magalhães começou por colocar a questão da relevância dos limites materiais, no tratamento da questão da reforma agrária. E fez referência à tese expendida pelo Sr. Presidente, sobre o desuso ou a caducidade superveniente de alguns limites materiais ao poder de revisão, decorrentes do não uso ou da não conformação legislativa prática desses mesmos limites.
Como já tive ocasião de explicitar, não acompanhamos, antes pelo contrário desabonamos, essa interpretação. Porque se trata de uma interpretação que faz, desde logo, do costume fonte de direito, o que é, no mínimo, uma temática controversa; faz do costumes fonte de direito constitucional (e então elevamos a gradação deste debate em termos de polémica); e, quando faz do costume contra constitucionem fonte de direito constitucional derrogatória das próprias normas constitucionais, dá verdadeiramente um "tiro no navio almirante", passe a expressão.
A verdade é que o Sr. Deputado Rui Machete, que tem esta concepção, não foi totalmente explícito na sua aplicação qua tale à questão da reforma agrária, e não inferi das palavras do Sr. Deputado Rui Machete que tivesse concluído de forma indolor que o limite material da eliminação dos latifúndios fosse um limite que estivesse sujeito ao princípio da caducidade. Seria um ponto interessante de apurar. Na medida em que, sem conceder quanto à bondade da tese, admitindo-a em termos conceptuais e operativos para meros efeitos do debate e compreendendo qual é o objectivo, o sentido e a dinâmica da sua tese quanto ao limite da apropriação colectiva dos principais meios de produção, já vejo como muito menos defensável, mesmo em tese geral, a aplicação dessa concepção ao limite da eliminação dos latifúndios.
A intervenção do Sr. Deputado Rui Machete não foi completamente clara, sob este ponto de vista; foi mitigada na aplicação a este limite material da concepção global que perfilha sobre a caducidade, e esse é um ponto que me parecia importante sublinhar e esclarecer.
Segunda questão: não vou entrar em detalhes sobre aquilo que o Sr. Deputado José Magalhães classificou como a "inquietante, preocupante e autodesresponsabilizadora proposta do PS" - o Sr. Deputado Almeida Santos, muito melhor do que eu, o fará. Como leigo em matéria de reforma agrária - reeinvidico esse estatuto -, tentei perceber onde é que o Sr. Deputado José Magalhães queria chegar e, designadamente, o que me preocupou foi saber se se tratava de uma crítica ao PS, apenas pela abolição do conceito de reforma agrária (da expressão "reforma agrária"), cujas tintas, mais carregadas ou menos carregadas, têm uma componente constitucional e uma componente de legislação ordinária, ou se, pelo contrário, se tratava de identificar valores constitucionais sacrificados pela proposta do PS. E quando se tratou de enunciar valores constitucionais que o Sr. Deputado José Magalhães pretensamente quis encontrar como sacrificados na proposta do PS, em comparação com a proposta de lei de Bases da Reforma Agrária que o Governo apresentou nesta Assembleia, o Sr. Deputado José Magalhães teve o cuidado de dar três exemplos: o da posse útil, o do bonús adicional e da reabertura dos processos da reserva e o dos indivisos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Falta-lhe o principal.
O Sr. António Vitorino (PS): - Não, o principal não foi sobre a Lei da Reforma Agrária, que eu tenha percebido.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas falta-lhe o principal, que é relativo às pontuações.
O Sr. António Vitorino (PS): - Exacto. Está incluído no segundo, penso: é a pontuação e ou bónus adicional em relação à pontuação.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado António Vitorino, como se confessou leigo em matéria de reforma agrária, o que é realmente humildade excessiva, acho que é melhor não entrar em detalhes. Mas o meu camarada Lino de Carvalho poderá aprofundar esse aspecto.
O Sr. António Vitorino (PS): - É uma maneira interessante de me chamar ignorante, mas, como assumi logo à partida essa ignorância, deixa-me completamente tranquilo.
O Sr. José Magalhães (PCP): - De maneira nenhuma, Sr. Deputado. Por favor.
O Sr. António Vitorino (PS): - O que achei interessante foi o Sr. Deputado José Magalhães, sobre estes três exemplos, ter sido particularmente cauteloso na qualificação da proposta do PS. Esperava muito maior virtulência e conclusões mais sólidas. As conclusões que o Sr. Deputado José Magalhães tirou são conclusões translativas.
Quanto à questão da posse útil, não há probema nenhum: a proposta do PS, reconheceu o Sr. Deputado José Magalhães, não fere de morte o conceito de posse útil, pelo contrário fala da transferência da posse da terra; elimina é esse conceito que nem se sabe se é jus-publicista ou se é jus-privatista da posse útil, que
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nunca nenhum legislador ordinário integrou, e que o Sr. Deputado José Magalhães também não nos quis hoje brindar com uma qualificação jurídica precisa. O que o PS faz é referir, no artigo 96.°, a posse da terra, a transferência da posse da terra. Portanto, quanto a este "varrida a testada", não há problema nenhum.
Quanto ao problema das pontuações e da reabertura dos processos da reserva, o qualificativo com que o Sr. Deputado José Magalhães pretendeu rotular a proposta do PS, em comparação com a proposta de lei de Bases da Reforma Agrária do Governo actual, foi o seguinte: "as soluções do PS não nos deixam confortados". Isto não é nada, porque o conforto é um estado de espírito. O problema que o Sr. Deputado José Magalhães devia colocar era este outro: se a proposta do PS passar para a Constituição, as soluções da lei que referiu resultam, ou não resultam, constitucionais? Essa é que é a questão. E é essa que o Sr. Deputado José Magalhães tem que assumir. É dizer-nos assim: com as vossas soluções constitucionais, a revisão da pontuação e a reabertura dos processos de reserva são constitucionais, quando hoje o não são. Esse é o ónus, que impende sobre as vossas críticas.
Quanto à questão dos indivisos, o Sr. Deputado José Magalhães é ainda mais timorato, ao dizer: "permitiria ou não os indivisos a solução do PS?" O que gostava de ouvir do Sr. Deputado José Magalhães (sublinho na minha qualidade de leigo em questões de reforma agrária) era se, de facto, a interpretação que o Sr. Deputado José Magalhães faz do projecto do PS consagraria a posteriori a solução que a proposta de Lei da Reforma Agrária deste Governo consagra em matérias de indivisos.
O que é que na proposta do PS se introduz de novo, ou o que é que está na actual Constituição e o PS eventualmente tenha deixado cair e que legitimaria a solução sobre os indivisos constante da proposta de lei da Reforma Agrária? E sobre estas matérias eu creio que o Sr. Deputado José Magalhães não deu esclarecimentos que fossem suficientemente expressivos para nos permitir concluir onde é que a proposta do PS opera a legitimação constitucional de soluções no plano da lei ordinária que hoje já são ilegítimas à luz do texto constitucional. Do fraco conhecimento que tenho destas matérias, algumas das questões que o Sr. Deputado José Magalhães colocou não são sequer inconstitucionais à luz do actual texto constitucional, pelo que não poderiam resultar ilegítimas, sob o ponto de vista constitucional, em função das propostas de alteração avançadas pelo PS.
Um último apontamento, que é o problema de reeditar, a propósito das soluções em matéria de reforma agrária, a questão da alteração do artigo 80.° da Constituição. Penso que a solução que está aqui adoptada é mais uma vez uma solução que tem a virtude da pluralização das soluções governativas em matéria de política agrícola, que é exactamente o mesmo critério que presidiu à alteração do artigo 80.° Há a consagração da faculdade; não se ilegítima qualquer política de expropriação; há a consagração explícita, em termos constitucionais, do instrumento da expropriação da terra, vinculado constitucionalmente aos objectivos da política agrícola e ao conceito de redimensionamento das unidades de produção. Ora, como é que são integráveis estes conceitos? Só podem ser integrados através da lei ordinária, a cargo do legislador comum, legitimado pelo sufrágio directo e universal, e portanto não há nenhuma política agrícola, de pendor mais esta-tista ou de pendor menos estatista, que resulte ilegítima da proposta do PS desde que observe o conjunto dos limites constitucionais. O que é o mesmo do que consagrar na Constituição um programa, seja ele em que sector de política for, de via única. Não é a mesma coisa, são as coisas completamente diferentes, e a lógica que presidiu à alteração do artigo 80.° foi esta, é a mesma lógica que o Sr. Deputado José Magalhães já nessa altura teve ocasião de contestar. Portanto, as minhas observações eram essencialmente dirigidas ai Sr. Deputado Rui Machete, que espero repegue na palavra para clarificar, com rigor, o que é que o limite material em matéria de eliminação dos latifúndios releva ou não para efeitos da interpretação do texto constitucional, e ao Sr. Deputado José Magalhães, no sentido de não ter conseguido compreender qual era de , facto a gravidade da inquietação que resultava para o Sr. Deputado José Magalhães das propostas de alteração apresentadas pelo PS.
O Sr. Presidente: - Gostava de esclarecer que tenho quatro inscrições neste momento. Inscrevi-me eu próprio e tenho as inscrições dos Srs. Deputados Lino de Carvalho, Almeida Santos e Vera Jardim, o que não significa que não se possam inscrever outros.
Usando da palavra como parte, e em relação ao Sr. Deputado José Magalhães, que teve a amabilidade de considerar a tese por mim defendida abstrusa e um pequeno penacho intelectual para esconder políticas de poder (parece-me que não é altura para fazermos uma discussão extremamente aprofundada da matéria), todavia gostava de referir que não deixa de ser ironicamente interessante que a propósito dum problema como o da reforma agrária em que o PCP devia ser não só genericamente sensível à força normativa do facto, no domínio da teoria e da lógica, porque o contrário seria negar assim as suas raízes, a sua fundamentação teórica, mas em matéria de reforma agrária mais sensível devia ser, porque, se houve aspecto em que o facto, em que a realidade das ocupações, muitas vezes apoiadas pelas forças armadas, teve "impacte", foi precisamente na matéria da reforma agrária. É claro que a Constituição em 76 veio depois legitimar esse facto, dando-lhe a cobertura normativa. Na perspectiva que o Sr. Deputado José Magalhães tomou em boa ortodoxia marxista, o PSD limitar-se-ía a ter feito uma coisa similar àquela que fez o PCP. Mas, enfim, isso é um aspecto puramente interessante da démarche teórica que o Sr. Deputado José Magalhães seguiu.
Quanto às questões mais significativas, gostaria, em primeiro lugar, de referir o seguinte. Não penso que com adjectivos e epítetos mais ou menos menosprezantes se possa contestar uma tese que, valendo naturalmente aquilo que vale, não tem a pretensão de ser universalmente reconhecida, mas que assenta em dois ou três factos que são importantes em matéria de teoria geral do direito. Um deles é: se as normas não forem vigentes, não se percebe como é que são válidas. Presumo que o PCP gostaria de continuar a manter um ordenamento, mesmo um ordenamento hipotético que só nos seus sonhos se mantivesse e que a mais ninguém obedecesse, mas mesmo assim consideraria que esse ordenamento vigorava no País, porque correspondia aos seus ideais. Penso que ninguém defende uma tese onírica desse tipo. Em segundo lugar, é muito interessante verificar que o PCP se insurge contra a ideia que
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foi explanada de retirar consequências da circunstância de a Constituição ser obviamente não apenas semântica, mas não utilizada quando se analisa que efeitos é que teve a ideia da realização da sociedade sem classes, dita socialista, através da apropriação colectiva dos principais meios de produção, da planificação integral da economia, da realização da reforma agrária, da nacionalização dos principais meios de produção e, portanto, a transformação das relações económicas capitalistas em relações económicas socialistas. E como é que isso se compatibiliza com a prática que foi seguida não apenas pelos governos do PSD, mas por todos os governos que estiveram no poder após a entrada em vigor da Constituição de 76 e que explicitou em factos tão importantes como foi a adesão de Portugal à CEE e a circunstância de essa adesão ter sido sufragada por sufrágio populare através do reconhecimento do eleitorado aos partidos que a propugnaram e a fizeram, e sempre tiveram somados uma maioria esmagadora em relação à minoria que representa em termos eleitorais o PCP?
Por outro lado, é interessante que, no fundo, para o PCP, se houver uma Constituição que não é aplicada, pela circunstância de ter havido um poder constituinte que num determinado momento fez a Constituição, e não só fez a Constituição como estabeleceu limites materiais que significam a prorrogação ad aeternum da sua competência, o que é naturalmente um mito positivista muito interessante para além de outras coisas, a única solução, suponho, e de resto lógica dentro da ordem de ideias do PCP, será a revolução, será a mutação revolucionária, não há outra alternativa.
O Sr. josé Magalhães (PCP): - Nesse caso contra-revolucionária.
O Sr. Presidente: - Sim, contra-revolucionários, é uma argumentação ad terrorem do PCP, mas isso não me impressiona. Todas as revoluções são de algum modo contra-revoluções, são contra as anteriores, e chamar-lhe assim ou de outra maneira é um problema puramente ideológico.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Nesse caso contra-revolução do 25 de Abril, se eu estou a percebê-lo.
O Sr. Presidente: - É evidente, Sr. Deputado José Magalhães, que um defensor estrénuo da ditadura e se quiser, usando a terminologia comunista, do fascismo existente anteriormente ao 25 de Abril chamará ao 25 de Abril uma contra-revolução, tem alguma ilusão a esse respeito? Basta lê-los.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, não tenho, nós lemos os depoimentos e até "O Depoimento" de Marcello Caetano.
O Sr. Presidente: - Basta lê-los. Portanto, a sua observação não tem nada de estranho, é evidente que é assim.
Diria que os seus argumentos não me impressionam em sede de teoria geral e também não me impressiona aquilo que procura retirar quanto à questão da Constituição, porque, ao contrário do que pareceu indiciar, eu nunca defendi, e se V. Exa. teve a amabilidade
de citar o artigo em que eu explicitei essas ideias, e se o tiver lido atentamente, verificará que tive uma preocupação de conservar, naquilo que são os justos limites da sua justificação, aquilo em que a caducidade se pode manifestar. É evidente que valores que são efectivamente praticados, assumidos pelo Povo, não são caducos e os valores democráticos têm sido abundantemente demonstrados no comportamento político dos portugueses e não apenas deste ou daquele partido, deste ou daquele membro da classe política.
Quanto ao Sr. Deputado António Vitorino, dir-lhe-ia o seguinte: não vou retomar os argumentos que utilizei a propósito da intervenção do Sr. Deputado José Magalhães, porque é claro que acho que o Sr. Deputado António Vitorino, pelo qual tenho grande simpatia, apreço, e reconheço que, além de inteligente, é um jurista competente, o que também reconheço em relação ao Sr. Deputado José Magalhães, tem é uma visão - e desculpar-me-á que lhe diga - profundamente marcada pelo positivismo. Por um positivismo jurídico não é filosófico, V. Exa. aprendeu na Faculdade de Direito e acreditou que na verdade a fonte de Direito "costume" era uma coisa perigosíssima. Acreditou também que em matéria de Direito Constitucional o costume constitucional não poderia existir. Mas também como V. Exa. certamente não ignorou alguns dos grandes autores que tocaram nessas questões em termos diferentes, e estou a pensar por exemplo num positivista, mas não com esse pecado, como é Kelson dos "haupt Probleme" e também da Teoria Geral. Facilmente verificará que não é assim um anátema tão grande considerar o costume como fonte de direito e considerar o costume como fonte de direito constitucional. De resto teria alguma dificuldade em explicar as realidades britânicas apenas pelo esquema da Convention se negasse completamente o costume. Mas enfim...
O Sr. António Vitorino (PS): - Contra-Constituição também, claro!
O Sr. Presidente: - Bem, o costume contra-Constituição também, com certeza; o que não é, é um costume por "dá cá aquela palha", por meia dúzia de indivíduos que se reúnem à volta de uma mesa e que dizem "bem, agora vamos fazer um costume contra a Constituição." Não isso, obviamente. Portanto, os seus argumentos, francamente, não me impressionam, mas não pretendo que subscreva os meus. Eu compreendo que a tese defendida seja pedra de escândalo numa sociedade de juristas dominada por determinadas ideias que vêm mais do Direito Privado e do Código Civil do que doutra coisa, porque, e ainda por cima, é muito engraçado verificar que é o Código Civil que regula ainda hoje a matéria das fontes de Direito, e não é por acaso que isso acontece. Mas este movimento não existe só em Portugal, como é óbvio, nesse aspecto as nossas faculdades não estão isoladas.
O Sr. António Vitorino (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador).
O Sr. Presidente: - Não, não. Há alguma heterodoxia que é própria da liberdade de espírito.
Mas, deixando isso de parte V. Exa. perguntou-me concretamente o seguinte: mas, então, como é que é
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isso em matéria de latifúndios, limites materiais quanto aos latifúndios existem ou não? Eu tentei ser claro mas, pelos vistos, não o consegui. A minha ideia é esta: os limites materiais da Constituição, no que diz respeito à alínea f), toda ela ligada à ideia da concretização do princípio colectivista marxista de apropriação dos principais meios de produção. E naturalmente este aspecto da luta contra os latifúndios e os monopólios está articulado com a mesma. A questão de saber se é possível autonomizar o problema da luta contra os monopólios e os latifúndios retirando-lhe essa íntima conexão com o princípio da apropriação colectiva dos principais meios de produção é uma questão interessante sobre a qual penso que a resposta é negativa em termos da Constituição. Mas o que eu disse foi outra coisa; disse que neste caso concreto, mesmo deixando de lado o problema da caducidade do princípio e, portanto, o da força não vinculativa, de deixar de ter força vinculativa a alínea f), a verdade foi que nós, PSD, entendemos que a estruturação fundiária é necessária em termos de política agrícola, não pela preocupação ideológica de através dela realizar a sociedade socialista, transformar as relações económicas em relações económico-socialistas, etc., não para realização desse princípio, mas para a realização de um outro que é o aumento de produção e da produtividade agrícola, a melhoria do bem estar das populações que trabalham nos campos. No fundo, a contribuição que a agricultura deve ter para o progresso económico do País, por um lado, e a parte que os trabalhadores e os proprietários rurais devem ter no rendimento nacional, por outro, naturalmente isso vai impor, nos casos em que não se justifica a existência de latifúndios uma política que venha a destruir esses latifúndios pelos meios legais apropriados, como nos casos em que não se justifica ter minifúndios, e muitos são, políticas, e elas têm vindo sucessivamente a tentar ser postas em prática sem sucesso, de emparcelamento e de, se quiser, destruição dos minifúndios. O que nós não queríamos era emprestar a essa política um carácter ideológico, no sentido de que seja a realização dum princípio de luta contra os capitalistas com charuto na boca, para os destruir, e portanto considerando que qualquer extensão de terra acima de um determinado número de acres tem a mácula, está viciada pelo pecado original de ser latifúndio. Agora, se há, e existem provavelmente muitos casos ou alguns casos, e depende das regiões, não estou a pensar no Alentejo, se existem extensões de terra que não são devidamente aproveitados, e podem implementar-se outro tipo de políticas, nós entendemos que essas políticas deverão ser completamente não pela via da força, sejam forças militares ou militarizadas que realizem ocupações ou ocupações populares, mas naturalmente pelos esquemas normais em todos os Estados de Direito, e que de resto se praticam em todos os Estados europeus ocidentais e pluralistas em todas as sociedades abertas em que nós já, embora com alguns vícios vindos do passado, nos enfileiramos. Queremos sobretudo robustecer a nossa democracia, o nosso pluralismo e essa nossa maneira democrática e legal de proceder no sentido do cumprimento do princípio da legalidade. É essa a nossa ideia.
Queria só acrescentar uma outra coisa. É que eu em termos políticos - e nós nesta CERC estamos a agir embora utilizando argumentação jurídica e bagagem de conhecimentos de outra natureza que não é estritamente política, estamos, em todo o caso, a fazer política, estamos aqui como emanação da Assembleia da República, e por isso não vou aqui esgrimir argumentos jurídicos e gritar "que horror em matéria de dupla revisão da Constituição" - mas mantenho que em relação à dupla revisão da Constituição poderia brandir alguns argumentos de carácter jurídico, até de lógica positivista, extremamente contundentes. Simplesmente penso que isso não é útil e se pelo caminho da dupla revisão conseguirmos, no fundo, realizar objectivos que se conseguem por outra via que eu considero mais correcta e mais explicativa mas que, em todo o caso, pode suscitar receios ou, a meu ver, infundadas observações em matéria de correcção da teoria geral de direito, para mim isso é completamente irrelevante.
O Sr. António Vitorino (PS): - Não queria que o Sr. Presidente ficasse a pensar que os argumentos que utilizei em relação à sua concepção sobre os limites materiais são contundentes; os contundentes virão depois.
O Sr. Presidente: - Cá esperamos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - A interrogação fundamental do Sr. Deputado António Vitorino, se bem me apercebi, era "faça por favor a demonstração da caducidade em relação à alínea do artigo 290.° que proíbe a reconstituição dos latifúndios, que obriga à sua eliminação". O Sr. Deputado Rui Machete assumiu a tese, publicamente e de resto de forma escrita e em português perfeitamente legível...
O Sr. Presidente: - Muito obrigado, eu gosto de escrever em português legível, às vezes não o consigo. No entanto, é essa a minha pretensão.
O Sr. José Magalhães (PCP): - O "legível" é em termos gramaticais; politicamente, a coisa é o que já pôde ser dito por várias bancadas...
Escreveu o Sr. Deputado: "Os preceitos do artigo 290.° da Constituição não valem por si isoladamente mas apenas em conexão com os princípios que garantem e concretizam. Não se justificando por si mesmos, a caducidade do princípio marxista colectivista torna inúteis e como tal susceptíveis de serem declaradas como revogadas as alíneas f) e g) do artigo 290.° da Constituição, referentes à apropriação colectiva dos principais meios de produção e solos, bem como dos recursos naturais, à eliminação dos monopólios e dos latifúndios e à planificação da economia." E depois acrescenta - e era isto que apesar de tudo, eu não queria que V. Exa. não pudesse retomar: "a confirmação por via do referendo desta importantíssima alteração da Constituição que pode ser útil para dissimular incertezas, confirmando o costume derrogatório. Mas não se trata de um meio indispensável."
Sr. Deputado Rui Machete, deixando agora de lado a questão do referendo para dissipar incertezas e para confirmar o costume derrogatório, seria capaz, por favor, de fazer a aplicação disto à eliminação dos latifúndios?
O Sr. Presidente: - Mas eu já fiz!
O Sr. José Magalhães (PCP): - É que V. Exa. fez considerações gerais sobre tudo, inclusive sobre a dupla revisão e os seus méritos, sobre o "socialismo marxista
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colectivista"... Mas concretamente sobre a legitimidade do legislador, em sede de Revisão Constitucional como poder derivado, para eliminar, expurgar normas e a própria alínea em questão, ou estive grosseiramente desatento - o que seria imperdoável - ou V. Exa., no meio dessa enorme pafrenália de argumentos e de citações, omitiu o único aspecto fundamental. E depois ainda terá que fazer a demonstração de que a expurgação em concreto desse ponto do articulado constitucional não oferece quaisquer dificuldades.
O Sr. Presidente: - Penso que o Sr. Deputado José Magalhães não terá estado grosseiramente desatento, mas sim que não esteve devidamente atento. O que eu referi, e repito, muito gostosamente, foi que, a meu ver, a alínea f) é um todo e que há uma articulação e uma conexão intimas entre a parte da eliminação dos monopólios e dos latifúndios, que constitui um aspecto extremamente importante - aliás isso foi sempre dito - da política colectivista e da realização das finalidades últimas dessa política, ou seja, a tal sociedade socialista, na interpretação hoc sensu que lhe foi dada na Constituição, em particular por alguns dos intérpretes da Constituição. Consequentemente, a meu ver, as duas coisas vão de par.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Dessa parte da argumentação tinha-me apercebido. Mas peço-lhe que coloque a seguinte questão: como sabe, a primeira Revisão Constitucional operou uma redução do conceito constitucional de reforma agrária e o Sr. Deputado pôde equacionar em que é que se traduziu essa redução...
O Sr. Presidente: - Eu li o artigo.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Leu mesmo o artigo. Agora cenarize um quadro em que as indicações socialistas - como o PS de resto pretende e admite - fossem objecto de matização ou expurgação nos artigos 2.°, 9.°, 80.°, 81.°, mas em que fossem deixadas intactas ou substituídas por outras equivalentes as normas referentes à concreta obrigação de transferência da posse útil para os destinatários naturais constitucionais da reforma agrária. E eu pergunto-lhe se esse elenco transformador não é constitucionalmente obrigatório nos termos do artigo 290.°, não sendo susceptível de revisão, ou se os entende caducados. Porque isso é simples: é proclamar a morte da Constituição. Proclamem a morte da Constituição; digam que morreu em 1982! Se os objectivos da Constituição só eram susceptíveis de uma formulação, qual fosse a da versão originária da Constituição de 1976 na sua exacta dimensão, designadamente em matéria de Constituição económica; se a Constituição de 1976 na sua identidade essencial só podia ser o que na redacção decorrente do seu texto originário antes da Revisão de 82, era; se as indicações socialistas na dimensão exacta que tinham antes da Primeira Revisão Constitucional eram as únicas possíveis e a sua alteração implicou a destruição da Constituição na sua identidade, então a Constituição foi destruída. Proclamem a morte da Constituição, a morte do "socialismo", a morte do "colectivismo", a morte do "marxismo", e está feito! Não é assim, é óbvio; seria grosseiro fazê-lo... A vitalidade da Constituição nesse domínio mantém-se, e mais ainda: A constituição morre ou vive segundo leis próprias, não ao sabor directo de transformações da realidade fáctica, cuja avaliação tem, aliás, de ser rigorosa, o que também deve ser tido em consideração... Estamos a falar de uma coisa viva...
O Sr. Presidente: - Muito bem, muito bem!...
O Sr. José Magalhães (PCP): - ... e não de uma coisa morta; não estamos a falar da reforma agrária como uma coisa morta. Querem precisamente, de resto, liquidá-la, e por isso este empenho. Mas se as coisas são susceptíveis de serem desvitalizadas na exacta medida em que seja operada uma transformação por via da Revisão Constitucional - a primeira foi-o e agora querem aprofundar isso - qual é o sentido de proclamar uma espécie de inquinamento geral, de um contágio de tipo "SIDA-Constitucional" das alíneas diversas do artigo 290.° por uma afectação de uma componente, de um conjunto de directrizes, de um determinado rumo de carácter geral, que de resto faz parte dos princípios gerais e que depois tem afloramentos e indicações concretas no articulado constitucional? Que tese de "contágio geral" e de "desvitalizacão" de normas com força jurídica cogente, específica, directa e concreta é que se pretende sustentar?
É que me parece que o Sr. Deputado Rui Machete passa dos princípios gerais para a inquinação, para a desvitalização, para a tese da caducidade forçada de disposições concretas com valor cogente próprio, com autonomia, com uma dimensão que poderá variar.
É evidente que se VV. Exas. procedem a uma redução adicional do conceito de reforma agrária, se procedem a uma redução adicional a acrescer àquela que foi operada na Primeira Revisão Constitucional, o valor, o impacto, a dimensão, etc., das regras concretas diminui. É obvio que diminui, mas diminui na exacta medida, na exacta proporção, com o exacto conteúdo que decorra da vontade expressa, clara e literal do legislador de Revisão Constitucional. E é por isso que é importante a posição do PS, e é por isso que é preocupante a posição do PS. VV. Exas. não poderão obter coisa nenhuma a partir de uma tese de derrogação ad terrorem, completa, total, etc.... Não podem, mas podem evidentemente - e isso depende exclusivamente do PS e daqueles que o queiram acompanhar, nós não queremos seguramente - aceitar essas derrogações parciais. Parece-me que o vosso argumento é claramente extrair do geral a destruição de um particular que, todavia, tem defesas e explicações particulares, e nessas explicações particulares o Sr. Deputado Rui Machete não entrou. Sr. Deputado, responda, se puder, à questão da alteração da cenarização: como é que compatibiliza uma alteração dos artigos 2.° e 9.°, deixando intactas ou algo alteradas, mas não invertidas, estas normas dos artigos 96.° e seguintes, com a sua tese de hecatombe? Se não for destruído o essencial desses artigos, a hecatombe nesse ponto é uma hecatombe limitada.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, em primeiro lugar, quero congratular-me com as suas hipóteses de trabalho. De qualquer modo, elas significam, do ponto de vista psicológico, que alguma dúvida se vai progressivamente instalando no seu espírito, o que, a meu ver, é muito positivo.
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O Sr. José Magalhães (PCP): - Duvida? Não vejo...
O Sr. Presidente: - Mas vejo eu!...
Em segundo lugar, devo dizer-lhe que, nesta matéria, estamos obviamente no campo da interpretação da Constituição, da compreensão da Constituição, porque a interpretação da Constituição significa a sua compreensão. Diz-me V. Exa.: vamos admitir, por hipótese, que o tal princípio socialista marxista deixa de existir. Devo dizer-lhe, Sr. Deputado, que, na minha perspectiva, ele só deixa de existir pelo desuso ou pela revogação expressa que for feita por normas que o consubstanciem de uma maneira inequívoca. Mas, como princípio, não é susceptível de ser revogado apenas pelo facto de um ou outro dos seus afloramentos desaparecerem. Todavia, poderá acontecer que a revisão da Constituição leve a poder concluir-se com segurança, o que não aconteceu em 1982...
O Sr. José Magalhães (PCP): - E esperemos que não aconteça agora...
O Sr. Presidente: - Naturalmente o Sr. Deputado José Magalhães formula esses votos de que não aconteça agora; eu formulo votos contrários...
Mas poderá acontecer que o princípio desapareça. E então aquilo que subsistir tem uma outra interpretação. Evidentemente, se subsistisse uma norma falando em latifúndio e em que não houvesse por detrás, como fundamentação, esse princípio, teria uma outra interpretação. Neste momento, as coisas apresentam-se com uma conexão articulada de sentido e, se não for destruído, a minha interpretação mantém-se. Portanto V. Exa. não pode vir dizer: "Mas se fosse?... Se fosse, veríamos como é... Mas, neste momento não é assim; e, como não é assim, o carácter vinculativo resulta dessa articulação e de ser a concretização, um dos afloramentos mais importantes desse princípio. Aliás, a razão por que entendo que a Revisão de 1982, em matéria desse princípio socialista colectivista, não foi grande, residiu justamente no facto de, hábil e inteligentemente, ter havido por parte dos propugnadores da tese socialista marxista-leninista o cuidado de preservar o artigo 290.°, que é um preceito-chave dentro da tese que VV. Exas. perfilham.
Compreendo isso e é por essa razão que as podas, com alguma importância, com algum significado, que foram feitas não destruíram todavia esse princípio.
A minha resposta é: para mim, existe neste momento uma conexão de sentido que leva a estender naturalmente a caducidade a todos os aspectos. Se houver um outro contexto que permita uma interpretação diversa, será preciso que se realizem as mutações, e então veremos. Como é evidente, não as posso excluir, porque seria absurdo, mas neste momento elas não existem e, portanto, não vivem por si. O que não é possível é dizer-se "logo, porque talvez isso aconteça, ergo já neste momento pode ser uma interpretação diferente". Não é exacto. Na minha perspectiva, neste momento, não pode ser diferente e por isso estendo a caducidade a esse aspecto. Admito que possa haver justificações e, inclusivamente, a própria explicação da nossa proposta assenta numa ideia de que não somos a favor do latifúndio pelo latifúndio: se o latifúndio não se justificar, porque a terra não é cultivada, porque há meios muito mais eficazes de a aproveitar, existem políticas, desde políticas fiscais a políticas de crédito, a políticas sucessórias, em muitos outros aspectos que podem permitir encontrar soluções adequadas. Não somos a favor do latifúndio pelo latifúndio, nem contra o latifúndio pela circunstância de se chamar latifúndio. Atendemos a outro tipo de valores, muito diversos daquele a que VV. Exas. dão a prevalência. Tem a palavra o Sr. Deputado Lino de Carvalho.
O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados, para além da interpretação técnico-jurídica constitucional de que não sou especialista, gostaria de me pronunciar sobre esta matéria a partir de duas questões colocadas, uma pelo Sr. Deputado Rui Machete e outra pelo Sr. Deputado António Vitorino.
O Sr. Deputado Rui Machete põe a questão de que aquilo que está em causa em relação à organização da posse da terra é, para além de pressupostos de ordem ideológica, a necessidade de maior produção e de maior produtividade.
O Sr. Presidente: - É um dos aspectos...
O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - É um dos aspectos em que vincou a sua intervenção. E entende naturalmente o Sr. Presidente que as propostas de Revisão Constitucional apresentadas pelo PSD, bem como a sua prática política, levarão a esse objectivo, a esse desiderato.
Por sua vez, o Sr. Deputado António Vitorino perguntou se as propostas de alteração do PS nesta matéria podem ou não vir a constitucionalizar aquilo que hoje é inquestionavelmente inconstitucional, que é a proposta de lei actual. Penso que para respondermos a estas questões é necessário fazer uma rápida viagem na História, em relação às transformações ocorridas a partir de um tecido fundiário que existia naquela vasta região, tecido esse com origem em bens expropriados à Igreja, às Ordens militar-religiosas, etc., durante a Revolução liberal e que deu lugar às grandes propriedades latifundiárias. É necessário saber qual a malha fundiária, que tipo de relações sociais aí existiam durante o regime fascista, quais as transformações que se deram, que tiveram que dar-se para libertar as forças produtivas e portanto para permitir estimular a produção e a produtividade da terra, bem assim como quais os riscos que se corre com propostas de Revisão Constitucional e subsequentes práticas políticas que possam levar - se é que levam, o objectivo é demonstrar se sim, se não - à reconstituição da situação anterior. Isto para dizer que nesta vasta zona não se deu um mero reordenamento fundiário de ordem técnica. De facto, foi-se mais além, na medida em que para um mero reordenamento fundiário - no fundo é aquilo que pode estar subjacente às próprias propostas de alteração do PS, quando retira e expurga as vertentes sociais do artigo 97.° e outros - não seria talvez necessário fazer a reforma agrária.
Recordo - e isto não é ofensivo para ninguém - que, já em 1952, Salazar escrevia o seguinte: "não dispomos ainda de um sistema corrector da extrema irregularidade com que a terra se distribui no País. É mais do que duvidoso que seja qual for o nosso respeito, e mesmo o nosso carinho, pela propriedade privada da terra, possa o fenómeno indefinidamente continuar entregue a si próprio sem orientação. Está longe do meu pensamento a reforma agrária, tão em moda em
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muitos países, mas não considero sensato que o problema que tão profundamente afecta a produção e o equilíbrio social não receba da nossa parte a atenção que merece". Isto é, se estivéssemos em sede de meros reordenamentos técnico-fundiários, não precisaríamos de ter feito a reforma agrária que fizemos e porventura nem sequer a Revolução Democrática de 25 de Abril.
Portanto, não se trata de uma mera repartição de propriedade idêntica à que foi feita quando da Revolução liberal. Nessa altura, antes da expropriação dos bens das congregações e ordens religiosas, existiam cerca de 510 proprietários e, posteriormente, com a transferência dessa propriedade para a burguesia nascente, passaram para 623. Consequentemente, não houve uma significativa alteração do processo mas sim a constituição, como mero ordenamento fundiário, de novos processos de repartição da propriedade. Aquilo que exactamente está, e sempre esteve, em causa não era, repito, um mero ordenamento técnico-agrícola. Aliás, um outro distinto jurista do PS, o Dr. Alberto Costa, dizia que "ao longo de século e meio, sobre esta malha fundiária, reproduziu-se um sistema económico-social assente numa agricultura extensiva, o que foi combinando à volta da grande propriedade o recurso ao assalariamento e à parceria e que conduziu, por um lado, à formação de um considerável e sub-explorado proletariado agrícola e, por outro, a um bloqueio do desenvolvimento das forças produtivas... Foi este processo que conduziu a profundas alterações materiais nas relações de propriedade e de produção nos campos, que depois foram vertidas na Constituição. Com este processo, o que se deu e o que se procurou dar foi não só o desbloqueamento dessas relações produtivas pelo desaparecimento de um certo tipo de relações de produção bloqueadores do desenvolvimento do processo produtivo mas também a dinamização do tecido social através da transferência desta terra para aqueles que a trabalham, no processo de reforma agrária.
É por isso que a Constituição vem consagrar a transferência da posse útil da terra e dos meios de produção directamente usados na sua exploração para aqueles que a trabalham, através da expropriação dos latifúndios e das grandes explorações capitalistas. Aliás, Sr. Deputado Almeida Santos, a palavra "latifúndio" tem significados precisos.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Quais são?
O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - A Constituição foi elaborada tendo bem presentes conceitos definidos com rigor, com base na nossa realidade e na nossa experiência histórica. "O latifúndio é considerado como uma propriedade em explorações de grandes dimensões, mal explorado, com baixo rendimento unitário, pertencente ao domínio privado, individual ou sociedade. O latifúndio será uma exploração de dimensões muito superiores à média regional em que todos ou a maioria dos factores de produção são utilizados em regime de sub-emprego. A exploração latifundiária em Portugal apresentava, em maior ou menor grau, no todo ou em partes, as seguintes características: elevada dimensão - os latifúndios encontravam-se geralmente no grupo das explorações com área superior a quinhentos hectares e a maioria no grupo dos que ultrapassam mil hectares -, elevada percentagem da superfície ocupada pela cultura florestal, diminuta produtividade da terra, baixo nível de emprego de mão-de-obra com salários baixíssimos e apenas em escassos dias do ano, elevado grau de proletarização gerador de fortes tensões sociais, fraca intensificação da exploração pecuária, reduzido emprego de fertilizantes, modesto nível de mecanização. .." Isto dizia, por exemplo, o professor e investigador da FAO, Mário Pereira, num seminário na Gulbenkian, referindo-se à realidade que foi tida em conta pelos constituintes. Colheu também o alerta do professor Henrique de Barros, que salientou, entre outros aspectos económicos, o processo de dualidade social que o latifúndio gera. O latifúndio tem um conceito preciso, que tem a ver com as próprias relações sociais de produção onde ele está implantado e com o bloqueamento que essas relações de produção provocam no próprio desenvolvimento agrícola, no aumento da produção e da produtividade.
Quando o PS avança para um projecto de Revisão Constitucional em que, para além do título, depois no seu conteúdo expurga esta questão da liquidação do latifúndio e da "transferência da posse útil da terra", que é um conceito próximo de auto-gestão da propriedade - embora o conceito de posse útil da terra esteja na base do conceito de propriedade social, e é, digamos, a sua forma -, não está abrir a porta para um redimensionamento meramente fundiário, meramente técnico? Não estará, portanto, a partir daqui, a abrir a possibilidade de recriação das antigas relações sociais de produção? É preciso clarificar esse ponto. Se não tivermos em conta este conceito de latifúndio e esta alteração - enfim, que são conceitos precisos - e as alterações que se deram na região, e que depois deram corpo à constituição, a proposta de lei actual que o PSD apresenta sob o número 31/V, que aumenta as pontuações sem limite de área, que desconta as benfeitorias, que altera os limites mínimos das área não expropriadas, etc., corre o risco de ser considerada constitucional após a revisão, dado o conteúdo das soluções para que se parece apontar.
O Sr. Deputado António Vitorino diz: "A nossa proposta dá para tudo!". Eu diria: então até dá para reconstruir o latifúndio.
O Sr. António Vitorino (PS): - Não. Eu não disse que dava para tudo...
O Sr. José Magalhães (PCP): - O que ouvimos dizer ao Sr. Deputado António Vitorino foi que nenhuma política agrícola resulta ilegitimada pela solução proposta pelo PS.
O Sr. António Vitorino (PS): - Eu disse que nenhuma política agrícola resulta ilegitimada dentro dos quadros que o nosso próprio projecto define para a política agrícola. Não se podem ignorar os quadros constitucionais e uma leitura sistemática de artigos que se referem à política agrícola, desde logo o artigo 81.° alínea h), do nosso projecto.
O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - Certo!
O Sr. António Vitorino (PS): - Nós não reduzimos o capítulo da reforma agrária a um artigo do tipo: "a política agrícola é a que for definida por sufrágio directo e universal". Não é isso que está no nosso projecto. Nenhuma política agrícola resulta ilegítima em função dos limites que constam aqui do projecto de
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revisão constitucional do PS e de todas as normas constitucionais que se referem a esta temática. São coisas substancialmente distintas. As interpretações ad terrorem ficam em quem as faz.
O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - Gostaria que o Sr. Deputado António Vitorino pudesse esclarecer claramente qual é a interpretação que se pode então retirar das alterações que possa trazer a revisão constitucional, porque a questão que se coloca é outra: se o PS eliminar o conceito de reforma agrária - que é um conceito que não tem nada de ideológico, pois nós vêmo-lo em autores sociais-democratas, socialistas, etc. -, eliminar o corpo do artigo 97.° e alterar o regime aplicável à expropriação do latifundiário e à transferência da posse útil da terra, é evidente que pode abrir o caminho - se esta questão não for mais explicitada - para a reconstituição daquele, porque a questão fica colocada num mero reordenamento fundiário, e a questão é mais vasta do que isso.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.
O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados, refiro-me naturalmente, em especial, nesta minha intervenção, às várias intervenções do PCP nesta matéria.
Já tive ocasião de referir - mas gostaria, já agora, que os Srs. Deputados do PCP as ouvissem, pois eu disse que me ia referir em especial às intervenções do PCP, que são aquelas que têm merecido mais diálogo nesta matéria -, a propósito doutro artigo, designadamente o artigo 89.° (no nosso projecto artigo 81.°-A), a estranheza com que vejo o PCP - e talvez não tanto - agarrado a, por um lado, conceitos fluídos e agarrado a posições demasiado publicistas e estaduais e defendendo a todo o transe o status que, e, por outro lado, fazendo de algumas matérias da Constituição, ou continuando a fazer delas - e é o caso típico da reforma agrária - alguma coisa que tem mais que ver com os "amanhãs que cantam" do que com a realidade portuguesa actual e os interesses que, naturalmente, estão em jogo. Assim, vem o PCP impedido constantemente de nesta matéria, como noutras, se "Perestroikar". Nós - e permitam-me agora o elogio em causa própria - penso que conseguimos nestes artigos que dizem respeito à parte agrícola da Constituição, isto é, à parte da "reforma agrária", uma solução - ou algumas soluções que formam todas elas um todo - extremamente equilibrada, por um lado, mas que, naturalmente, constituem soluções na maior parte dos casos de tipo aberto e únicas, que a nosso ver são compatíveis com uma Constituição económica que se quer inserida num pluralismo político, numa alternância democrática e que todos eles juntos permitam também, em suma, alguma estabilidade constitucional nesta matéria - o que para nós também é um valor em jogo. Temos dito, e redito, que as querelas à volta da Constituição não são úteis, que teremos de acabar com elas; e, portanto, a estabilidade constitucional é, também, aqui um valor a defender. Mas nós também não confundimos a Constituição com programas de Governo. Daí que queiramos uma Constituição minimamente aberta que permita essa tal alternância democrática e permita que as políticas económicas nos mais diversos sectores possam, naturalmente, ser orientadas segundo o sentido do voto popular.
Gostaria de perguntar ao PCP - e ouvi com muito interesse a exposição do Sr. Deputado Lino de Carvalho - o seguinte, fazendo primeiro uma intervenção e depois a pergunta.
Em primeiro lugar, entendo que não há só uma reforma agrária. Isso já foi até referido pelo PCP. As reformas agrárias têm o mais variado sentido; há reformas agrárias capitalistas, e houve, historicamente, na maior parte dos países da Europa, talvez com excepção - não sendo eu um especialista - precisamente da Península Ibérica, e de algumas zonas do Sul da Europa - sobretudo, na Itália -, uma reforma agrária nos quadros da apropriação privada. Essa reforma agrária nós não a sentimos. Não se deu em Portugal.
O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - Estamos a falar de reforma agrária em concreto, numa zona concreta, e não duma reforma agrária abstracta, dum conceito abstracto, mas a reforma agrária que foi aplicada a uma região dominada por uma malha e um tecido latifundiário.
O Sr. Vera Jardim (PS): - Certo!
O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - É esta a questão em concreto que está em causa.
O Sr. Vera Jardim (PS): - Certo! Mas essa reforma agrária de que falam deu-se precisamente num momento e num estado concreto, numa situação concreta que, não tendo passado por uma outra reforma agrária - por que passou, aliás, a maior parte da Europa, e o Sr. Deputado, que é um especialista nesta matéria, sabe muito bem que em França, na Inglaterra, na Alemanha houve uma verdadeira revolução agrária (e até houve mais do que uma!), que chegou, digamos, a uma empresa média ou pequena que é hoje o cerne da política agrícola europeia e que tem uma produtividade completamente diferente da que têm os latifundiários de que falam -, direi que há muitas reformas agrárias a fazer. E, desde logo, nós entendemos que há a reforma agrária no latifúndio, mas também a reforma agrária no minifúndio, e tudo isto são políticas agrárias que têm de se levar a cabo.
O PCP pega na reforma agrária como um estandarte daquela reforma, esquecendo-se também - e não vamos entrar nessa matéria, que nos levaria muito longe - das críticas que ela tem merecido, já não agora do ponto de vista ideológico, mas do ponto de vista prático; as críticas que ela tem merecido vindas dos mais variados sectores, muitos deles completamente insuspeitos nesta matéria.
Ora, entendo que a nossa proposta é, efectivamente, uma proposta, por um lado, aberta, permitindo, portanto, que a alternância democrática se faça dentro dos quadros constitucionais, mas, por outro lado, indicando claramente o sentido de alguma dessa reforma agrária, que é naturalmente o tal redimensionamento das unidades de exploração agrícola quando no sector do latifúndio. Mas esse redimensionamento admite as mais variadas lacunas, os mais variados tipos, os mais variados processos. E nós cá os temos. Penso quer praticamente até os esgotámos: cá temos os colectivos de trabalhadores; cá temos as cooperativas; cá temos os
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pequenos agricultores em explorações de tipo familiar. E não podemos esquecer que todos estes artigos também têm que se compaginar, por exemplo, com o nosso artigo 81.°-A, n.° 4, que, estranhamente, faz muita impressão ao PCP. Numa das reuniões que aqui tivemos a propósito do artigo 89.°, o PCP acabou por confessar que não aceitava o nosso n.° 4 do artigo 81.°-A, pura e simplesmente, porque preferiam uma propriedade pública dominante. E nós dizemos que preferimos que haja vários tipos de propriedade coexistindo ao mesmo tempo e asseguramos a existência desses vários tipos de propriedade. Portanto, nós queremos abrir a porta a qualquer política agrícola, mas a políticas agrícolas que, naturalmente, se compadeçam com o que dizemos nos vários artigos respeitantes à política agrícola, não apenas no artigo 97.°, mas no artigo 98.°, e no artigo que vem referir as funções do Estado nesta matéria. Agora, o que também não queremos é fechar a porta a políticas agrícolas que julgamos possam ter sucesso para além da "simples reforma agrária" que o PCP tem sempre presente - e eu digo entre aspas porque é uma das muitas formas que a reforma agrária pode assumir. Portanto, penso que o nosso projecto defende - e agora terminaria, com a tal pergunta - tão bem como o actual artigo 97.° os vários interesses que estão em jogo, às várias zonas em que deverá e terá que haver uma intervenção, pelo que não vejo em que é que fica diminuído esse interesse nessas zonas de intervenção, mas ele fica, também, por outro lado, aberto a intervenções de nível e de forma diferente e não apenas cerceado, limitado ao tipo de intervenção que o PCP pensa ser a única - ou dever ser a única - no campo ou no sector da reforma agrária. Era isto fundamentalmente o que tinha para dizer.
O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - Vale-nos com certeza, pelo menos, o benefício da dúvida de que nós não temos uma perspectiva reducionista das soluções agrárias e agrícolas para o país. As nossas soluções passam - como aliás temos sempre dito, e ainda aqui há dias no debate travado em torno da interpelação do PCP sobre política agrícola o dissemos mais uma vez - pela questão de alteração da estrutura da propriedade, para a qual têm que se encontrar soluções de acordo com a realidade fundiária de cada zona do país, mas, para além disso, passa ainda por medidas de política agrícola, de desenvolvimento tecnológico, de investimento, etc.. Enfim, é um conjunto de medidas globalizantes no qual esta questão assume um papel determinante.
O Sr. Vera Jardim (PS): - Certo, Sr. Deputado, mas permita-me, por exemplo, esta pergunta: o Sr. Deputado admite como uma forma de actuação, em matéria de política agrícola na zona do latifúndio, em vez da expropriação do latifúndio, por exemplo, esta: o arrendamento compulsivo de parte do latifúndio? O Sr. Deputado admite ou não - vamos a coisas concretas - a pequena e média propriedade individual na zona do latifúndio?
O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - Admito.
O Sr. Vera Jardim (PS): - O Sr. Deputado admite ou não a associação dos trabalhadores com uma própria empresa de tipo capitalista na zona do latifúndio, em formas a estudar do ponto de vista jurídico?
Com efeito, a nossa proposta é aberta ao ponto de qualquer Governo que tenha a legitimidade democrática poder optar no concreto por várias destas formas. O benefício da dúvida sempre lho dou, como é óbvio, mas dou-lho muito pequeno, porque efectivamente penso que a vossa posição é, e continua a ser, reducionista nesta matéria.
O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - É que o problema da transformação da estrutura fundiária e das relações sociais de produção nesta parte da região tem a ver com os destinatários dessas transformações e dessa transferência da posse útil da terra. Contudo, nós admitimos que, para além da questão do destinatário, seja possível a coexistência de diversas formas de propriedade dos meios de produção. É possível a pequena e média propriedade individual, é possível a cooperativa, são possíveis outras formas de exploração colectiva da terra que os trabalhadores - agricultores encontrem. Portanto, admitimos que são "possíveis outras soluções. O que nos parece que é de impedir, assegurando algumas defesas sérias contra esse retorno, é o processo de reconstituição do latifúndio tal como ele é caracterizado na nossa história económica, de dimensão latifundista (tal como existia antes do 25 de Abril e como já existe de novo). Alerto para o que hoje se está a verificar - e digo isto sem preconceitos de ordem ideológica que o Sr. Deputado Rui Machete está sempre a apontar, pois a questão é mais do que isso, visto ser um problema que tem a ver com a produção, com a produtividade, com o aproveitamento dos meios de produção, com o emprego e com o desenvolvimento da agricultura. É que se admite um quadro em que todas as políticas agrícolas são possíveis, incluindo a reconstituição do antigo tecido latifundiário) pode estar-se a permitir um processo político com um determinado Poder Político, com uma determinada força social que os grandes proprietários da terra mantêm, no sentido de vir a reconstituir o tecido latifundiário, como, aliás, hoje já se está a fazer. Basta olharmos para muitas das grandes propriedades alentejanas que foram transformadas em reservas e em que, seja de forma directa, seja de forma indirecta, elas estão a retomar - não só pela dimensão, mas pelas práticas culturais assumidas - posições típicas de antigos processos do género latifundiário.
E é esta a pergunta que coloco ao PS: o Sr. Deputado Vera Jardim, na sua intervenção, disse que o projecto de revisão constitucional do PS admitia as diversas formas de propriedade. Sendo assim, urge saber o seguinte: primeiro, o PS está de acordo ou não com o latifúndio no conceito que existe? Segundo...
O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Deputado, desculpe, mas essa pergunta quase que é injuriosa.
O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - Perdão, Sr. Deputado, mas peço-lhe que não me interrompa e me deixe fazer-lhe a pergunta. E desculpe também, mas a pergunta não é nada injuriosa, visto que a estou a fazer em função da sua intervenção.
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O Sr. Vera Jardim (PS): - Pergunte ao Sr. Deputado José Magalhães, que já noutro dia perguntou se nós estávamos de acordo com a intervenção do Estado na Economia. Estamos também a ser alvo de algumas perguntas que consideramos nitidamente injuriosas.
O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - Não, Sr. Deputado, não leve isto para a injúria pessoal.
O Sr. Vera Jardim (PS): - Não, Sr. Deputado; quando digo injuriosa entenda-se entre aspas.
O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - O Sr. Deputado não me deixou concluir e assim não consigo completar o raciocínio e fazer a pergunta.
A questão que se coloca e que gostaria de ver respondida, face â sua intervenção, é se o PS está de acordo com o latifúndio e com a sua reconstituição. Pelos vistos, não está.
O Sr. Vera Jardim (PS): - Não está.
O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - Então, se isto é verdade, por que razão é que retira no seu projecto de revisão constitucional todas as referências à eliminação de latifúndio e ao conceito de reforma agrária, no artigo 97.°, excepto a epígrafe?
O Sr. Vera Jardim (PS): - Não é verdade, Sr. Deputado. Temos a epígrafe e parte do n.° 1 e o n.° 2 que se dirigem efectivamente a uma política anti-latifundiária. Sr. Deputado, se me perguntar se não haverá um único latifúndio no Alentejo, responder-lhe-ia que isso depende de muitas circunstâncias. Suponha que há uma exploração capitalista no Alentejo que associa os trabalhadores, por vontade própria dos trabalhadores dessa empresa, e faz a exploração da terra em condições de produtividade óptimas. Vamos acabar com este latifúndio? Não, pois, se são os próprios trabalhadores, é a própria empresa que diz "vamos associar-nos aqui".
O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - Latifúndio não é só a dimensão da terra.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas isso não é um latifúndio!!! Constitucionalmente falando, não é um latifúndio...
O Sr. Vera Jardim (PS): - É precisamente isso que digo. Os Senhores estão preocupadíssimos com os pontos, com os indivisos, com isto e com aquilo, e depois falam em relações culturais. Os Senhores estão preocupados com os 1 500 hectares, e aí é que está o problema.
Nós estamos efectivamente mais preocupados com as relações de produção que se estabelecem, de proletarização, da não exploração da terra, etc.. Se houver um latifúndio - e os Senhores até os conhecem, até existem latifúndios do Estado com óptima exploração -, nessa altura diremos: "aqui está uma empresa que tem 1700 hectares...
O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - Não são latifúndios.
O Sr. Vera Jardim (PS): - ... mas que é uma empresa explorada sob o ponto de vista económico-agrícola de forma óptima, é uma empresa que dá associação aos seus trabalhadores, é uma empresa que tem pequenos arrendatários em condições óptimas". Vamos acabar com este latifúndio só por ele ser um latifúndio?
Srs. Deputados, temos de entender-nos sobre os termos. Os Senhores, por um lado, estão sempre preocupados com os sete hectares a mais ou a menos que a reserva tem e depois vêm-nos falar das relações culturais. Para mim, e suponho que os meus colegas de bancada me acompanharão, o latifundiário não é um monstro por si só, e para os Senhores, porque têm esse tal mito, é-o. Não pode ser.
O Sr. Presidente: - V. Exa., Sr. Deputado Rogério de Brito, sabe que temos seguido uma prática de permitir, até porque não tenho grandes possibilidades de limitar o tempo que os oradores usam, uma discussão até se considerar que a matéria está suficientemente aprofundada.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Estou inteiramente de acordo com ela, Sr. Presidente.
O Sr. Presidente: - Quer V. Exa. usar da palavra para fazer uma pergunta?
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Era para ver se ajudávamos a esclarecer esta situação. Prometo ser rápido.
O Sr. Presidente: - Então faça o favor de ser rápido, na medida do possível. Tem a palavra, Sr. Deputado Rogério de Brito.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Talvez fosse importante precisar duas ou três questões para não ficarmos com conceitos eventualmente desvirtuados sobre algumas matérias.
O Sr. Deputado Vera Jardim levantou a questão de defender o Status que, e gostaria de, logo à partida, colocar uma questão à sua consideração. Tenho a impressão de que não estamos a discutir neste momento quais as modalidades de uso da terra expropriada. Estamos a discutir a expropriação ou eliminação do latifúndio e, portanto, não vamos discutir aqui se o latifúndio expropriado pode ser repartido em parcelas, em cooperativas, em UCP's. Estamos a discutir a eliminação do latifúndio sem a qual não se encontrará nenhuma das outras soluções. É a partir deste pressuposto que levantaria a seguinte questão: quando nós suscitamos este problema, até pode ser que não estejamos contra o latifúndio pelo latifúndio (até foi dada a imagem de estar-se contra o capitalista de charuto na boca!) Penso que hoje em dia - e esta não é uma concepção nossa, é uma concepção que costuma ser utilizada pela própria Comunidade Económica Europeia ou de qualquer país capitalista - o latifúndio é efectivamente um atentado às próprias regras do desenvolvimento capitalista da agricultura. Hoje o latifúndio é rejeitado pelo próprio capitalista inteligente, porque realmente não serve. Porquê? Não é por acaso que somos sempre, ou quase sempre, levados a aliar à imagem do latifúndio a imagem do subaproveitamento
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ou abandono de recursos. É que a própria dimensão induz a um sistema produtivo ele próprio gerador do subaproveitamento.
O Sr. Vera Jardim (PS): - É a tal reforma capitalista de que falei e que em Portugal não foi feita na zona que a todos preocupa.
O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - Posso também fazer uma pergunta? É que V. Exa. está a fazer uma intervenção e eu estava inscrito, pelo que me sinto um pouco prejudicado pela circunstância de haver intervenções sob a forma de pergunta sobre matéria para a qual estava inscrito.
A pergunta é muito simples: será que esse processo de transformação do latifúndio tradicional que existiu nos anos 30, 40, 50 não se estava já a operar no momento em que se realizou a reforma agrária, pelo que em parte não foi realizada também em relação a uma transformação da agricultura alentejana que já se verificava no final dos anos 60, princípios dos anos 70? Os Senhores têm uma descrição do Alentejo que é completamente mirífica, que está encravada num determinado período histórico e que já estava a mudar no momento em que se realizou a reforma agrária. Portanto, a discussão sobre o latifúndio é sobre uma realidade e uma descrição ideológica e não sobre uma descrição de uma realidade de facto existente na prática. Temos, pois, que discutir essas coisas também nesses termos, e os Senhores sabem perfeitamente que no princípio da década de 70 havia pleno emprego no Alentejo, havia falta de mão-de-obra, havia subida de salários, havia o aparecimento de empresas agro-industriais, havia investimento no turismo. E, portanto, a descrição que estão a fazer do Alentejo - sei do que estou a falar e depois podemos discutir...
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Já colocou a pergunta?
O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - Estou a chamar a atenção para o facto de a descrição que os Senhores fazem do latifúndio ser inteiramente ideológica, porque não só já não existia enquanto realidade dinâmica no momento em que se realizou a reforma agrária como é completamente mirífico pensar que em 1988 se possa reconstituir no Alentejo o modelo latifundiário que existia nos anos 50. O problema é que os Senhores chamam reconstituição do latifúndio à transformação do status que existente depois de 1975, utilizando o termo com um sentido ideológico e não com o sentido de descrição de uma realidade.
O Sr. Presidente: - Gostava de referir que não quereria estar a interromper a vivacidade dos debates mas que vou ter de pôr alguma ordem nos mesmos sob pena de nos confundirmos.
O Sr. Deputado Rogério de Brito usará da palavra porque lha concedi nos pressupostos em que o fiz e faz a pergunta no fim, mas seguidamente retomaremos vigorosamente os termos regimentais para que possamos entender-nos.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Estava, portanto, na questão de que normalmente se alia a situação de subaproveitamento dos recursos à dimensão da propriedade porque ela própria gera o sistema produtivo deficiente. Mas o problema reside, no facto de a dimensão gerar o sistema produtivo quando a dimensão é apropriada por uma única entidade, ou seja, quando a produtividade da terra, mesmo que extremamente baixa, gera elevados rendimentos pela sua multiplicação em termos de unidade de superfície. É aqui que reside o drama do latifúndio; é a possibilidade de um subaproveitamento que, no entanto, gera riquezas avultadas pela multiplicação de n hectares de terra na posse de um indivíduo ou de uma família.
Mas não é só aqui que está o problema do latifúndio (que, insisto, não é um conceito meramente marxista-leninista, embora pense que ele o assume por inteiro). Basta vermos as análises que têm sido feitas por diversos quadrantes e não apenas aquele em que nos situamos. Ainda ontem citei, e volto a citar, a . Igreja que considera o latifúndio "um factor de repressão sócio-económico sobre as populações, sobre os trabalhadores", considera-o "um factor de domínio do poder económico sobre o poder político", e condena-o por isso mesmo. Certamente, não iremos chamar aos bispos da Igreja Católica de "marxistas-leninistas", e não é porque isso nos causasse particular preocupação.
Risos.
Os Senhores certamente não o dirão e isso quer dizer que a própria concepção, a própria ligação do latifúndio ao poder político, ao poder económico e ao uso que é feito desse mesmo poder não é uma questão despicienda, e é porventura a mais importante no contexto deste debate constitucional. É bom que não nos esqueçamos dele. No entanto, regressarmos ou não ao anterior não é o problema que aqui se debate. Trata-se de debater o problema dos regimes de propriedade da terra passíveis de gerar situações equivalentes mesmo que revestidas de outras formas, diria mesmo, com mais elevadas produtividades, sendo certo que isso não traduz uma mais equilibrada ou justa distribuição do rendimento obtido.
Concluiria dizendo que tivemos reformas agrárias: não devemos esquecer a revolução liberal, embora tenha sido aquilo que foi. E também que não esqueçamos, quando queremos colocar a questão no domínio ético do que é a propriedade e o direito de propriedade, como é que existe hoje a propriedade latifundiária do Alentejo e o que foi a revolução liberal e as suas consequências.
Por diversas vezes na I República se tentaram fazer reformas agrárias e por diversas vezes elas foram aniquiladas pelo poder político. Há que não esquecer que as últimas dessas tentativas deram origem uma à ditadura de Sidónio Pais e a outra à queda da I República. Talvez não tenham sido razões determinantes, mas coincidiram. É bom que também tenhamos isto em conta.
Finalmente, gostaria de colocar a questão de em 1979 a caracterização que fazemos do latifúndio já não existir. Não sei qual é a base de análise do Sr. Deputado Pacheco Pereira para fazer esta afirmação,...
O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - Eu não disse que já não existia, disse que estava em transformação.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - .. .mas direi que, com excepção de algumas explorações que se desenvolviam numa perspectiva capitalista, e não eram muitas,
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o que acontecia era uma ligação do capital fundiário ao capital financeiro, o que não era propriamente uma virtude para o desenvolvimento do sector. Depois tínhamos a situação de se evoluir e já não estarmos em 1974, estamos em 1988. Daria um exemplo ligado à minha actividade técnica relativo ao concelho de Grândola, e posso levar os Srs. Deputados a constatarem. O Sr. Deputado tem conhecimento de um estudo que apresentei sobre esse concelho (aliás, estivemos juntos em Paris, onde o apresentei) e, se hoje por ver a realidade que lá está, sendo certo que praticamente a reforma agrária está reduzida no concelho de Grândola à ínfima expressão, verificará que a alternativa foi exactamente o regresso ao passado na sua totalidade, o abandono puro e simples das terras.
Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Vice-Presidente Almeida Santos.
O Sr. Presidente (Almeida Santos): - Estou desde manhã para usar da palavra e não consigo responder ao Sr. Deputado José Magalhães. Há aqui qualquer coisa que não funciona bem. Assim, deixo de inscrever-me e passo a fazer perguntas e, nas perguntas, introduzo discursos. Não vejo outra solução.
Peço desculpa, mas uma pergunta é uma pergunta, um discurso é um discurso e o direito de intervenção de quem o solicitou não pode ser preterido na sequência das intervenções. Estou desde manhã para responder ao Sr. Deputado José Magalhães, e tenho muita honra em fazê-lo, mas a verdade é que não consigo. Desculpem, mas não pode continuar a ser assim e, agora que estou a presidir não será de certeza.
V. Exa. pediu a palavra para fazer uma pergunta e não uma intervenção. Estão muitos Srs. Deputados à espera de intervir e, por este caminho, não haverá qualquer possibilidade de os já inscritos usarem da palavra.
Tem a palavra o Sr. Deputado Rogério de Brito.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Sr. Presidente, concluiria dizendo que não tenho qualquer pejo em colocar a questão de que não pretendia ultrapassar o seu direito e, como cheguei um pouco atrasado por virtude dos trabalhos no Plenário, peço desculpa.
Sr. Deputado Vera Jardim, relativamente às questões que aqui admiti, não pensará V. Exa. que elas serão consideradas pelo PS na definição constitucional da relação entre a eliminação do latifúndio e a questão social e do próprio poder político e económico e se se podem remeter tão somente a uma mera questão de dimensão ou pretensa racionalidade técnico-económica.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.
O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Deputado, vou responder-lhe muito brevemente até para evitar que os outros colegas possam perder a possibilidade de intervenção.
Queria dizer-lhe que se reparar na redacção actual do artigo 97.° não se fala apenas em latifúndios, fala-se em expropriação dos latifúndios e das grandes explorações capitalistas. Poderia devolver-vos a questão perguntando-vos se querem lutar contra o latifúndio ou também querem lutar contra as grandes explorações capitalistas. Está lá a expressão e os Senhores querem que ela lá fique. A vossa noção de latifúndio não é uma noção cultural porque a grande exploração capitalista nada tem a ver na vossa perspectiva com o latifúndio e os Senhores mantêm-na. Esta é a minha resposta a toda a sua questão.
Depois os Senhores querem manter o artigo 97.° tal como está e lá está a expropriação dos latifúndios e não só, também das grandes explorações capitalistas. VV. Exas. estão agora a fazer um discurso em que aparece que as grandes explorações capitalistas, por um lado, não são latifúndios, o que é verdade. Os Senhores fizeram uma distinção bem clara e, portanto, também para eliminar a grande exploração capitalista e nós dizemos que temos uma noção cultural do latifúndio e nessa não cabe a grande exploração capitalista consoante seja, obviamente. Não é só por ser grande exploração capitalista, ela tem de ser uma boa exploração. Termino dizendo que basta ler o nosso artigo 87.° n.° 1 para ver que o redimensionamento das unidades de exploração agrícola de dimensão excessiva - não bastando apenas essa característica - do ponto de vista dos objectivos da política agrícola, ou seja, se não servirem aos interesses da política agrícola em matéria de produtividade, em matéria de exploração, etc., então expropriem-se, mas se forem "latifúndios" bem explorados, com os trabalhadores bem pagos, explorando a terra como deve ser, com grandes níveis de produtividade, dando trabalho a centenas de pessoas, etc., não vamos expropriá-los. Penso poder dizer isto inteiramente à vontade, não é nossa política ir expropriar este "latifúndio", porque então passamos a chamar-lhe uma grande e boa exploração capitalista. Porquê expropriá-lo?
Entretanto, reassumiu a presidência o Sr. Presidente Rui Machete.
O Sr. Presidente: (Rui Machete) - Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Deputado José Magalhães: como sempre gostei de o ouvir e não esperava que, nesta matéria, tivesse dito coisas muito diferentes daquelas que disse. Mas queria começar por lhe referir que se as nossas respostas são para o PCP inquietantes - e até admito que em algum sentido o possam ser - a inquietação não é seguramente maior do que aquela que em nós tem provocado e provoca quer o vosso conceito de reforma agrária quer a eficiência a que a sua aplicação conduziu, na prática, e na área a que se refere.
Temos divergências fundamentais e também não estamos tão longe quanto isso em outros aspectos. Entendemos que a reforma agrária teve uma justificação histórica, que corrigiu defeitos estruturais da propriedade no Alentejo. Porventura nem sempre bem, mas estamos em 1988, estamos na CEE, temos a experiência dos 13 anos da reforma agrária. Também nos preocupamos com as cicratizes negativas. E dir-lhe-ia que a reforma agrária, que corrigiu erros, fez também mais mal do que nenhuma outra realização do post 25 de Abril à minha ideia de democracia, ao meu conceito de país democrático e de Estado de Direito. Não há dúvida de que tem de haver alguma divergência entre nós: VV. Exas. colocam-se numa posição imobilista. O que está, está bem. Nós colocamo-nos numa posição
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de querer transformar o que está, melhorar o que é. É a nossa divergência básica.
Já realcei que os instrumentos da reforma agrária - desde que nos referimos aos objectivos da política agrícola, e não a qualquer sorte de ideologia ou aos objectivos da política de qualquer partido - cá continuam: o favor do pequeno e médio agricultor, ou do agricultor em geral, a entrega da terra a quem a trabalha; o conceito, não apenas de posse útil, que V. Exa. ainda não explicou mas há-de fazer-me esse favor, mas de entrega em posse ou propriedade.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Fica para a semana, Sr. Deputado.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Esperarei com paciência.
O Sr. Presidente: - Para a semana? Ainda?
O Sr. Almeida Santos (PS): - E também fará o favor de me dizer se sois ou não contra a entrega de terras em propriedades a pequenos e médios agricultores. Gostaria que me dissessem se só são favoráveis à entrega em posse útil, ou também em propriedade. É um ponto de vista que nos interessa muito conhecer. Se, na verdade, o favor do pequeno e médio agricultor pára na fronteira da posse útil, ou pode ir até à propriedade, como nós propomos, sendo aliás os únicos a fazê-lo.
Cá está, também, a possibilidade de expropriação dos latifúndios, desde que seja para a realização dos objectivos da política agrícola - essa é a nossa Estrela Polar -, e VV. Exas. aqui fizeram a oportuna demonstração de o latifúndio não é só a dimensão. Quer a primeira lei da reforma agrária, quer a segunda, ligaram a ideia do latifúndio quer à dimensão, quer à produtividade: a extensão e os pontos.
O que eu quis, há dias, dizer é que a Constituição não vincula a nenhum conceito de latifúndio. Não define o que é latifúndio, pelo que temos de intuir que o latifúndio está pela natureza das coisas (vide doutrina sobre o assunto) ligado à extensão, à produtividade e até, se quisermos, à função social da terra, como disse o Sr. Deputado Rogério de Brito, com o meu acordo. Essa nota têmo-la nós nos objectivos da política agrícola. E, quando ligamos a expropriação a esses objectivos, é isso mesmo que queremos significar. Que melhor maneira de definir os valores que serve a abolição do latifúndio do que dizer quais são os objectivos que se pretendem com a política agrícola? Não é a política agrícola, ela própria, um instrumento! A abolição dos latifúndios não é também um instrumento de realização dos objectivos da política agrícola?
Digo mais: a eliminação dos latifúndios não é um princípio de política económica do nosso país! Não é um princípio, e chamo a atenção do Sr. Deputado José Magalhães para isso, porque me pareceu que quis fazer uma ligação demasiado próxima entre a apropriação colectiva dos principais meios de produção e solos e recursos naturais e a eliminação dos latifúndios. Esta não é colocada na mesma situação e ao mesmo nível da apropriação colectiva. Essa, sim, é um princípio de organização económica. E aí nós dissemos: talvez da Constituição se deve tirar a ideia da imperatividade desse princípio. Mas houve a prática, houve a entrada na CEE, e nós assumimos as consequências disso. Assumimos e dissemos que, se assim é, como não pode deixar de ser, nós interpretávamos a Constituição no sentido de que consagra uma faculdade. A verdade é que sempre tivemos dúvidas de que a Constituição consagra um imperativo.
Por outro lado, as expropriações surgem definidas como um instrumento de segunda linha, um instrumento de realização do objectivo de promover a melhoria da situação económica, social e cultural dos agricultores. A política agrícola tem como objectivo, entre outros, promover a melhoria da situação económica e social dos agricultores. Como? Pela transformação - é um dos meios - e pela transferência progressiva, etc.. Aquele objectivo de promover a melhoria consegue-se através disto e daquilo. É uma primeira linha, é um primeiro instrumento de realização de um objectivo. Diz o artigo seguinte: este instrumento, a transferência da posse útil da terra, será obtido através da expropriação dos latifúndios. Cá aparece a expropriação dos latifúndios como uma segunda via instrumental da realização de um objectivo.
Nós fomos mais longe, dizendo claramente: a expropriação tem de estar ligada aos objectivos da realização da política agrícola. É verdade que está cá a ideia da progressividade. E nós mitigámos essa ideia. Mas também vos digo: leiam o n.° 3 do artigo 97.° Que diz? As operações previstas neste artigo - entre elas a expropriação - efectuam-se nos termos que a lei da reforma agrária definir, e segundo o esquema de acção do plano. Que modesta progressividade! Que mitigada progressividade! Que liberdade para o legislador ordinário! eu concebo que a ideia da progressividade fosse mais forte em 1975 e deva ser atenuada hoje. Hoje, o legislador dirá, em função dos objectivos da política agrícola, qual haja de ser o ritmo. Se tem de ser uma marcha desenfreada, a caminho da expropriação, ou se deve ser algo que seja ritmado, em termos de melhor realizar os objectivos da política agrícola.
Estou de acordo em que o latifúndio é dimensão, mas é também, senão sobretudo, qualidade, rentabilidade. Mas então tenhamos a coragem de dizer, como disse há pouco o meu camarada Vera Jardim, que, quando uma grande exploração capitalista, ou um grande latifúndio, estiver a ser excelentemente explorado, é inexpropriável! O dever de expropriar, suponho que esteja consagrado na Constituição, só o está em relação ao que está mal explorado, que até pode ser uma pequena propriedade! E nós não afastamos a possibilidade de expropriação de uma pequena ou média propriedade, se estiver a ser mal explorada, porque está fora dos objectivos da política agrícola - e esses objectivos é que ditam o grau de uso do expediente, do instrumento da expropriação.
Passo por sobre o problema dos defeitos da proposta do Governo; discuti-la-emos e denunciaremos os defeitos que entendermos que tem. Não vou agora pronunciar-me sobre isso.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, nós colocámos-lhe a questão da proposta do Governo, não em si mesma, mas aferida ao projecto do PS. Propusemos-lhe o seguinte exercício político, que é da maior gravidade e importância, aliás, que é o de cotejar a proposta governamental com o projecto de revisão constitucional do PS, para responder à pergunta: esta proposta, face a este projecto
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de revisão constitucional, ou se este projecto fosse Constituição, seria inconstitucional? Essa é uma questão fulcral.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Nós reflectimos longamente sobre a nossa proposta em matéria de reforma agrária, independentemente de qualquer proposta ou de qualquer lei ordinária. Ela é válida, para nós, em si própria. Depois veremos as consequências. Se V. Exa. levantar o problema no Plenário, dar-lhe-emos a resposta. Mas não se trata agora disso.
Também me não preocupam os louvores do Sr. Deputado Carlos Encarnação à nossa proposta. Vejo nisso um bom augúrio, ou seja o de que o PSD irá aprovar a nossa proposta. É excelente, fico encantado!
Mas digo mais: ainda hei-de ver o Sr. Deputado José Magalhães, com todo o seu talento, a defender as nossas propostas! Hei-de ver! Como aliás o vejo agora a defender as nossas soluções de 1982. Tenho aliás toda a "culpa", uma vez mais, desta proposta, como tive da anterior. Já sei qual é a sua resposta - defenderemos aquilo que se aproxime mais das nossas próprias concepções.
O Sr. José Magalhães (PCP): - O Sr. Deputado Almeida Santos acaba de me poupar um protesto, aliás veemente e justificado, porque a gravidade está naquilo que o PS admite ceder. Isso é que é grave!
O Sr. Almeida Santos (PS): - Estava só a demonstrar a relatividade dos elogios - V. Exa. há-de fazer elogios à nossa proposta e nessa altura encará-los-emos com a mesma serenidade com que agora encaramos os elogios do Sr. Deputado Carlos Encarnação.
V. Exa. também criticou o facto de substituirmos ao conceito de adequação o conceito de excessividade.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, comparei a proposta do PS, nesta matéria, com a proposta do PSD para afirmar que ambas são indeterminadas - a do PS ligeiramente menos, mas a do PSD bastante mais: em todo o caso, padecendo ambas de vício.
O Sr. Almeida Santos (PS): - A Constituição manda determinar os limites máximos e diz: limites máximos das unidades de exploração; não diz que limites.
Fica, portanto, repetida a pergunta de o que seja posse útil; fica feita a pergunta de saber se termina aí a vossa protecção dos pequenos e médios agricultores, ou se são favoráveis a que passe a transferir-se a propriedade também, em termos de propriedade e não de posse útil apenas.
Diz V. Exa. que a ideia do redimensionamento, com dimensão adequada fica amputada da componente da progressividade. Fica e não fica! Como nós dizemos que tudo o mais é referido à realização dos objectivos da política agrícola, estes é que hão-de marcar a progressividade. Nem pode ser de outra maneira. Até pode acontecer que a passada excessiva, galopante, seja contra os objectivos da reforma agrária. Veríamos isso. Só em concreto posso conceber a situação. A nossa maneira de deixar de referir a progressividade é referi-la aos valores a que, em nosso entender, estava submetida a própria progressividade. Não concebemos a progressividade como um valor em si, mas referida a outros valores, que têm de ser o aumento da produção, a melhoria da condição social dos trabalhadores, a terra a quem a trabalha, etc.. Mantemos esses valores: o favor das cooperativas e, até, das UCP's (como calculam, não morremos de amores pela eficácia demonstrada por algumas ICP's, mas entendemos que, apesar de tudo, é um instrumento que existe, que pode ser útil e, de qualquer modo, pode vir a sê-lo no futuro).
Também combatemos o minifúndio. É outro dos valores que combatemos em termos de eficácia, prevendo medidas concretas de apoio fiscal, creditício, jurídico, et coetera, que hoje a Constituição não prevê.
Também não confundimos, ao contrário do que diz o Sr. Deputado Lino de Carvalho, a reforma agrária com o reordenamento fundiário. As opiniões de Salazar não costumam impressionar-nos muito, embora respeitemos algumas delas. V. Exa. perguntou se estamos de acordo com o latifúndio: temos um artigo, desde logo, encimado por "eliminação dos latifúndios", onde dizemos como é que entendemos que deve ser eliminado o latifúndio. Um camarada meu considerou quase ofensiva a pergunta. Não a considero como tal, mas acho que encontra resposta na nossa própria proposta.
Ao Sr. Deputado Rogério de Brito, diria apenas isto: se foi a tentativa de uma reforma agrária que fez cair a I República, não façamos com que a insistência nos erros de uma reforma agrária que não teve só acertos, faça cair a segunda!
Que o conceito de reforma agrária não tem nada de político, diz o Sr. Deputado Lino de Carvalho. Deixo isso para a sua reflexão de fim-de-semana.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Pacheco Pereira.
O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - Vou ser rápido. Depois V. Exa. poderá responder a todas as questões, senão perde-se o fio da meada - algumas das observações que vou fazer têm a ver com intervenções que foram feitas.
O Sr. Presidente: - Tenho duas inscrições: as dos Srs. Deputados Pacheco Pereira e José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Se o Sr. Deputado Pacheco Pereira usar da palavra agora, das duas uma: ou usamos o mesmo critério de imediação e então seremos obrigados a prorrogar os trabalhos até à hora que seja necessária para perguntas, respostas, protestos e contraprotestos; ou então transferimos tudo isso, em globo, para a próxima terça-feira à tarde, que é quando, suponho, terá lugar a próxima reunião.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Acho que é melhor - claro que depende da sua capacidade de repentismo - mas prefiro que as suas respostas sejam reflectidas, até porque tem de me dar outras, sobre a posse útil, por exemplo. Não sei se já pensou nisso!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, isso não é um repentismo - ao fim de doze anos não pode ser um repentismo.
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O Sr. Presidente: - Mas ainda estamos dentro do horário; portanto, poderemos pelo menos ouvir o Sr. Deputado Pacheco Pereira.
O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - Tenho muito gosto, aliás, pelas expectativas que a minha intervenção causa.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não há expectativa nenhuma. O conteúdo é de chapa. Prediz-se linha a linha...
O Sr. Almeida Santos (PS): - Eu tenho uma hora prefixa para me retirar.
O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - Vou pronunciar-me o mais rapidamente possível sobre algumas questões e centrar-me, principalmente, no que penso ser o problema posto pela discussão à volta do latifúndio. Ou seja, observei com atenção que, na intervenção do Sr. Deputado José Magalhães e, mais tarde, na do Sr. Deputado Lino de Carvalho, começava a esboçar-se a seguinte posição: que seria possível retirar, ou eliminar, das partes iniciais da Constituição as disposições programáticas sobre o socialismo, mas que a pane respeitante ao latifúndio poderia permanecer por seu mérito próprio, na medida em que - isto foi dito textualmente - o conceito de reforma agrária não tem nada de ideológico, portanto, as posturas sobre o latifúndio são isentas de qualquer entendimento ideológico sobre a Constituição; portanto, valeriam enquanto descrição de uma realidade e enquanto intenção programática sobre essa realidade. Gostaria de dizer que é exactamente o contrário. Se há parte em que o entendimento da Constituição é inteiramente ideológico - isso foi abundantemente revelado pelas intervenções dos Srs. Deputados do PCP nesta matéria -, é naquilo que diz respeito ao latifúndio e à reforma agrária. Não vou pronunciar-me com muito pormenor sobre os detalhes, mas apenas gostaria de chamar a atenção para o facto de que esse entendimento ideológico sobre a questão do latifúndio e da reforma agrária é evidente no próprio entendimento da história do processo alentejano.
Não vou entrar em pormenores, mas não gostaria de deixar que ficasse registado em acta que a compreensão da história do processo de criação do latifúndio e do seu desenvolvimento e das tentativas de reforma agrária é completamente ideológica. Esse entendimento ideológico da história começa, evidentemente, desde a génese do latifúndio no período contemporâneo, em que todos os estudos sobre a venda dos bens nacionais relevam um processo um pouco mais complexo do que aquele que aqui é referido, até à própria história do processo da reforma agrária.
Não queria deixar de registar não só que as tentativas de reforma agrária na I República não conduziram necessariamente à queda do regime - isso é também uma interpretação ideológica -, como também que, quando mais tarde foram reactivadas no período do salazarismo, mereceram a oposição do PCP. Bem sei que os Senhores do PCP, normalmente, não conhecem muito bem a história do seu próprio partido, mas a expressão "reforma agrária" começou por ser combatida pelo próprio PCP e só muito tardiamente veio a ser aceite como formulação, retomando o velho programa republicano de reforma agrária que vinha da I República. Mais: até 1975, o entendimento do PCP sobre reforma agrária era a divisão das terras pelos camponeses e pelos trabalhadores rurais, individualmente considerados; só posteriormente é que foi aceite a fórmula colectivista.
Estas coisas convém que fiquem registadas, na medida em que os Senhores fazem, em muitos casos, uma reconstrução a posteriori das suas próprias posições e do próprio processo histórico.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - E ainda dizem que somos conversadores! Afinal, temos mutações!
O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - Não, não é isso que estou a dizer.
O próprio entendimento do processo histórico é ideológico. A segunda coisa que é também ideológica na formulação do PCP é, evidentemente, a descrição da realidade. O PCP faz uma descrição da realidade alentejana, quer antes do processo da reforma agrária, quer depois, que é completamente mirífica, ou seja, que não entra em conta com nenhuma das complexidades da realidade existente. Descrevem o Alentejo como se, em 1974. estivesse nos anos 30; 40 ou 50. como se fosse percorrido por trabalhadores rurais cheios de fome, à procura de emprego, quando havia falta de emprego sazonal; quando, de facto, no momento em que se deu o processo de reforma agrária a própria realidade social alentejana era muito diferente e não correspondia a esse modelo. O mesmo é verdade em relação à ideia do latifundiário, que não é o homem do charuto, com cartola, o que é também uma reconstrução inteiramente ideológica de uma realidade que já estava num processo de transformação acentuada.
Isto para chamar a atenção para que, quando VV. Exas. falam do latifúndio e da sua recuperação ou reconstrução, querem opor-se a uma realidade inexistente, ou seja, é completamente mirífico e ideológico pensar que se pudesse reconstituir em 1988, numa situação política e social como a actual e após os acontecimentos de 1974-75 e do processo de integração europeia, a figura do velho latifundiário absentista que vinha gastar o dinheiro no Casino do Estoril. Este era o modelo que se utilizava nos anos 30, 40 ou 50.
Ora, o que os Senhores não querem é outra coisa: em primeiro lugar, que haja um processo de transferência de poderes em relação às realidades de facto que foram criadas desde 1975, que são essencialmente as UCP's, as formas de gestão e de controlo político, social, sindical e económico que existem sobre as pessoas que nelas trabalham, o facto de elas ocuparem o espaço de uma agricultura moderna, desenvolvida, com uma produtividade e técnicas de exploração completamente diferentes e com uma relação distinta com a economia nacional e com a integração europeia...
O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - Sr. Deputado, V. Exa. fala noas UCP's como um instrumento de controlo político. Como é que então explica que em zonas onde não há UCP's o PCP tinha a maioria e a perca onde existem?
O Sr. Pacheco Pereira (PCP): - Sr. Deputado, não estou a fazer referências ao processo e implantação eleitorais. O que me limito a dizer é que os senhores têm uma susceptibilidade muito particular em relação às questões da reforma agrária. Em grande parte, porque,
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entre outras coisas, não é pelo êxito do modelo económico, não é pelas virtualidades dos resultados obtidos, não é, inclusive, pela melhoria das condições de vida, uma vez que a verdade é que a população alentajana assiste à degradação das suas condições de vida nos últimos 10-12 anos a esta parte, após pequenas melhorias em que acompanhou o conjunto da população. De facto, a população alentejana encontra-se numa situação difícil; é uma população envelhecida, que não tem saída no mercado de emprego, que só sabe praticamente fazer uma ou duas tarefas agrícolas e está completamente bloqueada em relação a um processo de transformação económica.
Portanto, chamo a atenção para o facto de o discurso sobre a recuperação de latifúndios e as propostas quer de extinção destes artigos, apresentadas pelo PSD, quer, inclusive, admitindo algumas propostas de transformação do PS, irem no sentido de acabar com uma realidade que deriva essencialmente de uma perspectiva ideológica sobre a qual e cuja integração num programa mais vasto. VV. Exas. nunca falam, embora a pensem.
Há, portanto, um elemento ideológico que é a distinção do discurso sobre a Constituição e a sua integração num programa de entendimento sobre o país, a realidade, o futuro e a revolução. Portanto, a manutenção do latifúndio respeita a uma compreensão que tem a ver com realidades sociais e políticas e entendimentos programáticos ou ideológicos sobre a realidade e não com a abertura da questão alentejana, ou, então, o processo de desenvolvimento económico que tivesse de ter em conta a pluralidade dos meios de intervenção. E isso implicaria sempre para o caso alentejano uma transformação profunda dá situação actualmente existente nas unidades colectivas de produção.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Depois de ter ouvido de V. Exa. que o latifúndio, contestado por nós, é uma realidade de 1920 ou 1930...
O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - É um entendimento ideológico em vários aspectos: histórico, descrição da realidade, ocultação da política real, etc.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Quero, entretanto, formular-lhe uma pergunta: como interpreta a situação - e situo-a exactamente no período que precede o 25 de Baril de 1974, ou seja, entre 1971 e 1974 - de que os empréstimos sobre hipotecas de prédios rústicos na zona estritamente considerada de reforma agrária eram de 29,8 milhões de contos e o investimento nessa mesma região e nesse mesmo período, expresso na formação bruta de capital fixo, não atingia sequer os 2 milhões de contos? Como analisa essa discrepância entre os empréstimos sobre prédios rústicos e o investimento na agricultura? E como justifica que o Alentejo em 1974 registasse os mais baixos índices de intensidade da actividade económica de todo o país, excluindo a região de Sines?
O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - Sr. Deputado, não nego a realidade alentejana, mas chamo-lhe a atenção para o facto de VV. Exas. retirarem da descrição sistemática dessa realidade tudo aquilo que é contraditório com uma descrição monolítica da situação alentejana, como se ela estivesse congelada nas formas que teve no passado, inclusive, até, porque não se actualizaram nesse conhecimento. Não quero, porém, estar a discutir aspectos concretos do processo da reforma agrária, em relação ao qual lhe podia chamar a atenção para que a questão da posse da terra nunca foi crucial nesse processo. E dito isto porque, se VV. Exas. observarem os timings das ocupações, verificam que elas são muito tardias em relação ao conjunto do chamado "processo revolucionário" e que se realizam quase todas depois da legislação que permite a garantia de salário aos trabalhadores rurais que ocupavam as terras.
Portanto, a interpretação que VV. Exas. fazem do processo da reforma agrária é ideológica, porque a realidade demonstra que grande parte das ocupações se realiza muito próxima de Novembro de 1975, ou seja, numa fase em que o chamado "processo revolucionário" se encontrava já em recessão e após a elaboração da legislação sobre os salários. Se, entretanto, vamos discutir os factos, essa interpretação não se sustenta.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Mas V. Exa. quer discutir factos?
O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - Não, Sr. Deputado. Não quero evidentemente transformar esta conversa numa discussão sobre os factos. Contudo, não pretendo também assistir passivamente a interpretações ideológicas.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, percebo que esta matéria seja aliciante e, para mim, muito interessante, dado o artigo que escrevi em tempos. Porém, teremos agora de suspender os nossos trabalhos.
Estão já inscritos os Srs. Deputados José Magalhães e Rogério de Brito para futuras intervenções.
Iríamos retomar os nossos trabalhos na próxima terça-feira, pelas 15 horas e 30 minutos, uma vez que às 15 horas reúne a Subcomissão. Prosseguiríamos na quarta-feira pelas 15 horas e 30 minutos, para depois do intervalo do jantar recomeçarmos, pelas 22 horas. Faríamos, então, uma reunião bem produtiva pela noite dentro. A reunião de quinta-feira começará às 10 horas, para a retomarmos pelas 15 horas e 30 minutos, já no período da tarde. Na sexta-feira faríamos uma reunião só na parte da manhã com início pelas 10 horas.
Devo ainda dizer que a reunião da Subcomissão, na próxima terça-feira pelas 15 horas, destina-se apenas a dividir o trabalho em termos de relatório, visto que estamos a chegar ao fim daquela parte que foi já analizada nela.
Srs. Deputados, está encerrada a reunião.
Eram 13 horas e 10 minutos.
COMISSÃO EVENTUAL PARA A REVISÃO CONSTITUCIONAL
Reunião do dia 17 de Junho de 1988.
Relação das presenças dos Senhores Deputados.
Partido Social-Democrata (PSD):
Rui Manuel P. Chancerelle de Machete.
Carlos Manuel de Sousa Encarnação.
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António Costa de Sousa Lara.
Carlos Manuel Oliveira da Silva.
Luís António Damásio Capoulas.
José Álvaro Pacheco Pereira.
José Luís Bonifácio Ramos.
Luís Filipe Garrido Pais de Sousa.
Vasco Francisco Aguiar Miguel.
Mário Jorge Belo Maciel.
Rui Alberto Limpo Salvada.
Partido Socialista (PS):
António de Almeida Santos.
Alberto de Sousa Martins.
António Manuel Ferreira Vitorino.
Jorge Lacão Costa.
José Eduardo Vera Cruz Jardim.
Partido Comunista Português (PCP):
José Manuel Santos Magalhães.
Rogério de Sousa Brito.