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Terça-feira, 13 de Setembro de 1988 II Série - Número 35-RC
DIÁRIO da Assembleia da República
V LEGISLATURA 1.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1987-1988)
II REVISÃO CONSTITUCIONAL
COMISSÃO EVENTUAL PARA A REVISÃO CONSTITUCIONAL
ACTA N.° 33
Reunião do dia 23 de Junho de 1988
SUMÁRIO
Finalizou-se a discussão do 11.° relatório da Subcomissão da CERC, respeitante aos artigos 96. ° a 104. ° e respectivas propostas de alteração.
Procedeu-se à discussão do 12. ° relatório da Subcomissão da CERC, relativo aos artigos 105.º a 110.º e respectivas propostas de alteração, com excepção do artigo 108.º, cuja análise ficou para ulterior reunião.
Iniciou-se a discussão do 13.° relatório da Subcomissão da CERC, respeitante aos artigos 111.º a 122.° e respectivas propostas de alteração.
Durante o debate intervieram, a diverso título, para além do presidente, Rui Machete, pela ordem indicada, os Srs. Deputados José Magalhães (PCP), Costa Andrade (PSD), Almeida Santos (PS), Carlos Encarnação (PSD), Raul Castro (ID), Maria da Assunção Esteves (PSD), Rui Salvada (PSD), Octávio Teixeira (PCP), António Vitorino (PS), Sousa Lara (PSD) e Jorge Lacão (PS).
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O Sr. Presidente (Almeida Santos): - Srs. Deputados, temos quorum, pelo que declaro aberta a reunião.
Eram 10 horas e 55 minutos.
Ficámos no artigo 103.°-A, cuja discussão começámos, íamos agora acabá-la, e se possível com alguma preocupação de síntese, porque se conseguíssemos andar com algum ritmo talvez pudéssemos, sobretudo prolongando um pouco a sessão da tarde, evitar a sessão da noite. Pedia a cooperação de VV. Exas. nesse sentido. Quem quiser usar da palavra sobre o artigo 103.°-A, proposta do PCP, tem a palavra. Ficou reservada a palavra para o PCP, salvo erro.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Efectivamente já foi possível fazer a apresentação da proposta do PCP. Não temos sobre essa matéria explicação complementar. Não posso, no entanto, deixar de sublinhar que nem todos os partidos se pronunciaram sobre todas as dimensões da matéria: o PCP e o PS pronunciaram-se, o PSD não. Em todo o caso, a última das questões que foi suscitada, pelo Sr. Deputado Almeida Santos e creio que também pelo Sr. Deputado António Vitorino, mereceria alguma reflexão adicional.
A questão da articulação entre aquilo que aqui vem proposto e o quadro decorrente da adesão de Portugal às Comunidades deveria fazer-se, sobretudo em caso de revisão de certas normas que hoje constam da Constituição, nos artigos 10.° e 86.° (estou a excluir a hipótese tétrica de que falava ontem o Sr. Deputado António Vitorino, qual seja a da eventual consagração da solução que o PSD propõe em matéria do estatuto de propriedade privada, com a sua reinserção sistemática). Importa assegurar a existência inequívoca, expressa, de cláusulas de defesa do interesse nacional numa área extremamente sensível, como a que é objecto da nossa proposta. Pode discutir-se, naturalmente, se estes fundamentos ou os motivos que nos termos desta podem legitimar restrições (a saber: motivos de defesa nacional, ordem pública e defesa do património) são bastantes e adequados. A Sra. Deputada Assunção Esteves ontem caprichou em procurar fazer a demonstração de que todos estes fundamentos já decorreriam da própria Constituição, em outras partes do respectivo articulado. Sucede, no entanto, que essa demonstração, que procurou realizar, depara com algumas dificuldades, designadamente é demasiado genérica. Aquilo que estamos a discutir aqui é a relação entre nacionais e estrangeiros. O facto de, em relação a determinados estrangeiros, os das Comunidades, o regime não poder ser igual ao aplicável a outros estrangeiros é uma evidência decorrente dos compromissos internacionais assumidos pelo Estado Português. Importa, porém, saber, neste quadro, se não é necessário estabelecer uma salvaguarda ou uma cautela como aquela para que o PGE aponta, com uma redacção que seja conforme a alguma das observações que certos dos Srs. Deputados já fizeram. Se não fazemos uma cláusula deste tipo, as dificuldades interpretativas (incluindo para o próprio legislador ordinário) podem colocar-se em termos que não se colocariam se introduzíssemos uma norma deste tipo. É evidente que o legislador ordinário, como alguém ontem aqui sublinhou, poderá mover-se nesta esfera. A questão é que, como sabem, as relações entre as normas que ele pode produzir e as espécies de direito comunitário e as relações entre essas espécies e o direito constitucional são diferentes, e portanto a actuação interna, soberana, embora no quadro decorrente da adesão às Comunidades, processar-se-á num esquema se uma norma deste tipo for aprovada e noutro se a norma aprovada for de outro tipo ou se não houver norma nenhuma.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Gostaria de fazer uma pequena correcção à parte inicial da intervenção do Sr. Deputado José Magalhães, o que este, de resto, acabou por fazer também. O Sr. Deputado começou por dizer que o PSD não se tinha pronunciado sobre a matéria. Ora o PSD pronunciou-se através de uma intervenção, até relativamente extensa, subscrita pela minha colega de bancada Assunção Esteves, que procurou fazer a demonstração da desnecessidade e até de alguns inconvenientes de um preceito como este e, em conformidade, indicou o sentido de voto do PSD, contrário a uma norma como esta. O PSD foi o único partido que em relação a esta proposta tomou uma posição clara: pronunciou-se em sentido contrário.
De todo o modo, e como tudo nesta fase, também nós não somos surdos nem cegos, ou procuramos não o ser. Se depois, numa visão mais ampla e tendo em vista o jogo dos artigos aprovados e eventualmente a tal mudança do estatuto do direito de propriedade, no quadro resultante das alterações que começarem já a definir-se, formos convencidos da necessidade de um preceito como este, nessa altura tomaremos uma decisão. Nesta fase, porém, a nossa posição é contrária, como disse a minha colega Assunção Esteves.
O Sr. Presidente: - Isso está a meu ver esclarecido. O problema é este: ou bem que a defesa do direito da propriedade passa para o capítulo dos direitos, liberdades e garantias e uma norma destas é eminentemente necessária ou bem que não. Se não, como aliás tudo indica, haveria ainda que pensar se se deve consagrar uma norma destas na Constituição ou se se deve deixar para a lei ordinária. Se se entender que alguma coisa deve ficar na Constituição, pensamos nós que não deveria ficar aqui, como artigo autónomo, mas mais diluído em qualquer outro artigo, com uma redacção que deixasse alguma indicação sobre a consideração especial que tem de ter-se para com os estrangeiros do espaço comunitário.
Passaríamos então ao artigo 104.° Diga, Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - O Sr. Deputado Costa Andrade tem evidentemente razão quanto ao facto de o PSD ter intervindo inicialmente. Eu quis apenas significar que, no termo da discussão, o Sr. Deputado Almeida Santos tinha equacionado a questão em termos substancialmente diferentes dos que presidiram ao debate quando o começámos. E portanto esse aspecto estava em aberto, o Sr. Deputado acabou de o complementar.
Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Presidente, Rui Machete.
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O Sr. Presidente (Rui Machete): - Mas já está suficientemente amadurecida a discussão?
O Sr. Almeida Santos (PS): - Já sim, Sr. Presidente. Já pode entrar na floresta.
O Sr. Presidente: - Mas ainda é o artigo 103.°-A?
O Sr. Almeida Santos (PS): - É o segundo artigo 103.°-A. É que ainda há outro!
O Sr. Presidente: - Portanto, defesa e desenvolvimento florestal. Não está presente o PEV. Há algumas intervenções que VV. Exas. desejem fazer sobre este artigo?
O Sr. José Magalhães (PCP): - Tem sido hábito não deixar por discutir qualquer artigo, salvo casos extremos. Isso aconteceu bastante no caso do CDS, mas não tem acontecido como regra.
Creio que a questão que haverá que ponderar é saber se há lugar para a problemática florestal na Constituição. Ela já está, de certa forma, presente em certos preceitos constitucionais. Algumas das ideias que aqui são aditadas explicitamente sob a forma de artigo afloram em outros pontos do articulado constitucional, mas não com o grau de pormenorização e de especificação que esta proposta visa introduzir. Não me parece excessivamente preocupante que o eucalipto entre na Constituição, porque ele já lá está por de mais. A questão é saber qual é o porte ou o tamanho máximo admissível, em termos constitucionais, para a "penetração eucalíptica". Isso depende de uma certa filosofia, nós, como se sabe, não adiantámos, à partida, um preceito sobre esta matéria porque isso não nos pareceu indispensável. Em todo o caso, se forem produzidas razões no sentido de justificar em concreto esse alargamento, seguramente haveremos de as ponderar.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Gostaria também de exprimir a nossa posição. Não nos parece que uma matéria como esta, pelo seu grau de pormenorização, deva ser levada ao texto constitucional. Além do caso do eucalipto, há toda uma política criminal relativa aos incêndios e, porque já retirámos a política criminal relativa aos crimes contra a economia nacional, penso que não vale a pena incluir pela porta algo semelhante ao que deitámos fora pela janela. É uma boa declaração de intenções, mas parece que não tem dignidade constitucional.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Também nos parece que, se vamos incluir na Constituição artigos programáticos como este, temos de fazer outro para os cereais, outro para a fruticultura, outro para os primores, outro para a vinicultura, outro para o azeite, outro para o gado, castanha, etc. Sinceramente acho que ficará melhor na lei ordinária, se é que lá tem lugar. Quanto ao n.° 2, subscrevo as considerações do Dr. Costa Andrade.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Permitam-me só uma pergunta ao Sr. Deputado Costa Andrade. Não vejo qualquer razão para dizer o contrário do que havíamos dito anteriormente.
Embora veja alguns defeitos no preceito, não consigo ver, numa rápida troca de impressões, qualquer elemento criminal no n.° 2 do artigo 103.°-A que vem proposto, isto é, como se alude à prevenção dos factores de degradação da floresta em geral e isso até está colocado mais na perspectiva técnico-florestal do que em qualquer outra perspectiva, é difícil lobrigar razão para o argumento que o Sr. Deputado Costa Andrade utilizou. Mas também suponho que era um argumento periférico e de reforço (era apenas a tentativa de pôr lá mais um mal, além dos males "horríveis" que já tem: só que, por azar, esse não está lá!). O preceito está inocente desse crime, é réu de muitas coisas, mas dessa não.
Quanto à questão dos elementos delituais e da supressão dessa componente da Constituição penal-económica, devo dizer que esse debate acabou por ser interrompido numa altura em que não estaríamos à espera que o fosse. O Sr. Deputado Costa Andrade parece-me extremamente seguro (e o Sr. Deputado Almeida Santos também) da supressão do preceito, expurgando a Constituição de todos os elementos de delimitação de conceitos relevantes em termos de combate às actividades delituosas contra a economia nacional. Terá sido erro de percepção meu, ou existe efectivamente um consenso indiciado nesse sentido?
O Sr. Almeida Santos (PS): - Nós só combatemos o preceito na medida em que ele prevê a perda dos valores consequentes à actividade criminosa. É um caso de confisco e disse que não via necessidade disso. Já assim é hoje, sem necessidade de um texto constitucional. Por que é que estamos a prever aqui em especial esse caso quando genericamente é assim dentro da própria teoria criminal? Só a desnecessidade do preceito e até talvez a conveniência que não conste do texto constitucional, foi só essa a razão. Nós votaremos a supressão por este motivo.
O Sr. José Magalhães (PCP): - A supressão de todo o preceito?
O Sr. Almeida Santos (PS): - Não é de todo o preceito, é só da parte em que se refere a perda do produto da actividade criminosa. Não precisamos de um preceito destes para que isso possa ser assim.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Como, entre todos, saberá particularmente bem o Sr. Deputado Costa Andrade - que é autor de uma bem elaborada peça doutrinal de análise desse artigo e dessa problemática -, a alteração dessa componente, se for total, pode introduzir, no quadro aplicável aos chamados "crimes económicos", uma diluição ou pelo menos um esvaziamento parcial, em termos da norma hierárquica de topo, operação na qual não se vê grande vantagem...
O Sr. Almeida Santos (PS): - Basta que lance mão do conceito de pena acessória.
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O Sr. Presidente: - A mim escapa-me um pouco por que vamos agora discutir os aspectos criminais, a não ser porque tenha sido por associação com o nome do Sr. Deputado Costa Andrade, que é um especialista em direito criminal. Não estou a ver por que a propósito de desenvolvimento da floresta tenhamos de voltar à discussão já que fizemos.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Respondendo ao Sr. Deputado José Magalhães, eu não disse que o preceito estava pejado de males. Pelo menos do nosso lado, designadamente pela minha boca, ninguém "pintou" este artigo com caixa de Pandora, trazendo com ela todos os males; pelo contrário, eu disse que o preceito me parecia uma boa declaração, mas que não tinha dignidade constitucional. Nós não temos uma concepção panteísta da Constituição em termos tais que tudo o que não está na Constituição não está no mundo, nem sequer está do lado dos deuses, mas ao lado dos demónios. Entendemos é que há outras sedes para regulamentar os problemas da vida, os conflitos e a protecção dos bens jurídicos numa sociedade.
Quanto à matéria criminal o n.º 2, quando fala em "prevenção dos factores de degradação da floresta", abrange toda uma panóplia de meios de prevenção, mas penso que há aqui uma referência clara à necessidade de prevenir e reprimir, até criminalmente, os incendiários e, portanto, os que causam danos ou criam perigos às florestas através dos incêndios.
Por último, quanto aos crimes contra a economia, travou-se, talvez na ausência do Sr. Deputado José Magalhães, uma discussão sobre esta matéria, durante a qual eu próprio me pronunciei a favor de uma certa utilidade do artigo que a Constituição reserva a esta matéria; disse, designadamente, que era esse o único local da nossa Constituição onde se aflora o princípio da proporcionalidade das penas e que, de resto, é aí que a doutrina vai ancorar constitucionalmente este princípio. Mas dei o meu assentimento à proposta do PS no sentido da desnecessidade de um preceito deste tipo, que até teria justificação, em face do modo como a economia está a evoluir e a partir do momento em que se reduz a intervenção do Estado na economia e esta fica cada vez mais entregue às forças do mercado e da iniciativa privada. Nessa medida, talvez se justificasse a intervenção reguladora do Estado através do direito criminal. Mas não é necessário que isso esteja na Constituição, até porque dela não consta o imperativo de criminalizar as variadíssimas actividades que constituem crimes. Foi nessa base que fiz a minha intervenção, sendo certo que, porventura na ausência do Sr. Deputado José Magalhães, se criou um consenso à volta desse preceito. Recordo que comecei a minha intervenção dizendo que, talvez mais do que uma intervenção, era capaz de ser um epitáfio, uma vez que, se se apontava nesse sentido, também nada se fechava nessa matéria.
O Sr. Presidente: - Suponho que a matéria está dilucidada.
Vamos passar ao artigo 104.° - Participação na reforma agrária. Existe uma proposta do CDS no sentido da sua eliminação, uma proposta de alteração apresentada pelo PS e uma proposta de alteração apresenta pelo PSD. Iríamos começar pela justificação sucinta do PS.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Quer da epígrafe quer do texto desaparece, como já se sabe, a referência à reforma agrária. Fala-se agora em "política agrícola". Em vez de se dizer "deve ser assegurada", diz-se de forma mais enfática "é assegurada". Em vez de se referir a participação só aos pequenos e médios agricultores, pareceu-nos que aqui se justificava a participação de todos os agricultores, uma vez que todos têm a ver com a definição e execução da política agrícola. Em vez de se falar em "organizações próprias", falar-se-ia, segundo a nossa proposta, em "organizações representativas", porque participarem todos eles, através de organizações próprias, resultava numa miríade de participações que poderia inviabilizar o exercício deste direito. São estas as alterações. Parece que a única dúvida é se uma cooperativa é uma organização representativa de alguém, mas as cooperativas têm elas próprias os seus organismos representativos. Parece-nos que a nossa proposta é mais razoável.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - É para dizer que mais uma vez a nossa proposta é muito aproximada da do PS. Como verá, a única diferença é a referência às organizações representativas ou próprias. No caso de representativas, do PS; no caso de organizações próprias, mantemos a designação da Constituição no artigo 104.° De resto, o espírito, como, aliás, já referimos abundantemente ao longo do tempo, quando tratámos destes artigos, continua a ser o mesmo e é coincidente com o vosso. Portanto, penso que louvar-nos-emos na intervenção do Sr. Deputado Almeida Santos e não faremos uma intervenção autónoma em relação a isto.
O Sr. Presidente: - Mais algum pedido de intervenção?
Vozes.
O Sr. Presidente: - Há aqui um aspecto diferenciador que é o problema da referência à execução da política agrícola.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, creio que o Sr. Deputado Carlos Encarnação, só por boa vontade e por outras razões (provavelmente não explicáveis pelo que ocorre agora, mas pelo que ocorreu aqui ontem, anteontem e na passada sexta-feira), é que pode sustentar uma identidade entre a proposta do PSD e a do PS. Comparada a coisa tabelionicamente vê-se que o que o PS propõe é, realmente: a consagração da expressão "na definição e execução da política agrícola" em vez de "na definição e execução da reforma agrária, nomeadamente nos organismos por ela criados"; "é assegurada" em vez de "deve ser assegurada"; "a participação dos trabalhadores rurais e dos agricultores através das suas organizações representativas" em vez de "a participação dos trabalhadores rurais e dos pequenos e médios agricultores, através das suas organizações próprias"; a eliminação da parte final do preceito ("bem como das cooperativas e outras formas de exploração colectiva por trabalhadores").
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Quanto ao PSD, vê-se que aquilo que propõe é um conjunto de substituições e eliminações - já irei às questões de implicação política funda -, nos termos seguintes: "na definição da política agrícola" em vez de "na definição e execução da reforma agrária, nomeadamente nos organismos por ela criados"; "a participação dos trabalhadores rurais e dos agricultores, através das suas organizações próprias" em vez de "a participação dos trabalhadores rurais e dos pequenos e médios agricultores, através das suas organizações próprias". E elimina também a parte final do preceito ("bem como das cooperativas e outras formas de exploração colectiva por trabalhadores").
A questão é saber quais são as implicações de uma e outra das propostas, ressalvadas que estão as diferenças de origem, de teor e de conteúdo de cada uma delas. Creio que o principal problema é o que resulta da mudança de enquadramento que ambos os partidos pressupõem, decorrente do facto de se suprimir, não apenas o conceito de reforma agrária, mas um conjunto de regras constitucionais em matéria de política agrícola que conduzem a que hoje a margem de actuação do legislador ordinário se encontre limitada, vinculada, comprimida (num sentido positivo, de resto, em nosso entender), substituindo tudo isso por um outro quadro. Esta é a primeira diferença, fulcral, entre o que está em vigor e aquilo que propõem tanto o PS como o PSD de formas diferentes. Mas isso já discutimos e rediscutimos, suponho que não será possível avançar mais do que já se regrediu (em termos de debate, é claro). Quanto à questão do conteúdo específico e directo deste preceito, nenhum dos partidos propõe que se suprima a componente participativa, mas degradam-na em proporções que importa sublinhar. Sobre isto, seria particularmente importante ouvir o PS, naturalmente, sem que isso torne irrelevante a posição do PSD. A participação deve, hoje, ser assegurada às organizações de trabalhadores rurais e de pequenos e médios agricultores. Teve-se aqui em vista, aberta e claramente, como mostra tudo o que diz respeito à génese do preceito (que não foi alterado na primeira revisão constitucional, de resto), os sindicatos agrícolas e as associações de agricultores. Pensa-se em estruturas representativas, desde logo, e depois em estruturas produtivas directamente. E enunciam-se dois tipos: as cooperativas, por um lado, e as UECTs. Nesta matéria há uma supressão, tanto no caso do PS como no do PSD, desta distinção. Seria interessante saber em que é que se fundamenta, porque isso pode introduzir uma alteração relevante na lógica constitucional e na estrutura constitucional. Pode conduzir, por exemplo, a que se sustente - bastará para isso invocar uma destas actas - que cessou a existência de sujeitos privilegiados da política agrícola, que o "favor" constitucional em relação aos pequenos e médios agricultores e em relação aos trabalhadores rurais cessou, porque foi alterada a estrutura e a lógica do preceito. Por outro lado, a menção que nele se faz à importância e ao papel particular das estruturas colectivas e das cooperativas também desapareceria. E isso não é irrelevante, para se ponderar qual seja o conspecto final da constituição apícola. Se se altera o artigo 96.°, n.° 1, se se altera o artigo 97.°, n.° 2, se se altera o artigo 99.°, n.° 1, se se altera o artigo 100.°, se se altera o artigo 102.°, n.° 1, e se se altera, agora também, o artigo 104.°,
então faz-se, verdadeiramente, uma refundição da constituição agrária em termos tais que o resultado final só remotamente teria semelhança com o texto actual. Quanto ao âmbito da participação, a proposta do PS distingue-se da proposta do PSD. A proposta do PSD circunscreve a participação à questão da definição; a proposta do PS mantém, neste ponto, o âmbito vasto, abrangendo também as questões de execução não da forma agrária mas da política agrícola. Neste caso, o PS "apenas" suprime a reforma agrária!!! Seria possível que o Sr. Deputado Almeida Santos precisasse que áreas é que esta participação abrangeria? É que uma coisa é a definição e execução da reforma agrária que, designadamente, passa por um enquadramento legal explícito - há uma coisa chamada Lei de Bases da Reforma Agrária. A inexistência de um conceito específico, rico e denso como este, remeteria a participação para o universo da política agrícola. Ora, a política agrícola não passa só por leis, passa também por outro tipo de medidas, mas correr-se-ia o risco, neste cenário, de uma certa indifinição, porque o preceito seria, simultaneamente, demasiado vasto e pouco preciso. Teoricamente abrangeria tudo, uma vez que medidas de política agrícola são o que mais há: qualquer alteração de preços é uma medida de política agrícola, qualquer negociação em Bruxelas pode conduzir a medidas de política agrícola (importantíssimas, de resto). Somos capazes de imaginar centenas de situações que são desdobramentos e elementos de definição da política agrícola e em que seria necessária a participação das entidades que aqui são referidas. Mas, por outro lado, como o preceito é vago e como pode não haver sequer uma "lei da política agrícola", uma "lei da estrutura agrícola" - a existência desses diplomas fica, segundo o PS, e na sua lógica, na dependência do legislador ordinário, na dependência das correlações de forças decorrentes de factores vários -, poderia acontecer que houvesse uma participação projectada imensa, mas facilmente inviabilizável em concreto. É essencial que a definição constitucional seja feita com rigor. Também os aspectos orgânicos da participação me parecem bastante maltratados pelo PS e pelo PSD, uma vez que suprimem qualquer alusão à participação em organismos responsáveis pela política agrícola. Em suma: aquilo que no texto actual é preciso deixaria de o ser com a alteração dos artigos que citei e com o teor das propostas em debate. Portanto, a proposta do PS teria de ser mais precisa para dizer o que quer dizer, se bem entendi o Sr. Deputado Almeida Santos.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Penso que, quanto ao problema da definição e execução da política agrícola, apenas corrigimos a injustiça de não ouvir os agricultores em tudo o que fica fora da reforma agrária. E, como a reforma agrária se aplica apenas a uma pequena área do País e a uma pequena parte da produção agrícola, ganha sentido referimos este direito - direito de participar -, não à reforma agrária, mas à política agrícola. Que política agrícola? Necessariamente aquela que está definida na Constituição pelos seus objectivos.
Parece-me, portanto, que não há mais indefinição.
Quer dizer: se houver uma lei sobre política agrícola, terão de ser ouvidos; se houver uma medida de execução dessa lei, terão de ser ouvidos, desde que seja fundamental, como é óbvio.
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O Sr. José Magalhães (PCP): - E se não houver, Sr. Deputado?
O Sr. Almeida Santos (PS): - Pode acontecer o mesmo em relação à reforma agrária. Se não houver uma lei em relação à reforma agrária, também não há participação possível - é a mesma coisa, o problema é de âmbito.
Relativamente ao desaparecimento da referência às cooperativas e outras formas de exploração colectiva por trabalhadores, em primeiro lugar, peço-lhe que repare em que, sendo nós, como sabe, defensores da solução cooperativa, demos igual tratamento aqui às cooperativas e às unidades colectivas de produção. Portanto, não significa que tenhamos querido diminuir aquilo de que somos principais defensores, como calcula. Aqui ganha sentido o facto de substituirmos as organizações próprias por organizações representativas. É que nós entendemos que este direito de participação não faz sentido se for referido a cada organização de per si: cada cooperativa, cada UCP, cada agricultor. Como se concretiza essa participação? Tem de ser através do expediente da representação. Termos substituído "próprio" por "representativo" significa isso mesmo. E as cooperativas são agricultores, são cooperativas de agricultores; as UCPs são agricultores, são unidades de exploração por agricultores. Não se perdeu nada! Há-de haver uma lei que venha a clarificar isso, mas já hoje teria de ser assim. Sujeitámos ao mesmo tratamento as nossas "queridas" cooperativas, não para as diminuir, como é natural. Quisemos tornar este dispositivo mais concretizável em termos práticos. Só isso.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Tem razão, Sr. Deputado José Magalhães, esqueci-me de coisas importantes quando fiz a minha intervenção. A coisa mais importante que me esqueci foi dizer que em lugar de "deve ser" o PS disse "é", ou seja, enfatizou, como disse o Sr. Deputado Almeida Santos, esta declaração. Em lugar de falar nas "organizações próprias", o PS fala em "organizações representativas". Para nós é exactamente isso que este preceito quer significar. Nunca admitimos que este preceito tivesse uma interpretação literal, tal como a interpretação que resultaria da que lhe deu o Sr. Deputado Almeida Santos, e apenas entendemos que as organizações próprias devem ser não mais do que as organizações representativas.
Pois aí o Sr. Deputado José Magalhães tem uma razão particular. Realmente, a execução não está enunciada, ou não está contida na nossa proposta de alteração do artigo. E não está também por uma razão muito simples: porque o preceito, tal como existe na Constituição, como já disse o Sr. Deputado Almeida Santos, é um preceito redutor; o preceito, tal como nós queremos, na Constituição, é um preceito ampliativo - é um preceito que não só se circunscreve à reforma agrária e à sua zona mas se refere à política agrícola. Para ser coerente, o Sr. Deputado José Magalhães teria de colocar artigos idênticos, em relação à participação, quando, por exemplo, se fala na política comercial, quando, por exemplo, se fala na política industrial, com certeza que teria de pôr aqui preceitos idênticos em relação aos caixeiros, aos pequenos e médios empresários, aos operários industriais. E V. Exa. não tem cá nada disso na Constituição. Quer em relação à definição quer em relação à execução. O que é política agrícola? O Sr. Deputado Almeida Santos também já faiou por mim, neste domínio, e eu próprio já tenho dito variadíssimas vezes isso, nos dias anteriores. Política agrícola é evidente que é a definição dos grandes objectivos políticos; os grandes objectivos estão consignados, quanto a nós, no artigo 96.° (são esses os objectivos da política agrícola, é a isso que nos referimos); a execução é tarefa governamental. Portanto, entendemos que as organizações representativas devem ser ouvidas na definição, com certeza que têm, como qualquer outro cidadão, o poder e o dever de acompanhar a execução dessa política, não tem de estar constitucionalmente consagrada, até porque há outros mecanismos democráticos de acompanhamento da execução da política do Governo.
O Sr. Presidente: - Mais alguma inscrição? Pausa.
Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.
O Sr. Raul Castro (ID): - Embora tenha chegado um pouco tarde, e correndo o perigo, eventualmente, de um certo desfasamento em relação ao debate, queria, sobretudo, acentuar que me parece que há aqui um ponto comum que é a eliminação, tanto na proposta do PS como na do PSD, da participação das cooperativas e de outras formas de exploração colectiva por trabalhadores.
As razões que ouvi, até agora, serem aqui assinaladas não me parece que sejam convincentes pelo seguinte: porque, efectivamente, no que diz respeito à reforma agrária, se se reconhece (como está reconhecido nas duas propostas), por um lado, que deve ser assegurada a participação dos trabalhadores rurais e dos agricultores, através das organizações representativas, não se percebe bem por que é que se excluem as cooperativas e as outras formas de exploração colectiva, visto que elas correspondem a uma realidade já existente. Poder-se-á dizer que esta realidade tem um peso especial na zona do Ribatejo e Alentejo, mas o certo é que é uma realidade existente e, portanto, não se pode deduzir das propostas apresentadas senão duas ideias: ou a ideia de afastar da participação as cooperativas que existem ou a ideia de que virão a desaparecer todas as cooperativas, o que seria pior. Porque, a concretizar-se, então, essa ideia, naturalmente o preceito constitucional, antecipadamente, estaria adaptado a uma realidade previsível. Espera-se que pelo menos da parte do PS não seja essa a ideia; já quanto ao PSD não se pode dizer o mesmo, nomeadamente em relação à sua proposta de reforma agrária que já está na Assembleia, e até com data marcada para ser apreciada. Porque, efectivamente, corresponderia, na prática, ao desaparecimento destas formas de exploração colectiva. Daí que pela nossa parte discordemos tanto da proposta do PS como da do PSD.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.
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O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Deputado Raul Castro, eu já tinha dado alguma explicação a esse respeito, mas, como disse, chegou tarde. Chamo a sua atenção para a circunstância de que nós substituímos "pequenos e médios agricultores" por "agricultores", porque nos parece que aqui não há razão para considerarmos este direito como um "favor" de apenas alguns agricultores. O facto de participarem todos retira sentido ao facto de participarem só alguns? Claro que não. É o alargamento da participação. Não se justifica que sejam apenas os pequenos e médios agricultores a participarem na definição e execução da política agrícola. Por outro lado, substituímos "organizações próprias" por "organizações representativas". Nessa medida, representativas de todos os que são agricultores, incluindo as cooperativas e as unidades colectivas de produção. Como calcula, o PS, cujas meninas dos olhos são as cooperativas, não ia desvalorizar a participação delas. Não foi isso que esteve no nosso espírito. Pensamos ser irrealista ouvi-los todos, um a um, pelo que a sua participação terá de se efectuar através do instituto da representação. Substituímos "pequenos e médios agricultores" por "agricultores": como todos eles são agricultores, todos eles participarão.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.
O Sr. Raul Castro (ID): - Compreendo o argumento - começando pelo último - de que a substituição da fórmula actual por organizações representativas engloba as cooperativas.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Toda a gente.
O Sr. Raul Castro (ID): - Então aí estaria uma razão para não as retirar do texto porque poder-se-ia dizer "nomeadamente"...
O Sr. Almeida Santos (PS): - Porquê estar a individualizar cooperativas e unidades colectivas de produção se já referimos os "agricultores". Todos eles têm as suas organizações representativas e são ouvidos. Não poderia ser de outro modo, visto que não podemos ouvir agricultor a agricultor, cooperativa a cooperativa, UCP a UCP. Terão de ser ouvidos através de quem os representar, normalmente os seus sindicatos ou as suas associações. Penso ser esta a maneira mais viável de concretizar esta participação.
O Sr. Raul Castro (ID): - Em relação à substituição pela forma genérica de "agricultores", visa-se naturalmente englobar os grandes agricultores, visto que os pequenos e médios já constavam da actual redacção. Só faltam esses...
O Sr. Almeida Santos (PS): - Por que é que os grandes agricultores não hão-de ser ouvidos em matéria de definição da política agrícola?
O Sr. Raul Castro (ID): - E eu perguntar-lhe-ia então quem são os grandes agricultores. São os latifundiários?
O Sr. Almeida Santos (PS): - Não necessariamente. São aqueles que não são nem pequenos nem médios agricultores.
O Sr. Raul Castro (ID): - Mas quais são esses? Como é que se caracterizam?
O Sr. Almeida Santos (PS): - São maiores do que os médios e menores do que os latifundários. Serve?
O Sr. Raul Castro (ID): - Isso ainda acabaria por entrar em choque com um dos objectivos constitucionais, que é acabar com o latifúndio. Parece que de facto só resta a categoria dos latifundiários.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - É claro que do artigo 104.° não resulta, ou não deve resultar, nenhuma intenção de privilegiar formas de organização dos agricultores, como sejam as cooperativas ou outras formas de exploração colectiva por trabalhadores. É óbvio que esta referência é privilegiada no artigo 104.°, estando eivada do espírito obsessivo de outros preceitos relativos à reforma agrária e que não se justifica. De facto, as cooperativas e outras formas de exploração colectiva por trabalhadores têm a sua protecção situada noutros lugares da Constituição. Os destinatários em geral da reforma agrária devem ser os sujeitos desta participação e, nesse sentido, as alterações devem ser orientadas com vista a que todos os agricultores participem na definição da política agrícola. Não há aqui necessidade de particularizar nem de restringir, mas sim de definir, sem privilegiar, os destinatários deste preceito, erigindo em sujeitos quaisquer agricultores que participem e tenham lugar claro na definição da política agrícola. E, em nosso entender, isso é importante, tal como o é referir que não é pelo facto de aqui não figurarem que o intérprete da Constituição vai esquecer as cooperativas ou as explorações colectivas por trabalhadores. É importante que as coisas tenham o seu lugar, sem referências especiais, e que não haja restrição dos sujeitos da participação.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Rui Salvada.
O Sr. Rui Salvada (PSD): - Trata-se apenas de uma pequena achega, na medida em que esta questão da representação das partes está já claramente analisada. No entanto, as preocupações do Sr. Deputado Raul Castro, como, aliás, as do Sr. Deputado José Magalhães, obrigam as pessoas a repetir-se. De facto, na definição da política agrícola, pela natureza das coisas, essas organizações não podem deixar de estar envolvidas ou já implícitas nos projectos de desenvolvimento económico constantes dos artigos 91.° do nosso projecto e 94.° do projecto do PS.
Está aí claramente aceite, na elaboração dos planos de desenvolvimento económico e, portanto, da política agrícola necessariamente, a participação das organizações representativas dos trabalhadores e das actividades económicas e profissionais. As vossas preocupações estarão assim certamente asseguradas. Em boa verdade,
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numa definição correcta em termos de não repetição de ideias, estes preceitos sobre a participação de tais organizações não deveriam ter receptividade na Constituição, tendo em conta aquilo que mais atrás vem consagrado. Penso, portanto, que as vossas preocupações não têm qualquer fundamento.
O Sr. Presidente: - Para dar mais uma pequena achega, tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não se trata de "achegar", mas, pelo contrário, de procurar estabelecer a máxima distância possível em relação a algumas concepções e métodos.
No caso do PSD, impressiona-me particularmente o que o Sr. Deputado Carlos Encarnação disse sobre os malefícios supostos de uma suposta "obsessão constitucional". Que pendor psico-analítico! Que vontade de pôr no divã a Constituição! Ei-la já estendida, sujeita a ser devassada quanto às suas "obsessões", à sua "obsessão repetitiva", ao seu pendor privilegiante. Umas e outras terríveis características parecem-nos neste caso bastante preciosas, na medida em que tutelam interesses relevantes dos trabalhadores e pequenos e médios agricultores.
A questão que a intervenção do Sr. Deputado Carlos Encarnação suscita diz, no fundo, mais respeito à própria identidade do PSD. De facto, cotejando rapidamente o projecto do PSD, verifica-se que este partido altera o artigo 2.° da Constituição, mas aquilo que deixa inalterado refere ainda como elemento definidor da República Portuguesa o objecto da realização do "aprofundamento da democracia participativa". Por mais estranho que pareça...
O Sr. Presidente: - Se V. Exa. lhe retirasse o "ainda", ficava ainda mais contente.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Está no projecto do PSD.
O problema do Sr. Deputado Carlos Encarnação é, pois, a definição dos momentos de democracia participativa concreta. Aí, acha-os de mais, no texto actual, acha-os "desequilibrados". Não vale a pena retraçar a origem desses momentos de democracia participativa no articulado constitucional, mas pode-se anotar de passagem - e era essa a minha achega a este debate - que esses momentos foram alargados na primeira revisão constitucional em relação ao texto originário, em diversas dimensões e por razões várias, o que não foi negativo mas sim positivo. Aquilo que agora se pretende é operar uma sensível redução de terreno e de estatuto dos participantes.
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Claro!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Claro, exactamente! Suponho que é importante que isso seja sublinhado e ressublinhado...
O Sr. Presidente: - Já foi ressublinhado.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, permita-me que tressublinhe. Considerar que, nesta matéria, o interesse do País estará antes em impedir a degradação dos estatutos participativos já consagrados.
E, Sr. Deputado Almeida Santos, as respostas que V. Exa. deu deixam-me algumas interrogações em dois planos. Por um lado, como o PSD sublinha, o alargamento do âmbito de participação, com as implicações que tem no quadro das alterações que temos referido, leva a que esta participação haja de ter de exercer-se em relação a um universo alargado também. E isso pode conduzir, se a norma não for precisa, a uma espécie de esvaziamento. Sabendo-se que o PSD entende ter uma espécie de "privilégio de execução", de "monopólio de execução" - execução é com o Governo -, por falta de definição constitucional, a solução do PS, se consagrada, é susceptível de ser, depois, castrada da sua dimensão interventiva quanto às questões da execução. Sublinhei há pouco que era fácil castrá-la em relação à própria dimensão legiferante, bastando para tal não haver instrumento legislativo enquadrador geral. Pode, aliás, cair-se num dédalo. Qualquer jurista do MAP poderá sustentar afoitamente: "Mas querem então participação nos despachos? Não, não pode ser esse o sentido útil da Constituição nesse ponto. Participação nas portarias? Não, não faz sentido!" Ora sucede que pode fazer sentido: a portaria pode, por exemplo, dizer respeito à entrega da terra, ao regime de uso, etc.. E, se assim for, qualificadamente elaborada deve ser. Mas há possibilidade, mitigada embora, de iludir uma obrigação jurídica como esta.
No entanto, em relação à execução, neste novo quadro alargado, sendo extensíssimo o âmbito dessa execução, ou se é minimamente preciso ou então corre-se o risco de criar uma norma pia, o que é agravado pelo próprio facto simples de se ir alterar a norma. É que na primeira revisão constitucional ela não foi tocada - nem ela nem as outras - na sua dimensão fundamental. Mas aqui, além de tocarem nas outras, tocam nesta e, se não são suficientemente específicos, então ao legislador ordinário e aos órgãos de soberania que devam executar é conferida uma larga margem de incumprimento.
É também isso que nos preocupa relativamente à questão da diminuição do privilégio - coisa que chocará os ouvidos do PSD - concedido às cooperativas e a outras formas de exploração colectiva. Poderá ser acrisolado o amor ideal que qualquer de nós (neste caso também o PS) tenha a esta ou àquela forma de exploração colectiva, incluindo às cooperativas. Mas a supressão concreta da norma tem, lamentavelmente, um significado. Pelo menos em relação a estes dois últimos aspectos, não me parece que o conjunto de respostas aduzidas exclua estas observações. Seriam portanto necessárias outras obras, outro texto ou então outra interpretação. Se é que o texto comporta outra interpretação que não aquela que eu fiz.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Não posso redigir-lhe neste momento outro texto, mas posso dar-lhe outra explicação. Não percebo como é que, no momento em que alargamos o âmbito de uma coisa, a esvaziamos!...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Dilui!
O Sr. Almeida Santos (PS): - Amplia, não esvazia. Ou seja, se um direito de participar na definição e execução abrange uma área mais vasta, pode-se dizer que se esvazia esse direito? Torna porventura mais difícil a definição, torna mais difícil a concretização do direito, mas não se pode dizer que esvazie.
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Por outro lado, referiu o "favor" dos pequenos e médios agricultores e o facto de falarmos agora apenas em agricultores. E agora veio referir o privilégio das cooperativas e UCPs. O facto de serem mais entidades a ser ouvidas não desfaz o privilégio. Tem alguém o privilégio de ser só ele ouvido e mais ninguém? Quer dizer, os pequenos e médios agricultores têm um privilégio que consistiria em terem o direito exclusivo a ser ouvidos? O facto de o meu vizinho ser também ouvido faz desaparecer o meu direito a sê-lo?
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não é um monopólio, Sr. Deputado, mas é um privilégio no sentido jurídico.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Não podemos falar em privilégio, mas em alargamento de um direito.
Levantou também, Sr. Deputado, o problema da execução. Devo dizer-lhe que não vejo bem como é que a Constituição possa ela própria assegurar a execução, mesmo nos actuais termos. De facto, ou é através de um diploma legislativo, de normas, e as normas fiscalizam-se através do controle da constitucionalidade, ou não é através de normas, e não se fiscaliza de maneira nenhuma. Tem de haver algum bom senso, e alguma forma de fiscalizar a execução se há-de encontrar. Mas não, certamente, através do controle da constitucionalidade. Não há controle da constitucionalidade de despachos não normativos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Portanto, haveria aí o direito de participação e dever de participação.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Não quisemos restringir de maneira nenhuma. Podemos ter proposto uma dificuldade acrescida de concretização do direito na medida em que se reconhece esse direito a um universo maior.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Deputado José Magalhães, quando falou no privilégio executório do PSD, V. Exa. estava a confundir uma coisa com outra. O que nós estamos a fazer é uma Constituição para que qualquer governo governe: se for o PSD, é o PSD, se for outro governo, é outro governo. Não identifique tanto o Governo com o PSD porque até para si é mau. Parece que não há outra alternativa e que no futuro nunca mais haverá. Nós estamos a tratar dos poderes executivos, dos poderes de qualquer governo e não do PSD...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Nós não estamos dominados pelo horror de ser governo, mas também não praticamos a ilusão política. Quando vejo o PSD falar abnegadamente do governo de outros, olho directamente para o que ele faz, agarrado como uma lapa ao governo que tem. Em consequência, quando pensamos na Constituição que está, temos em conta também o Governo que faz tudo por morrer de velho. É só por uma questão de realismo imediato e de não conferir ao PSD, além das vantagens do poder, os poderes decorrentes das ilusões dos seus adversários políticos. Foi só isso. O Sr. Deputado não se ofenderá...
O Sr. Presidente: - Não, e de resto eu compreendo que em matéria de lapas uns "alapam-se" à Constituição e outros a outras realidades.
Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.
O Sr. Raul Castro (ID): - Pretendia fazer uma breve intervenção suscitada pelas intervenções da Sra. Deputada Assunção Esteves e do Sr. Deputado Carlos Encarnação, que defenderam a proposta do PSD.
Na proposta do PSD, desde logo figura uma diferença na epígrafe do artigo e no texto, isto é, a eliminação da palavra "execução". Em relação à proposta do PS, o PSD limita-se a admitir a participação na definição, mas não na execução. Creio que, nesta parte, não será possível argumentar com quaisquer intenções, boas ou más, a tal respeito, pois existe uma diferença clara nas duas propostas.
O Sr. Presidente: - Com certeza, Sr. Deputado Raul Castro.
O Sr. Raul Castro (ID): - Precisamente por isso consideramos - e era isso que desejávamos assinalar - que a proposta do PSD é bastante pior do que a do PS na medida em que exclui a participação na execução, apontada na proposta do PS.
Por outro lado, mantém-se a questão das cooperativas e de outras formas de exploração colectiva. Naturalmente o leitor dos projectos de revisão constitucional não pode deixar de apreciar as propostas de alteração ao artigo 104.°, como, nomeadamente, as propostas apresentadas para o artigo 96.° e, em particular, a proposta de eliminação do n.° 2 do artigo 96.°, que é totalmente substituído em ordem a fazer desaparecer, tanto no projecto do PS como no do PSD, a norma actualmente consagrada, ou seja, que a reforma agrária é um dos instrumentos fundamentais da realização dos objectivos da política agrícola.
O Sr. Almeida Santos (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)
O Sr. Raul Castro (ID): - Admito que sim. Infelizmente, não pude assistir, mas penso que há aqui um elemento de interpretação que ajuda a compreender as propostas apresentadas para o artigo 104.° Há à partida uma posição de preconceito, se é que se pode falar de preconceito. Já se disse aqui que alguns se agarram como lapas à Constituição; eu diria que alguns se agarram como lapas contra a reforma agrária. É isso o que aparece espelhado, em especial no projecto do PSD.
O Sr. Presidente: - Mais alguma intervenção?
Pausa.
Não sendo caso disso, passaremos agora ao artigo 1O4.°-A.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Podemos discutir o A e o B.
O Sr. Presidente: - Muito bem, até porque são matéria de promoção de políticas, num caso comercial, noutro industrial.
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Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Sempre nos pareceu que a Constituição estava desequilibrada na medida em que, dos vários sectores da política económica, apenas definia os objectivos da política agrícola, sem definir ao mesmo tempo os objectivos das políticas comercial e industrial.
Já que ninguém propõe a eliminação da definição dos objectivos da política agrícola, pareceu-nos que a Constituição ficaria mais equilibrada se se definissem também os objectivos das políticas comercial e industrial. É verdade que ainda permanece desequilibrada na medida em que em relação à política agrícola há um desenvolvimento maior do que em relação às políticas comercial e industrial. Mas melhor será isso do que nada.
O artigo 104.°-A trata dos objectivos da política comercial, que são claros. Tivemos a preocupação de os redigir de forma sucinta, porque nos pareceu não valerem a pena grandes pormenorizações. Na alínea a) consagra-se o princípio da concorrência salutar dos agentes mercantis. Neste qualificativo "salutar" vai uma indicação: a Constituição autoriza que se previna ou se puna a concorrência desleal. Quanto à racionalização dos circuitos de distribuição - maneira muito sucinta de dizer o que se diz no artigo 109.°, artigo que sempre nos pareceu excessivamente programático -, condensámos na alínea b) o que ali se diz a respeito dos circuitos de distribuição. O mesmo acontece quanto ao combate às actividades especulativas e às práticas comerciais restritivas. Igualmente quanto ao desenvolvimento das relações económicas externas, que é uma forma sintética de dizer o que está no referido artigo, eliminando a salvaguarda da independência nacional.
É óbvio que as relações económicas externas têm sempre uma componente de independência nacional. Constitucionalizarmos a preocupação com o facto de as relações externas poderem ser uma espécie de castelhanos que nos vêm invadir não nos pareceu justificado.
Por último, propomos uma norma relativa à protecção dos consumidores, não esquecendo que no artigo 62.°-A extensamente propomos alguma pormenorização sobre o conteúdo deste direito.
São estas as normas e as regras; mas, se se entender que falta alguma coisa, estamos abertos à discussão do que deva ser o conteúdo mínimo de uma definição de objectivos de política comercial.
Quanto aos objectivos da política industrial, tudo é quase inteiramente novo porque, sobre esta matéria, a Constituição não diz rigorosamente nada. O aumento da produção, o reforço da inovação industrial, o aumento da competitividade e da produtividade das empresas industriais e o apoio às pequenas e médias empresas em geral, a iniciativa de empresas geradoras de emprego e fomentadoras de exportação e substituição de importações são, digamos, os princípios normais neste domínio. Também aqui estamos abertos quer à correcção destes quer à inclusão de outros que se considerem necessários.
O Sr. Presidente: - Vamos passar à discussão, pelo que gostaria de fazer umas observações, digamos, como parte e não como presidente, para tentar perceber, na sua plenitude, a proposta do PS.
No que diz respeito à política comercial, e de resto o Sr. Deputado Almeida Santos salientou-o bem, trata-se de substituir por este artigo, que aqui está colocado sistematicamente a seguir ao artigo 104.°, os artigos 109.° e 110.° e, simultaneamente, ao acrescentar os objectivos da política industrial no artigo 104.°-B, dar um certo equilíbrio; de acordo ainda com aquilo que me pareceu ser a expressão do pensamento do PS, visto que tínhamos a reforma agrária, tínhamos também os artigos sobre o comércio e absolutamente nada sobre a indústria.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Sobretudo a partir do momento em que deixarmos de constitucionalizar a reforma agrária e passarmos a dispor de um capítulo sobre política agrícola em geral. Na última revisão passou a existir um título com a epígrafe "Política agrícola e reforma agrária".
Hoje existe ainda um título vi, com dois artigos apenas, pomposamente chamado "Comércio e protecção do consumidor". Como entendemos transferir para "Direitos, liberdades e garantias" a protecção do consumidor, e assim o propusemos, ficaria esse título vi só para o artigo único relativo ao comércio. For que não incluir a definição dos objectivos da política comercial e, com igual dignidade, os objectivos da política industrial no título relativo à definição da política agrícola? É mais equilibrado.
O Sr. Presidente: - Devo acrescentar que, compreendendo os propósitos da proposta do PS no que diz respeito à política comercial, parece-nos, salvo naturalmente alguma questão de pormenor que poderemos considerar com mais tempo no futuro, que se trata de uma proposta de alteração merecedora de acolhimento.
Também no que diz respeito ao problema da protecção do consumidor vamos ponderar a hipótese de transferência, muito embora o posicionamento do consumidor apenas no sector do comércio seja restritivo e por isso, suponho, a proposta do PS.
Quanto à questão da política industrial, temos uma posição que não é contrária, mas que em primeiro lugar procura perceber por que é que a Constituição foi para este esquema tão desequilibrado. Provavelmente a razão foi a de a Constituição ter, como foi referido, um título sobre a política agrícola e a reforma agrária, ter um título sobre a política comercial, "Comércio e protecção do consumidor", mas, quanto ao problema industrial, tratava-o mal, reconheçamo-lo, a propósito da organização económica nos princípios gerais e depois na estrutura da propriedade e dos meios de produção. Porque havia uma certa identificação entre as ideias relativas ao sector industrial e as relativas ao sector público, que aliás seria o sector primacial de acordo com o princípio da apropriação dos principais meios de produção, e porque se tratava do problema das nacionalizações, basicamente também para empresas industriais, embora tenha havido uma ou outra criação de empresas públicas nos sectores primário e terciário, não se sentiu a necessidade de autonomização do sector secundário, da indústria.
Agora que o equilíbrio entre os sectores é restabelecido e desaparece a ideia, ou pelo menos alguns partidos pretendem que ela desapareça, da realização do socialismo pela apropriação colectiva dos principais meios de produção, solos e recursos naturais, compreende-se que se torne aparente a circunstância de haver uma omissão quanto à política industrial, embora
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alguns aspectos nas incumbências prioritárias do Estado no actual artigo 81.° se refiram obviamente a questões de política industrial. Daí que, se lhe atribuirmos este significado, compreende-se que por um lado haja uma omissão e por outro lado haja o desejo de preencher essa lacuna, não estando nós, por conseguinte, contra, e, embora por princípio estejamos pouco receptivos a aumentar o articulado da Constituição quando ele não é estritamente necessário, compreendemos que neste caso possa haver essa justificação.
Quanto à redacção proposta, como em todas as coisas,...
O Sr. Almeida Santos (PS): - Não estamos agarrados à palavras. A nossa ideia foi a de reforçar o equilíbrio.
O Sr. Presidente: - ... existe um ou outro aspecto de pormenor, mas penso que isso pode ficar para um segundo exame. Neste momento, gostaríamos de sublinhar o significado que atribuímos à verificação de uma omissão, à integração dessa lacuna através da proposta do PS, o que nos parece positivo dentro da nossa interpretação, e a disponibilidade em que nos encontremos para encontrar uma redacção que possa servir melhor os objectivos da política industrial.
Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, gostaria de fazer uma pequena nota complementar para dar um pequeno contributo nesta matéria.
Concordo inteiramente com V. Exa. quanto ao reconhecimento da lacuna ou omissão.
Por outro lado, penso que é benéfico refazer-se o equilíbrio numa nova compreensão das coisas e também que a redacção do artigo 104.°-B deve ser aligeirada. O PS, no artigo que epigrafou de "Objectivos da política industrial", define, um por alínea, tais objectivos, mas depois, a propósito de cada um deles, estabelece um conjunto de condições e finalidades para os próprios objectivos. Penso que um artigo como este, a ser consagrado, deveria ser bastante mais seco. O PS mistura nos objectivos da política industrial outros interesses, ainda que interesses relevantes, designadamente a correcção de assimetrias, o equilíbrio e ajustamento de interesses sociais e as políticas de promoção de emprego.
Deveríamos, pois, formular um artigo muito mais seco, que, no fundo, resultaria da elevação a texto constitucional da primeira linha de cada uma dessas alíneas: "O aumento da produção industrial", "o reforço da inovação industrial", "o aumento da competitividade" e "o apoio às pequenas e médias empresas". O que vem a seguir é um certo discurso teórico para explicar as coisas, ou um certo enquadramento, ou uma certa finalidade para a própria finalidade. Por exemplo: o aumento da competitividade e da produtividade das empresas industriais, que é um objectivo da política industrial, constitui um meio em relação a um fim que é "em ordem a conferir ao sistema produtivo maior capacidade concorrencial no quadro de uma adequada especialização" - isto já são os objectivos ou fins das próprias incumbências prioritárias do Estado. Parece-me, pois, aliás na linha do que foi dito pelo Sr. Deputado Rui Machete, que este artigo deveria ser aligeirado, salvaguardando o que nos parece essencial como objectivos da política industrial, mesmo que se entenda ser ainda necessário incluir mais algum - incluí-lo-íamos, mas retirando esta carga e estes excursos teóricos que são condicionalismos ou finalidades das próprias finalidades.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Já foi tudo dito pelo Sr. Deputado Costa Andrade e pelo Sr. Presidente Rui Machete, pelo que só queria manifestar, em relação à alínea b) do artigo 104. °-B proposto pelo PS, uma certa proposta (que é mais pessoal) de impressão de uma fórmula que aqui está inscrita e que me parece inconveniente.
Quando a alínea b) refere "o reforço da inovação industrial com vista à redução da nossa dependência tecnológica", e sem deixar de reconhecer alguns casos de dependência tecnológica efectiva, parece-me que, a nível constitucional, deixar inscrita uma frase como esta revela, de certo modo, uma espécie de assunção de um terceiro-mundismo que não ficará bem. Não quero dizer que sejam aqui referidos todos os meios que visem afastar claramente essa dependência nos casos em que ela exista. Não estou a negar essa realidade, mas parece-me que ela assume a dimensão de um certo auto-reconhecimento de terceiro-mundismo que queremos afastar com os meios propostos nomeada e designadamente ao nível do artigo 104.°-B.
Era, assim, para dizer que me parecia melhor não figurar esta fórmula.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Octávio Teixeira.
O Sr. Octávio Teixeira (PCP): - Sr. Presidente, peço desculpa, mas queria colocar uma questão à Sra. Deputada.
Sra. Deputada, fiquei um pouco perplexo com esta questão do terceiro-mundismo ligada à problemática da redução da dependência tecnológica e a questão que gostaria de colocar é a seguinte: sendo certo, e julgo que isso é inquestionável, que no mundo actual a principal base de acumulação de qualquer país é o desenvolvimento tecnológico e só com essa base de acumulação é que se pode fazer o desenvolvimento, o investimento, etc., como é que a Sra. Deputada pode saltar para a questão do terceiro-mundismo? Se isto é uma preocupação de qualquer país por mais desenvolvido que seja neste momento da evolução económica internacional, como é que se faz a relação? Pedia-lhe uma clarificação.
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - É que a Constituição atribui ao Estado um conjunto de obrigações em vista a certas finalidades, em vários lugares, sem ter necessidade de declarar de modo quase assumido as chagas que pretende superar. Quando, por exemplo, a Constituição se refere à criação de condições que diminuam as desigualdades sociais, assegurem o princípio da igualdade, etc., não está a afirmar que se vive numa sociedade iníqua com problemas graves de descriminação, etc.. O que é importante, pois, é assinalar um conjunto de meios que obviamente pretendam afastar esse mal, sem que seja constitucionalmente assumido, isto é, sem ser dado como um traço da nossa sociedade com toque de fatalidade. É importante que
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os meios sejam aqui referidos, mas esta assunção de terceiro-mundismos é desnecessária e o sentido e a finalidade pretendidos com o conjunto de meios referidos no artigo 104.°-B não ficam prejudicados. Esteticamente, passe a expressão, fica melhor e expurgado de um certo pendor miserabilista o texto constitucional.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Podemos dizer: "o reforço da inovação industrial e da independência tecnológica". É a mesma coisa, mas ao menos "mete o lixo debaixo do tapete".
Repito: não estamos agarrados à redacção. Mas o artigo 96.° não é nada enxuto! O artigo 104.°-A redigimo-lo de forma enxuta; depois não arranjámos maneira de conseguir que ficasse tão enxuto o artigo 104.°-B.
Estou de acordo com a proposta de o início de cada frase ser tido pelo essencial.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Os aspectos específicos da supressão do título vi com a sua redacção actual, a reconformação de alguns preceitos, a sua transposição sistemática, o conteúdo concreto das propostas apresentadas e o grau de depreciação que introduzem no que diz respeito ao regime constitucional do comércio serão abordados pelo meu camarada Octávio Teixeira.
Gostaria de focar apenas a grande opção que o PS e o PSD adiantam nesta matéria.
Evidentemente que só mergulhando nas razões da opção constitucional originária, nas raízes da constituição económica, é que será possível entender o facto - aliás, não alterado pela primeira revisão constitucional - de em 1976 ter sido aprovado um título relativo à reforma agrária (alargado e reduzido conceptual e politicamente na primeira revisão), mas não já títulos de jaez semelhante em relação a outras áreas, nomeadamente à política industrial. O mesmo já não acontece relativamente ao comércio. A lógica que conduziu a que os aspectos que citei avultassem foi exactamente a mesma.
Essa reflexão tem agora de ser refeita. Exige-o o caminho que está a ser percorrido pelo PS e pelo PSD, designadamente as opções que preparam sobre o sentido, os limites e os contornos do governo democrático da economia. Para garantir o governo democrático da economia é essencial a manutenção da intervenção democrática dos trabalhadores, isto é, meios de controle e direitos de organização e intervenção, participação na definição, execução e controle das medidas económico-sociais, lugar adequado na vida da empresa, direitos individuais e colectivos de acção e de defesa. Por outro lado, devem-se também estabelecer meios de efectivação do princípio da subordinação do poder económico ao poder político democrático.
Quanto a estes aspectos, bem como em relação à garantia das nacionalizações, à delimitação dos sectores vedados ao capital privado, à eliminação dos latifúndios, à própria garantia de existência efectiva de três sectores (e, portanto, à articulação entre os diversos tipos de formações económicas), todo o debate realizado até agora nos suscita profundas preocupações.
Em relação ao complexo sistema económico hoje consagrado propõem-se diversas alterações igualmente preocupantes: em relação à garantia constitucional dos
três sectores, ao estatuto dos diversos tipos de iniciativa económica, às relações mercado-plano. Finalmente, o regime de nacionalização, apropriação colectiva e socialização, face a algumas propostas apresentadas, sofreria profundas modificações.
Estando nós a falar de um concreto título da Constituição, estamos, pois, a falar dele à luz de uma certa releitura, revisão de outros conteúdos constitucionais. Por isso, provavelmente, é que o Sr. Deputado Costa Andrade dizia: "havendo uma nova compreensão das coisas, pode ser que o PSD esteja aberto a considerar a inclusão de dois artigos como os que foram agora propostos" (mas certamente mais magrinhos e mais desvitalizados de conteúdo!).
É isto que nos preocupa! Isto com que o PSD se regozija é precisamente aquilo com que não nos regozijamos e que nos preocupa, e vice-versa.
Ora, é neste vice-versa que estamos mais interessados, como bem se compreenderá. O facto de haver uma norma sobre política industrial não suscita problema nenhum, pelo contrário, sobretudo se a norma for boa. Haver uma norma sobre objectivos da política comercial problema nenhum nos suscita, desde que se tenha em atenção que há neste momento um artigo que rege esta matéria (a questão é que na transfega não se perca "o menino e a água do banho", como se costuma dizer).
Neste caso específico, a opção pelo aditamento não seria negativa. O problema são as "trezentas" opções, negativas elas próprias, que lhe são anteriores. É discutível dizer-se, como fez o Sr. Deputado Almeida Santos, que "não faz sentido nenhum" haver aqui um título tão "magrinho" como o actual, havendo títulos constitucionais tão "gordos" atrás e faltando outros... Isso decorreu das circunstâncias concretas de génese da Constituição.
Em consequência da ênfase que foi dada às questões de transformação económica, social e política, e à sua base constitucional, foram deixadas de lado outras questões que, sendo relevantes e importantes, não tinham a ver com o impulso transformador e com as garantias da edificação de uma arquitectura constitucional favorável a essas transformações. Se se fizesse derruir essa arquitectura, seria fraco "prémio de consolação" adicionar-se simultaneamente um conjunto de disposições de carácter programático, umas tantas linhas de política industrial.
Obviamente que só se percebe o facto de o PSD mostrar uma tão intensa disponibilidade para considerar a proposta do PS na base de uma expectativa em relação às questões estruturais. Bem se compreende que o PSD (que cada vez que se fala da Constituição pensa num texto constitucional se possível com quinze páginas!) apesar de tudo não deixe de admitir que ela seja engrossada com dois artigos. Sugeriria, apesar de tudo, que o Sr. Deputado Costa Andrade, tendo certamente notáveis especialistas de política industrial no seu partido, consultasse alguém que pudesse dar uma achegazinha - como hoje está em moda dizer-se - à definição dos objectivos dessa política para evitar coisas do género daquelas que foram aqui sustentadas em nome da sua bancada e que consistem em lobrigar sinais de terceiro-mundismo numa alusão perfeitamente normal, e de resto indispensável, às questões de independência nacional, inovação tecnológica, e por aí adiante.
Por favor, há tropos gerais que se podem aplicar a tudo, pode-se ver terceiro-mundismo em tudo, inclusivamente num fadista que toca guitarra a uma esquina
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e num cego que pede no Chiado, mas é exagero ver um indício de terceiro-mundismo nesta alínea ... Oh, Srs. Deputados do PSD, falem com o Ministro Mira Amaral, en passant, ou de preferência com alguém que tenha noções acerca dessa matéria...
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sabemos mais de direito constitucional do que o Ministro Mira Amaral.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, eu estava a falar de política industrial. É evidente que em matéria de direito constitucional os senhores sabem tudo e mais alguma coisa, como a acta já evidenciou. Alguém mal-intencionado diria que para redigir constituições nada é melhor que prescindir do conhecimento do que seja a indústria: nada como legislar sobre beterraba sem saber o que é uma beterraba (no século XIX o tema foi muito discutido...).
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, devo dizer-lhe que a sua intervenção muito me regozijou. V. Exa. compreendeu perfeitamente o sentido das minhas palavras e teve oportunidade, com a sua inteligência, de as sublinhar. Tirou, naturalmente, uma satisfação inversa da minha, mas isso são matérias que já dependem das nossas próprias posições.
Só queria observar-lhe que em termos de páginas da Constituição ela depende da maneira como forem escritas; se elas forem do tipo 8, cabe lá muita coisa.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, permita que lhe diga que o regozijo estava sob proviso na minha intervenção. Havia um grande "se", e há naturalmente a luta para que o "se" seja num determinado sentido, como V. Exa. compreenderá!
O Sr. Presidente: - Compreendo.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Nesse sentido, sugiro que a abertura das garrafas festivas do PSD fosse ligeiramente retardada, porque há alguns factos supervenientes que podem condicionar os espumantes, como todos sabemos.
O Sr. Presidente: - Em todo o caso, não deve ser demasiado retardada, sob pena de se estragar o vinho. Tem a palavra o Sr. Deputado Octávio Teixeira.
O Sr. Octávio Teixeira (PCP): - Sr. Presidente, gostaria apenas de fazer duas ou três breves referências. Em relação ao artigo 104.°-A, o Sr. Deputado Almeida Santos referiu que ele era no essencial uma condensação do actual artigo 109.°
O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Deputado, houve, sim, uma recuperação de alguns elementos do artigo 109.°
O Sr. Octávio Teixeira (PCP): - Como não tenho acompanhado toda a discussão, e sob risco de cometer aqui um erro e essa matéria já estar contida noutro passo do articulado da proposta de lei do PS, gostaria de lhe colocar aqui uma questão.
No essencial, este artigo 104.°-A é uma substituição do artigo 109.°, e nessa medida julgo que desaparece um aspecto que me parece importante, que é o problema da formação e controle dos preços. Estará, porventura, referido noutro ponto...
O Sr. Almeida Santos (PS): - Não está incluído noutro ponto, e eu dou-lhe a respectiva explicação. Pareceu-nos que é uma matéria sem dignidade constitucional. Já na parte relativa aos preços agrícolas deixámos cair essa referência. Pareceu-nos que não tem dignidade constitucional estabelecer aqui, por exemplo, a obrigatoriedade de fixar no princípio do ano os preços de garantia dos produtos agrícolas. Sabemos que isso é necessário, que se pratica, mas não nos parece que tenha dignidade constitucional.
Do mesmo modo, pareceu-nos excessivamente pormenorizado e programático deixar na Constituição os reflexos relativos aos preços e adequar a evolução dos preços de bens essenciais aos objectivos da política económica e social. Isso na medida em que acentuamos - e não somos os únicos a fazê-lo - as características da nossa economia como economia de mercado. Não estamos a ver que na Constituição de um país do Mercado Comum, como é agora o nosso, faça falta figurar o Estado a fixar e a controlar os preços!
No entanto, recuperámos a racionalização dos circuitos de distribuição, o combate às sociedades económicas especulativas, o desenvolvimento das relações económicas externas. Mas deixámos cair, por exemplo, o preceito que diz que "na salvaguarda da independência nacional incumbe ao Estado regular as operações do comércio externo, nomeadamente através de empresas públicas... etc.".
Pareceu-nos que não se justifica que o articulado seja tão pormenorizado, tão programático, e sobretudo que estejamos sempre a mencionar a independência nacional a propósito de tudo e de nada, designadamente do comércio. Essa preocupação deve figurar nos princípios fundamentais!
De qualquer modo, pareceu-nos que o essencial do texto constitucional foi trasladado. Se entenderem que há alguma coisa mais que mereça sê-lo, estamos abertos à discussão.
O Sr. Octávio Teixeira (PCP): - Sr. Deputado, julgo que se perde esta questão da problemática dos preços porque, na própria lógica do texto actual, tal como eu o analiso, quando se fala nos consumidores já não se refere a questão dos preços, dado que ela está focada anteriormente. E se assim não fosse possivelmente teria entrado na questão da protecção ao consumidor.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Se tivermos de fazer uma referência aos preços, seria melhor que ela fosse incluída na área da protecção ao consumidor, o qual é a "vítima" da política de preços.
O Sr. Octávio Teixeira (PCP): - Sr. Deputado, em última análise, até se poderia dizer, quando se defende a concorrência salutar, que este aspecto estaria aí implícito, mas a própria eliminação do respectivo texto poderia levar a uma conclusão diferente.
Em relação ao artigo 104.°-B, inversamente àquilo que aqui foi referido há pouco, julgo que há interesse por parte de alguns Srs. Deputados, designadamente do PSD, num preceito deste tipo, embora depois, em termos de discussão mais pormenorizada, possa haver aqui algumas questões que mereçam uma revisão.
De qualquer modo, gostaria de deixar expressa a ideia de que não estamos nada de acordo com a contraproposta do Sr. Deputado Costa Andrade, porque ela seria completamente descaracterizadora daquilo que
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interpreto serem os objectivos propostos pelo PS neste artigo. Se ficar aqui estabelecido o objectivo de aumento da produção industrial, sem mais, isso pode dar para tudo e para nada, mas se ficar expresso o objectivo de aumentar a produção industrial num quadro de ajustamento de interesses sociais e económicos, então a questão torna-se muito mais clara, muito mais definida e objectiva.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Não nos parece que assim seja. Em todo o caso...
O Sr. Octávio Teixeira (PCP): - Por conseguinte, gostaria de deixar, quanto a este campo, a ideia de que nos parece que a contraproposta do PSD parece que é redutora e descaracterizadora dos próprios objectivos que aqui são apontados.
Assim, julgo que, numa fase posterior, se poderá analisar aqui o problema da chamada coerência interna da estrutura industrial, a qual poderá estar implícita numa adequada especialização, mas parece-me - pelo menos numa primeira leitura - que o texto é insuficiente.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.
O Sr. Raul Castro (ID): - Sr. Presidente, trata-se aqui de duas propostas que têm característica diversas, uma quanto à remodelação da Constituição e outra como inovação.
Em todo o caso, não ficou claro para mim se neste momento se discute apenas a arrumação destes artigos e a criação deste novo artigo 104.°-B ou se também se discute o conteúdo das respectivas propostas,
O Sr. Presidente: - Com certeza, Sr. Deputado. As intervenções dos Srs. Deputados Costa Andrade e Assunção Esteves, entre outras, demonstram-no.
O Sr. Raul Castro (ID): - Muito bem, Sr. Presidente. Pretendo apenas integrar-me na sistematização dos trabalhos. Assim sendo, não ouvi o que disse o Sr. Deputado...
O Sr. António Vitoríno (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)
O Sr. Raul Castro (ID): - A comparação entre o artigo 1O4.°-A e o artigo 109.° mostra-nos uma grande diferença.
O artigo 104.°-A é uma súmula seca de objectivos. Aliás, em relação à alínea a), permito-me duvidar se teria sido o Sr. Deputado Almeida Santos que redigiu esta alínea, porque a concorrência salutar é algo indefinido. O que é, afinal, a concorrência salutar?
Penso que, em especial na Constituição, se devem utilizar fórmulas claras. A designação em causa pode encerrar uma boa intenção, mas não passa disso, ou seja, não é uma fórmula expressiva e vinculativa. Talvez isso resulte do inconveniente de se pretender retirar ao artigo 109.° tanto do que lá está, digamos, como carne, para colocar aqui num esqueleto tão seco o que ficou demasiado indefinido.
Realmente o que me parece é que a comparação entre os dois artigos não confere vantagem à respectiva proposta. Confere, sim, vantagem em ser muito mais exíguo naquilo que diz, mas retira ideias que estavam no artigo 109.° e que agora não estão no artigo 104.° É para este aspecto que pretendo chamar a atenção do PS.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Não discutimos a troca de um adjectivo por outro. Se tiver outro melhor do que "salutar", substituímo-lo.
O Sr. Raul Castro (ID): - Não, mas a questão aqui não é o adjectivo.
O Sr. Almeida Santos (PS): - A expressão tradicionalmente utilizada é "concorrência leal". Mas pareceu-nos que a palavra "leal" está gasta, que "salutar" é mais ampla, no sentido de "saudável".
No entanto, reconheço que este não é um adjectivo corrente da linguagem constitucional. Reconheço isso e, se encontrarmos uma palavra mais adequada, melhor.
De qualquer modo, o que se abandonou praticamente no artigo 109.° foi a referência aos preços. Acerca disso já demos uma explicação, seja ela boa ou má. Entendemos que, principalmente depois da nossa entrada no Mercado Comum, em que os preços hão-de resultar cada vez mais de geração espontânea, embora o Estado possa ter alguma influência, não cabe na Constituição esta referência específica à evolução dos preços.
Tirando esse aspecto, parece-nos que, embora com alguma preocupação de síntese, está cá tudo no texto. Está aqui abrangida também a protecção dos consumidores como um objectivo da política comercial. Esta protecção não era propriamente uma finalidade, ou seja, encontra-se perdida num título que versa os princípios gerais.
Propomos agora que a protecção do consumidor seja incluída nos direitos, liberdades e garantias e referida como um objectivo da política comercial. Parece-nos que de algum modo enriquece o articulado, mas não estamos agarrados à nossa formulação.
O Sr. Raul Castro (ID): - Esse é o artigo referente à política industrial.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Sim, mas o texto fica equilibrado. Existem três sectores económicos fundamentais, e cada um deles tem uma definição de objectivos. Se a redacção não é suficientemente boa, melhore-se. Mas a intenção foi salutar.
O Sr. Raul Castro (ID): - De qualquer forma, mesmo integrado na CEE, penso que ao Estado Português resta ainda uma faculdade de intervenção nos preços.
Portanto, a ideia de que o Estado renuncia por completo...
O Sr. Almeida Santos (PS): - Não propomos que se proíba!
O Sr. Raul Castro (ID): - Mas a justificação que V. Exa. apresenta para retirar o que estava no artigo 109.° quanto à formação e controle dos preços não é absoluta. Quero com isto dizer que o Estado intervém naquilo que pode intervir, mas no que não pode...
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O Sr. Almeida Santos (PS): - Isso permaneceria neste articulado ao arrepio daquilo em que se está cada vez mais a transformar a nossa orientação económica. De facto, é evidente que não é preciso que isso esteja na Constituição para que aconteça. Não é, pois, necessário estar tudo previsto na lei fundamental. E quem ler a nossa Constituição não vai consultar a lei ordinária. Ficaria, porventura, chocado com o facto de um país da CEE configurarão Estado a intervir com este pormenor na formação dos preços!
O Sr. Raul Castro (ID): - Além disso, a justificação de que a independência nacional estava no artigo 109.° é uma ideia demasiado repetida. Parece que em relação a esta matéria ela não deixava de ser essencial, porque uma das matérias em que a salvaguarda da independência nacional pode ser colocada em causa é precisamente na política comercial.
O Sr. Almeida Santos (PS): - A Constituição refere várias vezes, a propósito de tudo e de nada, o problema da salvaguarda da independência nacional. Parece que estamos num país com os atilas à porta, já montados nos cavalos, prontos a invadir-nos. É melhor não prevenir demasiado nas coisas quando elas não constituem um risco real.
Bem sei que o sector económico é um dos que podem levar à perda da nossa independência, mas não é necessário falar disso a propósito de tudo, ou seja, da propriedade, dos preços, da reforma agrária, etc.. Entendo, de facto, que a Constituição fala de mais na independência nacional para o grau de risco que estamos a correr nesse domínio. Apesar de tudo, parece que ainda somos um país independente!...
O Sr. Raul Castro (ID): - Sr. Deputado, parti de uma crítica genérica para um caso concreto, pelo que a questão é saber se neste caso específico se justificava a eliminação e não se há demasiadas referências. Penso que, no nosso entendimento, se justificava.
O Sr. Almeida Santos (PS): - A liberdade de comércio faz com que se compre onde se vende mais barato. Assim, dizer-se que a política de preços coloca em causa a independência nacional...
O Sr. Raul Castro (ID): - Não, Sr. Deputado, esse aspecto estava referido nas relações económicas externas!
O Sr. Almeida Santos (PS): - Compramos onde queremos e a quem nos vende mais barato e o melhor produto. Temos, de facto, essa liberdade.
O Sr. Raul Castro (ID): - Infelizmente nem sempre sucede isso!
O Sr. Almeida Santos (PS): - Penso, sinceramente, que sucede!
O Sr. Raul Castro (ID): - Quanto à proposta da criação de um novo artigo 104.°-B, penso que falta considerar a ideia apresentada pelo Sr. Deputado Octávio Teixeira de que se devia manter e não retirar, visto que aquilo que foi referido como crítica pelo PSD de que a segunda parte das alíneas estaria a mais não tem
a nossa concordância. De qualquer forma, há uma ideia que não aparece expressa, ou seja, a do desenvolvimento económico. E esta traduzia uma fórmula melhor do que a da modernização, que é, no fundo, vaga, porque o desenvolvimento é que é a verdadeira modernização. Aliás, o desenvolvimento não deve ser confundido com crescimento económico, pelo que se tratava de uma ideia que podia vir a enriquecer este novo artigo.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, suponho que, neste momento, poderemos passar à discussão das propostas relativas ao sistema financeiro e fiscal.
Temos, portanto, em análise o artigo 105.°, cuja epígrafe é "Sistema financeiro e monetário". Vamos deixar de parte o problema de saber o número do título, pois isso não interessa por agora. Esse aspecto resultará da arrumação sistemática ulterior em função dos resultados a que chegarmos.
Nesta matéria do sistema financeiro e monetário existem apenas duas propostas de alteração, que são as seguintes: a primeira é apresentada pelo CDS, a segunda é formulada pelo PSD.
Em relação à proposta de alteração, sugerida pelo PSD, ela é relativamente pequena e, no fundo, está formulada em função de razões de ordem sistemática. VV. Exas. recordar-se-ão de que o PSD tem uma proposta em matéria do Plano diferente do estatuído neste momento no texto constitucional. E, nessas circunstâncias, em vez de referirmos a expressão, no n.° 1 do artigo 105.° in fine, "de acordo com os objectivos definidos no Plano", suprimimos essa referência à ideia do Plano. Também se usa a expressão "desenvolvimento económico e social" em vez de "expansão das forças produtivas", que nos parece uma terminologia menos apropriada.
Quanto ao n.° 2 do referido preceito, também há o mesmo tipo de preocupações. Verifico, entretanto, que se deve fazer uma pequena correcção na redacção da nossa proposta de alteração do citado n.° 2, que julgo ser apenas da responsabilidade dos serviços. De facto, refere-se neste texto a expressão "polícias monetárias", quando é óbvio que é "políticas monetárias". Trata-se, pois, de um anglicanismo.
Interessa, porém, referir que o PSD substitui no texto do artigo 105.°, ora em discussão, a indicação do Plano pela Lei do Orçamento do Estado, visto que é necessário que o Banco de Portugal, como banco central, tenha algum tipo de articulação quer com a Assembleia da República mediante o Orçamento aqui votado quer com as directivas do Governo no uso das suas competências próprias.
Além disso, como aliás já se encontrava devidamente sublinhado no texto constitucional na parte relativa ao n.° 2 do artigo 105.°, o Banco de Portugal colabora com algum grau de autonomia na execução dás políticas monetária e financeira, ou seja, o seu modo de actividade não é uma simples subsunção em termos de um silogismo "barbara", mas tem alguns contributos com um grau de autonomia relativamente elevado, como VV. Exas. sabem.
Portanto, trata-se, no fundo, de razões que se alicerçam em circunstâncias de ordem sistemática e que penso que não têm suficiente relevo para serem discutidas a se. Todavia, elas justificar-se-ão consoante as
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nossas propostas, em matéria de Plano, forem aceites ou não. VV. Exas. ajuizarão e ponderarão em vosso prudente critério, usando da parcimónia do tempo que nos convém. Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.
O Sr. Raul Castro (ID): - Sr. Presidente, desejo apenas dizer que me congratulo com o facto de na proposta de alteração do CDS, em matéria do sistema financeiro e monetário, o partido proponente se preocupar com a "segurança das populações"...
O Sr. Presidente: - Também deve ser uma gralha! A expressão correcta deve ser "poupança das populações".
Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.
O Sr. Almeida Santos (PS): - É evidente que isso é uma gralha, Sr. Presidente. No entanto, já o não é uma coisa que quero aplaudir muito enfaticamente: é a consagração de que no território nacional haverá um único sistema monetário. Desejo, pois, que fique registado em acta o meu aplauso.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, compreendo o seu voto, mas gostaria de lhe referir o seguinte: de um ponto de vista monetário e financeiro, não me parece possível, independentemente de alguns devaneios, haver no Estado Português mais de um banco central com o exclusivo da emissão de moeda e mais do que um sistema monetário.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Mas, Sr. Presidente, o problema não é o exclusivo da emissão de moeda, mas sim o de haver um sistema monetário único. Aliás, sei muito bem por que é que aplaudi essa proposta, bem como a razão de o CDS a ter formulado.
O Sr. Presidente: - Mas todos sabemos, Sr. Deputado. Acontece que só estou a dizer que isso significa, de algum modo, uma manifestação que para alguns pode ser tomada, embora injustamente quanto aos motivos subjectivos dos seus proponentes, como uma picardia um pouco inútil.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Não é inútil, Sr. Presidente, porque já houve a necessidade de tomar medidas para que não deixasse de ser assim.
O Sr. Presidente: - Não, Sr. Deputado, o que houve necessidade foi de explicar às pessoas, quando foi caso disso, que não podia deixar de ser assim. De resto, recordo-me de ter escrito num parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias que não era justamente possível deixar de ser assim.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Não estou preocupado com os pontos de vista de V. Exa., nem nunca tal aconteceu. As minhas preocupações são, pois, de outro género.
De qualquer modo, quero dizer também que não vemos nenhum mal em que se substitua a expressão "a expansão das forças produtivas" por "desenvolvimento económico e social". Já temos, entretanto, dúvidas sobre se neste articulado não se justifica uma referência ao Plano. Trata-se, de facto, de um problema sobre o qual estamos dispostos a reflectir em conjunto convosco, sem prejuízo de se fazer uma referência à Lei do Orçamento do Estado, como é óbvio.
Temos, porém, algumas dúvidas, embora sejamos favoráveis à ideia de o Plano deixar de ser omnipresente na Constituição, quanto ao facto de saber se este domínio não será um daqueles em que se justifica ou continua a justificar-se uma referência ao Plano.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, desejo fazer uma observação em relação à questão suscitada pelo Sr. Deputado Almeida Santos.
Na verdade, a proposta de alteração do artigo 105.°, apresentada pelo CDS, descontada a gralha ínsita no seu n.° 1, é, curiosamente, empobrecedora numa das partes e redundante na outra.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Desculpe interrompê-lo, Sr. Deputado, mas só me referi à parte que V. Exa. considera redundante. Já no respeitante à outra parte não disse que estava de acordo com ela. Estou, de facto, de acordo com a referência à existência futura de um único sistema monetário, constante da proposta de alteração do n.° 2 do artigo 105.° da autoria do CDS. Contudo, devo salientar que a ideia correcta é a de que há um sistema monetário único e não a de que haverá esse sistema. Estou, pois, de acordo em que se consagre essa referência.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas o grande problema é este, permita-me a comparação: não posso estar em desacordo que o Sr. Deputado exista, pois V. Exa. está aí sentado! Não vou, portanto, discutir se o consagramos na letra da Constituição, pois o Sr. Deputado existe e está presente. Acontece coisa similar com a questão do exclusivo da emissão de moeda ou a com a unicidade deste sistema. Sendo o Estado unitário e essa questão da emissão um elemento absolutamente fulcral para a definição ou garantia, dessa unidade, no plano monetário, não sendo esta última concebível sem essa garantia, e sabendo todos nós a história da alínea n) do artigo 229.°, não se revela necessária uma proposta como a do CDS. Tem sempre de ser assim...
O Sr. Almeida Santos (PS): - O seu argumento de que eu estou aqui sentado é igual ao que lhe vou dizer: já gastei horas a demonstrar que é assim! Já tive interlocutor que defendeu que não era desse modo, pelo que tenho alguma razão para aplaudir que isto fique referido no artigo 105.° Portanto, a questão não é igual ao facto evidente de eu estar aqui sentado, pois estou mesmo, nem ninguém diz que não.
Aliás, já alguém tentou demonstrar e apresentou propostas no sentido de que não havia um único sistema monetário! Como às vezes a loucura atinge cumes inconjecturáveis, talvez valha a pena clarificarmos esta questão.
Vozes.
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O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Almeida Santos, não estamos em desfavor dessa proposta de alteração. Pensamos, porém, que é desnecessário consignar que há um único sistema monetário. E digo isto porque, para o PSD, é claro que o que é fundamental é a referência, feita actualmente pela Constituição, ao exclusivo da emissão de moeda. Nestes termos, não pode haver dois sistemas monetários.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Pode, Sr. Presidente, pois o exclusivo da emissão de moeda não significa que não possa haver no espaço nacional duas moedas. O exclusivo da emissão de moeda não significa que o Banco de Portugal não possa emitir duas moedas. Ele continuará a deter o exclusivo dessa tarefa. Aliás, não tenho dúvidas sobre as vossas certezas, nem sobre as minhas.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, penso que há pouco tentei ser extremamente claro.
Pensamos que as únicas modificações que propusemos para o n.° 2 do artigo 105.° foram-no com base em razões de ordem sistemática. Além disso, a circunstância de se consignar que o banco central tem o exclusivo da emissão de moeda e, de acordo com a Lei do Orçamento, colabora nos objectivos definidos nos planos e directivas do Governo e na execução das políticas monetária e financeira é perfeitamente clara.
Entretanto, pretender-se referir algo que é, de algum modo, uma redundância para algumas ideias que não subscrevemos e que, segundo penso, seriam praticamente inexequíveis do ponto de vista monetário. Parece-nos que é uma garantia jurídica que poderia ter um significado político não desejado por nós.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, pretendia apenas concluir o meu raciocínio.
É evidente que o PSD poderá não estar disponível para consagrar uma garantia adicional. Foi, aliás, a expressão que o Sr. Presidente utilizou. Em todo o caso seria uma garantia adicional e não mais do que isso. Embora a Constituição tenha conferido às regiões autónomas um verdadeiro e próprio direito de intervenção na definição e execução da política fiscal, monetária, financeira e da própria política cambial, esse direito de intervenção traduz-se naturalmente na possibilidade de conhecimento, da emissão de opiniões e, eventualmente, em participação em estruturas existentes para esses efeitos, com um determinado estatuto, mas não mais do que isso.
De facto, a questão da constitucionalidade do zarco não tem estado colocada na nossa circunstância política e, embora haja no PSD, quanto a essa matéria, desvairadas ideias e desvairados arautos dessas ideias desvairadas, a cobertura constitucional para esse desvario inexiste, pura e simplesmente, e a estrutura e a malha constitucional não sairão diminuídas se um texto destes não for consagrado. Trata-se de um "mais" em relação a um claro desiderato e uma clara solução constitucional nesta matéria. Não creio, pois, que a questão se coloque em termos dilemáticos e que possamos dizer que "o zarco abriu caminho" se não for consagrada esta proposta de alteração do CDS.
Há um segundo aspecto que ainda não pude abordar. A questão suscitada pelas ideias do PSD em matéria de planeamento está dirimida ou discutida atrás. (O PSD pretende uma profunda alteração e desnaturação do sistema de planeamento democrático.) Quanto a isso, nada acrescentaria nesta sede. Há, entretanto, uma referência misteriosa na proposta, a que o Sr. Presidente não aditou o que quer que fosse. Refiro-me à ideia de estabelecer um nexo, que me parece de subordinação, entre a actuação do Banco de Portugal e a Lei do Orçamento do Estado. Se bem percebo o preceito, o Banco de Portugal colaboraria na execução das políticas monetária e financeira com um triplo enquadramento: de acordo com a Lei do Orçamento, de acordo com os objectivos definidos nos planos e de acordo com as directivas avulsas do Governo. As duas últimas coisas sabemos o que são, embora saibamos que no caso do planeamento haveria um grau de desnaturamento impossível de precisar neste momento, e espero que não seja útil precisar depois devido à não consagração! Mas em relação à primeira componente seria útil que o Sr. Presidente Rui Machete pudesse precisar exactamente como é que concebem este sistema para podermos trocar impressões que nos permitam apurar o sentido útil e todas as implicações da proposta.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, a explicação, no meu espírito, é relativamente simples. A Lei do Orçamento cada vez mais não se limita a ser uma lei das receitas e das despesas do Estado, mas traduz também qual é a orientação em matéria de política monetária e financeira do Estado para que as coisas se articulem todas elas num todo coerente, visto que as distinções que se fazem têm muito de artificioso em termos práticos e não é possível conceber uma certa política em matéria fiscal, por exemplo, sem simultaneamente a articular com a política de crédito e a política monetária em geral.
Parecer-nos-ia mal que dado o papel, a relevância, que o banco central tem nas propostas de definição e até de execução dessas políticas com um grau de relativa autonomia em relação ao resto do executivo encimado pelo Governo - embora seja subordinado ao Governo - que ele não possa beber directamente da Lei do Orçamento algumas dessas indicações.
A ideia, pois, foi a de dizer que a Assembleia da República, ao traçar na Lei do Orçamento o comportamento do Governo em matéria económica e financeira, embora mais particularmente em matéria financeira, mas com incidências inevitáveis em matéria económica e em particular em termos da política macroeconómica de cariz monetário, fará com que o banco central colha do Orçamento do Estado (OE) - e a Assembleia da República tem de se preocupar com esse aspecto do problema - as linhas directrizes. Pretendemos sublinhar isto.
Trata-se de uma manifestação dupla, simultaneamente relevar a importância da Assembleia da República na definição da política económica do Estado para cada ano, e, portanto, é um reforço de indicações acerca da importância e da competência da Assembleia da República nesta matéria, e por outro lado também,
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do mesmo passo, referir que o banco central colhe directamente na Lei do Orçamento indicações acerca do seu comportamento, sem a interpositio do Executivo. Tem a palavra o Sr. Deputado Octávio Teixeira.
O Sr. Octávio Teixeira (PCP): - Sobre esta questão prometo ser breve. Julgo que o Sr. Presidente levantou duas questões que me parece importante ponderar. Por um lado, referiu que acontece o que acontece neste momento e, por outro lado, dá uma justificação para o aparecimento, neste contexto, da Lei do Orçamento.
O que está a acontecer neste momento é aquilo que, em minha opinião, não deveria acontecer.
O Sr. Presidente: - Desculpe-me interrompê-lo, mas queria dizer uma outra coisa. Não esqueça que na nossa perspectiva desaparece o plano anual.
O Sr. Octávio Teixeira (PCP): - Exacto, mas já não voltaria a esse problema, pois já foi colocado.
Julgo que esta proposta de inclusão da Lei do Orçamento é extremamente incorrecta e, mais do que isso, perigosa, porque pode agravar aquilo que mal tem sido feito, de quando em vez ou quase sempre, nos tempos mais próximos, e que é o facto de a política monetária não ser definida (e pareceu-me ser essa a ideia de V. Exa., embora não seja isso o que aqui está) tendo em consideração o Orçamento. O Orçamento deveria ter em consideração a política monetária global do País, o Orçamento tem, ele próprio, de se enquadrar com ela porque senão o problema, que tem sido colocado nos últimos tempos, de não haver crédito para a actividade que não seja OE perdurará.
Tal como aqui está parece-me que temos um reforço dessa ideia. O Banco de Portugal ao colaborar, ao participar, na execução da política monetária terá de ter em conta o que está definido no Orçamento, quando deveria ser o Orçamento a adaptar-se à política monetária necessária para o País de acordo com os outros objectivos, independentemente da tal questão do Plano ou dos objectivos dos planos.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Octávio Teixeira, permite-me que faça uma interrupção?
O Sr. Octávio Teixeira (PCP): - Faça favor, Sr. Presidente.
O Sr. Presidente: - Até poderei estar de acordo com aquilo que V. Exa. diz, mas o meu problema básico, e aliás aquele que nos levou a esta redacção, foi o seguinte: como V. Exa. sabe, o único sítio onde a Assembleia da República se pronuncia e, de algum modo, implicitamente dá indicações sobre a política monetária é a Lei do Orçamento.
O Sr. Octávio Teixeira (PCP): - Sr. Presidente, repare que...
O Sr. Presidente: - Mas não é assim?
O Sr. Octávio Teixeira (PCP): - ... se vir as propostas que aparecem sobre a problemática do Orçamento há pelo menos algumas - não sei se todas as propostas - que poêm a questão de Orçamento ser acompanhado por um quadro da política monetária, precisamente para que o Orçamento possa ser discutido com esse enquadramento.
Tudo o que aqui está aponta para uma inversão. Primeiro, há que definir o Orçamento para depois se delimitar a política monetária, o que me parece, como disse há pouco, perigoso.
O Sr. Presidente: - As duas coisas, como V. Exa. sabe, têm de se conjugar e por vezes julgo que será muito difícil dizer o que é que tem prioridade, independentemente daquilo que dizem os manuais, mas o problema é o seguinte: tem ou não de haver conjugação entre a política monetária e a política orçamental? Tem!
Neste momento, no quadro institucional não há algo do ponto de vista jurídico que vincule, a não ser no Orçamento, a um certo tipo de política monetária. É verdade que isso é muitas vezes feito de uma forma indirecta, sabemos que é assim. Se definirmos o Orçamento com maior amplitude do que aquela que tradicionalmente lhe tem sido dada, poderemos encontrar uma forma de enquadramento. Não estamos fechados a outro tipo de enquadramento da política monetária e da política orçamental, mas o propósito, como há pouco referi, era fundamentalmente um propósito contrário àquele que concluiu daquilo que estava escrito. Esse foi o propósito, foi dizer que o Banco de Portugal não pode ficar completamente fora das directrizes da Assembleia da República, visto que o grande momento em que se definem é no momento da aprovação do Orçamento.
Se V. Exa. der ao OE uma interpretação mais rica, quanto ao conteúdo, não haverá problemas, más não quisemos prejuizar o que vem primeiro, se é a definição das despesas e depois a acomodação da política monetária. É evidente que sabemos, e infelizmente temo-lo sentido dolorosamente na carne, que muitos aspectos da política monetária se têm reflectido no OE quando durante algum tempo nele foram esquecidas as consequências da política monetária, isto é, estou a referir-me aos problemas da política de austeridade da balança de pagamentos.
A nossa ideia é, pois, que existe uma lacuna ou um problema que importa resolver em termos de definição da política monetária por parte da Assembleia da República, que tem de algum modo de a definir. Também não a pode definir com rigidez tal que vá dizer, admitindo que se continua a utilizar o esquema dos limites de crédito, que o crédito é x e não possa ser ultrapassado. Não tem sentido e, como sabe, isso tem de ser adequado, tem de ter flexibilidade suficiente que permita ao banco central intervir. No entanto, os grandes objectivos da política monetária, o grande enquadramento da política monetária e a sua correlação com o OE devem ser definidos pela Assembleia da República, sob pena de estarmos a definir umas coisas que podem ser relativamente vazias de sentido, e por outro lado importa, como eu disse há pouco, sublinhar que o Banco de Portugal, embora subordinado ao Governo por este esquema de directrizes, o governador do Banco de Portugal e a sua administração não são simples órgãos executores das ordens do Governo. Não são directores-gerais, e por isso é extremamente importante que a Constituição o diga.
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Porventura não estamos ainda suficientemente amadurecidos para dar alguns passos mais em termos de definição do estatuto do Banco de Portugal nesse aspecto, no nível constitucional ou noutro, mas a ideia foi esta e que aceito venha a ser corrigida com as emendas que mereça ter. Quanto aos propósitos, suponho, por aquilo quê o Sr. Deputado Octávio Teixeira disse, que não há contradição.
O Sr. Octávio Teixeira (PCP): - Sr. Presidente, só para concluir gostaria de dizer que mantenho a opinião de que, tal como está esta proposta, poder-se-á inferir a interpretação precisamente inversa daquela que o Sr. Presidente acabou de referir, e inclusivamente a questão de ser cada vez mais director-geral pode induzir a ideia inversa. Talvez esse problema suscitado pelo Sr. Presidente, e que do meu ponto de vista não está nesta proposta, possa ser considerado na proposta de articulado relativo ao Orçamento, mas isto é uma ideia que me surgiu neste momento e que não está aprofundada. Se o objectivo for esse, parece-me haver concordância de objectivos e talvez devêssemos ponderar bem o problema da redacção e do local da sua inclusão.
O Sr. Presidente: - Não temos em princípio, e estamos ainda a fazer uma primeira aproximação na abordagem deste tema, nenhuma objecção, visto que, como lhe explanei, o propósito é este. É preciso encontrar algum sítio onde se possa ancorar que a Assembleia da República tem um papel na definição da política monetária, embora em termos muito genéricos, e no nível dos grandes princípios, a sua articulação com a política financeira e a importância de situar o papel de banco central não como um órgão de pura subsunção, não como uma espécie de direcção-geral do Ministério das Finanças, mas como uma entidade que, embora subordinada às directrizes do Governo nesta matéria, tem especificidade como a têm todos os bancos centrais. Se está bem aqui ou se se tem de tentar encontrar outras formulações, será objecto de discussão, pois não é uma questão fechada.
Suponho que poderíamos interromper os nossos trabalhos agora e recomeçá-los às 15 horas e 30 minutos.
Srs. Deputados, está supensa a reunião.
Eram 13 horas e 10 minutos.
Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Vice-Presidente, Almeida Santos.
O Sr. Presidente (Almeida Santos): - Srs. Deputados, está reaberta a reunião.
Eram 16 horas.
Srs. Deputados, iríamos agora iniciar a discussão do artigo 106.°, sob a epígrafe "Sistema fiscal", para o qual foram apresentadas várias propostas de alteração.
Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.
O Sr. Raul Castro (ID): - Sr. Presidente, pretendia apenas referir que, no relatório que foi distribuído, a proposta que aí se atribui à ID foi apresentada pelo Sr. Deputado Carlos Lélis e outros, e, inversamente, aquela que no mesmo relatório consta como fazendo parte do projecto destes últimos é na realidade a proposta apresentada pela ID.
O Sr. Presidente: - Relativamente a este preceito, o CDS substitui no n.° 1 a actual expressão "sistema fiscal" por "bases ou princípios fundamentais do sistema fiscal", seguindo-se "incluindo os relativos a benefícios fiscais, serão definidos em lei orgânica" - que é uma nova categoria de leis proposta pelo CDS - "tendo em vista as finalidades de natureza pública". No n.° 2, CDS propõe a seguinte fomulação:
Os impostos são criados por lei, que determina a incidência, a taxa ou os seus limites, as isenções e outros benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes.
Ou seja, relativamente à actual redacção, a alteração proposta pelo CDS consiste em que a lei determinaria não apenas a taxa, os benefícios fiscais e as garantias dos contribuintes, mas também os limites da taxa, bem como as isenções. Relativamente ao n.° 3, propõe-se a sua alteração total, com a seguinte redacção:
A lei do orçamento fixa os impostos que poderão ser cobrados em cada exercício.
Por seu lado, o PCP acrescenta dois números, mantendo os três primeiros. É a seguinte a redacção proposta para esses novos números:
4 - A lei define o regime das taxas e demais obrigações públicas de natureza patrimonial.
5 - A lei que criar ou aumentar impostos não pode ter efeito retroactivo, sendo vedada a tributação relativa a factos geradores ocorridos antes da respectiva lei.
O PS mantém os actuais números e acrescenta um novo número, com a redacção seguinte:
Os impostos não podem se aplicados retroactivamente, sem prejuízo de os impostos directos poderem incidir sobre os rendimentos do ano anterior ao da entrada em vigor da respectiva lei.
Por fim, no n.° 1 o PSD não refere que o sistema fiscal será estruturado por lei e à expressão "repartição igualitária da riqueza e dos rendimentos" prefere "repartição mais justa dos rendimentos e da riqueza", ficando a nova redacção a seguinte:
O sistema fiscal visará a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outros entes públicos e uma repartição mais justa dos rendimentos e da riqueza, tendo em conta os objectivos de desenvolvimento económico do País.
O projecto apresentado pelo Sr. Deputado Carlos Lélis e outros apenas intercala um novo número, como n.° 3, com a seguinte redacção:
As regiões autónomas podem adequar o sistema fiscal às suas realidades económicas e às necessidades do seu desenvolvimento, criando impostos ou derramas, alterando taxas fixas por lei nacional ou definindo benefícios ou isenções fiscais.
Por seu turno, a ID também introduz um novo número, que intercala, como n.° 3, com a seguinte redacção:
A lei que crie novos impostos ou determine acréscimo de taxas não pode tributar situações ocorridas antes da sua entrada em vigor.
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Entretanto, reassumiu a presidência o Sr. Presidente, Rui Machete.
O Sr. Presidente (Rui Machete): - Srs. Deputados, tendo já sido feito pelo Sr. Vice-Presidente o resumo das propostas de alteração apresentadas para o artigo 106.°, tem a palavra, para justificar a proposta do PCP, o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, a fim de não atrasar os trabalhos, porque estamos a procurar localizar um documento que gostaríamos de vos transmitir, talvez o apresentante seguinte pudesse desde já justificar a sua proposta.
O Sr. Presidente: - Para justificar a proposta do PS, tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.
O Sr. Almeida Santos (PS): - A nossa proposta é muito fácil de justificar. Nós entendemos que se deve constitucionalizar a não aplicação retroactiva dos impostos e, para que não haja confusões, estabelecemos que tal não prejudica a possibilidade de os impostos directos poderem incidir sobre os rendimentos do ano anterior, como já hoje acontece. Se não referíssemos este ponto, poderia parecer que novos impostos só se aplicariam em relação aos rendimentos do ano a que dissessem respeito e só seriam aplicáveis no ano seguinte. Creio que, com esta ressalva, a nossa redacção, relativamente a todas as outras, é talvez tecnicamente mais perfeita. Está assim justificada a nossa proposta.
O Sr. Presidente: - Para justificar a proposta do PSD, tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: A nossa proposta é igualmente simples.
Antes de mais, devo dizer que não atribuímos grande importância à alteração da ordem entre "rendimentos" e "riqueza", que poderá vir a ocorrer.
Restam três notas fundamentais sobre a nossa proposta.
Em primeiro lugar, na lógica do que vinha sendo feito em relação a outros domínios da constituição económica, começamos por definir os fins do sistema fiscal que, como subsistema do sistema mais amplo que é o Estado, há-de desempenhar uma função. E é isso o que no n.° 1 do preceito começamos por estabelecer, ao referirmos que "o sistema fiscal visará a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outros entes públicos e uma repartição mais justa dos rendimentos e da riqueza, tendo em conta os objectivos do desenvolvimento económico do País". Chamamos, portanto, à primeira frase a função do sistema fiscal dentro da organização económica do Estado.
Em segundo lugar, substituímos a expressão "repartição igualitária da riqueza e dos rendimentos" por "repartição mais justa dos rendimentos e da riqueza", expressão que se nos afigura mais adequada, mais realista e com maior conteúdo normativo. De facto, parece-nos que uma repartição igualitária releva da utopia, e aquilo que releva da utopia acaba por não ter eficácia jurídica.
Em terceiro lugar - e com isto respondo a uma observação do Sr. Deputado Almeida Santos, ainda na veste de presidente, que, ao anunciar a nossa proposta, dizia que nós eliminávamos a referência à lei -, mantemos na íntegra o princípio da legalidade em matéria fiscal: prevêmo-lo nos n.ºs 2 e 3, que mantemos inalterados ("os impostos são criados por lei [...]", etc.). Ao n.° 1 chamámos os objectivos do sistema fiscal. O que é que este sistema, como subsistema da organização económica do Estado, tem a prestar? O que é que a colectividade espera do subsistema que é o sistema fiscal? Tivemos em conta, na linha das propostas (de resto algumas são do PS) que vinham de trás, os objectivos da política agrícola, da política do comércio, da indústria, etc.. Também nós começámos por isso e fizemos decorrer daí algumas implicações que nos parecem adequadas. Repito: à palavra "igualitária" preferimos a expressão "mais justa", que nos parece ser mais realista e nessa medida ter maior eficácia jurídica, mantendo os n.ºs 2 e 3 do artigo 106.°
Ao contrário do que acontece nas outras propostas (uma vez que isto parece constituir uma nota que nos distingue dos demais projectos), não fazemos qualquer referência à velha e controversa questão da irretroactividade dos impostos. Trata-se de uma velha questão que se tem suscitado na nossa história jurídico-constitucional. Se a memória me não atraiçoa (estou a laborar anenas com base em dados de memória, foi a AD que na revisão de 1982 apresentou a proposta da irretroactividade dos impostos, proposta essa que não obteve vencimento, com a oposição, salvo erro, do PCP e do PS. Nesta vexata quaestio entendemos que, apesar de tudo, as coisas não estão tão clarificadas que nos levem a avançar já com a irretroactividade. Naturalmente que a irretroactividade da lei em geral é um princípio imanente ao sentido e ao conceito de toda a norma, que por via de regra tem implícita a ideia de um "doravante". E isto vale não apenas para as leis fiscais mas também para todas as outras, para todas as normas que procurem superar conflitos e regular comportamentos dentro de terminados parâmetros. Em princípio, só se podem regular comportamentos para o futuro. Apesar de tudo, consideramos hoje - pessoalmente sempre o entendi, tendo inclusivamente defendido tal posição na revisão constitucional de 1982 isoladamente no seio do próprio projecto da AD - que não temos ideias claras que nos permitam calcular todos os riscos da consagração da irretroactividade da lei fiscal. Entendemos que há uma diferença muito grande e de qualidade entre a lei fiscal e a lei penal, e não vemos que o princípio da irretroactividade, que constitui uma conquista em matéria de direito penal, deva para já ser estendido ao direito fiscal.
Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Vice-Presidente, Almeida Santos.
O Sr. Presidente (Almeida Santos): - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: A primeira das propostas apresentadas pelo Grupo Parlamentar do PCP para o artigo 106.°, relativo ao sistema fiscal, visa introduzir uma clarificação, de resto na sequência de debates e de reflexões que tiveram lugar em torno de impulsos para alteração da lei ordinária e cujo conteúdo, evolução e desfecho deve ser tido em atenção na discussão em curso neste momento.
Está fora de dúvida e não suscita particulares controvérsias que, neste momento, a reserva de lei da Assembleia da República no domínio fiscal, consignada
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na alínea a) no artigo 168.°, diz respeito a impostos e não a taxas. No entanto, sabemos também que, no nosso universo de figuras jurídicas, gozam de estatuto e de existência, com uma longa história atribulada e bastante confusa, outras figuras, designadamente várias realidades que se acobertam sob a designação de taxas e que nem sempre o são, certas contribuições especiais de diversos tipos, certos diferenciais de preços, designadamente aqueles que revertiam no passado para o Fundo de Abastecimento. Sucede que em relação a algumas dessas figuras, o próprio Tribunal Constitucional teve ocasião de considerar que a certas contribuições especiais se devia aplicar o regime constitucionalmente fixado para os impostos, incluindo portanto a reserva de lei parlamentar. Por outro lado, o Tribunal Constitucional veio a entender que certos diferenciais de preços que revertiam para o Fundo de Abastecimento não constituíam impostos, não lhes sendo, portanto, aplicáveis os regimes específicos dos impostos propriamente ditos. Neste sentido se pronunciaram os Acórdãos n.ºs 277/86 e 7/84, entre outros.
Ulteriormente, o Tribunal Constitucional veio pronunciar-se sobre uma outra questão, no Acórdão n.° 205/87, qual seja a de saber se só a Assembleia da República poderia modificar o regime legal de certos tributos. Que tributos eram esses? Na revisão da Lei de Enquadramento do Orçamento de Estado vigente pretendeu-se alargar a reserva da lei parlamentar a certas taxas, a certos diferenciais cobrados pelos serviços autónomos, pelos fundos autónomos, pela Segurança Social e pelos organismos de coordenação económica e institutos públicos, sem distinguir os tipos de diferenciais que eventualmente pudessem existir. Do percurso e das ilações que sobre esta matéria foram extraídas a nível jurisprudencial não caberia aqui dar conta extensamente. Em todo o caso, sabemos que o Tribunal Constitucional veio a entender que, face ao quadro constitucional vigente, era inconstitucional a norma constante das disposições conjugadas nos n.ºs 3 e 4 do artigo 19.° dessa tentativa de revisão da Lei de Enquadramento, na parte em que reservava à Assembleia da República a modificação de todo o regime legal de certos impostos e de outras receitas juridicamente equiparáveis, para além dos respectivos elementos essenciais enunciados no artigo 106.°, n.° 2, da Constituição, bem como na parte em que reservava à Assembleia da República a modificação do regime legal dessas taxas e de outras receitas juridicamente não equiparáveis aos impostos. Pesou nisto o facto de o Tribunal ter reflectido sobre os contornos da noção de taxa, de ter procurado apurar as diferenças entre as taxas propriamente ditas e os impostos, tendo considerado correcta a reflexão adquirida a nível da doutrina nos termos da qual o que basicamente distingue a taxa do imposto é a natureza bilateral da taxa, o seu carácter sinalagmático, uma vez que à prestação do particular corresponde aqui uma contraprestação directa e específica por parte do Estado. Isto é o que se lê a p. 2610 do Diário da República, 1.ª série, n.° 150, de 3 de Julho de 1987. O Tribunal veio a considerar substancialmente correcto o ponto de vista assinalado doutrinalmente, segundo o qual o montante da taxa pode não corresponder exactamente ao custo do bem ou serviço que constitui a contraprestação do Estado. Seguiu-se aqui a orientação do Prof. Dr. Teixeira Ribeiro, na parte em que v este tem vindo a sustentar que as taxas, quando de montante superior ao custo, não constituem impostos na parte excedente ao custo, visto manterem o seu carácter bilateral, dependendo esse montante da finalidade que o Estado deseje alcançar.
Evoco tudo isto, Sr. Presidente, Srs. Deputados, para sugerir que este é um bom momento para se clarificar os termos da competência da Assembleia da República nesta matéria. Que só a Assembleia da República seja competente para modificar o regime legal dos impostos, contribuições especiais e outros tributos cobrados por serviços autónomos ou por outras entidades públicas; que não seja da competência exclusiva da Assembleia da República o regime legal das taxas pagas pelos utilizadores directos, desde que o respectivo montante corresponda ao custo; que na outra parte em que não corresponde ao custo deva ponderar-se, exactamente, de quem é a competência - eis matéria que nos mereceria alguma atenção. A Constituição, em todo o caso, não deveria manter silêncio sobre esta matéria. A proposta que o PCP apresenta visa clarificar que essa reserva de lei deve aplicar-se também ao regime das taxas. Portanto, não se trata de definir mais do que o enquadramento das taxas, as essentialia desse quadro normativo. Não se trata de fazer uma repartição de competências em que o Governo fique esvaziado de poderes de definição. Trata-se apenas de estabelecer uma clarificação no sentido de eliminar dúvidas sobre a margem de competência da Assembleia quanto ao quadro das taxas e outras obrigações públicas de natureza patrimonial, que são, como sabe, uma floresta.
Quanto ao segundo aspecto, a retroactividade, tivemos a ocasião de encetar uma primeira reflexão sobre esta matéria, na altura em que debatemos a proposta de aditamento do PS de um novo artigo (o artigo 62.°-A, ao que creio) sobre os direitos dos consumidores. Nessa altura foi alvitrado que talvez fizesse sentido incluir nos direitos, liberdades e garantias - sede provavelmente mais adequada e mais exacta - uma norma que não só inequivocamente consagrasse os direitos dos consumidores como também alguns dos direitos essenciais dos contribuintes. Este aspecto pode ser equacionado nos termos em que o PCP o faz aqui, nesta sede, estabelecendo um princípio. Pode ser equacionado, também, no ângulo subjectivo dos direitos dos contribuintes.
Independentemente de se optar por um caminho ou por outro, por uma fórmula ou por outra, parece relevante - mas aí trata-se de uma grande opção de sistema fiscal - que se rompa caminho em relação à consagração da irretroactividade. A retroactividade é uma brutalidade e retroactividade é uma desnecessária violência. Todo o debate que aqui fizemos quando o governo do bloco central, num mês de Setembro, trouxe à Assembleia da República um pacote fiscal extraordinário e retroactivo foi elucidativo das dificuldades e das implicações de opções extremas deste tipo. É difícil configurar uma situação em que ao poder político seja vedado encontrar outros caminhos para a obtenção de receitas que não o lançamento de impostos - verdadeiros e próprios impostos - com cunho retroactivo. Muitas outras soluções são possíveis, muitos outros recursos são imagináveis. O facto de não estar assegurado que os aumentos dos impostos, ou a criação de impostos ex novo, tenham de ter lugar apenas para o futuro, a possibilidade de tributar factos
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ocorridos antes das leis, na mim de obtenção de receitas, introduz um elemento de instabilidade que viola irrazoavelmente garantias basilares de confiança, de estabilidade e segurança dos contribuintes e dos cidadãos.
É óbvio que esta matéria foi também apreciada pelo Tribunal Constitucional, precisamente em torno da problemática do pacote fiscal que citei. Esse aresto é um daqueles em cuja elaboração provavelmente mais pesaram razões de Estado, ou assim invocadas, e climas de emergência adrede gerados por órgãos de poder político. O acórdão em referência revela, precisamente, as dificuldades de sustentar, face ao próprio quadro constitucional (tal qual está gizado) e aos seus princípios (tal qual fluem em diversas partes da Constituição), a legitimidade e justiça da tributação retroactiva. Em todo o caso, aconteceu que essa espécie tributária não foi declarada inconstitucional. Aconteceu também que há outros exemplos de tributação retroactiva. Seria uma opção grande e positiva eliminar-se essa possibilidade. Quanto à fórmula técnica, parece-nos questão secundária.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.
O Sr. Raul Castro (ID): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: A proposta apresentada pela ID - e aqui no texto trocada, visto que é a última - é também uma proposta de alteração do n.° 3, no sentido idêntico às que apresentam o PCP e PS.
Gostaria de dizer algo mais em relação ao problema da irretroactividade ou da não retroactividade dos impostos e desejaria acrescentar que ao fazer esta proposta se tem em vista por parte da ID, sendo Portugal um Estado de direito democrático, como tal considerado no artigo 2.° da Constituição, salvaguardar um dos princípios decorrentes do Estado de direito democrático, e que é o princípio da segurança e da confiança dos cidadãos. Esta confiança e segurança dos cidadãos é rudemente abalada pela possibilidade de aplicação retroactiva das leis fiscais. Foi, portanto, tendo em conta as características do próprio Estado de direito democrático que apresentámos esta proposta. Naturalmente que ela em termos genéricos é coincidente com as duas outras aqui apresentadas. A questão será conciliar nesse aspecto redacções. Parece-nos aí que há duas notas a frisar. Primeira nota: parece-nos preferível a dizer que a lei fiscal não tem efeitos retroactivos especificar em que é que isso consiste. Portanto, trata-se de substituir à expressão "não retroactividade" a definição concreta. Para lá dessa definição concreta também nos parece que teria utilidade a segunda parte da proposta do PS, para que dúvidas não fiquem que não se pretenda com isto pôr em causa os impostos directos, que, como é sabido, incidem sobre os rendimentos do ano anterior. Portanto, da combinação desses dois aspectos, isto é, de uma definição em concreto da não retroactividade e da ressalva que constam da última parte da proposta do PS, parece-nos que poderia resultar uma tradução satisfatória para as três propostas de forma a não restarem dúvidas do que é que se pretende atingir. E, como comecei por dizer, o que se visa aqui é assegurar, para lá daquilo que já foi dito, este aspecto, que decorre da aplicação do artigo 2.° da Constituição, do Estado de direito democrático, e do qual um dos princípios que fluem é o da confiança dos cidadãos.
O Sr. Presidente: - Terminadas as apresentações, tem agora a palavra o Sr. Deputado Octávio Teixeira.
O Sr. Octávio Teixeira (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Salvo melhor opinião - e admito que esteja a ver mal, e por isso vou pôr a questão em termos interrogativos -, a proposta do PS pode indiciar uma contradição. Neste sentido, parece que os impostos directos podem incidir sobre os rendimentos do ano anterior ao da entrada em vigor da respectiva lei, se bem entendi a explicação que foi dada pelo Sr. Deputado Almeida Santos. Da nossa parte, nada temos a opor que o imposto directo possa incidir sobre rendimentos do ano anterior; só que na altura em que os rendimentos são gerados deve haver já a perspectiva do imposto, porque, se não houver uma perspectiva, a ideia que tenho é que o imposto que posteriormente venha a ser criado vem a ter efeitos retroactivos. De facto, o rendimento foi gerado antes, sem haver a perspectiva do imposto, e tenho dúvidas que esta redacção "anterior ao da entrada em vigor da respectiva lei" não venha, precisamente, permitir a retroactividade que se quer eliminar. De qualquer modo, como disse inicialmente, colocaria isto em termos interrogativos.
Em relação à proposta do PSD, gostaria de pôr uma questão ao Sr. Deputado Costa Andrade. Quando se coloca que "o sistema fiscal visará as necessidades financeiras do Estado e uma repartição mais justa dos rendimentos e da riqueza", e depois "tendo em conta os objectivos de desenvolvimento económico do País", fico com a ideia de que isto pode indiciar que os tais interesses do desenvolvimento económico podem coarctar, limitar ou eliminar o objectivo da repartição mais justa do rendimento e da riqueza. Coloco também isto em termos interrogativos porque julgo que valeria a pena ponderar qual é a ideia: se poderá haver aqui ou não uma "traição" do próprio pensamento?
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - A nossa ideia, como disse, foi inovar em relação ao n.° 1 do artigo 106.°, dizendo quais são os objectivos do sistema fiscal, sendo certo que no respeitante ao princípio da legalidade preservamos os actuais n.ºs 2 e 3, até porque deixamos inalterado o artigo 168.°, n.° 1, alínea i), há pouco recordado, no qual se diz que é da competência da Assembleia da República a criação de impostos e sistema fiscal.
Quanto a este preceito, a nossa ideia foi definir os objectivos ou as funções do sistema fiscal, que definimos, sem qualquer ideia de hierarquia, como "a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outros entes públicos e uma repartição mais justa dos rendimentos e da riqueza, tendo em conta os objectivos do desenvolvimento económico do País", sendo certo que a expressão "tendo em conta", independentemente da sua força normativa, vale tanto para o fim "repartição mais justa dos rendimentos e da riqueza" como para o fim "satisfação das necessidades financeiras do
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Estado e outros entes públicos". Isto é: há que tem em conta os objectivos do desenvolvimento económico do País na tarefa do lançamento e recolha dos impostos, que têm como fim tanto a satisfação das necessidades financeiras do Estado como uma repartição mais justa dos rendimentos e da riqueza. Isto constitui também uma condicionante dos demais objectivos, sendo certo que ele próprio também tem a dignidade de um objectivo, pois o sistema fiscal visa o desenvolvimento económico do País. Não é nossa intenção pôr esta cláusula e cercear a ideia de repartição mais justa dos rendimentos e da riqueza, mas sim como uma condicionante geral ou uma referência do sistema fiscal. Este deve ter como referência a política de desenvolvimento económico do País, política esta que, naturalmente, será entendida em termos desiguais, diferenciados, por partidos de diferentes ideologias. Haverá partidos que naturalmente dirão que o melhor desenvolvimento económico do País é mais dinheiro no bolso dos consumidores, dos cidadãos, e que quanto mais dinheiro estiver nesses bolsos mais o País se desenvolverá economicamente. Outros partidos poderão dizer que o melhor é o mínimo dinheiro possível nos bolsos dos cidadãos. Nós, PSD, entendemos que o sistema fiscal deve constituir um importante instrumento de correcção das desigualdades e, portanto, contribuir decisivamente para a repartição mais justa dos rendimentos e da riqueza. Mas, naturalmente, os objectivos do desenvolvimento económico do País terão de ser uma condicionante do sistema fiscal e também uma variável da política de lançamento de impostos.
Quanto ao facto de não valer a pena esperar repartição mais justa, diria que vale para todos os fins com carácter genérico, pois trata-se de uma cláusula genérica que nós colocamos em relação a todos os objectivos do sistema fiscal.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, coloco-lhe apenas uma pergunta: é possível que o "mais justo" seja ainda injusto em relação ao texto actual, podendo ser um diferencial tão pequenino que seja quase tão injusto. Eu pergunto: por que não apenas "justo", sem por agora dizer se concordo com a substituição? Por que não "justo"? Porque o "mais justo" em relação ao injusto pode ainda ser injusto. Então por que não "a justa repartição da riqueza", em vez da repartição "igualitária" ou da "mais justa repartição"?
O Sr. Costa Andrade (PSD): - É uma questão a reflectir.
O Sr. Presidente: - O mais justo em relação ao imposto não é nada.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - O mais justo, Sr. Presidente, dá-nos uma ideia de progressividade, de se estar no camino de...
O Sr. Presidente: - Se fosse "progressivamente mais justo" já estávamos mais de acordo. Agora se quiser pôr "justo"...
O Sr. Costa Andrade (PSD): - É que "justo"...
O Sr. Presidente: - A justiça tem ínsita uma ideia de igualdade na base.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Tem, mas uma justiça absoluta no sentido de tendencialmente igualitária.
Mas nós iremos reflectir sobre a possibilidade de retirarmos o "mais".
O Sr. Presidente: - Aí podíamos de algum modo aproximar-mo-nos. Agora só "mais justo" é que não!
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Como é uma proposta inovatória só agora apresentada não estou em condições de adiantar mais nada.
O Sr. Octávio Teixeira (PCP): - Só uma achega a esta questão que foi agora colocada pelo Sr. Deputado Almeida Santos. É que do meu ponto de vista - e por isso levantei aquela questão inicial -, dada a referência ao desenvolvimento económico, que vem à frente, o resultado interpretativo até pode ser um pouco ainda pior do que aquele que o Sr. Deputado Almeida Santos referiu. Este "mais justo" pode ser mais injusto que o actual. Tal como o Sr. Deputado Costa Andrade referiu, há pouco, quando disse que isto tem de estar enquadrado com a perspectiva do desenvolvimento económico-social, e que cada governo pode ter uma diferente. Se um determinado governo, utilizando o seu exemplo, disser que do seu ponto de vista o desenvolvimento económico-social implica suprimir - em termos de restringir - o consumo, e como as camadas que mais propensão têm para o consumo são as camadas de menores rendimentos, então pode, nos termos desta norma, agravar a injustiça fiscal para evitar o consumo, o que seria hoje inconstitucional. A norma pode conduzir a situação deste género?
O Sr. Costa Andadre (PSD): - Sr. Deputado, em termos constitucionais* - que não em termos de política, porque aí cada um já tem a sua - temos de admitir que haja forças políticas que queiram inclusivamente reduzir ao máximo as obrigações fiscais, embora condicionadas por uma política de prestações sociais mínimas. Pode haver quem entenda isso. Não creio que o Sr. Deputado acredite em que, no plano político prático, quem fosse por esse caminho tivesse a possibilidade de exercer o poder político em Portugal. Tenho de admitir a legitimidade de alguém que me diga: "Eu não quero impostos! Eu só quero os impostos necessários à máquina de guerra e à máquina da Administração Pública e não tenho que custear saúde e educação, etc.!" Admito que alguém diga isto. Tenho de admitir, como legislador constituinte, que essa é uma opção encarável, mas não acredito que ela obtenha sucesso. Não creio que por essa via alguém possa exercer o poder político em Portugal. Mas isso é deixado ao livre jogo democrático. Em termos de direito constitucional, temos de abrir o leque de possibilidades práticas de modo que qualquer força política, qualquer que seja a sua política económica, possa governar. De resto, como socias-democratas e como força política que sempre pôs a tónica na ideia de que os impostos são o grande instrumento de organização da justiça social, sempre foi essa a nossa lógica. Mas pode haver um partido que preconize a absoluta "mão invisível" ou um partido que entenda o Estado apenas como guarda-nocturno. Como legisladores constituintes, temos de admitir a legitimidade de tais atitudes. Duvido, no
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no entanto, de que se algum dia um partido desses ganhasse as eleições, as voltasse a ganhar; se, uma vez no governo, tal partido acabasse com o sistema de prestações, ou seja, por reduzir de tal maneira os impostos que tivesse de acabar com as prestações (pois não sei onde iria buscar dinheiro que não fosse aos impostos), não vejo como é que sobreviveria politicamente. Mas, repito, tenho de admitir a possibilidade de haver um governo desse tipo.
Não estamos aqui a fazer uma política fiscal, mas a traçar os parâmetros constitucionais de várias políticas fiscais. Trata-se, no fundo, de fixar os parâmetros e limitações que a Constituição impõe ao legislador ordinário, e as demarcações que lhe fazemos são demarcações de legalidade: são o princípio da legalidade e também alguns dos objectivos que propomos.
Entendemos que não são legítimos os impostos que não visem a. satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outros entes públicos e que não sejam pré-ordenados à "justa", ou à "mais justa", "repartição dos rendimentos e da riqueza".
O Sr. Presidente: - Tem a paiavra o Sr. Deputado Raul Castro.
O Sr. Raul Castro (ID): - Em relação à proposta do PSD, eu desejaria colocar algumas questões. A primeira questão a colocar é a seguinte: a "repartição igualitária da riqueza e do rendimento", que na fórmula do PSD é eliminada, não pode deixar de ser entendida de harmonia com o texto do artigo seguinte, que é o artigo 107.°, em especial os n.ºs 1, 2 e 3. Quer dizer, esta fórmula que está aqui no artigo 106.°, n.° 1, da repartição igualitária da riqueza, combinada com os n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 107.°, significa que a Constituição estabelece a progressividade do sistema fiscal. Ora, retirar daqui esta expressão, como faz o PSD, e não propor alterações ao artigo 107.° parece ser algo de incompreensível porque só no projecto do CDS é que o artigo 107.°...
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Peço-lhe desculpa, Sr. Deputado Raul Castro, mas por distracção não entendi bem a objecção de V. Exa. Não se importa de repetir?
O Sr. Raul Castro (ID): - Dizia eu que é difícil entender que o PSD defenda a eliminação da expressão "a repartição igualitária da riqueza e dos rendimentos" que está no texto do artigo 106.° porque esta expressão que aparece também referida no artigo 107.°, n.ºs 1, 2 e 3, significa a progressividade do sistema fiscal. Julgo que isto não é nenhuma descoberta minha.
Esta expressão também se liga com as incumbências prioritárias do Estado do artigo 81.° Sucede que não me parece que haja lógica interna na eliminação da expressão por parte do PSD no artigo 106.° mantendo incólume o artigo 107.°
O Sr. Costa Andrade (PSD): - O meu colega Carlos Encarnação também irá dar o seu contributo nesta matéria, mas, independentemente disso, penso que, antes pelo contrário, há toda a lógica. O artigo 107.° diz que "o imposto sobre o rendimento pessoal visará a diminuição das desigualdades".
Temos, pois, uma ideia de diminuição, uma ideia de progressividade; temos de contribuir para diminuir, mas isso não significa eliminação de um momento para o outro. A ideia é de progressividade.
O Sr. Raul Castro (ID): - Sr. Deputado, não se trata disso. Não há nada mais próximo de repartição igualitária do que a expressão "desigualdade" que o Sr. Deputado acaba de referir. Ela não pode ser substituída por uma expressão mais justa porque é diferente. A expressão "repartição igualitária" aparece também reportada, como aliás o Sr. Deputado acaba de referir, no artigo 107.°
O Sr. Costa Andrade (PSD): - O que acontece é que há uma dissonância na própria Constituição. A Constituição actual é que é incongruente. Nós aceitaríamos perfeitamente que se levasse a fórmula do artigo 107.° - a fórmula "diminuição das desigualdades" - ao artigo 106.° Se já a aceitámos para o artigo 107.°, aceitamo-la também para o 106.° Isto é coerente. Coerência significa usar as mesmas fórmulas, por isso nós usamo-las e estamos dispostos a usar a fórmula do artigo 107.° no 106.° O que fizemos no artigo 106.° foi aproximá-lo do 107.° Uma coisa é a actuação do Estado que contribua para a diminuição das desigualdades, que é uma acção que se prolonga no tempo, que não se faz de supetão; outra coisa, completamente diferente, é dizer que o sistema fiscal visa a repartição igualitária da riqueza e dos rendimentos. Se ao Sr. Deputado e demais forças políticas serve a fórmula do artigo 107.°, nós aceitamo-la no artigo 106.°
O Sr. Raul Castro (ID): - É que a fórmula do artigo 107.° deve ser combinada com a do artigo 106.° e com a alínea b) do artigo 81.°, que por acaso o PSD elimina e que é a fórmula "operar as necessárias correcções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento". Parece que isto já começa a ser um pouco contraditório com a aceitação do artigo 107.°
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Deputado, se V. Exa. entende que a fórmula do artigo 107.° o satisfaz - e a nós também, até porque não a alterámos - e se entende que é imperativa a congruência inclusivamente ao nível da expressão literal, não nos opomos a que a fórmula do artigo 107.° venha para o artigo 106.° Mas parece-nos utópica - temos o direito de pensar isso - a ideia de repartição igualitária e que de um jacto se concretize tal ideia.
O Sr. Raul Castro (ID): - A lei não diz que de um jacto se faz a repartição igualitária, diz "com vista à repartição igualitária". É muito diferente, e por isso respondo à questão que me coloca, aceito a do artigo 107.° e do 106.°, a do 81.°, alínea b), porque todas combinadas conduzem à progressividade do sistema fiscal, e é isso que está em causa.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Deputado, V. Exa. aceita tudo, até a utopia, e esse é o problema. Nós em relação ao artigo 81.°...
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O Sr. Raul Castro (ID): - Está a chamar utopia ao actual texto da Constituição?
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Certamente que estou, e qual é o problema? Estou a chamar utopia ao artigo 106.°, n.° 1, e a chamar realidade à alínea c) que propomos para o artigo 81.° da Constituição.
O Sr. Raul Castro (ID): - E ao artigo 107.° o que é que chama?
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Realidade, Sr. Deputado. Esse é que é o nosso grande problema. O Sr. Deputado diz que eliminamos a alínea b) do artigo 81.°, mas acrescentamos ao artigo 81.° uma alínea c), do seguinte teor:
Assegurar a justiça social, incrementar a igualdade de oportunidades e corrigir as desigualdades de rendimento.
Nós dizemos que o artigo 106.°, tal como está o n.° 1, é utópico, não é, como é evidente, um projecto de sociedade realizável. Todavia, o nosso bom-senso vai no sentido de não alterar o artigo 107.°, alterando apenas o artigo 106.°, já que aquele é para nós fundamental e, sendo fundamental, conjugado com todos estes dois preceitos e mesmo a nossa formulação para o artigo 106.°, que o Sr. Deputado Costa Andrade admite ser alterada para uma redacção idêntica à do artigo 107.°, salvaguarda perfeitamente a coerência do conjunto das nossas proposições.
O Sr. Raul Castro (ID): - Só foi pena não terem apresentado a proposta inicialmente porque assim se evitaria a discussão.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Deputado, para alguma coisa servirão os trabalhos desta Comissão.
O Sr. Raul Castro (ID): - Sr. Deputado Carlos Encarnação, só queria fazer-lhe uma pergunta. Concorda com a progressividade do sistema fiscal?
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Certamente, Sr. Deputado, isso é uma questão fundamental para nós.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, creio que este debate tem sido extremamente útil para medir a indesejabilidade da proposta do PSD. O PSD proclama aqui que a Constituição é utopia e ri-se dizendo que não foi realizada e que proclama algo irrealizável...
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Deputado, basta olhar para V. Exa. para ver a diferença abissal que existe a nível de riqueza e rendimentos. Estamos em utopia...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, essa é uma afirmação misteriosíssima e é certamente uma forma um bocado esdrúxula de debater esta questão. VV. Exas. simultaneamente desvalorizam e valorizam extraordinariamente a norma que querem desmantelar. Se alguma coisa fosse precisa para alertar para a valia da norma era precisamente o conjunto de observações que os Srs. Deputados fizeram, acrescido dos sorrisos com que acompanharam a questão e a tentativa de transformar em "utópica" a Constituição neste ponto. Na vossa óptica, trata-se de desviçá-la, trata-se de roubar-lhe corpo normativo e impacte.
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Deputado, peço-lhe desculpa, mas tenho de fazer uma correcção, e fazê-la para a acta, dizendo que não me estava a rir quando estava a debater a questão consigo e a expressar a minha opinião. Não me estava a rir porque isto é um assunto muito sério, e estava a tratá-lo com toda a seriedade.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Carlos Encarnação, dito para a acta que V. Exa. estava com um ar lúgubre a discutir matéria fiscal.
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Não estava com ar lúgubre, estava com ar sério. A questão é diferente, nós estamos a discutir com seriedade. Peço desculpa.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, a seriedade não está em causa. Quando referia o riso queria significar uma manifestação de júbilo político.
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Isso é outra coisa.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Como é óbvio, para bom entendedor...
O vosso júbilo político é compreensível porque tentam transformar a Constituição naquilo que não é, para a seguir demolirem aquilo que dizem que não é (mas é). A Constituição em nenhum sítio propõe a igualdade "de jacto", como dizia o Sr. Deputado Costa Andrade num arroubo jactante. No objectivo de repartição igualitária de riqueza existe progressividade e essa inerente sobrecarga de altos rendimentos, a tributação de grandes fortunas, há-de fazer-se, de acordo com aquilo que a Constituição proclama quanto às incumbências prioritárias do Estado, de forma adequada. O sistema globalmente há-de ter esse objectivo, isso há-de reflectir-se nas diversas espécies tributárias, de determinadas maneiras, os comentaristas normalmente não notam que cada uma das partes tenha de ser da mesma exacta medida progressiva, que essa igualdade deva ser atingida no momento x e já. Este "jasismo" não existe na Constituição e portanto VV. Exas. estão a criticar o que não há para atingirem o que há.
O Sr. Presidente: - Qual é o prazo que me dá, que é para saber se vale a pena morrer mais tarde? Qual é o prazo que me dá para o imposto não nivelar a diferença entre o que tenho a mais e os que têm a menos?
O Sr. José Magalhães (PCP): - A Constituição neste ponto foi extremamente prudente e designadamente estabeleceu que toda esta matéria deveria ser objecto de regulamentação legal, isto é, as questões do modo, da forma e da arquitectura ficaram em larga medida cometidas ao legislador ordinário que tem uma larguíssima margem de actuação, e a nossa experiên-
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da prática destes anos é talvez a maior e a mais brutal demonstração da largueza dessa margem de manobra. Isto está provadíssimo e qualquer tentativa de transformar esta norma numa corneta de alarme dos ricos e no serviço de urgência fiscal é impossível. Será uma démarche de fogo-de-artíficio, mas não tem a mínima viabilidade face a qualquer exame objectivo da nossa realidade.' Portanto, o PSD tem grande dificuldade...
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Olhe que não!
O Sr. José Magalhães (PCP): - ... em fazer a demonstração da inocuidade da alteração que propõe. Não querendo a Constituição dizer aquilo que o PSD diz que ela quer dizer, quer, no entanto, dizer alguma coisa de relevante em relação à noção de igualdade, designadamente de igualdade material. E é esta igualdade que, ao que parece, repugna ao PSD. Nesse caso, assumam abertamente a tal ventania neoliberal! Assumam abertamente que aquilo que pretendem é uma mitigação do conteúdo constitucional que permita aplicações de algumas ideias fiscais que por aí circulam: a ideia de que não se deve tributar os altos rendimentos, a ideia de que o sistema não deve ser progressivo ou deve ter uma progressividade mitigada, não deve tender à igualdade (pois isso seria um "horror", já que "deve haver desigualdade"). Há na vossa família política quem assuma isso abertamente e queira transpor para a nossa realidade concepções do tipo "reaganiano" e similares. Tentar, porém, atacar a Constituição nesta matéria procurando treslê-la para depois inocuizar a alteração que é apresentada é uma démarche que não pode passar sem reparo.
Quanto ao que seja "uma repartição mais justa dos rendimentos" ou "uma repartição cada vez mais justa dos rendimentos" ou "uma repartição progressivamente mais justa dos rendimentos", caso estivéssemos em processo constituinte, a redacção poderia não despertar nenhum reparo porque é evidente que a aspiração a uma justiça fiscal é subscritível, largamente partilhável. Longe de nós recusá-la, queremos abraçá-la. Porém, a questão é que, inscrevendo-se o valor igualdade como uma das finalidades basilares e elemento reitor do sistema, e sendo uma das duas finalidades desta norma e do próprio sistema fiscal, a substituição do valor igualdade pelo valor justiça ou justeza não nos parece ser feita sem perda de conteúdo. Parece-nos até que essa perda leva água no bico. Importaria esclarecer melhor esse ponto.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sousa Lara.
O Sr. Sousa Lara (PSD): - A minha intervenção tem dois pontos e o primeiro é a apreciação do actual texto do n.° 1 do artigo 106.° e o outro refere-se à proposta que o PSD apresenta.
Aproveitaria para colocar uma pergunta sincera, pedindo uma resposta também sincera, ao Sr. Deputado José Magalhães. Pensa V. Exa., verdadeiramente, que através do regime político e económico estatuído pela Constituição é alguma vez possível atingir o objectivo constitucional expresso no actual n.° 1, designadamente com vista à repartição igualitária da riqueza? Esta é uma primeira questão, porque, se verificarmos que de facto isto constitui uma utopia, como nós entendemos que assim é, parte-se para um segundo momento, que é a apreciação da eventual substituição deste preceito constitucional por outro, e então a proposta do PSD até pode ser discutível, adaptada.
A meu ver, o nosso primeiro finca-pé é o de considerar, e não vejo razão para fugirmos disso, que é perfeitamente utópica a expressão actual da Constituição para as metas propostas alcançar através do regime político e económico por ela consagrado.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Srs. Deputados, este debate teve um resultado, e aliás um resultado não susceptível de inversão, já que se clarificou, ao contrário do que o PSD começou a sustentar inicialmente, que não é uma tabela de equivalências que se quer estabelecer, é a "correcção" de uma "utopia", em boa verdade uma inversão de conteúdo, pelo menos uma desnaturação de conteúdo. O PSD, ao fim de algumas operações de fórceps, acabou por reconhecer que é dessa redução que se trata e não de uma equivalência.
A questão que agora coloca é mais importante ainda, já que todos nós sabemos que este artigo, no seu n.° 1, não esgota todas as possíveis finalidades dos impostos. O sistema pode ter outras finalidades, designadamente de carácter extrafiscal...
O Sr. Sousa Lara (PSD): - Tem!
O Sr. José Magalhães (PCP): - ... correcta e constitucionalmente. Mas mais do que isso ainda. Há uma articulação entre isto, entre a política e o sistema fiscais e a política económica, tal como há uma articulação entre o Orçamento e o Plano. Os senhores deputados do PSD querem, por um lado, alterar radicalmente o enquadramento constitucional da política económica, em todos os aspectos...
O Sr. Costa Andrade (PSD): - É verdade que queremos!
O Sr. José Magalhães (PCP): - ... querem, por outro lado, alterar a própria noção de planeamento, eliminar o Plano anual, instituir miniplanos com os prazos e natureza mais diversos (curiosissimamente passando todos ao lado da Assembleia da República). E a somar a isto tudo querem o que querem em relação ao sistema fiscal!
Dir-me-á o Sr. Deputado Sousa Lara: "Mas, neste ponto, trata-se só de eliminar uma utopia." Curiosamente, atrás já tinham dito o mesmo. Portanto, tal como parece que há "caça-fantasmas", há na vossa bancada caça-utopias (e o PSD é o maior caçador de utopias que por aí anda!). Só que isso não se chama caçar utopias, chama-se agarrar na Constituição económica e inverter-lhe o sinal e já agora agarrar no sistema fiscal e alterar-lhe as componentes que nele mais reflectem algumas das ideias da organização económica tal qual ela é, designadamente o impulso para a igualdade, a transformação social, a correcção de desigualdades, a correcção de assimetrias na riqueza.
Por que é que os senhores substituem no artigo 81.° aquilo que substituem? Precisamente pela mesma lógica. É a caça à utopia? Não, é a instauração de elementos de injustiça social e injustiça social galopante. Isso não pode ser escamoteado!
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O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Não gosto de interrompê-lo, Sr. Deputado, porque V. Exa. fala tão bem, com tanta facilidade e com tanta eloquência que é um prazer ouvi-lo, mas de qualquer das formas apenas introduziria uma questão muito simples.
No artigo 107.° a nossa posição é uma, é de manutenção do artigo 107.° da Constituição. Por exemplo, a posição do CDS é de eliminação do artigo 107.° V. Exa. porventura quereria referir-se,- em relação a tudo aquilo que disse, às posições do CDS, não quereria referir-se, em tudo aquilo quanto disse, às posições do PSD; estas são posições do equilíbrio, há outras que não o são tanto. E só isto que eu queria referir.
O Sr. José Magalhães (PCP): - O Sr. Deputado Carlos Encarnação acaba de abordar o enigma de que nos ocuparemos a seguir. É realmente enigmática a posição do PSD em relação ao triângulo constituído pelos artigos 106.° e 107.° e a Lei de Bases da Reforma Fiscal. É o verdadeiro triângulo das Bermudas, em matéria de definição!
Sr. Presidente, acabei a resposta porque entendo que a única coisa que queria significar é que na vossa "caça à utopia" está escondida uma coisa muito concreta e bastante pouco utópica, que se chama injustiça.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Algumas notas em relação à intervenção do Sr. Deputado José Magalhães.
Disse o Sr. Deputado que nós tentámos fazer passar a nossa proposta por inócua, mas ninguém tentou aqui fazer passar gato por lebre. Nós dissemos com toda a clareza no início o que estamos a dizer agora: que, do nosso ponto de vista, a ideia, o horizonte do igualitarismo é utópico, e utópico é lugar que não existe, tanto por via etimológica como por qualquer outra. É lugar que não existe e, se não existe, não existe sequer como referência para com alguma eficácia planificar uma política fiscal que permita a diminuição das desigualdades, porque esse é o objectivo verdadeiramente realista. É possível diminuir desigualdades, não é possível apontar para uma repartição igualitária da riqueza e dos rendimentos. De resto, todas as construções sociais que se fizeram em nome desta ideia multiplicaram exponencialmente as desigualdades; todos sabem que os sistemas políticos e sociais construídos em nome da igualdade as amplificaram.
O Sr. José Magalhães (PCP): - "Abaixo a igualdade, viva a desigualdade!"
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Toda a gente sabe que a pirâmide das desigualdades é manifestamente maior nos sistemas que se fizeram em nome da igualdade. Os sistemas onde algumas desigualdades foram atenuadas foram exactamente aqueles em que se acreditou em objectivos realistas de diminuição das desigualdades e não aqueles que apontaram para a igualdade. De resto, o PCP normalmente associa alterações a textos constitucionais com projecções imediatas na realidade, isto é, diz que a alteração do texto constitucional no sentido em que nós a fazemos significa imediatamente amplificar, logo é uma fonte amplificadora das desigualdades, como se fosse verdade que esta nossa Constituição, a mais igualitária, a mais progressista do continente europeu, nos tivesse aproximado em termos de igualdade de outros sistemas políticos e sociais. Não pretendemos, pois, que a nossa proposta fosse inócua: tinha um conteúdo, que mantemos e defendemos.
Também não posso deixar de estranhar uma certa ambiguidade do Sr. Deputado quanto à relação entre a Constituição e a lei. V. Exa. acaba por dizer: "Cos diabos, não se trata de um jacto, isto pode ser feito de muitas maneiras e, no fundo, está aí a lei, que fará as coisas!" E a igualdade para que o Sr. Deputado aponta tanto pode ser feita a passo de caracol como ser remetida para os fins dos tempos ou ser feita já amanhã, pois quem manda é a lei e é esta que nos diz como é que isto vai ser feito. É precisamente atendendo a esse facto que nós pensamos que deveremos ser mais realistas. Assim, no espaço e no horizonte que temos aí - de quatro anos, por hipótese -, se contribuirmos para uma repartição mais justa dos rendimentos e da riqueza, talvez façamos algo mais útil para o País do que se nos continuarmos a sacrificar ao altar de uma repartição igualitária que ninguém sabe o que é e em que ninguém acredita.
O Sr. José Magalhães (PCP): - O "ninguém" está a mais, como é óbvio.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Deputado, permito-me fazer esta profissão de fé: não acredito que ninguém acredite na igualdade.
O Sr. José Magalhães (PCP): - É um agnóstico.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Não acredito! A menos que seja a fórmula de Orwel, "Todos somos iguais: mas uns são mais iguais do que outros." Trabalhamos com o conceito de igualdade mas com descontinuidades brutais dentro do mesmo conceito de igualdade. Se querem esta igualdade (chamemos-lhe assim), então está bem. A outra igualdade, não creio que alguém acredite nela.
O Sr. Deputado diz que o PSD está aqui a fazer soprar os ventos e está a aderir à ventania neoliberal. Ninguém está aqui a soprar os foles à ventania neoliberal. Estamos aqui a fazer uma Constituição que permita que os ventos neoliberais, os ventos socializantes, os ventos de norte e de leste soprem em Portugal com toda a liberdade. Se soprarem e o povo aderir a eles, que enfune as velas nos ventos de leste ou nos ventos neoliberais. Mas não é disso que se trata porque, se fosse isso, nós diríamos que não içamos as nossas velas aos ventos neoliberais.
O Sr. Presidente: - Vou emitir a minha opinião e acho que não vale a pena perdermo-nos em especulações filosóficas deste género. Claro que as palavras nem sempre têm na lei, sobretudo nas constituições, o peso que lhes corresponde pela gramática. Igualitário, gramaticalmente falando, é aquilo que torna igual. Quando nas declarações de direitos se fala na igualdade dos homens, na Uberdade, quanta relatividade!... Quando se fala na fraternidade, quanto egoísmo! São metas, objectivos, apontam para...
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Não é que me impressione muito que esteja cá a repartição igualitária. Devo dizer que nunca simpatizei com esta fórmula; não é por nada, é também pela gramática. Porque, com vista à repartição igualitária, o que isto é é uma repartição igualitarizante, como bem a interpretou o Sr. Deputado José Magalhães. Não é para já, é para o tempo, vai igualitarizando. Mas que é que chama igualitário? Repartir agora por forma igual ou repartir por forma que torne igual, o que é diferente? Esta expressão nunca foi clara. Mas se o que a Constituição quer é que os Portugueses sejam cada vez mais iguais, é ideia que está ligada à democracia económica e social. Devo dizer que no artigo 9.° figura entre as tarefas fundamentais do Estado promover a igualdade real entre os Portugueses. E o que fizeram os partidos? Diz o PSD promover a real igualdade de oportunidades para todos os portugueses. Aqui é que está a nossa diferença de filosofia.
Estamos aqui em três graus. O PSD diz assim: as diferenças que existem estão bem, é preciso a partir de agora dar oportunidades reais a todos, e cada um que se desunhe. Esta é uma tese.
Outra é a do PCP, que diz: nós não queremos igualdade de oportunidades, queremos igualdade efectiva entre os Portugueses, portanto o imposto e o Estado têm de trabalhar para que sejamos iguais.
A posição do PS é mais ou menos um meio termo. Queremos igualdade de oportunidades para todos os portugueses, mas queremos também a correcção das desigualdades que consideramos injustas. Se o imposto puder contribuir para isso, por que não? O artigo 107.° fala em sistema fiscal, o que é vago! Impostos eu sei concretamente o que são. E o que diz o artigo 107.°? Visará a "diminuição das desigualdades", é a mesma ideia expressa de outra forma. O imposto sobre as sucessões e doações tem este papel correctivo das desigualdades: uma fatia da herança pertence aos oito milhões de Portugueses e só a outra vai para os herdeiros. Outra forma de correcção de desigualdades: "quem consome mais, ou quem consome artigos de luxo, tem de pagar mais"; "quem consome artigos de primeira necessidade paga menos".
Valerá a pena estarmos aqui a engalfinharmo-nos por causa de uma expressão? A mim tanto me faz repartição igualitária como igualitarizante, como outra do género. Mas não vale a pena pensarmos em que, se cá ficar "com vista à repartição igualitária", temos de ser todos iguais daqui a quinze dias! De qualquer modo, ver-se-á depois se deve ficar repartição "igualitária", ou "igualitarizante", ou apenas "justa".
Tem a palavra o Sr. Deputado Octávio Teixeira.
O Sr. Octávio Teixeira (PCP): - Voltaria à proposta do PSD e em relação à questão do aditamento do objectivo do desenvolvimento económico, porque este estará certamente em artigos anteriores referido pelo menos mais meia dúzia de vezes, e estou a recordar-me de uma discussão aqui havida de manhã sobre o problema da soberania nacional, ou da defesa da soberania nacional, em que foi levantada a questão: "Não é preciso estar sempre, sempre, a pôr; isto já está definido atrás." Ora aqui o desenvolvimento económico já está colocado em artigos anteriores...
Há uma necessidade sentida pelo PSD de o colocar aqui, e pus inicialmente o problema em termos interrogativos ao Sr. Deputado Costa Andrade, perguntei-lhe se não haveria aqui uma certa traição ao próprio pensamento do PSD, porque há um objectivo claro quando se pretende pôr o enquadramento do desenvolvimento económico na perspectiva dos objectivos da repartição mais justa, da repartição justa, igualitária, da riqueza e do rendimento. Nós temos a prova, temos a prova concreta neste momento de que há um objectivo, e em nosso entender um objectivo mau, com este aditamento - revela-o a reforma fiscal que temos em mãos. Quando o Governo apresenta a sua proposta de reforma fiscal, em que pretende tributar rendimentos de capital a taxas inferiores à dos rendimentos de trabalho, está precisamente a usar (e já o fez!) o argumento de que "por uma questão da nossa perspectiva de desenvolvimento económico eu quero tributar menos as mais valias bolsistas". Já o disse o Governo clara e expressamente. Não é por acaso que o Sr. Presidente da Comissão de Reforma Fiscal, ou o ex-presidente da Comissão de Reforma Fiscal, na célebre carta que envia ao Sr. Primeiro-Ministro, diz: "Não se comprometa com a entrada em vigor da reforma fiscal no dia 1 de Janeiro de 1989, porque, tal como ela está, contradiz um artigo constitucional, concretamente o artigo 106.°" A vossa proposta não é nada inócua, e não é apenas por uma questão de enquadramento genérico do sistema fiscal que se põe aqui a questão do desenvolvimento económico do País. Repare-se que não se fala no desenvolvimento económico e social, é desenvolvimento económico, só.
Por outro lado, nem sei se a própria inversão da ordem dos objectivos não se enquadrará precisamente nessa perspectiva. Deixa de ser a primeira em termos de ordenamento. O primeiro objectivo deixa de ser a repartição igualitária da riqueza e do rendimento e passa a ser as receitas do Estado e o segundo objectivo, em ordem de prioridades, passa a ser a repartição do rendimento e da riqueza. Possivelmente tudo estará enquadrado e tem este objectivo, que não aparece como objectivo mas é o objectivo fundamental, talvez quiçá o único, da proposta de alteração do PSD.
Face ao artigo 107.° haverá muito interesse em aprofundarmos a questão do sistema fiscal? Sinceramente julgo que tem muito interesse, porque no artigo 107.° temos cada um dos impostos definidos de per si, com determinados objectivos, mas o sistema fiscal é o conjunto dos impostos. É completamente diferente termos a progressividade para o imposto do rendimento e falar-se na progressividade do sistema fiscal, coisa que actualmente não existe, porque, sendo progressivo o imposto sobre o rendimento ou o imposto sobre a riqueza,...
O Sr. Presidente: - Eu só disse que o essencial está nos impostos.
O Sr. Octávio Teixeira (PCP): - ... a degressividade é depois introduzida pelos impostos indirectos. Veja-se, designadamente, aquilo que está a suceder e que é uma participação extremamente elevada dos impostos indirectos no sistema fiscal e que não se verifica em qualquer outro país. E com este peso tão grande (ultrapassa os 70%!) é evidente que está a ser violado o princípio da progressividade do sistema fiscal.
Não sei se foi esquecimento a não resposta à dúvida que coloquei ao Sr. Deputado Almeida Santos quanto à proposta do PS...
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O Sr. Presidente: - Também tenho essa dúvida. Tem de cá ficar qualquer coisa deste género, "desde já fica proibido para os impostos indirectos e fica proibido para os impostos directos para além de um ano". Relativamente ao ano é difícil a redacção e formulámo-la com dúvidas. O caso é este: suponhamos que se aplica um imposto novo, directo, no mês de Dezembro de 1988. Aplica-se a todo o ano passado e mais este ano que já decorreu até Dezembro? Veremos depois qual é a redacção final. Alguma solução se há-de encontrar. De outro modo, inconstitucionaliza-se a cobrança dos impostos directos relativamente ao ano anterior à aprovação da revisão constitucional.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, basta que tenha o cuidado de na lei de revisão constitucional incluir uma disposição transitória que salvaguarde isso, transitoriamente, sem ferir o corpo da norma.
O Sr. Presidente: - Fujo o mais possível às disposições transitórias, revelação de incapacidade de dizermos as coisas como devem ser ditas. Se pudermos encontrar uma redacção que evite o transitório, muito bem.
Tem a palavra o Sr. Deputado Sousa Lara.
O Sr. Sousa Lara (PSD): - É só para fazer um reparo à intervenção do Sr. Deputado Octávio Teixeira, justificando um pouco a posição do PSD. É que, de facto, a primeira justificação, o que torna justo o sistema fiscal, é a satisfação das necessidades financeiras do Estado. Pode não estar escrito aqui, mas em qualquer país do mundo - e encontre-me um autor de finanças públicas que diga o contrário - a primeira justificação é a satisfação das necessidades financeiras do Estado.
O Sr. Presidente: - A nossa Constituição define o sistema fiscal como instrumento de política social. Disso é que não há dúvida!
Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.
O Sr. Raul Castro (ID): - Temos uma conferência de imprensa; pedia o intervalo regimental.
O Sr. Presidente: - Não temos tido intervalo regimental; suspendem-se os trabalhos em função das necessidades. Mas o Sr. Deputado tem a liberdade de abandonar a sala e depois, se quiser, justificar a proposta do seu partido aquando do artigo seguinte.
O Sr. Raul Castro (ID): - Não é do seguinte.
O Sr. Presidente: - Nós vamos demorar com o artigo seguinte talvez uma hora ou mais.
O Sr. Raul Castro (ID): - O problema que eu ponho é o seguinte: no regimento consta a possibilidade de se pedir um intervalo.
O Sr. Presidente: - Eu sei, mas nós não temos feito uso desse direito. E também não vejo nenhuma proposta da ID no artigo seguinte.
O Sr. Raul Castro (ID): - A questão é que há um regimento que ou se cumpre ou não.
O Sr. Presidente: - Se invocar o regimento, não está aqui quem falou. Se invoca o regimento, tem um quarto de hora, como é evidente.
O Sr. Raul Castro (ID): - Foi isso que eu invoquei.
O Sr. Presidente: - Sendo assim, está suspensa a reunião.
Eram 17 horas e 20 minutos.
Srs. Deputados, está reaberta a reunião.
Eram 18 horas e 5 minutos.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, propunha-me fazer o acrescento em duas prestações, uma vez que, em relação à primeira, o Sr. Deputado Carlos Encarnação tem na algibeira, segundo me foi dado conhecer, uma explicação, ela própria também adicional.
O primeiro acrescento é o seguinte: estivemos a reflectir há pouco sobre quais poderiam ser as causas que levariam o PSD a propor a alteração que propõe em relação ao artigo 106.° Sumarizando, via-se que o PSD visava inverter a ordem de exposição das finalidades do sistema, colocando em primeiro lugar a fiscal e em segundo lugar a extrafiscal. Vimos também que, em relação à finalidade extrafiscal (que, embora sendo única, não é unicitária, nem excludente de outras no nosso sistema), o PSD visava colocar de outra forma a questão do objectivo de repartição, visava suprimir os termos actuais em que a questão se coloca. Não se percebia bem inteiramente porquê. A primeira parte do debate foi útil, clarificadora. No entanto, os Srs. Deputados do PSD entenderam não avançar com a razão definitiva, suprema e, provavelmente, real dessa postura. Essa razão há-de encontrar-se seguramente na reflexão que tem sido feita pela doutrina, designadamente sobre esta questão. Creio que o PSD terá tido em conta particularmente aquilo que o Prof. Teixeira Ribeiro tem vindo a aventar publicamente sobre este ponto. Citava um dos pontos da apreciação que o Prof. Teixeira Ribeiro fez sobre o sistema fiscal na Constituição revista e que está, de resto, publicado no Boletim de Ciências Económicas da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. XXV, 1982. Aquele professor, a certa altura, sublinha: "O facto de o artigo 106.° apenas atribuir ao sistema tributário uma única finalidade extrafiscal não impede a criação ou subsistência de impostos que se proponham finalidades diferentes daquela; o que impede, sim, é que esses impostos tenham finalidades cujo conseguimento estorve o caminho para a repartição igualitária. Salvo no caso, claro está, de serem impostos exigidos pelo desenvolvimento económico e o Estado decidir sacrificar a ele o objectivo da igualação da riqueza e dos rendimentos." Nesta matéria pode também consultar-se, ou apreciar-se, o conjunto de observações que o mesmo autor faz quando analisa o sistema fiscal na Constituição de 1976, no Boletim, XXII, 1979.
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Creio que encontramos aqui, Srs. Deputados, a chave das preocupações do PSD, mas seria útil que o PSD as explicitasse, se não, francamente, não vejo razão para utilizar esta técnica: que ou dá a ideia de que se desconhece a matéria ou então sugere-se que se está a ocultar matéria que se conhece demasiado bem. Neste caso, creio que deveria ser totalmente explicitado por que é que os senhores deputados querem avançar por esta caminho. Porque aquilo que o Prof. Teixeira Ribeiro aventa como último e excepcional recurso, como hipótese extrema, como elemento que pode justificar o sacrifício da finalidade de igualação da riqueza e dos rendimentos, passaria a poder ser, na solução que o PSD propõe, um elemento de limitação constante, normal e, digamos, característico da própria norma. Isto colocaria nas mãos dos governos ou das entidades competentes para intervenção nesta matéria (acima de tudo a Assembleia da República, naturalmente) um elemento de relativização da função correctiva extra-fiscal que nos parece de todo em todo indesejável, sobretudo porque correria o risco de banalização. Creio, portanto, Srs. Deputados, que esta discussão se deve fazer com bastante transparência e com tudo sobre a mesa.
Em relação ao segundo ponto, que é a questão da retroactividade e alguns dos problemas que podem surgir, trocámos, durante este intervalo, algumas impressões sobre a questão e gostaríamos de vos transmitir ulteriormente o resultado dessa troca de impressões ou, pelo menos, uma primeira aproximação a uma reflexão mais alargada sobre o tema de que já nos ocupámos.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Deputado José Magalhães, gostaria de fazer uma apreciação, igualmente breve, e respeitando a brevidade com que fez a sua intervenção, sobre um artigo já discutido e sobre o qual já tínhamos quase dado por encerrada a discussão, para lhe dizer, em primeiro lugar, o seguinte: o Prof. Teixeira Ribeiro é quem é, tem o passado que nós conhecemos, portanto penso que é uma pessoa que será insuspeita, aos vossos olhos e aos nossos, para emitir algumas opiniões. Se fosse outra pessoa, com certeza que V. Exa. poderia argumentar de outra maneira. Penso que, com o Prof. Teixeira Ribeiro, não se atreverá a fazê-lo.
O Sr. José Magalhães (PCP): - É óbvio, isso está fora de questão.
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - O que quereria dizer era isto: é que, vindo de quem vem, esse argumento é um argumento muito mais importante, e deve ser, como não pode deixar de ser, aferido em relação à pessoa que o emite, em relação ao seu passado, em relação às provas púbicas que tem dado, em relação às suas opiniões livremente expressas ao longo do tempo sobre estas matérias, em relação à sua capacidade e à sua proficiência sobre estas matérias em geral. E gostaria, num leve comentário, de dizer o seguinte: é evidente que admitimos que haja possibilidade, como diz o próprio Prof. Teixeira Ribeiro, de haver um certo favor, nesta matéria também, ao desenvolvimento económico e social, contra ou limitado no tempo e nas circunstâncias, em relação aos princípios fundamentais que a Constituição prevê. Isso só se justificará na medida em que conseguir, por efeito das medidas de natureza fiscal ou da promoção do investimento em determinadas áreas e da motivação ou da dinamização da actividade económica em certas áreas, gerar mais receitais para o Estado, que o Estado, como é evidente, se encarregará de distribuir melhor pelos cidadãos. É nesta exacta medida que, sem pôr em causa em permanência os conceitos fundamentais do sistema tributário, encaramos como admissível que este pequeno desvio - desvio frutuoso, desvio benéfico em relação ao conjunto dos cidadãos, desde que bem administrado pelo Estado- possa acontecer. E não acredito que tenham sido outras as intenções do Prof. Teixeira Ribeiro quando emitiu essa opinião.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Carlos Encarnação, eu poderia não ter invocado o texto que invoquei, com o que me furtaria airosamente a ouvir um deputado do PSD pôr na minha boca qualquer suspeição em relação ao Prof. Teixeira Ribeiro, com cujas opiniões concordamos, em muitos casos, com cujas opiniões discordámos, historicamente, em outros casos, como se sabe, e cujo perfil, cujo papel, não estão em causa neste debate, como é óbvio. Procurar V. Exa., Sr. Deputado Encarnação, escudar-se no Prof. Teixeira Ribeiro e em tudo o que envolve o juízo sobre a sua figura para legitimar uma má solução, aliás distinta da por este sustentada, parece-me mal! E gostaria de, nessa parte, exprimir este juízo crítico e de dizer: não se coloquem questões que não foram colocadas, examinem-se as questões que forem colocadas, e só essas! E, por outro lado, não se cite desintegradamente quem eu citei integradamente! Porque eu citei na integralidade aquilo que do escrito que referi consta.
O que me surpreende mais é que ou o Sr. Deputado não o tem à frente, ou não o tem na memória, ou acabou, pelas suas próprias palavras, de introduzir um elemento que dele não consta. Uma coisa é dizer-se aquilo que se diz nesse documento, outra coisa é afirmar-se aquilo que o Sr. Deputado afirma e propõe.
O que está em debate - para colocar a questão em termos mais sugestivos, se possível - é a possibilidade, ou não, de criação de impostos que estorvem o caminho para a repartição igualitária. É essa a questão. Qual é a possibilidade que o Estado tem (dizendo a Constituição o que diz) de criar impostos que estorvem essa progressão? É isso que se procura apurar aqui, e que procurou apurar aquele professor, como se tem de fazer, de resto, quando se reflecte sobre a matéria. Qual é o caminho possível, qual é a margem tolerada ao legislador? Concluiu o Prof. Teixeira Ribeiro que a criação é possível excepcionalmente ("salvo no caso"), quando isso seja uma evidência, um caso evidente ("claro está"). Ora bem, o que é que os Srs. Deputados do PSD fazem na vossa proposta? Tornam isso não uma excepção mas uma normalidade. Tornam isso num caso a ter em conta em linha paralela, em plano de igualdade com os outros elementos caracterizadores. Foi isso que nos pareceu, acima de
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tudo, preocupante. Se o Sr. Deputado me diz que não, que, afinal de contas, é excepcionalmente que admitem essa criação de impostos, então logo teremos de aprofundar o juízo.
Sem isso é legítimo afirmar que os senhores, por este caminho, acabam por permitir a criação de impostos propositadamente virados para estorvar o caminho para a progressão da igualdade, em nome de uma certa concepção de desenvolvimento. Por exemplo, uma concepção de desenvolvimento que admita que é muito importante desagravar a tributação das grandes fortunas (então não dizem que "são as grandes fortunas a via para o aumento do investimento"? Então o aumento do investimento não é fundamental para o desenvolvimento?). Logo, desagravem-se as grandes fortunas para se conseguir o aumento do investimento! Com o aumento do investimento consegue-se o aumento do desenvolvimento, à custa da igualdade. E é esse caminho que se visa aqui truncar, aqui na Constituição; no vosso projecto visa-se o contrário.
Creio que isto deve ser tido em consideração e, pela minha parte, não tenho considerações adicionais.
O Sr. Presidente: - Isto introduziu-se aqui um pouco a posteriori, e não poderemos encarar a retoma da discussão.
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - É claro, Sr. Presidente, peço muita desculpa, mas permiti uma interrupção ao Sr. Deputado José Magalhães, e concluiria muito rapidamente. Porque tudo aquilo que o Sr. Deputado José Magalhães disse agora não é nada de novo, não é nada em contrário do que aquilo que eu disse, não tem absolutamente nenhum elemento de conflitualidade com aquilo que eu disse, ou seja, não me consegue pôr em contradita comigo mesmo, muito embora V. Exa. o quisesse fazer. Admito que V. Exa. esteja na oposição e que lhe convenha dizer, pela sua boca, aquilo que eu não disse. Não consegue fazê-lo com a minha concordância. Aquilo que eu disse, sintetizando, foi:
1) Respeitamos a opinião do Prof. Teixeira Ribeiro, como penso que toda a gente nesta sala respeita, pelo seu passado, pela sua capacidade, pelas suas provas dadas, pela sua capacidade científica;
2) Entendemos que, em situações excepcionais, este princípio pode ser seguido;
3) Isto não invalida a declaração do princípio fundamental da Constituição, e designadamente daqueles que vêm definidos ao nível, por exemplo, do artigo 107.° da Constituição.
Foi tão-só aquilo que eu disse.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, em relação à questão da retroactividade, permite-me que introduza a questão a que tinha feito referência há pouco?
O Sr. Presidente: - Faça favor, Sr. Deputado. Tem a palavra.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Em matéria de retroactividade fiscal, Sr. Presidente, Srs. Deputados, há razões adicionais para que se dê um impulso favorável a uma clarificação do quadro constitucional.
Creio que o facto para que alertou, há pouco, o meu camarada Octávio Teixeira em relação ao imposto de mais valias configura uma situação que pode, nos seus desenvolvimentos, conduzir a uma dupla perversão. Se se entende que são inteiramente constitucionais novos impostos retroactivos ou aumentos de impostos retroactivos e, simultaneamente, se entende que são constitucionais desagravamentos retroactivos de impostos, pode gerar-se uma situação na qual, a certa altura, pudesse haver, em flagrante violação, aliás, de um outro princípio (o princípio da igualdade), desagravamentos retroactivos para uns e agravamentos retroactivos para outros - agravamento retroactivo da carga fiscal sobre o trabalho, desagravamento retroactivo da carga fiscal sobre os altos rendimentos. Não é uma situação que seja de configuração impossível. Infelizmente até é uma situação que, no passado, ocorreu numa das componentes e cuja junção, quanto à segunda componente, pode ocorrer. Ora sucede que a jurisprudência decorrente do parecer n.° 14/82 da Comissão Constitucional e do Acórdão n.° 11/83, de 12 de Dezembro de 1982, que há pouco citei, do próprio Tribunal Constitucional, não dá resposta bastante à maior parte das questões suscitadas.
O Sr. Presidente: - Também, nesse aspecto, a vossa proposta não dá. Esse aspecto que está a focar também não contempla. Temos de redigir isto em termos mais...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto. Não gostaria, Sr. Presidente, de deixar a questão, apesar de tudo, no estado em que tinha começado por introduzi-la.
O Sr. Presidente: - Neste momento não avançamos muito mais. Temos de encontrar uma formulação que, salvaguardando, na medida em que queremos salvaguardar, a impossibilidade do efeito retroactivo dos impostos, também não prejudique o facto já vigente de os impostos normalmente incidirem sobre o rendimento do ano anterior.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas não foi só isso que me preocupou, Sr. Presidente. Foi a própria leitura do quadro constitucional nesta matéria. Na própria leitura que a jurisprudência constitucional dele faz, quanto a mim correctamente nesse ponto (talvez se pudesse ir mais longe ainda), mesmo o quadro vigente em caso algum admite, neste momento, a irretroactividade irrestrita. Isto é, ninguém sustenta, a jurisprudência constitucional não sustenta - creio que a questão não pode colocar-se nos termos em que a colocou o Sr. Deputado Costa Andrade - que a criação de impostos retroactivos, ou o aumento da carga fiscal retroactiva, seja possível em quaisquer casos e em quaisquer circunstâncias. Isso acabaria por ferir o próprio princípio do Estado de direito democrático, e nem o PSD o suprime no seu articulado de projecto de revisão constitucional!
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Tem-se entendido, mesmo na interpretação menos generosa, que a retroactividade será inconstitucional quando não obedeça ao princípio da necessidade, devidamente qualificada, e tenha uma dimensão e uma natureza tal que atinja no seu cerne o princípio do Estado de direito democrático. Neste sentido, as conclusões do Acórdão n.° 11/83 são o mínimo dos mínimos. Importaria evoluir daí para uma solução que tenha em conta algumas das observações produzidas neste debate.
O Sr. Presidente: - Pela nossa parte, PS, estamos abertos a uma formulação que dê satisfação a todas essas preocupações.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Em todo o caso, há uma distinção a introduzir, na sequência da explicação dada pelo Sr. Presidente, deputado Almeida Santos, que o meu camarada Octávio Teixeira gostaria de colocar, suponho que em pergunta dirigida ao Sr. Deputado Almeida Santos.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Octávio Teixeira.
O Sr. Octávio Teixeira (PCP): - Sr. Presidente, deputado Almeida Santos, serei muito breve. É só para confirmar, porque surgiram algumas dúvidas na troca de impressões que tive com o meu camarada José Magalhães.
Se bem entendi, a proposta do PS pretende isto: que seja possível cobrar um imposto, num determinado ano, com base em rendimentos do ano anterior, mas não pretende permitir a retroactividade propriamente dita.
O Sr. Presidente: - Claro, claro. O que não queremos é que a norma venha redigida em termos de inconstitucionalizar a possibilidade vigente de um imposto incidir sobre os rendimentos do ano anterior. É só isto.
Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Posso não me ter exprimido correctamente, mas não era minha intenção dizer - e penso mesmo que não o disse - que a criação de impostos com eficácia rectroativa era já hoje constitucionalmente consagrada sem limites. Não era minha intenção dizer nada disso, e penso que não o disse.
Pelo contrário, disse coisa diferente e tentei justificá-lo o melhor que me foi possível, com base numa certa compreensão das normas e da sua função como instrumentos de redução da complexidade nas sociedades. O que disse foi que as normas, como instrumentos de redução da complexidade e como meios de ordenar os comportamentos dos homens - é para isso que se destinam as normas -, têm implícito em si um sentido de "de ora avante" (foi esta a expressão que usei); as normas, por princípio, valem de ora avante. Toda a norma que viola o princípio do "de ora avante" é uma norma que só pode surgir numa situação de manifesto estado de necessidade e, portanto, em situações verdadeiramente excepcionais. Também para nós a eficácia retroactiva das leis - não só das fiscais, mas de todas as leis - tem de acontecer em situações manifestamente excepcionais. Isto porque a regra é a de as condutas (todas, não só as fiscais) serem ordenadas pelas normas vigentes no momento em que ocorrem as condutas, as expectativas a elas ligadas ou os planos ligados às expectativas. A vida deve ser ordenada em função das normas que existam em cada momento, sendo normal e necessário que um Estado de direito garanta às pessoas a possibilidade de projectar e orientar finalisticamente a sua vida na base dos quadros normativos existentes em determinados momentos, ou seja, garanta margens de segurança e de previsibilidade à conduta das pessoas. Esta é a regra. Só em situações manifestamente excepcionais é que as normas podem ter eficácia retroactiva.
O que eu disse - e que é neste momento o entendimento dominante no PSD, embora não pacífico - é que há uma diferença entre a irretroactividade da lei penal e a irretroactividade da lei fiscal.
É em nome dessa diferença que nós - e eu fui muito dubitativo - não nos atrevenos ainda a dar o salto qualitativo. Aliás, já noutra fase, designadamente no processo de revisão constitucional de 1982 (de resto, então com as posições invertidas: o PSD a defender a proibição da retroactividade e o PS e o PCP a oporem-se a tal proibição), nos defrontámos com o problema.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não tenho a certeza de que V. Exa. esteja a pensar correctamente... Permitimo-nos a reserva...
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Eu também. Há pouco recordei este facto, mas disse que estava a citar apenas fiado na minha memória. É, porém, fácil verificar isso porque foi uma discussão muito viva na Comissão de Revisão Constitucional, que está, com certeza, registada. Lembro-me de que fiquei isolado no seio do PSD a defender a diferença qualitativa entre obrigações fiscais e obrigações penais. Foi só isto o que eu disse. Não disse - é importante que isto fique registado em acta - que o Estado era livre de criar impostos com eficácia retroactiva.
O Sr. Octávio Teixeira (PCP): - Gostaria que pudesse complementar um pouco a sua intervenção, na perspectiva colocada pelo meu camarada José Magalhães, e que é esta: que seja ponderado aqui, em sede de revisão, que o problema da irretroactividade não se ponha apenas quando se pretende criar ou agravar impostos, mas mesmo quando seja para desagravar. Porque, não sendo proibida essa irretroactividade, poderá obter-se determinado tipo de efeitos por uma via inversa.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Exacto, Sr. Deputado. O problema é o mesmo, são as duas faces da mesma moeda. Em relação a isso, a posição do PSD é de muita dúvida; nós aqui não temos certezas. É em nome dessa dúvida que nos opomos, para já, a que seja elevada a questão, mas assumimos essa responsabilidade. A nossa posição é a de que só em situações manifestamente excepcionais, de estado de necessidade, e salvaguardados os princípios fundamentais, designadamente à luz do artigo 18.° e em nome dos interesses constitucionais, pode haver retroactividade. Retroactividade fiscal só se for constitucionalmente admitida.
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Penso que isto terá amanhã algum conteúdo como fonte interpretativa da Constituição: dos partidos aqui representados, um deles opõe-se à consagração da irretroactividade, mas deixa muito claro que só em condições manifestamente de excepção, de quase estado de necessidade, e com as limitações do artigo 18.°, para preservar interesses constitucionais de grande dignidade, pode haver retroactividade fiscal. Este é o sinal que damos ao Tribunal Constitucional e ao legislador. Para além disto, temos dúvidas, não temos certezas.
O Sr. Presidente: - Os impostos retroactivos são excepcionais, e aquele que ocorreu foi em condições verdadeiramente excepcionais, se bem que eu próprio, na altura, me opus a ele. Com um pouco de imaginação, eram possíveis outras medidas que não o imposto extraordinário, excepcional e retroactivo. Não creio que um país normalizado precise de um imposto retroactivo para resolver os seus problemas financeiros.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Exacto, Sr. Presidente. De resto, a própria sanção política será extremanente gravosa. Mas acho que foi bom para o sistema político português, na altura, ter tido aquela porta aberta. Eu não era governante, mas assumi a responsabilidade de votar ao lado do Governo e tenho a consciência tranquila.
O Sr. Presidente: - Entendi que havia outras maneiras de superar a crise. Então aquela história de imposto de fronteira...
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Se um governo que eu apoiava aparece no Parlamento e descreve uma situação de verdadeira necessidade...
O Sr. Presidente: - Eu próprio, no Parlamento, tive de fazer das tripas coração!
Quanto ao artigo 107.°, acho que está já discutido, não se fala mais nisso.
O Sr. José Magalhães (PCP): - O artigo 107.° é a problemática do imposto único, Sr. Presidente.
O Sr. Presidente: - Quanto ao 107.°, só há uma proposta de eliminação do CDS, e já aqui foi dito o suficiente para que nenhum de nós concorde. A questão agora é a de saber o que é que a problemática do imposto único implica, mas que venham os técnicos e digam. Não vejo que isto colida com o imposto único: "o imposto sobre o rendimento pessoal visará a diminuição das desigualdades", etc.; "a tributação das empresas incidirá fundamentalmente sobre o seu rendimento real"; "o imposto sobre sucessões e doações será progressivo", etc.. - não vejo que isto tenha a ver com o imposto único. Se tiver, os técnicos dirão, mas não me parece que tenha. Será o único, até já diz aqui que será o único. O que a CEE quer é que se unifique e não que se pluralize. Aqui não há problema.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, há pouco o Sr. Deputado Carlos Encarnação esboçou uma afirmação que me pareceu bastante peremptória, mas gostaríamos de ter a certeza de que se trata de um entendimento concreto, de que não havia intenção absolutamente nenhuma de o PSD - propor já não pode, isso seria extemporâneo - considerar a necessidade de qualquer reflexão adicional sobre o conteúdo do artigo 107.° Portanto, reafirma ponto a ponto todas as decorrências do facto de não ter apresentado uma proposta.
O Sr. Presidente: - Só há uma proposta de eliminação que, a meu ver, não legitima a alteração. Ou se concorda com a alteração, ou não.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Certo, portanto a questão fica fechada, deste ponto de vista, independentemente daquilo que esteja em curso, em matéria de reforma fiscal.
O Sr. Presidente: - O PEV, que não está presente, propôs um artigo 107.°-A, que epigrafou de "direitos dos cidadãos perante o fisco", dizendo: "Os cidadãos têm o direito de obter da administração fiscal, juntamente com a liquidação dos impostos, informação objectiva sobre os meios de que dispõem com vista à recusa do seu pagamento, quando legalmente previsto." Duvido de que se possa prever a recusa do pagamento de um imposto, mas enfim ... Por outro lado, isto é o princípio geral do conhecimento das leis. No n.° 2: "A lei garante a devolução célere dos montantes indevidamente cobrados." O que é célere? "Todos têm direito ao apoio e protecção para defesa [...]" Protecção de quem? Não se sabe bem, nem da parte de quem. Quem protege? Quem é o protector? Sinceramente, nada me entusiasma neste artigo. Mas V. Exa. tem o direito ao entusiasmo!...
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Só para fazer uma observação: o Sr. Deputado Vera Jardim, quando discutimos um artigo que, de resto, já aqui citei no início deste debate -o artigo 62.°-A, proposto pelo PS -, teve ocasião de aventar a hipótese de se pensar na criação, em sede de direitos, liberdades e garantias, de uma espécie de carta de defesa dos cidadãos perante o fisco. No fundo, é disso que tratam - de uma espécie de sumarização de direitos já existentes e outros, que seriam criados de novo - estes, que vêm enunciados na proposta do PEV, ou outros, com a dimensão que, naturalmente, entendêssemos e na sede que seria mais apropriada. Verdadeiramente, este artigo que aqui foi inserido pelo PEV teria talvez sede mais adequada - dado que prevê direitos- no título referente aos direitos. Quiçá, mesmo como artigo 62.°-A, no elenco normal da Constituição. Relembro essa disponibilidade anteriormente aventada pelo PS e creio que não deveríamos ater-nos excessivamente - como, de resto, é boa regra - às formulações, mas mais à ideia de saber se deve haver algum grau de inovação nesta matéria para depois podermos partir para a especificação ou concretização. Porque, realmente, consagrar-se o direito à devolução e à informação... O direito à informação é algo que está compreendido, por um lado, nas obrigações da Administração Pública e nas relações entre os cidadãos e a Administração Pública, no direito de acesso ao direito. O mesmo pode dizer-se sobre o direito a obter a informação sobre os meios legais que permitam a recusa do pagamento, quando esta seja admissível (e só nesses casos; obviamente não se consagra aqui um direito de recusa de pagamento).
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O Sr. Presidente: - "Informação [...] sobre [...] a recusa do seu pagamento, quando legalmente previsto"? A lei só prevê o pagamento, não prevê a recusa.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Estivemos agora a discutir abundantemente um artigo cujo n.° 2 prevê o lançamento de impostos em determinadas condições e só nessas condições. É evidente que os cidadãos têm todo o direito de se recusar a pagar impostos que não sejam lançados nas condições constitucionais e legais, reagindo contenciosa e administrativamente contra elas.
O Sr. Presidente: - Isso é informação jurídica, em geral. Por que é que vamos autonomizar aqui este tipo de informação?
O Sr. José Magalhães (PCP): - Suponho que o PEV não propõe o direito à insurreição fiscal, o direito de resistência fiscal.
O Sr. Presidente: - Por que não muitas outras? Perante a prestação do serviço militar, para justificar quando é que pode não prestar? Perante sei lá o quê, tanta coisa!...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, cabe ao PEV fornecer a ratio deste preceito, mas de qualquer das formas creio que estará aqui ínsita alguma ideia de resistência fiscal, dentro de limites - é um direito de resistência fiscal, muito mitigadamente consagrada. Mas isso não me parece tão importante como a outra ideia.
O Sr. Presidente: - Mas "a lei garante a devolução célere dos montantes indevidamente cobrado" ... porquê só neste caso? Quanto aos outros, não? O que é indevidamente cobrado tem sempre de ser celeremente devolvido.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Pois tem! Mas sabemos qual seja a realidade nessa matéria.
O Sr. Presidente: - "Todos têm direito ao apoio e protecção", não se sabe de quem, "para defesa dos seus direitos nos procedimentos fiscais".
O Sr. José Magalhães (PCP): - Isso decorre do direito de acesso ao direito.
O Sr. Presidente: - É evidente.
Tem a palavra o Sr. Deputado Sousa Lara.
O Sr. Sousa Lara (PSD): - É só uma pequena intervenção para dizer que entendemos que estas disposições não têm dignidade para figurar na Constituição.
O Sr. Presidente: - Dignidade até terão, mas penso que o que é válido nelas está incluído noutras fontes - no acesso ao direito, na informação jurídica.
O Sr. Sousa Lara (PSD): - Manifestamos a nossa intenção de não dar acolhimento a esta proposta.
O Sr. Presidente: - Deixaremos o artigo 108.° para quando cá esteja o Sr. Deputado Rui Machete, a seu pedido. Passaremos, por tanto, ao "comércio", que
também está já mais ou menos semidiscutido. Talvez o PSD queira justificar o seu novo n.° 2; o PS, como se sabe, passou-o para 104.°-A. Já discutimos o que é que deste artigo entendemos que deveria ser salvo e o que poderia e deveria ser sacrificado. Pela nossa parte, dissemos quanto baste.
Para justificar a proposta do PSD do novo n.° 2, tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Mantemos o n.° 1 do artigo 109.° pelas razões que já tivemos oportunidade de explicitar e que não vale a pena repetir. No entanto, em face da discussão que travámos esta manhã a propósito da proposta do PS, verificamos que, no que ao comércio diz respeito, a proposta do artigo 104.°-A do PS serve perfeitamente, pelo que lhe daríamos, em princípio, o nosso acordo. Nessa medida, podemos prescindir da nossa proposta.
O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Para grande gáudio do PCP!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Costa Andrade, quer isto dizer, formalmente, que o PSD, assim sendo e tudo ponderado, retira esta proposta? Formalmente, neste momento?
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Quer dizer aquilo que eu disse, Sr. Deputado.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Costa Andrade, muito obrigado! Sr. Presidente, permita-me que faça uma consideração rapidíssima. Que o PSD esteja de acordo com a proposta do PS em relação ao artigo 104.°-A não tem significado absolutamente nenhum; com o que o PSD está de acordo é com as alterações da Constituição económica, a que aludimos abundantemente durante a manhã. Isto é um corolário, um efeito periférico, secundário, uma transposição e matiz terciário, para dizer com rigor - não se trata de mais do que de uma cirurgia plástica. O problema está no objecto e não na operação em si mesma. Portanto, em relação ao conteúdo, damos por reproduzidas as observações feitas da parte da manhã, sendo certo que, ao que parece, o PSD prescinde mesmo da alteração que propunha para o n.° 2, dispondo-se a substituir global e totalmente aquilo que aventava aqui por aquilo que o PS aventa, sem se fechar quanto ao conteúdo - uma vez que isso está inteiramente em aberto.
O Sr. Presidente: - Digamos que isso é o resultado da concordância implícita que deu ao artigo anterior que, de algum modo, inutiliza esta proposta.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Não se pode estar sempre a chover no molhado. Para alguma coisa tem de servir aquilo que se diz.
O Sr. Presidente: - Artigo 110.° "Protecção do consumidor": o CDS não está; o PS propõe a eliminação pela razão simples de que transferiu o que aqui está para o artigo 62.°-A e para o 104.°-A, com a referência final aos objectivos da política comercial. Nesse 62.°-A, que já foi discutido e mereceu, em princípio, a concordância de todos, nós metemos de novo, em
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relação a este 110.°, o direito à qualidade dos bens e serviços consumidos, que não estava actualmente no 110.°; nos n.ºs 2 e 3 é igual; no n.° 4 do artigo 62.° consagrámos mais um caso de acção popular para prevenção, cessação ou perseguição judicial nas infracções contra a saúde pública. Parece-nos que o nosso 62.°-A é mais rico do que o 110.°: na medida em que merecesse o acordo de VV. Exas., a sua inclusão nos direitos, liberdades e garantias dar-lhe-ia uma força que hoje não tem e desapareceria, repito, este título vi com dois artigos apenas - um para os consumidores e outro para o comércio. Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Nós não propusemos alteração a este artigo porque nos inclinamos neste momento para a manutenção do preceito tal qual está. A proposta do PS tem uma parte de alcance sistemático, no sentido de deslocar algumas das normas que aqui estão para o artigo 62.°; quando se tratar da revisão e da sistematização poderemos ajuizar da bondade ou não desta proposta.
Em relação ao que o artigo 62.°-A tem de novo, ou seja, àquilo em que a proposta do PS relativa a tal artigo ultrapassa o conteúdo do artigo 110.°, mantemos as posições que na altura foram abundantemente referidas pela minha colega Assunção Esteves.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, na altura em que discutimos a proposta apresentada pelo PS de um artigo 62.°-A foi possível fazer as reflexões adequadas sobre a origem do título da Constituição que agora estamos a discutir.
Consequentemente, dispenso-me de repetir os termos da reflexão feita, bem como as diferenças de conteúdo que existem entre o artigo que o PS propõe e o artigo em vigor. Em todo o caso, é evidente que a reinserção sistemática tem, ela própria, virtualidades clarificadoras que, pela nossa parte, não subestimamos. Demos, de resto, a nossa adesão à ideia de que se opere essa clarificação. Naturalmente, fizemo-lo dentro de um enquadramento e com fundamentos que não coincidem - pelo contrário, opõem-se - àqueles que têm presidido à movimentação do PSD em todo este terreno.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Há muitos caminhos para chegar a Deus.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Como sabe, há também quem diga que há muitos caminhos que vão dar ao Inferno, mas acho que se deve ultrapassar esta teoria de anjos caídos e de anjos de pé. Nesta matéria será melhor, em vez de teologia constitucional, fazer a defesa da Constituição. É o que procuramos fazer.
No caso concreto, Sr. Presidente, o que tinha ficado por discutir era apenas a questão da publicidade. O PS transfere para a sede do artigo 62.°-A esta matéria, existindo, no entanto, um aditamento, creio que proposto pelo PEV. Esse aditamento, que vem, de resto, na sequência de um processo de aperfeiçoamento encetado na primeira revisão constitucional, visa referir a proibição da utilização abusiva de crianças e da veiculação de formas de discriminação sexual. A preocupação da defesa dos direitos das crianças e a da publicidade sexista constam do Código de Publicidade e não são excessivamente audaciosas. Se se avançasse neste sentido, creio que não perderíamos nada, em termos de conteúdo, e que, pelo contrário, ganharíamos e não violaríamos a norma a que o PS se tem mostrado apegado, no sentido de não fazer engrossamentos regulamentares.
Creio tratar-se aqui de progredir um pouco no caminho encetado na primeira revisão constitucional e tão-só. O texto originário da Constituição rezava apenas: "É proibida a publicidade dolosa." E, após algum estudo, acrescentou-se aquilo que hoje podemos ler no preceito, tendo-se tido em conta a reflexão que se estava fazendo no quadro de elaboração do Código de Publicidade. Esse Código acabou por contemplar, em margem razoável, estas duas outras preocupações que o projecto n.° 8/V refere, sendo a formulação obviamente relativa. Pela nossa parte, estaríamos dispostos a considerar qualquer outra formulação neste sentido.
O Sr. Presidente: - A nossa opinião é que não estão em causa os valores aqui defendidos, mas que parece não se tratar de casos de publicidade dolosa. Nós consideramos que estes são apenas dois aspectos de publicidade dolosa e que compete à lei geral definir o que é que é doloso em matéria de publicidade.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, não é dolosa. Técnico-juridicamente, não é dolosa.
O Sr. Presidente: - Então não é? O abuso de crianças e a discriminação sexual podem ser considerados dolosos pela lei geral! É só a lei dizê-lo. Aliás, não é só a discriminação sexual, mas também o abuso do sexo como tema de publicidade.
O Sr. José Magalhães (PCP): - A publicidade sexista.
O Sr. Presidente: - Mas pode até não haver discriminação. Pode ser o mais igualitária possível, do ponto de vista sexual, e ser pornografíssima e tudo o que se quiser. Assim, julgo que deveríamos deixar isto para a lei.
Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, não estamos a ver a utilidade da inclusão desta norma na Constituição, sob pena de irmos para outras formas, ou seja, de ter de alargar o catálogo a todas as outras formas de exploração em matéria de publicidade.
O Sr. Presidente: - Também me parece.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Assim, com o grau de vinculação que as coisas têm neste momento, não vemos necessidade de inserir uma norma como esta na Constituição.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, quanto aos provedores do consumidor devo dizer que, na medida em que consagramos e pedimos que se consagre a acção popular para a defesa desses valores, entendemos que não se justifica esta acumulação de provedores. Portanto, seríamos francamente contra esta proposta.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
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O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, na altura em que considerámos a questão do Provedor de Justiça foi possível fazer uma reflexão alargada sobre as virtualidades e inconvenientes da pulverização de provedores, em termos que não vemos razão para alterar. Gostaríamos, apesar de tudo, que não se utilizasse nesta matéria o critério de aguardar que o Sr. Deputado Rui Machete esteja presente para discutir o artigo 108.° e de não aguardar pelo Sr. Deputado Raul Castro para alargar o juízo sobre esta matéria.
Portanto, propunha que esse juízo ficasse suspenso.
O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado Raul Castro, se quiser, fará a defesa sem que seja necessário reabrirmos o debate, que é o critério que normalmente seguimos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - O PSD não se pronunciou sobre esta matéria, o que é também um direito.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Pronunciou-se, sim.
O Sr. Presidente: - Sem entusiasmo nenhum. Não vêem vantagem em consagrar na Constituição estes valores.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, pronunciámo-nos em polifonia, eu e o Sr. Deputado Carlos Encarnação.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Então, terá sido uma manifestação lacónica.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, passaremos labora agora à parte relativa à organização do poder político, designadamente ao artigo 111.°, para o qual há duas propostas, uma do CDS e outra do PSD, bastante semelhantes. O PSD propõe substituir a expressão "o poder político pertence ao povo", uma vez que dá isso como pressuposto, pela expressão "o povo exerce a soberania através de representantes ou por meio de referendo [...]". Aqui substituiu-se também a expressão "poder político" pelo termo "soberania".
Têm a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Presidente, o projecto do PSD substitui a expressão "poder político" pelo termo "soberania". São conhecidos os debates sobre o alcance quer de um termo quer do outro, estando assome que a ideia de poder político é mais ampla do que a ideia de soberania.
O PSD considera, no entanto, que será muito mais prudente e oportuno que, ao nível do artigo 111.°, se refira o termo "soberania" em vez da expressão "poder político". Em primeiro lugar, porque soberania é poder político e, em segundo lugar, porque é um poder político, mais forte e eivado de uma autoridade que, no fundo, radica naquela concepção que Bodin já sublinha.
O poder soberano é capaz de reproduzir poderes políticos derivados; faz-se, assim, coincidir essa sua potencialidade com a ideia genérica de poder político, que, à partida, se reputa de mais ampla. O poder político soberano tem capacidade de criar poderes políticos não ;soberanos - chamemos-lhes assim - e, por consequência, não há aqui, do nosso ponto de vista, nenhuma restrição à ideia que está consagrada na actual redacção da Constituição.
Há pontos que me parecem de sublinhar no que diz respeito a esta preferência: em primeiro lugar, o ponto de vista da conformação formal de outros artigos da Constituição com este, uma melhor conjunção e uma melhor convergência de termos, porquanto os artigos 1.°, 2.° e 3.° da Constituição se referem já a soberania, em segundo lugar, a ideia de que o povo exerce a soberania, tendo uma identificação directa e uma conotação semântica sem ideias de soberania popular. E é exactamente por teimosia nesse termo, que fez história - e fê-la com bastante felicidade -, que teimamos de novo em que se diga "o povo exerce a soberania" em vez de se dizer "o povo exerce o poder político". O problema da alteração que o Sr. Presidente, referiu ,é um problema de construção de frase, pois poderíamos dizer "a soberania é exercida pelo povo".; Ora, o que está aqui em causa é exactamente esta. mudança de termo, mais do que a construção da frase, que é secundária e irrelevante.
Questão que nos parece também importante neste projecto, a nível do artigo 111.°, é a referência ao referendo. É, na verdade, uma inovação relativamente ao texto constitucional que têm vantagens, porque, ao nível do artigo 111.°, há, no nosso projecto, a conjugação da democracia representativa com a democracia directa. Sem menosprezar a importância do princípio representativo nas suas formas de manifestação, como é o direito de voto igual, e a sua potencialidade de criação de governos legítimos, é importante reconhecer o "tempero" dos efeitos do sistema representativo pela introdução do referendo.
As vantagens dessa introdução podem resumir-se, em nossa opinião, nalguns pontos que poderei aqui também resumir, o primeiro dos quais é o de haver, um acréscimo de legitimidade no processo de participação na decisão política. Já não temos aquilo que se atribui muitas vezes ao sistema representativo, a saber, o exclusivo de circulação de elites, em que, no fundo, os cidadãos são um "objecto-situação" das decisões legislativas, mais do que sujeito dessas mesmas decisões; havendo agora um acesso directo às mesmas decisões. Há, assim, um acréscimo de legitimidade que deixa de ser uma legitimidade abstracta e fria do esquema representativo simples, havendo também uma intervenção directa na criação da decisão por via do referendo.
É bom que fique claro que a nossa ideia de referendo transmite, antes de mais, uma preocupação fundamental, que é a da preservação do sistema pluripartidário e a da não intenção de dissolver esse sistema isto é; reconhecemos o sistema de representação através dos partidos políticos como meio fundamental de criação, dessa mesma decisão e, por outro lado, rejeitamos - e é importante sublinhar isto aqui - qualquer ideia identitária de participação no poder e de criação das decisões. O referendo não significa formas plebiscitarias, não tem a ver com estruturas autoritárias em que às pessoas é dada a decisão e em que estas se vão pronunciar apenas sobre o que está feito.
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Há, depois, outros efeitos positivos convergentes com estes efeitos fundamentais que apontei, como é, por exemplo, o facto de o referendo, além de contribuir para o esmorecer de uma certa apatia dos cidadãos, ter a vantagem de desenvolver o seu sentido cívico e o seu sentido de participação política. É, sobretudo, importante dizer - e queria referi-lo de novo - que o que está aqui em causa é um reforço de legitimidade por via da conjugação e do tempero do sistema representativo através do referendo. Referendo esse que não significa, de modo nenhum, repito, uma concepção identitária e plebiscitaria da formação das decisões políticas.
O Sr. Presidente: - Sra. Deputada, não acha que, apesar de tudo, é mais sábia e mais hábil esta referência aos termos da Constituição?
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Nós referimos "nos termos da Constituição e da lei".
O Sr. Presidente: - Não é isso. É que, referindo-se a mediação de representantes e o referendo como formas de exercício da soberania ou do poder político - o que não é bem a mesma coisa -, deixam-se de fora outras formas de exercício do poder, nomeadamente todas as formas de participação previstas na Constituição, sejam elas directas, através de audição ou de intervenção, ou indirectas. E não serão essas também formas de exercício do poder?
É que, actualmente, nesta simples referência à Constituição e à lei - caso ela se inclua - cabe tudo. No entanto, se se fizer referência apenas aos representantes e ao referendo - e a nosso ver não temos nada contra isso, pois são duas das formas de representação e o referendo lá aparecerá à frente, bem como a representação -, isto reduz-se a estas duas formas. E o resto?
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Presidente, aqui diz-se "nos termos da Constituição" e essa expressão não prejudica quaisquer afloramentos dos esquemas participativos que a Constituição consagre noutros lugares.
O Sr. Presidente: - Não, porque se diz "o povo exerce a soberania através de representantes ou por meio de referendo, nos termos da Constituição". Se se disser [...] e nas demais formas previstas na Constituição", já cá não está quem falou. Agora se se disser só "nos termos", os dois únicos meios são aqueles. A forma como se utilizam os meios é que é a prevista na Constituição!
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Presidente, esta não é uma forma definitiva do nosso modo de entender a redacção do artigo 111.°, podemos considerar eventualmente a objecção que V. Exa. colocou. Há, contudo, que ver que estamos aqui a sediar o artigo na parte m "Organização do poder político" e que isso não prejudica certas formas de participação ao nível de subsectores sociais que não têm propriamente que ver com os órgãos de soberania, que é aquilo que o artigo 111.° introduz.
O Sr. Presidente: - Mas é que discordo também da substituição da expressão "poder político" por "soberania". Não são a mesma coisa, sendo o poder político uma das formas de exercício ou de afirmação de soberania, mas não só. Ora, em artigo anterior, já se diz que a soberania reside no povo. Que a soberania se exerce também através de poder político e se traduz em poder político, claro que é exacto; mas a soberania é algo que está para lá disso, podendo não estar ligada a nenhum acto nem a nenhum órgão de poder, e, sobretudo, a nenhuma organização ou a nenhuma forma organizada de exercício do poder político. É por isso que também não ficaria feliz com a substituição da expressão "poder político" por "soberania", pois parece-me gerar confusão.
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Presidente, eu acho-a mais feliz pelas razões que apontei.
O Sr. Presidente: - É por isso que as discordâncias existem e existem para serem assumidas pelas pessoas. Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, um pouco na linha das preocupações já exprimidas por V. Exa. e para tentar clarificar um pouco melhor o alcance da proposta do PSD - porque vejo que, quando o PSD propõe a definição de que o povo exerce a soberania através de representantes, está a procurar definir o modo de exercício da soberania ...
Vozes.
O Sr. Presidente: - Os Srs. Deputados preferem prorrogar os nossos trabalhos para além das 20 horas ou preferem interromper já?
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, isso depende do que é que se entende por prorrogação. A prorrogação até às 2 horas da manhã é uma coisa e até às 21 horas é outra.
O Sr. Presidente: - Então, vamos interromper.
Agradecia que os serviços fossem avisados no sentido de que interromperemos os nossos trabalhos às 20 horas, de que os retomaremos às 21 horas e 30 minutos e que os prolongaremos até às 24 horas.
Tem a palavra, Sr. Deputado Jorge Lacão.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, estava a perguntar à Sra. Deputada Assunção Esteves o seguinte: se a proposta visa definir o modo de exercício de soberania, dizendo que o povo a exerce através de representantes, excluamos agora a questão do referendo, ficamos com a ideia de que os titulares de qualquer órgão do poder político serão, do ponto de vista jurídico-constitucional, representantes do povo, já que o modo de exercício da soberania pelo povo é através de representantes. Ora isto induziria à ideia, a meu ver, de que todos os órgãos de soberania seriam órgãos electivos de soberania. A verdade é que assim não é. Não é um órgão electivo o Governo, como não são órgãos electivos os tribunais, donde que designar todos esses titulares como representantes do povo introduz um con-
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ceito susceptível das maiores ambiguidades. É pelo menos esta a interpretação que eu faço, e gostaria de saber se a esta luz o PSD não admitiria reconsiderar os termos da sua proposta.
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Isso é uma possibilidade que se abre ao resto da Constituição e portanto não há nenhum problema. Os exemplos que deu são exemplos derivados de exercício do poder político, mas que radicam num fenómeno de representação. O Governo é indirectamente criado através do mecanismo de representação, ...
O Sr. Jorge Lacão (PS): - E os tribunais?
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - ... a Constituição assim o diz. Os tribunais não exercem propriamente o poder político, fiscalizam-no.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Mas não tem os tribunais definidos como órgãos de soberania na Constituição? Claro que tem.
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Exactamente, mas isso não quer dizer que, dados os termos com que nós no fim terminamos o artigo 111.°, nos termos da Constituição, é óbvio que em alguns lugares da parte m haverá efectivamente casos que carecerão de uma interpretação situada. É óbvio que isto é uma declaração de um princípio que vai ter a sua dosagem e o seu peso, conforme a interpretação dos artigos que constam desta parte da Constituição. Não há nenhum perigo com isso, haveria sim se não houvesse uma referência à Constituição, como de facto aqui se mantém.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sra. Deputada, eu só queria provar-lhe que a introdução desta fórmula apresentada pelo PSD induziria a dificuldades de interpretação, porque de facto representantes, de um ponto de vista técnico-constitucional, parecem ser aqueles que constituem ou integram órgãos electivos de soberania ...
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Não necessariamente.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Mas, como nós temos órgãos não electivos de soberania, se aos titulares desses órgãos não electivos também os designarmos como representantes, deixamos de usar o conceito de representação como conceito essencial que se consubstancia na expressão da vontade do povo. E neste sentido estamos certamente a perder alguma das clarificações que no domínio da ciência jurídica e sobretudo da teoria constitucional, aparentemente, estavam adquiridas e não deveriam ser colocadas em crise.
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Eu acredito que o Sr. Deputado possa depreender daqui alguns conflitos de interpretação, podemos ponderá-los, mas de qualquer modo gostava de lhe fazer uma pergunta. Acha que o Governo não resulta, ainda que indirectamente, de um esquema de representação?
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Mas uma coisa é haver órgãos que exprimem ou que são consequência ou têm que ser legitimados através de um órgão de representação; outra coisa é designarmos, de um ponto de vista conceptual, os titulares desses órgãos como representantes ...
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - É complicado aí.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - ... do povo. Esse é que é o meu ponto.
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Podemos ver se pode ser ponderada a sua objecção.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sousa Lara.
O Sr. Sousa Lara (PSD): - Não me parece errado o acolhimento da expressão final da proposta do PSD do inciso "e da lei". Penso que não se prejudicaria o texto constitucional; pelo contrário, se ampliaria até o sentido que nele está expresso. Esse pequeno aditamento não me parece que seja problemático. E a própria inversão, embora não insista excessivamente nisso, da ordem não altera substantivamente o sentido do artigo e não me parece pior, até numa perspectiva lógica. O povo é anterior à soberania, esta é um instrumento do povo, logo esta inversão proposta pelo PSD de alguma forma explícita esta servidão do poder político ao elemento do Estado que é o povo.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Dá-me licença que também coloque uma questão a V. Exa.? Diz que o povo é anterior à soberania, talvez como realidade sociológica; só que como realidade jurídico-constitucional é contemporâneo dela.
O Sr. Soura Lara (PSD): - Bom, mas tenho uma visão sociológica do Estado.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Ou admite a existência de uma comunidade política onde a soberania não estivesse patente?
O Sr. Sousa Lara (PSD): - Eu entendo que o Estado, (terá de ler o meu livro porque dá um pouco de trabalho explicar), que os elementos do Estado são anteriores à soberania e a própria articulação, não vou entrar por aí, mas a articulação que se forma entre o elemento territorial e o elemento populacional do Estado são em termos genéticos anteriores à própria, soberania. Esta é uma decorrência evolutiva de uma relação territorial que se constitui antes.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - A existência de um povo em sentido sociológico num determinado território cria um poder político, isso sabemos nós; só que a realidade povo em sentido sociológico não é idêntica à realidade povo em sentido jurídico-constitucional como detentor e fonte da soberania.
O Sr. Sousa Lara (PSD): - Não se põe em causa esse princípio; pelo contrário, na nossa proposta a ideia é valorizar a atribuição da soberania ao elemento povo.
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Não faço questão fechada nisto, penso que em termos dispositivos é perfeitamente idêntica. O único aspecto que quererá sublinhar, com alguma insistência, era o acolhimento da expressão final.
O Sr. Presidente: - Não teremos dúvidas, o Sr. Deputado António Vitorino já vai falar sobre isso.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, gostaria de estruturar as minhas considerações brevíssimas em torno de quatro tópicos.
1.° "O regresso da soberania ou a vingança tardia do mito liberal."
2.° "Olhando o povo da Rua de São Caetano (sede nova do PSD) com os óculos de Platão."
3.° "O caminho sibilino para um Estado democrático-legal."
4.° "A nova velha erupção do referendo."
O regresso enxurroso da soberania e a vingança dos mitos liberais decorre de tudo aquilo que a Sr. Deputada da Assunção Esteves acabou por verter para a acta, infelizmente não explicitando a matriz em que bebia a água: ouvia-a citar Bodin; parece-me demasiado remoto para justificar aquilo que acabou por produzir...
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Citei pontos de referências que chegassem e sobrassem.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Pois foi, Sra. Deputada. O problema é que realmente a Constituição neste ponto quis superar ou ultrapassar as concepções liberais sobre a soberania do povo ou da nação. E expressamente o quis e sabiamente o quis, por muitas razões, entre outras coisas quanto à opção específica relacionada com a utilização da expressão "poder político", aqui. Soberania e poder político são conceitos com dimensão, com latitude diferente. Poder político é claramente uma expressão com dimensão mais vasta, mais lata, que o conceito de soberania e visou-se aqui explicitamente abranger as diversas formas de poder e não apenas aquelas que são exercidas pelos órgãos de soberania enquanto tais, uma vez que, como se sabe, no nosso sistema de poder, complexo e multifacetado, como sei dizer-se, há outros órgãos de poder (designadamente porque temos um estado democrático com uma organização que compreende a existência das regiões autónomas e temos também poder local democrático). Nesse quadro, nos diversos órgãos do poder político em que o povo também se manifesta e através dos quais exerce o seu poder. Por outro lado, a Constituição quiz fazer aqui um corte ou uma mudança de agulha em relação às concepções ou aos mitos liberais sobre a noção de soberania nacional ou de soberania popular. O PSD propõe uma regressão ...
O segundo tema evidencia a estranha maneira como o PSD vê o povo da Rua de São Caetano, o que tem implícita uma crítica. É que uma das coisas que o PSD faz meticulosamente neste seu projecto de revisão constitucional é podar, ponto a ponto, tudo o que é povo, haste artigo, porém, o povo sobreviveu (há-de sobreviver ao resto também!). Neste caso concreto, o PSD manteve-o, só que não deixou de desnaturar e reintroduzir alguns dos elementos mais característicos da mitologia liberal e das leituras de tipo platónico sobre o povo. Por isso o povo que aparece no projecto não é o mesmo povo que consta do texto actual da Constituição: está relido à luz de uns certos óculos ideológicos; não se trata só da diferença de visão decorrente de tudo se passar no alto das varandas de São Caetano; trata-se, mais, de uma postura ou de uma concepção política de fundo que o PSD, ao que parece, tem nesta matéria.
O terceiro tópico condensa-se numa pergunta: vamos de um Estado democrático-constitucional, para o Estado democrático-constitucional-legal? A questão da introdução desta terceira dimensão está toda em saber das suas rigorosas implicações. Curiosamente, a Sra. Deputada foi extremamente concisa quanto a este último ponto. Quais são as implicações exactas, na sua visão, deste alargamento ínsito na ideia de um Estado democrático-constitucional-legal?
A colocação da lei em paralelo com a Constituição neste ponto, como elemento fundador do Estado democrático, é quanto a nós um elemento desvalorizador da Constituição desde logo porque visa suprimir o monopólio conformador que esta hoje tem em relação às questões de arquitectura e travejamento do regime e introduzir uma espécie de possibilidade de alteração ou de definição adicional do regime por via legal, ocupando as margens extraconstitucionais ou desenvolvendo as margens constitucionais. Isso parece-nos uma aquisição. Percebe-se a intenção, vinda de uma maioria absoluta! Provavelmente foi isso que motivou o PSD nesta esfera. Aliás, creio que não foi por acaso que a proposta não apareceu antes ou nunca tinha aparecido e tem evidentes perigos: poderia permitir alterar, por lei, o equilíbrio das competências dos órgãos do poder e criar novas formas de expressão política (quais?) esvaziadoras das previstas na Constituição.
O último tópico de reflexão salienta a entrada em cena, envergonhada, da figura referendaria. Acho curiosíssimo, uma vez que a Sra. Deputada Assunção Esteves não pretendeu fazer aqui o alfa e o ómega da justificação política da introdução da figura referendo, que tenha colhido (não é seguramente falta de virtude, será apenas sinal de atenção) alguns dos resultados da discussão que tem estado em curso originada pelo facto de haver diversos partidos e não apenas o PSD que propõe que a Constituição seja alterada neste ponto.
Os argumentos que utilizou revelam, curiosamente, uma atitude um tanto "defensista". Não estou a dizer que a postura exemplar seja a avançada nesta matéria pelo Dr. Alberto Jardim, nessa sua ideia de que deve haver uma "nova manifestação do poder constituinte desencadeada pelos poderes constituídos" (o nome técnico-jurídico disto é outro!), utilizando a figura do referendo: não seria verdadeiramente referendo mas nesse caso uma figura plebiscitaria travestida de referendo por razões de conveniência! Se essa é a posição "dura", a de V. Exa. é "mole". Sucede que a primeira é inconstitucionalíssima e a da Sra. Deputada é o que se verá. Acho interessante que tenha utilizado os argumentos que utilizou. Que a introdução de uma figura deste tipo "tempera o exclusivismo do sistema representativo" é alguma coisa que todos acolherão como uma evidência razoável. A questão está em que esse "temperar" pode ser danoso (há temperos indigestos). Não foi por outras razões que na configuração originária da Constituição não foi prevista, a introdução desse "tempero".- Foi por razões relacionadas com a
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própria apreciação das condições de edificação do sistema representativo, e pelo facto de o sistema originariamente concebido assentar na conjugação não apenas de uma legitimidade mas de duas (uma delas democrático-revolucionária) e ainda pelo facto de se entender que a consagração de uma componente referendaria (susceptível de resto de degeneração pelebis-citária) poderia debilitar a componente de legitimidade democrático-eleitoral e propiciar desenvolvimentos de outra natureza. Pesaram ainda nessa opção considerações relacionadas com a dificuldade de configurar, em concreto, os contornos da figura referendaria, sem o que se revela extremamente difícil de desenvolvimento e controle o uso desse instituto.
Tudo isto terá pesado na decisão constituinte e tudo isto pesou, de resto, nos debates da primeira revisão constitucional em que esta matéria foi objecto de reapreciação. Em relação a esses debates, a argumentação aqui trazida pela Sra. Deputada Assunção Esteves apenas incorpora a tal atitude que qualifiquei de "defensista". Defensista em primeiro lugar porque sentiu necessidade de vir falar da utilidade da figura, que o PSD aqui não define, mas a que alude, a finalidade "refrescante" do sistema, a sua virtualidade substitutiva da "legitimidade abstracta e fria" (é essa legitimidade "abstracta e fria" que caracteriza os 148 deputados que V. Exas. aqui têm!).
A solução será "refrescante"? Pois como "refrescamentos" dessas algumas constituições contraíram constipações bem fundas que originaram desenvolvimentos bastante perversos ...
Há nesses "refrescamentos" induzidos fenómenos de refrigeração perversa que podem refrigerar excessivamente a democracia abstracta e fria (mas democracia!) de que a Sra. Deputada falava com desconsolo.
Em segundo lugar, acho curiosíssimo o argumento que utilizou - porque esse é o mais defensista de todos - relacionado com a necessidade de, através desta via, se preservar o sistema pluripartidário, isto é de manter o sistema como meio fundamental de decisão.
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais da oradora} ... todas as funções que desenvolve o sistema pluripartidário em democracia que é por natureza o que está ligado ao esquema representantivo, e portanto, a introdução do referendo não significa nenhuma distorção ao princípio representantivo ou às suas formas evidentes de manifestação. É só isso. Foi uma cautela. Não foi dizer que ia fazer isso. É só uma cautela. O Sr. Deputado interpretou-me mal.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Compreendo, Sra. Deputada, essa cautela porque é evidente que, em termos de desenho abastracto, a introdução de uma figura destas sem essa cautela seria, evidentemente, um projecto de alteração do próprio sistema. Isso aplica-se a todos e aos mais diversos projectos, incluindo os mais insensatos, incluindo aqueles cuja qualificação teria de ser politicamente dura. Em todo o caso a questão está na forma como se introduzem essas cautelas, e não na alusão a essas cautelas. Entendo, por exemplo - sem querer antecipar essa discussão - que o PSD enuncia em abstracto essas cautelas, mas, como acontece em muitas coisas, uma coisa é o que anuncia, outra coisa é o que pratica. Apela-se, em abstracto, à virtude e pratica-se, em concreto, o vício. É esse o caso da proposta do PSD sobre o referendo.
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - O Sr. Deputado ainda não sabe o que é que vamos praticar!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Em terceiro lugar é curioso que o PSD declara rejeitar qualquer ideia identitária ou qualquer decisionismo plebiscitado. Aí está outra coisa relativamente à qual uma coisa é o enunciado, outra coisa é a prática. Apreciar a questão em abstracto é muito pouco interessante. Esta sede não é, pois, a mais adequada para fazer essa discussão, porque ela só adquire pleno sentido quando se toma em concreto o corpo referendário que o PSD nos submete a apreciação e se verifica que ele será mais plebiscitado do que referendário, qualquer que seja, naturalmente, o rótulo da propaganda visado. E digo, desde logo, plebiscitário, por causa das margens da indefinição e do descontrole que presidem ao instituto desenhado pelo PSD da sua real indefinição de âmbito e, acima de tudo, provavelmente, pelo facto de a solução que propõe implicar o possível constrangimento de outros órgãos de soberania e mesmo a possibilidade de o plebiscito ser usado contra a Constituição; o texto do PSD não exclui a hipótese de, entre os temas sujeitáveis a plebiscito, se encontrar a própria lei fundamental.
Conjugando a vossa concepção do Estado democrático-constitucional-legal com a indefinição quanto ao objecto dos referendos. A perturbação da hierarquia Constituição/leis, a actuação sensível dos sistemas de decisão política decorrente do facto de poder ser sobreponível à decisão representantiva a decisão referendaria ou referendário-plebiscitária), é possível concluir que todo esse quadro decorrente das propostas do PSD nesta matéria é de molde que as consideremos inaceitáveis. A justificação agora dada, além de não ter em conta as observações sobre a amplitude descaracterizadora decorrente das substituições, é altamente preocupante quanto às consequências dos aditamentos.
Entretanto, reassumiu a presidência o Sr. Presidente, Rui Macheie.
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Presidente, eu poderia então responder às perguntas do Sr. Deputado José Magalhães?
O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, propunha-me antes fazer a minha intervenção, uma vez que também contém uma pergunta para o PSD.
O Sr. Presidente (Rui Machete): - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.
O Sr. António Vitorino (PS): - Devo confessar que uma certa tendência abstraizante que comporta sempre a análise dos princípios gerais pode explicar o facto de a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves se ter entregue a um louvável esforço teórico de justificar aquilo que ou tem todas as justificações imagináveis ou não terá mesmo nenhuma justificação. Justificações
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intermédias é que, sinceramente, me parece que não tem. À partida, porque não vejo vantagem em mexer no artigo 111.° da Constituição. Em nada, mesmo, na medida em que este artigo é o primeiro artigo dos princípios gerais de organização do poder político que nunca deu origem a qualquer querela interpretativa, isto é, nunca se suscitou, a propósito deste artigo 111.° da Constituição nenhuma dificuldade de interpretação, nem quanto à articulação dos poderes políticos, nem quanto às formas de exercício do poder político, nem sequer, em meu entender, quanto ao fundamento ético-político do exercício do poder democrático que a Constituição consagra. Sem embargo, até poderei reconhecer que, eventualmente, este artigo 111.° poderia dar origem a uma querela interpretativa, a qual consistiria em saber em que medida é que os tribunais podem e devem, ainda hoje, ser considerados como verdadeiros e próprios órgãos de soberania e, portanto, em que medida é que uma parte da Constituição destinada à organização do poder político - como o próprio título indica - deva compreender um capítulo sobre tribunais. Deixemos, contudo, de parte essa eventual dúvida sobre a inserção sistemática dos tribunais no conjunto da Constituição, uma vez que essa querela interpretativa nunca foi, formalmente, suscitada entre nós, talvez por algum passadismo teoricista ou por um excesso de positivismo, que o Sr. Deputado Rui Machete gosta tanto de denunciar de dedo em riste ...
O Sr. Presidente: - Não é aqui o caso!
O Sr. António Vitorino (PS): - Mas a verdade é que, tirando essa querela não existe, ou que ninguém até hoje suscitou, parece-me que não se suscitam dúvidas sobre o significado do que a Constituição, hoje em dia, consagra. Dúvidas haveria sim (e penso que o PSD não justificou essa parte da proposta) se se acrescentasse ao que a Constituição hoje contém - "o poder político pertence ao povo e é exercido nos termos da Constituição" - a possibilidade de criação de novas formas de exercício do poder político por via de simples lei ordinária. O que está aqui em causa é saber, ou não, se as formas de exercício do poder devem estar tipificadas na Constituição ou se pelo contrário, devemos consagrar um sistema político em que as formas de exercício do poder são abertas e estão consagradas através de uma cláusula constitucional aberta, susceptível de ser preenchida livremente pelo legislador ordinário. Como se sabe, esta questão não é nova no sistema político português. E já houve quem defendesse, em Portugal, que o referendo era uma forma legítima do exercício do poder político, ainda que não estivesse expressamente prevista na Constituição. O que não pode ser esquecido é que mesmo que este artigo 111.° da Constituição dissesse que o poder político pertence ao povo e é exercido nos termos da Constituição e da lei, sempre se deveria considerar que o exercício do poder político ou as várias formas de exercício do poder político estão sujeitas ou subordinadas ao princípio fundamental da Constituição consoante o artigo 3.° que diz que "a soberania, una e indivisível, reside no povo, que a exerce segundo as formas previstas na Constituição". Ora, como o PSD não propõe nenhuma alteração ao n.° 1 do artigo 3.° da Constituição, que diz taxativamente que "a soberania, una e indivisível, reside no povo, que a exerce segundo as formas previstas na Constituição", o que o artigo 3.° na versão do n.° 1 do PSD fecha seria aberto pelo artigo 111.° proposto pelo PSD, gerando-se uma contradição entre normas constitucionais sem que se perceba, à luz da justificação do PSD, a qual delas é que deveria ser dada prevalência, embora se deva entender que uma certa precedência interpretativa devesse ser reconhecida no artigo 3.°, que consagra um princípio fundamental da Constituição.
Daí que esta livre disponibilidade de, por força da lei ordinária, se acrescentarem novas formas de exercício do poder político me parece ser uma porta aberta da qual podem resultar sérios perigos para a estabilidade do sistema político-institucional que a Constituição consagra. E repare-se que o efeito útil de abrir esta porta não contemplaria algumas das preocupações que têm vindo sucessivamente a ser suscitadas. Há órgãos de soberania que, na Constituição, têm competências definidas nos termos dos artigos que os constituem, as quais contemplam sempre uma cláusula residual, onde se diz que a lei lhes pode atribuir outras competências. Mas há órgãos de soberania, como é o caso do Presidente da República, a quem não podem ser aditadas competências por via da lei ordinária, na precisa medida em que o elenco de competências do Presidente da República constante da Constituição é objecto de uma cláusula fechada, é objecto de um numerus clausus. Desde a revisão de 1982, pelo menos, tem sido entendimento pacífico que a lei ordinária não pode aditar novas competências ao estatuto do Presidente da República. Ora, aquilo que as normas definidoras da competência do Presidente da República fecham poderia vir a ser aberto através da consagração, . no artigo 111.° da Constituição, desta fórmula ampla em que se consagraria, na proposta do PSD, que o exercício da soberania poderia ser livremente remodelado nos termos de lei ordinária. Isto é, a lei ordinária poderia criar ou aditar não só novas competências do Presidente da República como, inclusivamente, novas formas de exercício do poder político.
Acho que era uma machadada muito significativa na prevalência hierárquico-normativa da Constituição, no que diz respeito à definição das formas de exercício do poder político.
Estamos à vontade para o dizer, porque tomámos a iniciativa de aditar à Constituição o referendo, que era uma forma de exercício do poder político que sempre considerámos ilegítima, na medida em que não constava taxativamente do texto da Constituição e não podia ser aditada por mera lei ordinária. Assim, como entendemos que na forma de consagração constitucional do referendo deve ficar claro que não é consentido o referendo de revisão da Constituição e que, portanto, o referendo não é, de entre as formas de poder político previstas na Constituição, uma em que se pudesse traduzir o exercício do poder de revisão constitucional. Ora, se ficasse aqui a referência à lei, nos termos do artigo 111.° do projecto do PSD, sempre se poderia interpretar que a lei que consagrasse em concreto o instituto do referendo era instrumento suficiente para legitimar a instituição, por via da lei ordinária, do referendo de revisão constitucional. E esta é a pergunta que gostaria de formular: O articulado que o PSD apresenta para o referendo não é um articulado totalmente claro, mas, através de declarações de destacados responsáveis do PSD - a começar pelo
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Sr. Presidente desta Comissão -, tem vindo a declarar que não pretende consagrar o referendo de revisão Constitucional; ora, assim sendo, a solução proposta pelo PSD para o artigo 111.°, ao permitir que formas de exercício do poder político pudessem vir a ser criadas através de simples lei ordinária, poderia estar a abrir a porta para que a lei ordinária fosse instrumento suficiente para consagrar formas referendarias de revisão da Constituição ou não? Esta era a pergunta que gostava de deixar ao PSD.
Uma última observação: o PS também acolhe o referendo no seu projecto. E consagra o referendo não em nome de princípios defensistas ou ofensistas mas dentro de um critério geral de pluralização das formas de participação dos cidadãos na vida pública e de exercício do poder político democrático. Sabemos qual era o trauma que acompanhava o referendo em Portugal. É um trauma antigo; é um trauma que remonta ao plebiscito que aprovou a Constituição de 1933 e às condições e consequências desses acontecimentos; é também um trauma com causas mais recentes e que levou o PS a opor-se à sua consagração no passado quando um certo e determinado candidato às eleições presidenciais pretendeu basear a sua candidatura no projecto de realização de um referendo inconstitucional de revisão constitucional. Sempre fomos contra as formas referendarias de exercício do poder constituinte derivado, e por isso tivemos agora neste nosso projecto a preocupação de consagrar o referendo dentro de limites rigorosos que tornassem claro que a forma referendaria de exercício do poder de revisão continuará a ser ilegítima e inconstitucional nos termos da Constituição da República Portuguesa. E neste contexto não o fazemos nem de forma ofensiva nem de forma defensiva; fazemo-lo da forma que aspiramos a que seja por todos reconhecida como equilibrada, só isso!
O Sr. Presidente: - Há uma inscrição do Sr. Deputado Jorge Lacão, mas eu gostaria de não perder a sequência - não sei se V. Exa. se vai referir a esta matéria especificamente - da exposição do Sr. Deputado António Vitorino - que foi feita sob a forma de uma pergunta ou de uma inquirição (Sr. Deputado José Magalhães, não se assuste, pois inquirição não tem nada de pejorativo quando, outro dia, usei a palavra, embora reconheça que se fosse inquisição, isso sim!) - para simultaneamente - e confesso que não são apenas perguntas mas eram umas sucintas explicações que me parecem úteis nesta sede - não deixar que se crie um falso problema de questões que não tiveram essa intenção e que, porventura, o posicionamento cautelar que o PS adopta leva a ver - não diria mosquitos na outra banda mas, de qualquer modo, numa modesta alteração do texto constitucional - a possibilidade de propósitos revolucionários e plebiscitários que não existem.
Se o Sr. Deputado Jorge Lacão me permitisse, faria então essas curtíssimas observações.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Antes das respostas da Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves?
O Sr. Presidente: - Mas esta longa intervenção foi uma pergunta que exige uma resposta imediata.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Pode, evidentemente, verificar-se uma corrida dos Srs. Deputados do PSD à resposta. Por mim, estou interessadíssimo.
O Sr. Presidente: - Então aguardo serenamente que a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves faça o favor de responder.
O Sr. António Vitorino (PS): - Oscilo entre a disponibilidade da resposta do Sr. Deputado Rui Machete e a simpatia da resposta da Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves. Eu aí não arbitro.
O Sr. Presidente: - A única razão por que, digamos, foi com algum entusiasmo que me apressei a usar da palavra - tanto mais que venho de um debate interessantíssimo no Plenário em matéria de sectores de produção - é que ouvi muito atentamente o Sr. Deputado António Vitorino e queria dizer que as duas questões que levanta, em termos de interpretação subjectiva da vontade histórica dos proponentes, nada do que disse tem correspondência com esses intuitos, embora talvez, numa delas, possa por força de "certa" interpretação ter alguma razão.
A primeira observação que V. Exa. fez foi em relação ao problema da substituição da noção de poder político por soberania. Não vou ressuscitar - certamente terão tido um debate extremamente aprofundado e douto sobre a matéria - esse debate, nem dizer algumas razões que poderiam justificá-lo. Só queria referir que tem V. Exa. razão quando diz que um dos argumentos possíveis e invocáveis era o problema dos tribunais. Com certeza que é, e já agora queria acrescentar que V. Exa. certamente sabe que o problema da personalidade jurídica do Estado, em termos de direito interno e da consideração dos tribunais como órgãos de Estado - como, aliás, a atribuição do carácter de órgão aos Parlamentos - é uma noção que se forja no século XIX - infelizmente, para muitos, na Alemanha com Albrecht e Gerber, a propósito da teoria dos órgãos e da pessoa colectiva, e que entra em contradição, de resto, com a chamada teoria da impermeabilidade da pessoa colectiva e das relações interorgânicas, e que tudo isso se caldeou, como V. Exa. sabe, com as ideias da representação, que essas vieram do lado da Revolução Francesa. E isto deu origem a um quebra-cabeças que os juristas ainda não conseguiram, pelo menos, elucidar devidamente, e que, enfim, cria, nalguns casos, algumas dificuldades. Nós sabemos que os tribunais e os juizes têm muito orgulho em serem considerados órgãos de soberania. Penso que não é a altura de estar - por razões de pruridos dogmáticos - á retirar-lhes essa qualificação. Eles levariam isso a mal, não se perceberia bem; mas, na verdade, essa poderia ser uma das justificações importantes, e foi uma das motivações de alteração do preceito. Mas isso, digamos, é um problema interessante da existência ou não da personalidade colectiva do Estado qua tale, não valendo a pena estarmos, neste momento, a demorarmo-nos sobre ela.
Agora, quanto à segunda questão ...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, peço desculpa. Em que é que, realmente, essa preocupação impulsiona esta concreta redacção que substitui o conceito de poder político pelo conceito de soberania?
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O Sr. Presidente: - É que os tribunais são órgãos de soberania, mas não são órgãos de poder político, como V. Exa. sabe, nem mesmo o Tribunal Constitucional.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sim, mas, por outro lado, como V. Exa. sabe, há órgãos de poder que não são de soberania.
O Sr. Presidente: - Pois há! Outra razão importante para dizer que a soberania só pertence ao povo. Só deve haver soberania popular. Exactamente! V. Exa. ajudou-me muito. É essa uma outra razão adjuvante.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, não deixam de ter legitimidade popular, Sr. Presidente!
O Sr. Presidente: - Mas o titular da soberania é o povo, é bom dizê-lo. Não vale a pena demorarmo-nos mais nesta matéria.
Quanto à segunda questão, queria dar uma explicação muito simples. Quando se fala "nos termos da Constituição e da lei", V. Exa. deu uma interpretação, que é possível - e sobretudo se houver uma enorme desconfiança acerca de alguns propósitos (eu diria) redibitórios nos proponentes, portanto, que estejam a escamotear os seus objectivos últimos - e, usando da jurisprudência das cautelas, eventualmente exacerbada, é possível descortinar aí propósitos que efectivamente não existam. A ideia era muito simples e é esta - e é uma interpretação possível: é verdade que não é apenas nos termos da Constituição, mas a própria lei ordinária desenvolve, de acordo com a Constituição, a forma como a soberania é exercida.
O Sr. António Vitorino (PS): - O problema que coloquei era, contudo, não o do desenvolvimento pela lei ordinária das formas de exercício do poder de acordo com a Constituição, mas sim o da faculdade que ficaria aberta de a lei dispor praeter constitutionem. Ou seja, o de a Constituição proceder a um reenvio para a lei da definição das formas de exercício do poder político.
O Sr. Presidente: - Não se trata de reenvio, mas de desenvolvimento - é o desenvolvimento em execução; usando uma linguagem kelseniana, é, pura e simplesmente, a execução a um nível inferior, e não pode ser de outra maneira. Era este o objectivo modestíssimo dos escribas que propuseram a alteração. Mas devo dizer-lhe que ouvindo-o e muito embora não coonestando, em termos históricos, porque não foram esses os propósitos, aquilo que disse, se isso pode suscitar, em espíritos tão esclarecidos e em juristas tão argutos como é o caso do orador que me antecedeu, considerações desse jaez, entendo que não vale a pena irmos mais longe - nós, com todo o gosto, deixamos cair a menção à lei, porque não tinha nenhum propósito desses por detrás. É óbvio - já agora, gostaria de acrescentar -, quando V. Exa. diz, e bem, quê, no que respeita à competência ou atribuições do Presidente da República, não é possível por lei atribuir-lhe outras competências; a razão, salvo o devido respeito, não é tanto pela situação de não se poder acrescentar competências a órgãos de soberania - o Governo todos os dias tem competências acrescidas, de algum modo -, mas resulta de um problema relacionado com o equilíbrio dos poderes e o sistema de governo que está ...
O Sr. Almeida Santos (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)
O Sr. Presidente: - Mas isso é uma outra matéria!
O Sr. António Vitorino (PS): - Na revisão constitucional de 1982 também foi eliminado.
O Sr. Presidente: - Mas depois foi acrescentado por este motivo. Porque, por essa via, poder-se-ia subverter por completo o esquema. É evidente.
O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, o que eu estou a dizer é um terrível vício positivista - antes que V. Exa. mo diga, reconheço-o logo à partida.
O Sr. Presidente: - Tem bons efeitos pedagógicos este nosso debate, para todos!
O Sr. António Vitorino (PS): - Tudo o que V. Exa. diz é para mim um ensinamento.
O Sr. Presidente: - Reciprocamente, também tenho aprendido muito com as intervenções de W. Exas.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Ainda bem que está distraído o Sr. Deputado José Magalhães.
Risos.
O Sr. António Vitorino (PS): - Na revisão de 1982, houve o cuidado de, no final do elenco de competências da Assembleia da República e no final do elenco das competências do Governo, incluir uma norma residual que se funda no princípio do equilíbrio dos poderes. E verdade?
O Sr. Presidente: - Claro.
O Sr. António Vitorino (PS): - Mas que não impede, contudo, que se amplie sistematicamente, por exemplo, a competência legislativa concorrencial em benefício do Governo. O que significaria, aí também, por via indirecta, uma redefinição do equilíbrio de poderes entre Assembleia da República e Governo.
O Sr. Presidente: - Há mais coisas na Terra do que aquelas que aparecem no texto constitucional. Apesar de tudo!
O Sr. António Vitorino (PS): - Graças a Deus! O que pretendeu foi excluir o Presidente da República do livre arbítrio do legislador comum, evitando que por essa via o Presidente da República tivesse que exercei competências para além daquelas que o legislador constitucional lhe conferiu.
O Sr. Presidente: - Estamos de acordo. Foi isso mesmo, claro.
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O Sr. António Vitorino (PS): - Quanto à explicação tranquilizadora de V. Exa., nunca tive dúvidas de que só pudesse ser essa a interpretação do PSD. Mas acho que este debate tem sempre vantagens quando alguém faz o papel de cardeal-diabo. Costuma ser o Sr. Deputado José Magalhães. Ousei eu, hoje, fazer esse papel.
O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado José Magalhães faz de cardeal-diabo, ou apenas de bispo? Não sei. bem! Depende!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Da maneira como alguns Srs. Deputados aludem a isto, eu julgaria que fazia o papel do Diabo-ele-próprio ...
Risos.
Mas acho injustíssimo, como é óbvio.
O Sr. Presidente: - Às vezes é verdade, nem sempre.
O Sr. Almeida Santos (PS): - O diabo é apenas um anjo caído, mas ele nem caído pode ser anjo!
O Sr. Presidente: - Anjo é que ele não é! Risos.
Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Tudo o que o Sr. Deputado Rui Machete afirmou acabou por abranger não só a pergunta do Sr. Deputado Amónio Vitorino como também a do Sr. Deputado José Magalhães, que tinha uma preocupação fundamental em relação à dilucidação do que seria esta forma dupla que introduzimos no nosso projecto. O Sr. Presidente já explicou; no meu entender nunca poderia a lei criar oportunidades de desenvolvimento de novos órgãos ou novas competências nos termos que o Sr. Deputado António Vitorino refere. Efectivamente, quando nós referimos nos termos da Constituição e da lei, temos implícito, claramente, a subordinação da segunda à primeira, nomeadamente tendo em conta a própria estrutura rígida das normas atributivas de competências. É difícil desenvolver, num sentido reprodutivo, competências ao nível legislativo que não estejam previstas na Constituição. Eu diria - neste caso, recorrendo ao hábito do Sr. Presidente, deputado Rui Machete, em citar termos alemães - que as normas de competência se referem mais a um Kõnnen do que a um Durfen; não seria perigoso deixar cair o termo "lei"!
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Depois daquela troca de impressões, há pouco, com a Sra. Deputada Assunção Esteves, pensei ser ainda oportuno intervir sobre este ponto e, se fosse possível conseguir captar a atenção do Sr. Presidente Rui Machete, congratular-me-ia com isso. Pelo seguinte: na decorrência da troca de impressões entre os Srs. Deputados António Vitorino e Rui Machete, o Sr. Presidente admitiu, como atitude final e à guisa de conclusão, a possibilidade de cair, no caso sub judice, a referência à lei como modo de exercício da soberania - com isso nos congratulamos, evidentemente.
O Sr. Presidente: - Não é à lei como modo de exercício da soberania, porque é um modo de exercício de soberania - mas apenas aqui, neste artigo.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Exacto, mas é a isso que nos estamos a reportar.
Há ainda uma outra questão que eu gostaria de voltar a trazer à colação: é a circunstância de o PSD, nesta nova formulação, entender que o povo exerce a soberania através de representantes. Donde se põe a questão, já indirectamente aflorada na intervenção do Sr. Presidente Rui Machete, de saber se toda a manifestação de soberania é susceptível de ser exercida através de representantes - parece que não. Justamente, há órgãos de soberania que são insusceptíveis dessa forma de representação - é o caso dos tribunais, que, não sendo órgãos do poder político, não permitiriam a representação. Salvo se não estivéssemos aqui a utilizar o conceito de representação naquela acepção material a que a nossa Constituição alude, e que é, plenamente, uma representação em sentido democrático; salvo se estivéssemos a utilizar a designação representação, por exemplo, no sentido de Cari Schmidt - que é uma representação existencial, mas que não faz qualquer apelo à necessidade de que essa representação tenha natureza de representatividade democrática. Porque não é isso! Obviamente, Sr. Presidente, não é isso. Parece que o PSD está ínsito numa contradição: a de persistir na ideia de que toda a soberania se exerce através de representantes. Ora, basta ler o artigo sobre os tribunais, quando se diz que a justiça é exercida em nome do povo - aqui o conceito não é de representação democrática, seguramente.
O Sr. Presidente: - E o que é? Já agora, tenho uma certa curiosidade de saber como é que se explica, em termos dogmáticos.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Eu dir-lhe-ia que também eu próprio terei alguns embaraços em entrar numa definição conceptual adequada, mas penso que a nossa Constituição resolveu isso. E resolveu-o da melhor maneira ao definir no artigo 111.°, na versão actual, que o poder político pertence ao povo. Este sentido de pertença do poder político ao povo cria um vínculo quanto à natureza democrática, pela qual esse poder político se exprime - acerca disso, nenhumas dúvidas haverá na articulação desta disposição com a do artigo 3.° Donde parece poder concluir-se que, mesmo não apenas para a questão suscitada há pouco pelo Sr. Deputado António Vitorino, mas para a questão de saber qual o modo de exercício da soberania, tudo ficaria mais claro se nos mantivéssemos dentro do esquema inicialmente definido para o artigo 111.° e não introduzíssemos estas dúvidas acerca do alcance do conceito de representação. Porque, a partir daqui, talvez outras intervenções menos ajustadas pudessem começar a fazer alguma escola por aí.
O Sr. Presidente: - Embora num momento crucial deste interessante debate, que rapidamente poderemos ultrapassar, chegámos às 20 horas, portanto propunha que interrompêssemos para recomeçar a partir das 21 horas e 30 minutos, de acordo com o combinado.
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O Sr. José Magalhães (PCP): - Gostaria apenas que se clarificasse qual o objecto dos trabalhos. Deixámos em suspenso, em atenção ao interesse especial de V. Exa. pelo artigo 108.°, esse preceito. Mas os trabalhos do Plenário amanhã envolverão também dois dos Srs. Deputados que mais se dedicaram a esta questão, designadamente o Sr. Presidente Rui Machete e o Sr. Deputado Octávio Teixeira. Isso levaria a que deixássemos esse artigo em suspenso, prosseguíssemos, então, a reflexão sobre as propostas atinentes à organização do poder político. O artigo 108.° poderia ser apreciado terça-feira à tarde.
O Sr. Presidente: - Se o Sr. Deputado Octávio Teixeira pudesse estar hoje presente resolveríamos o problema do artigo 108.°
O Sr. António Vitorino (PS): - Pedia escusa, Sr. Presidente. Gostaríamos que o Sr. Deputado João Cravinho estivesse presente e já não temos, neste momento, occasio...
O Sr. Presidente: - Então, será uma espécie de reunião da Comissão de Economia, Finanças e Plano em sede de revisão constitucional.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Creio que será positivo.
O Sr. Presidente: - Nesse caso, penso que não poderemos deixar de corresponder a essa solicitação - prosseguiremos na análise destas questões dos princípios gerais da organização do poder político.
Srs. Deputados, está suspensa a reunião.
Eram 20 horas.
Srs. Deputados, está reaberta a reunião.
Eram 22 horas e 10 minutos.
Vamos passar à análise do artigo 112.°, que suspeito que vai ser rápida, na medida em que existe apenas uma proposta de eliminação por parte do CDS. Este preceito, como VV. Exas. sabem, refere-se à participação política dos cidadãos.
Acontece, porém, que o CDS não pode justificar essa sua proposta por não se encontrar presente, pelo que poderíamos passar à sua análise imediata caso haja algum pedido de intervenção.
Entretanto, no respeitante ao posicionamento dos partidos políticos face a esta matéria, poderei já adiantar que a posição do PSD é no sentido da manutenção do artigo 112.°
O Sr. Almeida Santos (PS): - A nossa posição também é essa.
O Sr. Presidente: - Tem, então, a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, temos a mesma opinião.
O Sr. Presidente: - Seguidamente, temos o artigo 113.°, em relação ao qual não há propostas de alteração. O mesmo se passa quanto ao artigo 114.°
Situamo-nos agora perante o artigo 115.°, que tem um número mágico e cuja epígrafe é "Actos normativos". Nesta matéria, existem propostas de alteração por parte do CDS, do PCP, do PS e do PSD e por vários Srs. Deputados subscritores de um projecto de lei de revisão constitucional autónomo.
Iríamos então começar por solicitar ao Sr. Deputado José Magalhães a justificação da proposta de alteração apresentada pelo PCP.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Entendemos que o esforço que foi desenvolvido, no quadro da primeira revisão constitucional, no sentido de introduzir aperfeiçoamentos nesta disposição basilar da Constituição que dá concretização a alguns princípios fundamentais integrantes do quadro caracterizador do nosso Estado de direito democrático, deve ser prosseguido nesta segunda revisão.
O preceito, na sua conformação, suscita numerosíssimos problemas de interpretação e as "obras" que propomos situam-se em diversos planos.
A inovação mais importante está certamente no facto de propormos que se quebre o princípio de igualdade de valor entre leis e decretos-leis, com vista a estabelecer a supremacia legislativa das leis da Assembleia da República (artigo 115.°, n.° 2).
Por outro lado, em convergência com as ideias constitucionais de outros partidos, o PCP introduz a ideia da criação de uma outra categoria de actos normativos, a que chamámos leis de valor forçado (artigo 115.°-A, n.° 1), que visa estabelecer entre as normas constitucionais e as normas ordinárias uma realidade intermédia, com um valor estruturante. A definição proposta pelo PCP tem um cunho material, ou seja, não definimos esse novo tipo de leis por via de uma qualquer qualificação da maioria necessária para a sua aprovação.
A problemática daquilo a que o PS chama de leis para constitucionais é mais complexa e em parte um mistério. O PS visa, segundo parece, a transfusão de conteúdos constitucionais para leis ordinárias sujeitas a aprovação por maioria qualificada. Não me deterei, neste momento, nesta matéria. É naturalmente um aspecto fulcral a ponderar, qualquer que seja o seu papel, não só nas noções de actos normativos dos diversos partidos políticos, como até na sua própria concepção do processo de revisão constitucional.
No caso do PS, a proposta terá mais a ver com uma estratégia de revisão constitucional do que com uma concepção "pura" da teoria dos actos normativos...
O Sr. Presidente: - Uma concepção kelseniana!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Mesmo em noite de São João, fazer aproximações entre o Sr. Deputado António Vitorino e Kelsen parece-me francamente abusivo para ambas as partes!
O Sr. Presidente: - Não, Sr. Deputado. De facto, o que é interessante é ver V. Exa. a citar Kelsen sufragando as suas teses!
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O Sr. José Magalhães (PCP): - Era só uma forma de aludir ao facto de o PS não ter, certamente, preocupações de "teoria pura" kelseniana. Parece-me extremamente difícil mesmo em sede de revisão constitucional, Sr. Presidente!
O Sr. Presidente: - Também julgo isso, Sr. Deputado.
O Sr. José Magalhães (PCP): - A terceira grande inovação proposta pelo PCP visa clarificar a supremacia hierárquica das leis de bases sobre os decretos-leis de desenvolvimento. É sabido que há quem se interrogue sobre se é sustentável a própria ideia de uma supremacia hierárquica das leis de bases (dada a tipicidade das competências dos órgãos de soberania envolvidos, que poderia ser alterada a favor da Assembleia se esta, através de sucessivas leis de bases, fosse circunscrevendo o Governo a um campo de acção cada vez mais pequeno). Numa certa leitura, só haveria supremacia das leis de bases relativas a matérias da competência reservada da AR. Ao que é replicável que por essa via se deixaria sem sentido e deveras redundante o princípio da superioridade (que só existiria quando ditado por outro princípio - o da repartição de competências - e inexistiria fora desse quadro!). Para que serviria o princípio da hierarquia quando a superioridade da lei só existiria em matérias reservadas (por força do princípio da competência)?!
A primeira revisão restringiu com este artigo 115.°, n.° 2, os poderes legislativos do Governo (cuja vastidão é uma herança da Constituição de 1933!).
Partindo da ideia de que a supremacia hierárquica das leis de bases existe e tem significado próprio, o PCP propõe três cautelas aperfeiçoadoras: a primeira consiste na definição do que sejam leis de bases (artigo 115.°, n.° 4); a segunda visa enquadrar o desenvolvimento legislativo, estabelecendo a regra segundo a qual o desenvolvimento de um acto normativo como é a lei só por outro acto normativo pode ser efectuado (artigo 115.°, n.° 5); a terceira cautela traduz-se na fixação de um prazo para o desenvolvimento e regulamentação das leis de bases (e das leis em geral). É o que decorre do artigo 115.°, n.° 6.
Chamo a atenção para o facto de no artigo 277.°, n.° 3, procurarmos dar resposta ao gravíssimo problema suscitado pelo facto de a Constituição não atribuir nem ao Tribunal Constitucional nem aos tribunais administrativos a fiscalização dos casos em que haja desconformidade entre os diplomas de desenvolvimento (ou outros subordinados) e o parâmetro legal superior. É realmente indispensável definir a quem cabe fiscalizar a ilegalidade desses diplomas. Propomos que essa função caiba ao Tribunal Constitucional (que já controla hoje a ilegalidade dos diplomas com incidências regionais). É matéria sobre a qual esse Tribunal se vem debruçando (embora os acórdãos proferidos incidam sobretudo sobre questões de relações direito internacional/direito interno - cf. acórdãos n.ºs 24/85, 41/85, 67/85 e 66/85).
Em quarto lugar, propomos que se clarifiquem as competências das assembleias regionais das regiões autónomas quanto ao desenvolvimento legislativo das leis de bases. Prevê-se, assim, que esse desenvolvimento legislativo, em matérias (e apenas nessas) de interesse específico regional que não se incluam na reserva legislativa da República, possa ter lugar por via de decreto legislativo regional (apenas mediante decreto legislativo regional e não por decreto regulamentar regional). Esta haveria de ser uma competência exercida pelas assembleias regionais, num condicionalismo específico e devidamente enquadrado. Seria, por isso, insusceptível de ser exercida, a qualquer título, pelos governos regionais das regiões autónomas. É uma solução que merece aturada ponderação, uma vez que envolve opções bastante melindrosas. Acima de tudo visa suscitar uma reflexão adequada sobre a realidade legislativa das regiões autónomas, isto é, sobre os poderes específicos das assembleias regionais, os limites do respectivo poder legislativo e a reflexão sobre o que sejam, aliás, as próprias leis gerais da República. A nossa proposta é, nesta matéria, um início de meditação. Estamos disponíveis para considerar as diversas implicações do problema.
O quinto e último aspecto respeita aos contornos do poder regulamentar. O preceito cuja consagração propomos visa dar resposta a algumas das dificuldades que a redacção actual suscita. Os n.ºs 2 e 3 do nosso artigo 115.°-B reproduzem dois preceitos hoje vigentes: os n.ºs 6 e 7 do actual artigo Í15.°
A inovação consiste em prever expressamente que deve ser a Assembleia da República a definir os órgãos ou entidades dotadas de poder regulamentar. Sabe-se o que seja o poder regulamentar, mas, em todo o caso, o conjunto das entidades, a elencagem de entidades investidas em tal poder, os contornos dele, suscitam dúvidas conhecidas.
Sr. Presidente, em sede de apresentação sumaríssima de propostas de grande complexidade é tudo o que, neste momento, se me oferece dizer.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, foi verdadeiramente uma apresentação ática.
O Sr. António Vitorino (PS): - (Por não ter f alado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado António Vitorino, vai ser possível porque isso aumentará a confusão.
Vozes.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, nesta sequência de pedidos de intervenção temos agora a vez do PS.
Tem então a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Presidente, tenho uma sugestão a formular, que é a seguinte: antes de mais, sugeria que não se discutisse a problemática das leis para constitucionais. Se, entretanto, elas vierem a ser aprovadas no lugar próprio, naturalmente que se justificará a sua menção; se isso não acontecer, é evidente que as estamos, nesta sede, a discutir inutilmente.
Se elas vierem a ser aprovadas, têm de se incluir entre os actos normativos. Igualmente se tem de consagrar, dada que é essa a sua natureza, que as leis e os decretos-leis se subordinam hierarquicamente às leis para constitucionais. É, aliás, essa a sua principal justificação, ou uma delas.
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Além disso, damos, de algum modo, consagração às leis de bases gerais dos regimes jurídicos. E propomos no final desse n.° 2 a seguinte formulação: "[...] ainda que em matérias que não sejam da exclusiva competência da Assembleia da República."
As leis de bases gerais passariam a ter mais claro assento constitucional.
No novo n.° 6 do artigo 115.°, ora proposto, referimos que a regulamentação das leis aprovadas pela Assembleia da República, sob matéria da sua competência exclusiva, e só esta, seria feita por decreto-lei. Compreende-se, aliás, que assim seja, para que a Assembleia da República possa ter a possibilidade de exercer controle, por via de ratificação, da maneira como o Governo regulamenta as leis da sua competência exclusiva.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, este artigo 115.° é obviamente um preceito que envolve questões delicadas de alto tecnicismo.
Entretanto, limitar-me-ia a referir o que é que o PSD propôs ou inovou. De facto, não sugeriu alterações aos n.ºs 1, 2 e 3. Propomos, assim, a supressão da definição de leis gerais da República, embora a nossa proposta de eliminação não seja isenta de dúvidas. E apresentamo-la porque a definição que aponta para um conceito material de lei suscita muitas dificuldades e dúvidas, sobretudo quando em função dessa classificação se pretende estabelecer uma hierarquia de normas. Nós sabemos que a matéria relativa à competência legislativa das regiões autónomas é uma matéria que ainda está insuficientemente amadurecida na doutrina e na jurisprudência em Portugal, mas a forma como a Constituição resolveu o problema não nos parece ser a melhor, e inclusivamente ela é lábil e permite facilmente encontrar, e até criar, muitas situações de incerteza por actos do próprio comportamento dos órgãos, quer centrais, quer regionais. Dizemo-lo, todavia, com a humildade suficiente para reconhecer que é uma matéria delicada, na qual um conceito operacional claro poderia ser útil, mas que não nos parece que este, tal como é aqui apresentado no n.° 4 do artigo 115.° actual, tenha essa característica. Depois apresentamos algumas modificações no que diz respeito ao preceito que proíbe a criação de outras categorias de leis, designadamente proíbe a chamada "deslegalização". Parece-nos que este preceito é importante, na medida em que visa contrariar uma prática que foi muito frequente na forma descoordenada e anárquica como a produção normativa se veio a fazer em Portugal, antes e depois do 25 de Abril, mas tem alguns problemas, isto é, a forma como está feita esta proibição no n.° 5 actual tem alguns problemas que pretenderíamos evitar. O primeiro e o mais macroscópico e que justifica a parte final do nosso preceito é a circunstância de, não raras vezes, diria mesmo muito frequentemente, se incluírem numa lei ou num decreto-lei artigos, preceitos, que têm uma natureza nitidamente regulamentar. Não se faz, como deveria fazer-se, a separação nítida entre as leis e os decretos regulamentares e não se afirma por uma forma clara essa sua natureza, mas a verdade é que em múltiplos casos aparecem, de uma forma que do ponto de vista interpretativo não deixa lugar a dúvidas, regulamentos que acompanham e têm a mesma categoria das leis, porque revestem a forma de lei, e não raras vezes aparecem problemas práticos com alguma dificuldade. E justamente pretendemos encontrar uma fórmula de simplificar as coisas, autorizando que nesses casos, se houver normas materialmente regulamentares, elas possam ser objecto de um tratamento de acordo com a sua natureza e portanto permitir-se uma deslegalização, desde que, naturalmente, seja autorizada pela Constituição essa deslegalização. Reconhecemos também que aqui se trata de um ponto delicado. Recordo que alguns dos Srs. Deputados têm chamado a atenção para a experiência constitucional espanhola, esta, como poderão ver em Garcia de Enterría, no seu Tratado de Direito Administrativo, é claramente no sentido de permitir a deslegalização, até, a nosso ver, de uma forma demasiado extensa. Gostaríamos de a limitar, mas em termos práticos existem problemas que todos os que têm alguma experiência da vida política e administrativa sabem que são incómodos e que muitas vezes geram algumas dificuldades sérias. A nossa proposta constitui uma tentativa prudente de encontrar uma solução de compromisso.
A outra questão diz respeito à circunstância de, tal como se encontra redigida esta norma do n.° 5, ela excluir que se possam conferir ou possa haver actos de outra natureza que não actos legislativos que tenham a possibilidade de interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer preceito. Parece-nos que se foi longe de mais, porque, sobretudo, isso não só ilegaliza os assentos, o que é uma matéria discutível, sobre a qual naturalmente podemos ter opiniões muito diversas, mas, tomada no seu sentido literal e sem uma interpretação hábil, ela vai ao ponto de criar dificuldades à decisão judicial e particularmente à decisão judicial passada em julgado. É manifestamente expressivo, porque é óbvio que os actos jurisdicionais interpretam e com eficácia externa integram as normas e, nos casos do Tribunal Constitucional, até, de algum modo, embora não revoguem, obviamente que interpretam e integram e de algum modo até modificam em certos e determinados termos a maneira como se hão-de entender as normas que são objecto da sua análise. Isto para dizer que também aqui gostaríamos de introduzir uma precisão técnica. E essa precisão técnica foi sugerida que fosse realizada através da referência a actos normativos de outra natureza e não apenas a actos de outra natureza. O adjectivo "normativos" tem aqui um preciso efeito: o de excluir esse problema de interpretação e da integração e eventualmente certos aspectos ligados até à modificação dos actos normativos no exercício das funções próprias do poder jurisdicional.
Seguidamente, o n.° 5 é igual ao n.° 6 da actual redacção. No n.° 6 da nossa proposta, que reproduz o n.° 7 actual, há uma supressão no que diz respeito à competência objectiva para a emissão dos regulamentos. Na verdade, se os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar, no caso dos regulamentos independentes isso não tem sentido, não nos parece necessário, e parece-nos até um pouco confusa esta ideia da indicação da competência objectiva para a sua emissão. A competência subjectiva, essa, obviamente que sim, portanto abrangendo os regulamentos dependentes e os independentes. Também nada do que estamos a discutir, sendo, como é, uma matéria de extrema importância para o correcto funcionamento do ordenamento jurídico, constitui uma questão que vá criar, ao que supomos, uma suma con-
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trovérsia em termos de se tornar um ponto quente da revisão constitucional. Tratam-se de precisões técnicas, e estas propostas mais não visam que introduzir aperfeiçoamentos, melhorias, mas, reconhecemo-lo com toda a humildade, neste domínio o nosso grau de convicção não é tão profundo que não aceitemos facilmente a contradita e com isso poder melhorar as propostas, se houver críticas construtivas nesse sentido. Uma última observação ainda queria fazer no que diz respeito à questão da supressão da definição de leis gerais da República. Procurámos de algum modo minimizar as consequências dessa supressão, que é uma supressão da definição.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Mantendo o artigo 229.°?
O Sr. Presidente: - Mantendo o artigo 229.°, alínea a), um certo conceito tipo.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Só que não se sabe o que é.
O Sr. Presidente: - Bem, repito, a dificuldade é que a definição que é dada também ela não elimina as questões interpretativas e suscita outras, podendo permitir, como dizia há pouco, algumas manipulações complicadas.
O Sr. Almeida Santos (PS): - De qualquer modo redu-las.
O Sr. Presidente: - Isso é o quod erat demonstrandum. Mas, enfim, veremos se assim é.
O Sr. José Magalhães (PCP): - O Sr. Presidente não tenciona apresentar as propostas dos outros deputados do PSD sobre a última matéria que acabou de
referir?
O Sr. Presidente: - Não, e por uma razão simples: como V. Exa. compreenderá, embora tivesse muito gosto em gerir os negócios dos meus colegas de bancada que tiveram a iniciativa de contribuir para a revisão constitucional apresentando um projecto autónomo e portanto enriquecendo a discussão, a verdade é que esse projecto de algum modo me foi alheio e só na base de uma indicação específica me permitiria fazê-lo.
Posta esta explanação por parte do PSD, julgo que podemos entrar na matéria.
Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.
O Sr. António Vitorino (PS): - Também tinha algumas perguntas para V. Exa., mas começarei pelo Sr. Deputado José Magalhães.
Antes de colocar as questões ao Sr. Deputado José Magalhães gostava de fazer uma declaração de humildade e de homenagem. Uma declaração de humildade, porque também eu partilho as reservas e as cautelas que o Sr. Deputado Rui Machete acabou de exprimir quanto ao tratamento desta questão. E a declaração de homenagem para recordar que este normativo, que é um dos mais importantes da Constituição e que foi acrescentado na revisão de 1982, teve o sábio contributo do Prof. Jorge Miranda, que foi o seu autor material. Infelizmente, hoje esta Comissão não pode contar com o seu sempre valioso conselho. A opinião do Prof. Jorge Miranda muito contribuiria decerto para o esclarecimento das questões que em torno do artigo se podem colocar sob o ponto de vista doutrinário e também sob o ponto de vista do que foi a sua aplicação prática.
O Sr. Presidente: - Estou certo de que, todos nós nos associamos a essa justa referência à notável contribuição do meu grande amigo Jorge Miranda neste e noutros pontos da Constituição.
O Sr. António Vitorino (PS): - Por uma questão de lógica sistemática, penso que era preferível analisar em primeiro lugar as implicações deste artigo no que diz respeito a actos legislativos e actos regulamentares da República, deixando para um segundo momento a análise específica das competências legislativas e regulamentares dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas, porque se trata de matéria não só mais complexa, mas também de âmbito distinto.
O projecto do PCP é um projecto que pretende responder a algumas das questões que a prática constitucional tem vindo a colocar. A apresentação que o Sr. Deputado José Magalhães fez do projecto foi verdadeiramente uma apresentação, não diria misteriosa, não iria vingar-me dessa maneira, mas muito preliminar, porque deixou no escuro algumas das intenções da proposta do PCP que me parecem intenções que, se forem assumidas, devem merecer a sua devida explicitação e ponderação. Começando, por exemplo, pelo n.° 2 do projecto do PCP: "os decretos-leis não podem contrariar as leis, salvo autorização legislativa". Independentemente de considerar que a técnica jurídica deste n.° 2 não é muito clara, este n.° 2 pretende, aparentemente, substituir aquilo que é hoje um princípio genérico, que o n.° 2 actual acolhe, isto é, que as leis e os decretos-leis têm igual valor, sem prejuízo da existência de casos que a Constituição identifica neste artigo 115.° utilizando prudentemente o conceito de subordinação. O n.° 2 que o PCP propõe é, salvo melhor opinião, um número revolucionário naquilo que diz respeito à alteração da lógica de repartição de competências entre órgãos de soberania. E que, sendo, na sua aparência, um número que tem a ver com a temática da hierarquia dos actos legislativos, é, sobretudo, um número que tem a ver, isso sim, com o âmbito da competência legislativa da Assembleia da República e do Governo, designadamente da chamada "competência concorrencial", porque, ao consagrar-se um critério em que os decretos-leis estão, todos eles, subordinados às leis, salvo o caso das autorizações legislativas, cuja referência aqui me parece carecer de algumas precisões, teríamos que sobre as mesmas matérias, em relação às quais o Parlamento e o Governo têm competência concorrencial, sempre se teria que concluir, à luz da interpretação que faço deste número, que uma matéria da competência concorrencial entre os dois órgãos de soberania que fosse tratada por lei da Assembleia da República, lei em sentido formal, só poderia vir a ser alterada, modificada, suspensa ou revogada pelo mesmo instrumento legislativo em termos hierárquico-normativos e em termos de competência subjectiva,
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isto é, por outra lei formal da Assembleia da República. Isto introduz uma alteração de grande fôlego e alcance no domínio da repartição de competências entre órgãos de soberania. A fazer vencimento a proposta do PCP, a competência concorrencial entre o Governo e a Assembleia sairia assinalavelmente modificada, o que afastaria progressivamente o nosso sistema legislativo do modelo, apesar de tudo original, que vigora em Portugal desde a Constituição de 1933 e que a Constituição de 1976, no essencial, recolheu, e que o aproximaria, progressivamente e algo cautelarmente, mas irreversivelmente, dos modelos de repartição de competências legislativas vigentes nos restantes países da Europa Ocidental, onde há uma manifesta prevalência da lei parlamentar, onde as matérias legislativas devem ser objecto de lei parlamentar e onde o exercício de poderes legislativos por parte do Governo é manifestamente excepcional e depende ou de autorizações legislativas ou do chamado "estado de necessidade", ou do chamado "estado de urgência", para emissão de decretos-leis sobre matéria parlamentar, sujeitos, em vários regimes, a diferentes formas de ratificação a priori ou a posteriori por parte da instância parlamentar. O n.° 2 proposto pelo PCP abre uma porta para expandir aquilo que passará a ser progressivamente considerado reserva de competência de facto da Assembleia da República e para diminuir progressivamente o que seja competência concorrencial entre a Assembleia e o Governo, hoje em dia susceptível de ser livremente utilizada a cada momento pelo Governo. Já sei que me irão argumentar que se trata de uma medida de protecção de actos legislativos do órgão que detém o primado legislativo, que é a Assembleia da República, para evitar a sucessão de actos revogatórios mútuos a que pode dar origem a própria natureza da competência concorrencial. Esse é, de facto, um dos efeitos úteis, benéficos, de uma medida do género da que propõe o PCP. Seja como for, parece-me que consagrar a solução do PCP, no sentido do progressivo esvaziamento da competência concorrencial, não pela via de uma decisão assumida de alteração da repartição de competências entre órgãos de soberania, mas pela via de um critério hierárquico-normativo sujeito a decisões meramente casuais, é deixar um pouco ao sabor de cada momento e sobretudo à vontade de cada legislador majoritário no Parlamento a possibilidade de progressivamente, através de uma actividade legislativa permanente da AR, ir subtraindo à reserva de competência concorrencial matérias cada vez mais vastas, que hoje em dia podem ser objecto de actos legislativos quer do Parlamento quer do Governo, prevalecendo aí sempre o critério lex posterior, anterior derrogai criando uma espécie de "reserva adicional" da AR preenchida casuisticamente. Quanto ao n.° 2 são estas as observações que me parecem necessárias, quanto mais não seja para esclarecer se era este de facto o desiderato pretendido pelos proponentes, se subscrevem tudo o que disse sem limite ou se entendem que há limites ou que deve haver limites. O limite das autorizações legislativas é que não vejo como é que pode funcionar, na medida em que aparentemente haveria autorizações legislativas que permitiriam que os decretos-leis de uso dessas autorizações contrariassem as leis parlamentares sobre matérias de competência concorrencial já anteriormente objecto de lei formal. É uma mecânica...
O Sr. José Magalhães (PCP): - A sua objecção está a referir-se ao n.° 3?
O Sr. António Vitorino (PS): - Não, não é ao n.° 3, estou a referir-me ao n.° 2.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Refere-se ainda ao n.° 2?
O Sr. António Vitorino (PS): - Ainda ao n.° 2, ou seja, os decretos-leis só poderiam contrariar as leis parlamentares anteriores sobre as mesmas matérias se houvesse autorização legislativa bastante para o efeito, o que significa que os autores devem ter pretendido, especulo, mas penso que é o que faz sentido, é que...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas especula sob controle.
O Sr. António Vitorino (PS): - Aliás, essa é a minha actividade preferida: especular sob controle... O que significa que o PCP o que pretende é transferir casualmente certas matérias que hoje integram a competência concorrencial para a chamada "esfera de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República", portanto ao referirem, na vossa proposta, "salvo autorização legislativa" isso significa que todas as matérias uma vez objecto de lei da Assembleia da República que hoje em dia podem ser consideradas como tendo natureza concorrencial entre o Parlamento e o Governo, passariam ipso facto a integrar a reserva relativa de competência legislativa do Parlamento. É, portanto, uma norma expansiva da reserva de competência relativa da Assembleia da República, de progressivo alargamento da reserva relativa de competência da AR e de progressivo esvaziamento da competência concorrencial entre o Governo e a Assembleia da República.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Os decretos não podem contrariar as leis, salvo se houver uma lei que autorize que um decreto concreto altere uma lei. É isto?
O Sr. António Vitorino (PS): - Não pode ser. O Sr. Almeida Santos (PS): - É o que está cá.
O Sr. António Vitorino (PS): - Também aceito que essa interpretação seja possível, só que já estava na minha interpretação a tentar dar, não direi uma porta, mas uma portinhola de saída à proposta do PCP,...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Ou alguma janela no último andar...
O Sr. António Vitorino (PS): - ... no sentido de admitir que, a valer a minha interpretação de que isto é uma operação de transferência de matérias da competência concorrencial para a competência reservada da Assembleia da República, o PCP não integra as matérias transferidas para a reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República, mas apenas, moderato cantabile, para a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.
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Aqui está uma consequência revolucionária do n.° 2 da proposta do PCP que o Sr. Deputado José Magalhães não sublinhou na apresentação da proposta que sublinhei apenas porque não gosto naturalmente de, em matéria de questões revolucionárias, deixar os trunfos do PCP por mãos alheias.
Relativamente ao n.° 4, o PCP diz: "São leis de bases as que, pelos limites expressa ou implicitamente estabelecidos à definição dos respectivos regimes jurídicos, careçam de ulterior desenvolvimento legislativo." A expressão utilizada, em meu entender, é um esforço positivo, na medida em que um dos grandes problemas do nosso sistema legislativo é a inexistência de uma noção precisa do que seja uma lei de bases, donde derivam diversas confusões entre leis de bases e leis quadro, por exemplo, e sobre as matérias que devem ser concebidas como integrando uma lei de bases e aquelas que devem ser consideradas como integrantes de uma lei comum, ainda que carecida de regulamentos de execução subsequentes. Contudo, se o PCP tivesse dito que são leis de bases as que pelos limites expressamente estabelecidos à definição dos respectivos regimes jurídicos careçam de ulterior desenvolvimento legislativo, eu perceberia sem dificuldade qual o efeito útil da tentativa, o qual seria o de responsabilizar o legislador no sentido de identificar as leis de bases como tais e dizer só é lei de bases aquela que expressamente se assuma como tal. O que é perturbador no n.° 4 da proposta do PCP é a expressão "implicitamente estabelecido", porque, salvo melhor opinião, isto será deixar à interpretação urna enorme latitude de determinação do que é e não é lei de bases e em última instância é esta definição proposta pelo PCP ao relevar o critério do juízo implícito que faz com que, em potência, todas as leis possam vir a ser consideradas leis de bases, na medida em que todas as leis carecerão de execução e a fronteira entre o que deve ser executado por via legislativa e o que deve ser executado por via regulamentar é frequentemente uma fronteira extremamente ténue. Portanto, o "implicitamente" introduz um alto factor de imponderabilidade, que permitirá que o intérprete com relativa facilidade venha a incluir como leis de bases um conjunto de leis que eventualmente deveriam ser consideradas como leis comuns, apenas carecidas de ulterior desenvolvimento através de decretos-leis complementares, ou sobretudo através de regulamentos de execução.
Isto entronca no n.° 5 que o PCP propõe, naturalmente coerente com o esforço do n.° 4, e que é do seguinte teor: "O desenvolvimento legislativo das leis de bases pode ser efectuado por decreto-lei ou, em matérias de interesse específico regional não incluídas na reserva legislativa da República, por via de decreto legislativo regional." Deixemos cair as regiões autónomas por um momento e consideremos só o primeiro segmento: "O desenvolvimento legislativo das leis de bases pode ser efectuado por decreto-lei." O que me parece que o PCP pretende aqui consagrar é uma reserva de lei ou uma reserva de acto legislativo, para todo e qualquer desenvolvimento das leis de bases, e a única conclusão possível é em face de reclamação do preceito que essa reserva vigorará mesmo tratando-se de matéria regulamentar, isto é, mesmo em matéria de natureza regulamentar que seja desenvolvimento de uma lei de bases, esse desenvolvimento deverá ser feito através da forma de decreto-lei. É a conclusão prática que resulta deste preceito, ou seja, há uma ampliação da esfera de acto legislativo abrangendo mesmo matérias materialmente regulamentares desde que se trate de desenvolvimento de lei de bases, o que comporta naturalmente algumas consequências complexas em matéria de impugnabilidade dos normativos em causa, que é questão a que iremos dedicar a necessária atenção quando abordarmos os normativos que se referem à problemática da impugnabilidade dos regulamentos. Aparentemente, o PCP optou aqui por uma solução que dá uma prevalência absoluta ao critério hierárquico-normativo sobre o critério da repartição de competências entre órgãos de soberania.
Ora, a lógica e a filosofia das leis de bases são mais tributárias, em meu entender, do critério da repartição de competências entre órgãos de soberania do que do critério hierárquico-normativo, isto é, as leis de bases não são um mero instrumento legal, são uma forma legislativa de a Assembleia da República definir em determinadas matérias aquilo que reserva para si, para a sua esfera de competência, como matéria objecto de acto legislativo, e aquilo que relega, sem menosprezo, para o Governo em termos de desenvolvimento dessas leis de bases, escolhendo o Governo a via legislativa ou a via regulamentar em função da natureza dos normativos que devam complementar essa lei de bases. Pergunto-me se não será excessiva esta imposição de forma de decreto-lei para todo e qualquer acto de desenvolvimento de lei de bases, mesmo que esse acto recubra matérias de natureza meramente regulamentar. O PS tem no seu projecto uma solução inspirada no mesmo tipo de preocupações, no seu n.° 6, mas apenas reserva para o desenvolvimento sob a forma de decreto-lei a regulamentação de leis aprovadas pela Assembleia da República sobre matéria da sua reserva absoluta de competência cepilativa. A crítica sobre as fronteiras entre o que é matéria legislativa e matéria regulamentar também pode ser feita em relação ao n.° 6 do artigo 115.° do projecto do PS, mas apesar de tudo parece-me mais coerente que reconheçamos uma força expansiva a actos legislativos (aos decretos-leis) que versam sobre as matérias de mais dignidade do sistema legislativo português, que são aquelas que são objecto da reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República, do que apenas reconhecer essa força expansiva aos decretos-leis de desenvolvimento de leis de bases, que até nem versam, por exemplo, sobre matéria de reserva de competência exclusiva da Assembleia da República. Reconheço que a proposta do PS também tem as suas dificuldades, mas apesar de tudo, em termos de importância relativa das matérias sobre que versa, é mais defensável preconizar a expansão da cobertura legislativa em matéria da reserva de competência absoluta da Assembleia da República no desenvolvimento dessas leis do que a defender apenas para os decretos-leis de desenvolvimento das leis de bases, que versam sobre matérias que até não são da reserva absoluta da competência legislativa da Assembleia da República.
O Sr. José Magalhães (PCP): - O Sr. Deputado está a ter em atenção o que decorre do artigo 201.°, n.° 1, alínea c), da Constituição, na sua redacção vigente?
O Sr. António Vitorino (PS): - Vejamos o que diz.
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O Sr. José Magalhães (PCP): - Só para estabelecermos a margem entre a nossa inovação pérfida virtuosa e a Constituição vigente, embora suscitando esta ou aquela dificuldade interpretativa.
O Sr. António Vitorino (PS): - É evidente, só que o problema que existe aqui é o seguinte: através do artigo 201.°, n.° 1, alínea c), o que resulta é que o qualificativo sobre íeis de bases cabe à Assembleia da República, e a competência para desenvolver essas leis de bases cabe ao Governo. O que está em causa é a pretensão do PCP de que esse desenvolvimento seja sempre feito por acto legislativo, isto é, seja sempre feito por decreto-lei, e a circunstância de na cópia do projecto do PCP o desenvolvimento de uma lei sobre matéria da reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República poder ser feito parte por decreto-lei, parte por simples acto regulamentar.
É aqui que detecto, na minha humilíssima opinião, um certo desequilíbrio, o que não significa que a nossa proposta seja ela própria isenta das dificuldades que identifiquei em relação à do PCP.
Porém, parece-me que a força expansiva do acto legislativo, isto é, do decreto-lei nos casos em que se trata de regulamentação de leis sobre matérias da reserva absoluta de competência da Assembleia da República, me parece ser mais defensável do que no caso das meras leis de bases.
O n.° 6 do projecto do PCP também é interessante e corresponde a uma preocupação, que é, tanto quanto possível, a de estabelecimento de um prazo máximo de três meses para aprovar diplomas de desenvolvimento e regulamentos necessários à execução das leis. Contudo, creio que se trata de uma proposta que anuncia uma ária da A ida e acaba por apenas tornar audíveis uns vagos trinados em termos de eficácia prática. Isto porque a lógica da proposta seria compreensível se eventualmente ela cominasse uma sanção. Mas, sem sanção, trata-se de uma proposta em si mesma maximalista - três meses como prazo geral -, ou então um convite a que o Governo estabelecesse sempre prazos extensíssimos para a regulamentação das leis que via aprovadas, à semelhança do que já hoje se passa com as autorizações legislativas, e que não se pode deixar de considerar escandaloso, que os governos apresentem propostas de lei de autorização legislativa (acompanhadas às vezes do respectivo decreto-lei) com artigos finais que dizem, por um lado, que a lei de autorização entra imediatamente em vigor (prescindindo pressurosamente dos pobres cinco dias da vacatio legis) e que, simultaneamente, dizem que o uso da autorização poderá ser feito em longos 120 dias ou 180 dias. É um contra-senso e é ridículo, mas a verdade é que receio que a inexequibilidade de um preceito deste género sem sanção, como consta da proposta do PCP, seja um convite a que sistematicamente, em matéria de leis, os governos passem a pedir extensíssimos e escandalosíssimos prazos de regulamentação para evitarem a violação da Constituição pelo incumprimento do prazo de três meses, ainda que o incumprimento não acarretasse nenhuma consequência técnico-jurídica prática.
Claro está que o Sr. Deputado José Magalhães me dirá que isto se destina a impedir que certos governos recalcitrantes não regulamentem leis aprovadas por maiorias patrióticas na Assembleia da República.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Estou encantado pelo facto de o Sr. Deputado estar a dar respostas. Eu vou, rigorosamente, oferecer o mérito das suas respostas ...
O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Deputado José Magalhães, faço-o sem qualquer dificuldade, porque ao fim de o ouvirmos tantas horas nesta comissão até já consigo adivinhar o seu pensamento.
O problema que vejo nessa lógica do PCP é que este mecanismo acabará por ser apenas um espartilho (mais um!) para governos minoritários, isto é, teria como consequência prática o dificultar a vida a governos minoritários. Naturalmente que o Sr. Deputado José Magalhães tem sobre os governos minoritários um estado de desamor que em muito difere da maneira como eu encaro esses processos.
Só que não creio que seja muito defensável que se tente, por esta via, resolver um problema que é essencialmente um problema da responsabilidade política do Governo perante a Assembleia da República, que é o incumprimento por parte do Governo de obrigações de desenvolvimento legislativo ou regulamentar cometidas aos governos por actos legislativos da Assembleia da República.
Parece-me ser mais credível a sanção política, qual seja até a de a própria Assembleia da República chamar a si a regulamentação das suas próprias leis em caso de relaxe do Governo, do que recorrer a uma norma deste género, que é, apesar de tudo, uma norma pia, porque sanções non habemus.
Vou acabar esta extensíssima intervenção de que me penitencio, peço desculpa, com uma referência ao n.° 7 da proposta do PCP, embora reserve ainda uma breve observação final para a proposta do PSD.
O n.° 7 proposto pelo PCP pretende resolver um problema que é o da inconstitucionalidade dos assentos. Não é hoje matéria pacífica que os assentos tenham sido inconstitucionalizados pela revisão de 82, mas a proposta do PCP é uma proposta a meio caminho, porque se é verdade que legitima inequivocamente os denominados "assentos interpretativos", já não procede da mesma maneira quanto aos assentos integrativos, isto é, se a proibição abrange apenas a criação de actos que, com eficácia externa, integrem, modifiquem, suspendam ou revoguem preceitos, fica apenas aberta a porta para os demais actos interpretativos. Só que, como nós sabemos, os assentos podem situar-se em áreas onde é muito difícil estabelecer a fronteira entre o que é a mera actividade interpretativa e o que é também uma actividade integrativa das lacunas da lei. Portanto, o objectivo que o Sr. Deputado José Magalhães pretende alcançar só é alcançado a metade, dependente da interpretação do conteúdo de cada assento. Um assento será constitucional se apenas se limitar a interpretar a lei, já não o será se interpretar e integrar, ou se até em exclusivo integrar, uma lacuna da lei.
Nesse aspecto o PSD vai mais longe, embora eu não concorde com o Sr. Presidente, que interpreta a redacção deste número da Constituição, na sua versão actual, em termos que poderiam levar a questionar a legitimidade das próprias sentenças transitadas em julgado, já que sempre se deverá entender que neste caso não estamos no domínio da legislatio mas sim pura e simplesmente no domínio da jurisdictio e haverá sempre uma tarefa interpretativa da lei congénita à natu-
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reza da actividade judicatória. No entanto, reconheço que a solução do PSD é, sob este ponto de vista, mais harmoniosa e mais radical - todos os assentos são legítimos -, mas o facto de o ser coloca-me uma outra questão, em relação ao n.° 4. Nessa norma, o PSD integra o seguinte inciso: "salvo os que em razão da matéria revestirem carácter regulamentar". O problema que coloco a este propósito é o de saber se, de facto, face à evolução da moderna actividade legislativa do Estado, ou melhor, da moderna actividade normativa do Estado, não podemos deixar de reconhecer que há uma espantosa capacidade expansiva da matéria regulamentar sempre em detrimento da matéria legislativa. Daí que o resultado prático deste n.° 4 do projecto do PSD pode ser o de incentivar ainda mais essa troca desigual entre o que é regulamento e o que é lei, porque nenhum governo poderia fazer estas coisas "horrendas" que aqui vêm ditas - interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar preceitos - pela via legislativa, mas, ao fim e ao cabo, sempre o poderia fazer pela via regulamentar, dependendo tudo da natureza da matéria. Porém, o critério da natureza da matéria é, ele próprio, um crime extremamente subjectivo e controverso, que tem sido sistematicamente utilizado para defender a voragem do que é regulamentar em detrimento do que é legislativo. Em suma, a questão que coloco é a de saber se a proposta do PSD, não sendo hipócrita nas intenções, não acabará por ser hipócrita nos resultados concretos, deixando aberta esta porta para que se recorra a uma noção de matérias de natureza regulamentar através da qual o Governo poderia passar a emitir actos com eficácia extrema que teriam a capacidade de interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar actos legislativos. Esta é a questão, ou seja, o actual n,° 4 está cá exactamente para evitar aquilo a que o PSD, com a sua proposta, aparentemente pretende abrir a porta.
Quanto ao n.° 6, o PSD elimina a referência à competência objectiva. Penso que esta preocupação só se justifica na precisa medida em que o PSD pretende tornar inatacável a constitucionalidade dos regulamentos autónomos. Porque o facto de a Constituição obrigar a que se faça referência à competência subjectiva não é em si nada de extremamente relevante no nosso sistema normativo, a não ser para determinar, de facto, se o órgão que emanou a norma é competente para o efeito. Só que já hoje o reenvio legislativo, ou, melhor dizendo, o reenvio normativo, é possível através de habilitação legal, isto é, desde que a lei preveja que o desenvolvimento e o seu regime jurídico podem ser feitos através de regulamento, o Governo tem a competência para executar, no quadro do exercício da sua função administrativa, através do livre exercício do seu poder regulamentar.
O PSD abre aqui a porta à consagração de uma espécie de poder regulamentar genérico que a Constituição conferiria ao Governo. Isto é, sempre que o Governo entendesse, e independentemente de possuir habilitação legal, o desenvolvimento de um acto legislativo poderia ser feito através de acto regulamentar - regulamentos autónomos.
Até aqui ainda vou com alguma tranquilidade; mas a partir daqui o PSD lança-nos num outro terreno mais complexo, que é o de permitir que se invoque para a emissão de regulamentos autónomos, não apenas o tal poder regulamentar genérico decorrente da Constituição, mas cujo âmbito e conteúdo o Governo definiria em cada caso concreto, ampliando por esta via a esfera regulamentar em detrimento da esfera legislativa, sem necessidade de invocar qualquer lei em concreto, mas apenas, por exemplo, a realização de um qualquer princípio geral do direito. E, se nós pensarmos, a título de exemplo, no princípio geral do direito que é o da justiça, verificaremos que ele decerto constituiria fundamento do exercício de um vastíssimo poder regulamentar governamental, através de regulamentos autónomos, com uma força expansiva que acabaria por pôr em causa a própria lógica deste artigo - que é, apesar de tudo, e mau grado as dificuldades reais, a de separar tanto quanto possível as águas entre o que é reservado a acto legislativo e o que é deixado à esfera do exercício do poder regulamentar do Governo.
O Sr. Presidente: - Penso que colocou problemas muitos interessantes e que merecem uma atenta ponderação e adequada resposta.
Sr. Deputado José Magalhães pretende responder desde já, ou prosseguimos na sequência do debate?
O Sr. José Magalhães (PCP): - Como V. Exa. entender, na medida exacta em que não se tratará de responder no sentido final, mas de adicionar algumas reflexões ao larguíssimo campo que está aberto e que nos cabe, neste caso, procurar aprofundar.
Gostaria, em primeiro lugar, de começar por sublinhar que o Sr. Deputado António Vitorino acabou de equacionar, em termos extremos, alguma coisa que está realmente colocada em termos de oposição clara. Há entre a via preconizada pelo PCP e a via preconizada pelo PSD a diferença que separa dois pólos. O PSD visa uma claríssima ampliação da esfera de actuação governamental, tendo para isso utilizado predominantemente o instrumento regulamentar; o PSD dedicou-se milimetricamente a reflectir sobre as vias através das quais pudessem ser autorizadas cadeias de deslegalização e, por outro lado, pudesse ser ampliada a possibilidade de actuação do Governo, nos termos que o Sr. Deputado António Vitorino descreveu e com os quais substancialmente concordo. Pela nossa parte, reincidimos num conjunto de ideias que tínhamos apresentado na primeira revisão constitucional e que, nesse sentido, são, desde logo, familiares ao Sr. Deputado António Vitorino e se encontram abundantemente fundamentadas desde logo nas actas da 1.ª Comissão de Revisão Constitucional. Essas ideias entroncam numa opção por uma concessão de superioridade hierárquica às leis da Assembleia da República.
O problema que a questão da superioridade hierárquica coloca é o de que a superioridade tem de ter consequências ou não será superioridade. Hoje a Constituição estabelece já certos casos de superioridade em parametração, nos casos que estão figurados no próprio artigo 115.°, e isso suscita numerosos problemas de aplicação. Em todo o caso, a opção pela superioridade, nos termos em que vem configurada no projecto do PCP, tem em seu abono uma certa concepção do papel que a Assembleia da República deve ter na produção de actos legislativos, com todas as suas implicações - que, pela nossa parte, não enjeitamos.
Creio que foi grande o peso que teve entre nós, e tem - a exposição do Sr. Deputado António Vitorino é, toda ela, uma bem articulada demonstração desse
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peso. O sistema que herdámos de um determinado período e de uma determinada experiência mesmo nesse sistema da Constituição de 33, luta pelo alargamento das competências da estrutura não governamental foi grande. As questões de qualificação da assembleia antecessora da Assembleia da República são melindrosas; como se sabe, a sua própria qualificação como parlamento propriamente dito reveste-se de algum melindre; o exercício dos poderes legislativos por essa Câmara suscitou também problemas e teve vicissitudes que passaram, elas próprias também, por diversas revisões da Constituição de 1933.
Historicamente, embora esse processo tenha tido uma evolução que culminou na solução consagrada na Constituição de 1976, nunca se rompeu com um limite - esse limite é de que o Governo tem competência legislativa própria, inabalável, autónoma, não dependente, a não ser na medida em que os seus decretos-leis (e nem todos, embora os subtraídos sejam mínimos) podem ser subordinados a processo de fiscalização, em sede de ratificação. Esta ideia de concorrencialidade foi apenas mitigada e limitada pela construção, em 1982, de uma área de competência reservada da Assembleia da República e pela distinção entre a reserva de competência indelegável e a delegável. Trata-se agora de saber se, para além disto, para além daquilo que possa operar-se em termos de alargamento das áreas de reserva da Assembleia da República, haverá de introduzir algum outro critério no sistema de produção de actos legislativos, utilizando a noção de superioridade hierárquica. A prevalência de um critério hierárquico normativo sobre um critério de repartição de competências tem implicações - chamemos-lhe, por ser hoje, à noite, "revolução". Já as tem hoje nos casos de subordinação, mas propomos agora obviamente uma mutação de grande importância e uma clarificação do quadro vigente.
Creio, em todo o caso, que a maior virtude da intervenção do Sr. Deputado António Vitorino, conjugada com a do Sr. Deputado Almeida Santos, foi a de colocar fora de debate a mutação proposta pelo PS, para que debatamos intensamente a do PCP. É assim que não estamos hoje a discutir para constitucionais: estamos a discutir, naturalmente, a superioridade hierárquica das leis e a "monstruosa" proposta do PCP, a "revolucionária" proposta do PCP!
Creio que a deslocação da análise do plano político para o plano técnico-jurídico, operada pelo Sr. Deputado António Vitorino, não deve todavia ocultar este "mesquinho" facto político, que não posso deixar de evidenciar.
Quanto às questões que o Sr. Deputado António Vitorino suscitou, elas merecem sem dúvida resposta. Primeiro aspecto: o problema de equilíbrio de repartição de competências entre os dois órgãos de soberania pode derimir-se, naturalmente, numa perspectiva de concorrencialidade nos termos que o Sr. Deputado António Vitorino antecipou. O esquema actual de repartição não impede, de facto, que a Assembleia da República alargue sistematicamente a sua área de intervenção e imponha, na prática, a sua superioridade, revogando sucessivamente decretos-leis do Governo, mecanismo mais mesquinho e originador de verdadeiras escaladas ou espirais de conflito institucional.
Por essa via, poderá verificar-se um alargamento da intervenção da Assembleia da República seguido de um retrocesso, um novo alargamento, seguido de novo retrocesso, num braço-de-ferro contínuo que terá o efeito de gerar uma conflitualidade, ou ser manifestação de uma conflitualidade, deixada ao sabor das correlações de forças. Prefere-se isto?
Aparentemente o PS prefere essa solução, que é mais flexível, do que uma hierarquia proclamada das leis da Assembleia da República. É inconfigurável um sistema como o proposto pelo PCP? São configuráveis, até, sistemas mais "gravosos" do que este! É configurável um sistema em que o Governo não tenha competência legislativa própria, em que seja sujeito ou esteja condicionado a governar prescindindo desse tipo de arma!
Em tese geral, em sede de configuração de poderes, de imaginação de arquitecturas constitucionais, poderá objectar-se, quando muito, que as necessidades, por um lado, de um Estado democrático que tenha de enfrentar determinados desafios, as características próprias dos governos e, por outro lado, as co-respectivas características das assembleias parlamentares, as lições históricas de outros países e a experiência histórica portuguesa (em que está consolidada e radicada uma intervenção, nestes moldes, dos governos e até o seu abuso) tornariam menos viável a ambição que o PCP aqui proclamou. Mas não pode objectar-se mais do que isso!
No caso concreto da proposta do PCP, visa-se abertamente pré decidir esse conflito através de uma norma de superiorização, a qual teria, quiçá, a virtude - não quererei ser excessivamente apaixonado pela conjuntura, nem fazer a reflexão sobre os actos normativos debruçado sobre uma maioria absoluta conjuntural, mas sem ser uma alavanca de Arquimedes, poderia ter consequências positivas no combate à desvalorização da Assembleia da República.
Segundo aspecto: quanto às tentativas de definição de leis de bases. Não sei se as palavras do deputado António Vitorino significam uma disponibilidade por parte do PS, mas cremos que vale a pena procurar ensaiar uma definição de lei de bases, porque a Constituição verdadeiramente não a estabelece. É evidente que se chega doutrinariamente, jurisprudencialmente, à distinção entre lei de bases e lei de autorização legislativa, à definição da zona de sobreposição, ou de "comunidade" entre uma figura e outra.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Mas não é esta!
O Sr. António Vitorino (PS): - Achamos bem, mas não é esta!
O Sr. Almeida Santos (PS): - Achamos bem a necessidade de uma definição, mas não rigorosamente esta.
O Sr. José Magalhães (PCP): - O PS não adiantou uma! Nós adiantámos uma, oferecendo, naturalmente, cara à crítica. A nossa única consolação é que quem quer que o faça arrostará com as consequências. Creio que o principal problema estará aí, onde o Sr. Deputado António Vitorino o procurou situar: estará na questão de se recorrer a um critério de implicitação para definir leis de bases. É evidente que o critério de implicitação implica uma subjectivização do
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juízo e alguma margem de dificuldade interpretativa. Parece essencial, porém, não deixar de recorrer a um critério material que salvaguarde a margem de poder conformador da Assembleia da República, que não fragilize a sua intervenção na parametrização.
O Sr. Almeida Santos (PS): - A minha preocupação é contrária, porque havia um critério simples, de que são leis de base aquelas que a Assembleia declare como tais e formule em termos de bases. Mas isto dá à Assembleia a possibilidade de colocar o Governo fora de determinadas matérias - no quadro da competência concorrencial para legislar. Portanto, é fácil: a lei vem formulada em termos de bases, é lei de bases; a lei vem formulada em termos de artigos, não é de bases. A Assembleia tem a liberdade, se não houver o tal critério material - já que é difícil definir o que é de bases e o que não é -, de pôr o Governo fora das matérias que entender; basta transformar os termos para bases em vez de artigos. V. Exa. concorda com isto?
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, o problema já se coloca hoje. Estamos a discutir isto face a propostas de alteração, mas façamos o raciocínio face ao texto vigente. Sucede que a Constituição estabelece, neste artigo, uma alusão a um conceito que não define.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Antigamente também não se definiam leis de bases e a Assembleia fazia leis por bases: base 1, base 2, base 3. A lei da nacionalidade, por exemplo, é uma delas; sabia-se que era uma lei de bases porque tinha sido formulada em bases. Mas antigamente não havia as preocupações que estamos a ter hoje.
O Sr. José Magalhães (PCP): - E não só! Porque tudo depende de qual seja a competência da Assembleia em questão, isto é, de como é que estejam definidas as suas competências. No nosso caso, a competência legislativa da Assembleia não está circunscrita à elaboração de leis de base.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Preocupo-me, aqui, em salvaguardar a competência do Governo.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Percebo o vosso ângulo! Têm duas preocupações: os governos minoritários, por um lado, e os governos em geral, por outro.
O Sr. António Vitorino (PS): - Exactamente pela mesma razão pela qual o Sr. Deputado José Magalhães não tem nenhuma preocupação com o Governo e muito menos com os minoritários - são posições exactamente simétricas e curiosamente fundadas nas mesmas razões.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Muito menos com os minoritários. Sobretudo com os maioritários!
O Sr. Presidente: - Estou a assistir, divertido, a este debate.
O Sr. José Magalhães (PCP): - O Sr. Deputado Almeida Santos introduziu uma questão que me parece
importante, porque permite situar uma extraordinária diferença entre o campo em que nos movemos hoje e o campo a que acabou de aludir.
Não por acaso, o PSD não retomou nesta revisão constitucional certas propostas que apresentara no quadro da AD, tendentes a restringir a competência da Assembleia da República à elaboração de leis de bases. Sucede que o CDS as retomou e então, aí, a definição desta matéria assumiria uma importância drástica. Dir-se-á que, no actual sistema, a introdução de uma definição como a que o PCP propõe é útil - útil, em termos de funcionamento dos órgãos de soberania, útil, para o aperfeiçoamento dos actos normativos face ao quadro constitucional. Só que não é dramático! No caso do CDS seria dramático, como é evidente, porque o CDS restringe a competência da AR à produção de uma categoria indefinida de leis. Pior ainda: o CDS opera depois um conjunto de cerceamentos dos poderes da Assembleia da República, através da imunização dos decretos governamentais a fiscalização. Subverte-se assim por completo a correlação de forças no plano legislativo entre os dois órgãos de soberania.
O Sr. António Vitorino (PS): - Apesar de tudo - o CDS não está hoje aqui para se defender -, o modelo do CDS é um pouco mais rigoroso do que a descrição que dele acabou de fazer. Consagra uma reserva absoluta de competência e reserva relativa de competência da AR e só há leis de bases em matéria concorrencial. Apesar de tudo, é diferente do modelo da defunta AD; é um pouco mais generoso . ..
O Sr. José Magalhães (PCP): - Creio que sim. Bem, é um concurso um bocado mórbido. Aí, não estaríamos na Aida, estaríamos verdadeiramente numa daquelas óperas de Puccini que culminam com a morte da heroína.
As propostas do CDS não têm defesa possível. Continuando a Assembleia a ter os poderes que tem e cabendo-lhe aprovar leis de bases, o que são leis de bases?
A situação que está gerada é a de não se saber verdadeiramente (ou de poder não se saber) em que é que consiste a superioridade já existente decorrente do poder de aprovar leis de bases. De facto, ela já existe: há uma superioridade paramétrica de determinadas leis em relação a outras, mas verdadeiramente os contornos dessa superioridade são indefinidos e as consequências da violação dessa superioridade são indefinidas, para não dizer inexistentes.
E colocam-se aí questões verdadeiramente surrealistas. Se há uma superioridade paramétrica das chamadas "leis de enquadramento" em relação às leis que as desenvolvam ou que a elas estejam subordinadas, mas a Constituição não estatui as consequências, em caso de subordinação, acontecem coisas caricatas.
Eis aquelas famosas leis da Assembleia da República cujo último artigo exceptua todo o regime jurídico que está a ser emanado do regime jurídico que seria obrigatório se fosse acatada a lei de enquadramento respectiva. Tivemos exemplos dessa situação em matéria de criação de municípios, de vilas e cidades: leis sucessivas exceptuaram a aplicação das respectivas leis quadro àquele caso. Tivemos também exemplos nessa matéria em relação à própria lei de enquadramento do Orçamento do Estado (um dos quais será apreciado
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amanhã no Plenário da Assembleia, isto é, uma proposta respeitante a uma regularização de passivos de empresas públicas, que estabelece no seu artigo 2.° todo um regime especial de orçamentação paralela, em conta do Tesouro Especial, das verbas decorrentes do produto das operações respectivas em violação da lei de enquadramento do OE). Tudo isto acontece já hoje, pelo que o nosso alerta é para a necessidade de garantir uma efectiva superioridade e os meios para a efectivar.
Evidentemente, a solução proposta, designadamente quanto a este n.° 4, tem alguns problemas de interpretação que se dirimem sempre, no nosso projecto, em favor da Assembleia e em desfavor do Governo. E este ponto, que o Sr. Deputado António Vitorino sublinhou e exautorou, tem as implicações que tem, estamos conscientes disso.
Quanto às consequências da reserva de acto legislativo para o desenvolvimento das leis de bases, o alargamento operado parece-nos uma cautela razoável, só introduzida em relação aos casos em que a via seguida seja a da lei de bases. A escolha da forma há-de ter implicações que se hão-de situar no terreno que, no fundo, já foi pisado. Creio que o choque exibido pelo Sr. Deputado António Vitorino resulta, apesar de tudo, de uma subestimação das consequências e das dificuldades de aplicação do actual artigo 201.°, n.° 1, alínea c). Verdadeiramente, nós limitamo-nos a situar-nos no terreno decorrente do que já hoje dispõe o artigo 201.°, n.° 1, alínea c), sem que se tope a diferença abissal que o Sr. Deputado António Vitorino procurou situar e, designadamente, sem que se vislumbre quais sejam os efeitos perversos no tocante à impugnabilidade dos respectivos actos.
Quanto à impugnabilidade, a situação coloca-se aqui nos mesmos termos em que se colocava, embora tenhamos propostas autónomas sobre essa questão numa outra sede.
O Sr. António Vitorino (PS): - Apesar de tudo, existe diferença substancial. Porque o artigo 201.°, n.° 1, alínea c), prevê a competência do Governo no exercício da função legislativa para desenvolver leis de bases, naquilo que se entender que tenha conteúdo legislativo, que seja afloramento do exercício da função legislativa. Nada impede que o desenvolvimento de uma lei de bases possa ser feito, em matéria de natureza regulamentar, por decreto regulamentar. O PCP passaria a vincular à forma de decreto-lei toda a matéria de desenvolvimento de lei de bases, fosse ela de natureza legislativa, exercida no quadro da função legislativa, fosse ela de natureza regulamentar, exercida no quadro do poder regulamentar do Governo. É esta a diferença: é integrar em actos sob forma legislativa matérias de natureza regulamentar, que, hoje, em desenvolvimento de lei de bases, podem ser objecto de actos regulamentares em sentido formal.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado António Vitorino, é só isso nos casos em que é. O que propomos diz respeito ao desenvolvimento, não à regulamentação...
O Sr. António Vitorino (PS): - Mas é que no número anterior o "só isso" é muito e, neste número, o "só isso" é pouco ...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Eu agora ia ao povo ...
O Sr. António Vitorino (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador) ... a maioria de dois terços possível ...
O Sr. José Magalhães (PCP): - No meio das alegações do Sr. Deputado António Vitorino contra a proposta do PCP, quase se esquece qual é a situação actual! A solução introduzida pelo PCP no tocante à fixação de prazos para o desenvolvimento e regulamentação de leis "sabe a pouco", é "péssima", "não prevê sanção", pode convidar os governos a pedirem prazos absolutamente escandalosos e, de resto, ilimitáveis para os efeitos de desenvolvimento e regulamentação. Mas a situação actual é de omissão! É de liberdade irrestrita!
Creio que é desse parâmetro que temos de partir. E naturalmente a solução que o PCP apresenta tem algum defeito, tem o defeito de não ter sanção explícita. A solução é, talvez, prever alguma sanção, mas pareceu-nos mais prudente não o fazer desde logo, porque imagino o que é que seria, por exemplo, uma proposta que previsse um efeito de caducidade para a lei que viesse a não ser desenvolvida no prazo de três meses ...
O Sr. Presidente: - Era um efeito de bumerangue!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Creio que, nessa altura, o Sr. Deputado António Vitorino diria: "então, os senhores, além de estabelecerem uma superioridade que permite o alargamento contínuo da esfera de actividade da Assembleia da República, a compressão crescente, irrestrita da esfera governamental" (claro, isto omitindo a possibilidade, sempre existente, de escalada institucional da Assembleia contra o Governo, por revogações sucessivas de diplomas deste, que é uma questão ladeada nesse raciocínio simpático!), "além de pretenderem estabelecer regras que restringem a esfera regulamentar do Governo, vinculando à prática de actos legislativos sob forma de decretos-leis sujeitáveis a ratificação (outra forma de intervenção da Assembleia da República e outra forma de controle!), ainda por cima quereriam que, em caso de não regulamentação atempada ou de não desenvolvimento, houvesse um efeito de caducidade?!!! "Pois a nós também nos pareceu que seria de mais. Poderia virar-se contra a Assembleia, destruindo-lhe legislação aprovada e obrigando-a a reiniciar o processo (que alívio para o Governo!) ...
O Sr. Presidente: - Teria efeitos de bumerangue, Sr. Deputado.
O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Deputado José Magalhães, eu não propus que se consagrasse, em aditamento àquilo que o PCP propõe, o princípio da caducidade. A diferença é que a proposta do PCP, tal como está formulada, é inútil; com o princípio da caducidade, seria pura e simplesmente indefensável.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado António Vitorino, foi por isso mesmo que não a apresentámos.
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Quanto à questão da "inutilidade", vejo vantagem em aprofundar a reflexão, porque isso pode permitir outras soluções que colmatem a claríssima imperfeição da actualmente vigente ...
O Sr. Almeida Santos (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)
O Sr. José Magalhães (PCP): - O Sr. Deputado Almeida Santos adianta a hipótese de suspensão como efeito da violação do prazo? Suscita o mesmo problema de reversibilidade!
O Sr. Almeida Santos (PS): - Não proponho, mas era, apesar de tudo, mais razoável, senão suspendia a vigência.
Vozes.
O Sr. Presidente: - E, dentro da sua óptica de aumentar os poderes da Assembleia da República, daria ao Governo uma arma terrível.
Vozes.
O Sr. Presidente: - Por isso é que eu falava no efeito de bumerangue.
O Sr. António Vitorino (PS): - Isto é uma proposta de canguru, sem ofensa ...
Risos.
Quanto aos assentos integrativos ...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Solução de compromisso, com os mesmos inconvenientes da solução "radical" ...
O Sr. António Vitorino (PS): - O que prova que às vezes o PCP também sabe adoptar soluções de compromisso ...
Risos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Pelo contrário, Sr. Deputado António Vitorino! Seria muito interessante saber qual a posição dos outos interlocutores nesta Comissão sobre a questão dos assentos, porque a situação que se vive é bastante malsã ...
O Sr. Almeida Santos (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Deputado Almeida Santos. É bastante malsã porque, face ao actual texto, é possível sustentar afoitamente a inconstitucionalidade irremediável, total, insanável, do instituto dos assentos.
Trata-se de saber se, dados os melindrosos aspectos que estão co-envolvidos em toda a ponderação desta questão, será possível encontrar solução melhor do que esta que aqui adiantamos, sendo certo que o silêncio, ou melhor, a margem de nevoeiro constitucional sobre esta matéria tem redundado em algum equívoco e em algumas situações que não me parecem menos melindrosas ...
O Sr. António Vitorino (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador) ... meramente doutrinárias.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Esse "meramente" é um advérbio de relativização que, ele próprio, tem um valor relativo.
Gostaria também de sublinhar dois últimos aspectos.
É evidente que algumas das questões colocadas pelo PS suscitam, da minha parte e da parte da minha bancada, a necessidade de reflexão ulterior, que, evidentemente, haveremos de fazer tendo presentes as interrogações e as questões que os Srs. Deputados acabam de colocar e contando com a contribuição de alguns dos meus camaradas que participaram na elaboração do projecto de revisão constitucional do PCP. Oportunamente vos transmitiremos os resultados da nossa reflexão.
O segundo aspecto diz respeito ao PSD. Estou de acordo com algumas das observações feitas pelo Sr. Deputado António Vitorino quanto às implicações das propostas do PSD nesta matéria - e incluo também as referentes ao artigo 115.°, n.° 6. Em meu entender, toda a matéria relacionada com o desenvolvimento legislativo de leis de bases por decretos legislativos das regiões autónomas merece consideração, em sede própria e no momento próprio. O debate resultará bastante empobrecido se não formos capazes de ter em conta o património de reflexão que decorre de algumas das propostas do PSD. Devo dizer que, da minha parte, não compreendo que o PSD não sustente aqui, em toda a sua dimensão, aquilo que decorre das propostas constantes do projecto n.° 10/V. É evidente que só por um caso fortuito é que estamos hoje aqui, a esta hora, a discutir o artigo 115.°, pois na lógica dos trabalhos estaríamos a discutir o artigo 108.° ou coisa similar, mas penso que haveria alguma vantagem em que os autores do projecto de revisão constitucional n.° 10/V pudessem sustentar aqui as razões que levaram a que este conjunto de soluções fosse apresentado na Assembleia da República. Conceberia mal que fossem apresentadas para fogo-de-artifício no Funchal ou para fogo-de-artifício em Angra do Heroísmo e silenciadas na Comissão de Revisão Constitucional. Não considero fundamental que a Comissão de Revisão Constitucional se desloque a Ponta Delgada para discutir o artigo 115.° ou que vá à Calheta reflectir sobre os actos normativos relevantes para as regiões autónomas, mas entendo que, pelo menos quem apresentou as propostas, as deve fundamentar e que quem assume a responsabilidade política de acusar a Assembleia da República e os órgãos de soberania de estarem empenhados num "projecto de outorga colonialista" (sic), "de uma Constituição feita pelas classes políticas do continente às regiões autónomas" vitimizadas, quem tudo isto diz, deve dize-lo aqui, na Assembleia da República, na Comissão de Revisão Constitucional! Podem ser quatro palavras, podem ser duas, pode ser mesmo um monossílabo, mas que surja aqui a fundamentação do que é proposto! De contrário, teremos uma situação verdadeiramente absurda, que
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pode ser a de irmos ao Funchal e, numa bela tarde, atirarem-nos à cara que rejeitámos, sumariamente e sem argumentos, numa postura autoritária, intolerante e continental, uma proposta das regiões autónomas, bojuda e bem fundamentada (que afinal nunca aqui foi apresentada!). A acta registará aquilo que, circunspectamente, o Sr. Deputado Rui Machete entendeu dizer, ou seja, que não está mandatado para sustentar o que quer que seja nesta matéria. Como a única coisa que o PSD apresentou, através dos seus órgãos nacionais e através do seu grupo parlamentar, foi a supressão do n.° 4 do texto vigente, com uma transposição relativa (mas com consequências que podem ser perturbadoras), o oferecer-se apenas o mérito de uma supressão com compensação adiante, silenciando todo o conjunto de implicações daquilo que, em nome também do PSD - algum PSD -, foi sustentado, parece-me a pior das soluções. E nesse sentido gostaria de deixar lavrado aquilo que qualificarei, talvez não de um protesto, mas de uma demarcação em relação a certa metodologia que o PSD utiliza nesta matéria. Metodologia essa que se chama "dualidade". Esta, tal como Jano, caracteriza-se pela existência de duas faces, que, em matéria tão melindrosa, para a própria ponderação da unidade nacional e para a medição das repartições de competências entre os órgãos de soberania e os de governo próprio das regiões autónomas não é, pura é simplesmente, postura concebível. Nesse sentido gostaria de manifestar a nossa completa indisponibilidade para colaborar nesse silenciamento daquilo que é uma omissão indesculpável do PSD nesta problemática.
O Sr. Almeida Santos (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não emiti opinião sobre a proposta porque não me sinto em condições de a zurzir sem ouvir primeiro os seus proponentes.
A sua fundamentação parece-me um pressuposto fundamental da discussão na Comissão. Não tendo nós os trabalhos preparatórios, não conhecendo o animus, as restrições implícitas, as correlações e fundamentações por conexão com o artigo 229.° nem os segredos atlânticos que podem estar subjacentes a estas propostas, podemos incorrer em alguma crítica indesculpável - coisa que não quereria fazer! De facto, como atesta a nossa proposta relativa ao artigo 232.°, estamos empenhados numa dilucidação positiva das competências das assembleias regionais nesta esfera. E a proposta de aditamento apresentada pelo PCP pode ser acusada de tudo menos de ser inútil. Curiosamente, o Sr. Deputado António Vitorino ...
O Sr. Presidente: - Não será acusada de tudo, mas de algumas coisas não se livra, Sr. Deputado.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Presidente. Não pode ser acusada de ser inútil! E acontece que o Sr. Deputado António Vitorino guardou um silêncio extremamente prudente sobre isto, ao qual não atribuo nenhum valor declarativo. Aliás, não vejo nele nenhuma crítica, nem nenhuma fuga.
O Sr. António Vitorino (PS): - Desculpe interrompê-lo, Sr. Deputado, mas eu disse que só consideraria na minha intervenção o que implicasse relações entre actos legislativos de órgãos de soberania. Guardaria, então, para uma segunda alocução as questões que têm a ver com o nosso n.° 5 do artigo 232.°, em matéria de poder regional, tal como em relação à vossa proposta de criação de um novo artigo 115.°-A, no respeitante às leis de valor jurídico reforçado previstas no seu n.° 1. Procedi desse modo por razões não de prudência, mas porque começo já a estar com sono e só por isso.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Deputado José Magalhães, bem sabe que o silêncio, do ponto de vista do direito, só tem significado quando existe o dever de não silenciar. De facto, quando o silêncio é um direito não tem significado. É, antes o exercício de um direito.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Isso está absolutamente fora de causa, e eu próprio deixei inteiramente claro que assim era.
O Sr. Almeida Santos (PS): - E nós próprios reservaremos a nossa posição quando conhecermos os fundamentos, como V. Exa. está a pedir, e, depois disso, o grau de empenhamento do próprio PSD, sem o qual esta proposta nunca poderá ser aprovada.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sem dúvida, Sr. Deputado. Devo aliás, dizer que o que é fabuloso, mesmo nas presentes circunstâncias, é que os Srs. Deputados do PS me estejam a relembrar o valor jurídico do silêncio, evocando princípios que são reconfortantes face a qualquer noção de civilização, quando foram os Srs. Deputados que me colocaram a questão de eu estar a manter silêncio sobre a proposta constante do projecto de lei n.° 1 O/V. Poderia dizer, em relação a vós, ponto a ponto, aquilo que o Sr. Deputado Almeida Santos me disse a mim!
O Sr. Almeida Santos (PS): - É uma originalidade nossa deste processo de revisão o facto de nunca acusarmos V. Exa. de silêncio!
Risos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Deputado, o que lhe quero relembrar, dado que se está a fazer uma progressão deslizante nesta matéria, é que estou a agir em legítima defesa.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Ah, é?!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto, Sr. Deputado. De facto, quem fez a acusação de silêncio foi o PS, através, creio, do Sr. Deputado António Vitorino.
O Sr. António Vitorino (PS): - Eu?!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Quem originou esta legítima defesa foi, segundo creio, o Sr. Deputado António Vitorino ...
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O Sr. António Vitorino (PS): - Digo muitas coisas desagradáveis ao PCP, mas não estou suposto ser só eu a proferir coisas desagradáveis ao seu partido.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Fui eu!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Ah, foi o Sr. Deputado Almeida Santos! De acordo com aquela bela tradição "Almeida Santos versus Almeida Santos", que é sempre uma maravilhosa solução para liquidar um conflito, foi o Sr. Deputado que acabou por responder a si próprio, relembrando que, só valendo o silêncio aquilo que valha, o nosso silêncio sobre a proposta constante do projecto de lei n.° 1 O/V não vale nada: é apenas uma atitude de expectativa.
Creio, pois, que está nas mãos do PSD, se algum dia conseguir entender-se nesta matéria com os seus líderes regionais, quebrar todos estes nossos silêncios.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Quando o meu amigo chegar à minha idade mediremos as nossas recíprocas coerências!
Risos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, isso é um argumento teratológico!
O Sr. Almeida Santos (PCP): - Veremos quem é que fica versus contra si próprio mais vezes ...
O Sr. José Magalhães (PCP): - É realmente um desafio que está colocado a qualquer homem! Aliás, a Marguerite lourcenar tem um livro que o pode confortar quanto a esse tormento existencial, chamado A Obra ao Negro. É com essa evocação que me apraz terminar.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, temos ainda alguns minutos, pelo que gostaria que terminássemos a análise do artigo 115.°
No entanto, como o Sr. Deputado José Magalhães gastou uma parte substancial do tempo em resposta ao Sr. Deputado António Vitorino, a comentar o silêncio em relação à proposta de alteração do artigo 115.°, apresentada por vários Srs. Deputados integrantes do Grupo Parlamentar do PSD, gostaria de fazer a V. Exa. ai de uma maneira sucinta, algumas considerações.
Em primeiro lugar, todos os Srs. Deputados que apresentaram projectos de lei de revisão constitucional têm sido informados do andamento dos trabalhos.
Ora, não há da parte da Mesa, nem dos serviços da Assembleia da República, faltas que lhes sejam imputáveis no sentido de se desconhecer qual é a marcha dos trabalhos. Se, evidentemente, as pessoas, por qualquer razão que não cuidamos de saber qual ela seja, porque não é essa a nossa obrigação, não podem estar presentes, os trabalhos vão prosseguindo. E, infelizmente, eles têm andado lentamente!
Em segundo lugar, gostaria também de lhe dizer que o projecto n.° 10/V não é um projecto do PSD, mas, sim, da autoria dos Srs. Deputados Carlos Lélis, Cecília Catarino, Guilherme da Silva e Jardim Ramos, do PSD. Igualmente os Srs. Deputados Sottomayor Cárdia e Helena Roseta apresentaram os seus projectos, n.ºs 5/V e 6/V, respectivamente.
Por consequência, não há nenhuma obrigação por parte dos que estão, nesta sede, incumbidos de defender a fundamentação do projecto de lei de revisão constitucional apresentado em nome do PSD de necessariamente sustentarem o projecto da autoria desses nossos colegas. Por isso, dizia, de uma maneira simpática, que não excluí essa hipótese, se acaso me tivessem solicitado e julgasse que isso era possível, mas tal não aconteceu. E como não se verificou não tenho o dever de o fazer, tal e qual como não vi o Sr. Deputado José Magalhães perguntar por que é que os Srs. Deputados que aqui defendem, por exemplo, o projecto do PS apresentam justificações demoradas ou sucintas acerca dos apresentados pelo Sr. Deputado Sottomayor Cárdia ou da Sra. Deputada Helena Roseta quando não estão presentes. É exactamente o mesmo tipo de tratamento.
Portanto, as observações formuladas por V. Exa. não têm qualquer cabimento, salvo o devido respeito. Pode, quanto muito, lamentar o facto de não estarem presentes, mas nós também o fazemos. Terão certamente a sua motivação, que um dia explicarão ou não, consoante entenderem, mas o que não posso deixar passar em claro é essa confusão que, de vez em quando, perpassou na intervenção de V. Exa. e que parecia inculcar uma falta de solidariedade dentro do meu partido. Nos partidos como o PSD, em que várias pessoas pensam lhes é reconhecido o direito de pensar diferentemente, é natural que apareçam projectos de lei diversos. Aliás, não deixa de ser significativo que os projectos de lei de natureza diversa aparecem no PSD e no PS, mas não aparecem no PCP.
O Sr. José Magalhães (PCP): - É verdade, Sr. Presidente, só temos um projecto de lei!
O Sr. Presidente: - É provável que o alargamento da Perestroika e da Glasnot venha a produzir alguns resultados nesse capítulo! Contudo, ainda não chegámos a essa fase! Na próxima revisão constitucional teremos certamente vários projectos, alguns dos quais apresentados por Srs. Deputados do PCP, mas não em termos oficiais.
O Sr. António Vitorino (PS): - Em sentido lato, têm três!...
O Sr. Presidente: - Esse é outro esquema! Srs. Deputados, voltando agora à matéria dos autos ...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, é evidente que não ando longe da sua tese da descoordenação do PSD, que é, aliás, a que fica confessada para a acta. Em todo o caso, eternizar o silêncio julgaria lamentável, e foi isso que quis sublinhar ...
O Sr. Presidente: - Peco-lhe imensa desculpa de o interromper, mas não é uma descoordenação de maneira nenhuma.
De facto, há uns Srs. Deputados que em determinadas matérias entenderam contribuir para a discussão apresentando um projecto de lei de revisão constitucional autónomo. Estão no seu pleníssimo direito como deputados. Penso, aliás, que V. Exa. consideraria mal que alguém censurasse esses Srs. Deputados de exercerem os seus direitos.
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O Sr. José Magalhães (PCP): - De forma nenhuma, Sr. Presidente. Não gostaria, aliás, que subsistisse qualquer equívoco quanto a isso, mas também não gostaria que algum dia e em qualquer circunstância fosse dito em qualquer parte que a Comissão Eventual para a Revisão Constitucional discutiu na noite de São João, entre as 10 horas e a meia-noite, as propostas relativas às competências legislativas das assembleias regionais não tendo, para o efeito, sido notificados os Srs. Deputados signatários do projecto de lei n.° 10/V. E digo isto por várias razões.
Em primeiro lugar, o PCP não teve a mínima responsabilidade, e seguramente nenhum dos Srs. Deputados, no facto de a progressão dos trabalhos ter sido aquela que foi.
Em segundo lugar, não tivemos nenhuma responsabilidade - as questões em relação ao PSD podem colocar-se em termos diversos - em não termos previsto, em homenagem aos subscritores do projecto de lei n.° 10/V, que poderia acontecer que chegássemos à análise deste artigo hoje e a esta hora. Portanto, o PCP não tomou providências para prevenir esses Srs. Deputados de que essa possibilidade se poderia verificar. E não poderemos igualmente ser responsabilizados no futuro pelo que quer que seja em relação à maneira como o debate decorreu sobre este ponto, uma vez que apresentámos o nosso projecto de lei e a nossa solução nessa matéria, embora sumariamente.
No entanto, gostaria, por uma questão de construtividade, de sugerir que, uma vez que este debate se vai suspender neste momento e a esta hora, fossem notificados os signatários desse projecto de lei, em tempo, porque há um longo fim-de-semana para esse efeito.
O Sr. Presidente: - Ainda temos a reunião de amanhã, Sr. Deputado.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Corrijo o que disse, Sr. Presidente, pois ainda será possível, quiçá durante a madrugada ou então pela manhã, fazer-se, pelos meios próprios, a convocação dos Srs. Deputados para que possam exercer, se acaso quiserem, o seu direito de apresentação do projecto de lei. Caso contrário, todos tiraremos as conclusões e a conversa prosseguirá por outros meios, em sede própria.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Poderei concluir que estão também discutidos os artigos 115.°-A e 115.°-B?
O Sr. Presidente: - Ainda não consegui dizer nada, porque só discutimos a tocante preocupação atlantista do Sr. Deputado José Magalhães, o que, aliás, muito me sensibiliza.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Que fique registada, Sr. Presidente!
O Sr. Presidente: - Mas ser-lhe-á agradecida devidamente essa sua preocupação! Todavia, devo dizer-lhe que não vejo razão para alterar a prática, que tem sido seguida, de todos os Srs. Deputados subscritores de projectos receberem sempre a indicação dos trabalhos. Poderão então calcular aproximadamente os artigos que irão ser discutidos. Aliás, o problema que V. Exa. coloca não é tão grave como isso, porque teremos oportunidade de, ao discutir as competências dos órgãos das regiões autónomas, retomar as questões que agora nos ocupam. Portanto, não é uma questão tão grave como isso o passar-se por cima destas matérias neste momento.
Em todo o caso, a mim muito me sensibiliza a sua preocupação, e certamente, quando transmitirmos aos nossos colegas do PSD dos Açores e da Madeira a preocupação que V. Exa. manifestou, eles igualmente se sentirão sensibilizados.
No respeitante às questões suscitadas, tenho algumas considerações a fazer. Quanto ao projecto do PCP, suponho que não se justificará tecer grandes considerações porque subscrevo provavelmente na íntegra as explanações e considerações que foram feitas pelo Sr. Deputado António Vitorino. Apenas há uma observação suplementar que gostaria de produzir, que é a seguinte: julgo que foi porventura gasto demasiado tempo no respeitante à questão da lei de bases se considerarmos esse problema dentro do contexto do projecto do PCP. E digo isto porque as leis têm sempre uma posição hierárquica superior aos decretos-leis, pelo que o problema das leis de bases reconduz-se apenas à obrigatoriedade de o Governo ter de desenvolver, por via dos decretos-leis, e nunca poder usar de decretos regulamentares, esse tipo de norma. Isto tem obviamente importância porque é uma limitação da competência do Governo, bem como em matéria de ratificação dos actos dos decretos-leis. Suponho, pois, que é essa a razão determinante de o PCP incluir essa obrigação, mas quanto ao resto ela só ganha um outro relevo - percebo, aliás, que nesse sentido possa ser dada uma consideração autónoma - se abandonarmos esse terramoto introduzido pelo PCP ao considerar que os decretos-leis não podem contrariar as leis, salvo autorização legislativa.
Também não me vou alongar nessa necessidade de interpretar o que é isso de uma autorização legislativa para que os decretos-leis contrariem as leis. Suponho que a ideia básica é a de que as autorizações legislativas que inovem em relação a leis anteriores e ao serem desenvolvidas por decretos-leis, estes últimos, por essa circunstância, beneficiando do título que lhes é dado pela lei autorizada e habilitante, acabam por ter uma legitimidade revogatória, que de outro modo lhe seria recusada. Porém, temos de considerar que a forma como foi expressa essa ideia no n.° 2 do artigo 115.°, proposto pelo PCP, é, neste caso, deficiente.
Ora, como vamos discutir amanhã as propostas de criação de dois novos artigos, o 115.°-A e o 115.°-B, iria limitar-me apenas a algumas considerações muito reduzidas na sua extensão quanto àquilo que foi directamente referido em relação ao PSD.
As observações foram obviamente a propósito dos nossos n.ºs 4 e 6 do artigo 115.° No primeiro número pareceu-me, mas gostaria de confirmar se assim é, que a ideia de redigir esse articulado em termos de limitar a actos normativos, e não de qualquer outra natureza, a proibição com eficácia externa (interpretar, integrar, etc., as leis) merecia algum acolhimento no sentido de legitimar de uma maneira inequívoca os assentos. Pelo menos por parte do PS; o PCP suponho que não se manifestou claramente sobre isso.
No entanto, o PS e, depois, o PCP, por intermédio dos Srs. Deputados António Vitorino e José Magalhães, respectivamente, fizeram críticas muito acerbas do ponto de vista técnico e de significado político acerca
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da extensão dada à matéria regulamentar. Essas críticas foram, no fundo, duas: uma primeira, referida pelo Sr. Deputado António Vitorino, é a de que com esta ideia de ressalvar os preceitos que forem materialmente regulamentos, porque estamos perante uma situação da divisão entre leis e regulamentos em que os segundos têm uma expansão muito superior às primeiras, corre-se o risco de, por esta via e de uma forma ínvia, acabar por destruir todo o significado do n.° 4 do artigo 115.°
Penso que há aqui que ponderar muito seriamente o seguinte: será que a natureza de acto materialmente regulamentar é algo que não pode ser averiguado, na maior parte dos casos, de uma maneira clara? Será que V. Exa. considera que o problema, que foi uma grande vitória do artigo 268.°, n.° 3, de poder, independentemente da sua forma, impugnar os actos, e que certamente abrange também os actos regulamentares, afinal de contas não é um avanço tão grande como isso, porque não é possível - pelo menos nos actos normativos - distinguir minimamente o que são actos regulamentares e actos legislativos?
Tenho sinceras dúvidas de que assim aconteça. Todavia, como o nosso propósito é, claramente, o de obviar aos inconvenientes práticos que resultam de uma proibição que abrange preceitos que são inequivocamente normativos, estaríamos abertos a uma formulação que eventualmente acautelasse um pouco melhor as suas preocupações. O que nos parece manifestamente excessivo é brandir a ideia de que os actos materialmente regulamentares são qualquer coisa que é insusceptível de ser captada, o que traria consequências graves noutros capítulos. Ligado com isto, V. Exa. produz um outro argumento - e esse de carácter, a meu ver, mais importante, mais sério e que nos deve merecer uma atenta ponderação. É que a propósito do n.° 6 do artigo 115.° o PSD elimina a referência à competência objectiva. E diz V. Exa. duas coisas: em primeiro lugar, que isto significa que se pretende claramente legitimar os regulamentos autónomos que, no entender de V. Exa., estão proibidos; em segundo lugar, que há aqui um reforço dessa possibilidade, da tendência expansiva da competência regulamentar do Governo, o que, naturalmente, cria preocupações, e esse problema foi mais nitidamente sublinhado pelo Sr. Deputado José Magalhães retendo ou acentuando de maneira mais clara as considerações de aspecto político que isso implica.
Quereria, em primeiro lugar, dizer que para mim é duvidoso que haja uma clara distinção dogmática, ou melhor, que haja uma distinção dogmática entre regulamentos independentes e regulamentos autónomos. É que não sei bem - a perfilhar a interpretação de V. Exa. - que sentido se deve dar aos regulamentos independentes. Por outro lado - e poderemos discutir isso amanhã mais longamente -, se colocarmos a questão não apenas no Governo - porque gostaria de lembrar a V. Exa. que não é apenas o Governo que faz regulamentos, nem são apenas as instituições de Administração Pública que representam, de algum modo, devoluções do poder institucional do Governo, mas há entidades verdadeiramente autónomas com poder regulamentar, e estou a pensar, muito claramente, nas posturas -, gostaria de saber como é que V. Exa. ressalva a legalidade das posturas se não admitir que as mesmas não têm uma referência objectiva, que, naturalmente, não têm. Isto para dizer que a matéria é mais complexa e que não foi um propósito puramente político ou "politiqueiro" que nos motivou a apresentar uma proposta, embora não fosse, de resto, V. Exa. que o tivesse dito, mas disse-o o Sr. Deputado José Magalhães, e, neste momento, estou a responder aos dois simultaneamente.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Presidente, também não fui eu, de certeza, que disse tal, sobretudo "politiqueiro"...
O Sr. Presidente: - Disse-o sim, Sr. Deputado, ainda que de forma implícita, e não obstante deva reconhecer que o "politiqueiro" é meu, para traduzir a sua posição.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Isso será má consciência sua! Eu não disse isso.
O Sr. Presidente: - Não, Sr. Deputado, não tenho má consciência. V. Exa. foi implicitamente "politiqueiro", que é uma maneira de desenvolver as bases do seu raciocínio.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Presidente. Gostaria, aliás, que V. Exa. pudesse esclarecer melhor, não esse aspecto, que, de resto, é secundário - é um deslize de oratória (espero não ter sido objectivamente um deslize politiqueiro) -, mas essa sua última observação em relação às posturas. Refiro-me à questão da competência objectiva.
O Sr. Presidente: - As posturas, como V. Exa. sabe, são definidas justamente pela circunstância de no âmbito da competência das autarquias - e por isso têm, naturalmente, uma definição subjectiva clara - não terem uma referência concreta a normas de grau superior que regulamentem. De qualquer forma - repito -, o problema dos regulamentos independentes é uma questão importante, visto que regulamentos independentes e regulamentos autónomos são numa certa forma uma e a mesma coisa. É certo que alguns autores - sobretudo aqueles com uma grande propensão marginal para as chavetas múltiplas - encontram várias soluções para isso, mas, em todo o caso, existe aqui um problema que convém elucidar...
O Sr. José Magalhães (PCP): - São os "chavetiqueiros"?
O Sr. Presidente: - Ou "chaveteiros"!
Mas, por outra parte, gostaria de acrescentar - e devo dizer que estou a pensar no campo do direito administrativo -, que, quando V. Exa. refere o problema da existência ou não de regulamentos autónomos com um ar horrorizado, tenho dúvidas que seja inconstitucional a prática dos regulamentos autónomos. E isto porque V. Exa. tem de conjugar o artigo 115.° com o artigo 202.° E no artigo 202.° alguns autores - estou a pensar, por exemplo, no caso do Dr. Sérvulo Correia - fazem uma interpretação da alínea c) conjugada com a alínea g) que os leva a admitir esses regulamentos. Tanto tendo em atenção - e isso é importante - que hoje essa prática não seria grave,