Página 985
Quinta-feira, 1 de Setembro de 1988 II Série - Número 33-RC
DIÁRIO da Assembleia da República
V LEGISLATURA 1.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1987-1988)
II REVISÃO CONSTITUCIONAL
COMISSÃO EVENTUAL PARA A REVISÃO CONSTITUCIONAL
ACTA N.° 31
Reunião do dia 21 de Junho de 1988
SUMÁRIO
Deu-se continuação ao 11.º Relatório da Subcomissão da CERC, respeitante aos artigos 96. ° a 104. ° e respectivas propostas de alteração.
Durante o debate intervieram, a diverso título, para além do presidente, Rui Machete, pela ordem ordem indicada, os Srs. Deputados José Magalhães (PCP), Lino de Carvalho (PCP), Rogério de Brito (PCP), Pacheco Pereira (PSD), Almeida Santos (PS), António Vitorino (PS), Basílio Horta (CDS), Maria da Assunção Esteves (PSD), José Luís Ramos (PSD), Carlos Encarnação (PSD) e Miguel Macedo e Silva (PSD).
Página 986
986 II SÉRIE - NÚMERO 33-RC
O Sr. Presidente (Rui Machete): - Srs. Deputados, temos quorum, pelo que declaro aberta a reunião.
Eram 15 horas e 50 minutos.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, estamos a finalizar a discussão do artigo 97.°, sobre a eliminação dos latifúndios. Tinham pedido a palavra, que tinha ficado reservada na reunião anterior, os Srs. Deputados Rogério de Brito e José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, o meu camarada Lino de Carvalho desejaria usar da palavra e, se V. Exa. não visse nisso inconveniente, faríamos as trocas adequadas para esse efeito. No entanto, se me permite, gostaria de colocar uma questão prévia.
O Sr. Presidente: - Faça favor, Sr. Deputado.
O Sr. José Magalhães (PCP): - A questão relaciona-se com o funcionamento dos trabalhos da CERC e com a publicidade dos mesmos. Não se trata de apreciar qualquer factor exógeno, nem mesmo o Congresso do PSD. É uma questão para alguns comezinha que diz respeito à distribuição das actas da CERC. Pude verificar, por informação dos serviços do meu grupe parlamentar, que as actas da Comissão têm, presentemente, uma tiragem de cerca de 600 exemplares, dos quais 250 são reservados para efeitos de uma futura edição encadernada para uso exclusivo dos deputados. Os restantes exemplares servem para duas finalidades: por um lado, para depósito e, por outro lado, para distribuição aos grupos parlamentares. Ora, é bom de ver, por este simples enunciado, que o número de exemplares e quiçá o próprio circuito de distribuição são inadequados para dar resposta àqueles que foram os nossos objectivos quando deliberámos que houvesse um regime de publicidade como este que agora estou a abordar. E não estou sequer a entrar em linha de conta com a necessidade de distribuição das actas, mais largamente, entre um eventual público leitor do Diário da Assembleia da República, que, como se sabe, é diminuto. Neste caso concreto, a difusão junto de circuitos que podemos qualificar como especializados justificaria só por si uma tiragem mais alargada.
Não houve ocasião para abordar esta questão em qualquer reunião da Mesa ou da Subcomissão, razão pela qual a trago aqui neste momento. Creio, Sr. Presidente, que se justificaria que fossem adoptadas providências junto da entidade competente - que creio ser o Sr. Presidente da Assembleia da República - para que sejam tomadas medidas no mais curto prazo e já com efeitos sobre o próximo número da série especial para a CERC do Diário da Assembleia da República. Importa que sejam assegurados os exemplares bastantes para uma tiragem que se possa considerar minimamente compatível com uma transparência ou com uma publicidade mínima dos trabalhos que aqui estão a decorrer.
Creio, Sr. Presidente, que não valerá a pena fazer uma tiragem simbólida. Há-de ser real, ou então assumamos que não há difusão pública daquilo que aqui se vem registando. Mas, como não creio que quem quer que seja assuma essa conclusão, haverá, então, que adoptar as providências adequadas para alterar o presente quadro, de que tomámos agora conhecimento com alguma surpresa. Está ao nosso alcance alterá-lo e alterá-lo rapidamente.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, vamos, naturalmente, examinar os números. Em todo o caso, registei que alguns jornais têm acesso às actas. Vi que hoje o Jornal do Comércio trazia uns comentários assaz interessantes sobre essa matéria, que denotam não sei se uma leitura muito atenta, mas, pelo menos, uma leitura das actas. Em qualquer circunstância, parece-nos, pelo menos, necessário poder satisfazer os pedidos que existam quanto a pessoas interessadas em as ler, e, mesmo que não existam esses pedidos, há, pelo menos, certos meios onde as actas deverão chegar.
Tratarei disso e depois dar-vos-ei as informações que sobre o assunto puderem ser apuradas.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, se me permite, para além de manifestar o acordo com algumas das últimas observações que fez, talvez me permitisse sugerir que, numa próxima reunião da Mesa - que, de resto, considero imprescindível -, pudéssemos ponderar algumas medidas práticas, no sentido de gaciosamente, e ex oficio, facilitarmos nós próprios esse acesso em relação a um leque de entidades que haveria que ponderar quais fossem, designadamente sindicatos e outras organizações iguais. Pela nessa parte, congratulamo-nos com o facto de alguns órgãos de comunicação social, neste momento, funcionarem como elementos de publicidade adequada e adicional àquela que pretendemos. Em todo o caso, não me parece que isso dispense - pelo contrário, incentiva - que se adoptem medidas deste tipo.
Sr. Presidente, proporíamos que, da nossa parte, começasse por usar da palavra o deputado Lino de Carvalho.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Lino de Carvalho.
O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - Sr. Presidente, a razão desta troca é simples. É que às 16 horas tenho a reunião da subcomissão para análise da Proposta de Lei n.° 31/V.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Defendemos, na última reunião, a propósito do debate em torno do artigo 97.°, a tese de que a questão do latifúndio não se resumia, nem se resume, a um mero excesso de dimensão da propriedade, nem a eliminação do latifúndio se poderia limitar a um mero redimensionamento de ordem física. Como afirmámos - e reafirmamos -, o latifúndio é, de facto, a excessiva dimensão, mas é, também, um sistema de exploração e práticas culturais próprias, extensivas, absentistas e de fracos níveis tecnológicos, sendo caracterizado por um sistema de relações sociais e de dualidade social. Tudo isto gera, por sua vez, uma fortíssima concentração de propriedade. Isto, naturalmente, de forma sintética e resumida.
Logo, a sua erradicação foi e é também - em nossa opinião e na opinião, aliás, de diversíssimos autores - não um mero processo de transferência da propriedade, mas um processo de acesso à sua posse útil e de exploração por parte de quem trabalha a terra, levando não só a transformação das relações de propriedade e a novos redimensionamentos de ordem física mas também à transformação das relações de produção, das relações sociais e da própria dualidade social que é gerada pelo sistema específico do latifúndio. É por isso que, neste quadro, dizemos que o projecto do PS, ao limitar-se, no artigo em que fala nisso, a aludir ao redimensionamento das unidades com dimensão excessiva
Página 987
1 DE SETEMBRO DE 1988 987
e dizer que as terras expropriadas serão entregues a título de propriedade ou de posse, propõe um texto que, em nossa opinião, pode ser redutor deste vasto processo social e qualificável como ambíguo e vago.
O redimensionamento pode, na verdade, reduzir-se a um mero reordenamento fundiário com a transferência da propriedade para aqueles que tenham capacidade financeira ou influência política para a ela terem acesso. Poderíamos ter aqui, portanto, só por esta via, uma segunda versão da revolução liberal com a sua transferência da propriedade da terra das colegiadas e dos mosteiros, expropriados na altura, para a burguesia nascente, o que, nem por isso, alterou o sistema de distribuição da propriedade.
Por outro lado, o projecto do PS pode ser tido por ambíguo e vago porque pode perguntar-se o que é a dimensão excessiva. Parece um conceito bastanto vago. E por que é que só se transfere ou só se pressupõe a transferência a título de propriedade ou de posse e não se mantém também o instituto da posse útil? É evidente que entra aqui a questão do conceito de posse útil, em relação à qual o meu camarada José Magalhães irá pronunciar-se com certeza, mas sobre o qual há já vasta jurisprudência desenvolvida, incluindo o próprio desenvolvimento que é feito na Constituição ao dar-lhe dignidade jurídica e havendo também trabalhos de eminentes juristas que dizem, entre outras coisas, que a posse útil constitui um direito sobre os bens do Estado ou de entidades paraestaduais, através e para efeitos de uma exploração pessoal directa. Não é um direito absoluto de propriedade, pois a própria Constituição lhe estabelece limites. Não é também um direito de que os beneficiários possam dispor em benefício de outras pessoas e, assim, na posse útil há, simultaneamente, todas as características de um direito real de gozo e de um direito de uso e fruição para a exploração da terra, permitindo até, em muitos aspectos, poderes mais vastos do que o direito do usufruto. Em resumo, consubstancia um certo direito de exploração empresarial com determinada discricionariedade técnica e até económica.
Note-se que algumas destas formulações não são de minha autoria, sendo, por exemplo, do Prof. Orlando de Carvalho, que se tem debruçado sobre estas matérias. É nosso entendimento que o texto actual é o mais adequado, pois é o texto que nos permite ter todas as possibilidades, contendo, portanto, soluções diversificadas, de acordo com a própria experiência social que tem vindo a suceder ao longo destes anos.
Em nossa opinião, a alteração destes conceitos pode escancarar as portas para a constitucionalização do latifúndio e da concentração ou da reconcentração da grande propriedade. Aliás, a eliminação, mais à frente, no projecto do PS, do n.° 2 do artigo 99.°, que estabelecia os limites máximos das unidades de exploração agrícola privada, vem reforçar este nosso entendimento e esta nossa preocupação.
O latifúndio, de facto, existia e continua a existir, malgrado a interpretação do Sr. Deputado Pacheco Pereira que entende que estaria em processo de transformação quando ocorreu o 25 de Abril. É evidente que o Sr. Deputado Pacheco Pereira, ao referir-se a isto na última sessão, esqueceu a enormíssima concentração de propriedade existente, tendo referido que as explorações, na zona actualmente chamada de reforma agrária, com mais de 500 ha eram menos de 1 % e que tinham mais de 50% da área. Esquecia-se das grandes explorações latifundiárias com 15 000 e 20 000 ha, com um sistema de exploração extensivo das relações sociais que segregavam, esquecia-se do índice de absentismo que, poucos meses antes do 25 de Abril, era de 40% a 46% contra 29% do País e esquecia-se dos 350 000 ha de áreas coutadas - mais de 10% da zona de intervenção - e do nível de intensificação cultural, que era de 65% na ZIRA contra 194% no País. Isto é, quando lhe convém, o Sr. Deputado vai buscar a excepção e transforma-a em regra.
Aliás, quando disse que o meu partido sempre tinha defendido a divisão camponesa da terra, pois, também aqui, o Sr. Deputado se resumiu a alguns textos de 1921 e não prosseguiu a análise histórica dos diversos marcos históricos - por exemplo, o relatório do meu partido ao 6.° Congresso -, não tendo também tido a capacidade para, depois, aferir esse relatório, onde se falava já da entrega de terra às cooperativas, com a própria vida e com as próprias soluções que os trabalhadores encontraram no processo dinâmico e social. Como é dito numa revista de sociologia em relação ao Sr. Deputado, para o Sr. Deputado Pacheco Pereira "apenas os grandes factos sociais - e cito - têm direito à historicidade".
O mesmo se poderá dizer em relação ao problema da temporalidade das ocupações. Falou-se, na última reunião, que este processo de ocupação da terra não tinha sido um processo resultante de uma dinâmica social própria dos trabalhadores e que para isso foi obrigada a saída de legislação para pagamento de salários. Também aqui se falta à verdade. Na esteira, aliás, de outros autores, o Sr. Deputado confunde ocupações com expropriações e esquece-se que em 27 de Setembro de 1975, quando foi publicado o decreto sobre a concessão de crédito às UCPs, já cerca de 60% das terras estavam na posse dos trabalhadores. Não estavam as expropriações, mas isso é outra questão.
Estas eram algumas das questões que queríamos colocar, no sentido de deixarmos aqui a nossa preocupação e a nossa posição de que nos parece que o texto actual da Constituição, sem prejuízo do seu aprofundamento e da sua melhoria, é o que melhor responde à situação actual e às diversas soluções possíveis para o processo da reforma agrária no Sul do País, sem escancarar as portas à reconstituição do regime de propriedade latifundiária.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Rogério de Brito.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Sr. Presidente, vou tentar, numa pequena intervenção, dar resposta a algumas questões que me parecem terem sido colocadas e que valerá a pena serem readquiridas para este debate. E tomaria a liberdade de retomar alguns aspectos de um estudo realizado pela Dr.a Nancy Gina Bermel, professora-assistente do departamento de políticas de Dortmund College de Hannover -New Hampshire, USA-, diplomada em Ciências Políticas, que fez um trabalho e um levantamento-estudo na zona da reforma agrária em Portugal, designadamente acerca do fenómeno das ocupações de terras.
E gostaria - porque foi aqui posta em questão a leitura que o PCP fazia da realidade do Alentejo à data de 1970-1974- de trazer aqui à colação dois ou três aspectos que tomei a Uberdade de ir buscar a um estudo de uma pessoa estranha ao nosso mundo partidário para que se não diga que é uma leitura de dados próprios ou manipulados por nós. Pensamos que esta pro-
Página 988
988 II SÉRIE - NÚMERO 33-RC
fessora é perfeitamente insuspeita e julgo que é importante termos presentes alguns dados por ela apresentados. Do levantamento feito ressalta que nem sequer 5% dos trabalhadores agrícolas eram tidos por trabalhadores com trabalho permanente, ou seja, com emprego permanente nas explorações agrícolas. Isto significa que cerca de 957o, ou mais, eram trabalhadores eventuais com o tal regime de trabalho sazonal.
Um outro aspecto que me parece importante trazer aqui, e uma das conclusões deste estudo, é o seguinte: "Há muitos que afirmam que as ocupações não surgiram de iniciativas locais e que as cooperativas estabelecidas não correspondem aos verdadeiros desejos do povo camponês. Presumindo que o proletariado rural é incapaz de acção autónoma, os mitólogos asseveram que as ocupações foram iniciadas de fora, ou por partidos de esquerda, ou por elementos do MFA. Repetido continuamente e associado com as devoluções de terra, o mito esconde acções antiprogressistas atrás de uma fachada pré-camponesa."
Foi levantada a questão de as UCPs cooperativas não terem promovido resultados qualitativamente significativos nos campos da reforma agrária e já tivemos oportunidade de rebater esta questão, sobretudo considerando uma hipocrisia pretender-se que, através do simples acto da transferência da posse da terra dos proprietários latifundiários para os trabalhadores resultasse, pura e simplesmente, a aquisição de todos os conhecimentos técnicos necessários para a mágica transformação da realidade produtiva do Alentejo.
De qualquer modo, há dois ou três aspectos que gostaria de referir, tanto mais que os mesmos resultam de uma experiência directa. Em termos de áreas semeadas -e dou, por exemplo, como referencial o concelho de Grândola - em 1974-1975, para uma área aproximada de 6000 ha, eram semeados 2%; em 1976-1977, 37% e em 1978-1979 eram já 44%. Em termos de transformações qualitativas de produção, queria referir que, por exemplo, quanto às culturas forrageiras, que praticamente eram inexistentes no Alentejo, se deram saltos da ordem das quatro vezes superiores em relação ao período anterior às ocupações. Estes são apenas alguns pequenos exemplos, mas poderíamos também referir os efectivos pecuários com um crescimento, em dois anos, superior, no caso de bovinos e ovinos, a mais de 100%.
Em 1974, todos os estudos realizados pela Gulbenkian traduziam a realidade do latifúndio no Alentejo desta forma: baixíssimo índice geral de intensificação cultural; milhares de hectares de terras com aptidão arvense ou de subcoberto completamente desaproveitadas e ou a mato; usos e ocupações culturais inadequadas à aptidão dos solos e uma política de protecção e melhoria do seu fundo de fertilidade; desaproveitamento dos recursos potenciais das vastas áreas de subcoberto, nomeadamente no respeitante às suas aptidões para a exploração pecuária; baixíssimos encabeçamentos pecuários ou mesmo inexistência de quaisquer efectivos em milhares de hectares. Esta é apenas uma leitura muito rápida de algumas das conclusões de todos os trabalhos feitos, designadamente pelo Prof. Eugênio Castro Caldas, que me parece também insuspeito.
Finalmente ainda, referiria - porque foi posta a questão de que não havia desemprego - que, para lá do facto de o desemprego existir, é importante termos em conta que, provavelmente, se a situação do desemprego se prolongasse por muito mais tempo, acabaria
por não haver população activa. E registaria ainda, o que me parece importante, o facto de a população até aos 44 anos ter decaído em percentagens verdadeiramente significativas - acima dos 40%, no prazo de 1950 para 1970.
Em contrapartida, a população acima dos 44 anos, ou seja, dos 45 aos 54 anos, tem aumentado nestes vinte anos de 9,1% para 13,9%, da faixa etária dos 55 aos 65 anos a percentagem aumentou de 7,2% para 12,6%, acima dos 65 anos, na população activa, o índice aumentou de 4,7% para 11%.
Evidentemente que nestas condições o mais natural seria que deixasse de haver desemprego por não haver população activa para trabalhar no Alentejo, forçada à emigração ou ao trabalho sazonal por curtos períodos ao longo do ano.
Concluindo: nada é mais fácil para fazer colher algumas observações bombásticas do que uma pretensa base científica ou sociológica na análise de factos. Foi o que fez o Sr. Deputado Pacheco Pereira. Seria bom que, quando se fazem afirmações se tivesse o cuidado de pelo menos referir os estudos que as podem avaliar, sob o risco de estarmos a debitar umas quantas máximas para as actas que não têm qualquer fundamento técnico, económico, social, enfim, credível. Foi isso que pretendemos contrariar.
O Sr. Presidente: - Em relação ao comentário gestual que fiz quando V. Exa. iniciou a sua análise em matéria de dados estatísticos pecuários, devo dizer que compreendo que estas matérias justifiquem uma análise demorada, como aquela que temos vindo a fazer.
A única questão que tenho a colocar-vos em geral, e não particularmente ao Sr. Deputado Rogério de Brito, é que, como normalmente estes artigos da Constituição, de acordo com uma velha perspectiva de encarar o direito constitucional, são uma espécie de tête de chapitre dos diversos sectores, teremos, apesar de tudo, que nos autolimitar um pouco, sob pena de prolongarmos ainda mais a análise, por natureza demorada, destas matérias.
Mas a reforma agrária e a política agrícola justificam suficientemente uma análise um pouco mais pormenorizada.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, é sempre possível continuar a discussão por outros meios, isto é, no Plenário.
O Sr. Presidente: - Exactamente. Esse é o local adequado!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não posso deixar de considerar um tanto surpreendente que tenha o Sr. Deputado dito o que disse, e tendo acabado de ouvir o que ouviu, guarde do Conrado o prudente silêncio, se é de Conrado o caso.
O Sr. Presidente: - Não era de Conrado, mas era prudente em termos de celeridade de trabalhos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, estava inscrito para um outro efeito, mas creio que era interessante que pudéssemos, por uma questão de arrumação, de coerência, e de congruência até dos trabalhos, ver provisoriamente encerrado este aspecto da abordagem da questão, que me parece bastante impor-
Página 989
1 DE SETEMBRO DE 1988 989
tante, para passarmos ulteriormente a algumas das outras questões que se encontravam em aberto, e relativamente às quais o interlocutor mais relevante é aquele que propõe o que propõe - refiro-me ao PS -, em termos que nos merecem grande preocupação.
Aliás, como o Sr. Deputado Pacheco Pereira já se disponibilizou voluntariamente a dar resposta a questões suscitadas, eu prescindo de intervir.
O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - A resposta consiste apenas num breve comentário, uma vez que não irei, evidentemente, fazer aquilo que o Sr. Deputado José Magalhães pretende que eu faça.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, gostaria de deixar consignada em acta uma observação de carácter puramente processual. É que o princípio do contraditório significa que há uma tese e que há uma antítese. Não significa que tenha de haver uma tese e uma antítese, uma nova tese e uma nova antítese, e assim continuada e indefenidamente.
As pessoas dizem o que dizem, naturalmente com toda a liberdade, no contexto das matérias que estão a ser discutidas - como tem sido feito -, e gostaria que não se instalasse o princípio de ser necessário dizer a última palavra, porque nunca será a última, e a palavra dita cronologicamente em segundo lugar não é necessariamente superior ou inferior à que é proferida em primeiro lugar.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, tem que ser aplicada essa pedagogia ao Sr. Deputado Pacheco Pereira.
O Sr. Presidente: - Estou a aplicar uma pedagogia erga omnes.
Dito isto, dou a palavra ao Sr. Deputado Pacheco Pereira.
O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - Estimo, evidentemente, ter visto o trabalho de casa que os Srs. Deputados do PCP fizeram e a abundante documentação que encontraram. Como é óbvio, não lhes vou responder, porque se trata de uma interpretação acerca de factos. Emiti essa interpretação, referindo-me às alterações propostas no que respeita a este artigo da Constituição, e os Srs. Deputados responderam-me fazendo a sua própria interpretação.
No entanto, devo dizer-lhes, e para que fique registado em acta, que não só a interpretação de muitos factos é, ela própria, insuficiente e muito precária do ponto de vista científico, como nalguns casos - refiro-me, por exemplo, à intervenção inicial do Sr. Deputado Lino de Carvalho e a alguns dos elementos que forneceu -, os dados apresentados são errados.
Como não pretendo protelar enternamente a discussão, quem julgar terá de comparar as intervenções que fiz na última reunião e a resposta que os Srs. Deputados deram, e tirará daí as suas conclusões. Pela minha parte, nem vou, apesar de ser para isso provocado pelo Sr. Deputado José Magalhães, continuar este tipo de debate, nem, evidentemente, sinto que pelo facto de não responder ao que os Srs. Deputados do PCP afirmaram haja alguma diminuição do valor das intervenções que fiz na última reunião.
De qualquer modo, estimo ver o esforço que fizeram no sentido de tentar fundamentar as vossas posições na base de uma interpretação, que sempre considerei muito simplista, da realidade alentejana e que releva mais da ideologia do que da interpretação dos factos. Mas, obviamente, não vou continuar a discussão, seja o que for que seja dito de seguida.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, há pouco depreendi das suas palavras que V. Exa. ainda pretenderia usar da palavra a propósito do artigo 97.° antes de passarmos à apreciação do artigo 98.°, ou seja, antes de passarmos da análise do latifúndio à do minifúndio.
Certamente que o Sr. Deputado Basílio Horta pretende intervir, e terá ocasião de o fazer ao debatermos a matéria relativa ao latifúndio, ou mais adiante ... na Constituição, entenda-se.
Risos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Gostaria de sublinhar que não vou satisfazer a curiosidade, e sobretudo aquela interrogação dilemática com que o Sr. Deputado Almeida Santos encerrou a reunião da passada sexta-feira. Refiro-me, naturalmente, àquela sua pergunta, de resto veemente: o que é a posse útil?
Em relação a tal matéria, se alguém tem especiais deveres, é o Sr. Deputado Almeida Santos, pela sua participação em governos provisórios, por ter sido o Ministro da Justiça que em 1977 incumbiu uma comissão de elaboração de alterações ao Código Civil, e por tudo aquilo que ulteriormente é do conhecimento geral quanto ao seu acompanhamento da nossa circunstância política e histórica em diversos domínios, incluindo este da reforma agrária. A interrogação do Sr. Deputado Almeida Santos é puramente retórica e muito preocupante, dadas as propostas apresentadas pelo PS.
Não se trata de, ao fim de tantos e tantos anos, nos encontrarmos, como um certo personagem histórico, outra vez no início, com as mesma perguntas que foram colocadas na altura em que o próprio processo constituinte se desenvolveu, acolhendo de resto aquilo que era caminho concretizado na realidade, nos factos e na própria legislação ordinária. O Sr. Deputado Almeida Santos conheceu e terá participado, com o seu próprio punho, na elaboração ou na discussão de muitas dessas leis.
Trata-se de história que não é necessário refazer aqui, ou sequer repor. Não é possível prolongar mistificações, falhas de comprovação fáctica mas, pelo contrário, é possível demonstrar afoitamente aquilo que nos factos se processou. Nessa matéria, temos naturalmente a possibilidade da oferta do mérito dos factos e estamos também disponíveis para os discutir em qualquer circunstância, como evidenciaram as intervenções agora mesmo produzidas pelos meus camaradas Lino de Carvalho e Rogério de Brito e as mais que produziremos.
O que nos pareceu relevante e necessário foi apenas precisar ou não deixar sem réplica algumas interpretações distorcidas, e de resto oriundas de uma cartilha ideológica bem demarcada, fazendo parte de uma velha campanha odienta contra a reforma agrária. Campanha essa que, primeiro, procurou evitar que ela se realizasse, que procurou depois evitar que ela atingisse dimensões mais fundas, que ela se consolidasse para seguidamente tentar invertê-la, limitá-la, estrangulá-la. Foi contra isso que combatemos em todos os momentos, e que continuamos a combater.
As minhas interrogações vão, por isso, noutra direcção. Evidentemente que a interpretação hermenêutica
Página 990
990 II SÉRIE - NÚMERO 33-RC
constitucional corrente permitiu apurar o que fosse o conceito de posse útil. É matéria que tem sido apreciada pelos nossos tribunais, é matéria que, aliás, foi objecto de uma campanha intensíssima por parte de agrários inconformados, que em centenas e centenas de recursos e de acções procuraram junto de diversas instâncias judiciais qualificar como esbulho não titulado ou violência (susceptível de "ferir" trezentos mil princípios imagináveis) a ocupação de terras pelos trabalhadores e a sua entrega aos trabalhadores.
Digo: o Sr. Deputado Almeida Santos e os Srs. Deputados do PS que propõem a supressão do conceito é que têm o ónus da prova da "inutilidade" do actual conceito e da "maior-valia" do conceito que querem consagrar, em substituição.
Creio que devemos fazer uma démarche precisamente de sentido inverso daquele que o PS nos propõe. Devemos ter em atenção os conteúdos vigentes, dando-os como constituídos porque o são - de resto são vinculativos -, e passando pelo crivo da crítica os novos conceitos propostos.
Em primeiro lugar, hoje a Constituição assegura e impõe a devolução, em benefício dos destinatários naturais da reforma agrária, das terras apropriadas nos termos constitucionais. Obriga à expropriação, obriga a um impulso transformador e obriga a que o resultado desse movimento seja atribuído, em posse útil, a um elenco determinado de beneficiários.
O projecto do PS alarga os poderes do legislador ordinário em todas as dimensões (na eventualidade de expropriações, na dimensão daquilo que haja que entregar) e torna algo aleatório o elenco dos beneficiários. Em matéria de favor, o PS introduz uma fragilização daquilo que hoje tem um determinado conspecto na Constituição.
Por outro lado, em relação ao estatuto de que beneficiem aqueles a quem deva ser atribuída a terra, o PS também introduz um conjunto de fragilizações. Sabemos que hoje a posse útil tem, desde logo, como característica não só aquilo que é próprio de um verdadeiro direito real de gozo como algumas outras características que o PS propõe eliminar.
Assim, é ou não verdade - e é nesse sentido que interpelo o PS - que hoje a posse útil não só tem todas as características próprias dos direitos reais de gozo, designadamente no que respeita ao uso e fruição, como algumas características adicionais em relação ao próprio usufruto, uma vez que permite melhorar, transformar, acrescentar, não tendo apenas um carácter de conservação do bem adquirido, e que a proposta apresentada pelo PS permitiria a construção de figuras no terreno do direito ordinário mais frágeis do que esta?
É ou não verdade que entre os direitos ou apanágios próprios deste direito real novo estão alguns que permitem defendê-los, nomeadamente através dos diversos tipos de acções possessórias, mas com o cunho jus-publicístico decorrente do facto de se tratar de uma figura em que os trabalhadores têm um determinado estatuto, o qual é profundamente inovador e que seria banalizado ou assimilado a um estatuto geral no caso de se seguir a via que o PS propõe?
É ou não verdade que as obrigações dos trabalhadores face a esta fórmula, designadamente a obrigação de não arrendar, a obrigação de um contacto directo ou de uma imediação com o bem se perderiam
na figura nova que o PS pretende instituir? A figura do PS tem de nova, pura e simplesmente, o facto de ser o regresso da figura velha da posse civil.
Quais seriam os apanágios e meios de defesa que tal direito, com o estatuto que o PS imagina para ele, teria?
A questão suscitada pelo projecto do PS é, porém, bastante mais funda que tudo isto. Devo dizer que, seja qual for o conceito que o PS tenha da posse útil (e o PS sabe perfeitamente em que é que ela consiste!) a questão que o seu projecto suscita é, sobretudo, decorrente de saber o que é que, nos seus termos, se distribui, o que é que permite atribuir. A discussão da proposta do PS em torno do conceito de posse útil seria uma discussão sedutora mas enganosa se não tivéssemos em atenção que, antes de discutirmos como se atribui e com que estatuto se atribui temos que saber o que é que se atribui.
Ora, sucede que o PS não garante devidamente que se atribua a terra a quem a trabalha. Segundo aspecto, da maior importância, em relação ao qual o PS também não nos deu uma resposta cabal: quais seriam as consequências da aplicação deste novo quadro constitucional em relação ao statu quo? Esta é uma pergunta absolutamente fundamental.
Consideramos significativo que, colocado perante aquilo que chamámos o "teste dos pacotes", o Sr. Deputado Almeida Santos não tenha adiantado qualquer resposta, e tenha feito uma espécie de dualização perversa do debate ao dizer que "o pacote se discute em sede de pacote e que a revisão se discute em sede de revisão". Eis alguma coisa que não é possível, na medida exacta em que, se através destas propostas se fragilizar o quadro constitucional, então dar-se-á cobertura constitucional aos pacotes, nomeadamente à destruição da reforma agrária.
Creio que este segundo bloco de questões é absolutamente fundamental: quais seriam as consequências práticas da aplicação de uma proposta como aquela que o PS apresenta? O Partido Socialista não pode autodesresponsabilizar-se em relação a este efeito de enxurrada!
O raciocínio que o PS coloca nesta matéria é um raciocínio do tipo abstracto, jurídico-formal. Diz-nos que se deve alterar o quadro constitucional neste ponto, deve-se alterá-lo por forma que ele possa ser objecto de concretizações em função de programas de Governo e de políticas agrícolas; essas políticas devem ser as que decorrem do sufrágio; o quadro constitucional deve ser suficientemente flexível para comportar todas essas políticas. Pergunta-se: incluindo a de reconstituição do latifúndio? Esta é a pergunta que se impõe, e o PS não pode alhear-se desse efeito fundamental.
Se este quadro constitucional, proposto pelo PS, com as "virtudes" que lhe são atribuídas, permite que uma política como a que está em curso e que tende aberta e brutalmente à reconstituição do latifúndio seja efectivada impunemente, e mais ainda, lhe dá cobertura constitucional, então a discussão do pacote agrário neste momento tem de ser ligada à discussão que aqui está a ser travada em sede de revisão. Deve ser ligada por imperativo de transparência, de congruência, de coerência. Pela nossa parte, não teremos duas posições, uma em relação ao pacote e outra em relação à revisão constitucional!
Insisto: gostaria de perguntar ao Sr. Deputado Almeida Santos, uma vez que assumiu a defesa da proposta do PS nos termos em que se encontra concebida,
Página 991
1 DE SETEMBRO DE 1988 991
que efeito é que lhe parece que ela é susceptível de ter em relação à vida normal e ao desenvolvimento de estruturas como as unidades colectivas de produção, com a conformação, o estatuto e o concreto enquadramento que têm no presente quadro político, social e económico.
O PS proclama, abstractamente também, a necessidade da compatibilização entre formações, proclama, também, abstractamente a necessidade de existência de entidades que se movem no sector público, no sector privado e no sector social. Mas que garantias é que estabelece de que em cada um destes sectores haja criaturas vivas com possibilidade de se moverem? A proclamação de sectores abstractamente existentes é inteiramente inútil, para não dizer apenas trompe-l'oeil! A confirmar-se, isso seria extremamente grave politicamente.
São estes, Sr. Presidente, os três planos em que cremos que a questão deveria ser debatida: por um lado, o plano da desvitalização de virtualidades que a Constituição na sua redacção actual contém e que têm sido objecto do assalto, anos a fio, por diversas forças que à reforma agrária se opuseram, tal como se opunham antes do 25 de Abril, com uma coerência que se percebe: trata-se, para esses sectores retrógrados, de impedir uma forma de apropriação da terra capaz de permitir determinadas formas de evolução e determinados benefícios para os trabalhadores. Trata-se de um projecto político que tem uma matriz que conduziu a resultados desastrosos em Portugal no passado e que conduziu, nestes anos, a resultados que não são menos desastrosos e aos quais nos opusemos.
O segundo ângulo de observação para nós fundamental é, repito, o teste dos pacotes: esta proposta poderia ter o alcance de legitimar legislação que, neste momento, não tem legitimidade absolutamente nenhuma e que é fundamental continuar a não ter.
Em terceiro lugar, como é que o PS encara os efeitos práticos da aplicação de um ordenamento deste tipo, designadamente quanto à vitalidade de estruturas resultantes do próprio processo de transformação de relações agrícolas decorrentes do 25 de Abril? Ou também em relação a isso nos pergunta "o que são UCPs?".
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Lino de Carvalho.
O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - Sr. Presidente, pretendia apenas reafirmar em relação àquilo que o Sr. Deputado Pacheco Pereira referiu, que as posições que trazemos procuram ser sustentadas, demonstradas, coerentes, não sendo meras posições sustentadas em slogans ideológicos que se vão contradizendo de época em época, consoante o quadrante em que nos situamos. Por exemplo, quando o Sr. Deputado Pacheco Pereira na última reunião deixou implícito que os trabalhadores da reforma agrária se oporiam à sua integração em cooperativas e prefeririam a distribuição individual das terras, esquece-se que ainda em 1981 escrevia exactamente o contrário. Dizia então que "há dezenas de anos que toda a gente sabe que os trabalhadores nunca lutaram pela divisão das terras".
O Sr. Pacheco Pereira (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)
O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - A nossa opção é coerente, sustentada e não uma posição que vá vogando ao sabor da história e das nossas conveniências políticas e partidárias.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Fiz a despesa da conversa na última reunião, tendo sido de todos os deputados aquele que jogou menos à defesa e tinha o direito de ser hoje um pouco poupado. Mas é tal o apreço que tenho pelas intervenções do Sr. Deputado José Magalhães que não posso deixar de lhe responder minimamente, aliás como ao Sr. Deputado Lino de Carvalho. Porém, devo dizer que não estou disposto a entrar neste eterno retorno de repetir os mesmos argumentos, voltar atrás e tocar de novo. A reforma agrária é a menina dos vossos olhos, não é a menina dos nossos. Há que relativizar o valor das coisas. A reforma agrária tem maior cotação para vós do que para nós. E, se bem que também tenha valor para nós, em muitos aspectos tem um valor negativo.
O Sr. Deputado Lino de Carvalho diz que falamos apenas em redimensionamento, perguntando onde é que nessa medida está a produção, a dimensão da produção ou da baixa produção do latifúndio. Do vosso ponto de vista, isso seria redutor. Lembro-lhe uma vez mais que falamos na dimensão excessiva da propriedade ou das explorações em função dos objectivos da política agrícola, não se podendo ajuizar sobre a nossa proposta divorciada desses objectivos, que mantemos qua tale no artigo inicial. Chamamos-lhes objectivos da política agrícola, deixando-se no n.° 2 de falar em reforma agrária. Porém, os objectivos são praticamente os mesmos e a única alteração que propomos é insignificativa. Entre esses objectivos está a racionalização das estruturas fundiárias, não se podendo entender "racionalização" apenas no aspecto dimensional, mas também no que se refere ao aumento da produção e da produtividade. É, portanto, em função destes valores que falamos em dimensão excessiva. Mas também lhe digo que, nesse aspecto, a actual Constituição não vai muito mais longe, estabelecendo que a lei fixará os limites máximos. A Constituição diz o mesmo que nós propomos, com a diferença de nem sequer cometer à lei essa fixação em função dos valores que são objectivos da política agrícola.
Quanto à questão da posse útil, gostei imenso de ouvir os Srs. Deputados José Magalhães e Lino de Carvalho. O que é que me disse o Sr. Deputado Lino de Carvalho? "Conceito de posse útil? O José Magalhães vai dizer como é. Mas há vasta jurisprudência!... Há vasta doutrina!... É um direito..." Nunca duvidei de que fosse um direito sobre os bens do Estado para exploração directa, e é claro que é um direito real de gozo. Mas é um direito de exploração empresarial? Pode ser ou não ser - a meu ver esse aspecto não está no conceito -, mas é um direito de exploração. Nunca pus isto em causa e continuo sem saber, após essa sua explicação, o que seja a posse útil. Porque as características que referi são comuns a toda a posse. E eu sei
Página 992
992 II SÉRIE - NÚMERO 33-RC
o que é a posse tout court mas, desculpar-me-á o Sr. Deputado Lino de Carvalho, não deu nenhum contributo para o meu esclarecimento sobre o que seja a posse útil. No entanto, podia ser que o Sr. Deputado José Magalhães desse. E o que veio fazer o Sr. Deputado José Magalhães, normalmente tão sábio, tão generoso a explicar e a fundamentar as coisas? Eu - lembrou - que passei por todos os governos provisórios menos o quinto, que fiz a reforma do Código Civil e tantas leis onde estes problemas foram discutidos, para quê esta preocupação retórica e preocupante, para que alimento esta preocupação preocupante? Diz o Sr. Deputado José Magalhães: "Ofereço o mérito não dos autos mas dos factos." Oferecerá. Mas se pensa que sei o que é a posse útil, e finjo que não, engana-se. A minha ignorância é crassa, responsável, lamentável e inexplicável: um jurista tão sofrível como porventura serei, e sem saber o que é a posse útil! A verdade é que não posso dizer que sei aquilo que não sei. Porque repare: eu não estive na Constituinte, andava a fazer a descolonização. E nem no Código Civil, nem em leis pelas quais eu fui responsável, se aflorou a ideia de posse útil. O que é que distingue a posse útil da posse tout court, o que é que a torna útil, porventura em contraposição à inutilidade da outra posse? Não sei se a outra é inútil ou se tem alguma utilidade ou qual seja a específica utilidade que distingue uma posse útil de outra ainda mais útil. E digo-vos mais: certa vez, o Dr. Mário Soares não pôde ir cumprimentar o Presidente da Jugoslávia quando este cá esteve, tendo eu tido de me levantar às 7 da manhã para o ir cumprimentar. E estive a falar com o Presidente da Jugoslávia hora e meia porque a certa altura da conversa vieram à baila os conceitos de posse útil e de propriedade social. Perguntei-lhe quem era o titular da propriedade social e ele respondeu-me: "Pois é... Os juristas discutem isso." E eu disse-lhe: "Nós temos jogado com esses conceitos, em parte bebidos na vossa doutrina mas eu, sinceramente - e disse-o com toda a franqueza e modéstia com que o disse ao Sr. Deputado José Magalhães -, não sei o que seja a posse útil." Ou o Presidente da Jugoslávia não me soube explicar ou então fui inábil ao ponto de não entender a explicação. Mas percebi que ele também não entendia muito bem o que fossem a posse útil e a propriedade social!...
E sinto a necessidade de saber tão bem o que seja a posse útil como sei o que é a posse tout court, não útil, ou inútil, não sei bem. Como sei o que é a propriedade e, enquanto assim não for, continuarei a afirmar que ignoro o significado desse conceito. E da explicação do Sr. Deputado José Magalhães, que oferece o merecimento dos factos, como poderei extrair uma lição da doutrina ou uma conclusão doutrinária? O que eu ponho em causa é a distinção doutrinal entre a posse útil e a posse tout court, não útil, ou também útil, como disse há pouco. Será a posse das UCPs? Será a posse das cooperativas? Mas o que é que distingue essa posse da posse normal, salvo quanto ao titular que, como é óbvio, é diferente, e quanto ao facto de os objectivos com que o titular possui serem diferentes? A natureza jurídica dessa posse é juridicamente diferente da posse normal? Ainda ninguém me elucidou sobre esta questão.
Parece que existe jurisprudência. Pois existe: existem esforços valorosos para tentar explicar alguns conceitos da Constituição que vieram inovar relativamente ao nosso direito tradicional. Eu é que, já sem emenda, ainda me movimento nos quadros do direito romano, sou demasiado velho, o que eu hei-de fazer? Certo é que continuo sem entender o que é a posse útil e penso que', quando dizemos "entrega a título de propriedade ou de posse", enriquecemos o texto constitucional na medida em que "posse", sem qualificativo, é pelo menos uma posse que abrange todas as formas de posse, a normal e a útil. E eu compreendo por que é que o PCP se opõe à entrega em propriedade, embora o Sr. Deputado José Magalhães não me tenha explicado. Mas não vale a pena discutirmos isso. Porém, consideramos que enriquecemos o texto constitucional indo até ao extremo liame do explorador à coisa explorada, valor que foi referido pelo Sr. Deputado José Magalhães, porque, ao que parece, nas nossas propostas comprometíamos essa ligação directa. No entanto, haverá maior ligação do que aquela que existe entre o proprietário e a propriedade? Certamente não há. Poderá não ser recomendável de outros ângulos e de outros interesses, mas não há dúvida de que o maior liame é o do proprietário à sua propriedade, e ninguém me convence do contrário.
Disse que nos cabe o ónus da prova da inutilidade do conceito. Para mim, o ónus da prova é fácil, pois, desde que eu desconheço o que seja a posse útil, o conceito é para mim inútil. Se me explicarem que temos de manter na Constituição este conceito, pois caso contrário acontece uma certa desgraça, muito bem. Todavia, qual seja essa desgraça, ninguém me disse ainda. E penso que, se estabelecermos aqui "posse" ou "propriedade", fá-lo-emos em termos que todos entendam.
Passe à critica dos conceitos novos propostos, diz o Sr. Deputado José Magalhães. Mas, Sr. Deputado, não posso criticar aquilo que não entendo e a maior crítica que lhe posso fazer é a de que ao fim de todos estes anos continuo opaco ao ponto de ainda não ter entendido o que é a posse útil. E ainda agora não tive o prazer de ser esclarecido.
Por outro lado, como é que aparece na Constituição a eliminação dos latifúndios? Como instrumento em segunda linha da realização de um objectivo da política agrícola. No artigo 96.° refere-se que a política agrícola tem como objectivo promover a melhoria da situação dos agricultores através da transferência progressiva da posse útil. Depois, no artigo seguinte estabelece-se que a transferência de posse útil da terra será obtida através da expropriação dos latifúndios e que as propriedades expropriadas serão entregues para exploração, etc.. Consequentemente, temos que a eliminação dos latifúndios é um elemento de segunda linha para realizar um objectivo e não um princípio de política económica. E, inclusivamente, nas próprias incumbências prioritárias do Estado, fala-se apenas em realizar a reforma agrária.
Pergunta o Sr. Deputado José Magalhães se não se perderia o contacto directo como bem. Pensa que, sendo-se proprietário, se perde o contacto directo com o bem, ou que, sendo-se possuidor tout court, se tem menor contacto com o bem do que o que tem o possuidor em posse útil? Só que - repito - eu não entendo o que seja posse útil. Diz-me também que sabe perfeitamente o que é a posse útil. Com essa questão embaraça-me, na medida em que me coloca na situa-
Página 993
1 DE SETEMBRO DE 1988 993
ção de ter de lhe responder que não sei, que sou ignorante e que o Ser não me iluminou! Se, como julgo, é disso capaz, não quis! Leio as constituições da Europa das Comunidades e não vejo lá posse útil nenhuma; leio a doutrina europeia e só vejo referir a posse. De facto, na Jugoslávia, e não só, existem textos que falam em posse útil. Mas penso que talvez não seja esse o paradigma, sobretudo agora que fazemos parte das Comunidades.
"O que há para atribuir? Não se trata apenas do problema de como atribuir?", pergunta ainda o Sr. Deputado José Magalhães. E eu respondo: agora, como antes, o que há para atribuir será regulado por lei. Estabelece a Constituição actualmente em vigor, no n.° 9 do artigo 97.°, que "as operações previstas neste artigo" -ou seja, a transferência da posse útil e a expropriação- "efectuam-se nos termos que a lei da reforma agrária definir e segundo o esquema de acção do Plano". Não há nenhuma cronologia, não há nenhum limite aos limites da propriedade, não se estabelece a partir de que área ou de que número de pontos se considera existir o latifúndio. A Constituição deixou esse aspecto para a lei ordinária, tendo nós feito o mesmo ao dizer que "o redimensionamento das unidades de exploração agrícola [...] será regulado por lei". Porém, nós remetemos esta incumbência para a lei para realização, uma vez mais, dos objectivos da política agrícola. Assim, sinceramente não creio que se justifiquem nem as preocupações nem as reprimendas do PCP.
Diz-me também que não dei resposta ao texto dos pacotes mas que, pelo contrário, lhes damos cobertura. Devo dizer que nós revimos a Constituição a pensar no País e não nos pacotes. Mas provavelmente o Sr. Deputado José Magalhães e o seu partido vão ter alguma decepção quando a actual proposta de lei de reforma agrária do actual Ministro -e acredite que vou criticá-la porque é uma má lei, porque não gosto dela e porque está errada- aparecer no Tribunal Constitucional, se chegar a ser esse o caso, para aí se ajuizar da sua constitucionalidade ou inconstitucionalidade. Veremos quantas inconstitucionalidades nela serão encontradas e declaradas. Depois veremos se é a nossa proposta de Constituição que constitucionaliza a proposta deste Governo ou se ela, apesar de má, não é, apesar disso, tão inconstitucional como se pretende. Porque já hoje a Constituição é lacunosa na defesa de valores que o vosso partido considera essenciais no domínio da reforma agrária.
Pergunta-me também que consequências práticas poderá ter a nossa proposta. Direi que qualquer governo que queira realizar uma reforma agrária, tal como hoje é prevista pela Constituição, continuará a poder levar a cabo essa política. E que qualquer Governo que não queira prosseguir essa política não a prosseguirá, tal como já hoje acontece com este Governo. Não se julgue que é a Constituição que impede o Governo, se este quiser continuar a fazer a política que vem fazendo. Diz-nos que não podemos desresponsabilizar-nos. Não queremos desresponsabilizar-nos. Nós assumimos as nossas responsabilidades, embora reconheçamos que entre a paixão com que o PCP defende a reforma agrária e a serenidade com que nós a corrigimos, vai na verdade uma grande distância. E não vale a pena zangarmo-nos por isso, pois os nossos projectos políticos não são iguais e os nossos
projectos económicos são profundamento divergentes. Que havemos de fazer senão constatar as consequências desta realidade? É claro que poderíamos dizer que o PCP não pode desresponsabilizar-se - como, aliás, nenhum governo até hoje - pelos resultados práticos negativos da realização da reforma agrária. Pergunta-me: inclui ou não a nossa proposta a reconstituição do latifúndio? Não! Basta que o legislador ordinário diga "acima de x hectares é latifúndio, deve ser expropriado".
Pergunta-me também quais os reflexos sobre as UCPs e que garantias têm? As mesmas de hoje. Que garantia têm actualmente as UCPs que não tenham na nossa proposta? Continuam a ter o favor que têm os pequenos e médios agricultores, sós ou organizados em cooperativas ou em unidades colectivas de produção. Alterámos porventura algum desses aspectos, por menos entusiastas que sejamos acerca das UCPs? Não somos, mas respeitamos essa realidade e até admitimos que ela possa vir a ter no futuro uma expressão mais positiva do que teve no passado.
Perguntou-me ainda o que são afinal as UCPs. Lamento muito estar a decepcionar-vos mas, a esta questão, responderei igualmente que não sei, que juridicamente também não sei o que sejam. A minha ignorância é assim desmedida!... Devo dizer que num dos governos de que fiz parte apareceu um projecto de estatuto de regulamentação de lei das UCPs. No fundo uma lei consagrando um novo tipo de sociedade. Li o projecto e limitei-me a perguntar se julgavam assim tão fácil encontrar um quarto ou quinto tipo de sociedade. Por que é que não há também um tipo de sociedade chamado "sociedade em autogestão"?
Penso que o PCP, na medida em que continua ansioso por, de algum modo, ser o defensor oficioso de um certo imobilismo em matéria de reforma agrária, uma espécie de tutor da área, pode estar a mover-se ao arrepio dos seus próprios interesses. Vou dizer porquê.
Não sou optimista sobre o futuro da agricultura no Alentejo, com reforma agrária ou sem reforma agrária, esta ou qualquer outra. O melhor é tomarmos consciência de que o Alentejo é um problema de difícil solução. O Alentejo, além de todas as suas deficiências estruturais, em parte corrigidas pela reforma agrária, só produz, ou produz predominantemente, aquilo que é excedentário na CEE. O que vai acontecer é que a CEE porventura vai estimular que se deixe de cultivar no Alentejo aquilo que se cultiva, nomeadamente cereais. Se assim for, a desertificação do Alentejo tenderá a acentuar-se de duas formas: através da tentação de receber o subsídio que a CEE oferece para se não cultivar aquilo que é excedentário, da venda, pelo preço possível, àqueles que poderão tirar do Alentejo as vantanges que outros não tirarão e que serão as fábricas de celulose e os industriais da cortiça. Esta é, porventura, uma perspectiva pessimista e gostaria de não ter razão. Sou um entusiasta, sempre o fui, da irrigação possível do Alentejo. Do Alqueva e não só. Sei que nem toda a gente me acompanha neste entusiasmo, que também terá contra-indicações. Mas, para mim, o Alentejo, apesar de árido, tem os mesmos 30% de terreno irrigável que tem o resto do País. Se nós conseguirmos irrigar esses 30%, o Alentejo será salvo. Se
Página 994
994 II SÉRIE - NÚMERO 33-RC
não, não é esta nem nenhuma outra reforma agrária que vai salvar o Alentejo de ter no futuro dificuldades crescentes relativamente às que teve no passado.
Muito obrigado pela paciência de VV. Exas.
Falei de mais.
O Sr. Presidente: - Tenho inscritos os Srs. Deputados José Magalhães, Basílio Horta, Rogério de Brito, e agora também V. Exa., Sr. Deputado Almeida Santos.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Creio que, se usarmos agora o mesmo código pelo qual nos temos regido, adoptando nesta matéria uma mistura entre a pergunta e o comentário e embrincando as duas coisas, isso satisfará a necessidade que tinha de colocar algumas questões e simultaneamente procurar adiantar algumas respostas. Não sei se o Sr. Deputado Basílio Horta achará esse estatuto menos aceitável, é aquele que nós temos praticado, suponho apenas que o obrigará a alguma espera adicional.
Creio que nesta matéria haveremos de ter, nós, PCP, todos os receios menos o de sermos defensores da reforma agrária, defensores oficiosos que seja. Não conceberíamos é sermos defensores oficiosos do contrário. Não posso deixar de manifestar alguma inquietação pelo facto de ver a satisfação com que os Srs. Deputados do PSD encaram este debate da maneira como ele está a ser encaminhado.
Entretanto, assumiu a Presidência o Sr. Vice-Presidente, Almeida Santos.
O Sr. Presidente (Almeida Santos) - Vão votar a favor das nossas propostas e isso é bom.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Pela nossa parte não poderíamos fazer de outra forma. O facto de o Sr. Deputado acabar de dizer, mais uma vez, que está convicto de que o PSD votara a favor da proposta do PS, e que isso é "bom" (sic), apenas nos causa preocupação adicional, porque quer dizer que o PS é insensível às nossas (e não só nossas!) inquietações...
O Sr. Presidente: - Queria que eu lhe dissesse que era mau votarem a favor das nossas propostas?
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, queria que ao menos dissesse - mas talvez seja algo que V. Exa. e o PS considerarão excessivo - que algumas das inquietações, interrogações e problemas que aqui trouxemos são merecedores de atenção e discussão, e que podem conduzir a reconformações e alterações dos articulados, tal como outras críticas do PCP conduziram a promessas ou propostas de reconformação e rearticulação de textos do PS relativas a outras partes da Constituição. Não sei por que é que as nossas propostas hão-de ser susceptíveis de revisão, de reponderação, de correcção, de reajustamento, em tudo mas tudo, excepto em reforma agrária.
O Sr. Presidente: - É que, nesta matéria, o PCP não tem propostas.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não percebo. Eu digo nossas propostas aludindo ao conjunto das apresentadas pelos partidos com assento na Assembleia da República. Nós, PCP, em concreto, é óbvio que não temos propostas nesta matéria.
O Sr. Presidente: - Não têm propostas.
O Sr. António Vitorino (PS): - É que aqui a demonstração não foi feita. A demonstração da necessidade de alterarmos a nossa proposta não foi feita. Noutros casos fizeram-na, é essa a diferença.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas então pior ainda, Sr. Deputado António Vitorino. É grave que o PS, face ao resultado deste apuramento, aliás provisório, do debate conclua apenas que "não foi feita" a demonstração do ponto de vista contrário nem qualquer coisa que leve o PS a dizer: "Bom, temos que pensar melhor." Considera, portanto que o PS não tem nada que pensar: o que haveria que pensar está pensado e que o que está pensado é o que está articulado e que o que está articulado é para valer, e para valer até ao último dos pontos.
Da nossa parte é óbvio que não pode haver aceitação dessa postura. Apenas podemos lamentá-la, criticá-la e lutar pelos meios adequados pela sua alteração. Creio que é uma postura muito perigosa. O que mais me impressionou na démarche argumentativa que o Sr. Deputado Almeida Santos desenvolveu foi o facto de ser toda plasmada na mesma matriz: a desvalorização implícita ou pressuposta do próprio conteúdo constitucional originário e revisto de 1982 sobre a reforma agrária. Dir-se-ia, ouvindo o Sr. Deputado Almeida Santos, que toda a barganha dos últimos anos é desprovida de sentido, tudo não passaria de um equívoco. A luta dos trabalhadores e a sua resistência, a ofensiva dos agrários nas suas diversas dimensões, o monumental processo de afrontamento que passou por escândalos brutais em curso ainda neste momento junto de tribunais, incluindo tribunais superiores - tudo isso teria assentado num equívoco. Afinal de contas V. Exa. tira o regaço com toda a tranquilidade que a eliminação dos latifúndios, "nem é" um princípio constitucional!
O Sr. Presidente: - Mas é que não é. Demonstre que é, se acha que pode!...
O Sr. José Magalhães (PCP): - "Nem é" um limite material de revisão ...
O Sr. Presidente: - Mas demonstre que é.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Nós "nem conhecemos" o artigo 290.°! Este artigo "nem fala" na eliminação dos monopólios e dos latifúndios! Isso "não tem" o mínimo significado, "não é" declarativo de coisa nenhuma. A Constituição é imune ao antilatifundismo, "nem fala" de eliminação obrigatória dos latifúndios.
O Sr. Presidente: - Eu produzi uma argumentação de texto. Eu respeito a sua argumentação se for melhor que a minha. Não tenho culpa é de que ainda não tenha surgido essa argumentação. Por que hei-de mudar a minha opinião se ainda não vi argumentos melhores que os meus?
Página 995
1 DE SETEMBRO DE 1988 995
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, quer V. Exa. reeditar todo o debate sobre, não apenas o artigo 290.°, mas a construção da vertente ou do vector antilatifundista da Constituição nas suas múltiplas expressões, múltiplas na sua parte geral, múltiplas na organização económica especificamente, múltiplas inclusivamente nesse elemento sumarizador da Constituição que é o próprio artigo 290.°?
O Sr. Presidente: - O que eu quis significar foi isto: o PCP pode com alguma lógica argumentar que a apropriação colectiva dos principais meios de produção é não só um princípio mas uma obrigação constitucional, a partir de um certo entendimento histórico da Constituição. Se esquecermos todos estes doze anos em que ninguém apropriou coisa nenhuma, tem esse direito.
O Sr. José Magalhães (PCP): - E não só, decorre do artigo 80.°
O Sr. Presidente: - Não é a mesma coisa relativamente aos latifúndios. Leia, distinga e veja que não é. Relativamente aos latifúndios, é uma faculdade já hoje, e como faculdade continua na nossa proposta. Um governo que queira expropriar os latifúndios expropria, um governo que não queira expropriá-los não os expropria.
O Sr. José Magalhães (PCP): - É evidente que, se introduzirmos aqui, por apenso, a discussão sobre o que é uma Constituição dirigente, é necessário aí oferecer o mérito da tese do meu camarada Gomes Canotilho. Quer V. Exa. isso? É evidente que entraremos numa discussão, aliás extremamente interessante sob o ponto de vista jurídico-constitucional, sobre qual seja a diferença entre uma mera faculdade constitucional e uma verdadeira e própria obrigação constitucional em que o legislador e os órgãos de soberania têm sempre uma determinada margem de determinação que lhes pode permitir marcar os ritmos, marcar até o se, em determinado momento, mas sem que fiquem isentos da vinculação, nem se torne o impulso transformador numa realidade fenecida ou irrelevante. E estabelecer a diferença entre isto e uma faculdade é coisa que se faz em direito constitucional. Pode não querer fazer-se politicamente, pode querer ignorar-se politicamente para atenuar a gravidade de uma determinada alteração de posição.
O Sr. Presidente: - Eu não quero passar por inocente.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas, por demais, faz-se tal!
O Sr. Presidente: - Não quero desresponsabilizar-me. Quero que saiba que a nossa convicção é que a eliminação dos latifúndios não é, na Constituição actual, uma obrigação igual à apropriação colectiva dos principais meios de produção. Mas, se for, assumimos que deixe de ser. Assumimos conscientemente que, se é uma obrigação, deve passar a ser uma faculdade.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, não Sr. Deputado Almeida Santos. Isso é fundamental porque queremos clarificar. É isso que nos parece acima de tudo inquietante, porque, quanto à demonstração das dimensões e da existência da obrigação constitucional, a questão fica secundarizada quando V. Exa. acaba por dizer que, "qualquer que seja o saldo desse debate", é entendimento do PS alterar a Constituição nesse ponto...
O Sr. Presidente: - É.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Com o que dá um impulso perverso ao debate, por vontade política.
O Sr. Presidente: - Perverso, na sua opinião. Mas perverso é o imobilismo.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Perverso, sim, na opinião do PCP, não na do PS ou pelo menos de muitos de VV. Exas. Esse é um primeiro aspecto em que acabou de clarificar, mais ainda, aquilo que nos parece ser um dos aspectos mais preocupantes da posição do PS nesta matéria.
Devo dizer que nem o Sr. Deputado Rui Machete foi tão longe quando num artigo doutrinal que nós aqui há dias zurzimos (e o PS também, justamente, zurziu) a teoria da "caducidade" dos limites materiais da revisão, incluindo o respeitante à reforma agrária. O Sr. Deputado Almeida Santos consegue ir mais longe: sustenta agora a teoria da "inexistência originária" do limite da eliminação do latifúndio. É mais difícil ainda de provar!
O Sr. Presidente: - Se for defensável, por que não? O problema é saber se os meus argumentos valem ou não. O problema é só esse.
O Sr. José Magalhães (PCP): - O problema não é esse. É que tudo isso me parece da maior gravidade. A démarche do Dr. Rui Machete é sedutora, percebe-se. Tem apenas um problema que o Sr. Deputado António Vitorino aqui sublinhou fortemente - sustentar a possibilidade de costumes contra constitutionem: é criar verdadeiramente a arma atómica, é preparar a derruição do edifício constitucional. A partir do momento em que se abra essa porta, essa entrada, o edifício constitucional não tem estatura, não tem espessura, não tem estabilidade. Já não é revisão constitucional permanente: é a derruição constitucional permanente, geral, à margem de qualquer mecanismo de controle. O Sr. Deputado Almeida Santos fez uma démarche que é, em termos jurídico-constitucionais, em termos de hermenêutica, e em termos políticos, também de gravidade igual ou quiçá superior, porque é uma espécie de ilegitimação originária de um pilar da protecção constitucional da reforma agrária por inexistência do respectivo princípio protector no artigo 290.°!
O Sr. Presidente: - Mas eu argumentei; os argumentos podem não prestar, discuta os argumentos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, não gostaria de penalizar-lhe a paciência além dos argumentos. Neste caso concreto a questão é, acima de tudo, política e são políticos os vossos argumentos. O PS diz, por exemplo: "Estas normas sobre reforma agrária têm de sair. Pensemos no País!" Parece-me um mau argumento. Considero-o extrema-
Página 996
996 II SÉRIE - NÚMERO 33-RC
mente indemonstrado, para usar uma expressão que ainda há pouco era cara ao Sr. Deputado António Vitorino. E indemonstrado por isto: é que o PS teria e terá de fazer prova de que, em relação a esta questão, é essa a solução nacionalmente relevante e sobretudo que acham que aquilo que a própria reforma agrária entende, pensa e exprime nesta matéria é irrelevante e deve ser sacrificado. É essa a demonstração que tem que fazer, que essa parte do País não tem nenhuma razão, que deve ser destruída e que o PS está de acordo com essa destruição.
O Sr. Presidente: - Tal como V. Exa. tem de fazer a demonstração de que é do interesse de um país integrado na CEE que em matéria de reforma agrária não se mexa nem com uma flor. Também tem de demonstrar isso, não somos só nós que temos de demonstrar. A vossa atitude é uma atitude como outra qualquer. Nós queremos alterar aquilo que entendemos dever ser alterado; o PCP acha que deve ser mantido tudo o que está; demonstrem que é esse o interesse do País, que a reforma agrária teve um êxito espectacular, que, estando nós na Europa, é excelente termos a reforma agrária que temos. Que é preciso que os resultados da reforma agrária sejam estes e continuem a ser estes ou então possam ser melhorados com a actual reforma.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, aceitamos esse desafio e entendemos que é possível fazer a demonstração de que, face à situação comunitária, face à realidade nacional, face à nossa história, neste momento é imprescindível evitar uma situação como aquela que o PS pretende viabilizar. Consideramos nefasto que em nome de uma suposta "pacificação" se recue ao ponto de não prever, como sucede em outros países comunitários em que não houve 25 de Abril nenhum, a própria proibição da manutenção de terrenos abandonados, legitimando assim formas de exploração da terra com aspectos de canga social, política e económica brutais. É isso que o PS, na ânsia de suprimir aquilo que considera um abcesso, esquece.
Faz assim um recuo que pode conduzir a consequências desastrosas. Deixa também sem resposta a nossa objecção sobre a cobertura que assim dá aos pacotes. Limita-se a dizer: "Nós, PS, revemos a Constituição não a pensar nos pacotes."
O Sr. Deputado Almeida Santos é temerário quando nos diz que vamos ter "alguma decepção" quando virmos o impacte que tem esta operação do PS...
O Sr. Presidente: - Não é o impacte, é o juízo sobre a constitucionalidade desta proposta de lei do Governo. Terei oportunidade de a criticar, o problema é de saber qual o juízo sobre a constitucionalidade dela.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Logo veremos. Mas não debilitemos entretanto o quadro vigente...
O Sr. Presidente: - Descanse que eu vou tentar demonstrar que ela tem todas as inconstitucionalidades que possa ter, vou tentar. Mas eu próprio estou convencido de que a Constituição de hoje não defende a reforma agrária de uma má lei.
O Sr. José Magalhães (PCP): - A nossa posição sobre isso resume-se em dois pontos. Primeiro aspecto: creio que o PS irá ter alguma decepção ou arrisca-se a ter alguma decepção se for conhecida e quando for conhecida a sua posição pública sobre esse aspecto.
Em segundo lugar, quanto ao facto de a Constituição...
O Sr. Presidente: - Há uma coisa que lhe quero dizer sobre isso: com bastante surpresa minha e talvez sua, os votos no Alentejo saltam do PCP para o PSD. Tire o meu amigo as conclusões que quiser.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Tiro seguramente a conclusão de que não nos cabe liquidar a reforma agrária!
O Sr. Presidente: - Não creio que o PSD mereça menos críticas do que o PS, isto do seu ponto de vista. Ele é que tem embolsado os votos, não somos nós. Talvez deva tirar daí alguma conclusão. Não vamos entrar nisso.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não tiro, seguramente, a sua conclusão nem sobre transferências de voto nem quanto às razões das transferências de voto. Não admito que a conclusão seja: "Face aos resultados eleitorais sirva-se a reforma agrária fria e morta." Não tiro essa conclusão. Pelo contrário, recusamo-nos absolutamente a isso!
O Sr. Presidente: - Em última instância, é um critério como outro qualquer, mau mas é um critério.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Sr. Deputado Almeida Santos, gostaria ainda de abordar a questão da posse útil. Quanto aos outros aspectos, teremos ocasião de prosseguir o debate, mas não lhe poderei dar hoje aquilo que o Presidente da Jugoslávia não lhe deu outrora, não lhe posso dar aquilo que o Prof. Orlando de Carvalho debalde tentou dar-lhe, só posso insistir no que em reuniões inteiras procurámos dar-lhe e sempre recusou...
O Sr. Presidente: - Esperava que desse, nunca tive um diálogo com o meu amigo sobre isso e tinha esta esperança.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não posso dar-lhe isso tudo e, sobretudo, faço-o nas circunstâncias piores, porque o Sr. Deputado Almeida Santos me está fazendo a "crónica da morte anunciada" de um conceito, qual seja o de posse útil, a minha posição, a nossa posição nessa matéria é penosa.
O Sr. Presidente: - Ah!, isso é.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas não tão difícil que não legitime argumentação e que não obrigue o PS ao menos a invocar três ou quatro razões para se defender...
O Sr. Presidente: - Já disse a V. Exa. que estamos dispostos a considerar em concreto as vossas propostas de alteração e de melhoria das nossas próprias propostas. Reduza os seus discursos a propostas concre-
Página 997
1 DE SETEMBRO DE 1988 997
tas. Se nós entendermos que as vossas propostas melhoram, vamos a isso. Sabe bem que nós não somos sectários, nem para um lado, nem para o outro.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Nos mais diversos processos a questão tem sido abordada. Vou-lhe citar um processo desgarrado, citado ou obtido por simples comodidade. É uma sentença de um tribunal de círculo em que, a dada altura, doutamente se diz qualquer coisa como isto: a Constituição de 1976 introduziu um novo direito real como, aliás, o reconhece o n.° 3 do relatório preambular do Decreto-Lei n.° 496/77, de 25 de Novembro, reforma do Código Civil, a posse útil.
O Sr. Presidente: - No relatório sim, no Código não.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto. A posse útil não é a propriedade privada, continua a sentença, tem antes a ver com a propriedade social (o PS também quer alterar o conceito de propriedade social!).
O Sr. Presidente: - Queremos e dissemos porquê.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Diz a doutrina - designadamente o Dr. Meneses Cordeiro, que, seguramente, não morre de amores pelo PS, nem por nós - que não são inteligíveis as duas noções (isto é, a noção de posse útil e a noção de propriedade social) separadamente. Sucede que o PS quer operar essa cesura suprimindo uma noção e outra, isto é, suprimindo tudo o que seja novo - anote-se. Continuo a citação: "A posse útil, por outro lado, não se confunde com a posse civil" - aspecto fulcral - "nem com o usufruto, nem com o domínio útil enfitêutico".
O Sr. Presidente: - Senão, como disse, não existiam duas, mas uma só, pois aí é que está o mal.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Será antes "o direito que os trabalhadores de unidades em autogestão têm de exercer sobre os meios e bens nelas integrados os poderes necessários à sua exploração, ou, por outras palavras, a afectação jurídica de bens e meios de produção aos fins das pessoas que com eles trabalham". O citado é o Prof. Dr. Meneses Cordeiro. Será o direito de exploração dos trabalhadores rurais - ou melhor, daqueles que trabalham a terra - em relação à terra expropriada.
O Sr. Presidente: - Eu sei isso; mas essas diferenças só existem em função dos sujeitos, sendo a posse útil a que tenha por titulares os trabalhadores de UCPs, de cooperativas, etc.. Se assim é, não sei para que trabalhamos com dois conceitos e não apenas com um só.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, era precisamente aí que eu queria chegar. Com efeito, a distinção não se opera em função dos titulares. Como é óbvio, a distinção é desde logo conceptual.
O Sr. Presidente: - Seria um conceito bem pobre: se é dos "Antónios", é posse; se é dos "Josés", é posse útil! Isso não tem o menor interesse.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Deputado Almeida Santos. Permita-me que resuma e conclua.
Por um lado, constitucionalmente procura-se que seja um conceito distinto do conceito civilístico da posse e que assente numa certa ideia de esvaziamento ou de alteração da própria noção de propriedade formal, procurando-se construir o direito com um mais em relação ao uso precário da terra. Não é um direito de mero uso; é mais do que isso; é bastante mais do que isso. É um jus in re, oponível erga omnes, um novo direito real de gozo (a acrescer ao elenco tradicional em que figuram a propriedade, o usufruto, o uso e habitação, a superfície, as servidões, a habitação periódica). A sua instituição visou assegurar a certas categorias de beneficiários enumeradas no artigo 97.°, n.° 2, uma situação jurídica protegida, sólida, estável, livre de arbítrios e ingerências, para prosseguirem o trabalho da terra. Devolvendo "a terra a quem a trabalha", quis-se que este trabalho, essa exploração produtiva criadora de riqueza e bem-estar pudesse ocorrer num quadro que propiciasse aos beneficiários um estatuto distinto do decorrente da mera posse. Desde logo, porque esta posse é limitada pelo fim que a legitima: a terra é entregue para que seja trabalhada, valorizada, reconvertida no modo de exploração. Isso acarreta proibição de alienação e um dever de utilização produtiva inexistentes na posse clássica. Depois, e ao contrário desta, não se trata de uma mera situação de facto com relevância jurídica, mas de um verdadeiro e próprio direito real de gozo, protegido por todos os meios de defesa típicos dos direitos reais. Dele há-de resultar um poder sobre a terra e demais meios de produção caracterizado pelo que vinha directo e imediato, oponível ao próprio Estado (de cujo domínio privado indisponível esses meios fazem parte), um verdadeiro poder-dever de explorar com autonomia perante a Administração e com estabilidade (o que implica protecção idónea contra regimes de exploração marcados por factores de precariedade exclui, designadamente, que a Administração Pública se arrogue poderes de resolução unilateral e gravosamente célere e obriga à tipificação rigorosa e equânime dos casos em que o beneficiário possa incorrer em sanções por incumprimento de obrigações).
Por outro lado, procura-se construir esse conceito como um menos em relação à propriedade plena, desde logo, porque se salvaguarda que a propriedade como tal seja pública e que os beneficiários, os destinatários, os exploradores da terra tenham um determinado estatuto. O que caracteriza esse estatuto e o distingue da mera posse civil é que esta é uma posse de cunho social (do que decorre proibição de transmissão, oneração, desafectação, etc..) e com meios específicos de defesa, que são tantos e tais que têm permitido, designadamente em tribunal, pugnas jurídicas favoráveis aos trabalhadores. A reconstituição ou a redução à mera noção de posse civil - com as suas características, acompanhada de distinção e da cisão da própria noção de propriedade social - é, por tudo isto, negativa.
O Sr. Presidente: - Isso pode ter significado político, mas não tem significado jurídico, desculpe que lhe diga. Politicamente até talvez saiba o que é a posse útil. Mas falo como jurista. Não vejo a necessidade do conceito de posse útil para dar protecção aos titulares da posse tout court. Não vejo nenhuma necessidade disso.
Página 998
998 II SÉRIE - NÚMERO 33-RC
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, quer dizer que na sua ideia deixaria de haver posse social, como é óbvio, e toda a posse se deveria reequadrar no conceito civilístico tradicional de posse...
O Sr. Presidente: - Exacto!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Isto é, haveria supressão do conceito de posse social e haveria um regresso à figura pura da posse civil.
O Sr. Presidente: - Haveria supressão do conceito de propriedade social, haveria supressão do conceito de posse útil, e tudo isso era substituído por um sector social da propriedade que estaria, obviamente, ligado às finalidades sociais da propriedade, que é de algum modo o que está na base da posse útil e da propriedade social. Concebemos isso em termos de sector social e não em termos de propriedade específica. É só essa a diferença. O valor social está lá. Já tínhamos dito isso.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas concretamente e especificamente a minha pergunta é: deixaria de haver dois conceitos distintos com regimes específicos e distintos qual fosse o conceito de posse civil e posse social?
O Sr. Presidente: - Exacto!
O Sr. José Magalhães (PCP): - O conceito juspublicístico de posse social seria eliminado? Regressar-se-ia ao conceito puramente civilístico de posse civil aplicada a terra desta natureza?
O Sr. Presidente: - Embora enquadrada no quadro de um sector social de propriedade.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, a minha pergunta - e é, efectivamente, a última - é a de saber como é que V. Exa. entende esse sector social, e qual é a diferença ou o influxo que a existência desse sector social traz ao instituto da posse tal como V. Exa. o concebe, porque o grande risco, Sr. Deputado Almeida Santos, é V. Exa. daqui a alguns anos declarar: - "Eu não sei o que é sector social!"
O Sr. Presidente: - Traz o que quiser, pela razão simples de que a definição há-de constar da lei - como hoje tem de constar a de posse útil, se quiser dar-lhe algum sentido. A lei ainda não disse o que é posse social.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Desculpe, mas eu disse algumas, Sr. Deputado!
O Sr. Presidente: - V. Exa. tira-as por ilação política, e quando nós propomos um sector social da propriedade - e lá metemos as cooperativas, as UCPs e a propriedade comunitária -, não é por acaso que só metemos estas e mais nenhuma! O legislador ordinário há-de dizer o que é que confere natureza social a essa propriedade; talvez que são preocupações específicas que não se compadecem com os espíritos de lucro
e usura, por exemplo. Essa propriedade tem de ter uma função social, mais do que em geral tem de a ter toda e qualquer propriedade. Esse é o nosso ponto de vista, mas é o legislador ordinário que tem de o definir. A Constituição não disse quais são as prerrogativas da posse útil. Nem o legislador ordinário o disse até hoje.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Deputado. Fui dizendo várias coisas, designadamente no regulamento do direito de reserva...
O Sr. Presidente: - Se há um juiz que leu os mesmos livros da Jugoslávia que eu li, ou que falou com o Presidente da Jugoslávia como eu falei; também há outros juizes que dizem horrores sobre o conceito de posse útil. Portanto, não vale a pena citarmos um juiz, ou um caso de jurisprudência. Se quiser, cito-lhe dez a dizer que a posse útil é uma baralhada!...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, não posso nem tenho legitimidade para prolongar o debate nestes termos. Em todo o caso. devo dizer que. se arrolarmos jurisprudência, é fácil comparar as espécies: é óbvio que predomina o reconhecimento das virtualidades e alcance da posse útil. Estamos num país com Constituição, os tribunais acatam a Constituição. (E são raros os casos mirabolantes de juizes que consideram inconstitucionais diplomas como o relativo à proibição de despedimento de representantes sindicais!) Os nossos tribunais superiores, designadamente o ST A, foram obrigados, obviamente, a reconhecer, a acatar e a desenvolver a figura da posse útil. Não se use esse argumento. Usem-se todos menos esse!
O Sr. Presidente: - Porventura, reconhecia o mesmo direito se tivesse invocado a posse útil tout court.
Srs. Deputados, desculpem termos feito tudo isto em diálogo.
O Sr. José Magalhães (PCP): - O meu camarada Rogério de Brito tem perguntas a fazer sobre o projecto de fundo e o pessimismo do PS em relação ao Alentejo.
O Sr. Presidente: - Embora já tenham feito todas essas perguntas, tem a palavra o Sr. Deputado Rogério de Brito.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Verá o Sr. Presidente que esta questão ainda não tinha sido abordada. Sem descurar do conceito de fundo da UCP-cooperativa, eu sempre diria se o Sr. Deputado Almeida Santos teria as mesmas dúvidas se em lugar de as UCPs se terem chamado UCPs, se tivessem chamado cooperativas. O que é que eu quero dizer com isto? Será que é tão passível de condenação uma estrutura que funciona na base de uma assembleia geral, de uma direcção eleita por uma assembleia geral, dotada de corpos sociais todos eles previstos e exigidos pelo Código Cooperativo, e que funciona no âmbito do Código Cooperativo e é como tal reconhecida?
O Sr. Presidente: - A resposta é muito fácil. Conheço o Código Cooperativo - até intervim na redacção do último Código Cooperativo em vigor -
Página 999
1 DE SETEMBRO DE 1988 999
e lidei durante toda a minha vida profissional com sociedades cooperativas. Nunca vi definido na lei o estatuto de uma UCP. Que eu saiba não há um Código das UCPs. Quando ele existir, pronunciar-me-ei sobre se fico ou não fico tranquilo. Devo dizer-lhe que o único projecto de lei que apareceu num governo de que fiz parte a pretender criar um novo tipo de sociedade - até se lhe chamava "sociedade sem capital" - conduzia a tais absurdos que pude com duas ou três observações convencer o autor do projecto a retirá-lo.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, eu estava apenas a pôr-lhe a questão em termos concretos, porque acho que às vezes sabe bem sair do campo da mera teorização jurídica para o campo prático. E o campo prático é este: as UCPs-cooperativas estão todas reconhecidas de acordo com os estatutos das cooperativas.
O Sr. Presidente: - Então são cooperativas.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Desculpe, Sr. Presidente, a cooperativa chama-se o que se quiser. Neste caso é UCP-cooperativa e não vamos continuar a discutir. Foi isto que ela se denominou: UCP-cooperativa...
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Rogério de Brito, acredite no facto de eu ter redigido a proposta do PS com a preocupação de não tocar nos direitos das UCPs. Não me critique agora por pretender o contrário!
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - De acordo. Com isto apenas quis dizer que, provavelmente, se se tivessem chamado tão-somente cooperativas, tal não suscitava esta questão de fundo.
Mas, enfim, seguindo. Pareceu-me importante focar outro aspecto por duas razões: uma primeira porque considero perigosa a análise que o Sr. Deputado fez em relação ao Alentejo em que este seria um "bico de obra" (e não por razões estruturais, mas por força da integração na CEE: a sua aptidão é para as culturas de que a Comunidade é excedentária, etc.). Tenho, muito rapidamente, de lhe dizer que considero que é perigosa essa visão do problema do Alentejo, por duas razões...
O Sr. Presidente: - Mesmo se for realista?
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Tenho dúvidas que o seja, e é isso que ia, exactamente, colocar...
O Sr. Presidente: - É que estou convencido de que é realista e, só por isso, falei nela.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Se me dá licença, vou dar agora a minha opinião.
Penso que, se não tem sido, exactamente, o regime da propriedade latifundiária no Alentejo - que, apesar de tudo, o Sr. Deputado Almeida Santos tem contestado -, esta região era muito mais desenvolvida em termos económicos, sociais e técnicos do que é hoje.
O Sr. Presidente: - Estou de acordo.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Aliás, isto é reconhecido, e não há nenhum sociólogo, cientista ou estudioso que não o reconheça como tal.
Mas digo isto apenas para partir para outro ponto.
É evidente que todo o regadio é um factor de valorização da terra, e como tal deve haver o máximo de regadio possível. Isto é um enriquecimento. Agora que o Alentejo dependa exclusivamente do regadio, e que não tenham aptidões para produzir mais nada, eventualmente, que não seja a floresta é outra questão.
O Sr. Presidente: - Eu não disse que só tinha aptidão para isso.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Mas disse que está vocacionado para produzir aquilo em que a Comunidade é excedentária.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, eu não disse isso. Porventura, o que vai acontecer é que se vão criar estímulos à não produção daquilo que actualmente se produz e à venda das propriedades a quem quer plantar eucaliptos ou explorar cortiça. Foi o que eu disse. Aliás, já está a acontecer isso mesmo.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Perdão, Sr. Presidente. Não foi exactamente isso que eu entendi, mas agora acho que a sua afirmação ficou mais clara. Ao que replico: os estímulos a que a gente produza o mínimo de produtos agro-alimentares e os estímulos para que se produza o máximo de floresta e pasta de papel não são situações que se vão colocar estritamente no Alentejo. É uma situação generalizada ao País! Não é por ser o Alentejo que esse problema tem maior acuidade, embora aí se possa pôr - enfim - o problema dos regimes pluviométricos, tal-qualmente continuam ser utilizados. Sempre direi que, em termos de regimes pluviométricos, o eucalipto cresce muito mais depressa onde chova mais do que onde chova pouco. Portanto, as apetências também continuam a ser em função do rápido crescimento da espécie.
O Sr. Presidente: - V. Exa. sabe que também há eucaliptos de sequeiro! ...
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Queria dizer, Sr. Presidente, que o Alentejo tem potencialidades, e que por muito que isto possa chocar algumas mentalidades - sobretudo aquelas que estão, particularmente, contrárias à reforma agrária -, as UCPs-cooperativas demonstraram que o Alentejo tem muitas alternativas em relação ao regime tradicional de produção. Devo-lhe dizer aqui, assim, que desde o campo da produção forrageira e da inerente pecuária, até ao campo da produção de proteiginosas - que pode alterar por absoluto a concepção económica de produção de carne neste país, e que é responsável por mais de 70% das nossas importações do exterior -, há várias outras soluções, que passam, exactamente, pelo Alentejo, e que poderão possibilitar a valorização desta região. Sempre lhe direi que a destruição da reforma agrária poderia "recuperar" o Alentejo para a situação que vivia anteriormente, e que é de uma rápida degradação dos seus recursos e uma rápida perda do seu tecido social. A situação que temos, em termos de evolução, é de uma profunda quebra da densidade demográfica
Página 1000
1000 II SÉRIE - NÚMERO 33-RC
e do envelhecimento da população. É um factor que neste momento se volta a fazer sentir no Alentejo. E esta análise - permitam-me que o diga, não de uma forma demagógica, mas porque me parece que o problema social, humano e económico do Alentejo ultrapassa, obvia e largamente, o PCP, embora este se arrogue justamente preocupado com a situação - traduz uma leitura que vem sendo feita por vários sectores da vida pública deste país, no que devem incluir-se, designadamente, análises feitas, por exemplo, pela própria Igreja. Chamo a atenção para os documentos em que ela tem colocado a questão, e para as declarações de alguns dos seus mais qualificados representantes, designadamente o Sr. Bispo de Évora. Aí se diz que no Alentejo se está a retornar a situações de profunda miséria, como consequência da destruição da reforma agrária. Julgo que isto é importante e que deve ser retido como elemento de ordem social, humana e histórica que não pode ser desvalorizado numa apreciação deste problema.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Basílio Horta.
O Sr. Basílio Horta (CDS): - Sr. Presidente, peço desculpa por, de certa maneira, me intrometer neste "debate em família".
O Sr. Presidente: - Homessa!
O Sr. Basílio Horta (CDS): - Estou um pouco como quem entra em casa para a qual não está convidado.
O Sr. Presidente: - Os membros das famílias costumam entender-se melhor uns com os outros!
O Sr. Basílio Horta (CDS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Quero apenas proferir umas palavras de justificação da proposta de eliminação de todo este título da Constituição, apresentada pelo CDS.
Tal proposta não significa que o CDS não entenda um conceito de reforma agrária. O que seguramente o CDS não entende é o conceito de reforma agrária que o PCP tem vindo a defender, desde a Revolução de 25 de Abril, com assinalável coerência. A reforma agrária vista pelo PCP não é nenhum instrumento da política agrícola; é, antes, um instrumento político da construção do Estado socialista. Trata-se, portanto, nessa perspectiva, de um elemento fundamental da ordem constitucional. Mas, em nosso entender, não o é, pois há vários conceitos de reforma agrária. Temos para nós - e temo-lo dito e escrito várias vezes - que, mais do que da reforma-agrária, o nosso país necessita da reforma da sua agricultura. Consequentemente, como instrumento da política agrícola, não compreendemos por que é que há-de ter dignidade constitucional. Por que é que a política agrícola, encarada desta forma, está no texto da Constituição, e a política financeira, sem a qual não há reforma agrária nem política agrícola, não o está, assim como outros aspectos da política económica igualmente importantes também não estão consagrados constitucionalmente? Então, para que é que o CDS abriria aqui um capítulo e, no fim de contas, deixaria o gato de fora com o rabo dentro?
Com efeito, pensamos ser mais correcto, pura e simplesmente, eliminar este artigo e dar à reforma agrária o tratamento em sede própria, que é, manifestamente, a da legislação ordinária.
Um outro aspecto importante que queríamos frisar é o facto de se teimar - conforme nos apercebemos pelo desenrolar do debate - em fazer coincidir a reforma agrária com o problema das expropriações e com a dimensão da propriedade. O CDS não entende nem nunca entendeu assim. Queria dizer ao Sr. Deputado Rogério de Brito que as intervenções do Sr. Bispo de Évora e do Sr. Bispo de Setúbal (algumas têm sido feitas) são realmente pertinentes porque feitas no âmbito desta reforma agrária, isto é, no âmbito deste conceito de reforma agrária e não de outro qualquer. Para nós, é mais importante esboçar um conceito de reforma agrária mais próximo do uso da terra e da capacidade efectiva de encarar a terra como um instrumento de modificação económica e social do que propriamente um conceito ligado à área. Porque latifúndios, como os que existem neste momento em Portugal, sempre os houve, embora talvez não com tão grande dimensão como agora têm: são os latifúndios do Estado em propriedade plena, os latifúndios que se encontram, tantas e tantas vezes, em más condições de exploração ou sequer sem utilização. Não se entende, pois, por que razão se continua a querer ligar-se o conceito de reforma agrária a um conceito que a prática se encarregou de demonstrar que estava errado.
Se assim é, não tenho dúvidas de que o que consta dos projectos quer do PS, quer do PSD é o que está em melhores condições de se votar. Não há aqui nenhum erro. O que penso é que há uma concepção errada. Porquê? Apenas porque a política agrícola não se esgota nisto; provavelmente há coisas que são mais importantes do que as que aqui estão, e essas, não obstante, não estão cá. Por que não se confia no legislador ordinário, no Governo, que em cada altura sabe concretamente as medidas que tem de assumir? E por que não se deixa esta matéria - tal como outras matérias de política económica e financeira - à liberdade de responsabilidade de cada governo?
Sr. Presidente, Srs. Deputados, pensamos que devemos ser claros nesta e noutras matérias. Ou se entende a reforma agrária como o tal instrumento de construção do Estado socialista, e tem então de ser colocada na Constituição sem se ocultar essa realidade, ou não. E, como instrumento de política agrícola, é ridículo constar da lei fundamental. Na verdade, a Itália, nos anos 60, com o Sr. Amitori Fanfani, fez uma verdadeira reforma agrária e muito mais profunda do que a nossa. No entanto, tal reforma agrária não estava prevista na Constituição italiana. Não obstante, ela levou a Itália a níveis de produtividade nunca antes alcançados, permitindo que ao entrar no Mercado Comum tivesse capacidade para receber as ajudas que nós não estamos a ter. Acontece que entre nós, com esta discussão política que sempre se faz sobre a agricultura, estamos a ignorar a realidade. E dito isto porque a nossa entrada no Mercado Comum resultou num prejuízo efectivo para os trabalhadores, porque, de facto, estamos com preços de garantia muito mais elevados do que os comunitários. E vamos ver até 1992 - esse é um problema ainda não respondido - como é que a nossa agricultura vai reagir. Penso que o problema político mais grave da próxima década será da
Página 1001
1 DE SETEMBRO DE 1988 1001
reacção da nossa agricultura à concorrência europeia e, fundamentalmente, à concorrência espanhola. E não se venha dizer que não há nada a fazer, porque há efectivamente algo a ser feito. A reforma da agricultura está, em grande medida, por fazer. Isto não tem nada a ver com a discussão que estamos nesta sede a travar, penso que rigorosamente nada, pois essa é até uma discussão limitativa.
Portanto, não entendemos que se deva colocar algo sobre esta matéria no texto da Constituição, porque, a ser feito algo, tem de se colocar mais do que o que está previsto. A não se estatuir nada, poderá no futuro colocar-se muito mais do que o que está agora ínsito no texto constitucional.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Vou ser muito breve, pois quero deixar expressa, mais ou menos claramente, a posição do PSD sobre a ampla discussão que se travou no quadro do diálogo entre os Srs. Deputados Almeida Santos e José Magalhães e, sobretudo, tendo por ponto de referência a última resposta que este último Sr. Deputado deu ao primeiro. Repito: seria muito breve na alocução, visto que desejo apenas sublinhar a nossa posição sobre este problema e tecer algumas considerações ainda sobre o mesmo conceito.
O PSD também não sabe o que é a posse útil da terra. Parece-me que a posse útil da terra é um conceito que resulta de um certo processo psicopolítico de atribuir à posse, no quadro do sector público, virtudes que ela não tem no âmbito do sector privado. E isto porque, nos termos das alíneas b) e e) do n.° 2 do artigo 89.°, se depreende claramente que a posse útil tem um lugar exclusivo no âmbito do sector público. Terá sido eventualmente esta intenção de privilegiar e tornar evidente as virtudes da posse no quadro desse sector, por contraposição às desvirtudes do sector privado. Poderá ter sido essa ou outra, mas a verdade é que este conceito lança confusão e, para além disso, dificuldades.
Entretanto, o Sr. Deputado José Magalhães, quando pretendia responder ao Sr. Deputado Almeida Santos, afirmou o seguinte: "Mas o Supremo Tribunal Administrativo tem tratado dogmaticamente o conceito e a ele dado desenvolvimento." E é exactamente por isso que entendemos que o conceito tem alguns efeitos nefastos na sua própria existência. Digo isto por uma razão, ou seja, porque está demonstrado exactamente por este tratamento pelo STA. De facto, os conceitos na lei têm sempre efeitos, não existem por acaso e vão chegar, no âmbito da jurisprudência, com os destinos dos casos concretos, lançando eventualmente dificuldades que é preciso evitar.
Este conceito pode obrigar os tribunais a um tratamento que, em si, é necessário pelo próprio facto de ser o conceito introduzido pelo legislador, mas que lança a jurisprudência em grandes dificuldades e, sobretudo, a segurança jurídica, que é sempre necessária, nas maiores interrogações. Daí o facto de entendermos também que é oportuno, necessário e útil que este conceito seja arredado do texto constitucional.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves, creio que foi bom que V. Exa. tenha podido exprimir-se sobre esta matéria, designadamente quanto ao conceito "psicopublicista" de posse útil. Suponho que foi isso que V. Exa. disse sobre a posse útil com tanta mais afoiteza, quando não falou propedeuticamente, mas sim depois do Sr. Deputado Almeida Santos. A questão já estava, pois, equacionada nos termos que a Sra. Deputada declarou; a verdade é que se limitou a "esquiar", o que é sempre confortável e agradável politicamente. No caso concreto, gostaria de lhe perguntar se não reconhece, em termos de uma saudável, razoável e não apaixonada hermenêutica, que há algumas virtualidades neste conceito de posse útil, e que este regresso ao conceito "canónico" ou tradicional de posse, com os seus elementos característicos puramente civilísticos, representa alguma coisa que não é apenas um retorno, mas antes um retorno serôdio. De facto, a evolução para figuras como esta que existe no nosso direito constitucional e que tem algumas projecções nas suas aplicações e em certos segmentos da lei ordinária, embora não tenha tido desenvolvimento legal em opus magnum, que o Sr. Presidente enquanto Ministro da Justiça, chegou a anunciar, mas nunca foi concretizado...
O Sr. Presidente: - O quê, Sr. Deputado? Não podemos, de facto, estar desatentos!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Estava apenas a referir o facto, a que o Sr. Presidente aludiu, de nunca nenhuma lei formal e sisudamente baptizada como "lei da posse útil" ter sido emanada.
Prometida e ensejada na altura da tomada de posse da Comissão, encarregada da revisão do Código Civil nunca foi produzida, embora tenha vindo, de novo, referida no texto preambular do decreto-lei que aprovou as alterações ao Código Civil em 1977.
O Sr. Presidente: - Não lhe dei essa informação, Sr. Deputado!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, é um facto público, a sua atitude só piora as coisas. Em todo o caso, pode ser altamente reveladora para quem nos ler e um subsídio inestimável para esclarecer algumas coisas.
O Sr. Presidente: - A verdade nem é boa, nem é má! É só verdade!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Em todo o caso, esta evocação histórica era puramente incidental na minha argumentação.
O Sr. Presidente: - Julguei que fosse pior! Risos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não podia ser pior, porque a vossa proposta já é péssima!
Entretanto, gostaria que a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves pudesse descer da generalização para a particularização.
Página 1002
1002 II SÉRIE - NÚMERO 33-RC
Dir-se-ia que não vislumbra nenhum contorno de autonomia e nenhuma especificidade neste conceito de "posse útil", tal como está recortado consitucionalmente. Isto quer dizer que a Sra. Deputada não reconhece uma série de aspectos.
Em primeiro lugar, como já referi, há uma diferença entre esta posse útil e o conceito típico de posse, na medida em que os colectivos beneficiários do direito têm obrigação de exploração económica dos bens, mas em condições limitativas, isto é, só o podem fazer mediante gestão sua e trabalho seu, e não através de outras formas que o possuidor comum pode utilizar.
Em segundo lugar, não podem extrair desses bens as chamadas rendas ou outros frutos civis, nem outras utilidades criadas a partir do trabalho de outros, o que se distingue naturalmente de outras figuras. Isso é importante porque dá aos colectivos de trabalhadores um estatuto que os liga à terra, mas simultaneamente impede que determinadas formas de desenvolvimento tenham lugar - formas essas que entendemos (e a Constituição entende) como negativas. Além disso, não há possibilidade de disposição desse bem que é atribuído. Acha isto irrelevante? Mas verdadeiramente o que apetece perguntar-lhe é: como é que a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves e o PSD encaram a questão da terra? E formulo-lhe esta pergunta porque a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves procurou, aproveitando o vento criado pelo Sr. Presidente, esquivar-se a uma das questões fundamentais perante as quais o PSD está confrontado. De facto, aparentemente, o PSD está onde o PS quer que esteja. E vice-versa, também: ou seja, o PS acaba por estar onde o PSD quer que esteja. O PSD faz os pacotes, o PS a Constituição; o PSD e o PS fazem a Constituição; a Constituição é aquilo que é determinado pelos pacotes na prática e o PSD apresenta no fim a mão, estende naturalmente a factura e colhe o benefício!
O Sr. Presidente: - VV. Exas. criaram a situação factual que gerou todo este imbróglio! Se estamos em matéria de acusações, não nos custa nada fazê-lo! Peço-lhe que não enverede por esse caminho, Sr. Deputado!
De facto, o PSD fez os pacotes e VV. Exas. a reforma agrária!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto, Sr. Presidente. Aliás, nem fomos só nós, como se sabe. O PS dela se reclamou até certa altura e, segundo parece, ainda hoje. Ou alguns se reclamam ...
O Sr. Presidente: - Não vá por aí, Sr. Deputado!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas a minha pergunta à Sra. Deputada era precisamente para evitar que o Sr. Presidente fosse por aí, porque seria saída fácil de mais.
Qual, é, no fundo, a visão do PSD sobre a terra? Desde a política "sá-carneirista" da distribuição de parcelas a agricultores - sabe-se, aliás, o que aconteceu depois - à política em curso neste momento, há nuances. E a Sra. Deputada esquiou por entre essas nuances com todo o à-vontade mas sem nenhum rigor.
Perguntar-lhe-ia ainda o seguinte: como é que a Sra. Deputada imagina as consequências do quadro jurídico que o PS propõe (a que, segundo parece, V. Exa. adere apaixonadamente) em termos de entrega
de terras a título de propriedade? V. Exa. não disse nada sobre isso. Este aspecto não consta da Constituição, é proibido por ela e tem implicações que não ignorará. Qual é, então, a posição do PSD sobre essa matéria? Qual é a posição do PSD em relação ao Estatuto das UECTs, uma vez que, embora residualmente, não são suprimidas (a sigla UECTs é, como bem sabe, uma forma polida, camuflada e um pouco eufemística de dizer UCPs)?
Como é que articula a existência de explorações com este cunho social, para utilizar um nome de baptismo da matriz do PS, com as outras formas de exploração da terra? E como é que vê tudo isto jogando no quadro da Constituição económica, tal qual a imagina o PSD, com os limites decorrentes da posição do PS?
Gostaria que V. Exa. respondesse, pelo menos, a algumas destas questões.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Deputado José Magalhães, V. Exa. extravasou do problema da posse útil que foi aquele que pretendi deixar claro em relação à discussão que estava a ser desenvolvida.
No concernente à primeira pergunta, devo dizer que não vejo nenhuma diferença entre posse útil e posse.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Neste momento, não há diferença nenhuma, Sra. Deputada?
A Sra. Maria da Assunções Esteves (PSD): - Não, Sr. Deputado. De facto, conheço somente o termo "posse". Este conceito é-me dado pelo direito civil, só assim consigo conceptualizar a posse.
Relativamente às outras questões que coloquei, o Sr. Deputado conhece, a propósito de cada artigo, quais são as propostas do PSD através de várias eliminações. Pode, então, ver qual é claramente a minha posição sobre um conjunto de realidades para as quais chamou a atenção. E, sobretudo, tem no quadro do artigo 96.° no nosso projecto todo um conjunto de medidas que propomos em matéria de política agrícola e daquilo a que chama - e continua a chamar - de "reforma agrária". Portanto, não vou agora tecer mais considerações sobre aquilo que claramente resulta do nosso projecto de lei, nomeadamente através de um conjunto de eliminações que propomos corajosa e inequivocamente.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Rogério de Brito. Peço-lhe, porém, que se limite a formular as questões que entender.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Sr. Presidente, é mesmo, e só, uma questão que desejo colocar.
O Sr. Presidente: - Faça favor, Sr. Deputado.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Sr. Deputado Basílio Horta, V. Exa. diz a certa altura da sua intervenção: "Por que é que se continua a persistir no conceito de reforma agrária se a prática demonstrou que estava errado?" Aliás, essa questão vem, de algum modo, no seguimento de uma outra formulada pelo Sr. Presidente
Página 1003
1 DE SETEMBRO DE 1988 1003
qual seja a da pseudo-responsabilidade do PCP pelos aspectos negativos da reforma agrária. Isto não quer dizer que seja exactamente o mesmo, mas as questões, no vosso discurso político, surgem com uma certa interligação.
Ora, gostaria de perguntar ao Sr. Deputado Basílio Horta: quais são os grandes erros inerentes à reforma agrária? V. Exa. disse que a prática demonstrou estar errada. Quais são os erros? É que, pelo contrário, poderemos explanar as grandes virtudes da reforma agrária. De facto, o PCP faz um esforço para demonstrar as virtudes dela, enquanto que VV. Exas. se limitam normalmente a dizer que ela está errada, mas não justificam isso.
Em segundo lugar, estamos a falar em reforma agrária e, entretanto, os problemas agrícolas do País estão longe de se confinar à reforma agrária. Estou, aliás, nesse ponto inteiramente de acordo consigo. E o que é dramático é que continua a pretender justificar-se o atraso tremendo da agricultura portuguesa à custa das UCPs-cooperativas e da reforma agrária. Procura-se lançar sobre 5%, 6% ou 7% da superfície agrícola deste país a responsabilidade dos atrasos tecnológicos, estruturais, etc., de toda a agricultura portuguesa e, por esta via, desvalorizar aquilo que faz parte da reforma agrária.
Pergunto-lhe, então, se V. Exa. é capaz de dizer que a reforma agrária é responsável pela baixa produção deste país, pelo atraso nas modernas tecnologias. Ao invés, ela tem servido como alibi para desresponsabilizar as políticas que consecutivamente têm sido desenvolvidas neste país que não resolvem minimamente os problemas reais, nem sequer dispõem hoje de uma estratégia de inserção no seio da CEE.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Basílio Horta.
O Sr. Basílio Horta (CDS): - Sr. Deputado Rogério de Brito, não estamos a fazer nesta sede o "livro branco" da reforma agrária. Isso seria, de facto, um trabalho muito interessante para fazer, mas não neste local.
Entretanto, devo dizer-lhe que a reforma agrária entendida como instrumento político puro, ou seja, o tal instrumento da construção do Estado socialista - e foi assim que se aplicou -, é um erro; na minha concepção, trata-se de um erro profundo. Já quanto à questão de saber em que é que houve erros, em termos de transposição desta questão para a política agrícola, cabe a VV. Exas. o papel de os reconhecerem em primeiro lugar, visto que têm muita responsabilidade nessa matéria em largas zonas do nosso país. Mas não vamos agora fazer esse debate, porque está perfeitamente deslocado.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Registei a resposta Sr. Deputado.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Ramos.
O Sr. José Luís Ramos (PCP): - Sr. Presidente, a posição do PSD já foi amplamente explicitada, pelo
que não quero ater-me muito mais a este assunto. Contudo, acrescento ainda um ponto, que é o seguinte: penso que os conceitos de "posse" e "posse útil" não contêm qualquer distinção em termos de significância material. Entretanto, toda a discussão feita até agora é a de que o entendimento de posse para o direito civil é, ele próprio, um conceito pobre. Além disso, não haveria distinção conceptual, e mesmo jurídica" nesse âmbito.
Abordaram-se também os conceitos de posse e mera posse, o que me leva a dizer que, mesmo em termos de direito civil, o âmbito não é assim tão pobre, pois há uma distinção significativa entre detenção e posse. De facto, quando se fala em mera posse deve sublinhar-se que ela equivale genericamente à detenção. Contudo, são conceitos diferentes no âmbito desta matéria, pelo que entendo que esta problemática deve ser concatenada com o direito civil, sem a pretensão de se dizer que a propriedade e mesmo a posse têm um âmbito empobrecido. Pelo contário, não é assim.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Lino de Carvalho.
O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - Sr. Presidente, quero somente comentar uma afirmação aqui produzida em relação à preocupação, que alguns dos Srs. Deputados revelam, sobre o futuro do Alentejo e da sua agricultura, mas cruzaria esta última com a afirmação de que a eliminação do latifúndio "não é" uma obrigação constitucional...
O Sr. Presidente: - Mas tem de criticar nos termos a que eu me refiro - não é uma obrigação constitucional. Já hoje entendemos que deve ser remetida para o legislador a definição das condições em que deve ser exercido o direito de expropriar latifúndios; mas isso deve ser aferido em função dos objectivos da política agrícola. Agora faça a crítica que quiser! Desde que o ponto de partida seja este. Se esquece isto, esquece o principal.
Entendemos que o instrumento "expropriação de terrenos", acima de certa área, ou abaixo de certa pontuação, é um instrumento de realização dos objectivos da política agrícola; o legislador que diga quando é que se deve entender que um terreno é excessivo em área ou está a produzir menos do que devia. Dito isto, faça o favor de fazer a sua crítica.
O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - Ouvi atentamente, mas confesso que, de facto, é a primeira vez que ouço essa interpretação do PS. Quando V. Exa. afirma deixar para o legislador a determinação dos limites máximos, gostaria que cotejasse essa sua intervenção com o facto de, mais à frente, o PS propor a eliminação do n.° 2 do artigo 99.° da Constituição actual, onde se atribui ao legislador a faculdade de fixar esses limites máximos - que o PS elimina, repito.
O Sr. Presidente: - Leia o n.° 1 do artigo 97.° A eliminação de um número não tem significado se foi transposto para outro lugar. "O redimensionamento das unidades de produção agrícola que tenham dimensão excessiva, do ponto de vista dos objectivos da política agrícola será regulado por lei." É a mesma coisa, apenas está noutro sítio.
Página 1004
1004 II SÉRIE - NÚMERO 33-RC
O Sr. Uno de Carvalho (PCP): - Salvo melhor interpretação, quanto a mim, este conceito proposto para o artigo 97.°, n.° 1, é mais vago do que o conceito, mais preciso, do artigo 99.°, n.° 2. Aliás, há constitucionalistas que afirmam, cotejando isto com a actual proposta de lei n.° 81/V, que um desses aspectos de inconstitucionalidade é o facto de a actual proposta de lei não definir limites máximos das unidades de exploração privada nem critérios para esses limites máximos. Ora bem: se isto é eliminado na futura Constituição revista, embora colocando a questão de redimensionamento, em minha opinião - e salvo melhor opinião, pois não sou jurista -, isto pode criar condições, de facto, para a constitucionalização de legislação inconstitucional face ao actual texto...
O Sr. Presidente: - Para mim, é outra maneira de dizer a mesma coisa. Aliás, sem referência ao esquema de acção do Plano, que só* complica! Eu desvinculei isso do esquema de acção do Plano. Sabemos lá o que é que virá do Conselho Nacional do Plano, em matéria de limites de propriedade da reforma agrária! Sei lá o que é que de lá vem!
O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - Mas, se é a mesma coisa por outras palavras, para quê alterar? Aquilo que está no n.° 2 do artigo 99.° é um dado já comprovado - tem havido jurisprudência sobre ele; tem sido o elemento defensor, apesar de tudo, das unidades de exploração dos trabalhadores; tem sido um elemento base para que o Supremo Tribunal tenha, em muitos casos, declarado ilegais algumas medidas do MAP; pode, eventualmente, ser um dos elementos para que o Tribunal Constitucional defina a inconstitucionalidade de tal proposta de lei. Se é a mesma coisa, então porque não fica o que está?
O Sr. Presidente: - Mas não lhe digo que não possa ficar o que está. Se se fizer questão de que fique "a lei determina os critérios de fixação dos limites máximos", pode ficar. Não julgue que somos contra isso. Apenas entendemos que não é necessário. Mas, para o tranquilizar, se se quiser, fica como está, "nomeadamente fixando os limites máximos"
Para mim não acrescenta nada, porque o limite máximo tanto pode ser 10 ha, como 100 ha, como 1000 ha, - só a partir de certa desproporção, sendo evidente a inconstitucionalidade.
O Sr. Uno de Carvalho (PCP): -. Registamos como positivo que o Sr. Deputado Almeida Santos, no fundo, admita que, se for necessário (e é!), se mantenha o texto. Mas queria dizer que, em relação à outra questão sobre o futuro do Alentejo, não partilho e penso que muitos agricultores e trabalhadores que vivem e trabalham no Alentejo também não partilham da imagem negra que o PS aqui traçou do futuro do Alentejo. Quando há pouco dizia que esta afirmação que aqui foi feita deve ser cruzada com o facto de se poder admitir que a eliminação do latifúndio passe a ser uma faculdade pretendia evidenciar as responsabilidades desse mesmo latifúndio no processo de atraso daquela região e de despovoamento. E isto não somos nós que dizemos...
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Lino de Carvalho, chamo-lhe mais uma vez a atenção: veja a epígrafe do artigo 97.° da nossa proposta. O que é que diz? "Eliminação dos latifúndios"!...
O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - Sim, mas não tem, depois, correspondência no texto, completamente.
O Sr. Presidente: - Tem, tem! É a mesma, mesmíssima coisa. Remete para a lei. Mas, se V. Exa. entender - repito - que é preciso acrescentar a referência aos limites, como já disse, pois ponhamos essa referência.
O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - Mas dir-se-ia que não reconhecem a responsabilidade do latifúndio, em relação ao processo de atraso da região. A visão crítica do latifúndio não é partilhada só por nós, é partilhada desde o Zeferino Faria, no século XVII, até ao Mário de Castro em 1940 e tal - penso que o Sr. Deputado Almeida Santos o conheceu pessoalmente - até ao Henrique de Barros, Eugênio de Castro Caldas e muitos outros autores. Nós temos obrigação de criar, no texto constitucional, barreiras claras para impedir essa reconstituição do tecido latifundiário, que não é tão difícil de ser reconstituído como pode parecer, mesmo no actual quadro da integração portuguesa na Comunidade e da internacionalização da economia. Aliás, o Prof. Henrique de Barros, num óptimo parecer que fez em relação à actual proposta de lei n.° 31/V, afirma exactamente que, no seu entendimento, não há condições económicas hoje para a reconstituição do latifúndio - mas esta proposta de lei pode criar condições que levem à desertificação social da região. Esta é que é a questão de fundo - o Alentejo não está condenado à desertificação social, nem está condenado exclusivamente à flo-restação. Mas a questão não está na florestação - que é possível: Portugal tem potencialidades florestais. É preciso é ordená-la e diversificá-la, mas também aproveitar as potencialidades do solo alentejano e dos meios de trabalho alentejano para intensificar a produção, alargar as áreas de regadio, diversificar a produção, criar mercados, formar agricultores, atrair jovens para a terra, criar as condições para que o Alentejo não continue a ser uma zona deserdada.
Em todo o quadro que herdámos o latifúndio tem grandes responsabilidades. Foi esse quadro que ã reforma agrária procurou romper criando uma nova dinâmica social e produtiva. Admito que não o tenha conseguido totalmente - obviamente, até pelas condições históricas e políticas em que se tem desenvolvido o respectivo processo. Admito que haja coisas que pudessem ter sido melhor feitas, outras pior - em muitos casos não se conseguiu ir tão longe quanto se desejaria, devido aos condicionalismos políticos. Mas foi, e é, uma experiência e um instrumento de dinamização do tecido social. E, havendo condições para que naquela região coexistam diversas formas de exploração da terra e diversas formas de propriedade, deveremos criar mecanismos que permitem essa coexistência - mas menos essa coexistência com a expressão do latifúndio, que é responsável pelo secular atraso económico, e não só, também pela segregação de nefastas relações sociais e até políticas.
Página 1005
1 DE SETEMBRO DE 1988 1005
Em relação a uma afirmação que aqui foi feita, porventura exagerada, de que "ninguém gosta da reforma agrária", não é bem assim. Por exemplo, viemos da subcomissão para a análise da proposta de lei n.° 31/V e penso não estar a revelar nenhum segredo se disser que dos 528 pareceres enviados sobre a proposta de lei, 516 - e não são só das UCPs, não são todos só de um quadrante político - são contra a proposta de lei: vindos de variadíssimos quadrantes de opinião.
O Sr. Presidente: - Só que uma afirmação dessas implica o desconhecimento da vossa existência - o PCP gosta da reforma agrária, como é óbvio.
O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - Ainda quanto ao conceito de posse útil. Não quero meter-me por caminhos que não domino como especialista, mas é um conceito que, embora não tenha sido devidamente definido por lei, originou já uma vasta jurisprudência. "É - estou a citar um acórdão - um conceito que não se confunde [tomo a liberdade de citar] com a posse civil, nem com o usufruto, nem com o domínio útil enfitêutico - será antes o direito que os trabalhadores das unidades em autogestão têm de exercer sobre os meios e bens neles integrados os poderes que se referem à sua exploração. Por outras palavras, a afectação jurídica de bens e meios de produção aos fins das pessoas que com eles trabalham será o direito de exploração daqueles que trabalham, em relação à terra expropriada. Posse útil é o direito que têm os trabalhadores de unidades colectivas de exercer os poderes necessários à exploração dos bens e meios de produção nelas integrados." Sobre os contornos e implicações desse direito novo já se pronunciou o meu camarada José Magalhães, em termos que entendi sublinhar por esta forma.
O Sr. Presidente: - Vamos então passar ao artigo 98.°, em relação ao qual há uma proposta de eliminação do CDS, como sempre; há uma proposta de eliminação do PSD, embora tenha uma vaga referência ao problema, na alínea e) do artigo 96.°; há uma proposta de eliminação tout court, do PRD, e há uma proposta de alteração do PS, segundo a qual, em vez de se falar em "explorações", fala-se em "unidades de exploração"; em vez de se falar apenas em "incentivos à integração cooperativa das diversas unidades" e "ainda, sempre que necessário, por recurso a medidas de emparcelamento, arrendamento e outras formas de intervenção adequadas", refere-se uma dimensão "adequada do ponto de vista dos objectivos da política agrícola", por paralelismo com o que se disse quanto às que têm dimensão excessiva, ."nomeadamente mediante incentivos jurídicos, fiscais, creditícios e outros", "à sua integração estrutural ou meramente económica" - também se enriquecem os dois conceitos, pode haver fusão estrutural ou apenas da exploração económica - "nomeadamente cooperativa", "ou por recurso a medidas de emparcelamento". Esta é a nossa proposta. Justifica-se por si, é óbvio o significado das alterações que propomos. Está à discussão.
Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Relativamente à proposta do PS, não tem o PSD muito a objectar. De facto, alguns dos desideratos nela contidos estão já mais ou menos expressos na alínea é) do artigo 96.° do nosso projecto, quando dizemos que a política agrícola tem como objectivos "fomentar a constituição de explorações agrícolas viáveis com dimensão fundiária adequada."
Queria, no entanto, fazer aqui uma pequena objecção, que é mais de redacção do que aquilo que tem a ver com o conteúdo dessa proposta, e é a seguinte: quando aqui se assinala, de modo tricotómico, "nomeadamente mediante incentivos jurídicos, fiscais e creditícios", parece desnecessário o primeiro termo deste conjunto de meios, porque não estou a ver que se possam criar instrumentos fiscais e creditícios que não por via de uma certa autoridade que só a lei pode veicular. Isto é, incentivos jurídicos não será uma alternativa, ao lado de incentivos fiscais e creditícios, visto que é uma qualidade que tem de estar ínsita nos dois meios referidos logo a seguir. Não sei se o PS vai aceitar esta minha objecção, que é meramente formal e de redacção.
Quanto ao resto, disse já que, apesar de o PSD propor a eliminação do artigo 98.°, não há um contraste entre a proposta do PS de alteração e o que é o conjunto das nossas preocupações sobre a política agrícola, visto que a alínea e) do artigo 96.° consagra já essa preocupação que o PS assinala ao nível do artigo 98.° Era apenas esta pequena objecção que queria deixar.
O Sr. Presidente: - Respondo-lhe já: não me parece que a referência aos incentivos fiscais e creditícios pudesse dispensar os jurídicos, pela razão simples de que neste estão todos os direitos de preferência que são instrumentos fundamentais para a política de emparcelamento. Penso mesmo que quem não quiser fazer um emparcelamento momentâneo, mas queira que a propriedade se vá emparcelando por si própria, fará aquilo que o código de Seabra fez ao contrário, por influência do código de Napoleão. O que foi que ele fez? Extinguiu os morgadios e a concentração da propriedade no filho mais velho, passando esta a dividir-se por todos os filhos em pé de igualdade. E o que é que se faria agora? Dir-se-ia assim: propriedades inferiores a x hectares não poderão ser objecto de partilhas, por inventário de maiores ou por partilhas amigáveis entre herdeiros; terão de ser encabeçadas por um deles e o Estado dará apoio creditício e apoio fiscal para que esse possa pagar aos seus co-herdeiros; o vizinho tem preferência na aquisição do terreno do seu vizinho. É uma forma de juntar terrenos que hoje estão divididos e que, naturalmente, com o tempo, se iriam juntando. O proprietário do terreno onerado com uma servidão tem o direito - já hoje é assim - de preferência à compra do terreno a benefício do qual existe a servidão, etc.
Toda a panóplia, que é inimaginável - não só a vigente mas a que pode vigorar -, de direitos de preferência é o caminho mais seguro para o emparcelamento a prazo da propriedade rural. Não são as medidas dirigidas à unificação da Cova da Beira. Um grande emparecelamento na Cova da Beira, ou um grande regadio no Ribatejo? Isso é positivo, mas limitado, e não basta! Melhor é fazer com que o tempo vá corrigindo os efeitos do tempo, segundo uma certa concepção individualista de direito civil. Agora, ao contrário.
Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.
Página 1006
1006 II SÉRIE - NÚMERO 33-RC
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Em complemento daquilo que disse a minha colega Assunção Esteves, e em perfeita concordância com ela, gostaria de referir que o que nos separa desta formulação do PS é quase nada. O grande problema, acrescentaria, não é só a referência à alínea e) do artigo 96.° que nós propomos, mas ainda aquilo que vem dito no artigo 103.°, tal como é por nós proposto. Da conjugação desses dois artigos penso que restaria despicienda a manutenção do 98.° Porquê? Porque os restantes conceitos que aqui vêm implícitos deverão desenrolar-se ao nível da lei ordinária e não ao nível do preceito constitucional. Esta é a nossa visão. É mais uma razão de economia do que qualquer outra razão que dita esta opção.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Deputado Almeida Santos, V. Exa. pré-respondeu a algumas questões que podem suscitar-se e o Sr. Deputado Carlos Encarnação não direi que "fez fecho", mas calculo que bem desejaria tê-lo feito. Gostaria, tão-só, de procurar apurar algumas das diferenças que há entre o texto actual e a proposta do PS que, nesta matéria, pretende reclamar-se de uma melhoria. Aqui, o PS "naturalmente" elimina qualquer alusão a reforma agrária, o que é, de resto, uma herança da primeira revisão constitucional, que tocou no segmento final da norma, eliminando qualquer alusão à mediação de um organismo coordenador da reforma agrária. Houve, portanto, na primeira revisão uma reconceptualizaçâo nesta matéria e uma alteração quanto às questões orgânicas; o PS pretende agora adicionar a isto uma supressão de qualquer dimensão ou conceito de reforma agrária, também quanto ao minifúndio, superando ou eliminando o teor originário da constituição...
O Sr. Presidente: - Sem prejuízo de, a nível da lei ordinária, haver dez reformas agrárias, como é óbvio. Esta, constitucional e única, é que deixaria de ser referida.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Esse é um primeiro aspecto e uma primeira diferença em relação ao texto vigente. A segunda diferença preocupou a Sra. Deputada Assunção Esteves, designadamente, quanto ao facto de o PS pretender alargar a elencagem dos tipos de incentivos que imagina, para conseguir os objectivos de "adequado redimensionamento" das unidades de exploração, que tenham aquilo que o legislador ordinário venha a considerar uma dimensão inferior à adequada no seu (dele) conceito de dimensão. É evidente que a Constituição, na sua redacção actual - aqui estou de acordo com o Sr. Deputado Almeida Santos -, já comporta todos os problemas de definição e de conformação que esta redacção abrange. Isto é: dilucidar o que seja "adequado redimensionamento", como objectivo, exige tarefas de explicitação do conteúdo desse conceito e das suas implicações, coisa que terá de ser aplicada também a esta nova redacção.
Gostaria que V. Exa. pudesse ser um pouco mais preciso, quanto aos objectivos jurídicos em que estão a pensar os autores da proposta do PS. O PS substitui o conceito hoje constante da segunda parte da norma - "incentivos à integração cooperativa das diversas unidades", ou ainda, "sempre que necessário" (mas já numa segunda linha, como segunda via possível de meios) "por recurso a medidas" que, as seguir, se enumeram: emparcelamento, arrendamento (aludindo-se numa outra cláusula, de conteúdo menos espesso, a outras formas de intervenção). Ora bem: o PS substitui esta tripartição por uma noção única de "integração estrutural ou meramente económica"; mas depois descobre-se que, apesar de tudo, não é a única, porque se mantém uma enumeração exemplificativa, com este "nomeadamente cooperativa", "ou por recurso a medidas de emparcelamento".
O que é que se eliminou com isto? Gostava que o Sr. Deputado Almeida Santos pudesse precisar a alteração de conteúdo porque todos podemos ver que se foi o segmento final: "ou outras formas de intervenção adequadas".
Considera o PS que esse conceito está recuperado pela alusão genérica à noção de "integração estrutural ou meramente económica", a qual pode não comportar, pois, uma transformação jurídica abrange antes fórmulas de agregação, de conjugação, de actuação conjunta? Perguntar-lhe-ia, no entanto, se entende que isso ainda pode chamar-se um redimensionamento: quando muito chamar-se-ia um redimensionamento em sentido económico, na medida em que diversas explorações que actuavam desconjugadamente na sua dimensão inicial actuariam agora conjugadamente o que seria uma forma de redimensionamento hoc sensu. Devo dizer-lhe, porém, que é um conceito que carece de precisão.
O Sr. Presidente: - É aí que tem algum significado o facto de falarmos em unidades de exploração. Uma unidade de exploração pode ser constituída por uma só propriedade ou por n propriedades. Aglutinadas do ponto de vista jurídico ou aglutinadas apenas do ponto de vista da sua exploração económica. Os mesmos tractores, a mesma contabilidade, a mesma gestão, a mesma empresa, digamos assim. É uma distinção que enriquece o texto.
Por outro lado, mantemos a menção à solução cooperativa e enriquecemos as medidas de emparcelamento, porquanto falamos em incentivos jurídicos, fiscais e creditícios. Devo dizer que não me lembro de outros. As outras formas de intervenção do Estado estão incluídas nas jurídicas. O legislador dirá o que o Estado pode fazer. A lei já existe, não sei qual foi o seu destino, não sei se já foi aprovada, mas estão nela especificadas formas de intervenção do Estado. É uma lei bastante má, que tive a oportunidade de criticar, e que tem sido inclusivamente piorada em relação à formulação originária. Parece-nos que esta nossa formulação não é pior do que a actual, parece-nos mesmo que a enriquece, mas, se se entender que falta alguma referência útil, estamos dispostos a considerar qualquer proposta nesse sentido. Queremos que se abra a porta a um emparcelamento útil, como calcula, queremos que se criem condições para um emparcelamento efectivo. Portanto, se faltar algo de necessário, pense-se nisso.
Tem a palavra o Sr. Deputado Rogério de Brito.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Sem pretender desde já que a ideia se transforme numa proposta objectiva, pelo menos em termos definitivos quanto à redacção ou quanto a uma aceitação imediata do PS, sugeria o seguinte: o emparcelamento é uma operação obviamente necessária, mas cuja aplicabilidade e efei-
Página 1007
1 DE SETEMBRO DE 1988 1007
tos não só são difíceis como são de longo prazo. Existe todo um conjunto de outros factores de valorização e potencialização da pequena exploração que não são despiciendos e que de algum modo, no texto em geral, estão previstos.
Chamaria, no entanto, a atenção para o caso do arrendamento, já que não sei qual a razão para ter sido retirado do texto inicial...
O Sr. Presidente: - Está incluído nos incentivos jurídicos mas, se quiser, clarifica-se.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Depois se verá. O outro problema será o das condições efectivas de benefício dos terrenos em posse dos "bancos de terras" e que são distribuídos para efeitos de correcção das estruturas agrícolas.
Não sei exactamente qual a formulação a adoptar, mas deixo estas ideias para que efectivamente possam ser analisadas. Numa próxima oportunidade voltaremos à questão.
O Sr. Presidente: - Já hoje a Constituição se não refere aos "bancos de terras" mas, como é óbvio, está também nos jurídicos. Se quiser pô-los cá, especificamente, põem-se.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Talvez se devesse precisar melhor a ideia que apresentei. Não se trata tanto dos instrumentos que existem, é muito mais a orientação daquilo que juridicamente pode ser definido. A disponibilidade por parte do Estado de terras para acções, designadamente de emparcelamento, pode ter orientações distintas. Uma é a de colocar o minifúndio, ou melhor, as unidades de exploração inferiores às unidades mínimas definidas para uma região, como aquelas que são privilegiadas nas medidas de correcção estrutural. Isto é uma opção de política agrícola, temos de saber que tipo de correcção estrutural é que queremos.
Pensamos que constitucionalmente se deve preservar a possibilidade de a pequena exploração agrícola merecer prioridade nas acções de emparcelamento, tendo em vista aproximar a sua dimensão da dimensão da unidade viável. É neste sentido que falei sem mesmo sabermos se a redacção é fácil de elaborar.
O Sr. Presidente: - Na minha intervenção no Plenário disse que conhecia dois tipos de emparcelamento: o emparcelamento que no imediatato aglutina um grande espaço para uma exploração unitária - os regadios, os perímetros de rega, o que se quiser - e medidas jurídicas para actuarem no tempo do género daquelas que referi há pouco. O indivíduo que quiser comprar uma terra que confine com a dele paga menos sisa do que aquele que comprar uma terra que fica a quilómetros. A troca de terras feita por dois indivíduos no sentido de passarem a ter terras confinantes deveria ser isenta ou quase isenta de sisa. São estas medidas que no decurso do tempo vão aglutinando a propriedade, tal como o código de Seabra provocou a sua pulverização. Esta correcção é fundamental para actuar no tempo, não será um efeito imediato. Esse só será conseguido se tomarmos a Cova da Beira, juntarmos o disperso, unificarmos o dividido, expropriarmos onde faltar o consenso, obtivermos uma exploração única.
É claro que a expropriação será sempre uma medida extrema, mas o próprio Governo admite-a na sua proposta, aliás como não podia deixar de ser. Se há um teimoso que se senta em cima da propriedade e diz que só passando o tractor por cima do seu cadáver, temos mesmo de expropriar.
Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - A objecção que fiz foi de certo entendida porque falei para bons entendedores, mas parece-me incorrecto pôr numa descrição fluente e sem peias o género ao lado das espécies. Por que não dizer "incentivos fiscais, cre-ditícios e outras medidas jurídicas"? Talvez fosse mais correcto.
O Sr. Presidente: - Depois veremos, mas penso que não se confundem uns com os outros. Fiscal é fiscal, é a sisa mais barata, o creditício é dar crédito a mais baixo juro e o jurídico é, por exemplo, o direito de preferência. Mas podem existir outras medidas. Aliás, temos no Código Civil seis ou sete casos de direito de preferência dirigidos ao emparcelamento. Já hoje assim é. É o vizinho, o herdeiro, o dono do prédio serviente ou onerado com uma servidão, etc..
No artigo 99.° temos propostas de eliminação apresentadas pelo CDS, PS e PSD, e o PRD apresenta uma proposta que fala em garantias. A sua proposta é do seguinte teor: "Serão respeitadas, nos limites convencionais, a propriedade pública, privada e cooperativa e a posse útil da terra e dos meios de produção utilizados na sua exploração, sem prejuízo de direito de reserva conferido por lei anterior a esta norma."
Não percebo muito bem qual a vantagem desta norma e é pena não termos nenhum Sr. Deputado do PRD para fazer a sua apresentação, de forma que punha à discussão este artigo e as diversas propostas.
Pausa.
Tem a palavra o Sr. Deputado Rogério de Brito.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Sr. Presidente, se, por um lado, se entendem as propostas de eliminação em função da construção de um dado modelo de texto constitucional, é evidente que, de acordo com o próprio conceito que o PS avança em termos de política agrícola, o prescrito em termos da amplitude da reforma agrária e do respeito concomitante pela propriedade da terra dos pequenos e médios agricultores na construção prevista das propostas de alteração poderá, eventualmente, deixar de ter justificação. De qualquer modo, a questão está no facto de se saber se, ao abrir este articulado, ficam as garantias de protecção do direito de propriedade em relação à pequena e média exploração agrícola, a não ser que se subentenda que o direito de propriedade é inerente a todas as explorações independentemente da área, prevendo-se apenas a questão no caso da eliminação dos latifúndios. Mas mesmo nesse caso prevê-se a possibilidade da expropriação e ver-se-á se se deve ou não preservar a garantia do direito de propriedade da terra em relação à pequena e média exploração agrícola, mesmo que o não seja por força das propostas que são feitas no âmbito da reforma agrária, sendo, no entanto, a declaração formal do respeito dessa propriedade.
Página 1008
1008 II SÉRIE - NÚMERO 33-RC
O Sr. Presidente: - Entendemos que sim. Pelo contrário, penso que toda a nossa proposta tende ao reforço em geral da propriedade, mantém o favor constitucional de tudo quanto é pequeno e médio e de tudo quanto é rural e cooperativo e autogestionário, de modo que, lida a nossa proposta, não tenho dúvidas de que essa garantia existe. Talvez não formulada em termos tão claros quanto está aqui, mas existe de facto. Mas, se se entender que há vantagem em manter-se o princípio da garantia da propriedade da terra dos pequenos e médios agricultores, não seremos contra.
Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Penso que realmente não faz sentido, não vale a pena estar aqui este artigo, já que de qualquer das propostas de alteração resulta manifestamente esse escopo. Direi mesmo mais: até nas propostas de alteração que o PSD apresenta há pelo menos duas das alíneas propostas para o artigo 96.° em que são reforçadas as condições de garantia dos pequenos e médios agricultores, designadamente - se o quisermos entender em termos hábeis como é evidente - aquilo que se diz nas alíneas e) tf). Diz-se "fomentar a constituição de explorações agrícolas viáveis com dimensão fundiária adequada" e "incentivar o associativismo dos agricultores e a exploração directa da terra". Penso que, de qualquer das maneiras, em termos hábeis, estas duas alíneas dão a entender que, com toda a certeza, o nosso favor será para o benefício aos pequenos e médios agricultores.
O Sr. Presidente: - Toda a nossa proposta está dirigida nesse sentido.
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - E as nossas também.
O Sr. Presidente: - Como só se expropria o que está acima de um certo máximo, o pequeno e médio agricultor estará automaticamente fora do risco da expropriação, digamos assim. Não sei se vale a pena.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Será pela omissão.
O Sr. Presidente: - Na medida em que a reforma agrária se dirige a corrigir o que é excessivamente grande e excessivamente pequeno, e tendo em conta que se destina a proteger os pequenos e médios agricultores, creio que já está garantido.
Tem a palavra o Sr. Rogério de Brito.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Temos algumas dúvidas que decorrem de razões relacionadas com posições que têm vindo a ser assumidas em matéria de definição de política agrícola. Não podendo fazer-se abstracção das responsabilidades que cabem ao governo do PSD, temos razões para nos preocuparmos quanto a este direito relativo, sobretudo, aos pequenos agricultores. A justificação da nossa preocupação é que efectivamente tem existido um conjunto de propostas que realmente, na prática, põem em risco esse direito de propriedade. Não é que nós estejamos aqui a dizer que defendemos pura e simplesmente a pequena propriedade, a qualquer custo, mesmo à custa da irracionalidade económica, social, etc. Não se trata disso, trata-se que o direito de propriedade não é incompatível com a prossecução de uma correcta política agrícola, já que esta deve funcionar fundamentalmente por via da melhoria das estruturas e por via das acções conducentes a que em último caso o proprietário seja levado a colocar a sua exploração ou em termos de associativismo ou na sua cedência, mas respeitando sempre a propriedade. Chamaria aqui a atenção para a proposta...
O Sr. Presidente: - Há uma coisa que V. Exa. tem de levar em conta. Se nós vamos ao ponto de querer distribuir em propriedade as terras expropriadas a pequenos e médios agricultores, a que título iríamos tirar a propriedade a quem já a tem e é pequeno e médio? Acho que isso está implícito, e até de uma maneira bastante eloquente, na nossa proposta. Nós queremos dar terra àqueles que ainda a não têm. Acha que iríamos retirá-la a quem a já tinha, sobretudo sendo pequeno ou médio agricultor?
Penso, pois, que não é necessário. Mas repito que, se se entender que, apesar disso, existem vantagens em garantir a propriedade de quem já é pequeno e médio proprietário, para além de querermos transformar outros pequenos e médios em proprietários, diga-se. É a terceira vez que digo isto. E a última, claro!
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Nós temos essa preocupação, Sr. Presidente, sobretudo tendo em conta que podem surgir (e surgem, apesar de tudo não são assim tão raros quanto isso) defensores da viabilidade das explorações exactamente à custa da liquidação das pequenas. Há defensores disto e este argumento aparece com uma certa vulgaridade e, além disso, na proposta...
O Sr. Presidente: - O que não quer, dizer que isso esteja na nossa proposta.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Não estou a colocar a questão assim nesses termos. Estou apenas a dizer que o acautelamento de tal situação se pode justificar.
Lembro que, a pretexto da solução de problemas de encrave, mas também da melhoria e da reformulação das explorações agrícolas, a recente proposta governamental de emparcelamento rural prevê, pura e simplesmente, a expropriação e em condições tais que qualquer pequeno agricultor pode ser expropriado sem sequer ser invocada a utilidade pública. E quanto a esses aspectos que manifestamos a nossa preocupação.
O Sr. Presidente: - Como pode ver, não estamos em oposição ao nível das preocupações, antes pelo contrário.
Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Macedo e Silva.
O Sr. Miguel Macedo e Silva (PSD): - Sr. Presidente, gostaria de dizer que não nos impressiona a epígrafe deste artigo porque julgamos que o corpo do artigo está, de alguma forma, em desacordo com a sua epígrafe. No fundo, o que o n.° 1 do artigo 99.° significa é uma garantia acrescida - e levar-nos-á longe a discussão em relação a esta matéria - para os pequenos e médios agricultores, nomeadamente na zona da reforma agrária em relação à titularidade da sua terra.
Página 1009
1 DE SETEMBRO DE 1988 1009
Ora, o PSD no seu projecto de revisão constitucional, nomeadamente através da proposta que faz para o artigo 47.°-A - não estando em causa portanto, a nosso ver, a questão levantada pelo Sr. Deputado do PCP, ou seja, a da eliminação deste artigo da Constituição -, não pretende, como é óbvio, beliscar, minimamente que seja, o direito de propriedade dos pequenos e médios agricultores. Não é isso que está em causa, pelo que não vemos que faça sentido a interrogação feita a este propósito.
Em relação ao n.° 2, também fica salvaguardada esta matéria, do nosso ponto de vista, tanto mais que o podemos confrontar com aquilo que vem disposto no n.° 2 por nós proposto para o artigo 47.°-A. Ou seja, em relação a esta matéria, não vemos que haja especificidades suficientes que permitam autonomizar estas questões num artigo da Constituição porque, no nosso entender, elas inscrevem-se num quadro mais geral, que prevemos e regulamentamos no artigo 47.°-A do nosso projecto.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, gostaria apenas de procurar apurar se entendi bem algumas das coisas que me parecem fluir do debate até agora travado.
O primeiro aspecto relaciona-se com a teoria da equivalência de conteúdos. Alega-se - designadamente o Sr. Deputado Carlos Encarnação teve ocasião de mover alguma oratória nesse sentido - que o conteúdo básico útil do artigo "viria a ser recuperado" pela proposta do PSD respeitante aos objectivos da política agrícola, coisa que me provoca um íntimo movimento de comoção porque o PSD, ao que parece, está a dar de barato que a sua proposta vai ser aprovada. Ora, se bem me apercebi, não se indicia coisa nenhuma nesse sentido.
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Deputado José Magalhães, não é isso que estou a dizer, mas sim a defender a nossa proposta em conjugação com outras propostas nossas para artigos diferentes.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Trata-se, portanto, de um exercício de coerência normativa interna, de tipo especulativo, predominantemente.
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Não, Sr. Deputado. É pura e simplesmente aquilo que VV. Exas. também fazem, isto é, defender sempre as vossas propostas de acordo com a vossa coerência interna. Apresentámos uma série de propostas, concretamente em relação à política agrícola, que, como é evidente, têm uma certa lógica, uma certa ligação entre si. Mais não fiz do que defender esta proposta em conjugação com as outras, pois não faz sentido falarmos nesta proposta sem nos referirmos àquelas que a antecedem.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Carlos Encarnação, acabei de me aperceber - isso lhe agradeço - que o seu discurso era apenas um exercício especulativo. Aquilo que eu me propunha apurar era outra coisa, buscava a consequência prática do debate que estava a ser feito. E isso exige que ponderemos qual é o alcance do preceito, talvez não dando
de barato que a proposta do PSD é para aprovar (congratulo-me com o facto de ser, talvez, o contrário). Ainda assim, os resultados seriam bastante nefastos, como prova tudo aquilo que foi dito e que agora não vou repetir. O que quer dizer que a eliminação desta cláusula não teria, nessa óptica, qualquer contrapartida, nem qualquer vantagem porque seria uma eliminação não acompanhada de transfega, não haveria transfusão do conteúdo; pelo contrário, haveria até uma alteração do quadro envolvente favorável àquilo que aqui se pretende tutelar constitucionalmente. Creio que só por um grandíssimo equívoco é que alguém pode topar no artigo 99.° uma espécie de cláusula de exaltação da propriedade fundiária em si mesma, porque não se trata disso. Talvez, se achasse isso, o PSD pudesse, apesar de tudo, suster a mão que corta. Aquilo que provavelmente impressiona o PSD e o leva à eliminação é o facto de longe de se exaltar aqui a mera propriedade fundiária, se exaltar o cultivo directo; tutela-se, não a propriedade como tal, mas o agricultor enquanto tal, aquele que cultiva a terra e não aquele que dela está alheio. Portanto, tudo isto se insere numa determinada filosofia, que é a da Constituição agrícola que temos, que tem os méritos que já descrevemos e que, de resto, nem sequer se aplica, em relação a diversas das suas dimensões, a certos meios de produção que não são susceptíveis de apropriação senão colectiva. Eis outro limite que o PSD quer suprimir, parte em que, como se sabe, está infelizmente, acompanhado.
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Foi por isso e dentro dessa lógica que lhe citei a alínea e) que propomos para o artigo 96.°, preceito em que se fala expressamente na "exploração directa da terra".
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Carlos Encarnação, não vale a pena fazer um raciocínio sobre uma hipótese especulativa. A não ser que ela deixe de o ser e que nós saibamos que há indiciado algum consenso PSD/PS, pelo menos em gestação adiantada, que torne mais espessa a hipótese de trabalho que está a colocar... Em qualquer caso, vamos dar isso de barato. Proponho esse raciocínio: demos de barato que estaria assegurada uma alteração ao artigo 96.° sobre os objectivos da política agrícola no sentido de que se viesse aditar uma cláusula do tipo "incentivo ao associativismo dos agricultores e incentivo à exploração directa da terra". Ainda aí, Sr. Deputado, uma cláusula desse tipo seria diferente da hoje constante do texto constitucional, que exprime que a aplicação da política agrícola - a política agrícola com o sentido transformador, que é nisso que se traduz a reforma agrária tal qual vem concebida neste artigo - se deve efectuar com garantia da propriedade da terra dos pequenos e médios agricultores, com a cláusula "enquanto instrumento ou resultado do seu trabalho". Esta cláusula, como V. Exa. sabe, não é inocente e visa sublinhar uma determinada vertente, uma vertente de cultivo directo, de ligação directa e imediata à terra, num quadro em que há uma proclamação explícita, abrangente e com ligação a outras partes ou componentes constitucionais que se perderia no texto pelo qual VV. Exas. se batem, além de suprimirem "naturalmente" a referência aos interesses dos emigrantes, o que também coloca alguns problemas, como V. Exa. sabe. Mas porventura ter-se-á obnubilado no seu espírito a
Página 1010
1010 II SÉRIE - NÚMERO 33-RC
memória histórica da génese do preceito e portanto a memória histórica da maneira como os emigrantes foram para aqui chamados e como foi salvaguardada a sua posição jurídica, aspecto que eu não sublinharei adicionalmente.
Subsiste, no entanto, outro problema, uma segunda grande questão. É que provavelmente a questão básica subjacente a este preceito é a da concentração de propriedade e do claro sentido anticoncentracionista que o artigo tem. Esta norma é o contraponto de outras constitucionalmente consagradas e tem como ratio basilar a ideia de um combate à concentração da terra, por razões óbvias relacionadas com uma certa maneira de ver a vida nos campos, com um certo olhar sobre o nosso passado histórico e as consequências desses fenómenos de concentração. Ora, a suprimir-se ou a alterar-se esse equilíbrio subjacente ao preceito e ao suprimir-se, designadamente, a cláusula constante do seu n.° 2, haveria, parece-nos, um desequilíbrio manifesto.
A norma pode ser susceptível de ter, ainda por cima, outras implicações e dimensões se conexionada com o debate que já fizemos sobre a própria questão do latifúndio. Nesse sentido, parece-nos que a manutenção de uma norma deste tipo seria relevante para evitar perversões adicionais em relação àquelas que já seriam introduzidas por certas projectadas normas noutras sedes, em relação à questão do redimensionamento da propriedade. O redimensionamento - facultativo, entenda-se - das unidades que tenham dimensão excessiva (o que quer que isso seja do ponto de vista legislativo, do ponto de vista dos objectivos da política agrícola, o que quer que ela seja e quaisquer que sejam os seus objectivos) introduz um risco de vagueza superior àquele que é contido na obrigação explícita atribuída ao legislador de fixar efectivamente critérios de delimitação das dimensões máximas das unidades de exploração colectiva privada. Entendemos, clara e francamente, que existe uma diferença e não nos parece que o debate se devesse fazer operando-se uma espécie de apologia de uma indiferenciação inexistente pois a diferença existe. Compreendo que o PSD encare isso com algum apetite mas creio que esse apetite, a bem da preservação de alguma dimensão da constituição agrária neste ponto, deveria ser insatisfeito.
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Presidente, este debate tem sido um pouco repetitivo porque a maior parte destes preceitos - insisto - têm uma lógica integrada. Portanto, não podemos discutir preceito a preceito...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto, têm uma lógica integrada.
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - ... sob pena de não compreendermos a visão global que cada um dos partidos pretendeu dar à sua posição perante a questão da política agrícola. E, tornando-me maçador, embora a tanto seja movido, voltaria a citar o artigo 103.° da proposta do PSD, em que se fala da política de redimensionamento fundiário. A questão continua, pois, a ser posta pelo PSD nos verdadeiros termos e nos verdadeiros limites em que o PSD entende que deve ser colocada. Daí que tenha sido levado, logo no início deste debate, a dizer que as propostas do PSD e do PS não são substancialmente diferentes e que há um perfeito campo de manobra para que ambas as propostas referidas sejam, eventualmente, em sede de revisão do texto dos artigos finais desta matéria, devidamente equilibradas. É neste sentido que, mais uma vez, faço menção de lhe reportar a nossa posição quanto a toda a área da política agrícola das propostas de revisão constitucional, sem deixar de lhe dizer que aquilo que V. Exa. referiu estar esquecido na proposta do PSD está reflectido no artigo 103.° O problema do redimensionamento fundiário está aqui explicitamente incluído como obrigação do Estado. Certamente não se estabelece qual é o limite, mas é evidente que tal dependerá da legislação ordinária.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Volto a repetir que as coisas por vezes não são propriamente tão inocentes quanto podem parecer - e não estou a pôr aqui em questão o Sr. Deputado mas sim a construção do texto constitucional - ou então são de tal forma evidentes que não podem ser aceites como inocentes. O que é que isto quer dizer, numa linguagem que não tem necessariamente de ser jurídica - e mesmo essa seria extremamente confusa? O PSD propõe: "O Estado promoverá uma política de redimensionamento fundiário, de ordenamento e reconversão agrária, de acordo com os condicionalismos ecológicos e sociais do País." Sr. Deputado, traduza-me isto para que o legislador tenha parâmetros de condução. De facto, tem de haver limites ou então não se justifica a Constituição. A Constituição confere limites políticos e sociais ao próprio poder político. O que é que se entende por "redimensionamento fundiário, de ordenamento e reconversão agrária, de acordo com os condicionalismos ecológicos e sociais"?
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Duas das expressões que citou já vêm do artigo 103.°, tal qual consta hoje da Constituição. Na verdade, a política de ordenamento e reconversão agrária já consta da Constituição; a expressão agora introduzida é apenas "a política de redimensionamento fundiário".
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - De acordo. No entanto, no actual artigo 103.°, a precedê-lo, estabelece-se que. é respeitada, mesmo em todas as acções de reconversão, de redimensionamento, de reformulação, a propriedade dos pequenos e médios agricultores.
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Em relação à primeira parte, já referi aquilo que dizemos no artigo 96.° Quanto à segunda parte, relativamente à qual está a colocar alguns problemas, ou seja, à questão da determinação dos limites máximos de unidades de exploração, não repetimos aquilo que hoje consta da Constituição. De facto, o nosso critério assenta na determinação daquilo que, a nosso ver, se deve reportar à definição dos princípios constitucionais da obrigação do Estado de promover uma política de redimensionamento fundiário. É a isso que, em nosso entender, se deve limitar o preceito constitucional, devendo, no restante, tudo isto ser objecto de legislação ordinária. Consequentemente, é esta a nossa posição de princípio e, com franqueza, não vejo necessidade de lhe dar esclarecimentos adicionais em relação a esta matéria. Faço-lhe notar que não estamos a falar de reforma agrária, mas de política agrícola, de questões que se
Página 1011
1 DE SETEMBRO DE 1988 1011
atêm ao País inteiro onde, como sabe, existem problemas de minifúndio, de latifúndio, de insuficiência da exploração agrícola, etc., e estamos a tentar encarar isto, não numa visão de perversão, mas numa visão de bonificação em relação ao agricultor em geral.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Penso que o problema não tem que ser encarado estritamente naquilo que o PSD pensa quanto ao que a sua proposta estabelece mas quanto àquilo que pode ser entendido seja qual for a força política que estiver a exercer o poder. O que é que isto significa? A Constituição tem que, evidentemente, definir limites mínimos dos próprios direitos do cidadão. Ora, um dos direitos pode ser a propriedade dos pequenos e médios agricultores. É preciso que isso fique bem explícito, porque as alusões à reconversão, à renovação de acordo com áreas mínimas, conexionadas com o conceito de viabilidade, etc., não dão garantia da propriedade ao agricultor.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Penso que o Sr. Deputado Carlos Encarnação disse já praticamente tudo o que havia a dizer sobre este preceito. Contudo, parece-me que devem ser consideradas algumas qualificações ou algumas preocupações que o Sr. Deputado Rogério de Brito aqui manifestou e fazer-se uma pequena análise dessas preocupações.
Quando o Sr. Deputado insiste preocupadamente na necessidade de estabelecer limites, que têm de ser expressos, que devem servir a qualquer poder constituído e que devem ser fixados pela Constituição de modo criterioso e seguro, exprime um entendimento que faz sentido na lógica de um partido que no âmbito do conjunto de artigos em análise não faz qualquer proposta de alteração. Ou, se a faz, fá-la no sentido do reforço do actual texto constitucional.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Não é um crime!
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Não é um crime, mas justifica a sua preocupação relativamente aos limites.
É óbvio que este conjunto de artigos, eivado de uma voracidade socializante - e perdoe-me o exagero do termo -, eivado de uma preocupação com uma reforma agrária que tudo remove, tem que chegar exactamente ao artigo 99.° e dizer: "Afinal há alguns limites, afinal perdoamos aos pequenos e médios agricultores, afinal aqui não se mexe, afinal aqui há um critério." É óbvio que não pode o Sr. Deputado exigir limites a outros partidos que, neste contexto constitucional, consagram uma política agrária moderada, em que o respeito pelos pequenos e médios agricultores é quase um princípio que faz parte do teor lógico e filosófico da nossa reorganização agrária; é óbvio, Sr. Deputado, que a nossa preocupação pelos limites acaba por ficar diminuída. Ela está de facto estruturalmente ínsita no nosso projecto de política agrícola, não fazendo sentido essa preocupação, que exactamente é um mecanismo compensatório da vossa voracidade constitucional relativamente à reforma agrária.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Pretendia perguntar-lhe, Sra. Deputada, se esse conceito de respeito pelos pequenos e médios agricultores que acabou de defender tão veemente é aquele que decorre da actuação que o governo do PSD tem tido no caso dos emparcelamentos do Baixo Mondego, da Cova da Beira e outros do Algarve, onde, sistematicamente, direitos inalienáveis do pequeno agricultor têm sido postos em causa, sem respeito sequer por indemnizações. Se é esse o conceito que, tão veemente, defendeu, então compreende-se porque é que se pretende retirar todo o conteúdo constitucional: desejam campo aberto. Porque a prática tem demonstrado que, mesmo com travões constitucionais, o arbítrio e o abuso do poder têm tido lugar; sem quaisquer protecções de ordem constitucional, mais haveria...
Apresentaram nesta Assembleia uma proposta para ser debatida no Plenário, na qual se prevê a expropriação por pretextos que não têm nada a ver nem com utilidade pública nem com racionalidade técnico-económica das explorações agrícolas.
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras da oradora.)
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Se acha que é necessário citá-la, peço que me dê um minuto ou dois para a ir buscar. Reproduzi-la-ei aqui e verá que efectivamente não respeita a propriedade do pequeno e médio agricultor.
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Nesse caso, Sr. Deputado, das duas uma: ou o PCP, conhecendo esses factos, que reputa de tão graves, não propôs uma alteração ao artigo 99.° porque acredita no êxito das propostas de quem não propõe alteração, mas tem já uma política constitucional agrária definida no sentido da defesa dos pequenos e médios agricultores, ou foi um lapso do PCP não ter proposto uma alteração, porquanto este preceito não é uma válvula de segurança suficiente.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - O que eu diria é que o PSD suprime o artigo relativo à eliminação dos latifúndios e os entraves ao respeito pela propriedade dos pequenos e médios agricultores. A conclusão é simples: trata-se de reforçar a grande exploração à custa da pequena. É tão claro como isto!
Entretanto, reassumiu a presidência o Sr. Presidente Rui Machete.
O Sr. Presidente: (Rui Machete): - Sr. Deputado, V. Exa. insiste na força normativa do fáctico, dentro da sua interpretação.
Tem a palavra o Sr. Deputado Lino de Carvalho.
O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - É verdade que esta interpretação da eliminação do artigo 99.° por parte do PSD resulta de uma análise global do conjunto dos articulados constantes do respectivo projecto de revisão constitucional.
A verdade é que se cotejarmos a eliminação do artigo 99.° (que é uma barreira constitucional à concentração da propriedade e é, enfim, uma defesa constitucional à defesa da pequena e média propriedade),
Página 1012
1012 II SÉRIE - NÚMERO 33-RC
com a eliminação de outros conceitos em articulados anteriores, o balanceamento do quadro global criado é evidente: abrem-se as portas, escancaram-se as portas, no plano constitucional, para a reconcentração da propriedade e da exploração, com diminuição do direito de propriedade dos pequenos agricultores. Esta interpretação é clara e não se pode deduzir daqui outra. Uma coisa são as intenções, outra coisa, são as realidades resultantes desta análise.
Por outro lado, recupero para esta discussão a questão que se tinha levantado no artigo 97.°, a necessidade de se vir a manter o n.° 2 do artigo 99.°, o que nós defendemos, isto é, a determinação através da lei ordinária dos critérios de fixação dos limites máximos das unidades de produção agrícola privada. Aqui, ou no articulado anterior, como há pouco o PS admitiu, parece-nos essencial que esse limite fique. Se eliminamos o articulado que garante o respeito pela propriedade do pequeno e médio proprietário, se suprimimos o articulado relativo à eliminação do latifúndio e se se elimina ainda a obrigação de definição por lei dos limites máximos das unidades de exploração agrícola privada, eliminamos na prática todas as barreiras para a reconcentração da propriedade e da exploração, substituindo-se por alguns conceitos vagos, que são muito menos fortes que os actuais, ficando muito mais debilitado o quadro constitucional. É absolutamente necessário que o artigo 99.° fique.
O Sr. Presidente: - Suponho que as matérias já estão suficientemente dilucidadas e reiteradamente feitas as afirmações de um lado e do outro. Poderíamos entrar no artigo 100.°, se não houvesse objecções.
Pausa.
Sobre o artigo 100.° (cooperativas e outras formas de exploração colectiva), há quatro propostas, todas elas de idêntico teor, apresentadas pelo CDS, pelo PS, pelo PRD e pelo PSD, cujo sentido é o da supressão do referido preceito. Começaria por solicitar, uma vez que o CDS não está presente, que o PS, querendo, apresentasse uma justificação sucinta da sua proposta.
O Sr. Almeida Santos (PS): - O Sr. Presidente incorreu, o que é raro, em pecado de distracção, porque não deu conta de que a nossa eliminação é apenas a transposição prática do texto para a alínea d) do artigo 102.° No fundo, o significado útil deste artigo 100.° é o apoio do Estado a cooperativas de produção, de compra, etc., o que nós salvaguardamos. Na parte em que não é isso, é dizer que a realização dos objectivos da reforma agrária implica a Constituição, por parte dos trabalhadores rurais, de cooperativas, preceito que nunca entendi. Quer dizer: haver um preceito constitucional, segundo o qual "a realização dos objectivos da reforma agrária implica a constituição "por pessoas", que não estão obrigadas a constituí-los, "de cooperativas", é a mesma coisa que colocar a realização da reforma agrária na dependência do arbítrio de terceiros. Eu pergunto: implica necessariamente? E, se não constituírem, não há reforma agrária? Nunca percebi a primeira parte deste artigo 100.° A segunda parte compreendo-a perfeitamente e está recuperada na alínea d) do artigo 102.° da proposta do PS. Portanto, não é uma eliminação, é apenas uma alteração sistemática do conteúdo essencial do dispositivo.
O Sr. Presidente: - Eu compreendo, portanto, que a interpretação dada pelo PS é a passagem de alguns aspectos de apoio e, portanto, V. Exa. considera que o conteúdo essencial não é a realização da reforma agrária através do apoio às cooperativas.
Como essa era na perspectiva o conteúdo mais significativo do artigo 100.°, julgo que, estando de acordo, eu mantenho a ideia que o PS...
O Sr. Almeida Santos (PS): - Mas é que temos cá isso: o estímulo e apoio ao associativismo dos agricultores, nomeadamente a constituição por eles de cooperativas. Agora dizer que a realização da reforma agrária implica a constituição de cooperativas!... É colocá-la na dependência de um acto voluntário de terceiros.
O Sr. Presidente: - Mas com esta explicação do PS, em relação à qual há um certa divergência de qualificação quanto ao conteúdo essencial, mas com que estamos de acordo, perguntaria ao PSD se quer, para além das explicações que já abundantemente deu em reuniões anteriores, reiterar as suas explicações acerca da supressão proposta para o artigo 100.°
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - É evidente que este artigo, na esteira do que se conclui na intervenção do PS, não faria sentido, seria um modo autoritário de impor qualquer coisa que nos parece despicienda. Por outro lado, e naquilo que se refere ao associativismo, mais uma vez venho com a alínea e) do artigo 96.°; quer dizer aquilo que nos parecia essencial, diz o Sr. Deputado Almeida Santos que temos sempre um cheirinho de qualquer coisa, o que é óptimo.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Tem sempre um cheirinho, mas não passam disso.
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Porque realmente é óptimo, porque significa que nós tivemos preocupação com alguma coisa de essencial.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Eu tenho impressão que o seu problema é o de realmente não estar dentro do léxico ligado aos problemas fundiários. Confunde coisas que não têm nada de comum.
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Mas porquê? Qual é o léxico aqui?
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Confundir "fomentar a constituição de explorações agrícolas viáveis com dimensão fundiária adequada" com "cooperativas".
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Não, não. É a alínea f).
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Incentivar o associativismo dos agricultores...
Página 1013
1 DE SETEMBRO DE 1988 1013
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Isso é que nos parece essencial. Agora determinar a constituição de cooperativas parece-nos excessivo. E não diria mais.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Não se trata de determinar ou impor. Agora trata-se de conceber critérios de privilegiar a organização cooperativa dos produtores.
Já agora, se me permite, colocar-lhe-ia outra questão. Seria bom que tivéssemos presente (tantas vezes que se chama à colação o facto de estarmos na CEE!) o grau de organização cooperativa. Atenção, porque o associativismo de produção podem ser sociedades de agricultura de grupo, podem ser sociedades de diverso tipo, etc.. Convém ter presente o grau de realização, o grau de organização cooperativa da agricultura europeia e sobretudo ter em conta que os países mais desenvolvidos na Comunidade são exactamente aqueles onde mais se avançou na organização cooperativa. Chamo a atenção para o facto de os senhores, aqui, eliminarem na vossa proposta, mas lá chegaremos, o auxílio do Estado às formas cooperativas de produção. É um perfeito antagonismo com as leis gerais de desenvolvimento da própria agricultura europeia. Os senhores eliminam tudo, em defesa de quê? É isso que eu gostaria de ver explicado. Por que é que deixam de contemplar todos estes mecanismos de apoio à produção?
O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado Rogério de Brito, não esteve aqui quando nós fizemos a explanação de carácter geral, e não gostaria de massacrar os outros Srs. Deputados, designadamente o Sr. Deputado José Magalhães, com a explicação nesta matéria, mas, se VV. Exas. insistirem, nós voltaremos a repetir a explicação que já consta das actas.
É que nós temos concepções completamente, abissalmente diferentes nesta matéria. A nossa ideia é extremamente simples, e eu repito-a da forma o mais sucinta possível. Na nossa perspectiva, não aceitamos a ideia da reforma agrária que constitui uma das aplicações do princípio colectivista marxista-leninista estruturante da Constituição numa determinada concepção. E, considerando que assim é, entendemos que é perfeitamente suficiente estabelecer, dentro daquilo que deve ser a natureza de uma Constituição, a norma que consigna as orientações em matéria de política agrária. Isto não se traduz necessariamente em eliminar todos os aspectos, todas as manifestações do auxílio do Estado à agricultura, nem significa que se eliminem as diversas fórmulas associativas em que os agricultores se reúnem para explorar a terra. O que entendemos é que isso não tem que constar de normas programáticas e menos ainda de normas programáticas que traduzam uma determinada orientação ideológica à qual nos opomos. É esta a explicação em toda a sua simplicidade, e é óbvio que VV. Exas. não vão concordar connosco; talvez um dia no futuro quando fizerem uma revisão, como agora registo com muito prazer que houve na União Soviética, uma reabilitação do Kamenev e do Zinoviev (isto foi uma coisa espantosa com um significado transcendental), talvez um dia VV. Exas. sigam um raciocínio paralelo no futuro, quem sabe? Na verdade, neste momento estamos com certeza em profundo
e diametral desacordo. Registamos esse desacordo, e penso que, neste caso, uma vez precisada bem a razão do nosso desacordo, não nos zangamos por causa disso e podemos ir adiante.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Se me permite, direi somente, Sr. Presidente, que agradeço muito o esclarecimento que deu, mas penso que dele deu apenas uma primeira parte, de que, aliás, eu já tinha conhecimento. De qualquer modo, agradeço a repetição.
O Sr. Presidente: - Eu é que peço desculpa.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Eu agradeço-lhe muito o esclarecimento que deu, mas falta-lhe dar a segunda explicação que eu aguardo para o artigo 102.°
O Sr. Presidente: - Lá iremos.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Porque, se agora se desculpa com a reforma agrária, a seguir veremos qual será a justificação.
O Sr. Presidente: - Também a há V. Exa. verá. Tem a palavra o Sr. Deputado Lino de Carvalho.
O Sr. Lino de Carvalho (PCP): - É evidente que não é minha pretensão modificar as posições do PSD nesta matéria, nem do PS. De qualquer modo recordo que o actual texto constitucional reflecte a preferência que foi dada a formas associativas de organização da terra. Não é uma preferência absoluta, uma vez que noutros articulados do texto constitucional também se dá relevância à exploração individual da terra, mas procurou-se, tanto quanto nós podemos interpretar que neste artigo houvesse alguma relevância para as formas cooperativas da exploração da terra como forma de melhor aproveitamento dessa terra e de melhor organização social da terra. A eliminação deste artigo, que vem na sequência da eliminação de outras referências anteriores a estas formas de exploração da terra e sobretudo à eliminação dos conceitos relativos à reforma agrária, visa enfraquecer este desiderato de apoio e de preferência pelas formas cooperativas no sector agrícola.
É verdade, e ainda bem que é verdade, que o projecto do PS recupera na alínea d) do artigo 102.° o essencial desta matéria do artigo 100.°, embora seja também verdade que, na lógica dos artigos anteriores, se volta a eliminar toda a referência aos conceitos de reforma agrária, coisa que, em nossa opinião, devia ser reconsiderada, depois, em sede de revisão do texto.
O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado José Magalhães pede a palavra. Faça favor, Sr. Deputado.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, é só para tocar uma questão que, numa rápida troca de impressões com os meus camaradas, pude apurar não tem sido abordada em termos de uma clarificação completa. Dirigia uma pergunta ao Sr. Deputado António Vitorino, ao PS. Este procurou fazer aqui a demonstração da "equivalência de conteúdo" entre aquilo que vem proposto nos artigos 102.°, n.° 2, alínea d), na redacção do PS, e 97.°, n.° 2, nomeadamente no seu
Página 1014
1014 II SÉRIE - NÚMERO 33-RC
segmento inicial, e aquilo que hoje consta do artigo 100.° da Constituição. Sucede que o artigo 100.° da Constituição está gizado não apenas em torno da realidade da criação de cooperativas sejam elas de produção, de compra, de venda, de transformação e de serviços, mas também na existência de outras formas de exploração colectiva por trabalhadores. É aqui que, entre outros pontos da Constituição, se funda a tutela constitucional das chamadas UECTs (unidades de exploração colectiva por trabalhadores), cujo conteúdo e cuja realidade são aqueles que todos conhecemos. O PS alega ou refere que o n.° 2 do artigo 97.° prevê ou mantém a previsão da existência de outras formas de exploração colectiva por trabalhadores, não sendo legítima, pois, a observação de perda de conteúdo, feita pelo PCP. No entanto gostava de perguntar ao Sr. Deputado António Vitorino: é verdade, ou não, que o artigo 100.° actual se caracteriza pelo facto de apontar para a garantia do apoio do Estado à constituição de todas estas realidades, designadamente das outras formas de exploração colectiva por trabalhadores, coisa que na operação de cisão/eliminação, fusão e depois de redifusão, proposta pelo PS, se perde? Se o PS tivesse incluído na alínea d) do artigo 102.°, n.° 2, alguma coisa que aludisse à obrigatoriedade do apoio do Estado também à formação de outras formas de exploração colectiva por trabalhadores, a afirmação do deputado Vitorino seria legítima; sem isso essa afirmação não é legítima: as UECTs estariam referidas no artigo 97.°, n.° 2, como possíveis (apenas possíveis), mas a obrigatoriedade de apoio ao Estado para que esta possibilidade se transforme em realidade inexistiria. É ou não assim Sr. Deputado António Vitorino? É que isso é importante para se poder ajuizar rigorosamente, e queríamos que o nosso juízo sobre a proposta do PS fosse o mais rigoroso possível.
O Sr. Presidente: - Quer V. Exa. responder a esta inquirição, Sr. Deputado António Vitorino?
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não é uma inquirição, Sr. Presidente, gostava de frisar esse aspecto!
O Sr. António Vitorino (PS): - As perguntas do Sr. Deputado José Magalhães nunca são verdadeiramente perguntas, portanto a resposta que eu der ao Sr. Deputado José Magalhães não acrescentará, nem retirará, nenhuma das convicções que ele tem, quando formula a pergunta. Creio que o problema que o Sr. Deputado José Magalhães coloca é um problema do âmbito do artigo 102.° da Constituição, do auxílio do Estado. A noção de apoio do Estado que vem no artigo 100.° é uma noção mais restrita, na medida em que é um apoio do Estado para a realização dos objectivos da reforma agrária. Ora, como nós eliminámos...
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Não é.
O Sr. António Vitorino (PS): - É, desculpem mas é. O que o artigo diz é: "A realização dos objectivos da reforma agrária implica a constituição, por parte dos trabalhadores rurais e dos pequenos e médios agricultores, com o apoio do Estado, de cooperativas de produção [...]"
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - É que está a fazer uma leitura, e não foi esse o problema que nós colocámos. Se permitisse e se não leva a mal...
O Sr. António Vitorino (PS): - Eu nunca levo nada a mal.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Esse humor fica-lhe bem, mas não está a responder à questão que lhe foi colocada. De maneira que, e sem repetir a dose de humor que acaba de manifestar, dir-lhe-ia o seguinte: no artigo 97.° a proposta do PS prevê que as terras expropriadas serão entregues, entre outros, a unidades de exploração colectiva por trabalhadores. Correcto?
O Sr. António Vitorino (PS): - Sim, sim, eu reconheço.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Mais à frente quando chega ao artigo 102.°, que respeita ao auxílio do Estado, o PS prevê que este apoiará, por via de estímulos o associativismo dos trabalhadores rurais s dos agricultores, nomeadamente para constituição por eles de cooperativas de produção, de compra, de venda, de transformação e de serviços. O que o PCP diz é tão-somente isto: mantendo o PS os próprios princípios que enumera no artigo 97.°, exigir-se-ia que no artigo 102.°, por exemplo, se dissesse: nomeadamente à constituição por eles de cooperativas... incluindo unidades de exploração colectiva por trabalhadores. Manteriam, assim e só assim, o mesmo critério que têm no artigo 97.° Não apenas se admitiria a existência de UECTs, mas considerar-se-ia que essas unidades também são passíveis de auxílio do Estado. É isso Sr. Deputado.
O Sr. António Vitorino (PS): - O Sr. Deputado Rogério de Brito, por acaso, é mesmo por mero acaso posso garanti-lo, tinha percebido que era exactamente isso. E estava a dar-lhe a resposta que entendia que devia dar. Mas, se não comecei a resposta por onde V. Exa. esperava, começo agora exactamente onde a deixei.
O que está em causa no artigo 100.° é a referência ao apoio do Estado, no quadro da realização dos objectivos da reforma agrária, com a contradição lógica, que o Sr. Deputado Almeida Santos já sublinhou neste artigo, de que a realização dos objectivos da reforma agrária implicaria a constituição, por parte dos trabalhadores rurais, dos pequenos e médios agricultores, de cooperativas de produção, de compra, de venda, de transformação e de serviços. A observação que os Srs. Deputados do PCP nos querem fazer não tem a ver com o artigo 100.°; tem a ver com o artigo 102.°, e apenas com este, e com o quadro do auxílio do Estado previsto no artigo 102.° E em relação a isso, o que o PS pode dizer é que, quando chegarmos ao artigo 102.°, teremos ocasião de ponderar os argumentos de VV. Exas. Agora, quanto ao artigo 100.°, o efeito útil que ele contém está, em nosso entender, recuperado na alínea d) do artigo 102.°
Percebo muito bem o que os Srs. Deputados do PCP querem colocar: é o facto de que na enumeração do favor que a Constituição consagra nós não incluímos,
Página 1015
1 DE SETEMBRO DE 1988 1015
na discriminação do artigo 102.°, as unidades colectivas de exploração. Percebi isso muito bem, só que essa questão não tem a ver com o artigo 100.°, mas sim com o artigo 102.°
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - O que estamos a dizer é isto: a eliminação do artigo 100.° como o PS propõe tem consequências muito importantes se no artigo 102.° (nos auxílios do Estado) estiverem em consideração as UECTs. Não é a mesma coisa eliminar neste e não contemplar também no outro as UECTs!
Se quer guardar o problema para quando chegarmos ao artigo 102.°, com certeza. Mas entenderá que, ao analisarmos um artigo, é natural que procuremos encontrar o seu exacto significado no conjunto do articulado.
O Sr. António Vitorino (PS): - Já percebi qual é a lógica da observação dos Srs. Deputados, e também já lhes disse que, parece-me, essa lógica crítica tem mais a ver com a enumeração que fazemos no n.° 1 do nosso artigo 102.° do que propriamente com a recuperação que fazemos, para a alínea d) do n.° 2 do artigo 102.°, do conteúdo útil do artigo 100.° É só isto. Nada mais.
Quando chegarem ao artigo 102.°, explanarão detalhadamente essa concepção.
Mas, se quiser, também posso pronunciar-me sobre esse assunto já - não tenho problema nenhum.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Também não é necessário, absolutamente necessário. Colocámos a questão apenas porque parece que era indissociável.
O Sr. António Vitorino (PS): - Mas, Sr. Deputado Rogério de Brito, apesar de tudo, há uma lógica diferente. Não quero ser teimoso, e não costumo ser teimoso, mas há uma lógica diferente. Uma coisa é a Constituição consagrar o apoio a certas formas de exploração da terra, no quadro da reforma agrária; outra coisa é a Constituição consagrar o apoio a certas formas de exploração da terra no quadro da concretização dos objectivos da política agrícola. O PS procede a uma substituição integral dos conceitos de reforma agrária pelos conceitos de política agrícola e, portanto, dentro do nosso próprio quadro de análise, o que os Srs. Deputados nos podem colocar é: por que é que, no quadro dos objectivos da política agrícola, nós, no artigo 102.°, não fazemos referência ao apoio do Estado às outras formas colectivas de exploração. E essa é uma observação que teremos muito prazer em considerar, no quadro do artigo 102.° E é uma observação justa e ponderável. Agora, não podemos é corroborar a tese de que o auxílio do Estado deveria ser recuperado no âmbito da reforma agrária. Porque, como nós eliminámos todas as referências aos conceitos de reforma agrária e como, no artigo 100.°, o apoio ao Estado está integrado tendo em vista a realização dos objectivos da reforma agrária, é nesse contexto que na nossa opinião não faria sentido recuperar o primeiro segmento do artigo 100.°
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Afinal, não nos percebeu tanto quanto dizia que tinha percebido. É que estava no artigo 100.°, mas...
O Sr. António Vitorino (PS): - Eu sei que está no artigo 102.°
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Não sei se está. Mas acabou de dizer que até está de acordo com isso, que é ponderável.
O Sr. António Vitorino (PS): - É ponderável por uma razão muito simples. Quando chegarmos ao artigo 102.°, podemos voltar a discutir isto, mas posso adiantar, desde já, qual foi a lógica.
Nós consagrámos uma garantia institucional para as unidades de exploração colectiva por trabalhadores no artigo 97.° E entendemos consagrar um regime de favor em termos de auxílio do Estado no n.° 1 do artigo 102.°, que contempla os pequenos e médios agricultores e, de entre estes, os integrados em esquemas de exploração familiar, individualmente ou integrados em cooperativas, e as próprias cooperativas de trabalhadores agrícolas. Em nosso entender, neste conceito de cooperativas de trabalhadores agrícolas, também está compreendida a realidade das outras formas colectivas de exploração por trabalhadores.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Sr. Deputado, pergunto: é um problema para os Senhores tendo reconhecido, em termos de texto constitucional, no artigo 97.°, essas unidades de exploração colectiva por trabalhadores, reconhecê-las, pelo mesmo critério, na área do auxílio do Estado?
O Sr. António Vitorino (PS): - É uma observação que ponderaremos - é o máximo que lhe posso dizer.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - E é tão-somente a questão que nós colocamos.
O Sr. António Vitorino (PS): - Posso estar, hoje, particularmente obtuso, o que acontece quando o tempo está assim húmido, mas percebi muito bem o que é que queriam, mas muito bem!
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Com certeza que nós queremos alguma coisa! É evidente!
O Sr. António Vitorino (PS): - Nunca duvido. E, em matéria de reforma agrária, querem sempre o mesmo.
O Sr. Presidente: - VV. Exas., de resto, têm ajudado muito à comprovação das minhas teses de interpretação global da Constituição.
O Sr. António Vitorino (PS): - Isso é dramático!
O Sr. Presidente: - Mas isso é uma matéria que abordaremos oportunamente.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Sr. Presidente, o problema não é esse. É que, apesar de tudo, independentemente dos custos, vantagens, inconvenientes, etc., é tudo uma questão, também, de mantermos, ou não, o mesmo discurso, os mesmos princípios, independentemente dos sítios, ou das alturas. O que é que isto
Página 1016
1016 II SÉRIE - NÚMERO 33-RC
quer dizer? Quer dizer que não há para nós razão para que, hoje, 1988, tenhamos de alterar a posição que tínhamos em 1985, ou em 1979. Não há razões para isso.
O Sr. Presidente: - Para VV. Exas. passou ainda pouco tempo, reconheço isso.
O Sr. Rogério de Brito (PCP): - Outros alteram, mas isso é outra questão. Sem prejuízo, no entanto, de nós não estarmos aqui defendendo determinadas formas processuais da reforma agrária. Estamos pondo aqui a questão da reforma agrária em si mesma. Não discutimos aqui direitos, nem processos de distribuição da terra, nem beneficiários da distribuição da terra. Estamos discutindo, tão-somente, a eliminação do latifúndio, ou a constitucionalização do latifúndio como questão chave da revisão constitucional. Porque parece que há alguns que defendem que é uma benfeitoria a reposição do latifúndio...
O Sr. Presidente: - Parece, mas não é verdade, não corresponde à realidade, como a consulta das actas mostrará abundantemente.
Não sei se há mais alguma intervenção sobre o artigo 100.°
Pausa.
Não havendo, o Sr. Deputado José Magalhães pediu-me para encerrarmos hoje os debates na passagem do artigo 100.° para o artigo 101.° Já passámos, de resto,
o artigo 100.° Suponho que não há objecções, em virtude das razões que o Sr. Deputado apresentou. Reiniciaríamos os nossos trabalhos amanhã. Srs. Deputados, está encerrada a reunião.
Eram 19 horas e 15 minutos.
Comissão Eventual para a Revisão Constitucional
Reunião do dia 21 de Junho de 1988
Relação das presenças dos Srs. Deputados
Rui Manuel P. Chancerelle de Machete (PSD).
Carlos Manuel de Sousa Encarnação (PSD).
António Costa de Sousa Lara (PSD).
José Álvaro Pacheco Pereira (PSD).
José Augusto Ferreira de Campos (PSD).
José Luís Bonifácio Ramos (PSD).
Licínio Moreira da Silva (PSD).
Luís Filipe Garrido Pais de Sousa (PSD).
Manuel da Costa Andrade (PSD).
Maria da Assunção Andrade Esteves (PSD).
Mário Jorge Belo Maciel (PSD).
Miguel Bento da Costa Macedo e Silva (PSD).
Rui Alberto Limpo Salvada (PSD).
Rui Manuel Lobo Gomes da Silva (PSD).
António de Almeida Santos (PS).
António Manuel Ferreira Vitorino (PS).
Jorge Lacão Costa (PS).
José Manuel Santos Magalhães (PCP).
José Manuel Mendes (PCP).