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Quinta-feira, 29 de Setembro de 1988 II Série - Número 38-RC

DIÁRIO da Assembleia da República

V LEGISLATURA 1.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1987-1988)

II REVISÃO CONSTITUCIONAL

COMISSÃO EVENTUAL PARA A REVISÃO CONSTITUCIONAL

ACTA N.° 36

Reunião do dia 29 de Junho de 1988

SUMÁRIO

Finalizou-se a discussão do 13. ° Relatório da Subcomissão da CERC respeitante aos artigos 111.° a 122.º e respectivas propostas de alteração.

Iniciou-se a discussão do 14.º Relatório da Subcomissão da CERC respeitante aos artigos 123.° a 149.° e respectivas propostas de alteração.

Durante o debate intervieram a diverso titulo, para além do Presidente, Rui Machete, pela ordem indicada, os Srs. Deputados José Magalhães (PCP), Costa Andrade (PSD), António Vitorino (PS), Mário Maciel (PSD), Jorge Lacão (PS), Maria da Assunção Esteves (PSD), Sottomayor Cárdia (PS), Vera Jardim (PS), Alberto Martins (PS), Almeida Santos (PS), Miguel Galvão Teles (PRD), Carlos Encarnação (PSD), Miguel Macedo e Silva (PSD), Pais de Sousa (PSD), José Manuel Mendes (PCP) e José Luís Ramos (PSD).

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O Sr. Presidente (Almeida Santos): - Srs. Deputados, temos quorum, pelo que está aberta a reunião.

Eram 16 horas.

O Sr. Presidente: - Vamos começar a discussão do artigo 117.°, relativamente ao qual há uma proposta do CDS que substitui a expressão "nos órgãos baseados no sufrágio universal e directo" pela expressão "no exercício do poder político"; substitui à expressão "representatividade democrática" a expressão "representatividade eleitoral"; o n.° 2 penso que é novo: "a organização interna e o funcionamento dos partidos deverá obedecer a princípios democráticos"; o artigo 18.°, no fundo, transcreve para aqui os n.ºs 2 e 3 do actual artigo 117.° mas, em vez de "oposição democrática", diz apenas "oposição".

O PCP acrescenta no final do actual n.° 3 "bem como do direito de ser previamente consultado sobre a marcação das eleições para as autarquias locais, as opções fundamentais do plano e do Orçamento do Estado, a orientação fundamental da política externa e das políticas de defesa nacional e de segurança interna e a designação de membros portugueses para organizações internacionais de que Portugal faça parte". É, portanto, uma menção específica.

O PS acrescenta ao n.° 3 "de igual direito gozando os partidos políticos representados em quaisquer outras assembleias políticas eleitas directamente pelos cidadãos eleitores, relativamente aos correspondentes executivos de que não façam parte". No fundo, é uma extensão do que ocorre relativamente à Assembleia da República a todas as demais assembleias eleitas directamente, relativamente aos respectivos executivos.

O PSD também altera a expressão "representatividade democrática" no n.° 1, por "representatividade eleitoral". Não estando ninguém do CDS para justificar a sua proposta, pergunto ao PCP se pretende justificar o acrescento do n.° 3.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Muito sucintamente, gostaria de sublinhar que este é um dos pontos característicos do projecto de revisão constitucional do PCP, em matéria de organização do poder político.

Pude ontem enunciar qual é o conjunto de regras, às quais subordinámos a apresentação de propostas nesta matéria. Não se trata aqui de introduzir inovações substanciais no conjunto de princípios e de normas que moldam esta parte da Constituição, que não merece, em nosso entender, nenhuma revisão de fundo, e não carece de qualquer alteração de arquitectura, reentendemos, sim, que em alguns pontos pode justificar-se a introdução de mecanismos que enriqueçam o tecido constitucional. As mais das vezes tratar-se-á (e este é um caso desses, por excelência) de transfegar para o direito constitucional aquilo que, em diálogo com o direito constitucional e em cumprimento de ditames constitucionais, foi sendo edificado na ordem jurídica.

No caso vertente, o direito de oposição tem vindo, por um lado, a ser objecto de aperfeiçoamentos em sede constitucional. Na primeira revisão constitucional, o artigo 117.° foi corrigido no sentido de passar a assegurar, com carácter mais explícito e em modalidades mais precisas, os direitos dos partidos políticos representados na Assembleia da República que não façam parte do Governo. Não trasladarei para aqui o debate que, em torno dessa matéria, foi travado; em todo o caso ele é de inteira actualidade, porventura até de reforçada actualidade. Não estando a Constituição vinculada a apenas um dos cenários possíveis para a relação governo/oposição, antes devendo comportar todos a sua adequação a situações como a que se verifica neste momento, com determinados contornos, e poderá verificar-se com outros, em momento adiante deve ser uma preocupação comum, independentemente do lugar que se ocupe no hemiciclo e da posição política que, em dado momento, se tenha. É, portanto, uma questão de regime, a que está aqui em debate. O aperfeiçoamento do quadro constitucional não deve, em nosso entender, ser encarado como o interesse mesquinho, sectário ou egoísta dos partidos da oposição, na mim de lograrem aquilo que, por outra via, não consigam; mas, pelo contrário, como um enriquecimento que deve ter em conta aquilo que são metas essenciais e características fundamentais do próprio regime democrático que integra - não fosse ele marcado, precisamente, pelas diversas dimensões da democracia, o direito de oposição, como uma das suas características - e não um direito platonicamente proclamado, ou apenas semântico, mas um direito caracterizado por uma pluralidade de garantias e reais possibilidades de efectivação prática.

Em segundo lugar, gostaria de referir o trajecto percorrido na lei ordinária em matéria de tutela do direito de oposição que agora gostaríamos de ver ou transposto com enriquecimento para a Lei Fundamental. Sabemos que a Lei n.° 59/77, de 5 de Agosto, com algumas implicações na primeira revisão constitucional, veio explicitar e concretizar as diversas dimensões do direito de oposição democrática que, por sua vez, é, ele próprio, concretização, como referi, de outros princípios e direitos fundamentais da Constituição. Mais recentemente tivemos ocasião de, na Lei da Segurança Interna, consagrar explicitamente um novo direito dos partidos da oposição no que diz respeito às políticas inseridas nessa área.

Por outro lado, a reflexão sobre a problemática das Comunidades alertou para a enorme importância de que certos direitos, envolvendo a representação externa do Estado Português, sejam exercidos pelos órgãos competentes não numa perspectiva puramente ligada às correlações de forças e aos poderes concedidos a um determinado partido ou conjunto de partidos, mas tendo em conta - dado que se trata, no fundo, de representações nacionais - o espectro mais amplo das formações partidárias, incluindo, portanto, os partidos da oposição. Trata-se aí, também, de garantir uma representação com um cunho alargado, ainda que, naturalmente, os partidos de oposição democrática não sejam convertidos, por esse facto, em partidos de governo, nem partilhem o poder como tal. Assim, em nada se fere a separação e interdependência dos órgãos de soberania, nem os resultados do sufrágio.

A proposta apresentada pelo Grupo Parlamentar do PCP limita-se a exprimir aquilo que, hoje, são já normas de direito ordinário. Tivemos, de resto, a preocupação de nos cingirmos, o mais possível, aos termos das próprias leis em vigor. Se VV. Exas. fizerem o cotejo entre a legislação a que fiz referência e os temas a cuja elencagem se procede no projecto de revisão constitucional do PCP, verificarão que o projecto os

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reproduz praticamente palavra a palavra, com excepção da última componente - uma vez que, quanto à "designação de membros portugueses para organizações internacionais de que Portugal faça parte", não existe nenhuma lei ordinária susceptível de ser invocada para este efeito. Há, no entanto, com um carácter convergente, ou próximo, a legislação aprovada pela Assembleia da República, vigente neste momento, relacionada com o regime de articulação entre os diversos órgãos de soberania para efeitos da participação nas instituições comunitárias e para conhecimento e acompanhamento das questões relacionadas com as Comunidades. Esse é o elemento de aproximação que poderíamos invocar para justificar, ou para inserir e enquadrar neste ponto a proposta apresentada pelo grupo parlamentar do PCP.

Gostaria de manifestar que a nossa proposta tem pontos convergente com as de outros partidos, mas sobre essa matéria me pronunciaria, naturalmente, depois de feita a respectiva apresentação.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Nós mantemos o artigo 117.° inalterado, apenas com uma pequena alteração: onde está "representatividade democrática" propomos a expressão "representatividade eleitoral". Parece-nos que a expressão "representatividade eleitoral" é mais concretizadora, é uma expressão de conteúdo mais fáctico do que normativo. A expressão "democrática", neste contexto, não desempenha a necessária função de clarificação e de estabilização das coisas, como o desempenha o conceito de "eleitoral"; o conceito "democrático" é, naturalmente, um conceito de significado semanticamente mais extenso, mas também, por isso, mais difuso: Para o efeito, entendemos que "eleitoral" é um conceito rigoroso e preciso para desempenhar aqui a função que dele se espera.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - O n.° 3 do artigo 117.° da Constituição, hoje em dia, consagra um direito de oposição, construído todo ele na óptica do exercício do direito de oposição por parte dos partidos políticos representados na Assembleia da República, o que é, naturalmente, a forma mais relevante de exercício desse direito de oposição. Contudo, o sistema político-constitucional português consagra a existência de várias instâncias dotadas de natureza política onde se afirma uma relação típica de assembleia deliberativa/órgão executivo, não apenas no plano estadual, mas também a outros níveis do Estado democrático, como sejam, designadamente, o nível regional e o nível local.

O que o PS faz, na proposta de novo n.° 3 para o artigo 117.° da Constituição, é alargar o âmbito de aplicação do direito de oposição consignado, prevendo que esse direito de oposição que a Constituição consagra, hoje, apenas para partidos políticos representados na Assembleia da República também passe a abranger os partidos políticos que têm assento em outras assembleias políticas, eleitas directamente por cidadãos eleitores, e em relação aos executivos de que esses partidos políticos não façam parte.

Cabem neste caso as assembleias regionais, naturalmente - isto é, o exercício do direito de oposição por parte dos partidos políticos com assento nas Assembleias Regionais dos Açores e da Madeira que não estejam representados no governo regional; cabem também os casos dos partidos políticos com representação nas assembleias municipais que, contudo, não integram o respectivo executivo camarário. Naturalmente que, quando esses partidos integram o executivo camarário, não faz sentido falar em partidos de oposição, na medida em que, mesmo que não tenham pelouros distribuídos, são partidos que integram um órgãos do município, que é a Câmara Municipal - portanto, não se poderá falar numa situação típica de relação entre um executivo de uma determinada força política e partidos de oposição.

Aliás, a lógica da existência de executivos camarários eleitos por representação proporcional é a de que dentro da própria câmara existam diversas correntes de opinião e de que a fiscalização ou controle de acção da maioria, ou daqueles que têm a responsabilidade principal pelo executivo - que são os eleitos pela lista mais votada e desde logo o presidente da câmara - seja exercido pelos partidos que integram também o executivo camarário, por força do método de representação proporcional. Portanto, quanto aos municípios, o efeito útil da nossa proposta é o de contemplar as situações em que há partidos que não estão, de facto, representados no executivo camarário e que têm assento na assembleia municipal, consagrando-se para estes um princípio genérico de garantia de informação ao abrigo do estatuto do direito de oposição. Sem prejuízo de, naturalmente, a lei poder especificar com maior cuidado em que consiste este direito de oposição nestes casos - tal como, já hoje em dia, a lei faz para o próprio direito de oposição à escala nacional, isto é, com incidência na relação entre o Governo e a Assembleia da República.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Mário Maciel.

O Sr. Mário Maciel (PSD): - Pretendo manifestar a minha concordância com a proposta do PS. É claro que ela abarca também a situação das assembleias regionais, mas desde já fazia uma sugestão ao PS para que, de certa maneira, destrinçasse a dignidade das assembleias regionais, acrescentando, por exemplo, à expressão "Assembleia da República" uma copulativa: "e nas assembleias regionais dos Açores e da Madeira", ficando então noutro contexto as assembleias municipais, etc.

Gostaria também de acrescentar que esta proposta fazia parte do conjunto de intenções do PSD regional, que foram, inclusivamente, discutidas com a direcção nacional do partido. É uma proposta que, obviamente, subscrevemos na íntegra.

O Sr. Presidente: - Gostaria de saber se essa é só a posição dos deputados da Madeira, ou é também a posição do PSD.

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O Sr. Mário Maciel (PSD): - Obviamente, falei em nome pessoal.

O Sr. Presidente: - Por isso mesmo pergunto ao Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, o nosso colega de bancada, deputado Mário Maciel, falou naturalmente em nome pessoal, portanto, em nome dos deputados das regiões autónomas. Nós, PSD a nível nacional, não andamos, nesta fase, longe disto. Talvez devêssemos introduzir apenas, por uma questão de cautela, uma referência - que, de resto, foi aflorada pelo Sr. Deputado António Vitorino - à lei, na medida em que seria conformado pela lei o exercício do direito de oposição. A proposta do PS limita-se, no fundo, a tirar as consequências lógicas da ideia de oposição, a todos os níveis. Por princípio, parece-nos que isso já decorreria da lógica da essência da representação e do poder político representativo.

O Sr. Presidente: - A justificação é a mesma.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Exacto, parece-nos que sim. Nesta fase, a nossa propensão é para aprovar um preceito como este, ou autonomizando a referência às regiões autónomas, como foi sugerido, ou, pelo contrário, privilegiando, como aqui está, a ideia das instituições da República e remetendo depois todas as outras instituições para o inciso acrescentado pelo PS. Mas talvez devêssemos acrescentar algo do tipo: "de igual direito gozando, nos termos da lei, os partidos políticos representados em quaisquer outros [...]". Seria uma reserva de prudência.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Realmente constato - e com isto me congratulo - a circunstância de haver uma boa margem de coincidência nas propostas avançadas pelos diversos partidos, na medida em que se trata de alargar este direito de os partidos da oposição serem informados por parte do Governo.

Penso, de resto, que a proposta do Sr. Deputado Mário Maciel é positiva, na medida em que, explicitando melhor a consignação deste dever e alargando-o, também, às regiões autónomas, de certa maneira institucionaliza e dignifica essa relação de consulta que já estava, aliás, assumida na versão inicial do texto constitucional.

Mas onde tenho algumas reservas é quanto à explicitação apresentada pelo PCP, na medida em que foge do princípio genérico, a confirmar em sede de legislação ordinária, para a explicitação desse ónus, relativamente a um conjunto de matérias. É verdade, como o Sr. Deputado José Magalhães já referiu, que esse conjunto de matérias já está hoje, de uma maneira ou de outra, consagrado em sede de legislação ordinária. O meu receio é que a consagração explícita possa ser entendida como uma espécie de numerus clausus e que, portanto, se entendesse para futuro que o ónus governamental de audição a partidos de oposição se circunscreveria às matérias explicitamente determinadas no texto constitucional, ficando a legislação ordinária, de algum modo, diluída na possibilidade de tornar mais extensivo o alcance desse dever de consulta aos partidos da oposição.

Por outro lado, tenho ideia que alguma da formulação apresentada pelo PCP incorre em problemas técnicos de algum melindre, pois, por exemplo, quando se visa consignar o dever de consulta para a designação de membros portugueses para organizações internacionais de que Portugal faça parte, é talvez de pressupor que essas organizações internacionais teriam todas necessariamente natureza infragovernamental. Ora, a verdade é que há organizações internacionais que não têm essa natureza e, consequentemente, não compete, exclusivamente ou sequer preferencialmente, ao Governo a indicação de elementos para esse tipo de organizações internacionais. Assim sendo, esta explicitação genérica poderia criar algumas dificuldades supervenientes de interpretação e sou levado a pensar que haja mais razão para admitir antes um princípio genérico, remetendo para a legislação ordinária a consagração da especificidade desse poder de consulta do que, propriamente, consagrá-lo já em sede constitucional.

Em conclusão, suponho que a versão apresentada pelo PS juntamente com o aditamento de abertura avançado pelo deputado Mário Maciel nos aproximaria mais de uma solução equilibrada, remetendo para a legislação ordinária a consagração e a explicitação desse dever de consulta.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Jorge Lacão, gostava de lhe formular uma pergunta quanto ao segundo ponto que abordou. Seria capaz de especificar um pouco os "problemas de carácter técnico e de extremo melindre" que encontra na solução para que nós apontamos ao desejarmos a especificação deste direito de os partidos políticos da oposição serem consultados sobre a designação de membros portugueses para organizações internacionais de que Portugal faça parte?

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Deputado José Magalhães, há organizações internacionais em que Portugal se faz representar em que a incumbência de designação dos representantes não compete ao Governo. São exemplo disso todas as organizações internacionais de composição parlamentar que têm representantes a partir dos parlamentos nacionais. Esta disposição genérica poderia, de certa maneira, induzir à interpretação de que, mesmo nessas circunstâncias, seria conveniente ou até necessário que o partido maioritário também fosse parte activa no processo de designação, mesmo se se tratasse só de designação em sede parlamentar - e dir-me-á que a interpretação é demasiado forçada, mas não deixo de admitir que seja uma interpretação possível.

Por outro lado, há organismos internacionais que têm representantes que não são representantes governamentais ou não o são exclusivamente, como é o caso da OIT que é, seguramente, uma instância internacional em que a representação se faz a partir de processos de designação não totalmente governamentalizados. De onde, portanto, que a explicitação pretendida pelo

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PCP não pareça ser totalmente coincidente com o universo das formas de designação e de representação em sede de organizações internacionais. Este é, portanto, o fundamento para uma objecção.

A outra objecção que fiz foi a que me referi no princípio da minha intervenção e que tem a ver com a interpretação possível de que a consignação de um elenco de direitos em sede constitucional poderia, para futuro, levar a reconhecer apenas os direitos estabelecidos na Constituição. Ora, quereria também fugir a essa interpretação restritiva e daí que preferisse, à partida, a formulação de um princípio genérico em sede constitucional.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Presidente, queria apenas dizer que, da parte do PSD, há algumas objecções à proposta do PCP. Diferentemente da perspectiva do Sr. Deputado Jorge Lacão, devo dizer que considero tratar-se de duas propostas de natureza tão diferente que nem em termos de alternativa se poderá falar porque, de um lado, temos o prolongamento - no que respeita à proposta do PS - da redacção do n.° 3 e a extensão desse regime a outras assembleias políticas que não a Assembleia da República e, do outro lado (proposta do PCP), temos a criação de um direito novo cujos contornos são difíceis de determinar.

Ora, de que tipo de consulta trata a proposta do PCP? Em primeiro lugar, essa proposta tem um efeito claro e imediato, ou seja, o da própria diminuição da extensão e do alcance do princípio maioritário. Ela enfraquece o suporte legitimatório do poder de decisão da maioria parlamentar e abstrai da própria génese parlamentar-maioritária do governo. Esta é a primeira questão.

A segunda questão é exactamente a da natureza deste direito de ser consultado. Trata-se do direito de fiscalizar e já consta do quadro da competência política e legislativa da Assembleia, constitucionalmente consagrada. Ou será que este tipo de consulta é no sentido de atribuir aos partidos políticos que não façam parte do Governo prerrogativas especiais que se cifram num direito de consulta especial e que, ao mesmo tempo, vem desnaturar o poder fiscalizador da Assembleia da República, tal como lhe é constitucionalmente assinalado? Mas, mesmo a ser assim, tenho dúvidas de qual seria o contorno desse direito de consulta por parte dos partidos da oposição.

Outra questão que se poderá pôr é a seguinte: uma vez assente este direito, qual seria a natureza da Assembleia da República a partir daí? Seria também um órgão de natureza consultiva? De natureza mista?

As definições deste tipo de direito são equívocas e perversas, nomeadamente no que diz respeito ao relacionamento entre o Governo e a Assembleia da República no quadro do equilíbrio institucional que entre ambos os órgãos de soberania se estabelece.

Poderia pôr-se ainda a questão - que tem a ver, eventualmente, com alguma eventual intenção legislativa deste preceito - da defesa das minorias face a um governo ou a uma coligação maioritária.

Penso que não há que ter problemas se este direito de contornos indefinidos se não vier a consagrar, como, no meu entender e no entender do meu partido, faz sentido que se não consagre. Os direitos das minorias estão garantidos por outras vias, não apenas, por via da defesa subjectiva a nível dos direitos consagrados constitucionalmente, mas também a nível de uma certa dimensão objectiva de defesa desses direitos igualmente consagrada. E refiro-me, por exemplo, ao controle interorgânico que se estabelece a partir do controle da constitucionalidade das leis por parte dos tribunais.

Era, portanto, este o conjunto de considerações que queria pôr ao Sr. Deputado. José Magalhães.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão, para fazer uma pergunta.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, a Sra. Deputada Assunção Esteves começou por fazer algumas considerações reportando-se à minha primeira intervenção.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Não, Sr. Deputado.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Mas permita-me que lhe coloque uma questão, apesar de tudo. Como verá, dela resulta uma tentativa de me demarcar da interpretação que acabou de fazer relativamene a este ponto, porque as minhas objecções, face à proposta apresentada pelo PCP, tinham a ver com uma preocupação de fundo, que era a de considerar que a explicitação de um conjunto de direitos por parte dos partidos da oposição e do correspondente ónus por parte do Governo poderia ser interpretada em termos de numerus clausus e, portanto, limitar a possibilidade do legislador ordinário na definição do estatuto da oposição.

Agora, a interpretação que a Sra. Deputada faz é de outra natureza e, designadamente, vai ao ponto de considerar que isto implicaria a diminuição da extensão e do alcance do princípio maioritário, pois estabeleceria ónus tais a um Governo que esse princípio maioritário, com todas as suas prerrogativas, poderia ficar afectado. Essa questão parece-me interessante, vista desse ponto de vista, porque a Sra. Deputada Assunção Esteves acaba talvez por considerar que os partidos não representados no Governo não poderiam reivindicar para si o direito não apenas à tradicional e clássica fiscalização dos actos governativos - o que sempre se fará, em princípio e a posteriori -, mas também o direito de participação política, direito esse que implica, não o co-envolvimento dos partidos da oposição na responsabilidade das decisões governamentais, mas a possibilidade de informação em tempo aos partidos da Oposição de decisões governamentais que afectem aquilo que poderíamos chamar a salus publica - o interesse público genérico ou o interesse público específico desde que suficientemente relevante.

Nós, no PS, propendemos para esta segunda interpretação, ou seja, de que se justifica o direito dos Governos informarem os partidos da oposição ou os partidos não representados nas estruturas executivas em nome do direito de participação política que esses par-

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tidos têm relativamente ao interesse público. Nesse sentido, esta sua interpretação, obviamente, não colhe uma concordância da minha parte.

Como vê, não foi propriamente uma pergunta que lhe fiz, mas mais uma tentativa de não deixar envolver as minhas considerações iniciais nas considerações que agora a Sra. Deputada fez.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Deputado Jorge Lacão, quando me referi à sua intervenção não foi para a contestar, mas apenas para dizer que, da minha parte e da parte do meu partido, pretendia ainda ir mais longe. Foi só isso. No entanto, creio haver uma certa confusão da sua parte quando diz que o direito a ser informado por parte dos partidos da oposição no quadro da Assembleia obedece a um esquema participativo. Não é o direito a ser informado o que está em causa, porque esse já está efectivamente consagrado no artigo 117.° O que está em causa é um novo direito, que o PCP parece vir aqui consagrar, que é uma espécie de direito de consulta dos partidos minoritários não representados no Governo e representados na Assembleia.

Esse problema é que é controverso, porque a fiscalização política levada a cabo pela Assembleia da República é efectivada através de um mecanismo deliberativo e não através de um mecanismo consultivo.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sra. Deputada, de facto, não me meti por aí, mas queria dizer-lhe que já hoje existem, em sede de legislação ordinária, várias leis - e o deputado José Magalhães há pouco referiu-se à Lei de Segurança Interna como exemplo - em que este direito de ser consultado, por parte dos partidos da oposição, já existe. E já existe nalgumas matérias, tendo em vista o significado nacional de que se revestem e a conveniência de poderem ser decididas na base do maior consenso nacional possível. Nesse sentido, não se trata apenas de um direito a ser informado, mas de um direito de ser informado. Ora, não me escandalizaria que esse direito de ser informado fosse também consignado na Constituição, embora esta não seja uma proposta originária do PS. E apenas me reportei, discordando, à explicação do conteúdo desse direito a ser informado.

Gostaria ainda de lhe lembrar que o direito de consulta é um direito que tem já hoje a sua tradução e consagração na legislação ordinária e que, portanto, não significa uma inovação na ordem jurídica. Significaria, quando muito, uma inovação na ordem jurídica constitucional.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Mas, consagrado constitucionalmente, pode levar a grandes dúvidas sobre a própria natureza da Assembleia da República como órgão de fiscalização através de mecanismos deliberativos, e é isso que acho que está em causa neste momento.

Não digo que não haja já consagrações a nível da lei ordinária. Não digo que não e não ponho de parte a hipótese, mas continua, de qualquer modo, a causar-me alguma confusão e alguma perplexidade esta disposição a nível da Constituição.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, quero apenas fazer uma pergunta ao Sr. Deputado José Magalhães, que penso que ainda irá intervir, naturalmente em resposta a algumas observações que lhe foram dirigidas, designadamente pela minha colega Assunção Esteves, que questionou a legitimidade, o conceito, a natureza e a essência deste direito de consulta prévia. A pergunta respeita à consistência deste artigo, no sentido, designadamente, de determinar com rigor quando é que este direito é cumprido e quando é que é violado. Uma vez que, na formulação do PCP, a norma tem uma dimensão temporal muito clara, remetendo para um desenvolvimento diacrónico dos acontecimentos, pergunto ao Sr. Deputado o que é "consultar previamente em relação à orientação fundamental da política externa". Ou seja: em relação a que momento da vida política de um Governo este deve consultar previamente os partidos? É que a orientação fundamental da política externa define-se no Programa do Governo, submetido à apreciação da Assembleia da República. É nessa altura que o Governo apresenta ao Parlamento a sua orientação, embora já com algumas concretizações, e que, peia primeira vez, o mesmo Governo, acabado de sair de eleições, tem as suas orientações fundamentais de política externa. Gostaria de saber, reportando-me à proposta do PCP, quando é que, concretamente, para cumprir essa norma, o Governo deve consultar previamente. O que é que significa o advérbio "previamente" em relação à orientação fundamental da política do Governo? Quando é que, concretamente, um Governo deve consultar previamente os partidos políticos da oposição em relação à orientação fundamental da política externa?

Esta é uma dúvida que não contende nem com a legitimidade da norma, nem com a sua bondade, mas que contende com a operatividade e o modus faciendi. Quando é que se poderá dizer que o Governo violou o texto constitucional ao não consultar os partidos da oposição?

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, as questões colocadas são de natureza muito distinta, porque os pressupostos são igualmente muito diferentes.

Enquanto o Sr. Deputado Jorge Lacão se colocou, de um ponto de vista que perfilho, quanto ao estatuto do direito da Oposição, quanto à aplicação que tudo isto é do próprio princípio democrático e quanto à garantia que esse direito representa da própria separação e interdependência dos órgãos de soberania, os Srs. Deputados do PSD, e porventura mais frescamente a Sra. Deputada Assunção Esteves, colocaram-se do ponto de vista da intolerável "incompatibilidade" da proposta do PCP com aquilo que vêem de mais querido na Constituição, uma vez que só vêem nela uma "manta" protectora da querida maioria.

Curiosamente, no entanto, há uma gradação nos pressupostos desses críticos do segundo tipo. Enquanto o Sr. Deputado Costa Andrade se inclina mais para questionar o modus faciendi escolhido pelo PCP, a Sra. Deputada Assunção Esteves vai mais à essência e à própria filosofia da proposta apresentada, vendo nela

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um atentado a esse aspecto que comecei por sublinhar, ou seja, as prerrogativas, direitos e imunidades da dita cuja "querida maioria".

Bis uma óptica que eu tinha procurado arredar do debate - ai de mim! Pois bem tentei que ele se situasse na óptica da configuração do regime que tem pólos, tem uma maioria e tem uma oposição. Tem uma maioria com uma determinada característica hoje, amanhã outra, ou nenhuma até (uma vez que, como se sabe, o sistema pode funcionar sem uma maioria decorrente da existência de um determinado resultado eleitoral para um só partido). E apelei a que a reflexão sobre esta matéria fosse vista, por um lado, não conjunturalizada, não exclusivamente virada para a circunstância política concreta que vivemos neste momento e que pode ser ultrapassada - esperamos que sim - em momento ulterior, e por outro lado, para que não se fizesse este debate sob o ângulo da defesa da fortaleza sitiada da maioria por uma aguerrida minoria, nem do ponto de vista da minoria no seu relacionamento com uma determinada e circunstancial maioria. Digamos que esse objectivo se frustrou.

A intervenção do Sr. Deputado Jorge Lacão situa-se num outro plano, como já referi. Quanto a mim, não tem excessiva razão e, sobretudo, não tem excessiva coerência, por um motivo simples: é que os argumentos do Sr. Deputado Jorge Lacão desdobram-se por assim dizer, em duas fileiras distintas.

Devo dizer que os primeiros me deixam completamente surpreendido. Afirmar-se que fazer o enriquecimento proposto pelo PCP constituiria algo até de "perigoso" e que eventualmente estaríamos a ser filhos madrastos de uma boa oposição, ao consagrar uma cláusula que correria o risco de funcionar como numerus clausus, não tem francamente razão bastante (e daí, de resto, a dificuldade do Sr. Deputado Jorge Lacão em argumentar nesse sentido). De facto, é evidente que não rege aqui nenhum princípio de numerus clausus, visto estarmos em pleno domínio da liberdade política, domínio esse em que, como o Sr. Deputado Jorge Lacão seguramente sabe, os partidos, além de terem este direito de informação consagrado constitucionalmente, têm, do ponto de vista da lei ordinária, consagrados no estatuto do direito de oposição outros direitos: direitos de participação, direitos de consulta prévia, direitos de depoimento, direitos quanto à intervenção em órgãos de comunicação social. E nunca ninguém viu na Constituição, nesta sua norma que prevê, específica, directa e imediatamente, o direito de informação, uma cláusula limitativa, um numerus clausus sobre os direitos dos partidos da oposição. De maneira nenhuma! Técnico-juridicamente a constitucionalização de alguns direitos de oposição não exclui, de forma alguma, que a oposição venha a ver, concedidos por lei ordinária e dentro dos parâmetros gerais traçados pelos princípios constitucionais e por estas balizas, outros direitos, direitos não constitucionais, direitos com mero assento legal. É apenas isso: é banal, é normal, é uma operação legítima e possível em direito constitucional, em direito político.

Por outro lado, a argumentação não é coerente, porque o PS apresentou em diversos pontos do seu projecto de revisão constitucional propostas que se filiam num pressuposto igual. Se, por exemplo, o Sr. Deputado Jorge Lacão folhear o projecto de lei do PS e vir .as propostas que subscreveu em relação ao artigo 20.°.

sobre o acesso ao direito, lá encontrará várias tendentes a introduzir segmentos adicionais aos que já constam dos preceitos vigentes. Pela nossa parte, não vimos nem veremos nisso nenhuma perigosa incursão que conduza a sustentar-se um eventual numerus clausus impeditivo de que o legislador ordinário aprofunde e alargue estes aspectos. Portanto, Sr. Deputado Jorge Lacão, francamente parece-me que a sua argumentação não prova aquilo que pretende provar.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - O Sr. Deputado José Magalhães visava, no fundo, tentar compaginar em sede constitucional um direito genérico de informação e um direito específico de participação. É assim?

O Sr: José Magalhães (PCP): - De consulta.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - A minha alegação de há pouco mantém o seu sentido: na verdade, um direito à informação que se mantenha na sua formulação genérica não inconstitucionalizará a consagração de quaisquer direitos de consulta em legislação ordinária nem induzirá uma estratificada hierarquia das prioridades, como que diminuindo o alcance de outras possibilidades de consulta aos partidos da oposição.

Todavia, pretendia fazer-lhe uma pergunta, que é a seguinte: qual seria a consequência, no plano jurídico, da preterição deste direito de consulta prévia sobre as matérias aqui especificadas. Precisando, seria porventura a preterição de uma formalidade essencial na decisão do acto governativo?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, creio que são precisões bastante úteis aquelas que acaba de fazer. No primeiro caso, aliás, a precisão tem o verdadeiro nome de rectificação. V. Exa. reconhece - o que me parece saudável e de bom senso - que a nossa proposta não inconstitucionalizaria coisa nenhuma consagrada na lei ordinária, apenas estabeleceria direitos com dois estatutos: uns com um estatuto reforçado e consagração constitucional e outros com um estatuto meramente legal.

Obviamente, a outra consideração que faz, em sede de argumentação derivada ou secundária, qual seja a do impacte que uma consagração deste tipo poderia ter na panóplia de direitos dos partidos da oposição, estabelecendo uma diferenciação entre uns com assento constitucional e outros com assento meramente ordinário (desvalorizando eventualmente uns e hipervalorizando outros) é uma consideração possível que só se deve fazer numa óptica de contabilidade política, no sentido exacto: se estão consagrados constitucionalmente os mais relevantes e nobres direitos dos partidos de oposição, se assim fica acautelada a sua garantia e se assim fica diminuída a margem de legiferação possível para o legislador ordinário, então esse saldo é pouco preocupante na medida em que o legislador ordinário ficará com uma esfera de decisão contida e o essencial para a defesa do princípio democrático neste ponto estará salvaguardado constitucionalmente. Consequentemente, a questão de saber se ficou de fora algum direito eventualmente útil - de "fora" no sentido de "fora da Constituição", mas não da ordem jurídica, como é óbvio - parece-me assumir uma importância

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perfeitamente secundária, repito: se conseguido este desiderato de elevação ao nível constitucional da garantia dos direitos dos partidos da oposição. Este é um primeiro aspecto.

O segundo aspecto diz respeito à fileira argumentativa do Sr. Deputado Jorge Lacão assente em supostos "problemas técnicos de melindre" - assim disse. Reconheço que a alusão, que de resto consta do projecto de lei do PCP, a uma fórmula como "designação de membros portugueses" ... Repare que este "de" inculca alguma coisa para retomar a conversa do Sr. Deputado António Vitorino sobre a diferença entre o "de" e o "dos". Há um distinguo (mesmo o "de" e o "da" implicam um distinguo, que é o que vai entre todos e alguns). O "de" significa "de certos membros portugueses para organizações". E o Sr. Deputado Jorge Lacão argutamente terá topado que não usamos o artigo definido feminino plural "as"; não dizemos "para as organizações internacionais de que Portugal faça parte" mas sim "para organizações", isto é, algumas. Não o fizemos por uma questão de "finura", mas admitindo que o bónus intérprete chegaria a isso (e o Sr. Deputado seguramente também chegará, numa segunda volta!).

Foi isto que o Sr. Deputado não revelou ao "chacinar" o preceito. Este artigo tem a necessidade de ser lido tendo em conta o seu conteúdo e não outro qualquer imaginário. Se o preceito fosse aquilo que o Sr. Deputado Jorge Lacão descreveu, seria uma coisa absurda, tolamente escrita e totalmente irresponsável. Não foi para aí que quisemos ir!

Como é evidente, colocam-se alguns problemas técnicos e, designadamente, o Sr. Deputado Jorge Lacão poderia entender - seguramente poderá!- que seria talvez necessário maior precisão, nomeadamente por exemplo, uma elencagem. De facto, fazendo-se alusão a alguns membros, haveríamos de poder dizer quais, fixando um nível, e referindo-se "organizações internacionais", sendo elas, como sabemos mesmo sem o anuário à frente, muitíssimas é evidente que poderíamos enunciar as mais importantes, sem prejuízo de outras. Entendo que esse é um conjunto de interrogações perfeitamente legítimo, possível e correcto.

Por outro lado, dois dos argumentos que o Sr. Deputado Jorge Lacão utilizou também não me parecem ter cabimento, É evidente que não cabe consulta em relação aos elementos eleitos pelo Parlamento: nunca a entidade que elege tem de se "autoconsultar" ou ser consultada, sobretudo pela entidade que não é competente para fazer a designação ou a eleição. O Governo não tem de consultar a Assembleia da República sobre as entidades ou pessoas, ou personalidades, ou eminências que ela elege para cargos internacionais. É óbvio e está fora de causa!

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Mesmo que a eleição, afinal de contas, competisse ao Parlamento passaria a estar o Governo co-envolvido no processo de designação...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Jorge Lacão, entendo que só numa interpretação que espezinhasse todas as regras basilares da "Cartilha de João de Deus da hermenêutica jurídica", é que poderia chegar a um resultado desse tipo!

Importa considerar agora a outra dificuldade que o Sr. Deputado Jorge Lacão invocou (isto é, "e quid em relação aos representantes em organizações internacionais, nos casos em que a representação não decorra apenas de indicação governamental mas da intervenção de outras entidades, designadamente em circunstâncias de representação tripartida"?). Gostaria de lhe dizer que, nesse caso, a dificuldade interpretativa é facilmente torneável, na medida exacta em que, referindo-se que se trata de uma consulta pelo Governo, não pode este consultar senão em relação ao que seja da sua competência, não pode o Governo consultar sobre as opções da UGT ou da CGTP ou das confederações patronais unidas quanto aos representantes, por exemplo, na OIT. Seria uma aberração tal como não se pode pedir a V. Exa. que responda pelo meu partido e vice-versa. Consequentemente, a questão nem se coloca, mas entendo que fora deste campo e que porventura com outros argumentos a questão da elencagem ou da explicitação em primeiro lugar e os termos da explicitação em segundo lugar mereçam a mais apertada actividade de análise. É evidente que sim.

As considerações do PSD merecer-me-iam outro conjunto de comentários porque são de natureza totalmente distinta daquelas que marcaram a intervenção do Sr. Deputado Jorge Lacão.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, sem pretender coarctar o vosso direito de intervenção, consideram na verdade que esta matéria justifica tão complexiva dialéctica? Parece-me tratar-se de uma matéria de extrema simplicidade. O problema que se coloca é o de saber se isto deve ou não ser constitucionalizado. Mas, repito, não pretendo coarctar a vossa liberdade de intervenção!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, permita-me apenas que conclua para não fazer um tratamento desigual, discriminatório entre o Governo, ou melhor, a bancada do PSD que apoia o Governo, e a oposição...

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Em todo o caso, Sr. Deputado José Magalhães não deu resposta, não sei se por lapso, se voluntariamente, à última questão que eu lhe tinha colocado, qual seja a consequência, no plano jurídico, da preterição desse dever de audição.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, em homenagem à preocupação de concisão e celeridade que o Sr. Presidente exibe, responder-lhe-ei que a consequência é, técnico-jurídico-constitucionalmente exactissimamente a mesma que decorre da violação do disposto do artigo 117.°, n.° 3, na sua actual redacção. Evidentemente, a extensão das violações fica alargada, uma vez que se tipificam novos direitos. A violação e os mecanismos de efectivação das responsabilidades políticas daí decorrentes são exactamente os constitucionalmente previstos, que V. Exa. conhece seguramente com imenso pormenor. A nossa proposta não inventa nenhuma nova forma de demissão do Governo, nenhuma outra forma de ilegalização do programa do Governo, o Presidente da República não adquiriria nenhuma nova competência além daquelas que tem e são nobres, etc.....

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O Sr. Jorge Lacão (PS): - Poderia era haver uma inconstitucionalidade formal...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Haveria exactamente o que há nos termos do artigo 117.°, n.° 3!

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Presidente, pretendia apenas fazer duas breves considerações. Os partidos de oposição devem ter direito a ser informados sobre certas matérias, mas não necessariamente o de serem consultados em termos formais. Pela minha parte, esclareço, aliás, que não simpatizo com conciliábulos entre o Governo e a oposição. É no Parlamento que se processa o essencial da relação entre Governo e oposição.

Relativamente à questão dos representantes portugueses na ordem externa, estive a alinhavar um pequeno texto, que não apresentarei neste momento porque não está em condições de o ser, mas que tenciono apresentar proximamente, para um artigo da Constituição que não é este e que, suponho, corresponde de algum modo às preocupações, na parte em que são legítimas - e em grande parte o são - do Sr. Deputado José Magalhães. Penso que o País ganharia em que a Constituição estabelecesse o seguinte: Através das comissões competentes, a Assembleia da República tem o direito de se pronunciar sobre a nomeação de representantes diplomáticos do Estado Português e sobre a nomeação de representantes governamentais em organizações internacionais de que Portugal faça parte. Não é naturalmente agora o momento de se discutir esta minha intenção de apresentar uma proposta, mas, posteriormente, em relação ao artigo adequado das competências da Assembleia da República, pretendo apresentá-la.

O Sr. Presidente: - Na qualidade de parte, inscrevi-me para colocar uma questão que gostaria que tomassem em conta nas vossas próximas intervenções, a fim de não abrirmos um 2.° round de questões.

De facto, ainda não entendi bem a razão por que o PSD e CDS trocam a expressão "representatividade democrática" pela de representatividade eleitoral", não me tendo parecido satisfatória e esclarecedora a explicação que me foi dado pelo Sr. Deputado Costa Andrade. Assim, perguntava se, no limite, não se corre o risco de inconstitucionalziar os governos minoritários.

Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - A minha intervenção vai um pouco no sentido das considerações expendidas pelo Sr. Deputado Sottomayor Cárdia. Entendo que esta proposta do PCP, ao quase corresponsabilizar a oposição em determinadas opções básicas do Governo, vem tornar confuso aquilo que deve ser claro, isto é, precisamente as relações entre a oposição e o Governo. Por outro lado - e isso, para mim, ainda é a sua pior característica - tira peso ao papel fiscalizador das assembleias políticas, mormente no caso da Assembleia da República. De facto, se o Governo tem de consultar a oposição sobre as opções fundamentais do Plano e do Orçamento do Estado, não se vai com isto, de

certo modo, tirar o peso específico ao direito de a Assembleia da República discutir e votar estas mesmas opções e este mesmo Orçamento?

Parece-me que esta proposta faz perder peso específico à oposição e não ganhá-lo. Sou manifestamente contra a constitucionalização disto, nos termos propostos. Isto porque consultas prévias - e aí sou exactamente da mesma opinião que o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia - é coisa que verei naturalmente como princípio de prática política, porventura princípio de ética de governo e da sua relacionação com a oposição, mas não o gostaria de ver consagrado constitucionalmente.

O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado José Magalhães quer fazer uma pergunta ao Sr. Deputado Vera Jardim?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Era uma brevíssima e preocupada pergunta. Sr. Deputado Vera Jardim: fiquei contentíssimo pela Sra. Deputada Assunção Esteves estar a falar em 1988 e não em 1982, ou mesmo em 1977, porque por aquela ordem de razões que ela enunciou não havia estatuto da oposição democrática, nem havia o artigo que agora estamos a debater, com as benfeitorias introduzidas em 82. A argumentação é, deveras, esmagadora!

Neste caso, porém, a argumentação do Sr. Deputado Vera Jardim ainda me deixa mais perplexo, porque a filosofia que está a aplicar - não a qualifico do ponto de vista da sageza política corrente, mas do ponto de vista do direito constituído - é absurda. Isto que propomos está instituído legalmente agora, e não ouvi o PS, em sítio algum, público ou privado, sustentar que assim se diminuíssem os direitos da oposição, descontrolassem as relações entre o exercício dos direitos dentro do Parlamento, na rua, num zepelim ou onde calhar. As diversas coisas, pura e simplesmente, têm esferas próprias que não se excluem mutuamente: exerço o meu direito de oposição no Parque Eduardo VII, na Avenida da Liberdade, na Assembleia da República, no gabinete do Ministro Fernando Nogueira, onde for necessário ser oposição.

De qualquer das formas o meu argumento básico não é este. O Sr. Deputado está a usar um argumento revogatório da lei, isto é, do estatuto do direito de oposição. Que à Sra. Deputada Assunção Esteves se tenha obliterado o conteúdo do dito estatuto ainda percebo, agora na bancada do PS é um bocado esquisito. Era o que gostava de clarificar sob pena de o que estamos a fazer não ser revisão constitucional, mas sim outra coisa que naturalmente não é, parece-me, excessivamente sensata: esta conversa não tem dois pólos, temos do outro lado a bancada majoritária. É uma conversa que pode ter algumas projecções. Fiquei com alguma apreensão em relação aos argumentos do Sr. Deputado Vera Jardim, ou então não os percebi...

O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado Vera Jardim quer dar uma explicação?

O Sr. Vera Jardim (PS): - Dou daqui a pouco.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

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O Sr. José Magalhães (PCP): - Continuo, então. A argumentação do PSD quanto ao próprio modus faciendi das propostas que o grupo parlamentar do PCP apresentou, exprimem a tal anquilosada preocupação por aquilo que entende serem prerrogativas irreversíveis da maioria, numa leitura que de resto é amesquinhante e apoucadoura dos direitos dos partidos da oposição em geral e particularmente hostil a tudo o que diga respeito à sua clarificação, explicitação, densificação e por aí adiante. Creio que só isso é que pode levar alguém, que conheça o direito em vigor em Portugal (e designadamente o que decorreu da gestação daquilo que se chama o estatuto do direito da oposição, logo nos alvores de 77, com as suas sequelas na 1.ª revisão constitucional e depois em diversa legislação esparsa, designadamente a legislação sobre direito de réplica política, sobre direito de antena, sobre segurança interna, sobre relações com as Comunidades) a vir sustentar, como aqui ocorreu, que propostas deste tipo seriam obrigatoriamente de rejeitar à luz dos grandes princípios equacionados pela bancada do PSD.

No fundo os argumentos que aqui ouvimos de outras partes, nomeadamente do Sr. Deputado Sottomayor Cárdia e também da parte do Sr. Deputado Vera Jardim assentam numa determinada filosofia de oposição, que rejeita o conciliábulo, no que aliás andam muito bem, e que rejeita tudo o que sejam secretismos indébitos, exigindo transparência, frontalidade, discussão nas sedes próprias. Entendem, de resto, por sede própria, a parlamentar, que sendo, certamente, própria, não é única e não é monopolista. Ora essa preocupação de excluir conciliábulos deve ser um ditame de boa conduta para cada partido: cada partido se quer (pelas suas próprias regras, pelos seus princípios, pelo seu porte político) ser um partido da oposição, um bom partido da oposição, não deve fazer conciliábulos, porque um partido da oposição que os faz, despromove-se e desqualifica-se como partido da oposição e transforma-se num partido apendicular do partido do Governo. Corre, aliás, o risco de ser desnudado na praça pública, pois não há conciliábulos secretos, como se sabe, ou pelo menos não definitivamente secretos. Portanto, além de funcionarem as regras de autocontenção e de prudência e de respeito pelos próprios princípios e de sabedoria política geral, ainda deve funcionar aqui a famosa cautela "é o medo que guarda a vinha", que leva a que determinados conciliábulos não devam fazer-se pela simples razão de que podem ser expostos. Conciliábulo exposto dá prejuízo, logo razão dobrada para que não seja feito. Para quem não seja contido por razões de ética gerais, normalmente este argumento é suficiente. Agora, usá-lo para rejeitar o aperfeiçoamento do direito da oposição, para rejeitar o estatuto constitucional, majorado ou melhorado, dos partidos da oposição, francamente, não vejo que haja razão para tal! Parece-me que por essa via opera-se uma descentragem do debate do terreno jurídico-constitucional para o terreno da ética política com uma proibição, uma postergação jurídica que é uma forma bastante brutal e violenta de conseguir um objectivo que cada partido deve- conseguir pelos meios próprios, designadamente pela sua organização e principologia próprias, aplicadas e geridas segundo as suas regras próprias, fiscalizadas pela opinião pública, em última análise, como decorre do n.° 1 do próprio artigo que estamos a debater e doutros princípios constitucionais.

A argumentação da Sra. Deputada Assunção Esteves assenta num outro princípio segundo o qual, com uma proposta deste tipo, o que verdadeiramente se estaria a fazer era, em primeiro lugar, diminuir a extensão e o alcance do princípio maioritário. Mas porquê, Sr. Presidente e Srs. Deputados? Que leitura é que se faz do princípio da maioria, que se lhe reduz a articulação que tem, entre nós, com o próprio princípio que confere às minorias direitos de intervenção, de participação, de expressão política, no quadro do próprio regime democrático?! Não há entre as duas coisas senão uma relação de articulação! Conjugam-se de forma tal - e tive o cuidado de o sublinhar de resto, no início - que nem o Governo deixa de ser Governo (não deixa de ter as prerrogativas, os poderes e as responsabilidades que tem, efectivadas perante quem tenha que as efectivar), nem a minoria, nem a oposição deixa de ser oposição: apenas passa a ser uma oposição informada, uma oposição com possibilidades de limitação e controle da própria maioria pelo conhecimento de dados que não sejam nem devam ser segredo de governo. Nos casos em que sejam segredos de Estado haverá que estabelecer como é que isso se ultrapassa e se resolve. O que é certo é que a oposição precisa de ter esses instrumentos para poder contestar eficazmente as linhas de orientação e direcção política que o Governo siga e afirmar as suas próprias opções políticas com base em elementos acrescidos do conhecimento da realidade e da situação da própria gestão das coisas públicas. Isso é também condição para que ela se assuma como força capaz e apta para assumir as próprias tarefas governativas o que está, aliás, dentro da normalidade do funcionamento do sistema. Aparentemente isto é estranhíssimo para o PSD, obcecado pela tal ideia de "transformar o pico em planalto" e tudo o mais que se sabe. Só aí é que se pode encontrar explicação para esta ideia de que ter de informar sobrecarrega o Governo...

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Não é informar, é consultar.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Só aí é que se pode fundar a ideia de que ter de consultar sobrecarrega o Governo, coisa que, como os Srs. Deputados cotejando a lei verão, já acontece! O equívoco basilar dessa argumentação é que todos esses argumentos, interrogações (de resto angustiantes!) devem ser dirigidos já hoje às muralhas das leis em vigor. Portanto, quando os Srs. Deputados perguntam: "mas o que é a consulta?" A resposta, está contida na lei ordinária. Para ela remeto. Essa lei pode ser revogada, emendada, aperfeiçoada, mas em todas estas matérias salvo a última limitámo-nos a copiá-la, exactamente nas suas palavras, precisamente por causa de interrogações desse tipo.

A segunda objecção do PSD, diz respeito à natureza do direito de ser consultado. O que é o direito de ser consultado? Em que é que ele se traduz? A noção de consulta usada na Constituição em múltiplas circunstâncias envolve sempre, primeiro um certo direito de

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informação sobre as coisas. Não se pode ser consultado sobre aquilo que se ignora, portanto alguma informação mínima é necessária. Em segundo lugar envolve a necessidade de se garantir a possibilidade de o consultado ter alguma intervenção que seja, não perante factos consumados mas perante decisões ainda em gestação, em condições de poderem ser ponderadas. Em terceiro lugar, como se sabe, uma consulta caracteriza-se pelo facto de não implicar, para a entidade sobre a qual impende o encargo de a realizar e organizar, o dever de acatamento da opinião, do parecer, mas apenas o de ter em conta, na medida em que entendam, segundo os seus superiores critérios, segundo o seu programa de acção política, aquilo que flua da opinião do consultado. Tudo isto é aplicável às consultas partidárias.

No entanto, tudo o que estou a dizer é pura e simplesmente voluntuário, na medida em que a lei ordinária já dá resposta a esse tipo de interrogações. Se faz sentido alguma coisa não é interrogar o que é a consulta, é talvez perguntar: "vale a pena reforçar o actual direito de consulta dando-lhe estatuto constitucional?" Essa sim é uma pergunta possível, é evidente. Aí, naturalmente, a Sra. Deputada Assunção Esteves tende a sentir repugnância e admito que os partidos da oposição tendam a sentir alguma atracção e que olhando para os contornos das duas posições que nesta matéria se contrapõem, uma visão de regime pudesse admitir que um aperfeiçoamento equilibrado e razoável seria possível.

As outras interrogações da Sra. Deputada Assunção Esteves são facilmente respondíveis.

Prejudica este direito de consulta o direito de fiscalização a cargo da Assembleia da República? Não prejudica, articula-se com ele, deve harmonizar-se com ele, já hoje se harmoniza com ele quando o Governo por acaso não dá um pontapé no estatuto do direito da oposição.

Prerrogativas especiais de ser consultado desnaturam o exercício de poderes de fiscalização em momento ulterior ou concomitante? Resposta igualmente peremptória: não, porque aqui a pluralidade de dimensões de intervenção e de frentes de intervenção é a regra do regime democrático. Os partidos da oposição têm direito a um certo grau de representação, concreta por sinal; têm direito à expressão na rádio, na televisão, nos jornais; têm direito à expressão, ao abrigo da liberdade de manifestação e reunião; têm o direito a escrever cartas ao Primeiro-Ministro, se lhes apetecer; têm o direito de pedir audiências ao Primeiro-Ministro, se entenderem; têm direito a telefonar ao Primeiro-Ministro se preferirem não o ver. Todos estes direitos têm, e não há nenhuma contradição em ter todos estes direitos e exercê-los ou exercer as competências próprias das comissões parlamentares - o que rege aqui: um princípio de conjugação e harmonização de meios.

Transformaria a proposta do PCP a Assembleia da República numa "assembleia consultiva?" Só por exagero argumentativo é que se pode futurar que em consequência da intensa consulta entre o Governo e os partidos da oposição, do intenso debate prévio, das intensas e fecundas reuniões à porta fechada, a Assembleia da República pudesse ser transformada num órgão consultivo, ratificativo ou carimbativo. É evidente que se houver reuniões de trabalho proveitosas, se o Governo não fizer cache-cache, se o Governo informar a oposição convenientemente, surgiriam facilmente certas informações que são extraídas a ferros e a fórceps no Plenário, ou em comissões parlamentares. Também se evitariam, talvez, cenas inacreditáveis, como aquela que esta manhã tivemos na Comissão de Assuntos Constitucionais a propósito da recusa do Governo em viabilizar a vinda do conselho de gerência da RTP, a propósito do caso da proibição censória do programa Humor de Perdição. Cenas como a proibição da deslocação de uma comissão parlamentar a uma cadeia para visitar uma reclusa, que hoje teve um desfecho que espero seja feliz, também não se verificariam... Mas não mais que isso, seguramente.

Entretanto, assumiu a Presidência o Sr. Presidente, Rui Machete.

O Sr. Presidente (Rui Machete): - Sr. Deputado, ia dizer-lhe duas coisas: a primeira era, se, na medida do possível, podia centrar mais as suas intervenções na CERC e menos na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias; a segunda era um comentário, dizendo-lhe que gostei muito de o ouvir dizer que as consultas entre os partidos não prejudicam o trabalho nas comissões. Tenho a sensação que o ouvi dizer qualquer coisa exactamente ao contrário quando houve umas negociações, ou umas conversas entre o PS e o PSD, mas suponho que não terei percebido bem, ou as suas primeiras declarações ou estas.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, em relação à observação relativa à invocação de exemplos concretos não pude deixar de a fazer, porque a Sra. Deputada Assunção Esteves tinha futurado o risco de essas consultas intensas (porventura no quadro de algum pressuposto conciliabular que estava excluído da minha mente) fossem perversas ou negativas. Explicitei que se o Governo lubrificasse adequadamente os canais de contacto com os partidos da oposição para lhes respeitar os direitos, certas decisões seriam mais rápidas e certos episódios lamentáveis não se verificariam, talvez.

Quanto ao equívoco do Sr. Presidente sobre a nossa posição...

O Sr. Presidente: - Não é equívoco.

O Sr. José Magalhães (PCP): - ... quanto ao quadro onde deve e pode ter lugar todo o tipo de contactos entre os partidos políticos, ofereço apenas o mérito da acta onde esta matéria foi discutida, onde a nossa posição está claramente equacionada, sem nenhuma margem para dúvidas. O que nos preocupou não foi a realização de encontros desse tipo, que de resto tiveram lugar com outros partidos, incluindo o nosso, mas certo conjunto de observações do PSD, em particular do Ministro Fernando Nogueira, e certa ideia utilitária e de resto manipuladora expressa pelo secretário-geral do PSD, Sr. Deputado Dias Loureiro, que procurou imputar a certos partidos da oposição um papel obstrutivo e negativo na revisão constitucional e

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ao PSD todos os louros, todas as grinaldas de "amor ao diálogo", "equilíbrio", "não maximalismo" e outras coisas que fazem parte da grelha propagandística do PSD.

O Sr. Presidente: - Posso concluir que V. Exa. apoia entusiasticamente os diálogos, mesmo fora desta comissão.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Pode V. Exa. concluir que apoiamos todas as formas do diálogo não substitutivos do papel desta Comissão e de carácter não conciliabular.

O Sr. Presidente: - Não substitutivas!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Concluiria, Sr. Presidente, dizendo que o último argumento da Sra. Deputada Assunção Esteves comove-me, e é por isso que quero terminar com ele (em todos os sentidos). Então "consagrar um direito deste tipo até poderia prejudicar a defesa das minorias"?! Então "as minorias não devem ter problemas", este direito "de contornos esquisitos" (sic) poderia ser indutor de problemas?! "Os direitos das minorias estão garantidos"?! Não sei se isso significa um virar de agulha do PSD em relação ao respeito pelos direitos dos partidos de oposição (receio bem que não) em todo o caso, por nós, dormiríamos mais tranquilos se os direitos das minorias, além de estarem bem garantidos como o PSD nos garante semanticamente, estivessem garantidos com a palavra e o vigor constitucional. Foi nesse sentido que apresentámos a proposta que V. Exa. acabou de criticar em termos tão criticáveis.

O Sr. Presidente: - V. Exa. queria fazer uma rectificação, faz favor.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - O Sr. Deputado José Magalhães disse que afirmei que esta proposta poderia eventualmente prejudicar as minorias. Não foi isso o que disse, mas sim que, se a intenção desta proposta é reforçar os direitos das minorias, ela não consegue de modo nenhum o seu desiderato. Os direitos das minorias alcançam a sua protecção a outros níveis da Constituição, quer numa dimensão subjectiva, quer objectiva, e daí o facto de endereçar ao PCP votos de tranquilidade relativamente à realização dessa intenção porque ela está salvaguardada. Não pretendi, pelo contrários e até disse, poderá haver aqui uma intenção de reforçar os direitos das minorias, mas precisa também chamar a atenção para o facto de se poder criar com esta proposta um posicionamento especial dos partidos da oposição, no quadro da Assembleia da República, que desnaturariam a identidade da Assembleia, como órgão de fiscalização e não como órgão que tem de permeio poderes de consulta privativos dos partidos da oposição que não integram o governo. Era só essa a rectificação que queria fazer; não disse, de modo nenhum, que isto ia prejudicar ou pretendia prejudicar as minorias.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Queria fazer uma pergunta ao PSD relativamente à proposta que apresentou.

O Sr. Presidente: - Isso pode beneficiar a intervenção subsequente do Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Alberto Martins (PS): - A pergunta diz respeito à questão da substituição da expressão "representatividade democrática" por "representatividade eleitoral". Todos sabemos que esta questão foi já debatida na anterior revisão, tendo levantado algumas dificuldades. Tratava-se, salvo erro, de uma proposta conjunta da AD no sentido da substituição de "representatividade democrática" por "representatividade eleitoral", o que, aliás, se mantém hoje nas propostas do CDS e do PSD. Da leitura das actas da anterior revisão não retiro uma argumentação muito conclusiva em favor dessa substituição.

Na sequência da dúvida já levantada pelo meu colega, deputado Almeida Santos, suscitou-se-me a seguinte questão: na proposta relativa ao artigo 117.º, a representatividade eleitoral tem de ser lida em articulação com o artigo anterior, que se refere ao princípio da representação proporcional. Assim sendo, creio que poderia suscitar-se uma questão de lógica constitucional relacionada, sobretudo, com a composição das assembleias municipais. Isto porque as assembleias municipais têm uma composição, em termos de representatividade eleitoral, que não decorre de forma rigorosa do princípio da representatividade ou do sistema proporcional, uma vez que integram os presidentes das juntas de freguesia, o que pode alterar, numa leitura rigorosa e até matemática, essa ideia da representatividade proporcional dos partidos nas assembleias municipais. Nessa lógica, o conceito de representatividade democrática resolveria uma questão que poderia não ser solucionada através da ideia de representatividade eleitoral - porque, touf court, não o é!

É esta a questão que gostaria de ver respondida pelos Srs. Deputados proponentes.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Penso que a nossa proposta é relativamente óbvia. O nosso n.° 1 do artigo 117.° visa responder a este problema, reduzindo esta complexidade e definindo qual o critério de participação no poder político dos órgãos baseados no sufrágio universal e directo. A resposta que a Constituição dá a essa questão, neste momento, é o critério da representatividade democrática. Quando se pergunta o que é "representatividade democrática", todos os comentaristas políticos respondem que é a representatividade eleitoral. E só pode ser essa! Em relação a uma determinada realidade que, por hipótese, é um gato, toda a gente diz: onde está "gato", é gato, mas deve interpretar-se "cão". A nossa proposta é: então, ponha-se directamente "cão"!

O Sr. Presidente: - Desde que não haja lebre, está tudo bem!

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O Sr. Costa Andrade (PSD): - De resto, e do ponto de vista técnico-normativo, não há dúvida de que a expressão "eleitoral" é mais correcta, porque do que se trata, é de dar resposta a um problema normativo e para isso usa-se aqui o critério democrático. Contudo, o conceito "democrático" é um conceito com contornos claros, mas também com cambiantes e referências de carácter normativo, referências que, por sua vez, para serem preenchidas, remetem para um conceito muito mais aberto, que remete para outros conceitos! Conceito onde ocupa sempre o lugar fundamental, central e decisivo este dado fáctico: os resultados das eleições. São os resultados das eleições que, para este efeito, dão significado e conteúdo ao conceito "democrático". Portanto, é o resultado eleitoral que lhe dá sentido e conteúdo e que diz o que é "democrático" para este efeito.

Por estas razões, entendemos que seria mais óbvio, mais directo e, do ponto de vista de técnica normativa, mais correcto resolver este problema. E, se a função das normas é resolver problemas, com o conceito "eleitoral" resolvem-se alguns problemas que o conceito "democrático", apesar de tudo e, pelo menos, no plano teórico, deixa em aberto. Embora, em face da experiência política portuguesa, também concordemos que os ganhos não serão muitos e não virá mal ao mundo se as coisas ficarem como estão, pois penso ser entendimento comum o de que são os resultados eleitorais que definem a representatividade.

O Sr. Deputado Almeida Santos questiona se com esta proposta não serão ilegitimidados os governos minoritários. Penso que não, pois os governos minoritários também obedecem, a seu modo, à sua representatividade eleitoral, à que, num arranjo em concreto, é possível. O que certamente seria ilegitimado seriam os governos minoritários que brigassem com os resultados eleitorais, situação que, penso, estará fora do horizonte de qualquer de nós. Refiro-me aos governos minoritários que representem um atentado aos resultados eleitorais, sendo certo que tais resultados devem avaliar-se de harmonia com as situações a que devem ser aplicados.

Quanto às questões colocadas pelo Sr. Deputado Alberto Martins, é evidente que o presidente da junta também é eleito em função de um resultado eleitoral, nos termos definidos pela lei que comanda as eleições para as assembleias de freguesia; o presidente da junta também o é em função da sua representatividade eleitoral. Quando se vota para a assembleia de freguesia, já se sabe que se está a eleger uma determinada pessoa, que vai exercer as funções de presidente da junta e que o fará em função da sua representatividade eleitoral, em função daquilo que ele representa eleitoralmente.

Por todas estas razões, e tendo em conta que as normas são expedientes de organização da vida e de ordenamento dos comportamentos e que, na medida do possível, devem estreitar as margens de dúvida e de variabilidade e fechar, tanto quanto possível, a subsunção dos casos práticos, penso que a alteração que propomos constitui, do ponto de vista técnico-normativo, um aperfeiçoamento, embora reconheçamos que não virá mal ao mundo se a Constituição ficar, nesta parte, como está.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Passamos a vida a ouvir dizer que a democracia não se esgota no voto, no exercício desse direito. A Constituição está cheia do qualificativo "representativo" e de outras formas de representação que não o voto. Suponhamos que amanhã um partido ganha as eleições à assembleia legislativa, mas que há um outro que detém o domínio total dos sindicatos ou das câmaras (são hipóteses teóricas) ou de outras formas de exercício do poder envolvendo a participação dos cidadãos. Esta margem de participação fica de fora ou devemos globalizar a representação, o grau de representatividade? Isto por um lado. Por outro, se cá ficar "eleitoral", não morre ninguém! Não vejo, contudo, grande justificação para retirar o que cá está e pôr aquilo que VV. Exas. propõem, porque sempre disseram, e eu estou de acordo, em que a democracia representativa não é só o voto, é muito mais do que isso e tende a sê-lo cada vez mais.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Faria uma pergunta à sua pergunta: então V. Exa. entende que, quando se trata de definir a participação nos órgãos baseados no sufrágio universal e directo, há outro critério de participação?

O Sr. Almeida Santos (PS): - Dei, há pouco, um exemplo: o governo minoritário de um partido minoritário não está de acordo com a sua representatividade eleitoral se há outro partido com mais votos do que esse! Levando o qualificativo "eleitoral" às últimas consequências, seria sempre e só o partido com mais votos a formar governo! O Presidente da República teria de o escolher por ter mais votos, embora o outro tivesse mais condições para governar.

V. Exa. acha que é um enriquecimento? Não faço muita questão em que se troque ou não; só não vejo justificação para alterar "democrático" para "eleitoral" neste contexto!

O Sr. Presidente: - Eu queria fazer uma pergunta que se liga, aliás, àquela que o Sr. Deputado Almeida Santos colocou - interrogo-me se uma das ideias que presidem à proposta do PSD não será a de proibir figuras de estão deste tipo; olhando os resultados eleitorais - tal como se encontra neste momento redigido - e olhando os partidos que têm vindo a decrescer (caso do PRD, caso do PCP), pode dizer-se: estes partidos têm uma menor representatividade democrática, são menos democráticos do ponto de vista da representatividade.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Democrático não e rigorosamente sinónimo de representativo.

O Sr. Presidente: - Penso que é mau este tipo de interpretação que poderia fazer-se.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Mas não é menos democrático, é só menos representativo!...

O Sr. Presidente: - Não, não! O CDS, por exemplo, tem uma representatividade democrática menor.

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O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - E eleitoral, também!

O Sr. Presidente: - O que penso ser totalmente diferente - porque eleitoral é algo de quantitativo e democrático é algo de qualitativo.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Deixe-me dar-lhe mais um argumento: o CDS vai mais longe quando diz "depende da sua representatividade eleitoral"; o PSD mantém, e muito bem, "de acordo com a representatividade eleitoral". Mas mais adiante, no artigo sobre a formação do governo, diz-se "tendo em conta" - o que é, na verdade menos! Ou seja, o legislador teve aparentemente a minha preocupação: não disse "corresponder", nem "estar de acordo", nem "depende". Disse "tendo em conta". É um factor a ter em conta, entre outros. Repare-se como o legislador foi cuidadoso - o facto de ter em conta ameniza as minhas preocupações. Mas se ficasse a redacção do CDS - "depende" -, o resultado poderia ser a recusa da possibilidade de formação de um governo minoritário. Se for colocada a expressão "de acordo", é urna exigência mais forte. Alguma razão há para que cá esteja "democrática" e não "eleitoral". Mas, tal como VV. Exas. dizem, que não se batem para retirar o "democrático", eu também digo que não cai o mundo se ficar "eleitoral". Contudo, no rigor das coisas, acho melhor a expressão "democrática" do que "eleitoral".

O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado Miguel Galvão Teles pediu a palavra para fazer uma pergunta ou uma intervenção?

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - É apenas um comentário.

Risos.

O Sr. Presidente: - Essa qualificação deixa a mesa embaraçada!

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - É uma intervenção, obviamente. E curta, aliás como é costume.

O Sr. Presidente: - Nós apreciamos muito, neste caso, o carácter sucinto. Mas antes, se não se importasse, deixaríamos que o Sr. Deputado Costa Andrade respondesse - a menos que seja algo directamente relacionado.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Penso que sim. Era urna pergunta à Sra. Deputada Assunção Esteves, e uma intervenção referente ao que disse o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Presidente: - Sendo assim, tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - A minha primeira sensação é de que esta discussão em torno do n.° 1 é, aparentemente, bizantina. Representatividade democrática ou representatividade eleitoral? Será tudo, mais ou menos, a mesma coisa.

Quero referir, em todo o caso, a circunstância de esta proposta aparecer segunda vez - isto é, o facto de esta tentativa de modificação, onde o significado das expressões será relativamente semelhante, já ter aparecido em 1982 e reaparecer agora, o que pode suscitar suspeitas quanto a segundas intenções que, tenho a certeza absoluta, não existirão da parte do Sr. Deputado Costa Andrade. E da parte do PSD também não.

Mas mantenho uma ideia, que é esta e na qual insisto muito: modificar a Constituição é radicalmente diferente de fazê-la de novo - isto é, se estivéssemos a redigir de novo uma constituição e se discutíssemos se deveríamos pôr aqui representatividade democrática ou eleitoral, eu diria: "Tanto me faz!" Mas, tendo um texto constitucional - e porque a modificação tem um sentido, pelo simples facto de ser modificação - e encontrando-se, desde o início, nesse texto a expressão "representatividade democrática", se agora a substituirmos por "representatividade eleitoral", corre-se o risco de tal ser objectivamente interpretado como envolvendo não uma especificação mas uma qualquer forma de segundo sentido, de deterioração do sentido democrático, ou o que quer que seja. Julgo que talvez nos pudéssemos entender se se incluir "representatividade democrática, expressa em eleições", ou algo desse género - penso que isso facilitava o nosso entendimento e não valeria a pena estarmos a perder excessivo tempo. Creio que retirar daqui "representatividade democrática" pode ser mal interpretado.

No que toca à primeira intervenção da Sra. Deputada Assunção Esteves, que só percebi pela resposta do Sr. Deputado José Magalhães, queria fazer a seguinte pergunta: tem ou não tem o PSD a intenção de propor a revogação ou modificação da lei sobre o estatuto da oposição?

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Deputado, as minhas considerações prescindem da consideração da lei sobre o estatuto da oposição. Isto porque entendo que uma lógica é a alteração, a nível constitucional, e outra lógica é a consagração, a nível da lei ordinária, de quaisquer direitos que sejam da oposição. Entendo que, sendo a Constituição o lugar onde se define a natureza dos órgãos de soberania, a sua forma de inter-relacionação e dependência, o modo como se equilibram e a função que desenvolvem, em termos de identidade clara, da sua própria estatura como órgãos de soberania, é grave que se introduza aqui o chamado direito de os partidos da oposição não representados no Governo serem, de modo particular, de modo à parte, titulares de um certo e especial direito de consulta. Não estou aqui a negar a possibilidade, a nível da lei ordinária, de consagrar este tipo de direito - o que estou a dizer é que a lógica de inserção deste direito é diferente na lei ordinária e é diferente na Constituição, porquanto a Constituição é o lugar privilegiado de interpretação do alcance da competência dos órgãos de soberania e este artigo aqui, na Constituição, pode bulir com a interpretação dessa competência.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Devo confessar a minha admiração pela habilidade da Sra. Deputada Assunção Esteves, porque percebeu logo onde é que eu queria chegar - portanto fugiu à pergunta. Mas eu ia fazer uma proposta muito simples: creio que o estatuto da oposição no seu essencial é, no fundo, materialmente constitucional; penso que a lei ordinária não tem causado dificuldades nem problemas, portanto su-

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geriria que se consagrasse constitucionalmente aquilo que se encontra hoje na lei ordinária - nem mais nem menos. Ou seja, que se suprimisse aquilo que a proposta do PCP adita, mas não se deixasse de constitucionalizar (porque me parece ser matéria constitucional) aquilo que se encontra hoje consagrado na lei ordinária, para que uma maioria qualquer, esta ou outra, não tenha a tentação de, mais tarde, alterar o estatuto da oposição que, repito, representa matéria constitucional.

O Sr. Presidente: - Aí, V. Exa. já não se importa que não estejamos a fazer uma constituição de raiz.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Não estou a alterar uma expressão, estou a constitucionalizar uma matéria.

O Sr. Presidente: - Para fazer uma pergunta ao Sr. Deputado Costa Andrade, tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - De facto, a pergunta é dirigida ao Sr. Deputado Costa Andrade, na sequência da pergunta feita há pouco pelo Sr. Deputado Alberto Martins, e ainda sobre a questão da representatividade eleitoral ou democrática. Recordo-me que o PSD, mais adiante, tem uma proposta sobre o modo de constituição dos executivos municipais, que pretende alcançar uma conversão de votos em mandatos de tal maneira que o universo de votos que represente uma maioria relativa e, portanto, uma minoria de votos, possa apesar de tudo ser convertida numa maioria absoluta de mandatos.

Isso é a representatividade eleitoral no sentido proposto no n.° l do artigo 117.°, apresentado pelo PSD?

Outra questão para a composição das assembleias regionais também o PSD admite uma fórmula de representação em que parte dos representantes resulta da eleição universal e directa e outra parte resulta, por inerência, da designação indirecta dos presidentes das respectivas assembleias municipais. Sucede que os presidentes destas assembleias também são eleitos de forma indirecta.

Teríamos, portanto, que uma parte das assembleias regionais, com esta técnica de constituição proposta pelo PSD, resultaria, por uma inerência, em segunda designação indirecta.

Assim sendo, parece que tudo isto tem mais a ver com fórmulas de representação democrática e muito menos com fórmulas de representatividade eleitoral, se se entender aqui como representantividade eleitoral aquela que está directamente reportada ao eleitorado e não designações sucessivas processadas de forma indirecta.

Portanto, talvez o conceito de representação democrática, tendo em vista o alcance de outras propostas apresentadas pelo PSD, melhor se compaginasse para estes efeitos.

Dito isto, gostaria de saber se o Sr. Deputado Costa Andrade concorda ou não com esta minha interpretação.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Deputado, quando se interpreta e se aplica este artigo e o intérprete e aplicador da lei se questiona acerca do significado da representatividade democrática, responder-se-á, una você, que é a representatividade eleitoral. É esse aspecto que gostaríamos que ficasse expresso na Constituição. E nesse sentido tentei demonstrar que esta era a melhor técnica normativa.

O Sr. Deputado Jorge Lacão traz à colação a nossa proposta relativa aos executivos municipais. Obviamente que aqui se trata de uma representatividade eleitoral, não proporcional, ou proporcional mitigada, elaborada. Mas continua a ser uma representatividade eleitoral, como o são todas as eleições cujo método seja maioritário.

Neste contexto, devo dizer que não está excluído, na natureza das coisas, que haja participação nos órgãos de poder político pelo método maioritário. Ora, esse método consiste na representatividade eleitoral. Portanto, sendo a representatividade democrática por essência e por arquétipo a própria representatividade, e se a representatividade maioritária é democrática e eleitoral - e é-o -, também é eleitoral e obviamente democrática a representatividade que propomos para os executivos municipais.

Mas - talvez isto contribua para a discussão - entendemos que a proposta avançada pelo Sr. Deputado Galvão Teles resolve o problema. Essa é urna proposta que subscreveremos se houver outros votos nesse sentido.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Com todo o respeito que tenho pelo Sr. Deputado Galvão Teles, e apesar da também muita admiração, devo confessar que para nós é a mesma coisa ficar aqui "representatividade eleitoral" ou "expresso em eleições"/As nossas objecções tanto iriam contra uma como contra outra proposta.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Não, Sr. Deputado, ficaria aqui estabelecido "representatividade democrática expressa ou resultante de eleições"...!

O Sr. Almeida Santos (PS): - É expressa em eleições e, portanto, é a mesma coisa. É eleitoral, como é óbvio. Mas ficaria estabelecida apenas essa forma de representatividade no texto constitucional, e o que nós pretendemos é que sejam estabelecidas essa e todas as demais formas de representação democrática.

O Sr. Presidente: - Essa forma é que me preocupa um pouco, mas enfim... Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Presidente, não pretendo roubar tempo à Comissão, mas de qualquer modo gostaria apenas de acrescentar o seguinte: o entendimento que é feito comummente em relação ao artigo 117.° e à sua parte final, à representatividade democrática, é exactamente aquele que o PSD apresenta na sua proposta.

Relembro, por exemplo, o que é referido na constituição anotada de Gomes Canotilho e Vital Moreira, que diz o seguinte: "A representatividade democrática dos partidos é, neste contexto, evidentemente determinada de acordo com os resultados eleitorais." Isto é exactamente aquilo que nós dizemos. Porquê? Porque

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quando mencionamos isto estamos a ter presente aquilo que o deputado Costa Andrade já disse variadíssimas vezes, que é a participação nos órgãos baseados no sufrágio universal. Portanto, não faz sentido que aqui esteja outra interpretação possível.

Que possa haver outras formas de representação democrática, certamente que sim. Que possam estar noutros domínios da Constituição devidamente salientadas ou salvaguardadas essas outras formas de representação democrática, com toda a certeza. O que se passa aqui é que esta é, de facto, uma forma de representação eleitoral e não outra.

Tudo aquilo que foi dito, designadamente pelo Sr. Deputado Jorge Lacão, em relação a formas de representação indirecta em órgãos que combinam formas de representação directa e indirecta, tem perfeito cabimento na interpretação que é dada pelo PSD a este artigo.

Tudo aquilo que o Sr. Deputado acrescentou relativamente às alterações previsíveis e possíveis que o PSD introduz, designadamente nas eleições para as câmaras municipais e executivos, é também perfeitamente subsumível por uma razão simples: aí se combinam ingredientes de natureza variada, como V. Exa. sabe. Assim, o que acontece e o que dá uma especial característica a esse tipo de eleições dos executivos municipais é não só a figura do presidente da câmara municipal como a maioria que é gerada e a possibilidade que lhe deve ser dada - de acordo com a nossa perspectiva -, obedecendo aos resultados eleitorais, de formar ele uma equipa maioritária.

De modo que em nada se ofendem os resultados eleitorais, antes, pelo contrário, se combinam duas características essenciais e específicas que esse tipo de órgão e essa eleição devem conter na nossa óptica.

Um terceiro aspecto foi o versado pelo Sr. Deputado Almeida Santos. A interpretação de V. Exa. relativamente a esta matéria, ainda que possível, é substancialmente perigosa, por uma razão simples: é evidente que de maneira nenhuma se elimina a possibilidade de qualquer partido que tenha um menor resultado eleitoral poder vir a ser chamado, por exemplo, a constituir governo.

De facto, o que entendemos é que de maneira nenhuma os resultados eleitorais podem deixar de ser tidos em conta no sucessivo chamamento dos partidos políticos neste caso a formar Governo. O Sr. Deputado dirá que há um partido que tem pequenos resultados eleitorais, mas tem um grande conjunto de sindicatos na sua mão. Isso levar-nos-ia a uma distorção completa...

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Deputado, daria uma solução. Talvez não fôssemos contra o utilizar-se a mesma expressão que se encontra mais adiante no articulado para a formação do Governo, isto é, "tendo em conta os resultados eleitorais".

Mas o que está aqui expresso nas propostas respeitantes ao n.° 1 do artigo 117.° não é isso. O CDS refere "depende da sua representatividade eleitoral" e o PSD diz "de acordo com a sua representatividade eleitoral". A expressão "tendo em conta" é completamente diferente, expressão essa que o Sr. Deputado utilizou agora. Apesar de tudo, prefiro o que aqui está estabelecido.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - E usei-a propositadamente, Sr. Deputado.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Quando se tem algo em conta não é necessariamente só isso que se tem em conta, como é óbvio. Isto é, não significa que não se tenham em conta alguma outra coisa. De qualquer modo, aqui trata-se apenas deste aspecto. Um Governo minoritário poderia ser inconstitucionalizado, com um texto destes, por um Tribunal Constitucional composto por falsos juízos? (O actual é de verdadeiros.)

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Isto reporta-se naturalmente à Assembleia da República.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Eu sei, Sr. Deputado. E, se me dissessem que o que está aqui escrito tem graves defeitos, eu entendia o vosso empenho em mudar, mas por que é que o qualificativo "democrática" não é bom? O problema está em saber para que é que o substituímos.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Deputado, usei a construção "tendo em conta" porque tenho a impressão de que ela iria de encontro àquilo que V. Exa. pensa acerca disto. Estou convencido, e o PSD dirá se assim não é, de que, se V. Exa. aceitar esta substituição, o PSD também não se lhe oporá.

Vozes.

O Sr. Presidente: - Suponho que não se justifica estarmos a despender muito tempo nesta discussão. Apenas não gostaria de deixar estabilizada, no decorrer da discussão, a interpretação que o Sr. Deputado Almeida Santos utilizou em termos argumentativos, a qual julgo que talvez tenha traído um pouco o seu pensamento.

O Sr. Almeida Santos (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador).

O Sr. Presidente: - Não, o que eu disse foi que no decorrer da sua argumentação, ao referir V. Exa. a importância, em termos de representatividade democrática, da possibilidade de os partidos serem medidos pelo seu impacte em termos sindicais, ou outros, seguiu por uma senda que não é necessária - afigura-se-me - para esta discussão. Bastará ter em conta os resultados eleitorais e não caminharmos para a consideração, sobretudo em sede deste artigo, de eventuais representações de outro tipo.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Mas o que é que pretendem alterar com esta proposta? Há algum problema a cuja solução se dirija a substituição desta palavra por outra? Não há. Então deixem ficar no texto como está!

O Sr. Presidente: - Penso que havia um certo prurido de aperfeiçoamento. O Sr. Deputado Miguel Galvão Teles contrapôs, e porventura com razão, o eventual facto de que algum intérprete que não confiasse nos nossos propósitos fosse tentado a descortinar outros objectivos que não existem, mas hipoteticamente ele poderia alimentar que existiriam porque teria havido aqui uma alteração do texto.

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Julgo que o problema está esclarecido. Apenas não gostaria era de deixar pairar a ideia de que a representação política na Constituição era uma questão de números. Enfim, compreendo que possam não constituir um resultado aritmético, mas são os votos que determinam, essencialmente em democracia, a representatividade democrática. Pode haver razões que levem a que ela não seja uma ponderação estritamente aritmética e daí a ideia de propor a expressão "tendo em conta".

No entanto, substituir ou, digamos, aligeirar essa consideração por um outro tipo de representatividade é que julgo que não haveria vantagem em fazê-lo. Suponho que isso consistiu numa argumentação um pouco excessiva. Compreendemos o sentido da sua argumentação no referente à expressão "ter em conta", aceitamo-lo, mas não gostaríamos que depois se extraíssem outras conclusões que não estão no âmbito da vontade de quem a propôs.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Obviamente que o critério básico será sempre o resultado eleitoral, mas não sei se valerá a pena referirmos que é apenas esse ou apenas isso.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Presidente, pedi a palavra exactamente durante a última intervenção do Sr. Deputado José Magalhães. Ele fez uma referência à minha intervenção anterior e gostaria de prestar um esclarecimento.

O esclarecimento é muito simples: neste momento estamos a discutir a Constituição, ou seja, estamos a trabalhar para a sua revisão. Assim, é necessário que haja condições para que se concretize este nosso objectivo, embora tal se possa concretizar em tempo que poderá não ser exactamente aquele previsto por qualquer de nós. Penso que o essencial - e V. Exa. fez bem em chamar a atenção para essa questão - é que se faça uma boa revisão constitucional, e não uma revisão sujeita a datas pré-fixas ou escolhidas de acordo com preocupações partidárias unilaterais, ou bilaterais.

Estamos a discutir a revisão constitucional. Se estivéssemos a discutir uma lei ordinária e me dessem a palavra, eu seria mais analítico do que pretendo ser nesta sede.

O Sr. Deputado também observou que, vindas do PS, algumas observações acerca desta questão dos direitos da oposição são estranhas, visto estar ele na oposição. Deste modo - peço desculpa -, gostaria de fazer um esclarecimento, que já agora fica feito e que não volto a repetir. O meu pensamento constitucional na oposição é o mesmo que seria caso eu fizesse parte do Governo. Aliás, procuro que a minha acção como Deputado seja em tudo conforme ao que seria a minha acção se fosse membro do Governo, até para que me não apanhem em falta se e quando voltar a sê-lo.

Relativamente à questão colocada pelo PSD e respeitante à substituição do adjectivo "democrática" pelo adjectivo "eleitoral", em primeiro lugar afigura-se-me que o n.° 1 do artigo 117.° não tem um preciso alcance preceptivo, inclusivamente porque toda a matéria está expressamente tratada na Constituição, nos seus lugares adequados.

Pela minha parte, simpatizo com a substituição do adjectivo "democrático" sempre que ele não seja necessário. Não sei qual é o pensamento do PSD a esse respeito, mas pessoalmente defendo a substituição ou a supressão desse adjectivo quando não seja necessário. Aliás, isso decorre da minha concepção do que é a democracia: concepção processual e substantiva.

Todavia, essa é uma questão que colocarei mais tarde, quando discutirmos os princípios gerais da Constituição, se a proposta que apresentei tiver acolhimento, como espero.

Posto isto, afigura-se-me que a representatividade democrática baseada na vontade popular ou é eleitoral ou é referendaria. Neste sentido, parece-me que incluir aqui o adjectivo "eleitoral" é apenas um aperfeiçoamento técnico e nada mais do que isso. Tal aperfeiçoamento técnico não tem quaisquer consequências se vier a ser introduzido, até porque a norma não tem qualquer efeito preceptivo directo, isto é, todo o acolhimento que ela pode ter está expresso em outras e diversas normas constitucionais.

Dito isto, gostaria apenas de referir que a formulação apresentada pelo Sr. Deputado Almeida Santos me parece uma boa solução de compromisso.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Macedo e Silva.

O Sr. Miguel Macedo e Silva (PSD): - Gostaria de fazer uma intervenção muito breve, que me é suscitada pela última intervenção do Sr. Deputado Almeida Santos.

De facto, parece-me que se está a fazer aqui alguma confusão relativamente à expressão "de acordo", utilizada no n.° 1 do artigo 117.°, bem como à expressão "tendo em conta", utilizada no n.° 1 do artigo 190.° da Constituição. Julgo que estes dois artigos tocam realidades políticas diferentes e, no fundo, a diferença de terminologia utilizada no texto constitucional tem toda a razão de ser. É que em relação ao artigo 117.° me parece que o inciso "de acordo" traduz uma imperatividade de representação dos partidos nos órgãos a que dizem respeito. Estes consistirão fundamentalmente, mas não apenas, nos órgãos colegiais de tipo assembleia.

Em relação ao artigo 190.°, o que está essencialmente em causa é a questão da nomeação do Executivo, o qual tem também de ter, naturalmente, a confiança do Presidente da República, que nomeia o Primeiro-Ministro, tendo em conta, mas não unicamente, os resultados eleitorais.

Portanto, trata-se, neste caso, de uma apreciação política, a qual encerra diversas componentes, que valoriza os resultados eleitorais mas não depende exclusivamente deles.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Mais adiante VV. Exas. propõem um bónus aos partidos no que se refere à eleição para as câmaras. Renunciam a essa proposta?

O Sr. Miguel Macedo e Silva (PSD): - Não renunciamos, Sr. Deputado.

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O Sr. Almeida Santos (PS): - Ela não está de acordo com a representatividade eleitoral do partido mais votado!... Renunciam a essa proposta?

O Sr. Miguel Macedo e Silva (PSD): - Sr. Deputado, é de acordo com uma representatividade eleitoral.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Não é, Sr. Deputado. O partido mais votado teve, por hipótese, 30% e vem a ter a maioria dos vereadores. Tem mais representatividade do que a que eleitoralmente lhe pertence!...

O Sr. Miguel Macedo e Silva (PSD): - Sr. Deputado, isso depende fundamentalmente do sistema de representatividade - depois havemos de o discutir - que pretendemos traduzir em termos eleitorais. Mas essa é uma questão diferente.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Não pode fugir agora disso, Sr. Deputado, que eu não deixo.

O PSD propõe que um partido concorrente às eleições autárquicas com apenas 30% dos sufrágios, por hipótese, caso seja o maior, tenha a maioria dos vereadores. É isto representatividade eleitoral?

O Sr. Miguel Macedo e Silva (PSD): - É sim, Sr. Deputado.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Mas se, então, a representatividade de que se trata é a proporcional, como é que isso confere?

O Sr. Miguel Macedo e Silva (PSD): - Sr. Deputado, devo dizer-lhe que essa é uma das muitas opções que cada partido toma em relação à forma de organizar o poder político. E digo isto porque estamos, obviamente, em sede de revisão constitucional e este processo é diferente do de elaboração de uma Constituição, como disse há pouco o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.

No entanto, ninguém se lembraria de, por exemplo, nesta Comissão, acusar um partido, qualquer que ele fosse, por propor para a lei fundamental um método de representação maioritária. Isso não deixava de ser um método democrático, com a cambiante de ser um método de representação maioritária diferente daquele que consagramos na Constituição. Também não é isso que está em causa neste ponto.

Ora, julgo que, e passando por cima da questão de saber se deve ser consagrada a expressão "método democrático" ou "método eleitoral", que é aquela que se coloca em relação ao artigo 117.°, estas duas terminologias usadas pela Constituição traduzem com algum vigor a diferente perspectiva com que é encarada quer a realidade referente aos partidos políticos que participam nos órgãos, baseados na soberania popular, quer a realidade da posse e das condicionantes que são levadas em conta para a posse de primeiro-ministro de um qualquer governo. E digo isto até porque - e é preciso ter este aspecto em conta - o Governo é um órgão que não resulta directamente da soberania popular, mas, sim, da maioria eleita para a Assembleia da Republica. Portanto, não é um órgão que tenha directa legitimidade popular. É, pois, uma legitimidade indirecta, sendo desta forma que está organizada a Constituição e o poder político. Daí que, até por isto, essa diferenciação se compreenda no actual texto da Constituição.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, gostaria de lhes lembrar que já dilucidámos suficientemente esta matéria e que temos um longo caminho a percorrer. Todavia, é evidente que se VV. Exas. quiserem atardar-se nesta matéria, poderemos efectivamente proceder desse modo, mas, correspondendo às declarações produzidas pelo Sr. Deputado Almeida Santos, pagaremos à noite as diferenças.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, como disse o Sr. Deputado Dias Loureiro, "não há limites de horário para o trabalho da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional". Portanto, se VV. Exas. quiserem fazer uma "directa até às 9 horas da manhã", poderão contar connosco!!!

O Sr. Presidente: - Faça favor, Sr. Deputado. Porém, não vale a pena excitarmo-nos.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, "a excitação" era do Sr. Deputado Dias Loureiro.

O Sr. Presidente: - Fiz uma declaração erga omnes, Sr. Deputado.

Vozes.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, creio que há pouco o Sr. Deputado Carlos Encarnação procurou, sem êxito, introduzir uma componente que desdramatizasse o debate. Vale a pena retomar essa componente rapidamente e procurar, sobretudo, desfazer um equívoco em que o Sr. Deputado Almeida Santos ia incorrendo, embora a intervenção do Sr. Deputado Miguel Macedo e Silva - facto que me congratulo em sublinhar - tenha procurado, através da invocação do disposto no artigo 190.° da Constituição, afastar o equívoco que eu receava mais. Porém, gostaria também de me pronunciar sobre ele.

O primeiro aspecto diz respeito ao texto e ao contexto. É evidente que a apaixonante discussão introduzida pelo Sr. Deputado Almeida Santos sobre a noção de representatividade democrática deve ser situada nas balizas decorrentes do facto de estarmos a discutir este artigo e não outro, de estarmos a debater o conceito de representatividade democrática nesta específica inserção e não o que ela seja em geral, aferida pelos critérios e padrões constitucionais, tal qual eles estão estabelecidos e fluem das diversas componentes do articulado da Constituição. Sabemos que, constitucionalmente, o conceito não se esgota na componente de legitimação eleitoral; sabemos que o PS tem sobre esta matéria um longo contencioso com outras famílias políticas, que propiciou apaixonantes debates, tanto na Assembleia Constituinte, como nos anos mais recentes. As posições de cada um sobre esta matéria são claras e as nossas estão seguramente acima de suspeita, pois são públicas, notórias, completamente assumidas e vertidas com abundância em actas. Serei, pois, totalmente

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insuspeito de, de alguma forma, ter uma concepção redutora ou afuniladora do conceito de representatividade democrática que excluísse qualquer das componentes pelas quais ela deve ser aferida no nosso regime democrático, com as características que ele reveste (e, seguramente, não com outras).

Sucede, no entanto, que o contexto deve ser tido em atenção. E esta norma tem uma importante função de garantia dos próprios partidos políticos. Desde logo, quanto à possibilidade de serem arredados da própria candidatura da qual depende a participação nos órgãos baseados no sufrágio universal e directo. Além disso, é uma garantia de não falseamento da verdade da representação. É, no fundo, uma garantia contra a batota, contra todas as formas de viciação da normal, adequada e verdadeira representação. É um dos princípios ou um dos esteios do direito constitucional partidário ou do estatuto constitucional dos partidos políticos. Ele não é despiciendo.

Trata-se, de facto, de um princípio jurídico, o que tem um valor constitucional e jurídico conhecido na hermenêutica constitucional: não é uma norma emblemática, sem efeito directo. Distingue-se, pois, de uma beterraba e de outras coisas, bem como de uma norma jurídica, em termos de valor preceptivo. Contudo, não é mais nem menos do que isso.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, citemos...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto, pode até citar uma vasta panóplia de autores, incluindo eventualmente o próprio Sr. Deputado Sottomayor Cárdia numa segunda reflexão.

Entretanto, a questão que se traz a esta sede não é despicienda, pois o facto de esta norma estar prevista na Constituição não é irrelevante. E porquê? Porque tem um determinado significado, designadamente, não é possível encontrar neste ponto nenhuma cobertura constitucional para a instituição, por exemplo, pelo legislador ordinário do celebrado "prémio de maioria" que o PSD pretende instituir em sede constitucional (e não por acaso).

Na verdade, o facto de se aludir à representatividade democrática como critério para a participação nos órgãos baseados no sufrágio universal e directo não dá qualquer cobertura para fenómenos majoradores, para a instituição de "prémios de maioria" que falseiem a representação democrática, tal qual ela decorre do sufrágio e, por exemplo, concedam a quem não tem maioria um privilégio ou que lhe permitam a acumulação de mandatos ou a sua atribuição em desconformidade com os próprios resultados do sufrágio, alterando tudo o que daí decorre - desde logo aquilo que é a própria vontade popular apurada através desse instrumento. Isso seria um instrumento de desnaturação. Suponho, aliás, que seria uma péssima hermenêutica aquela que aqui pendurasse um panelão que não cabe neste ponto da Constituição.

Um segundo aspecto prende-se com o facto de ser bom que a Constituição seja precisa nesta matéria. Estabelecer uma confusão entre a necessidade de "participação de acordo com a representatividade" e a "participação tendo em conta a representatividade" não é correcto, não é a mesma coisa do ponto de vista técnico-jurídico constitucional e politicamente.

É evidente que se sabe que o "ter em conta" é um minus em relação à representação rigorosa, nomeadamente à proporcional, tal qual flui dos princípios ínsitos em artigos próprios da Constituição. A invocação, para este efeito, do disposto no artigo 190.° não tem cabimento. De facto, aquilo que se está a discutir em sede do referido preceito, cuja epígrafe é "Formação de governos", é um outro fenómeno, como, aliás, o Sr. Deputado Miguel Macedo e Silva já teve ocasião de sublinhar. Nesse articulado, a Constituição não quis absolutizar nem tornar automáticos os efeitos do sufrágio. Ela quis estabelecer uma forma de articulação, bastante hábil, entre os poderes do órgão de soberania Presidente da República e dos partidos políticos que concorrem para o sufrágio e que podem formar espectros muito diversos na Assembleia da República: pode haver base parlamentar monopartidária, pode haver uma base parlamentar bipartidária ou, ainda, tripartidária, pode não haver nenhuma base parlamentar para um governo partidário...

As situações podem ser muitíssimo diversas e a agilidade do Presidente da República e os seus poderes resultarão acrescidos ou diminuídos em função da concreta situação real e muito majorados, obviamente, em situação de inexistência de qualquer maioria estável formada ou formável num determinado momento e numa dada composição parlamentar resultante do sufrágio. Contudo, isso verifica-se no que respeita à formação dos governos. Aí a flexibilidade é desejável. Já em relação à questão que está colocada e equacionada no artigo 117.°, aquilo que a Constituição exige é muito mais do que um "ter em conta". Aí exige-se uma representação fiel e verdadeira, além, naturalmente, da proibição de que seja postergado o direito de intervir e de concorrer ao sufrágio, que é condição óbvia, basilar e prodrómica para qualquer acesso aos próprios órgãos baseados nesse sufrágio universal e directo.

Creio, pois, que, valendo a questão o que vale, é correcto e pertinente o argumento que foi aduzido nesta sede pelo Sr. Deputado Almeida Santos: se não se quiser aperfeiçoar nada, não se estabeleça então dúvida interpretativa. Além disso, a ideia apresentada pelo Sr. Deputado Miguel Galvão Teles, que, de resto, bebe na mesma matriz e preocupação, também é perfeitamente razoável. Julgo, de facto, que não vale a pena estar a sucitar esta questão.

Ora, o simples facto de a estarmos a discutir há tanto tempo dá uma pequena ideia do conjunto de pequenos equívocos que se podem estabelecer em torno de uma alteração aparentemente tão simples, que ou é para dizer o mesmo (caso em que seria inócua, mas inútil) ou serviria para dizer uma coisa diferente, situação em que poderia ser ofensiva e seria, por isso, inaceitável.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Presidente, agrada-me que tenha sido reconhecido que o n.° 1 do artigo 117.° não é um preceito, mas um princípio.

O Sr. José Magalhães (PCP): - É um número que contém um princípio!

Vozes.

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O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Penso efectivamente que é um princípio e, como tal, deve ter uma formulação rigorosa.

Quando há pouco se discutia a proposta de alteração do n.° 1 do artigo 117.°, apresentada pelo PSD, manifestei a minha simpatia por ela, por razões de rigor. Todavia, espero que se possa ser mais rigoroso se, como espero, o PSD não vier a obter as majorações municipais que pretende. Espero sinceramente que o PSD não obtenha essas majorações. E, se não as obtiver, afigura-se-me que, em nome do rigor dos princípios, se poderá talvez referir, no citado n.° 1, o seguinte: "Os partidos políticos participam nos órgãos baseados no sufrágio universal e directo não unipessoais, de acordo com a representatividade eleitoral proporcional." Penso que assim ficará claro o que se estabelece na Constituição em relação a todas as eleições nela previstas.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

G Sr. Amónio Vitorino (PS): - Sr. Presidente, devo dizer que só me inscrevi para intervir porque o Sr. Deputado José Magalhães concluiu a sua alocução com um apelo a que não se deixassem no debate, apesar de tudo, equívocos. E como eu até poderia ser subscritor da intervenção que ele produziu na íntegra, salvo quanto a um equívoco que gerou, inscrevi-me apenas para deixar claro que não subscrevo esse equívoco.

É verdade que estamos perante uma norma de garantia, como o Sr. Deputado José Magalhães disse. Com ou sem princípios, seja mais ou menos principológica, tal é irrelevante, pois continua a ser uma norma de garantia da participação dos partidos políticos na vida pública, norma essa que lhes confere o direito de apresentarem candidaturas aos órgãos decorrentes do sufrágio universal e de participarem nos órgãos decorrentes do sufrágio universal e, nesse contexto, contribuírem para a formação da vontade desses mesmos órgãos. Os partidos são, pois, partes constitutivas dos órgãos decorrentes ou baseados no sufrágio universal e direito. E nisto estou perfeitamente de acordo com o que disse o Sr. Deputado José Magalhães.

No entanto, onde o Sr. Deputado José Magalhães me parece ir a um ponto que não se pode ir, e que não cabe na interpretação do n.° 1 do artigo 117.°, é tentar identificar esta noção de representatividade democrática com uma vinculação, em sede de princípios gerais da organização do poder político", quanto ao método de tradução dos votos em mandatos a acolher pela Constituição em cada caso e para cada tipo de eleições. E não é possível invocar o conceito de representatividade democrática como fundamento para a ilegitimação de, qualquer sistema eleitoral que se traduza em bónus para o partido ganhador, na medida em que, não existindo nenhum sistema de proporcionalidade pura, todas as formas de conversão dos votos em mandatos acarretam sempre determinado tipo de bónus e penalizações para os partidos concorrentes. O sistema maioritário a uma volta, que é aquele que confere aos partidos concorrentes o maior bónus conceptualmente possível em termos de sistemas eleitorais, não é antidemocrático. E se a Constituição referir que os partidos participam com base na representatividade democrática, e se a própria Constituição consagrar noutra sua disposição o sistema maioritário a uma volta, não haverá conflito de normas constitucionais, nem ilegitimação da vontade do mesmo legislador constituinte em prever qualquer tipo de metodologia de conversão de votos em mandatos.

De facto, o PS é contra, por razões políticas, os sistemas de distorção da proporcionalidade e mantém-se fiel ao sistema da representação proporcional. Repito: somos opositores dessa distorção por razões políticas, mas não com base no estatuído no n.° 1 do artigo 117.° da Constituição, que para tanto é manifestamente insuficiente, e a sua invocação parece-me, salvo melhor opinião, inadequada. Explanei estas considerações para evitar qualquer equívoco quanto a este ponto.

O Sr. Presidente: - Vem nos manuais!...

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, estamos a interpretar a Constituição, enquanto que os manuais fazem doutrina.

O Sr. Presidente: - Não, Sr. Deputado, o meu comentário não se destinava a V. Exa.

Tem, então, a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, creio que a observação de V. Exa. não se dirigia ao Sr. Deputado António Vitorino. De resto, não sou capaz de imaginar a quem efectivamente se dirigia. Calculo, porém, que ela incidia sobre a bancada do PSD porque é este partido que propõe a substituição do termo "democrático" por "eleitoral" e, simultaneamente, quer um "prémio de maioria!...".

O Sr. Presidente: - Não, por acaso dirigia-se ao Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - A sério, Sr. Presidente?! Fico muito surpreendido, porque o que o Sr. Deputado António Vitorino verdadeiramente acabou de introduzir nesta sede, uma reflexão que poderia estar num qualquer manual...

O Sr. Presidente: - E está!...

O Sr. José Magalhães (PCP): - ... como está honradamente nas actas. Se isso dá que pensar a alguém, é ao PSD! No fundo, é este o partido que, sendo proponente da trasmutação do conceito, simultaneamente, propõe o que propõe noutras sedes. Portanto, ou o PSD não tinha grande ideia do que estava a propor e não leu os manuais, coisa que não lhe é grandemente perdoável quando é o partido-pai de uma tal criatura, ou então o PSD leu os manuais e percebeu o contrário. Poderá ainda acontecer que aqueles que leram os manuais não os escreveram e os PSD's que escreveram não os leram...

Entretanto, o Sr. Deputado António Vitorino tornou a questão bastante mais clara, o que até, pelos vistos, pode propiciar uma certa maioria de dois terços, um tanto estranha neste caso.

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A não ser que o PSD arrepie caminho e resolva deixar estar "democrático" onde está "democrático", na ganância do prémio de maioria e o PS, que nos deixou grandes interrogações, quanto à sua posição sobre o prémio de maioria, venha a clarificar ulteriormente a sua posição dizendo que aceita esta referência aberta, isto é, esta porta aberta no papel, mas recusa-se a construir, no articulado adiante, o portão que o PSD desejaria: quer uma cláusula viabilizadora de um eventual prémio de maioria, mas recusa-se a consagrar esse prémio de maioria na Constituição, deixando em aberto, com grande carácter interrogativo, o seu pensamento em relação ao plasmar disto, na prática, através da lei ordinária, por exemplo.

É, de facto, uma apaixonante questão política, jurídica e se calhar mais apaixonante nestas actas do que no manual em que o Sr. Presidente estava a pensar, claramente por distracção.

O Sr. António Vitorino (PS): - Não deixei nada em aberto, não deixei nenhuma angústia apaixonante a pairar no ar, muito menos quanto à possibilidade de subversão da Constituição por via da lei ordinária, recorrendo ao bónus de maioria, que me parece a todos os títulos ilegítimo à face da Constituição. O que fiz foi uma interpretação que não era contra o PSD, mas apenas visava corrigir a sua interpretação, a qual o Sr. Deputado, habilmente, não subscreveu nesta sua segunda intervenção, mas cuja explanação foi feita na primeira, a saber a tese de que este normativo inviabilizava a consagração na Constituição de prémios de maioria. Porque V. Exa., se quiser ser coerente com essa ideia, terá de dizer que este princípio que aqui está, e tal como está, também inviabiliza a consagração do método de Hondt, já que este método também comporta prémios de maioria. A sua interpretação é absurda. Não faz sentido.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, o que disse está dito e de resto pode ser sindicado e fiscalizado. Pode-se discordar! Limitei-me a interpretar o artigo como tendo na sua segunda componente um princípio de não falseamento da verdade da representação eleitoral. Foi isto, literalmente, o que disse: não falseamento. Fi-lo, aliás, em concretização ulterior, o raciocínio era em patamares, o segundo sedimento está em repa, mais fundo...

O Sr. Presidente: - Patamares descendentes.

O Sr. José Magalhães (PCP): - No segundo raciocínio havia alusão à incompatibilidade do prémio de maioria (não entendido como significando a aplicação normal do método de Hondt, com as implicações que tem na transposição dos votos em mandatos). Referia-me concreta, explícita e directamente à criatura produzida pelo PSD. Criatura que baptizei ou baptizámos todos de "prémio de maioria", mas que é uma forma ultra, de concessão de bónus, que me parece ultrapassar todas as regras de verdade eleitoral e de representação democrática. Agora, se me constrói outras figuras... não nos podemos pronunciar sobre criaturas que não existem. Esses nascituros, se alguma vez vierem à luz do dia, logo lhes olharemos a cara e veremos como é que são compatíveis com os princípios constitucionais!

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Macedo e Silva.

O Sr. Miguel Macedo e Silva (PSD): - Julgo que, no termo desta discussão, parecem-me absolutamente correctos os termos da intervenção do Sr. Deputado António Vitorino como, aliás, resulta da minha última intervenção quando, a uma interpelação do Sr. Deputado Almeida Santos, disse que o que aqui está em jogo, o que aqui estava em discussão, não era seguramente a questão do método de representação democrática. Este entendimento que o Sr. Deputado José Magalhães pretendeu introduzir, na sua anterior intervenção, em relação a este n.° 1 do artigo 117.° também me parece perfeitamente desenquadrado do tipo de questões que, de facto, o n.° 1 do artigo 117.° da Constituição pretende resolver.

O Sr. Presidente: - Vamos passar ao artigo 118.° - "Organizações populares de base". Existem duas propostas de eliminação, uma apresentada pelo PS e outra pelo PSD. O CDS elimina...

O Sr. Almeida Santos (PS): - Nem se dá ao trabalho de eliminar! Desconhece!

O Sr. Presidente: - ... propondo um outro artigo, que é o direito de oposição.

Tem a palavra o PS, para justificar a sua proposta de eliminação.

O Sr. Almeida Santos (PS): - É muito fácil. Entendemos que esta consagração das organizações populares de base, que é hoje um limite material de revisão, não tem dignidade de limite material de revisão. Por isso o eliminamos para próximas revisões, naturalmente de acordo com o nosso princípio de que nesta revisão devem ser respeitados os actuais limites. Entendemos que ele pode ser respeitado e deve sê-lo até à satisfação e respeito do actual limite, mas não mais do que isso. Entendemos que não se justifica a menção das organizações populares de base num capítulo relativo à organização do poder político, mas entendemos que, no lugar próprio, elas devem continuar, embora não com a denominação de "organizações populares de base", já que está ligada a esta denominação alguma carga mítica e ideológica e não vale a pena, mas mencionando-as como o que realmente são, isto é, "organizações de moradores". Portanto só despojamos o instituto da sua carga mítica. Quando à constituição e área mantemo-la, embora referida às organizações de moradores. Quando à estrutura mantemo-la. Quanto às funções reproduzimo-las. Assim salvamos a expressão real do que são e a possibilidade de virem a ter uma expressão de facto que até hoje não tiveram. Respeitamos o limite material de revisão, mas não nos parece que a experiência pregressa justifique mais do que isso.

O Sr. Presidente: - O PSD quer justificar, sucintamente, a razão por que apresenta a supressão?

Pausa.

Tem a palavra o Sr. Deputado Pais de Sousa.

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1172 II SÉRIE - NÚMERO 38 -RC

O Sr. Pais de Sousa (PSD): - O PSD também propõe a eliminação do artigo 118.° da Constituição. E isto por considerarmos que é despicienda, por incorrecta, a localização deste artigo em sede de princípios gerais do poder político. Consideramos que o artigo 9.° já assegura claramente a participação dos cidadãos e, por outro lado, há, eventualmente, formas de democracia participativa que estão para além deste artigo 118.° Aliás, para nós, a democracia participativa, enquanto foram de democracia directa, só é aceitável enquanto compatível com a democracia representativa, entendida esta como garantia da democracia pluralista. Por último, diríamos que o artigo 112.° garante, com segurança, formas de participação dos cidadãos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Mas é evidente que têm consciência de que não respeitaram um limite material!

O Sr. Presidente: - Nós entendemos que já não é um limite, decaiu, já não existe.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - O artigo de V. Exa. já é doutrina oficial.

O Sr. Almeida Santos (PS): - De qualquer modo, reformulo a pergunta. É um dos tais que caducaram?

O Sr. Presidente: - É um dos tais que caducaram. VV. Exas. consideram a matéria dilucidada e as posições esclarecidas? Tem a palavra o Sr. Deputado José Manuel Mendes.

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Creio que efectivamente, a matéria está dilucidada, porque já algures tivemos oportunidade de travar esse debate.

O Sr. Presidente: - Apoio veementemente.

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Creio que o que hoje consta do artigo 118.° não tem apenas uma carga emblemática, não é apenas um mito aceso ao qual se opõe um mito cinzento, ou que esteja disponível para toda a operação anatómica de "desmitificação", que tenho visto aqui louvada em múltiplos azimutes e com as linguagens mais variadas. O que acontece é que o limite material constante do artigo 290.°, e particularmente a sua alínea J), tem a importância indiscutível que tem. Pensamos que a componente activa, que consta do que hoje é norma constitucional na sede que temos estado a discutir, mantém a sua plenitude e deveria ser potenciada em vez de ser perimida, em vez de ser desgastada até à exaustão ou sujeita ao decretar da inutilidade pura e simples, como acaba de ser feito.

O PS tenta, de alguma forma, consonantizar-se com o artigo 290.°, reinserindo sistematicamente o conteúdo do artigo 118.°, coisa que não acontece com o PSD, na lógica, ademais conhecida, segundo a qual, para o PSD, limites materiais non sunt.

O Sr. Presidente: - Non sunt os que caducaram de acordo com o princípio colectivista marxista.

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - É conhecida a teoria do Sr. Deputado Rui Machete e também de outros constitucionalistas e teóricos do PSD...

O Sr. Presidente: - Há mais gente. Aliás, vamos ver os bairros todos em termos de organização popular de base.

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Nós pensamos que, de facto, as implicações no plano do poder local e fora dele de uma norma como esta, por todas as razões, explicaria a necessidade da sua manutenção e, mais do que isso, a sua vitalização na vida quotidiana. A democracia participativa, que se não esgota aqui, como há pouco foi referido por um dos Srs. Deputados do PSD, encontra, todavia, um percurso assinalavelmente importante neste mecanismo. Digo organizações populares de base territorial pensando em comissões de moradores, independentemente de leituras segundo as quais esta norma do artigo 118.° poderia apelar para outras estruturas - estou a lembrar-me de um velho artigo do Dr. Luso Soares...

O Sr. Presidente: - Diz muito bem, velho artigo!

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Velho, no tempo.

O que é evidente é que o PCP não subscreve, como seria de esperar, as posturas expendidas pelos dois partidos conciliabulados na extinção fáctica do artigo 118.°

O Sr. Presidente: - Sendo assim, podemos passar ao artigo 119.° Como este artigo não tem alterações, passamos ao artigo 120.° - "Estatuto dos titulares dos cargos políticos". Nesta matéria existem propostas de alteração e de aditamento do PCP, do PS e do PSD.

Quer o PCP justificar, em termos sucintos, as motivações da sua proposta?

Pausa.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Manuel Mendes.

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Numa primeira abordagem, aquilo que se propõe não é mais do que a constitucionalização de uns quantos bons propósitos já contidos em lei e de uns quantos outros que a lei ainda não acolheu pertinentemente.

Pensamos que a transparência das instituições democráticas exige mecanismos que assegurem a sua constante operatividade. Isso implica, a nosso ver, o assumir de todas as responsabilidades. Indiscutivelmente as que mais relevam são as que devem fazer elevar ao patamar da dignidade constitucional mecanismos de controle que, não sendo uma forma expedita e exclusiva, são, todavia, meio assinalável e significativo para a obtenção de uma democracia cada vez melhor.

O Sr. Presidente: - Faça favor, Sr. Deputado. É uma pergunta aclaradora.

O Sr. Miguel Macedo e Silva (PSD): - É aclaradora neste sentido. Suponho que é lapso, mas o PCP mantém os n.ºs 1, 2 e 3 e depois no n.° 5 reproduz quase textualmente o actual n.° 3 da Constituição com um acrescento. É capaz de haver algum lapso.

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O Sr. Presidente: - Mas há urna proposta de aditamento. E o n.° 3 devia ser suprimido e o n.° 4 passar a n.° 3.

Passamos ao PS.

O Sr. Almeida Santos (PS): - O PS tem uma pequena história para contar. Quando nos debruçámos sobre a lei que determina os crimes da responsabilidade dos titulares dos cargos políticos sentimos a necessidade de consagrar exactamente o que está aqui: as sanções, correspondentes aos crimes, podem incluir a destituição do cargo ou a perda do mandato. Tivemos na altura dúvidas sobre a constitucionalidade deste inciso, que, apesar disso, está na lei e ninguém arguiu a sua inconstitucionalidade. Mas talvez fosse bom evitar o risco de amanhã vir a ser julgado inconstitucional. Isto porque hoje no artigo 30.°, n.° 4, se diz que nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos. O que se fez foi de algum modo partir do princípio de que a formulação que está podia ser entendida como uma pena acessória, embora isso não se diga, e para não termos de recorrer aos conceitos especiosos que o Sr. Deputado Costa Andrade conhece melhor que nós, acho que deveria constar da Constituição esta menção, se entenderem, com outra formulação. Em qualquer caso, com a garantia que decorrer do facto de se tratar de sanções que só podem ser aplicadas por via judicial, como é óbvio. Mas parece-nos que eliminaria as dúvidas que hoje são, de algum modo, ainda que só tendencial ou residualmente, justificáveis, em face do disposto no n.° 4 do artigo 30.°

O Sr. Presidente: - O PSD quer justificar a sua posição?

Pausa.

Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Macedo e Silva.

O Sr. Miguel Macedo e Silva (PSD): - De uma forma muito breve, farei a apresentação da proposta do PSD e depois o Sr. Deputado Costa Andrade fará a apreciação das propostas apresentadas pelos outros partidos. A proposta do PSD tem um alcance óbvio e é evidente o seu sentido. O PSD entende que neste artigo deve consagrar, deve elevar à categoria de obrigação constitucional, o dever de segredo de Estado para os titulares dos cargos políticos e é nesse sentido que propomos o texto para o n.° 4 do artigo 120.° Entendemos ainda, e demos consagração a este entendimento no n.° 5, que esta obrigação de segredo de Estado, nos termos em que a lei o vier a definir, deve subsistir, mesmo após a cessação das funções. Julgo que não há muito mais a dizer sobre as nossas propostas, pois julgo que são evidentes. Este é o alcance da nossa proposta e julgamos que, sistematicamente, seria aqui que melhor ficariam estas nossas duas propostas em relação ao artigo 120.°

O Sr. Presidente: - Vamos passar à discussão do preceito. Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Só uma pequena nota para exprimir a nossa posição em relação às propostas em discussão - naturalmente não em relação à do PSD, mas em relação às outras, designadamente as do PS e do PCP.

O PS obedeceu a um desiderato óbvio, que é o de desfazer as dúvidas de constitucionalidade no que toca a muitas das soluções da Lei n.° 34/87, que, do meu ponto de vista, briga em muitas das suas soluções com o actual artigo 30, n.° 4, da Constituição. A solução não suscita grandes dúvidas quanto à sua adequação política. Penso, pois, que uma proposta como esta pode ser aprovada, se houver necessidade dela.

Já o mesmo não podemos dizer em relação à proposta do PCP, que tem graves inconvenientes - e falo agora mais como estudioso das matérias penais do que como representante de um partido político. O PCP, ao propor, no n.° 6, que "a condenação por crimes de responsabilidade implica sempre a demissão ou destituição do cargo", introduzi uma rigidificação que pode ser extremamente perigosa e até, do ponto de vista material, atingir limiares de injustiça verdadeiramente intoleráveis. Na verdade, há infracções que podem ter gravidade muito díspar. Há, por exemplo, crimes de peculato ou de corrupção que podem atingir somas muito diferenciadas, pois pode cometer-se um crime de peculato por uns tostões ou por milhões, e isso tem a ver com a gravidade do crime e com a responsabilidade penal. É evidente que quando raciocinamos assim não devemos atender às normas do direito ordinário vigentes como dados absolutamente adquiridos, uma vez que estas podem mudar. Mas, a permanecer uma solução como a constante do actual direito, nos termos do qual a tentativa é sempre punível, isto é, punível do mesmo modo que o é a consumação (embora, naturalmente, segundo a lei ordinária, com a gravidade da pena adequada a tal forma de cometimento do crime), teríamos então que, em relação a dois cidadãos que, sendo titulares de cargos políticos, cometessem o mesmo crime, um por tentativa e outro por consumação (e estando nós, portanto, perante graus muito díspares de ilícito), corresponderia a mesma sanção, que é obrigatoriamente a da demissão ou destituição do cargo, o que violaria o princípio da proporcionalidade. Penso que a Constituição não deve ir por este caminho, parecendo-me estas soluções inadequadas do ponto de vista do direito sancionatório.

Mas perguntar-se-á: a proposta do PS foge a estas dificuldades? Do nosso ponto de vista foge, porque remete para a lei e, consequentemente, tem um sinal de maior plasticidade em função da gravidade do ilícito, pois, naturalmente, a lei há-de respeitar os princípios da proporcionalidade. A proposta do PS diz: "podem incluir a destituição". Penso que o legislador ordinário que actualizasse esta disposição constitucional não deixaria de estabelecer diferenciações quanto à destituição. Naturalmente, reservá-la-ia para os casos mais graves, sobretudo atendendo à natureza das infracções, pois há infracções mais ou menos compatíveis com isso, ou seja, há infracções que revelam - é muito arriscado dizer isto - maior perigosidade do ponto de vista da adequação para continuar no exercício do cargo e, por essa razão, uns deverão ser demitidos, outros não.

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Mas deixemos a questão da perigosidade, que - repito - é uma argumentação perigosa e que apenas usei por comodidade de raciocínio. A gravidade diferencial de um ilícito merece um extremo cuidado e pensamos que, a ser aprovada qualquer inovação constitucional nesta matéria, uma proposta como a do PS já dá um avanço significativo e é suficientemente prudente. Peço sobretudo ao representante do PCP que não veja nesta minha intervenção uma fuga a esgrimir armas de carácter mais partidário. Nesta intervenção procurei utilizar argumentos de carácter técnico-jurídico e mais adequados, do ponto de vista de resposta da sociedade (uma vez que de resposta da sociedade se trata), a certas formas de ilícito.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, gostaria de colocar uma questão ao deputado Costa Andrade relativamente à proposta do PSD, ou seja, relativamente à questão do dever de sigilo.

Penso que esta proposta do PSU dá que reflectir e vem ao encontro certamente de necessidades várias vezes experimentadas no nosso ordenamento jurídico. Assim, a questão que me ponho e que coloco ao PSD é a de saber se a consagração deste dever de sigilo deveria ser constitucionalmente restrita aos titulares de cargos políticos ou se, pelo contrário, deveria ser configurada como uma norma constitucional que abrangesse outras categorias de indivíduos que tenham conexão com o segredo de Estado. É que, neste caso, não estarão, seguramente, apenas os titulares de cargos políticos, mas, em muitas áreas, estarão outros funcionários e agentes do Estado que, pela sua intervenção qualificada, têm acesso a um conjunto de matérias que podem estar envolvidas no regime de segredo de Estado.

E, sendo assim, a primeira das questões que queria colocar ao PSD era a de saber se, ponderando a necessidade de consagrar alguma coisa à volta do regime de segredo de Estado, não deveria este ser configurado com outro alcance e inserção sistemática, dizendo respeito ao regime da responsabilidade dos funcionários e agentes do Estado, nos quais também se criasse uma norma que co-envolvesse os titulares dos cargos políticos.

A segunda dúvida que tenho à volta deste ponto é o princípio do eventual confronto de valores: por um lado, a necessidade de proteger o sigilo, ou melhor, de consagrar este dever de sigilo, e, por outro lado, as necessidades de investigação, designadamente em processo judicial. Assim, gostaria de perguntar se o PSD não encararia a necessidade de salvaguardar a conveniência de levantar o dever sigilo no âmbito do processo judicial, embora evidentemente com cautelas típicas desse processo. O processo penal já hoje envolve um conjunto de cautelas em matéria de sigilo profissional e seriam abordadas essas ou outras cautelas relativamente ao segredo de Estado. Penso que, se não admitirmos a possibilidade de excepcionar uma regra geral de sigilo e também de definir-lhe limites temporais, poderemos ter, depois, o efeito perverso relativamente àquela que é a intenção inicial da norma.

São estas, portanto, as duas dúvidas que gostaria de ver clarificadas pelo PSD.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Deputado, há colegas meus que poderiam explicar melhor a nossa visão da matéria, pois não fui eu quem se ocupou expressamente dela. No entanto, a resposta parece-me ser relativamente fácil.

Em primeiro lugar, nós não trazemos no bolso respostas para todas as questões e muitas vezes é no debate que somos confrontados com outros problemas. E quem é jurista sabe da impossibilidade de prever todas as coisas que há no Céu e na Terra, para além da nossa filosofia! Falamos aqui do segredo de Estado, naturalmente, numa perspectiva subjectivista, isto é, dando-lhe uma certa subjectivação que é a dos titulares dos cargos políticos. A questão de saber se se deve tratar o segredo de Estado em termos objectivos ou em termos mais gerais é uma questão que devemos ponderar e que talvez deva ser alargada, mas a nossa preocupação aqui foi apenas relativamente aos titulares de cargos políticos.

É evidente que o Sr. Deputado tem toda a razão em colocar estas questões, mas, em parte, elas já estão respondidas pelo artigo 18.° da Constituição, que contém um princípio do regime de solução dos conflitos de interesses, de direitos e de valores em geral. Consequentemente, quaisquer conflitos que aqui possam surgir terão de ser solucionados nos termos hermenêuticos disponíveis.

De todo o modo, penso que a nossa proposta aplana já, de certa maneira, o caminho, na medida em que aponta para os termos da lei, e talvez possamos arranjar uma solução que dê o sinal constitucional e remeta depois para a lei a possibilidade de concretizar esta matéria em termos mais adequados. De resto, a nossa redacção é susceptível de melhorias e talvez os n.ºs 4 e 5 possam ser fundidos num único número. Isso é perfeitamente possível, e talvez a reserva "nos termos da lei" possa valer para todos.

É isto o que neste momento se me afigura dizer, sendo certo que, em relação ao processo penal, o actual Código de Processo Penal já resolve o problema do conflito entre os fins da investigação criminal e o segredo de Estado.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Luís Ramos.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - O Sr. Deputado Jorge Lacão referiu questões diversas. Por um lado, falou do segredo de Estado e, relativamente a isso, é bem verdade que se fala aqui apenas dos titulares de cargos políticos. No entanto, penso que o PSD está disponível para alargar essa perspectiva relativamente a outros quaisquer titulares.

Quanto à questão que - se bem percebi - era relativa à Administração e ao particular, no sentido não só do segredo profissional, mas de todas as relações que há entre um particular ou particulares e a própria Administração, queria lembrar-lhe que tudo isto está previsto no artigo 26.° da Constituição. Quando se fala no direito à intimidade e à vida privada, também aí

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se pode compreender que é obrigatório por parte da Administração, em termos de relações com o particular, nomeadamente no domínio fiscal, um dever de segredo relativamente a todas essas situações.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Deputado, o que eu quis dizer é que a minha segunda dúvida tinha a ver com o modo de excepcionar esta garantia do dever de sigilo. Se o dever de sigilo operasse por tal forma que funcionasse em termos fechados, o acesso a qualquer segredo de Estado seria por tal forma redignificado que não permitiria ser excepcionado em nenhuma circunstância e também não o permitiria, designadamente, em fase de investigação. Consequentemente, o que haveria aqui era que garantir uma cautela para excepcionar, designadamente em fase de investigação, a regra geral do dever de sigilo.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Mas, Sr. Deputado, relativamente a isso, tanto o dever de sigilo como o direito à intimidade têm limites e, nomeadamente, um dos limites que podem ter são provavelmente razões de investigação criminal.

O problema consiste em saber quais os limites de cada direito e o que depois é resolvido em termos...

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Era por aí que queria resolver o problema.

O Sr. José Luís Ramos (PSD): - Não resolve o problema, mas responde-lhe à parte da sua pergunta. E se o Sr. Deputado não a formulou, quero dizer-lhe, tanto em relação ao segredo, nomeadamente ao segredo de Estado, como relativamente ao direito à intimidade e à vida privada, que não se trata de direitos absolutos, mas têm limites, e que um deles será, obviamente - e não poderá ser posto em causa -, tudo o que tenha a ver com as garantias processuais penais, nomeadamente em termos de investigação. Ora, esses conflitos serão resolvidos à luz do artigo 18.°

O Sr. Jorge Lacão (PS): - É uma interpretação possível, mas não resolve todos os problemas.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Presidente, queria apenas pronunciar-me sobre as propostas dos outros partidos, dizendo que não poderíamos de modo nenhum ser contra o n.° 4 proposto pelo PCP. Estamos de acordo em que se dê dignidade constitucional à fiscalização do património e dos rendimentos da classe política - o que, aliás, propusemos em sede de lei ordinária - e não nos oporemos se se entender que se trata de norma com dignidade constitucional. Penso que talvez a referência ao mandato não seja muito feliz porque pode tratar-se do exercício de um cargo sem mandato.

Quanto ao n.° 5, ele limita-se, praticamente, a reproduzir o actual n.° 3 com o acrescento de limite à extensão da categoria de cargo político. Para além da impropriedade da palavra "extensão" - porque não se trata apenas de limitar a extensão, sendo preciso delimitar o cargo político -, devo dizer que considero esta referência inútil, na medida em que mal fora que a lei determinasse crimes sem determinar o seu sujeito, ou seja, o seu elemento subjectivo. Já hoje isto está incluído na determinação dos crimes de responsabilidade dos titulares dos cargos políticos, tendo de se dizer quem é o sujeito, qual é o objecto e quais são os demais elementos do crime. Também me parece que o advérbio "sempre", que precede a demissão ou destituição, pode, na verdade, e de acordo com o que disse o Sr. Deputado Costa Andrade, rigidificar a margem de diversificação das sanções relativamente à gravidade das faltas.

Quanto à proposta do PSD, nós, em princípio, não somos contra - se se entender que é absolutamente necessária - a consagração constitucional do segredo do Estado. Mas pensamos que esta formulação é complicada e retorcida. Terá de se dizer primeiro que "a lei definirá o segredo de Estado", e quando muito "e os termos em que ele vincula os titulares dos cargos políticos".

Por outro lado, parece-me que não são apenas os titulares dos cargos políticos, mas os funcionários em geral que estão em causa, o que quer dizer que esta proposta terá de ser mais ampla, abrangendo, não só os titulares dos cargos políticos, mas também os agentes administrativos em geral e tendo de ser precedida de algo deste género: "A lei definirá o segredo de Estado, aqueles que a ele ficam sujeitos, nomeadamente os titulares dos cargos políticos". Depois, terá de definir os termos em que o ficam.

Penso que deveria referir-se algo deste género porque, começar logo por dizer "os titulares de cargos políticos são obrigados a guardar rigoroso sigilo sobre matérias de que tenham conhecimento em razão das suas funções e que se encontrem abrangidas pelo regime de segredo de Estado", não me parece correcto. O segredo de Estado não está criado, nem a obrigação da sua definição e, consequentemente, entendo que deveríamos começar por aí.

O Sr. Presidente: - No caso está pressuposto. Mas o ponto importante é também a questão do n.° 5. É que, por vezes, há um certo esquecimento a esse respeito.

O Sr. Almeida Santos (PS): - De acordo, se quiser dizer isso. Mas parece-me que seria mais matéria da lei ordinária.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Se definirmos aqui apenas o segredo de Estado de um ponto de vista objectivo, é evidente que caberá depois à lei especificar os sujeitos.

Pensamos também que a redacção pode ser melhorada.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sr. Presidente, o que queria dizer, e que foi já em grande medida prejudicado pelas intervenções anteriores, era apenas que

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o PRD partilha das posições que foram tomadas pelo PCP e também, no essencial, pelo PSD a respeito da proposta do PCP.

No que toca ao segredo de Estado, não temos objecções a fazer, embora nos pareça que é saudável dizer alguma coisa a esse respeito. Não sei se será preciso pôr a regra na Constituição ou apenas prever a remissão para lei ordinária, embora se me afigure, como já da discussão resultou, que há aqui vários problemas, não só o do segredo de Estado, mas também o problema de um dever de sigilo que pode ultrapassar o mesmo segredo de Estado, e relativamente ao qual se coloca, além do mais, a questão de saber perante quem o sigilo funciona ou não.

Recordo-me, por exemplo, de uma questão que se pôs aqui há tempos, em que foi pedido a um tribunal inglês que ouvisse um ex-Secretário de Estado português sobre a explicação de um acto praticado no exercício das suas funções. Houve alguma dificuldade, do lado português - tanto quanto julgo -, em explicar que o direito português não permitia que esse ex-Secretário de Estado fosse ouvido sobre essa matéria. Tratava-se, aliás, de um processo cível na Grã-Bretanha, mas o que valeu no caso foi que os tribunais ingleses, com a ideia de prerrogativa, nem se preocuparam com o direito português.

Penso, no entanto, que há urna série de problemas - e não estudei o assunto - que julgo precisavam de uma maturação muito maior para se poder formular um preceito, abrangendo o dever de sigilo, que não cause complicações.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, penso - se me é permitida uma observação - que a intervenção do Sr. Deputado Miguel Galvão Teles tem toda a razão de ser no que diz respeito ao facto de existirem matérias que não são cobertas pelo segredo de Estado, mas que dizem respeito a problemas do exercício das funções e que não têm a ver com a responsabilidade pessoal dos titulares dos cargos políticos.

E estou-me a recordar, por exemplo, que, muito recentemente, se pôs um problema que ainda não está resolvido e sobre o qual, de resto, ainda não tomei uma posição pessoal, qual seja o de se saber se as relações entre o Ministro da Justiça e a Polícia Judiciária, no que respeita a directrizes gerais em matéria de investigação - e não estando em causa a responsabilidade penal de qualquer titular, nem a do Governo, nem a da Polícia Judiciária, mas uma questão relativa ao modo de instrução em concreto de um certo processo que está a decorrer num tribunal - são susceptíveis de serem objecto de um interrogatório num processo judicial. Este, no caso concreto - trata-se do processo em que é arguida a D. Branca -, não é um problema em que se possa invocar o segredo de Estado propriamente dito, embora noutro caso em que também houve um problema desse tipo a questão do segredo de Estado pudesse surgir - e foi também numa matéria de processo penal e também em relação ao Ministério da Justiça -, mas a verdade é que essa matéria não está hoje suficientemente tratada, procurando-se normalmente soluções de bom senso. No entanto, o grave é que uma questão de boa vontade pode, eventualmente, criar um precedente que tenha consequências inconvenientes para o futuro.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Penso que precisávamos de amadurecer este ponto.

Há matérias, por exemplo, nas quais não me repugna nada que um membro do Governo possa ser ouvido e em que seja obrigado a depor perante uma comissão de inquérito, por exemplo, da Assembleia da República, mas não, porventura, num processo-crime, num processo penal ou num processo cível.

Julgo que isto, em grande medida, teria de ficar para lei ordinária - era essa a minha ideia - porque não teremos tempo de amadurecer o problema, embora devêssemos amadurecer a ideia o suficiente para não estarmos, na disposição constitucional que porventura venhamos a introduzir, a prejudicar as soluções correctas.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Manuel Mendes.

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Sr. Presidente, queria dizer, logo a abrir, que as observações expendidas pelo Sr. Deputado Costa Andrade em relação ao advérbio "sempre", que consta do n.º 6 proposto pelo PCP, não cairão em saco roto. Talvez algumas das ponderações que o Sr. Deputado suscitou com a sua intervenção nos levem também a reflectir sobre a solução que hoje, aliás, consta da Lei n.° 34/87.

A Lei n.° 34/87 hoje escreve apertis verbis, tal qual nós o transcrevemos para o n.° 6 da nossa proposta: "A condenação por crimes de responsabilidade implica sempre a demissão...".

O Sr. Almeida Santos (PS): - É a nossa versão. Pode incluir a distinção. Eu sei que é assim e, feliz ou infelizmente, fui eu que a redigi.

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Portanto, não se deixou cair isso na altura da formulação...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Deputado, na lei vigente diz-se "sempre". Mas mantenho a minha posição de que isso é inconstitucional.

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Creio que, independentemente da solução que hoje consta da lei e que por isso se transcreveu para a proposta do PCP, valerá a pena considerar o nó de problemas que há pouco o Sr. Deputado pôde expender perante a Comissão, designadamente no que tem a ver com a igual punição da tentativa e da consumação.

O que nos parece evidente é que, tendo o legislador ordinário demorado doze anos a fazer uma lei dos crimes de responsabilidade após o 25 de Abril - bem mais do que aqueles que demorou o legislador após a Constituição de 1911-, não faria sentido que não aproveitássemos o ensejo para constitucionalizar soluções que, ademais, têm em vista a transparência e o enriquecimento do modelo democrático que a Constituição estipula para o nosso país.

Não consegui perceber inteiramente a observação feita pelo Sr. Deputado Almeida Santos relativamente ao n.° 5 proposto pelo PCP. Suponho que a redacção que dele consta de alguma forma não colide com aquilo que é a norma. Ou seja, a lei determina o crime, mas

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determinará também que ele há-de ser realizado por alguém. O sujeito não ficará incógnito e a nossa formulação não deixa, de forma alguma, destelhado este aspecto do problema.

O Sr. Almeida Santos (PS): - A vossa formulação clarifica. Só que é inútil, porque quem define o crime de um titular de cargo político não pode deixar de definir quem é que é o seu sujeito activo!...

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Então é uma norma de delimitação da extensão?

O Sr. Almeida Santos (PS): - É evidente e, tecnicamente, acho que é um excesso.

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Quanto à questão da proposta do PSD, suponho que ainda teremos alguma coisa a dizer sobre ela.

Em primeiro lugar, chamava a atenção para o facto de que o Deputado Costa Andrade utilizou a expressão "A lei definirá", mas que essa expressão não consta do texto que vem adiantado na proposta para o n.° 4 do artigo 120.° do PSD. Não há nenhuma remissão para a lei e, desse ponto de vista, o texto é extremamente rígido - para usar uma expressão suponho que, apesar de tudo, justa.

Por outro lado, as observações feitas pelo Deputado Jorge Lacão em torno da não abrangência de altos funcionários que, de alguma forma, convivem directamente com os mesmos segredos de Estado que aqui se visa acautelar que possam andar a granel na praça pública são pertinentes e devem ser consideradas, embora com limites bastante ponderados. Se a preocupação expressa no sentido de defender o direito de sigilo, nos termos que temos vindo a considerar, é, em si mesma, bem vinda, merecendo um tratamento mais aprofundado e adequado convém não esquecer uma outra realidade que ainda aqui se não referiu, qual seja a que tem a ver com a transparência da Administração Pública e com a necessidade de levar às últimas consequências a indagação - e não apenas em processo judicial - de matérias que possam ter a ver com a transparência do Estado democrático e com a efectivação das instituições, no plano do seu funcionamento quotidiano.

Chamava a atenção para isto porque a norma proposta pelo PSD, nos termos em que é proposta, nos parece claramente inacolhível.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Qualquer solução deste género requer cautelas muito particulares em matéria de competência e forma quanto à lei. Isto é, a concordância de princípio com uma solução constitucional que preveja a definição do segredo de Estado e um regime especial de sigilo não prejudica que fique completamente aberta a questão de saber por que tipo de lei e da competência de quem. Não sei se, por exemplo, o PSD inclui esta lei entre as matérias de reserva absoluta da Assembleia da República, mas diria que deveria estar incluída e, provavelmente, se a ideia for aceite, que deveria caber até nas matérias em que as leis tenham de ser aprovadas por dois terços.

É um ponto que fica em aberto para ser abordado na altura própria.

O Sr. Presidente: - O segundo ponto é uma senda perigosa. O primeiro é uma questão a ponderar devidamente, visto tratar-se de uma matéria, obviamente, da competência da Assembleia da República.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - O segundo ponto também mereceria alguma consideração.

O Sr. Presidente: - O segundo, a consideração que merece é noutra sede!

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Em qual sede?

O Sr. Presidente: - Não, mais tarde. A não ser que adoptem a posição que o Sr. Deputado José Magalhães há pouco expendeu acerca do Estatuto da Oposição e, nessa altura, a sede pode ser um "polisedismo".

Risos.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, muito brevemente, queria indagar, já não daquilo que, há pouco, foi objecto de comentários, mas sobre a questão da disponibilidade para a consideração de qualquer cláusula que colmate a actual não referência a uma obrigação de transparência dos rendimentos dos políticos.

O Sr. Presidente: - Qualquer cláusula que dê resposta à não obrigação? Não percebo.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Refiro-me à necessidade de constitucionalizar a obrigação de declaração do património de rendimentos no início e termo dos mandatos. Suponho que existe uma inclinação favorável em relação a uma norma desse tipo da parte do PSD...

O Sr. Presidente: - Nós não nos pronunciámos quanto à sua inclusão na Constituição. Estamos de acordo quanto à existência do dever e também reconhecemos que isso não tem tido uma eficácia por aí além.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, gostaria de aditar àquilo que já foi referido apenas um aspecto: creio que o PSD, em matéria de segredo, tem péssimas relações e antecedentes que não nos confortam. Ao contrário daquilo que consta de diversos projectos de revisão constitucional - designadamente do projecto do PCP, do projecto do PS e do PRD - no que diz respeito à Administração Pública, no sentido da "administração aberta", a preocupação do PSD na Administração Pública corrente tem sido permanentemente de fechamento, de multiplicação de restrições e de aplicação da noção segundo a qual as cadeias hierárquicas da Administração Pública são cadeias de tipo seitizado e secretista em que as únicas vozes possíveis são as vozes governamentais. É o silêncio para os directores-gerais, o silêncio para os funcionários e, curiosamente, o silêncio para sempre para os ex-governantes!

O Sr. Presidente: - Nós estávamos a tratar de segredo de Estado, Sr. Deputado.

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O Sr. José Magalhães (PCP): - Eu sei, Sr. Presidente.

Ora bem, não está referida na proposta do PSD a expressão "para sempre", mas também não está que não o é. Consequentemente, o legislador ordinário - e com isso me preocupo unicamente - ficaria com uma inaceitável margem de liberdade conformadora, liberdade essa que pode ir tão longe que transforme em "tumbas vivas" aqueles que abandonarem as cadeiras governamentais, o que me parece uma péssima ideia e, em todo o caso, uma amálgama inaceitável.

O Sr. Primeiro-Ministro teve ocasião de fundamentar publicamente esta como uma das mais importantes propostas do PSD, coisa que acho realmente curiosa porque dá resposta a uma das enormes dificuldades que, dentro do sistema galáctico de poder PSD, existe: por um lado, a concepção de que a verdade reside no Primeiro-Ministro e, por outro lado, a ideia de que a discordância de quem tenha estado perto dele - quiçá no Conselho de Ministros - deve ser íntima e ocorrer nas alfombras do próprio Conselho de Ministros ou em qualquer outra sede reservada, devendo as bocas que se abrirem em reservado calar-se, publicamente, para todo o sempre.

Será uma ideia interessante para o PSD, mas tem pouco a ver com o funcionamento do nosso sistema democrático e com a ideia que deve presidir à regulamentação do segredo de Estado. Sucede, em primeiro lugar, que o segredo de Estado pode ter de ceder perante determinados valores igualmente relevantes. Em segundo lugar, devo lembrar que a nossa legislação actual, designadamente a processual penal, a legislação sobre inquéritos parlamentares e a legislação sobre segurança interna e serviço de informação, arvoram o Primeiro-Ministro em dono do segredo de Estado.

Já tivemos ocasião, designadamente em determinados inquéritos parlamentares (que não trarei aqui à colação em detalhe, mas apenas em alusão genérica) de verificar ao que isto pode conduzir. Pode conduzir a verdadeiros "nós-cegos", em que o chefe da pirâmide hierárquica governamental fique, não apenas chefe daquilo que chefia, mas "chefe da verdade", isto é, da realidade e dos factos e chefe dos negócios do Estado. E não chefe no momento, mas chefe eterno: porque segundo o regime agora proposto e já, de algum modo, constante por exemplo das leis sobre serviços de informações o segredo que num determinado momento se verifique é segredo que pode ser domesticado e mantido, até que as bocas se calem pela aplicação das leis da vida.

Ora, esta é, naturalmente, a pior das noções possíveis e é também - tenho consciência disso - a mais extrema das interpretações possíveis do preceito do PSD. Só que o preceito comporta essa interpretação e capricha em não se bastar com o sigilo, adjectivando-o e dizendo que os titulares de todos os cargos políticos, ou seja, o mais humilde presidente de câmara e o mais humilde membro de um órgão de uma autarquia local, ficam vinculados a guardar "rigoroso" (e não menos do que rigoroso - não pode ser ligeiro, nem leve, nem apenas sigilo tout court sigilo sobre as matérias de que tenham conhecimento em razão das suas funções (e não esqueci a copulativa pois é fundamental) e que se encontrem abrangidas pelo regime do segredo de Estado.

E quem é dominus do segredo de Estado? É a maioria parlamentar. É isso objecto de qualquer restrição? Resposta: não é, no projecto do PSD, que, horrendamente se comporta perante qualquer ideia de tocar - como a Sra. Deputada Assunção Esteves, de resto fluentemente, há pouco teorizava - aquilo que são os contornos do princípio maioritário, "que é, por excelência, o princípio fundamental do nosso sistema", na leitura que dele faz o PSD.

Isto quer dizer, Sr. Presidente, que aquilo que este preceito viabiliza é da maior gravidade, sobretudo porque o n.° 5 também fala que se farta - embora estejamos a falar de segredo - dizendo o segredo "mantém-se mesmo após a cessação de funções nos termos da lei".

O Sr. Costa Andrade (PSD): - "Após a cessação de funções" - vírgula - "nos termos da lei"!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, não está lá a vírgula, Sr. Deputado. Não está lá vírgula nenhuma. O que está lá é: "após a cessação de funções nos termos na lei"

O Sr. Costa Andrade (PSD): - É um erro de dactilografia.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Então, a culpa é da dactilógrafa do PSD - a famosa dactilógrafa que distorceu o melhor do projecto do Sr. Deputado Rui Machete!

Risos.

O Sr. Presidente: - V. Exa. terminou?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Portanto, Sr. Presidente, creio que esta norma é, no projecto do PSD, não apenas uma das que enforma uma concepção que nos parece extremamente insubscritível do que deva ser a forma de exercício (e, sobretudo, de cessação) de funções dos titulares de cargos políticos, como perigosa, até pelo facto de não ser explícita na sua fundamentação.

Que pode existir segredo de Estado todos sabemos. Discutimos, de resto, com uma certa profundidade, na Comissão de Defesa, não há muito tempo, um projecto do CDS que visa, precisamente, regular, em sede de lei ordinária, alguns dos aspectos relacionados com esta matéria, tendo sido apreciado na mesma altura o projecto do PCP sobre "administração aberta". Nessa altura pudemos fazer uma inventariação bastante vasta do conjunto de problemas que se desdobram nestas vertentes todas - e muitas são. Esta norma, porém, tal qual vem redigida, não tem nada disso em consideração, a não ser a ideia da "rolha eterna", que é, de resto, o bom nome para a proposta do PSD.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Dá-me licença, Sr. Deputado?

O Sr. Presidente: - V. Exa. quer fazer um pedido de suspensão? Faça favor. É uma condição suspensiva que espero seja, simultaneamente, resolutiva.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, gostaria de perguntar ao Sr. Deputado José Magalhães se

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não ouviu as intervenções que foram feitas quanto à nossa total abertura no sentido de se reformular a redacção em termos que resultassem consensualmente previsíveis deste debate. A partir do momento em que, continuando a bater-nos pelo princípio que aqui enunciamos, mas tendo deixado de estar agarrados à formulação por nós adoptada - e já tivemos outras propostas em que nos batemos pela formulação proposta -, grande parte da sua intervenção é tardia e inadequada em relação ao estado do debate.

Pergunto-lhe também se o facto de não se aprovar qualquer norma neste sentido - como o Sr. Deputado parece sugerir - não colocará efectivamente o poder de definição do segredo de Estado e do seu regime nas mãos de uma maioria que não teria qualquer referência, o que, tratando-se de uma referência, implica também, pelo menos, uma certa limitação à sua própria lógica intrínseca. É que, mesmo quando a Constituição o permite, tal permissão tem também limites intrínsecos. Não lhe parece, Sr. Deputado, que, apesar de tudo, é preferível existir uma norma com o conteúdo indicado pelo PSD no âmbito desta discussão, e sem quaisquer amarras à fórmula que apresentámos, do que mantermos o actual silêncio constitucional que coloca o problema do segredo de Estado inteiramente à mercê de uma maioria histórica e conjuntural?

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Deputado, a minha dúvida tem uma componente técnica e uma componente política. A componente técnica é a de saber da opinião do Sr. Deputado José Magalhães quanto ao facto de o segredo de Estado imposto aos titulares de cargos políticos não carecer, de facto, de base constitucional. Isto é, uma coisa é toda a estrutura do segredo de Estado ou até do dever de sigilo não qualificado para os funcionários públicos que estão sujeitos a determinadas regras em face do estatuto disciplinar da função pública ou do regime aplicável aos funcionários das forças armadas - por exemplo, para os militares e agentes militarizados -; outra coisa é o segredo de Estado para titulares de cargos políticos, onde é muito mais relevante a liberdade de expressão e mais gravosas as suas restrições em face até da necessidade de, por exemplo, vir a público revelar pormenores importantes da história recente para reabilitar imagens que, propositadamente, foram distorcidas através da especulação sobre factos históricos que estão recobertos pelo segredo de Estado. Pergunto se não há, de facto, aqui uma restrição que carece de base constitucional, em termos a ponderar com rigor e precisão, claro está.

A segunda questão é a seguinte: concordo com o Sr. Deputado José Magalhães em que isto não pode ser o calamento, nem a rolha eterna. Tem de haver limites e pareceu-me entrever, nas posições do Sr. Deputado José Magalhães, uma evolução significativa e positiva no sentido de ter disponibilidade para rapidamente reapreciarmos nesta Assembleia as normas insustentáveis que estabelecem actualmente limites à divulgação pública dos arquivos Salazar e Caetano e dos próprios arquivos da PIDE/DGS.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Srs. Deputados, é evidente que a intervenção é tardia - são 19 horas e 10 minutos. Em todo o caso, gostaria de dizer que me parece que as próprias perguntas do Sr. Deputado António Vitorino e a pergunta feita pelo Sr. Deputado Costa Andrade na parte final são, por si só, a corroboração de que existe um espaço para debate e debate não propriamente ocioso, inútil ou despojado de consequências. Poderá ser incómodo para o PSD. Seguramente o é. Mas é necessário e pode ter alguma utilidade, sobretudo se conduzir a conclusões.

A minha grande dúvida, devo dizer francamente - de resto, foi a dúvida que nos surgiu no debate colectivo que pudemos ter quando conhecemos a proposta do PSD -, é esta: se o PSD tem uma atitude de tão grande reserva em relação ao alargamento das fronteiras da Constituição e ao conteúdo da Constituição - tanto em relação ao adensamento como ao alargamento em sentido estrito, coisa que faz depender sempre de critérios extremamente exigentes, achando sempre, como há pouco abundantemente pudemos ouvir da boca dos representantes do PSD, muito melhor deixar isso para o terreno da lei ordinária e não sobrecarregar a Constituição, etc., etc. -, que alto valor é que levou o PSD a considerar que, neste caso, um alargamento desses era fundamental, justificado, necessário e adequado?

Por mim, entendo que, quanto a algumas destas matérias, a preocupação bem poderia ter expressão em sede de lei ordinária, como é evidente. É preferível haver uma credencial constitucional? Há problemas que devam ser dirimidos em sede constitucional? Creio que a evolução do debate conduz à ideia de que pode suceder que haja problemas susceptíveis ou carecidos de resolução em sede constitucional, tal como havia problemas carecidos de solução em sede de Constituição em relação a outros aspectos do estatuto dos titulares de cargos políticos, designadamente os relacionados com os crimes de responsabilidade. Só pudemos apreender tudo isto depois de fazermos a viagem pela tentativa de fazer uma lei dos crimes de responsabilidade - lei essa que, pesem as condições em que foi elaborada, as dificuldades, para além de ser a base vigente, é uma honrada forma de tentar equacionar alguns dos mais tormentosos problemas que a questão suscita. O facto de termos feito essa viagem foi proveitoso.

É evidente que se a esta hora tivéssemos feito viagem similar pelos meandros do segredo de Estado, com a perspectiva de construir uma legislação que dê respostas aos diversos valores que é preciso contrapor, provavelmente este debate resultaria enriquecido. Sucede, porém, que, em parte, essa viagem foi feita - de resto, procurei abonar-me do saldo desse percurso na intervenção inicial - e conduziu, quanto a mim, a conclusões altamente preocupantes. O quadro vigente neste momento quanto ao regime de invocação do segredo de Estado, ao dominus do segredo de Estado, à possibilidade da sua invocação, com todas as suas consequências (invocação perante os tribunais, invocação perante o Parlamento e invocação ulterior, in-

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cluindo para situações como aquelas que o Sr. Deputado António Vitorino evocou) é hoje, no terreno da lei ordinária, recheado, em certos casos, das mais inextricáveis dificuldades.

A isto acresce que o regime dos deveres dos titulares de cargos políticos coloca dificuldades enormes face à malha actual da Constituição. E nós tivemos alguma ocasião de o constatar quando debatemos uma outra norma, sobre a qual de resto também estão pendentes propostas de alteração - o artigo 22.° Acordámos então ser necessário considerar, simultaneamente, não só a problemática hoje contida no artigo, como também aquela que o PCP, no seu projecto de Revisão Constitucional, procura introduzir, e articular tudo isso com o disposto neste artigo que estamos a apreciar sobre o estatuto de titulares de cargos políticos.

Essa reflexão tem de ser conjugada e complexiva, por definição. No quadro dessa reflexão, admito que se encontre uma cláusula, uma credencial constitucional susceptível de articular e fazer contrapor os diversos valores em presença, em termos não de consagrar uma "rolha eterna" (nem rolha nenhuma, como é óbvio),

respeitáveis, sem ofender e inviabilizar a tutela de outros. Se se conseguisse tal coisa, responderia à pergunta do Sr. Deputado Costa Andrade sobre se não é preferível não haver nenhuma norma, nos seguintes termos bastante peremptórios: uma norma boa é preferível; para norma má, já basta assim. De facto, pode colocar-se a questão da legitimidade da lei porque, ao contrário do que o Sr. Deputado Costa Andrade disse, haverá de ter que fazer bastante esforço para sustentar que se encontra na plena disponibilidade do legislador ordinário a delimitação dos contornos desse dever. Tenho, não digo dúvidas, mas completas e acirradas reservas quanto à sustentabilidade dessa teoria da liberdade da fixação de deveres dos políticos. Creio que sucede o contrário: na fixação dos deveres, devem reger os princípios aplicáveis à própria restrição de direitos. Essa protecção não pode ser invertida, de forma ínvia, através da multiplicação, arbitrária e irrestrita, de deveres, nomeadamente o dever de estar calado, na" medida em que o direito de falar é um dos mais fundamentais direitos e pode ser fundamental para um político defender eminentes interesses públicos, designadamente o direito à verdade.

O Sr. Deputado António Vitorino fez uma coisa que eu considero perfeitamente perdoável, mas que é qualificável criticamente também - coisa que eu não vou fazer agora. Misturou duas coisas totalmente diferentes: misturou a questão da "rolha eterna" na boca com a questão do arquivo eterno para documentos. Como sabemos, há três ou quatro diferenças - não direi mais! - entre os documentos e as pessoas. E quanto ao estatuto de titulares de cargos políticos e o estatuto dos documentos públicos, seremos todos capazes - e seguramente o Sr. Deputado António Vitorino melhor que ninguém - de estabelecer algumas das especificidades desse regime que podem levar a que se considerem, como é evidente, todas as questões que o Sr. Deputado António Vitorino agora colocou. De resto, terá a possibilidade de o fazer na sede própria, a propósito da questão da custódia dos arquivos da ex-PIDE/DGS, e, naturalmente, em sede de lei ordinária (já se chegou a elaborar um conjunto de esboços legislativos para dar resposta a alguns desses problemas). Mas tudo isso não tem a ver directamente com a matéria deste artigo, a não ser na medida em que todos nos projectemos em documentos que hajam de ficar secretos (não é o caso destas actas, felizmente!).

O Sr. Presidente: - Este debate tem sido um exemplo paradigmático da postura dialógica de alguns dos intervenientes.

Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, devo confessar que não percebi a observação, mas não nie coibo de intervir... Dialógica?

O Sr. José Magalhães (PCP): - É uma manifestação de ciúme primário.

Risos.

O Sr. Presidente: - Não é, não é...

O Sr. António Vitorino (PS): - Eu não sei qual é a qualificação que o Sr. Deputado José Magalhães tinha em mente quando se referiu à minha intervenção, mas penso que, qualquer que ela fosse, era sempre injusta. Na verdade, ela só pode e deve ser entendida na precisa medida em que não faz sentido que, por exemplo, os arquivos de Salazar e Caetano - não consideremos agora a questão dos arquivos da PIDE/DGS - estejam vedados ao público durante 25 anos a contar da data de publicação de um decreto-lei de 1981, o que significa que há documentos desses arquivos que vão estar vedados ao acesso e ao conhecimento da opinião pública durante cerca de 70 anos no mínimo, quando nos Estados Unidos, por exemplo, já estão neste momento completamente libertados todos os arquivos da Administração Nixon e Ford, que são administrações de há doze ou catorze anos. Este critério tem relevância para o problema do segredo de Estado, atento o paralelismo das situações, porque o posicionamento de um titular de um cargo político perante um determinado, f acto histórico baseado apenas em declarações pessoais, digamos assim, é extremamente vulnerável se não puderem ser invocados documentos constantes dos arquivos oficiais que estão recobertos pelo mesmíssimo segredo de Estado. O paralelismo é evidente: seria hipocrisia pura deixar que um titular de cargo político, por exemplo, pudesse, transcorridos cinco anos sobre um determinado facto, vir a público sobre ele se pronunciar, mas o documento no qual a sua pronúncia se fundamenta só pudesse vir a ser conhecido vinte e cinco anos depois. Isso sim, seria a rolha mais dramática, na medida em que a pessoa estaria convencida de que não estava limitada quanto às suas declarações, porque podia vir a público invocar factos históricos; mas, como a prova desses factos estaria sujeita a um critério altamente restritivo e completamente contraditório com o da vinculação pessoal ao silêncio, acabaria por ser pura hipocrisia o direito que se conferia à pessoa de vir a público "varrer a testada" em defesa do seu bom nome sem poder produzir as correspondentes provas documentais. É daí que faço uma ligação íntima entre estes dois elementos de debate que me parecem incindíveis.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

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O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado António Vitorino, em tese geral a conexão existe. Mas é óbvio que a conexão existiria obrigatoriamente a partir do momento em que estamos a discutir a problemática do segredo; a habilidade está em distinguir as vertentes, a sageza necessária está em não misturar as vertentes. Em minha opinião, tem toda a razão quanto a um ponto: a solução em vigor é, acima de tudo, hipócrita, na medida em que as livrarias estão cheias de depoimentos, por vezes até chamados assim, de memórias, de biografias e de outros textos, com nomes de baptismo muito diversos, em que são vertidos para a opinião pública, por pessoas, de viva voz, factos ou versões de factos em relação aos quais não há acesso público à documentação de base que lhes diz respeito. Mas houve, como sabe, acesso privilegiado de um dado biógrafo a um acervo documental secreto essencial que em monopólio fruiu, acervo documental esse cuja salvaguarda, cuja custódia e cuja intangibilidade terá sido tudo menos assegurada nos seus precisos termos, havendo acessos e utilizações por parte de privilegiados beneficiários. Isto significa, portanto, que a situação é, desse ponto de vista, anómala.

Mas chamo-lhe a atenção para a questão que nos tinha preocupado neste ponto. É que a solução do PSD tal qual está gizada (embora o PSD tenha decaído dela ou da sua formulação maximalista) conduziria a que fosse possível proibir não apenas o documento - é aqui que eu cindo as duas questões -, mas aquilo que hoje não é proibido, ou seja, o depoimento de viva voz. Ninguém pode impedir o Sr. Deputado Almeida Santos de sacar do baú os documentos que entender sobre o tema da descolonização, ou outro qualquer, e pô-los a nu, através de depoimento seu, desde que não viole a legislação penal. Isto parece-me perfeitamente óbvio. Pode dar os depoimentos que entender sobre o que entender, de viva voz, pode descrever os pormenores mais estrepitosos, pois regem aí outras regras. Se alguém que é testemunha, em circunstâncias similares, entender desmenti-lo cabal, frontal e violentamente, fa-lo-á, pois existem os tribunais, onde se dirimirão os litígios eventuais. Mas não aparecerá o Primeiro-Ministro de Código Penal na mão e beleguim, dizendo: "Ah, não! Isso passou-se no Conselho de Ministros de tantos de tal. O senhor está vinculado pelo segredo e portanto quebrá-lo é crime." Não será crime de responsabilidade, porque é um ex-ministro, mas é crime face ao Código Penal - e como tal deve ser sancionado. Isso é impossível? Lembro-vos o que aconteceu - alguns deputados que aqui estão conhecem isso - quando na Comissão de Camarate nos lembrámos de começar a fazer perguntas sobre o Conselho de Ministros da madrugada fatídica... Basta isto!

O Sr. Jorge Lacão (PS): - V. Exa. sabe bem, mas nós não, porque não estávamos lá.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Pois não sabem, nem eu vos digo... porque é segredo!

Risos.

O Sr. Presidente: - Quando há pouco me referi à postura dialógica, estava a pensar no exemplo verdadeiramente paradigmático que V. Exa., Sr. Deputado José Magalhães, deu, ao "fazer tábua rasa" - porque não as ouviu antes - das intervenções que, nesta matéria, tinham precedido a sua e que me pareciam merecedoras de serem consideradas no seu intento. De contrário, voltamos sempre a repetir o mesmo e às vezes em termos que nos fazem efectivamente perder tempo.

Srs. Deputados, não havendo propostas de alteração ao artigo 121.°, passamos agora à análise do artigo 122.°, sob a epígrafe "publicidade dos actos" (o que vem a propósito do segredo de Estado, de resto). Nesta matéria, o CDS propôs a alteração da alínea c); o PS propõe a alteração de várias alíneas do n.° 1; o PRD propõe um aditamente à alínea b); e, por último, vários deputados do PSD, que apresentaram um projecto autónomo, o projecto n.° 10/V, propõem também alterações a este preceito.

Para justificar a proposta do PS, tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: A nossa proposta explica-se muito facilmente. Em relação à alínea b), trata-se de garantir não só a publicação das convenções internacionais e dos avisos de ratificação como também a dos restantes avisos. Na realidade, há avisos referentes a convenções internacionais que não são avisos de ratificação, como sejam, por exemplo, os avisos de depósito das respectivas convenções internacionais nas sedes das organizações internacionais ou nos locais que as próprias convenções estipulam. Trata-se pois apenas de dar cobertura constitucional - é um preciosismo se assim se quiser - a uma prática que já é hoje seguida no Diário da República.

A alínea c) não tem autonomia própria na medida em que se trata da consagração das leis paraconstitucionais, estando como tal dependente da existência ou não desta forma de lei.

Quanto às alíneas e) e f), são um mero rearranjo sistemático. Incluímos na alínea e) os actos referentes à Assembleia da República e às Assembleias Regionais dos Açores e da Madeira, prevendo a publicação, tal como hoje, das respectivas resoluções e dos regimentos, que, hoje em dia, estavam separados em duas alíneas. Deixou-se apenas uma alínea f) para o Regimento do Conselho de Estado, como órgão distinto das assembleias que, na nossa proposta, passam a estar contempladas na alínea e).

Por último, a alínea i) tem o objectivo de dar cobertura constitucional a algo que já é prática, hoje em dia, concretamente verificada, isto é, a publicação no Diário da República dos resultados das eleições em âmbito nacional. Por outro lado, acrescentamos a publicação dos resultados dos referendos nacionais, o que resulta de se propor a criação desta figura no nosso sistema institucional. É pois esta a justificação sucinta da nossa proposta.

O Sr. Presidente: - Para justificar a proposta do PRD, tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - A alteração que o PRD introduz no artigo 122.° é apenas a consequência da previsão do referendo.

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Independentemente de justificação, queria acrescentar que estamos essencialmente de acordo com as alterações propostas pelo PS, independentemente da qualificação das leis como paraconstitucionais. Permito-me também chamar a atenção para o seguinte ponto: quando foi elaborado o Regimento do Conselho de Estado, levantou-se a dúvida - mas só agora me lembrei e não tive oportunidade de verificar - quanto ao local de publicações dos actos deste Conselho. É evidente que, quando os pareceres são associados a um acto do presidente da República, eles têm que ser publicados no local onde for publicado o acto, mas eu tenho ideia que o Regimento acabou por estabelecer, legalmente - embora não tenha a certeza de que o Regimento possa fazê-lo -, que os actos do Conselho e os relativos ao Conselho, como a renúncia de membro do Conselho, e mesmo outros pareceres, além daqueles que são publicados juntamente com actos do Presidente da República, fossem publicados na primeira série do Diário da República. Deixo esta observação e irei verificar este aspecto, mas creio que haveria conveniência em cobrir constitucionalmente as disposições do Regimento do Conselho de Estado nessa matéria. Embora se trate de pormenores puramente técnicos, creio que valeria a pena.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Mário Maciel.

O Sr. Mário Maciel (PSD): - Sr. Presidente, eu não subscrevi o projecto n.° 10/V, mas, obviamente, tenho alguma simpatia para com ele. Considero que tal projecto constitui um complemento de reflexão para esta Comissão em matéria de autonomias regionais.

O texto actual da Constituição garante a publicação no jornal oficial, Diário da República, dos decretos legislativos regionais, das resoluções das Assembleias Regionais e dos respectivos regimentos, dos decretos dos Ministros da República e ainda dos decretos regulamentares regionais. Inspirado na proposta do projecto n.° 10/V, parece-me importante que se garanta a publicação nos respectivos jornais oficiais não só dos actos que têm de ser publicados no Diário da República, mas também daqueles que têm de ser publicados nesses jornais oficiais. Não porque isso não aconteça (existe, pelo menos, na minha região autónoma um jornal oficial onde todos os actos do Governo são publicados, para além daqueles que são publicados no Diário da República), mas porque, segundo me parece, essa publicação tem importância constitucional. Se, no artigo 122.°, se garantisse que todos os actos da administração regional deveriam ser publicados nos respectivos jornais oficiais, este preceito constitucional ficaria a abranger toda a publicação, quer a oriunda dos órgãos de soberania, quer a oriunda dos órgãos de governo próprios - assembleia regional e governo regional - das regiões autónomas. Parece-me que isso tem dignidade constitucional.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Mário Maciel, suponho ter percebido o que disse. Mas há uma dúvida que gostaria de lhe formular. Não vejo nenhum inconveniente que, no local próprio da Constituição, se diga que os actos dos órgãos das regiões autónomas devam ser publicados nos jornais oficiais das respectivas regiões. Todavia, a dúvida que tenho é esta: nós aqui não estamos a tratar de actos dos órgãos das regiões autónomas; estamos a tratar de actos dos órgãos de soberania. Que, ad adjuvandum, se publiquem também esses actos nos órgãos das regiões autónomas, eu diria: quod abundant, non nocet - não vejo nenhum inconveniente. A dúvida que me suscita é, se se quer - naturalmente, não seria esse o efeito pretendido, mas não é clara a redacção - condicionar a eficácia desses actos à sua publicação nos jornais oficiais das regiões - isso é que não poderia ser. A expressão "a publicidade. .. é garantida..." (artigo 122.° do projecto n.° 10/V) não é suficientemente clara, ou então é-o em termos de dizer que a sua falta teria um determinado tipo de consequências que seriam a ineficácia. Isso, evidentemente, não seria aceitável, que uma lei ou um decreto-lei emanado da Assembleia da República ou do Governo, ou um decreto do Presidente da República, visse condicionada a sua eficácia, para além da publicidade no jornal oficial, Diário da República, à sua publicação no jornal da região. Quer dizer, a minha ideia é esta, estou a ter uma primeira reacção ao texto. Vejo, em primeiro lugar, que tudo aquilo que favoreça a publicidade dos actos dos órgãos regionais, e, portanto, a sua publicação nos órgãos respectivos deve ser encorajada, e isso tem a sua colocação sistemática na altura em que tocarmos nos órgãos das regiões autónomas; em segundo lugar, não vejo inconveniente em que se reforce a publicidade, até por questões de facilidade de consulta, pela circunstância de se publicarem, outra vez, os actos nos órgãos das regiões autónomas. Mas (e este "mas" é muito importante) o que não pode haver é a subordinação da eficácia jurídica dos actos dos órgãos de soberania, à sua publicação nos órgãos das regiões autónomas, porque, de contrário, teríamos aqui um esquema imperfeito em termos de, inclusivamente, poder criar problemas graves - para não falar noutros que, naturalmente, só a viciação do sistema poderia permitir, e isso seria uma adulteração - de vacatio legis, digamos assim, e de segurança quanto à entrada em vigor, completamente diferentes daqueles que são os estipulados nas normas gerais.

Portanto, resumindo: penso que nós poderemos, em sede própria, isto é, quando tratamos dos actos das regiões autónomas, ponderar a utilidade de inserir uma norma na Constituição sobre a publicidade dos actos (provavelmente seria suficiente no estatuto de cada uma das regiões autónomas), mas é uma questão que não é fundamental. O único ponto que verdadeiramente importa esclarecer é que não parece que seja esta a sede sistemática apropriada para tratar desta matéria e, sobretudo, que se possa condicionar a eficácia dos actos, previstos no artigo 122.°, à sua publicação nos jornais oficiais das regiões autónomas. Aliás, repito, não é claro, para mim, que esse fosse o propósito dos subscritores do projecto.

Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS.): - Queria reforçar, e subscrever, as considerações do Sr. Presidente e, para além disso, dizer o seguinte: de qualquer modo, não me parece que se tratasse de "actos das regiões", trata-se de actos dos seus órgãos, como é natural - as regiões não cometem actos. Por outro lado, não são "os actos das regiões previstos no número anterior", são

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os actos de muita gente, incluindo o Ministro da República - penso que também quereriam a publicação desses.

Por último, diz-se "... bem como os demais actos do governo regional" - não sei o que isto é, poderemos ir tão longe quanto se queira. Todos os actos do governo regional? Acho que era ir longe demais.

Mas, de qualquer modo, a observação principal é, afinal, a do Sr. Presidente. Estava descoberta a pólvora: quando se quisesse que fosse ineficaz um acto publicado no Diário da República, fosse ele qual fosse, era só não o publicar no jornal oficial da região, e ele perdia a ineficácia! Também nos parece que, se for de consagrar alguma coisa na Constituição, é no lugar próprio, embora, neste momento, tenhamos dúvidas que isto seja matéria para a Constituição, e não para o estatuto. Parece-me claramente matéria estatutária, para lá do que já se encontra consagrado na Constituição. Se assim se não entender, então no lugar próprio, e com outra redacção.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Em relação aos actos das regiões autónomas, é muito simples, e não acho mal que alguma coisa se possa estabelecer nessa matéria. Das duas, uma: ou é para condicionar a eficácia de actos, de órgãos da República, à sua publicação em jornais oficiais da região - o que é, no mínimo, complicado; ou é para condicionar a liberdade dos órgãos da região, na medida em que têm de publicar os seus próprios actos no seu jornal oficial. Neste segundo caso, é evidente que consagrar constitucionalmente isto não me faz diferença nenhuma, mas representa uma limitação à auto-organização das regiões. Ao contrário do que parece, não se trata de um reforço da auto-organização das regiões; é uma limitação, porque a região deixa de poder dispor, sobre esta matéria, nos respectivos estatutos. Só quero chamar a atenção para este aspecto. Mas daqui não tiro a consequência de que não deva estabelecer-se na Constituição.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, muito simplesmente, gostaria de dizer que os aperfeiçoamentos técnicos merecem aplausos - os que são efectivamente aperfeiçoamentos técnicos (e entendemos que as propostas apresentadas pelo PS, nessa matéria, o são).

É evidente que a proposta do PRD é um corolário da sua opção quanto à questão do referendo. Em relação às questões técnicas suscitadas pela publicação do regimento do Conselho de Estado, parece-nos que é realmente de estudar e de ponderar a observação feita pelo Sr. Deputado Miguel Galvão Telles.

Tenho grandes dúvidas quanto ao alcance da norma do artigo 122.°, na redacção do projecto 10/V, e não me parece que o Sr. Deputado Maciel tenha situado as suas diversas implicações - a ausência dos proponentes nesta matéria torna absolutamente inútil qualquer exercício punitivo ou fustigativo.

O Sr. Presidente: - O "punitivo" está fora da nossa competência, não é verdade, Sr. Deputado?

O Sr. José Magalhães (PCP): - "Punitivo" no sentido simbólico, claro. Na medida em que todos nos punimos ouvindo certas coisas ditas por outros de nós, em particular certos de nós.

O Sr. Presidente: - O "fustigativo", infelizmente, estamos todos ao alcance.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas a questão não estava aí, Sr. Presidente! A questão estava em que, realmente, não vejo maneira de fazer assentar no preceito, tal qual está redigido, a ideia de que as regiões passassem a poder, através do mecanismo da publicidade e também da não publicidade, condicionar a vigência, na respectiva área, de diplomas como os enumerados no artigo 122.° do seu n.° 1. Seria uma proposta susceptível de induzir não uma reacção punitiva, claro, mas um pronto protesto. Creio que está completamente fora do conteúdo possível do preceito desta leitura!

Partilho as observações de que as questões a considerar devem sê-lo na sede própria. Sabe-se que se institucionalizou, entre nós, a existência não polémica de jornais oficiais das regiões; sabe-se também que a delimitação daquilo que deva ser publicado nesses jornais, e aquilo que tem que ser obrigatoriamente - até por decorrência do artigo 115.° da Constituição - publicado no Diário da República, dado o seu vigor e natureza jurídica, tem dado origem a dificuldades, e dificuldades bastante sérias. Na altura em que discutimos o estatuto da Região Autónoma dos Açores pudemos apreciar algumas dessas dificuldades. Outras têm vindo a ser aventadas, designadamente quando debatemos legislação sobre as associações de estudantes e o seu regime específico nas regiões autónomas; quando estudámos aspectos relacionados com as sociedades comerciais e a publicação de actos relacionados com a sua vida interna, há ainda outros aspectos, designadamente os relacionados com a vida das associações sindicais e outras entidades de carácter não público. Tem-se visto como é extremamente difícil apurar não só a fronteira como as soluções que permitem evitar que às regiões autónomas sejam expropriados poderes - como o Sr. Deputado Galvão Telles alertava que constitui risco - ou o contrário.

Portanto, Sr. Presidente, a prudente reserva que aqui foi exibida por todas as bancadas, sem excepção, é também subscrita pela do PCP.

O Sr. Presidente: - Só adjuvando aquilo que foi dito pelo Sr. Deputado Miguel Galvão Telles, em todo o caso, o n.° 2 do artigo 122.° da Constituição, já, de algum modo, explicita a orientação básica da Constituição, nesta matéria, dizendo que, se os actos e conteúdo genérico dos órgãos de soberania e dos órgãos das regiões autónomas e do poder local não forem publicados, isso implica a sua ineficácia jurídica.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não era essa, Sr. Presidente, a dúvida em debate.

A questão que estava suscitada era a do exacto alcance deste artigo do projecto n.° 10/V.

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O Sr. Presidente: - Não, não. Só estava a circunscrever-me ao problema que o Sr. Deputado Galvão Telles pôs - e bem - da hetero-limitação, neste caso, da autonomia.

Vimos o artigo 122.° Em relação ao artigo 123.°, presumo que nem o Sr. Deputado José Magalhães pode fazer observações nesta matéria, visto que não tem alterações. E, portanto, o artigo 124.° seria o artigo com o qual iniciaríamos post cenam os nossos debates.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, a que horas é que V. Exa. entendia...

O Sr. Presidente: - Quer pronunciar-se sobre o artigo 123.°?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, não pedi a palavra para tecer considerações sobre o artigo 123.°, porque as únicas que caberiam eram para abonar o mérito do debate que, na primeira revisão constitucional, foi travado sobre esta matéria - longo, duro e espinhoso -, mas não vale a pena reeditá-lo...

O Sr. Presidente: - Mesmo assim, V. Exa. consegue reproduzir uma observação!

Portanto, vamos recomeçar com o artigo 124.°, às 22 horas.

Srs. Deputados, está suspensa a reunião.

Eram 19 horas e 55 minutos.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, está reaberta a reunião.

Eram 22 horas e 30 minutos.

O Sr. Presidente: - Vamos passar ao artigo 124.°, sob a epígrafe "Eleição" (do Presidente da República). Apresentaram propostas de alteração o CDS, o PCP, o PSD e a Sra. Deputada Helena Roseta, como independente.

Começaria por solicitar ao PSD, visto o PCP ainda não estar presente, o favor de justificar a sua proposta.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Este artigo 124.° é uma proposta antiga do PSD. Nós encaramos com alguma simpatia que a Sra. Deputada Helena Roseta, agora pelo PS, subscreva uma proposta idêntica à nossa, isto é uma homenagem, e temos de dizer isto para a acta, ao voto dos emigrantes; sempre entendemos não haver razões que justifiquem o contrário, isto é, que os emigrantes não possuam direito de voto em relação à eleição do Presidente da República. Pensamos que há uma grande margem de manobra que torne possível o voto dos emigrantes em circunstâncias que não desmereçam o valor do seu voto e portanto entendemos que, pura e simplesmente, devemos alterar o preceito constitucional eliminando os dois números do artigo 124.° e reunindo-os num número único, substancialmente mais fácil, mais enxuto e mais propiciador da igualdade de direitos entre todos os cidadãos portugueses. É isto, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Não sei se, uma vez que temos adiante alguns artigos que só têm propostas do PS, do PRD, e depois do PS e do PSD, e que são questões relativamente mais simples, se não poderíamos, por uma questão de aproveitar o tempo, e ponho isso à consideração de VV. Exas., em vez de fazermos uma análise, mais ou menos aprofundada, do artigo 124.°, começávamos por fazer uma análise do artigo 127.°

O Sr. Almeida Santos (PS): - Acho que sim.

O Sr. Presidente: - Porque é talvez mais justo.

O Sr. Almeida Santos (PS): - E não darmos ao Sr. Deputado José Magalhães pretexto para um discurso de três quartos de hora.

O Sr. Presidente: - Estando todos de acordo, e só faltando o PCP fazer a sua apresentação do artigo 124.°, saltávamos para o artigo 127.°

O Sr. Almeida Santos (PS): - Só perguntava se o PSD no seu artigo 124.° elimina o n.° 2, como parece.

O Sr. Presidente: - Exactamente. O artigo 124.° fica a sua discussão sustada, faltando a apresentação da proposta do PCP. Os artigos 125.° e 126.° não têm propostas de alteração. O artigo 127.° tem uma proposta de alteração, ao n.° 1, por parte do PS. Quer o PS apresentar a sua justificação, sucintamente?

O Sr. Almeida Santos (PS): - A Matemática não se justifica, é uma ciência exacta. Nós entendemos que não se deve banalizar a candidatura à Presidência da República, e a experiência tem revelado que há candidatos que surgem apenas para se divertirem um pouco e depois desistirem a meio do percurso. Talvez devêssemos reforçar a dignidade da candidatura exigindo mais alguma representatividade ao nível da sua formalização e pondo alguns obstáculos a que desta maneira surjam candidaturas que não são para valer, são só para uma passeata pela Televisão! Entendemos que não é uma forma de dignificar as eleições presidenciais e que esta subida dos números para o dobro vinha restringir a possibilidade destas "diversões" concorrenciais.

O Sr. Presidente: - Podemos passar à discussão. Penso que esta proposta deve merecer ponderação e, em princípio, não vejo que haja nenhuma objecção do lado do PSD à sua subscrição.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Um candidato com o apoio, ainda que não formal, de um grande partido, terá sempre 20 000 ou 15 000 assinaturas. Quem não for capaz de conseguir 20 000 assinaturas, não tem, talvez, direito a apresentar-se com um mínimo de credibilidade.

O Sr. Presidente: - Não sei se há mais alguns comentários. O artigo ficou devidamente dilucidado, podíamos passar ao artigo 128.° Neste, que é sobre a data da eleição, temos uma proposta do PS, de aditamento de dois números, o n.° 3 e o n.° 4 e temos também uma proposta do PRD. Quer o PS justificar sucintamente a sua proposta?

O Sr. António Vitoríno (PS): - A questão que está aqui colocada no artigo 128.° é uma questão com que já nos defrontámos quando se tratou de introduzir alterações à lei que regula a eleição do Presidente da

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República. Trata-se de uma proposta que visa essencialmente flexibilizar em termos temporais, o processo de eleição do Presidente da República tendo em linha de conta que a prática demonstrou algumas dificuldades de cumprimento dos prazos aqui previstos, tendo em linha de conta que a lógica da Constituição está construída na base de uma eleição do Presidente da República a uma volta, e não contemplando as dilações necessárias para a realização das duas voltas, como já aconteceu, recentemente, em Portugal. Isto por um lado, porque, por outro, o artigo está todo construído na óptica do termo do mandato, mas há questões especiais que se podem colocar quanto à vacatura do cargo e quanto à coincidência ou à proximidade temporal das eleições do Presidente e da Assembleia da República. Tentando explicar melhor a lógica da proposta do PS, o n.° 1 diz que o Presidente da República será eleito entre o trigésimo e o sexagésimo e no nonagésimo dia anterior ao termo do mandato do seu antecessor, e aqui mantém-se o sistema actualmente em vigor, na medida em que é completamente segura a determinação do termo do mandato e a organização do processo eleitoral com base e a partir desse termo certo e seguro, que é o termo do mandato do presidente em exercício; ou entre o sexagésimo e o nonagésimo dia posterior à vacatura do cargo. Aqui o que está em causa é que, nos termos do n.° 1 actual do artigo 128.°, o Presidente da República terá que ser eleito entre o sexagésimo e o trigésimo dia posterior à vacatura do cargo, o que é desde logo em termos lógicos uma afirmação que não faz sentido. A lógica deve ser exactamente a contrária.

O Sr. Presidente: - Desculpe, não percebi.

O Sr. António Vitorino (PS): - A lógica do n.° 1 do actual artigo 128.° está decrescente. Quando a lógica em caso de vacatura deve ser crescente. Por isso, em caso de vacatura do cargo, colocámos a data da eleição entre o sexagésimo e o nonagésimo dia posterior à verificação da situação de vacatura. O número de dias é obviamente discutível, mas a verdade é que as operações materiais de preparação da eleição, ocorrendo um facto não previsto, que é a vacatura do cargo, têm que ser, todas elas, desencadeadas a partir do momento em que se verifica esse facto, isto é, a partir do momento em que o Presidente renuncia ao mandato, ou eventualmente morre. Ora, o que está aqui em causa é permitir que as operações, tal como hoje estão consignadas na lei, decorram com segurança e com eficácia num período de tempo que é, por nós e em face do que se dispõe hoje na lei, calculado como entre um mínimo de 60 e um máximo de 90 dias posterior à vacatura do cargo.

O Sr. Presidente: - V. Exa. está a referir-se ao problema do n.° 1?

O Sr. António Vitorino (PS): - É ao n.° 1 que me referia. Quanto ao n.° 2, não há alteração nenhuma; na prática é o desdobramento do actual n.° 2, mantendo aqui apenas a primeira parte - "a eleição não poderá efectuar-se nos 90 dias anteriores ou posteriores à data de eleição para a Assembleia da República". A lógica é a mesma da actual redacção, não há alteração significativa. No n.° 3 prevê-se que no caso previsto no número anterior, isto é, no caso em que a eleição do Presidente da República possa eventualmente recair, pelo decurso normal dos calendários eleitorais, dentro de um período de 90 dias anteriores ou posteriores à data da eleição para a Assembleia da República, se preveja o prolongamento necessário do mandato do Presidente cessante para evitar essa coincidência, que o n.° 2 proíbe. Define-se assim qual é o momento a partir do qual se passa a contar o prazo para a realização da eleição, porque, enquanto que no n.° 1 os únicos prazos relevantes são o termo do mandato ou a vacatura do cargo, o n.° 2 introduz um novo factor que não é nem a perda do mandato, nem o seu termo, é o facto de haver eleições para a Assembleia da República. Para tornar exequível essa dissociação, prevê-se que o Presidente da República seja eleito entre o nonagésimo e o centésimo dia posterior à data das eleições para a Assembleia da República. O n.° 4 consigna que a data da realização do primeiro dos dois possíveis sufrágios tenha que ser escolhido pelo Presidente da República por forma a permitir que ambos se realizem dentro dos períodos referidos nos n.ºs 1 e 3. Trata-se da clarificação de uma dúvida que surgiu na interpretação da Constituição e da lei vigente, que é a de saber se os prazos em causa abrangiam de facto as duas voltas ou se abrangiam apenas a primeira volta. Tornamos assim claro que, na nossa interpretação, os prazos previstos neste artigo 128.°, e que por isso mesmo foram corrigidos, são prazos que obrigam a que sejam cumpridos para as duas voltas da eleição presidencial. Isto significa naturalmente que se um Presidente for eleito na primeira volta estes prazos são reduzidos automaticamente, pela natureza das coisas, em virtude da desnecessidade da realização da segunda volta.

Esta é a explicação; não sei se foi muito clara a esta hora da noite, mas era esta a explicação que gostaria de dar.

O Sr. Presidente: - Foi razoavelmente claro, mas tenho uma dúvida que gostaria de tentar esclarecer.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Queria só acrescentar o seguinte: as contas terão obviamente de ser objecto de uma consulta ao S. T. A. P. E. para que nos diga se a proposta cronológica não cria nenhum problema, antes resolve, como julgamos os problemas que o Sr. Deputado António Vitorino referiu. Nesta contabilidade de datas é preciso ser prudente, um erro nesta matéria, com assento na Constituição, não é de fácil superação!

O Sr. Presidente: - Tenho duas dúvidas. Uma primeira é esta. Para além de uma questão, que não é propriamente uma dúvida, e que é o problema de compatibilização, se é compatível ou não com aquilo que nós propomos no artigo 129.° VV. Exas. dizem, no caso previsto no número anterior, isto é, a eleição não poderá efectuar-se nos 90 dias anteriores ou posteriores, mas nesse caso não se admite, portanto, que haja uma eleição anterior à data da eleição para a Assembleia da República? O que normalmente poderá ser o caso, mas poder-se-ão dar eventos, incontroláveis do

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ponto de vista da vontade humana, que possam criar uma situação, em que a passagem obrigatória para a data posterior prolonga, em mais 180 dias a data da eleição.

O Sr. António Vitorino (PS): - É verdade. A lógica que presidiu à elaboração do preceito neste aspecto é a de que um de dois mandatos teria sempre que ser prolongado, ou o da Assembleia da República cessante ou o do Presidente cessante; vazio é que não poderia haver. Entendeu-se dar prevalência à realização das eleições parlamentares e provocar, por regra, o prolongamento do mandato do Presidente da República. E porquê? Porque pareceu, de facto, que era mais relevante para a estabilidade do regime, para o regular funcionamento das instituições democráticas, que fosse o seu garante máximo a ter o seu mandato prolongado no tempo, para que ele pudesse presidir aos destinos do País durante o período eleitoral para a Assembleia da República. Nesse sentido optámos por dar prioridade à realização das eleições para a Assembleia da República e prolongar o mandato do Presidente cessante.

Quanto ao problema que o Sr. Deputado Rui Machete coloca, vale a pena ter em conta o artigo 129.°, pois talvez possamos apreciá-los neste aspecto em conjunto, porque há uma íntima implicação entre as questões sobre que versam. O problema com que já nos defrontámos no passado é o seguinte: já presentemente os 21 dias que separam, nos termos da Constituição actual, a primeira da segunda volta suscitam dificuldades muito grandes, que, entre outras que têm a ver com questões meramente burocrático-administrativas, se reportam a dois grandes tipos de situações. O primeiro tipo de situações diz respeito aos casos de repetição da primeira volta em algumas assembleias de voto onde ela não se tenha podido realizar na data inicialmente prevista (e a lei já hoje em dia prevê que, em certas circunstâncias, se possa prescindir da repetição da primeira volta nessas assembleias de voto), situações em que a realização dessa primeira volta seja de facto relevante para os resultados globais de apuramento da primeira volta. Isto significa que sempre terá que se prever no faseamento no tempo do sistema eleitoral a necessidade de repetir a primeira volta em alguns casos, ou melhor, a necessidade de realizar a primeira volta, por exemplo, oito dias depois, no caso de ela não ter podido ser realizada na data inicialmente prevista em todas as assembleias eleitorais.

O segundo tipo de situações diz respeito a um problema delicado, que é o da admissão dos candidatos ao segundo sufrágio, porque, teoricamente, a admissão dos candidatos ao segundo sufrágio deve ser feita com base nos resultados definitivos da primeira volta. Ora, o apuramento geral dos resultados eleitorais, nos termos da lei, é um processo moroso, complexo e que se arrasta no tempo, e todos temos consciência de que a decisão de quem é que vai à segunda volta não pode depender do apuramento provisório, mas sim e apenas do apuramento definitivo.

Do apuramento definitivo dos resultados da primeira volta dependem operações como a impressão dos boletins de voto, a distribuição de tempos de antena, a realização da campanha eleitoral, o sorteio dos locais disponíveis para sessões de esclarecimento, etc.. Enfim, 15 dias parece-me muito curto, 21 dias já mesmo em termos práticos apresenta algumas dificuldades, mas, como disse o Sr. Deputado Almeida Santos, todos estes prazos deveriam ser apreciados juntamente com o STAPE, que é quem tem a experiência mais clara deste tipo de situações.

O Sr. Presidente: - Gostaria de dizer, antes de esclarecer, provavelmente o Sr. Deputado José Magalhães já está ciente do que se está a passar, antes de o esclarecer formalmente, o seguinte para completar esta breve análise dos artigos 128.° e 129.° Nós poderemos aceitar as observações em relação ao artigo 129.° sobretudo se, como pensamos que poderá acontecer, a nossa proposta quanto ao artigo 124.° for aceite, porque então as dificuldades aumentarão em termos burocráticos de organização do colégio eleitoral.

O Sr. António Vitorino (PS): - Quando estudei economia política, nunca tinha percebido verdadeiramente a que é que os marxistas se referiam quando falavam em troca desigual, mas acabo de o perceber agora com relativa clareza.

O Sr. Presidente: - É o marxista que está na mó de baixo, viva a Perestroika!...

O Sr. Almeida Santos (PS): - O n.° 2 do artigo 129.° do vosso projecto significa que o PSD admite que a eleição possa não ter lugar a um domingo?

O Sr. Presidente: - Não, a eleição seria a um domingo.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Não vejo como. Diz-se: "até ao décimo quinto dia"...

Vozes.

O Sr. Almeida Santos (PS): - No entanto, ou a fazem caber nos dois domingos subsequentes ou passa para o terceiro domingo. Não há outra hipótese. Seria preferível dizer "até ao décimo quarto"...

O Sr. Presidente: - É uma questão de contagem.

Sr. Deputado José Magalhães, o PSD começou por fazer a apresentação do artigo 124.° e depois entendemos que, por uma questão de utilidade, por uma questão de consideração por um partido, como o PCP, que tem estado sempre presente e para não perdermos tempo, poderíamos deixar de remissa a discussão do artigo 124.°, que é naturalmente mais importante. Entendemos também não discutir os artigos 125.° e 126.°, dado não haver propostas de alteração, e analisar o artigo 127.°, preceito relativamente ao qual foi apresentada uma proposta pelo PS que apenas altera o número de cidadãos eleitores que devem subscrever as candidaturas para a Presidência da República. Isto sem prejuízo de admitir, evidentemente, que se houver alguma questão muito importante que algum dos Srs. Deputados, que não assistiram à discussão, queira levantar, o possam ainda fazer. Depois, passamos a discutir o artigo 128.° e também o 129.°, visto que esta matéria se encontrava intimamente articulada. No entanto, não terminámos a discussão do artigo 129.°, visto não ter sido sequer feita a apresentação e ter sido apenas por conexão que iniciámos a discussão. Assim

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sendo, talvez fosse preferível terminar a discussão do artigo 129.°, porque tem conexão íntima com o artigo 128.°, voltando em seguida ao artigo 124.° Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Tenho consciência do carácter ridículo e caricatural da intervenção que vou fazer e que se resume apenas a uma pergunta: e se houver um empate para o segundo lugar na primeira volta?

Vozes.

O Sr. Presidente: - Essa hipótese é remota. Em todo o caso, os juristas têm algumas soluções - não direi na manga porque estão explicitadas na lei - que resolvem os problemas.

Vozes.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - A minha única preocupação é retirar uma questão de direito público da manga ou simplesmente do critério dos juristas.

Vozes.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Sottomayor Cárdia, podemos ficar confortados, pois essa não é uma matéria que tenha de ser dirimida em sede de revisão constitucional.

O Sr. Presidente: - Em todo o caso, vamos pedir a lei para V. Exa. se informar devidamente.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, em relação a esta questão do aperfeiçoamento do regime eleitoral do Presidente da República, designadamente quanto à data da eleição, o meu grupo parlamentar não apresentou propostas. No entanto, as experiências de aplicação deste regime e, em especial, as dificuldades de articulação entre as eleições presidenciais e as eleições parlamentares - na nossa circunstância política tiveram momentos particularmente expressivos: em 1985-1986 originaram mesmo fenómenos bastante melindrosos, que só foram ultrapassados graças a uma grande conjugação institucional de esforços - são de molde a legitimar preocupações de aperfeiçoamento.

Não pudemos apurar, tanto no que diz respeito à proposta do PS como em relação à proposta do PRD - mas com mais dúvidas em relação às contas constantes do projecto do PRD -, do rigor das soluções propostas e da sua compatibilidade com algumas das hipóteses que se podem verificar, designadamente por força dessa conjugação entre os actos eleitorais presidencial e parlamentar. Suponho que o PS teve em conta alguns dos cenários que vivemos no passado. Provou-se que a imaginação do legislador em sede de Constituição e até de revisão constitucional era insuficiente face às dimensões da realidade. Estou absolutamente de acordo com a sugestão de que se ouça o STAPE para podermos ter campos operatórios, e até cenários, que correspondam à mais vasta gama possível de soluções.

O Sr. Presidente: - Fez-se consenso nessa matéria. Vozes.

O Sr. Presidente: - Para justificar a proposta de alterações apresentada pelo PS relativamente ao n.° 2 do artigo 129.°, tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador)... temos mais a certeza deste número do que de qualquer outro. De facto - e eu tive essa experiência no passado. Quem teve de andar à volta com a marcação de eleições e com as leis respectivas sabe que 21 dias é o limite do possível, com a lei eleitoral que temos. Basta concebermos a hipótese de termos de repetir eleições por distúrbios em número considerável de secções de voto e basta que a diferença de resultados entre os dois primeiros candidatos não seja tão folgada que não possa inverter-se com a repetição dessas eleições. De facto, quinze dias não chegam.

O Sr. Presidente: - Impressiona-nos a circunstância de noutros sistemas jurídicos os prazos serem consideravelmente mais encurtados e penso que não há hoje razões de atraso ou dificuldades burocráticas que o justifiquem, salvo se se tratar de razões resultantes do próprio sistema eleitoral. Isso foi há pouco referido pelo PS e eu próprio tive ocasião de mencionar que a alteração que propomos para o artigo 124.° aconselha a que sejamos prudentes. Penso também que seria útil consultar o STAPE, dando todavia o desconto de este organismo ser nesta matéria parte interessada. Como tal, teremos de observar com algum cuidado as justificações que o STAPE apresentar, embora a sua experiência seja rica e o seu trabalho muito meritório.

Para justificar a proposta do PCP quanto ao aditamento do n.° 3 ao artigo 124.°, tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, a nossa proposta insere-se dentro do mesmo espírito que preside a outras propostas apresentadas por outros partidos. Pretende-se dar resposta, em função da experiência de aplicação do regime eleitoral para o Presidente da República, a certas questões que se foram suscitando. A resolução dessas questões deve constar, desejavelmente, da Constituição.

A ideia de que a candidatura, logo que formalizada, implique a suspensão de qualquer função pública sem carácter electivo mas com salvaguarda de certos direitos, parece-nos corresponder àquilo que é razoável para articulação dos dois valores em presença. A lei eleitoral deverá, ulteriormente, dar regulamentação e fazer desenvolvimentos adequados dentro destes parâmetros. Não creio que a questão tenha hoje assim tanto interesse, mas parece-nos que, precisamente por isso, seria interessante, a frio e à distância, nunca ad hominem e menos ainda ad candidatum, gerar uma solução que dê resposta a esta questão que existiu e que poderá vir a reexistir.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, a dúvida que gostaria de formular era a seguinte: quando o PCP diz "a suspensão de qualquer função pública não electiva", VV. Exas., em termos de função pública, abrangem obviamente funções de carácter político, estando a pensar também incluir, por exemplo, membros do Governo, enquanto que, por aquilo que aqui está referido e pelos inconvenientes que isso envolveria, não abrangem funções electivas como, por exemplo, o Presidente da República em funções.

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O Sr. José Magalhães (PCP): - Claro. O cidadão em causa é suspenso, com as inerentes consequências, mas não sem perda da remuneração.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Não estou a perceber. Como Presidente da República ganha o maior ordenado do País e continua a ganhar a renumeração correspondente ao lugar que suspende?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, se é Presidente da República não suspende - os titulares de funções electivas não estão abrangidos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Se é só durante a candidatura...

O Sr. Presidente: - A minha dúvida, que neste momento não é sequer uma critica mas uma ponderação, é a seguinte: por esta via, o candidato que é Presidente da República ou Deputado mantém-se em funções. Pode inclusivamente ser funcionário de qualquer serviço público, embora não me refira aos magistrados por outras razões. No entanto, se o candidato é membro do Governo já isso não acontece. É esta a solução, e eu gostaria de compreender um pouco melhor qual a razão por que existe esta distinção. Se bem que esteja a adivinhar uma razão, gostaria, porém, de me aperceber melhor qual a motivação profunda que levou o PCP a propor esta norma.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Em concreto, o Presidente da República não suspende funções, mas, por hipótese, o Primeiro-Ministro suspende. É isso?

O Sr. Presidente: - O problema do Primeiro-Ministro pode ser complicado. Compreende que seria desejável que numa eleição fosse garantida a situação de paridade dos candidatos à partida. Só há um Primeiro-Ministro e mesmo entre alguém que é membro do Governo e alguém que o não é também há uma situação de diferenciação. Porém, enquanto existem cargos que são relativamente fungíveis, outros há que o não são: o caso do Primeiro-Ministro, por exemplo, é uma situação desse género. Ou seja, em termos políticos pode ser mais grave substituir o Primeiro-Ministro do que mante-lo em funções, embora reconheçamos que, do ponto de vista de paridade das situações das candidaturas, não é uma solução ideal. E tanto assim é, que há excepções que VV. Exas. admitem para o Presidente da República, que porventura ainda é mais flagrante. Gostaria pois de compreender melhor esta situação.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, seria injustificado fazer mistério ou adensar confusão apenas por não explicitação. A questão ou a confusão é induzida por razões semânticas e não por razões de opção do proponente. Especificando: a nossa preocupação é que, em relação a pessoas vinculadas, pelo exercício de determinadas funções públicas, a uma cadeia hierárquica, a apresentação da candidatura faça cessar essas obrigações sem perda de regalias. Isto aplica-se, por excelência, a um domínio que todos conhecemos e em que, de resto, há precedentes: a situação dos militares no activo.

A distinção entre essas situações que podem ser recobertas pela terminologia que aqui usámos, e as outras, que os Srs. Deputados, fazendo uma chaveta, situaram, pode fazer-se, melhor talvez, utilizando outra terminologia: num dos pólos colocaríamos determinados tipos de titulares de funções públicas, "não electivas", e no outro distinguiremos aqueles que exercem funções públicas mas em relação aos quais a questão não se coloca. Nunca se nos configurou no espírito a hipótese de interditar a livre actividade de eleitos (de eleitos, usados hoc sensu, portanto, neste sentido específico), para efeitos de intervenção na candidatura presidencial - se reunirem o apoio necessário, nos termos que a Constituição prevê, como é óbvio. Não deve haver nenhuma canga que os impeça de o fazer, em caso nenhum. Em relação aos cidadãos que exerçam o outro tipo de funções públicas que foram qualificadas, ad hoc e hoc sensu também, como não electivas...

O Sr. Presidente: - Não são.

O Sr. José Magalhães (PCP): - ... digo que não estiveram na mente deste proponente, esses titulares de cargos políticos que realmente, não são electivos em sentido directo, isto é não têm legitimidade eleitoral directa. Têm-na indirecta, mediata, nos termos que todos sabemos.

Compreendo a vossa apreensão e também compreendo a preocupação de clarificação. Mas creio que o problema que nos preocupou a nós existe. Existe nos termos que equacionei e que procurámos exprimir em norma. Esta necessidade de aclarar qual seja o estatuto destes cidadãos que exercem este tipo de funções públicas - que agora não vou baptizar, mas que vamos considerar já definidas -, a necessidade de precisar as condições em que esses cidadãos possam exercer esse seu direito, parece-nos evidente e deve ser uma questão em aberto, não irrelevante. A consagração de uma solução deste tipo resolveria, em abstracto, várias das situações cuja verificação em concreto tem originado alguns quiproquós.

O Sr. Presidente: - Quanto a essa justificação de carácter geral, que, aliás, suponho já resulta da lei ordinária, e aqui seria garantida constitucionalmente, nós estamos de acordo. O problema surge a propósito destes cargos governativos - digamos assim -, que, aliás, também existem nas regiões autónomas. Mas, está explicitado o objectivo do PCP e, portanto, haveria apenas que encontrar a redacção adequada para obviar a essas dificuldades, se bem interpreto aquilo que foi dito.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Suponho também que isto, Sr. Deputado Almeida Santos, resolve ou dá resposta a algumas das interrogações que o Sr. Deputado colocava, em relação à redacção do preceito, na leitura que alguns dos Srs. Deputados dele fizeram.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Afigura-se-me que, com a clarificação que o PCP deu da sua intenção, a proposta diz mesmo, apenas, aquilo que pode já estar dito na lei eleitoral. Esta matéria terá digni-

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dade constitucional? Dizer-se que um funcionário público, desde que se candidate à Presidência da República, fica com o vencimento e não tem que comparecer ao serviço? Não sei se isto tem dignidade constitucional. É justo, é razoável, é pertinente, mas a lei pode ser bastante para o acautelar, para acautelar este legítimo direito do funcionário público candidato à Presidência da República. Acho que, se é só para dizer isto, talvez seja melhor não dizer nada. Se for para dizer mais, não convém que se diga.

O Sr. Presidente: - Penso, na minha perspectiva, que é uma observação muito interessante, que me permito subscrever.

Mas, em todo o caso, a questão está posta e, naturalmente, nós iremos examiná-la. Aqui, neste momento, e nesta primeira leitura, só estamos a dilucidar o alcance das propostas e a discuti-las.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, só gostaria de sublinhar que nós, pela nossa parte, conhecemos também qual é o estatuto dos trabalhadores da Administração Pública e, designadamente, o seu direito a não serem prejudicados, por força do exercício de actividade políticas, nas suas diversas dimensões. Esta questão tem algum relevo e, designadamente, suscitou historicamente, algumas dificuldades. Não estamos livres de que se repitam.

É óbvio que tudo pode ser tratado na lei. De resto, os adeptos das constituições minimalistas acham que as constituições com muitos poucos artigos, deixando um largo Campo à lei, são "perfeitas", "ideais", etc.. Apenas gostava de contrapor à afirmação do Sr. Presidente, sobre o "interesse" desta observação, que nós não podemos, compreensivelmente, partilhar e sufragar esse interesse. Pelo contrário.

O Sr. Presidente: - Eu compreendo.

Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, gostaria de colocar uma questão que, obviamente, estranho seria se não fosse colocada neste momento, relativamente à proposta apresentada pelo PSD. É que, dada a circunstância de o PSD, na apresentação da sua proposta, ter sido extremamente parco de argumentos, para a justificação do alcance que essa proposta visa atingir, é inevitável que se procure puxar pelo fio da meada, e se procure conhecer as intenções últimas do PSD. Por isso, gostaria de fazer algumas considerações e, conexas com essas considerações, um conjunto de perguntas, porque penso que estamos confrontados com uma das questões de alcance mais sério, em termos de propostas de revisão, qual seja a da atribuição do direito de voto aos emigrantes. Como é sabido, é uma questão há muito tempo controvertida, é uma questão que já foi debatida na primeira revisão constitucional e que não poderia, obviamente, deixar também de ser agora novamente tida em consideração. A iniciativa é do PSD. É também do CDS. Mas na medida em que o CDS não está presente, as perguntas, as dúvidas e as questões vão, naturalmente, para o PSD.

A primeira questão relaciona-se com a supressão do normativo segundo o qual o direito de voto é apenas conferido aos cidadãos eleitores recenseados no território nacional. A supressão de tal exigência constitucional implicaria que o direito de voto fosse reconhecido a todos os cidadãos portugueses eleitores. Duas questões, desde logo: direito de voto aos cidadãos portugueses, direito de voto aos cidadãos portugueses eleitores. Quanto aos cidadãos portugueses, sabemos que a Constituição - ainda não discutimos os princípios fundamentais - consagra o princípio da recepção formal, em matéria de direito de cidadania, o que significa que temos de ir procurar à lei ordinária os princípios materiais sobre a aquisição da cidadania portuguesa. Não está, na Constituição, determinado nenhum princípio material relativamente à aquisição da cidadania, mas a lei ordinária orientou-se, como todos sabemos, para a aquisição a partir da consagração do princípio do jus sanguinis. De onde resulta, portanto, serem cidadãos portugueses todos os cidadãos, filhos de pais portugueses, nascidos em território nacional, mas também os filhos de emigrantes portugueses, nascidos no estrangeiro. O que significa que os nossos emigrantes recolhem um fenómeno sociologicamente interessante, a todos os títulos, e que se plasma nas segundas, terceiras e posteriores gerações. Fenómeno esse do qual resulta que, sendo cidadãos portugueses os emigrantes da segunda geração, em muitos casos também esses cidadãos adquiriram a nacionalidade dos países onde nasceram. Há, portanto, muitos cidadãos portugueses que são simultaneamente nacionais dos países de acolhimento dos emigrantes portugueses da primeira geração.

Penso que, a configurar, em sede constitucional, a possibilidade de alargamento do direito de voto a cidadãos portugueses eleitores não deixará de se tornar urna necessidade ponderar, esta implicação dos fenómenos da dupla cidadania, relativamente à questão de saber se se pode, ou se se deve, conferir este direito de voto a todos os cidadãos portugueses eleitores sem restrições. Coloco este problema, na medida em que o artigo 116.°, n.° 2, que é o artigo atinente aos princípios gerais de direito eleitoral, determina que o recenseamento eleitoral seja oficioso, obrigatório e permanente. Não faz, portanto, distinção, em sede constitucional, quanto à obrigatoriedade do recenseamento, e, nessa justa medida, o recenseamento será oficioso e obrigatório tanto para cidadãos residentes em território nacional, como para cidadãos residentes fora do território nacional. Nessa justa medida, cidadãos portugueses eleitores seriam todos os cidadãos portugueses, mesmo os que tivessem dupla cidadania. Daí que gostasse de saber se o PSD ponderou em todas as suas consequências esta implicação, ou se acha que esta é uma questão que não deve ser ponderada nas consequências que aqui referi, em sede constitucional.

Por outro lado, feito um certo cotejo, relativamente aos sistemas eleitorais de um conjunto de países que vale a pena ponderar, relativamente a esta matéria, vimos que muitos deles se orientam para um princípio: mesmo quando admitem o direito de voto aos seus emigrantes para eleições dos seus órgãos de soberania, fazem compensar a admissão desse princípio com a introdução de algumas restrições. Uma das restrições mais frequentes implica que o exercício do direito de voto cessa pelo afastamento do território nacional há mais de um determinado número de anos. Esta é, portanto, uma segunda questão que gostaria de colocar ao

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PSD: a de saber se o número de anos, durante os quais um emigrante português se encontre afastado do território nacional, é ou não um factor suficientemente relevante para também dever merecer consideração legislativa.

Gostaria ainda de sublinhar que a questão do princípio da aquisição da cidadania não é indiferente para a questão da capacidade eleitoral activa. Por exemplo, um país que confere plena capacidade eleitoral activa aos seus emigrantes - é o caso da França - tem como método de aquisição da cidadania, não o princípio do jus sanguinis mas o do jus soli, o que permite ter uma visão, a todo o momento, mais clarificada do conjunto dos seus cidadãos nacionais. E quer-me parecer que, se procurássemos, hoje, saber quantos cidadãos portugueses se encontram repartidos pelas diversas partilhas do mundo, ninguém conseguiria minimamente responder a esta questão. Para um princípio de recenseamento eleitoral que quer ser oficioso, obrigatório e permanente, dá a ideia que há aqui uma impossibilidade prática de resolver um comando constitucional, em matéria de recenseamento eleitoral.

Por outro lado, também o conferir esta plena capacidade eleitoral activa, não através da eleição em território nacional, mas, como agora acontece relativamente às eleições legislativas, por correspondência é, creio eu, uma solução - é claro que esta questão não está aqui vertida neste artigo, mas são problemas subjacentes a este artigo e é nessa medida que a estou a levantar - que, suponho, não encontraremos, para a designação de nenhum órgão unipessoal de soberania, em nenhum país democrático da Europa Ocidental. Recordo que, por exemplo, no caso espanhol, é possível exercer-se o direito de voto se exerce nos consulados espanhóis nos países de acolhimento, mas também sublinho que, por exemplo, no caso espanhol, este não está confrontado com a necessidade de eleição do Presidente da República, pela exacta medida em que o regime tem natureza monárquica; no caso italiano o exercício do direito de voto implica a presença dos emigrantes no território nacional; no caso francês, não implica a presença no território nacional mas, como há pouco sublinhei, o princípio de aquisição de cidadania não é o do jus sanguinis, mas o do jus soli, o que significa um controle muito mais efectivo relativamente ao número e ao recenseamento efectivo ou potencial dos respectivos cidadãos; no caso da Alemanha Federal, por exemplo, o direito de voto está ligado à circunstância de os emigrantes não residirem fora do território nacional há um determinado número de anos; assim também para a Grã-Bretanha.

Vimos, portanto, que todos os países, de uma maneira ou de outra, se munem de um conjunto significativo de cautelas quando admitem o princípio da capacidade eleitoral activa a todos os seus cidadãos, inclusive os emigrantes. E a pergunta que resulta deste conjunto de considerações, é a de saber se o PSD, ao apontar para a abertura da capacidade eleitoral activa, está ou não disponível para ponderar alguns dos problemas (estes, e outros porventura) que acabei de suscitar ou se, pelo contrário, considera que eles não seriam suficientemente relevantes para serem tomados em consideração.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

Vozes.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Percebemos o que V. Exa. queria dizer. Eu, pelo menos, percebi, perfeitamente, o que V. Exa. queria dizer e onde queria chegar Sr. Deputado Jorge Lacão.

Em comentário à sua intervenção, diria o seguinte: em primeiro lugar, congratulo-me com a posição de V. Exa., ou seja, a posição que, da sua substância, resulta. Está V. Exa., portanto, a veicular uma posição do PS...

O Sr. Jorge Lacão (PS): - ... não disse o que é que o PS pensava sobre a matéria...

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Ah, bom! Mas pelas perguntas que nos fez...

O Sr. Jorge Lacão: - Pretendi aclarar a posição do PSD sobre a matéria, uma vez que é ele que apresenta uma proposta inovadora neste ponto.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Com certeza. Mas, pelas perguntas que nos fez, permite-me concluir que V. Exa., se todas essas condições ou parte dessas condições fossem consideradas, estaria, porventura, aberto a considerar esta hipótese. Caso contrário não tinham razão de ser as suas perguntas, seriam meras perguntas para entreter - o que, é evidente, não admito que possa ter acontecido da sua parte. O que lhe devo dizer é o seguinte: o que é que o PSD tem sempre dito em relação à consagração do voto do emigrante? Tem dito, fundamentalmente - enfim, para não ser fastidioso dou aqui por reditas todas aquelas coisas que nós, ao longo do tempo, vimos referindo relativamente a este assunto.

Mas acrescentaria que alguns dos problemas que V. Exa. colocou podem não ser despiciendos, se bem que alguns deles, possam, a nosso ver, ter outra leitura. Com efeito, de. acordo com os princípios de vida do povo português, temos de entender que o princípio de aquisição da nacionalidade deveria ser porventura diferente do princípio de aquisição da nacionalidade vigente noutros países. É evidente que isso poderá fazer com que haja algumas complicações adicionais na consagração de direitos como este. No entanto, isso não nos deve levar à não os admitir porque, em termos essenciais, tal constituiria a recusa liminar de uma condição de igualdade. O que eu pretendo dizer com isto é o seguinte: sabemos que - não podendo determinar exactamente quantos - há muitos milhares de portugueses espalhados pelo mundo; sabemos que há condições especiais de recenseamento dos portugueses espalhados pelo mundo, que podem fugir a algumas das regras essenciais, ou pelo menos à da obrigatoriedade definida no artigo 116.° da Constituição, e sabemos que a participação dos cidadãos portugueses espalhados pelo mundo nos actos eleitorais tem de depender essencialmente da sua vontade. E para haver vontade de participação no acto eleitoral, tem de haver, como é evidente, alguma ligação ao País. Eu acharia subs-ilegítimo aquilo que V. Exa. sugeriu, ou

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seja, a consideração do número de anos de afastamento do. País. De facto, pode haver cidadãos portugueses no estrangeiro que, embora tenham saído há menos tempo do País, consigam ter com este uma ligação menos intensa do que cidadãos dele afastados há mais tempo. Não me parece pois que esse seja um critério.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Deputado Carlos Encarnação, eu não sugeri nada, limitei-me apenas a dar algumas indicações de sistemas eleitorais comparados, como o caso da RFA e, em certa medida, o caso da Grã-Bretanha, em que o direito de voto dos respectivos emigrantes é exercível na condição de que estes não se encontrem afastados do respectivo território nacional há um determinado número de anos. Não se tratou portanto de uma indicação de preferência da minha parte mas sim de uma constatação dos vários sistemas praticados à volta desta matéria.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Não estou, portanto, a criticar a sua posição, mas sim a solução que em paralelo se poderia aplicar ao nosso país com base nisso. Penso que seria substancialmente ilegítimo.

Por outro lado, gostaria de salientar que, na nossa legislação, o voto por correspondência nunca foi posto em causa em geral. V. Exa. argumentou com uma condição diferente; V. Exa. disse que, em legislações estrangeiras, o voto por correspondência, relativamente a eleições do tipo da eleição para o Presidente da República, podia sofrer restrições ou não ser considerado. Quanto a nós, também em relação a esta questão, não há razão para não considerar como possível e admissível o voto por correspondência.

Quanto às questões da dupla nacionalidade, entendo que esta é, ou pode ser, uma das questões essenciais na restrição à atribuição do direito de voto. Todavia, como conclusão, em relação aquilo que acabo de referir, perguntaria ao PS o seguinte: se nós estivéssemos abertos a considerar algumas das restrições que V. Exa. aponta - e digo algumas, porque acabei de expender a minha discordância fundamental em relação a outras -, e se estivéssemos dispostos a considerar essas restrições eventuais em lei ordinária, teria o PS alguma objecção de fundo à inclusão, na Constituição, do direito de voto genérico aos emigrantes para a eleição do Presidente da República?

O Sr. António Vitorino (PS): - O Sr. Deputado Carlos Encarnação referiu que seria ilegítimo recorrer ao critério do número de anos de residência fora do país, como critério aferidor da concessão do direito de voto aos emigrantes. Fico um pouco chocado, na medida em que me parece que o critério tem pelo menos uma inegável vantagem: é um critério objectivo. Na verdade, fora a existência de critérios objectivos, só nos resta raciocinar em função de critérios subjectivos. E o único critério subjectivo, que é aquele que hoje em dia já vigora, por exemplo, nas eleições para a Assembleia da República, é o de que quem se sente vincular ao País e portanto pertencente à comunidade nacional e por isso directo interessado na vida pública do País promove o seu recenseamento. É um critério subjectivo....

O Sr. Presidente: - Voluntarista.

O Sr. António Vitorino (PS): - Exacto. Faz-se incidir a decisão do recensamento na vontade de quem se quer inscrever. Mas, e entrando em linha de conta com a consideração que o Sr. Deputado Jorge Lacão fez, diria que o critério que ele referiu, como vigente em alguns países da Europa Ocidental e que obviamente é aplicado de forma diferente nesses exemplos, é pelo menos um critério objectivo. Por que é que é ilegítimo?

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Penso que já lhe respondi, Sr. Deputado, na medida em que tentei fundamentar por que é que o considerava ilegítimo - é evidente que considero "ilegítimo". Quero dizer com isto que, tratando-se embora de um critério objectivo, todavia, a sua justiça intrínseca depende muito de variadíssimas circunstâncias, podendo, repito, acontecer que um cidadão português que esteja no estrangeiro há mais anos do que um outro, esteja efectivamente mais ligado ao todo nacional e ao País do que esse outro. É por essa razão que, em meu entender, esse critério pode ser substancialmente injusto. Quanto a mim, a voluntariedade da inscrição é muitíssimo mais importante, embora V. Exa. a classifique como critério subjectivo e como tal em termos gerais assim possa ser considerado. Se o cidadão se quer inscrever no recenseamento é porque tem realmente um interesse manifesto em participar na vida política do País, e nas eleições para que está autorizado a participar. Penso que um é substancialmente mais importante do que o outro.

O Sr. Presidente: - Gostaria de fazer uma observação que penso traduzir uma parte substancial da realidade dos países onde a nossa emigração se regista. Julgo que - e o Sr. Deputado Carlos Encarnação disse-o de uma maneira clara - uma coisa é o princípio, que nos parece de justiça, de que os cidadãos portugueses residentes no estrangeiro como emigrantes tenham o direito de eleger o Presidente da República e portanto uma capacidade eleitoral activa, e outra coisa é a regulamentação dessa capacidade, em termos de atender a algumas circunstâncias relevantes que de algum modo medem um grau de vinculação e de interesse à comunidade nacional.

Há pouco o Sr. Deputado Carlos Encarnação referiu algo que eu me permito sublinhar e que vem, de algum modo, ao encontro de uma dúvida ou de uma questão levantada pelo Sr. Deputado Jorge Lacão, ou seja, a de que o critério da existência de uma dupla nacionalidade é uma questão importante. E porquê? Porque normalmente nos países de imigração, que correspondem portanto aos países vistos do lado português da emigração para esses Estados, existe uma forma bastante generosa da concessão da nacionalidade àqueles que aí residem por um tempo lato. Inclusivamente, como VV. Exas. sabem, em certos casos existe mesmo uma política deliberada de concessão de nacionalidade com restrições significativas nos casos em que os emigrantes entendam não adquirir essa nacionalidade. Deixando de parte - porque não é isso que nos ocupa - os juízos sobre a legitimidade e sobre as repercussões que essa política tem na situação da diáspora portuguesa, há uma coisa que é clara: é que se temos, por Considerações de realismo evidente, de ser cautelosos

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nesta matéria, que é uma matéria delicada, e não podemos deixar de considerar que aqui o círculo eleitoral é único e não um círculo para eleger dois deputados pela Europa e dois deputados pelo resto do Mundo, o critério da dupla nacionalidade, aliás, a não residência no território português traduz-se, normalmente, numa prevalência no exercício quotidiano ou no uso da nacionalidade do país onde a pessoa reside. E isto é, de algum modo, algo que corresponde àquilo que V. Exa. referiu em termos de ausência do território nacional. Digamos que, em muitos casos, essas situações que V. Exa. referiu estão obviamente já cobertas pelo critério da dupla nacionalidade.

Permito-me também sublinhar, como há pouco o fez o Sr. Deputado Carlos Encarnação, que, nesta matéria, é importante que a atitude a tomar seja uma atitude de esclarecimento dos problemas existentes, é importante, ponderando os interesses em jogo, ver até onde é razoável ir. No fundo, seria uma jurisprudência dos interesses e não uma jurisprudência dos conceitos, que foi durante muito tempo a posição básica a priori tornada pelos partidos que sempre recusaram o voto aos emigrantes, ao contrário daquilo que aconteceu com o PSD. Nesse sentido, penso que o Sr. Deputado Carlos Encarnação tem toda a razão em se congratular com essa jurisprudência dos interesses que pareceu aflorar nas perguntas do Sr. Deputado Jorge Lacão.

O Sr. António Vitoríno (PS): - (Por não ter f alado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador) ... o "sempre" é uma palavra mágica.

O Sr. Presidente: - Os que sempre votaram contra, disse eu.

O Sr. António Vitorino (PS): - O Sr. Presidente falou naqueles que sempre recusaram e não naqueles que sempre votaram contra.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, naturalmente que das minhas perguntas decorreu uma preocupação que talvez devesse ter sido a preocupação originária do PSD. É que ao fazer-se, em matéria de tanto alcance e de tanto melindre, uma proposta destas, é natural que ela devesse ser sustentada em termos do conjunto ou da valorização de todos os efeitos que decorrem da proposta apresentada. As minhas perguntas visavam dilucidar, de forma tão profunda quanto possível, até que medida, na óptica em que o PSD se coloca, é que o PSD estaria disponível para temperar este princípio que deseja adquirir com restrições que garantissem, no mínimo, o exercício do direito de voto pelos emigrantes portugueses, com a defesa de um interesse essencial que é o interesse nacional. E, coloquemo-nos na perspectiva em que nos colocarmos, seguramente não estará em dúvida que, independentemente da perspectiva, o alcance que procuraremos é o da defesa do interesse nacional. Disse o Sr. Presidente - bem, a meu ver - que o que está em causa é a jurisprudência dos interesses. Se a jurisprudência dos interesses for aqui o interesse nacional, é nessa linha que vale a pena continuarmos o nosso debate.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Essa questão, colocada de outra maneira, foi-me logo posta à cabeça pelo Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Deputado Jorge Lacão, pergunto-lhe se V. Exa. condiciona a sua atitude em relação à posição por nós assumida quanto aos temperos. Na verdade, o PS, pela sua voz, parece condicionar a sua posição relativamente ao princípio pela nossa posição quanto aos temperos. Penso que estamos a subverter as coisas. Entendamo-nos sobre o princípio e só depois questionemos os temperos.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - O Sr. Deputado Costa Andrade, de algum modo, pretende conduzir-me para os termos em que, logo no início, o Sr. Deputado Carlos Encarnação, a meu ver de uma maneira extemporânea, procurou conduzir a Conclusão de um debate que ainda estava por travar.

Se o Sr. Presidente há pouco afirmou que tudo deveria ser avaliado prudentemente, à volta de uma certa jurisprudência dos interesses, é porque os efeitos da aplicação deste dispositivo num sentido ou noutro, não são despiciendos. Consequentemente, não poderemos discutir a admissão, ou não, em abstracto, de um determinado princípio, se não estivermos em condições de avaliar todas as consequências previsíveis da sua aplicação. É esta a questão política essencial. Assim sendo, peco-lhe desculpa, Sr. Deputado Costa Andrade, por não colocar a questão nos mesmos termos em que V. Exa. parece pretender colocá-la, ou seja, primeiro, uma discussão meramente abstracta; depois, logo se veria. Penso que o significado político do problema não nos deve atirar para uma discussão meramente académica.

Voltando portanto à questão essencial, gostaria de sublinhar que do cotejo que há pouco fiz relativamente aos sistemas eleitorais comparados, pode verificar-se que em países que atribuem o direito de voto aos seus emigrantes - e citei a Espanha, a França e é o caso também do Luxemburgo - apenas em França esse direito de voto é susceptível de ser exercido para a eleição do órgão de soberania unipessoal. E, neste caso, verifico também que o sistema de aquisição da cidadania não é semelhante ao sistema português. Pergunto a mim próprio - e gostaria que os Srs. Deputados também se interrogassem acerca desta questão - se o princípio do jus sanguinis, em matéria de determinação da nacionalidade, comparado com o princípio do jus soli, tem efeitos de menosprezar ou se, pelo contrário, produz efeitos tão determinantes que a orientação do sistema eleitoral, num sentido ou noutro, não pode, de certa maneira, estar afastada relativamente aos próprios princípios de aquisição de cidadania estabelecidos em cada país. Penso que as duas questões estão ligadas e era esta ligação que eu gostaria que pudesse ser apreciada pelos Srs. Deputados do PSD. Trata-se de um ponto a que, há pouco, o Sr. Deputado Carlos Encarnação fez referência e, se fosse possível, gostaria de conhecer o vosso ponto de vista.

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O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Presidente, como em todos estes trabalhos, farei uma intervenção a título exclusivamente pessoal.

Em primeiro lugar, gostaria de observar que o Sr. Deputado Jorge Lacão, se bem interpretei, renunciou inconvenientes dificilmente ultrapassáveis em termos objectivos. E esta dificuldade de ultrapassar, em termos objectivos, os inconvenientes apresentados pelo Sr. Deputado Jorge Lacão verifica-se das intervenções dos Srs. Deputados do PSD. Não me parece que seja uma questão secundária; é uma questão essencial.

Por outro lado, todo o enquadramento jurídico do modo de aquisição ou de conservação da nacionalidade portuguesa também não é um pormenor. Para quem o consagrou, ele deve ter certamente um valor ético-jurídico superior ao que atribuem à concessão do direito de voto aos emigrantes. Ou estaria o PSD de acordo em alterar a lei da nacionalidade dos emigrantes, retirando a nacionalidade àqueles que a têm em razão de sangue, para dar o direito de voto aos restantes?

Reconheço que é um pouco absurdo fazer uma pergunta destas a um partido porque esta é uma matéria acerca da qual um partido dificilmente pode ter uma posição. Inclusivamente um partido que preza tanto a homogeneidade de posições dos seus representantes, membros ou militantes.

Além destes, há um terceiro argumento que me parece ser ponderável. A eleição presidencial é o ponto final de uma campanha altamente personalizada e dramática. Ora, nessa campanha os debates televisivos têm o máximo relevo para o esclarecimento das posições dos candidatos. Pode-se gostar ou não se gostar desta forma de democracia mediática. Mas ela é incontestavelmente um facto adquirido e estabilizado. Não se vislumbra a sua reversibilidade. Pelo contrário, é previsível o seu ilimitado agravamento.

À luz da ponderação dos interesses, e não apenas dos conceitos, será razoável que, numa eleição em que as pessoas candidatas têm uma importância tão relevante, os compromissos assumidos na fase final da campanha eleitoral não cheguem ao conhecimento dos eleitores? Ou melhor: como é que esses debates televisivos e os compromissos finais dos candidatos, ocorridas 36 horas antes da eleição, podem chegar ao conhecimento dos eleitores emigrantes? Mesmo que não tivessem votado antecipadamente... O que dificilmente se concebe possa ser estabelecido.

Assim, do ponto de vista dos interesses, e não apenas dos conceitos, é conveniente que não entremos num processo de tal maneira complexo que possa pôr em causa pilares da ordem jurídica portuguesa e criar as maiores confusões sobre quem é e não é português e sobre quem tem e não tem direito de voto.

Isto para além das dificuldades que todos nós conhecemos relativamente ao recenseamento dos emigrantes e ao voto por correspondência. Tudo isso é também um valor que importa acautelar ao máximo, e que deve ser acautelado também nas eleições legislativas. Mas, apesar de tudo, neste último tipo de eleições não há um colégio eleitoral único.

Por consequência, afigura-se-me, pessoalmente - não sei o que é que o PS pensa a este respeito -, que nem é razoável conceder o direito de voto aos emigrantes nem justo levantar tempestades em relação a direitos fundamentais destes.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - O PSD seria injusto para com o PS se não reconhecesse que a nossa recusa em consentir o voto dos emigrantes relativamente às eleições para o Presidente da República se baseia em razões sérias de defesa da genuinidade democrática, e da fidedignidade do voto e do seu significado.

Em primeiro lugar, não somos um país isolado do mundo. O próprio resumo que fez o Deputado Jorge Lacão do que se passa lá fora dá ideia de até que ponto os países hesitam nesta matéria. E nenhum deles, que eu saiba, consagra de forma plena o exercício de voto em pé de igualdade com o dos residentes no próprio território. Se algum o fizer será um caso raro.

Acontece que a circunstância de termos mais emigrantes que os outros pode tornar, no plano ético, mais grave a recusa, e no plano de defesa dos valores democráticos mais justificada essa recusa. Porque quanto maior for a percentagem de votantes emigrantes relativamente à percentagem de votantes residentes no território nacional maior será o grau de influência do voto daqueles na eleição do Presidente da República.

Ora, se tivermos de concluir que esse voto não é, em regra, um voto fundado no conhecimento dos candidatos... Os partidos políticos, esses ao menos, prolongam a sua existência ao longo do tempo e, quando as eleições têm uma base partidária, as pessoas confiam no partido, nos seus candidatos, votam mais no partido do que nos próprios candidatos. Será o caso das eleições legislativas e até das autárquicas.

Mas, no caso do Presidente da República não é assim. O candidato apresenta-se com 90 dias de antecedência, e tanto pode ser uma figura pública, conhecidíssima, como pode não ser. A nossa Constituição, à semelhança do que acontece com muitas outras, consagra o princípio da igualdade de tratamento de todos os candidatos. Pergunto a todos os presentes se reconhecem ou não que o princípio da igualdade de tratamento dos candidatos é inconcretizável e está ferido de graves riscos no caso do voto dos emigrantes.

Não preciso de lembrar uma vez mais, porque várias vezes tenho referido este aspecto, as dificuldades que teria um candidato do PCP, ou mesmo do PS, em fazer propaganda na África do Sul, ou um candidato do PCP em fazer propaganda nas comunidades dos Estados Unidas da América, e outros exemplos que tais.

Devo dizer que tenho o máximo respeito pelos emigrantes e tenho feito alguma coisa, sempre que estive no Governo e fora dele, no sentido de criar condições para a sua protecção.

Admito que um emigrante que concorde com as nossas razões será o primeiro a reconhecer que a generalidade dos emigrantes não tem bastante conhecimento do que se passa no espaço nacional. Não lhes é assegurado, sequer, em muitos casos, o domínio da própria língua portuguesa sobretudo quando se trata de jovens já nascidos no estrangeiro. Como, na verdade, o princípio jus sanguinis garante a esses jovens a nacionali-

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dade portuguesa, há portugueses de segunda e de terceira geração que já não falam português e que teriam direito de voto.

Os Srs. Deputados dir-me-ão que poderemos então discriminar: quem lá está há mais de dez anos não terá esse direito e só o terão os que estiverem há menos de cinco anos. Mas, essa saída cria uma discriminação que gera novos problemas. Não se julgue que isso é assim tão fácil de estabelecer, e que todos eles estão dispostos a bater palmas a essa solução! O que é que pensarão os outros? Os que estão no estrangeiro, por exemplo, há cinco anos e um mês? E os que já capitalizaram uma vida de luta e de saudade da Pátria? Merecem menos o direito?

Concordemos em que não é sem razão que temos pedido aos nossos emigrantes que reconheçam que a democracia, correctamente entendida, aconselha a que não tenhamos reconhecido o voto aos emigrantes até hoje. Sem uma boa razão, que não vemos, não vamos mudar de posição. A nossa posição não é eleitoralista, mas é séria.

Os Srs. Deputados reconhecem ou não que o jus sanguinis veio complicar as coisas? Não fomos nós que fizemos a lei da nacionalidade que transformou o princípio do jus soli em jus sanguinis. Foi um governo do PSD. Segundo o princípio jus sanguinis a dificuldade em se fazer um inventário de quem é ou não é realmente português aumentou consideravelmente. Não tenhamos ilusões a esse respeito. E haverá cruzamento ou duplicação de nacionalidades: fulano é considerado nacional porque nasceu no país em que vive, e é também considerado português, porque é filho de português.

De qualquer modo, não fomos nós que criámos essa dificuldade acrescida, até porque ela já surgiu depois de termos, pela primeira vez, recusado o voto aos emigrantes quando se aprovou a Constituição.

Reconhecem ou não que a simples qualidade de emigrante reduz o conhecimento do candidato? Até já em relação aos transmontanos a dificuldade se coloca!... E chegará sempre e bem até ao emigrante a propaganda dos candidatos?

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Só que através dessa lógica...

O Sr. Almeida Santos (PS): - Espere, Sr. Deputado. Essa !ógica vai-me dizer que levaria...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Através dessa lógica um transmontano não poderia votar.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Não, Sr. Deputado, não é só isso. Referi que já existem em relação ao transmontano certos fenómenos, mas esses fenómenos tornam-se graves a partir de certo limite.

Os Srs. Deputados poder-me-iam dizer que isto tudo vale também para as eleições legislativas, mas não nos devemos esquecer de que, nestas, os emigrantes elegem quatro representantes. É simbólico relativamente ao número de votos que eles podei iam exprimir se todos se recenseassem.

Lá fora temos entre três e quatro milhões de emigrantes e podemos ter dois milhões de eleitores, ou seja, de um terço a um quarto do nosso eleitorado. Convém que nos consciencializemos disto. Querem ser lógicos e dar-lhes, proporcionalmente, o número de Deputados a que têm direito?

Por que é que não se defende isto? Era, apesar de tudo, mais lógico! A eleição é à base de partidos, e os partidos existem há anos, vão sendo conhecidos. Sabe-se o que são o PS, o PSD, o PCP, o CDS. Lá fora isso vai-se conhecendo. Os emigrantes arregimentam-se de acordo com partidos e não de acordo com personalidades, que podem até não pertencer a nenhum partido ou nunca ter aparecido na cena política portuguesa, em situação de destaque, e podem até ser esses, desconhecidos os melhores candidatos!

Os Srs. Deputados reconhecem ou não que a conjugação do voto por correspondência com o direito de voto dos emigrantes também aumenta os riscos? Porque o voto por correspondência também não dá, obviamente, a mesma garantia de genuinidade do voto presencial! Isso para mim é claro.

Que se admita o voto por correspondência em casos excepcionais, nomeadamente no que se refere ao cidadão que trabalha de noite, que conduz um comboio, que anda nos navios ou nos aviões, compreendemos. Mas, não estamos de acordo em que o voto por correspondência se converta em regra.

Ó voto por correspondência pode ser orquestrado: "Anda cá, assina aqui. Está descansado que meto isto dentro de um envelope". Surgiriam agências eleitorais para receber e emitir votos por correspondência. Tenho muito medo deste tipo de voto, se generalizado e lá fora, onde a fiscalização é muito mais difícil!...

Por outro lado, sempre que se discutiram propostas do vosso partido - desculpem-me colocar-vos a questão nestes termos - relativamente ao recenseamento de emigrantes, eu intervim sempre nisso, e pude demonstrar riscos enormes. Uma dessas leis até veio a ser julgada como inconstitucional como VV. Exas. sabem.

De facto, não tenho dúvidas da generosidade dos vossos propósitos, que é sempre dar mais aos emigrantes, e também eu gostaria de fazer o mesmo, mas prefiro dar-lhes mais professores e outras condições que lhe têm sido recusadas.

Não sei se os Srs. Deputados se recordam de um discurso em que cheguei a demonstrar, e ninguém me desmentiu, que, haveria o risco de votarem com a aprovação de uma proposta de um governo da AD, estrangeiros, ausentes e até mortos recenseados nos cadernos eleitorais! Tudo isso era possível e demonstrei-o. Felizmente essa lei veio a ser declarada inconstitucional.

De outra forma, reconhecem ou não que as vossas mais recentes propostas de recenseamento no exterior foram também preocupantes para nós? Dissemos isso muito claramente. Uma delas é, inclusive, inconstitucional. VV. Exas. têm a possibilidade de voltar a fazer propostas de recenseamento no exterior que leve estas nossas preocupações a consequências extremas, nomeadamente ampliando sem limites o voto por correspondência, e alargando o recenseamento, por exemplo, em termos de oficiosidade.

Os Srs. Deputados dir-me-ão que há poucos emigrantes a votar. Assim é, porque eles não têm o direito de voto nas eleições presidenciais e só elegem quatro deputados. No dia em que tiverem o direito de eleger o Pre-

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sidente da República eles não serão poucos, serão muitos. E seria bom que os votantes fossem muitos, se não existissem os riscos que referi. Quem me dera a mim que votassem todos!...

Reconhecem ou não que a experiência dos outros povos não reduz a natureza problemática do tema? Não se afoitam a ir muito longe, e além disso não têm o mesmo número de emigrantes que Portugal. O peso do eleitor emigrante, relativamente ao eleitorado global do respectivo país, é muito menor. No nosso país esse peso é enorme, pode atingir um terço. É necessário ter mais cuidado!...

Que vale mais? A injustiça face a cada eleitor ou a injustiça face à genuinidade democrática?

Evidentemente que é injusto para o emigrante, que poderá objectar: "Então sou português e não voto? Ando aqui a trabalhar fora do meu País e não posso votar, e os que lá estão no quentinho é que votam?!"

Mas, e então a injustiça perante a democracia e os valores democráticos? E a distorção desses valores? E o risco da verdade democrática? Desculpem-me se insisto.

Já referi, tal como Sottomayor Cárdia, o risco que há na campanha baseada em pessoas e não em partidos. Há o risco até de poder haver menos tempo, ou quase não haver campanha eleitoral. Ir ao estrangeiro fazer campanha, que caro seria isso... Os próprios partidos, por vezes, nem sequer têm dinheiro para as fazer cá dentro, quanto mais candidatos pessoais lá fora!...

Neste sentido, as perguntas que o Sr. Jorge Lacão vos formulou podem trazer elementos novos, reconheço isso. Admito que, nesta questão, se se fizer referência somente a emigrantes da primeira geração ou a emigrantes que estejam no estrangeiro há menos de cinco anos, isso reduz as minhas preocupações.

Mas, com que consequências, sobretudo no plano psicológico dos emigrantes? Aceitam eles essa discriminação com naturalidade? Poderão argumentar: "O quê, aquele tem e eu não tenho? Só porque veio para cá há menos tempo do que eu? Estou aqui a mourejar há vinte anos. O sacrifício pela minha Pátria foi maior. Mandei mais dinheiro para lá. Este que chegou ontem vota e eu não voto?" Srs. Deputados, vejam os problemas que criam.

Dito isto, gostaria de referir que, neste momento, pessoalmente não vejo nenhuma razão para que mudemos de posição. Mas, enfim, não sou um empedernido. Se alguém me convencer de que estes riscos podem ser debelados ao ponto de serem tão atenuados que se comecem a compensar os riscos de não fidedignidade do voto, de não transparências do voto, etc., altero a minha posição. Convençam-me disso. Senão, lamento, não saio de onde estou. Digo isto com inteira seriedade e independência, sem nenhum complexo!

Repito: não é por menos respeito pelos emigrantes que sempre defendi esta posição. Gosto muitos dos emigrantes, tenho o máximo respeito por eles, tenho feito por eles o que posso, mas não os engano ao ponto de lhes dizer que considero que a democracia com o seu voto indiscriminado é a mesma do que sem o seu voto. Não é.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Presidente, depois da intervenção do Sr. Deputado Almeida Santos, permito-me dizer-lhe o seguinte...

O Sr. Jorge Lacão (PS): - V. Exa. ficou desiludido de mais com o que foi dito.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Não, Sr. Deputado, não fiquei desiludido de mais. A questão não se coloca nesses termos, nem eu pretendi - que fique bem claro - antecipar um debate que não estava realizado. O que pressupus foi que as perguntas que V. Exa. formulou tinha algum interesse senão não seriam perguntas, não haveria interesse nenhum em serem respondidas nem em estar aqui todo este tempo a discutir este problema.

Aquilo que quero dizer ao Sr. Deputado Almeida Santos, mais uma vez, é o seguinte: a lei foi declarada inconstitucional - o Sr. Deputado Almeida Santos teve o encargo de me contraditar no Parlamento, tendo ela sido apresentada por mim - não pelo motivo que V. Exa. pensa. Ela não foi declarada inconstitucional por esta matéria, mas por outra questão que não tem nada a ver com isto. Consistia ela numa norma que estava incluída e que dizia respeito ao Estatuto da Região Autónoma da Madeira. O Estatuto desta Região Autónoma possuía uma norma idêntica em relação ao Estatuto dos Açores, que tinha passado na Comissão Constitucional sem declaração de inconstitucionalidade. Apenas foi declarada inconstitucional por essa razão e não por outra.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Não foram analisadas as outras questões, o que é diferente.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Evidentemente que elas não foram declaradas inconstitucionais.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Elas não foram analisadas nem invocadas. Apenas foram invocadas essas, mas volte-se a repor a lei e vamos ver se ela não encontra obstáculos.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Mas foi a única. De facto, foi exactamente isso que aconteceu. Pretendi recordar isto ao Sr. Deputado porque já há uns dias lho recordei e tivemos uma pequena altercação no Plenário acerca desta matéria.

Por outro lado, o que pretendo dizer essencialmente é o seguinte: quanto à intervenção do Sr. Deputado Almeida Santos, e contrariamente àquilo que disse o Sr. Deputado Jorge Lacão, estou medianamente esperançoso. Isto porque o Sr. Deputado disse uma coisa que julgo ser essencial: V. Exa. não defende injustiças e considera que se não deve defendê-las.

Ora, do nosso ponto de vista, do ponto de vista de todos e do Sr. Deputado também, a não concessão do voto nas eleições presidenciais aos emigrantes é uma injustiça, e é uma injustiça profunda. O nosso grande problema situa-se nisto: não seremos nós juristas capazes de alterar as condições em que esse voto é exercido de tal maneira que possamos dar guarida à resolução desta injustiça, e consigamos elaborar um esquema capaz de defender da injustiça o exercício de um direito que declaradamente lhes compete?

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De outra forma, o Sr. Deputado Almeida Santos refere que nos outros países a maior pane dos ordenamentos citados pelo Sr. Deputado Jorge Lacão confrontam-se com graves problemas na concessão deste direito. Porquê? Porque, e aqui salientaria um pouco o que disse o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia, se o jus sanguinis não é um pormenor, este País também não é um pormenor. E as circunstâncias de expansão dos cidadãos deste País ao longo do tempo, ou seja, da célebre diáspora portuguesa, também não são um pormenor. Donde resulta que este País tem valores que porventura são muito mais interessantes e importantes do que nos outros países do Mundo, neste aspecto, neste domínio.

Portanto, não é propriamente porque os outros países serão singulares porque não têm tantos emigrantes, que nós vamos seguir as suas pisadas. Ou seja, se nós temos uma grande quantidade de emigrantes, penso que longe de nos devermos afastar de dar solução satisfatória a este problema, em termos de os fazer integrar na democracia e no exercício do poder democrático dentro do País e em relação às questões que se decidem no País, penso que não temos que ter nenhum rebuço em que isto aconteça, mesmo que outras legislações do mundo inteiro, em circunstâncias diferentes, aconselhem ou inculquem o contrário. Acrescendo que, note-se mesmo nestes casos referidos pelo deputado Jorge Lacão, não houvesse unanimidade de posições em relação às legislações dos países citados. Como V. Exa. disse, e repito, há outras legislações que concedem perfeitamente o direito de voto aos emigrantes, mesmo em eleições do tipo eleição presidencial. A questão que V. Exa. diz é a seguinte: como é que isso é concedido? E esta é a tal questão que há pouco o Sr. Deputado Costa Andrade definiu bem. Parece que estamos todos de acordo na questão essencial, seria uma injustiça não conceder, poderemos ter problemas em concedê-lo. Então analisemos os casos problemáticos e vamos então construir uma solução que seja apetecível, possível e que seja exequível. A questão que referiria por último é esta. O Sr. Deputado Almeida Santos salientou os perigos do voto por correspondência, e salientou mais uma coisa que me parece um nítido acrescento àquilo que propomos. Com a eventualidade da concessão do voto por correspondência mesmo aos emigrantes, a posição que defendemos tempos atrás, em relação à sua excepcionalidade, não se altera, continuaria a ser uma forma de votar, excepcional em relação ao princípio geral, não o erigiríamos em princípio geral, portanto, V. Exa. não tem razão quando diz que mudaríamos o exercício de voto por correspondência de uma circunstância particular ou uma forma particular de exercício para o exercício de um princípio geral.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Creio que não foi isso que aconteceu relativamente ao Parlamento Europeu.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Estou a falar pura e simplesmente em relação àquilo que fizemos quando interviémos em relação aos princípios gerais de direito eleitoral, quando falámos no voto por correspondência, quando salientámos que aquele voto seria quanto a nós...

O Sr. Almeida Santos (PS): - Mas, Sr. Deputado, no caso mais próximo e mais paralelo, o da eleição para o Parlamento Europeu, o voto por correspondência está consagrado, proposto pelo PSD, sem limite. Esse é que é o problema.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Deputado, se me perguntar a título pessoal se considero que isso é perfeitamente legítimo e natural dir-lhe-ei, como aliás há pouco em surdina lhe disse, que do meu ponto de vista pessoal não reconheço nenhuma diminuição em relação ao voto por correspondência. Aliás, mesmo situando o problema em sede de direito comparado, V. Exa. sabe que o voto por correspondência existe noutros países como princípio geral perfeitamente admissível. No entanto aqui o que lhe estava a dizer vem na sequência do que foi afirmado, não em relação à legislação sobre o Parlamento Europeu, mas em relação à discussão que tivemos quanto aos princípios gerais de direito eleitoral. Era só isto.

O Sr. Almeida Santos (PS): - O que é que impede que eu. que vivo em Massachusets; por hipóíese; me arvore em indivíduo que resolve entrar um mês de férias, visitar cada um dos meus camaradas de Massachussets portugueses e dizer-lhes: "desculpem já sei que não estás para te maçar, trago-te aqui um envelope, fazes favor metes tu o voto dentro do envelope, fecha-o, entrega-mo que eu trato do resto".

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Compreendo perfeitamente a objecção de V. Exa. mas isso, como diria o Sr. Deputado José Magalhães, poderia acontecer igualmente na Regaleira, ou coisa que o valha.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Apesar de tudo era um voto por correspondência. Apesar de tudo ele vai estar sozinho, fechado, um ou cinco minutos num espaço em que diz assim: Ali o meu compadre bem me disse para eu votar naquele, mas eu quero é votar neste.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Podia perfeitamente existir e haver. Como sabem noutras legislações isso acontece em termos gerais no território nacional.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Devemos é aproximar-nos da fidedignidade do voto.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sim senhor, Sr. Deputado, mas o que estou a dizer é que noutras legislações isso acontece e acontece em relação a todo o território nacional e não particularmente em relação aos emigrantes, em relação a uma freguesia ou em relação ao estrangeiro. Por último, o que queria referir a V. Exa. em relação à situação dos emigrantes, perante a igualdade das candidaturas e do decurso da campanha eleitoral é o seguinte. A maior parte das vezes esse argumento é brandido, e tem exactamente o mesmo peso e valor, quer seja em relação às eleições legislativas quer seja em relação às eleições para o Presidente da República. Não pode deixar de ter o mesmo peso e valor e se se admite num ponto tem de se admitir em relação ao outro. Quero dizer a V. Exa. e por experiência própria posso garantir-lhe que na maior parte dos casos os circuitos de informação entre as Comunidades Portuguesas e Portugal são de tal maneira

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bem elaborados que muitas vezes o que acontece, e tenho exemplos concretos, é que notícias que em Portugal ainda não foram difundidas são lá difundidas mais fácil e mais rapidamente, chegam lá primeiro do que aqui.

O Sr. Almeida Santos (PSD): - Isso em relação à pessoa que vos espera no aeroporto, o representante da Comunidade.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Não, isso acontece variadíssimas vezes e posso dar-lhe exemplos...

O Sr. Almeida Santos (PS): - Quanto ao emigrante da loja da fruta gostava de saber se também esse está informado.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Pode acontecer e desde logo por uma razão simples, porque os "media" são muito mais potentes, porque há muito melhores meios de informação, porque há muito maior circulação de informação. Posso citar-lhe diversos exemplos do que aconteceu, designadamente em períodos eleitorais, mas de qualquer das maneiras o que digo a V. Exa. é isto. Em relação à substância do argumento que empregou, "isto é válido para as eleições legislativas, não é válido para as eleições presidenciais", penso que não tem razão. O peso é o mesmo, o regime é o mesmo, a forma de desempenhar as eleições é a mesma, não creio... Como?

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Os efeitos no caso das legislativas, como foi sublinhado, são o da eleição de quatro deputados. No caso da eleição por um círculo nacional único não está em condições de determinar as consequências do exercício desse voto.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Deputado, não acredito, começo por não acreditar que a afirmação do Sr. Deputado Almeida Santos seja verdadeira, isto é, se o Sr. Deputado Almeida Santos diz se os emigrantes souberem que vão eleger o Presidente da República acorrem em massa a inscrever-se, se souberem que vão eleger 4 deputados não se inscrevem.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Deputado Carlos Encarnação, nessa altura vale a pena levar a sério o recenseamento oficioso e faz-se. Agora não se faz, porque não elegem. É o significado do meu argumento. O recenseamento oficioso é um dever. É claro que até hoje ninguém se move com grande empenhamento porque eles não elegem, e para a Assembleia só elegem quatro. No dia em que elegerem o Presidente e começarem a ter nisso uma base para quererem um número de deputados equivalentes e proporcional ao número de emigrantes recenseados, por que essa será a segunda fase deste problema não tenham dúvidas de que o recenseamento oficioso funciona! O sacrifício vale a pena da parte do cidadão, da parte dos partidos e da parte do Estado!

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Se houvesse uma inscrição massiva, é evidente que poderia haver sempre o argumento de alterar o número de deputados.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Haveria, haveria!...

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Isso podia acontecer sem intervenção do voto na eleição presidencial e já pode acontecer agora.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Só com quatro!

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Não, não, ao contrário.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Não respondeu à minha pergunta de há pouco, talvez já não se lembrasse dela. Como comentava a circunstância de só haver um exemplo conhecido - pelo menos só conheço um - em que é conferido o direito de voto aos emigrantes para a eleição de um órgão de soberania unipessoal, mas neste o sistema de aquisição da cidadania não é jus sanguinis e o jus soli, é o caso francês.

O Sr. Presidente: - No caso espanhol era difícil.

O Sr. José Magalhães (PCP): - É o argumento da singularidade! O Sr. Deputado Jorge Lacão é sádico! O argumento da singularidade, é aquele que conta "como é diferente o amor em Portugal". Pois também são "diferentes" as eleições! Está a ver a subtileza? O Sr. Deputado Encarnação já fez o que pôde nessa matéria...

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Não é como é diferente o PCP em Portugal, é como é diferente o País.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto. Para serem conformes à nossa "idiossincrasia" as eleições têm de ser viciadas...

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Como são diferentes as condições históricas de desenvolvimento deste País, como são diferentes as condições de fixação dos emigrantes. Este é que o peso fundamental deste argumento, não é propriamente a singularidade.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Deixe-me sublinhar que, quando lhe falta um argumento de direito comparado, V. Exa. passa a invocar elementos de ordem metafísica.

O Sr. Presidente: - Talvez não devêssemos estar a prolongar este diálogo. Essa invocação dos argumentos de ordem metafísica é divertida, mas a esta hora da noite já não vamos discutir isso.

Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Os Srs. Deputados só falam dos casos onde não há eleição por sufrágio directo do chefe de Estado. A comparação do Sr. Deputado Jorge Lacão é legítima porque se baseia no único caso de eleição directa do Presidente da República na Europa Ocidental (podíamos falar também do presidente finlandês, que é eleito não por sufrágio directo mas por um colégio eleitoral, que por sua vez é designado por sufrágio directo, mas como a Finlândia não é um país de grande emigração o paralelismo não seria particularmente feliz). O único exemplo na Europa de chefe de Estado eleito por sufrágio directo e univer-

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sal é o francês, e a observação de que no caso belga, inglês, holandês, luxemburguês, etc. a comparação não procede resulta do facto de serem monarquias.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Não procede para nenhum dos lados.

O Sr. António Vitorino (PS): - Exacto. Só que aqui o argumento de direito comparado revela que a experiência de eleição do chefe de estado por sufrágio universal não é tão grande como isso, e portanto sai debilitado, no meu entender, o argumento do direito comparado que os Srs. Deputados deram.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado António Vitorino, vou dar a palavra ao Sr. Deputado José Magalhães, mas o problema de direito comparado não pode esgotar-se com a simplicidade com que V. Exa. pareceu fazê-lo. Já voltaremos ao problema. A verdade raras vezes é pura e nunca é simples.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães: - Sr. Presidente, o Sr. Deputado Jorge Lacão falava da metafísica, V. Exa. dá-nos máximas do mais fino recorte ético.

O Sr. Presidente: - Esse é literário.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Ah, era apenas literário? Julguei que era ético.

Gostava no entanto de regressar ao tema desta noite para concluir, que, ao fim de uma longa caminhada, o PSD está reduzido às vestes mínimas, ou melhor, está inteiramente a nu. Não há argumentos de direito comparado, que lhe valham nem argumentos de carácter técnico, nem argumentos de carácter político, argumentos fundados numa apreciação da natureza específica, e das condições de realização do acto eleitoral. Há um argumento que o Sr. Deputado Jorge Lacão, à falta de melhor e dada a hora, qualificou de "metafísico". Funda-se ele naquilo a que em palavras suas o Sr. Deputado Mário Raposo chamou, "o ecumenismo que une os portugueses de todos os quadrantes geográficos nessa aventura de dissolução que aviva liames estruturais".

Eis a justificação básica do PSD, para esta operação!

O Sr. António Vitorino (PS): - É literário.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Dizer isso é pouco! E é insultar os literatos! Não quero entrar em detalhes sobre essa matéria, porque sobretudo o PSD oculta muito mal a natureza da operação que propõe.

Aquilo que o PSD aqui pretende, de forma clara, ao demarcar-se do conjunto de razões atiladas, fundamentadas, que sobre esta matéria vêm sendo ponderadas, ano após ano, praticamente em termos idênticos (não se alterou um milímetro a circunstancialidade!), aquilo que o PSD pretende com uma operação e uma insistência deste tipo é um efeito de uma outra natureza.

O que o Sr. Deputado Carlos Encarnação, o Sr. Deputado Rui Machete todos os deputados do PSD se usassem da palavra, diriam, é abundantemente dito através da máquina de propaganda do Governo, através dos "media" de que falava o Sr. Deputado Carlos Encarnação, nos sítios que ele próprio enumerou, em todos os tons e em todas as línguas, incluindo também o português.

Para efeitos de pura apologia governamental, estabelece-se nesse discurso uma clivagem brutal: de um lado o Governo, "amante" dos emigrantes, do outro todos os outros que são "maus" e "pérfidos" e "estão feitos" para impedir os emigrantes de exercerem aquilo que é "a sua maior aspiração", a "mais respeitável" - intervir na eleição do Presidente da República.

Há nisto, obviamente, um conjunto de confusões propositadamente introduzidas e uma fronteira artificialmente traçada, uma vez que as razões que inspiram uma posição não favorável à solução, do PSD, não se fundam em nenhum preconceito discriminador dos portugueses residentes no estrangeiro, e seguramente menos ainda daqueles que sejam propriamente emigrantes, mas na avaliação de factores objectivos, que evidenciam dificuldades e em certos casos tornam a escolha muito difícil, e até melindrosa, mas que não impedem ou não nos inibem de ter que fazer essa escolha.

O debate aqui - devo dizê-lo - não acompanha minimamente a natureza da campanha no exterior. Quem se dedicar e tiver a paciência de fazer uma colecção dos recortes das declarações do Sr. Secretário de Estado Correia de Jesus, pelo mundo fora (uma vez que tem um departamento governamental cuja função oscila entre a agência de turismo e a agência de viagens, doublée de agência de informação e propaganda) verificará as coisas que são ditas sobre esta matéria no estrangeiro! É uma campanha mal nutrida de argumentos, mas cheia de desargumentos e argumentos de valia perfeitamente íntima, uma campanha de intoxicação verdadeira e pura, que ainda por cirna visa criar nos emigrantes e nos residentes no estrangeiro uma disponibilidade e um animus crítico não só para ser rentabilizado em eleições presidenciais mas para ser rentabilizado como massa de apoio governamental dependente, tudo isto naturalmente inserido em planos que o Governo nem esconde excessivamente. Creio que o que o Governo e o PSD querem com esta proposta é, desde logo, capital de queixa. A maneira como abordaram este debate, que oscilou entre uma esperança absolutamente precoce e infundada e a seguir uma desilusão galopante, descambando na metafísica - é o relato sintético da dama, na sua decepção, na sua ilusão, mas também no seu plano. É esse plano que, francamente, nos inquieta.

O PSD decaiu da grelha argumentativa que o levou a, na origem da Constituição, recusar esta solução, que na altura aprovou. Decaiu, por razões de circunstância, sem argumentos, decaiu com interesses interesseiros. Não foi jurisprudência nenhuma de interesses, que o levou a tal - essa expressão designa uma determinada concepção de Direito e das operações jurídicas, esta é, quando muito, uma aritmética de mercearia política, uma peça de um jogo de olho atestado em projectos de viciação eleitoral. Portanto a maneira como este debate decorre é apenas uma reprodução minúscula, em microclima, daquilo que no exterior assume dimensões de tempestade, que consideramos extremamente graves e são uma pesadíssima constrição ou pressão.

Acresce, aliás, que nesta matéria o PSD nem sequer tem a benévola atitude que o Sr. Presidente, nos inícios da revisão constitucional aí pelo mês de Fevereiro,

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em entrevista a um certo semanário, referia quando considerava que "perspectivar o problema eleitoral, considerando que as leis eleitorais não devem alterar-se por simples maioria conjuntural, é uma coisa do encarar" (isto a propósito das paraconstitucionais em matéria eleitoral).

Tudo isto está esquecido e nem foi trazido à colação pelo PSD.

A declaração que citei terá visado provocar unicamente um efeito de poalha, de resto isolado, provavelmente para a criação daquilo que na mesma sede se chamava os "laços de simpatia e compreensão entre as pessoas... importante em termos de clima", como referia o mesmo autor e o mesmo deputado. Pois o presente clima é bastante mau!

Pronunciar-me-ei rapidamente sobre algumas das questões de confusão e alguns dos argumentos confusos.

1.° A confusão entre emigrantes e residentes no estrangeiro. O PSD faz a sua campanha em torno do emigrante. Qualquer confusão entre a noção de emigrante e de residente no estrangeiro é apenas isso, uma confusão, pois o conceito de emigrante é bastante mais preciso que o conceito de residente no estrangeiro. Portanto o PSD, ao fazer a sua campanha dizendo "ai dos que querem atingir os emigrantes que contribuem para as nossas receitas, que têm direitos" (que ninguém lhes contesta em relação aos mais diversos campos e o Governo e o PSD bem poderiam interessar-se mais por isso!) pretende estabelecer uma confusão. Perceber-se-á porquê, mais tarde...

2.° Quanto às bases técnicas, o PSD sabe que há um bluff na sua argumentação. O seu próprio projecto trai isso, como vimos, quando meia dúzia de artigos atrás pressupõe uma 1.ª volta realizada a poucos dias da primeira.

O Sr. António Vitorino (PS): - Pode ser que os emigrantes só votem na primeira volta.

O Sr. José Magalhães (PCP): - ... em quinze dias!

O PSD, das duas uma, ou faz contas com uma máquina bastante estragada ou por dedos amputados, ou não está a tomar como séria e fixe a sua proposta em relação ao artigo 124.°!

Ou, então, tem uma ideia, um tanto megalómana, de que a coisa com alguns reforços se resolve à primeira volta!

Em todo o caso, é significativo, segundo julgo, que o PSD não adiante nada quanto à base técnica da sua proposta. O PSD sabe que o voto dos residentes no estrangeiro, por exemplo, numa segunda volta das presidenciais, obrigava a adiá-la por vários meses, provavelmente em condições que ninguém é capaz de prever. Mas este argumento é meramente técnico. De resto, não me baseio nele para avaliar o fundo da proposta do PSD, mas apenas para sublinhar que o PSD não é coerente ou joga impudicamente em capital de queixa. Caso contrário, teria tido que dar pelo menos duas ou três respostas coerentes para ultrapassar estas interrogações e estas dúvidas.

O Sr. Presidente: - V. Exa. considera, portanto, que a discussão já acabou?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Presidente, estou até a procurar contribuir para ela.

3.° Quanto à questão das razões políticas, estou dispensado de retomá-las. Apenas gostaria de, pela minha própria lavra, sublinhar que é realmente espantoso que, discutindo a questão nesta sede, o PSD procure sistematicamente escamotear diferenças e identificar o que é distinto. Em primeiro lugar, escamoteia as diferenças deste acto eleitoral em relação à própria natureza do cargo - e já foi sublinhada a importância de que se reveste nesta óptica, tão grande que há especiais cautelas quanto à própria capacidade passiva e, designadamente, quanto às questões de defesa do interesse nacional e de genuinidade que estão subjacentes e são potenciados maximamente pelo carácter unipessoal do cargo.

4.° Há um aspecto que não foi aflorado quanto a este ponto e que é uma implicação grave desta opção que o PSD pratica: a opção relativamente ao corpo eleitoral tem igualmente projecção quanto às candidaturas, ou seja, quanto à capacidade de apresentar candidaturas. Portanto, conjugando o disposto no projecto do PSD para o artigo 124.° com o disposto no artigo 127.° da Constituição na sua redacção actual (mesmo admitindo que não era objecto de alteração) seria possível o famoso candidato de Washington, o candidato -naturalmente, português de origem - proposto pelos eleitores de Washington, de Xangai, ou de Macau, etc., o que me parece induzir alguns problemas que não deveriam ser igualmente subestimados.

5.° Outra diferença que o PSD não reconhece, e que não tem em atenção, é a diferença relativa às condições de sufrágio e à aplicação dos princípios de direito eleitoral que, com se sabe, é obviamente impossível. E o PSD provavelmente considera isso excelente, pensando sobretudo em alguns países em que a igualdade de candidaturas é obviamente postergada, para já não falar nos casos em que, pura e simplesmente, a entrada é interdita e impossibilitada a vários cidadãos portugueses apoiantes de candidatos e, porventura, até candidatos.

6.° Outro aspecto são as diferenças quanto às características das eleições, uma vez que neste caso estas se decidem do seguinte modo: "por um voto se ganha, por um voto se perde". De facto, isso é obviamente relevante, coisa a que o PSD não replica.

7.° A relativa à segurança do sufrágio. Como já foi assinalado e está abundantemente demonstrado, não há neste sistema possibilidade de garantir, em condições adequadas, a segurança do sufrágio em relação a múltiplas operações. Os estudos que têm vindo a ser feitos no âmbito do STAPE, em torno das devoluções dos boletins de eleitores inscritos no estrangeiro, em relação às eleições em que estes intervêm, são elucidativos. As soluções que, sobre esta questão, acabámos de aprovar, em sede de lei de Recenseamento Eleitoral são também a prova das incertezas e inseguranças que há nessa matéria. De resto, o Governo propunha que essas incertezas e inseguranças fossem resolvidas através da eliminação à segunda devolução, sem mais; foi por iniciativa dos partidos da oposição que esse aspecto foi corrigido na versão final da lei há dias aprovada. Consequentemente, os aspectos de segurança não são objecto de qualquer solução ou de qualquer prevenção na proposta do PSD.

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8.° Quanto aos resultados dessa operação, compreende-se que o PSD os encare com apetite -expressão, aliás, utilizada pelo Sr. Deputado Carlos Encarnação-, porque, combinando-se a hipótese de recenseamento alargado, com esta solução são conjecturáveis certos resultados. É evidente que o recenseamento de cidadãos residentes no estrangeiro pode ser objecto de um regime mais favorável, podendo tais cidadãos dele ficar dispensados. Actualmente, de resto, o recenseamento é facultativo, para os residentes no estrangeiro. Isso não é inconstitucional, mas não é uma solução eterna nem uma solução garantida constitucionalmente...

Vozes.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto. É uma solução susceptível de variar.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)

O Sr. José Magalhães (PCP): - É esse exactamente o problema. Não está, portanto, excluída a possibilidade de fabrico alargado de eleitores, antes, pelo contrário. De resto, tudo o que tem acontecido nos últimos anos - de desdobramento de postos de recenseamento, de operações relacionadas com o reforço ou dito reforço da oficiosidade, com as campanhas governamentais em torno deste tema - as campanhas de selecção e angariação de novos inscritos por outros meios, são de molde a inspirar sérias preocupações quanto às consequências de uma operação deste tipo, se viabilizado, naturalmente.

Creio que merecem toda a atenção as observações feitas por vários Srs. Deputados quanto ao carácter indiscriminado da consagração aqui proposta. De facto, a tabela de direito eleitoral já foi feita.

Não é válida, porém, a comparação do regime presidencial e dos dados respeitantes a eleições parlamentares. Tenho presente o estudo do Parlamento Europeu (Direcção-Geral de Estudos, Série Política n.° 13, de Abril de 1987), no qual, a páginas 7 e seguintes, é feita uma resenha das leis eleitorais dos diversos países quanto aos actos que naturalmente são relevantes para esse efeito e não quanto às eleições para o Presidente da República. Não vou nesta circunstância ler ponto a ponto ou sequer resumir o regime - de resto, o Sr. Deputado Jorge Lacão já aludiu a essa diversidade de regimes -, mas essa análise não permite nenhuma conclusão legitimadora da proposta do PSD.

Devo, aliás, dizer que o argumento que nessa matéria me parece mais relevante é o que diz respeito à nossa história quanto à cidadania, à evolução que sofremos nesse domínio. Somos realmente um país - e aí está uma singularidade em que o Sr. Deputado Carlos Encarnação um dia destes vai poder pensar em que ocorreu uma conjugação, patente e verificada num período curto, de surtos emigratórios enormes, com um fenómeno descolonizador que teve as consequências que são conhecidas (e que, designadamente quanto à questão da cidadania, teve implicações, nomeadamente, por força do Decreto-Lei n.° 308-A/75, de 24 de Junho, sobre a conservação de nacionalidade dos portugueses domiciliados em território ultramarino tornado independente).

Essas que ainda hoje não estão esgotadas. Não foi por acaso que o Governo apresentou recentemente a proposta de lei n.° 103/V, em que se procura dar uma resposta e colocar um ponto final a um regime que permitiu verdadeiramente fenómenos de naturalização ou quase naturalização por uma via outra que não a prevista na lei da cidadania e que conduziu a dificuldades de aplicação enormes com um afluxo, num ritmo verdadeiramente impressionante, de pedidos de conservação, ou pseudo-conservação, ou de concessão de nacionalidade. Esta situação motivou despachos normativos sucessivos (o Despacho Normativo n.° 11/82 foi um deles), delegações de poderes para membros do Governo os mais diversos e, diariamente, a publicação no Diário da República de avisos sobre a concessão ou a "conservação" da nacionalidade portuguesa a um número de milhares de pessoas, que assim mantiveram (ou adquiriram!), o que deve naturalmente ser tido em consideração. E também deve ser tido em consideração que em 1981, como foi referido, alterou-se o critério. Só que, como se sabe, os filhos dos residentes nas ex-colónias podem ser portugueses, por força do jus sanguinis. Por outro lado, há cem mil cidadãos de etnia chinesa residente em Macau, com nacionalidade portuguesa, o que naturalmente deve ser tido em consideração, quando se pensa que uma eleição pode ser decidida por um volume de votos inferior em 99 999 a isto, ou seja, por um voto! É apenas uma forma de dizer que numas eleições em que a diferença entre a ida à primeira volta e à segunda se decide por um voto, 100 000 votos não são, como é óbvio, coisa irrelevante. Aliás 100 000 e mesmo 99 999 poderiam ser irrelevantes, mas este último voto chinês seria relevante. Nesse caso um só estrangeiro escolheria õ presidente português!!!

Por tudo isto, Sr. Presidente, penso que nesta matéria o PSD não joga com abertura e, sobretudo, entendo eu, não joga com um conjunto de argumentos que tenham em conta os argumentos de quem coloca as interrogações que, ao longo desta noite, aqui soaram. Creio que não é positivo o clima malsão ou a guerra de confusões que em torno disto se pode estabelecer. É perigosa a tentativa do PSD de criar a partir daqui uma capital de queixa, para efeitos de eventual utilização contra órgãos de soberania ou até para questionar coerências passadas, cadernos reivindicativos e manifestos eleitorais e até para outros efeitos, designadamente de ajustes ou tentativas de ajuste de contas.

Esse desvio do processo de revisão constitucional em torno deste tema seria extremamente pernicioso, sobretudo porque, nesta matéria, o PSD diz o que diz. E o que diz, verdadeiramente, é um poema à "aventura de dissolução que aviva liames estruturais". Só que esse "poema" poderia conduzir à concessão indiscriminada do direito de voto a residentes no estrangeiro, cuja ligação a Portugal e à nossa circunstância política pode não só ser remota como susceptível de algumas operações pelas quais nem o próprio PSD pode responder. E eis o poema convertido em pesadelo! Um ponto que tem a ver com o interesse nacional e com a garantia de que um processo eleitoral extremamente importante, destino colectivo, e que por isso mesmo não deve poder ser decidido nunca a partir do estrangeiro, tudo deveria motivar, entendemos nós, uma outra atitude e uma outra postura, mesmo por parte daqueles que te-

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nham a ideia de que o princípio é bom. Os bons meios não se vêem e alguns fins seguramente não o são! Por isso nos opomos firmemente aos projectos do PSD.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Presidente, afigura-se-me que se deve fazer um esforço para que a Constituição seja coerente. Permita-me que cite o n.° 3 do artigo 116.° Aí se lê o seguinte: "As campanhas eleitorais regem-se pelos seguintes princípios:

a) Liberdade de propaganda;

b) Igualdade de oportunidades e de tratamento das diversas candidaturas;

c) Imparcialidade das entidades públicas perante as candidaturas [...]"

Afigura-se-me que o essencial das considerações que aqui foram aduzidas por Deputados do PS e agora pelo Sr. Deputado José Magalhães consistem na aplicação destes princípios e são uma advertência para a necessidade de estes princípios serem respeitados na Constituição.

Dizia há pouco o Sr. Deputado Almeida Santos que falta pelo menos um argumento forte para que o PS possa mudar de posição. Efectivamente, da discussão travada afigura-se-me que resultam vários argumentos para que não mude, mas pode haver algum que leve à reconsideração e que nos leve a repensar este problema. Há um facto novo desde a última revisão constitucional. É a integração de Portugal nas Comunidades Europeias, facto que talvez possa ser considerado relativamente à matéria agora em discussão. Foi um argumento que o PSD não invocou, não sei se por não o considerar importante ou adequado ou por outra razão. Se VV. Exas. consideram tão importante que os emigrantes votem - e há alguma justiça em que votem, desde que a justiça que lhes assiste seja compatível com os princípios, eles próprios justos, do n.° 3 do artigo 116.° - pergunto: por que não conceder o direito de voto na eleição do Presidente da República a emigrantes residentes nos países das Comunidades Europeias? Pelo menos, por que não discutir essa questão? Sei que algumas das condições que eu próprio formulei não poderiam ser satisfeitas em relação a cidadãos portugueses residentes em países das Comunidades. Todavia, as alíneas a), b) e c) do n.° 3 do artigo 116.° poderiam ser respeitadas nesses países. Aliás, na Europa há mesmo um país muito próximo da Comunidade Económica Europeia em que este preceito, se a minha informação é boa, não seria respeitado: é a Suíça. E se não é respeitado na Suíça, também não o é porventura em numerosos outros países. Mas afigura-se-me que, nas Comunidades Europeias, as alíneas à)t b) e c) do n.° 3 do artigo 116.° seriam, de direito, necessariamente respeitadas. Por consequência, por que não discutir a questão da concessão do direito de voto aos portugueses residentes nos restantes países das Comunidades Europeias? Talvez não a esta hora...

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, perdoar-me-á mas V. Exa. está a sugerir que a capacidade eleitoral activa dos emigrantes seria circunscrita à circunstância de os cidadãos portugueses residirem nas Comunidades Europeias?

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Estou a admitir que poderíamos, talvez, mudar de posição se a proposta fosse feita em relação às Comunidades Europeias. Ou melhor: eu poderia, porque nada mais represento senão a minha própria voz. Embora não seja o único socialista a pensar assim: outros militantes do PS já formularam idêntica opinião. Estou a lembrar-me do euro-deputado Coimbra Martins que, salvo erro, defendeu já, publicamente, esse ponto de vista; em suma, não estou a dizer qual seria o meu voto perante uma tal eventualidade, mas teria simpatia por uma tal possibilidade.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Em todo o caso, haveria direito de igualdade, mais ainda do que o actual.

O Sr. Mário Maciel (PSD): - E os portugueses dos Estados Unidos e do Canadá, não são portugueses?

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Não digo que não são portugueses.

O Sr. Almeida Santos (PS): - O problema é que estar na Comunidade, de algum modo, é estar um pouco mais em Portugal, do que estar em países que não pertencem à Comunidade. Mas também não me parece, realmente, que justifique uma discriminação.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Mas não é só o artigo 116.°; também se diz, nos princípios fundamentais, que Portugal preconiza a criação dê uma Europa política - obviamente, daí não decorre necessariamente que os emigrantes portugueses votem para as eleições presidenciais, mas é uma achega, um contributo, uma sugestão. Em todo o caso, estranho que nada disto tenha sido suscitado pelos proponentes.

O Sr. Presidente: - Ainda não chegámos, porventura, lá. Mas V. Exa. compreenderá o seguinte: quando fiz, há pouco, a minha pergunta, estava a julgar que V. Exa. ia desembocar num outro tipo de proposta, que era a concessão do direito de voto aos cidadãos dos países da Comunidade Económica Europeia residentes em Portugal - não é isso, mas pensei que fosse.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - A reciprocidade funciona para as eleições relativas ao Parlamento Europeu, mas não poderia funcionar para a eleição de órgãos de soberania dos respectivos países.

O Sr. Presidente: - Não estou a dizer que pode funcionar ou não, estava só a tentar indagar qual o pensamento do Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

Acho que, apesar do meu desejo, provavelmente não vamos ter oportunidade de esgotar esta matéria até à 1 hora, que me parece um prazo razoável para poder, com discernimento, analisar esta questão. Em todo o caso, como estou inscrito, gostaria apenas de dizer, sem prejuízo de vir a voltar ao problema mais tarde, que esta matéria é, efectivamente, séria - por isso mesmo, justifica que seja abordada com toda a atenção e toda a preocupação de acertar.

Quando, há pouco, comentei que as questões de direito comparado não me impressionavam muito e, um pouco ironicamente, me referi às eleições para órgãos

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singulares em monarquias, não era, evidentemente, mais do que uma chamada de atenção para algo que, gostemos ou não, é efectivamente assim - a singularidade da situação portuguesa. Não há, efectivamente país, diz-se, que atribua simultaneamente jus sanguinis e um direito de voto para a eleição de órgãos singulares, com a generosidade com que, neste momento, se pretenderia consignar, por parte do PSD, esse direito, em relação a essa capacidade eleitoral activa, em relação aos emigrantes. Também é verdade que não conheço país europeu que tenha uma situação de dispersão geográfica da sua população, como Portugal - isso leva a que tenhamos de ponderar, muito seriamente, se essa situação não o justifica; e, naturalmente, que tenhamos soluções diversas das que outros países europeus adoptaram.

Por outra parte, foi sublinhado, designadamente pelos Srs. Deputados Almeida Santos e Jorge Lacão, que o problema da concessão de voto aos emigrantes é um problema sério e não há nenhum propósito de os apoucar - há a necessidade de ponderar devidamente os vários interesses em causa, e que se referem, não só ao respeito e à dignidade da sua situação de cidadãos portugueses, como também à necessidade de preservar a genuinidade do acto eleitoral para a eleição do Presidente da República. A questão que se pôs, foi esta: a de saber se há, ou não, possibilidades de encontrar algum tipo de solução satisfatória que não seja a pura rejeição e julgo que a questão é posta numa sede correcta. Em termos da proposta de revisão constitucional, penso que não deveríamos, ou não tínhamos a obrigação de regulamentar a maneira como isso se passa; mas tínhamos a obrigação de justificar na discussão quais as nossas preocupações e ir ao encontro daquilo que são preocupações legítimas, aqui manifestadas pelo PS.

Em primeiro lugar, há que tomar em consideração a circunstância de a aquisição ou outorga de cidadania ser hoje feita em Portugal, em termos de um amplo critério de jus sanguinis; é algo que se justifica face à política que seguimos de manter ligados a Portugal os emigrantes e seus descendentes, mas que naturalmente obrigará a ter cautelas particulares quando se está a pensar na concessão do direito de voto, designadamente para a eleição do Presidente da República. Já há pouco, tive oportunidade de dizer que me parecia importante o critério de dupla cidadania - que é um critério extremamente limitativo porque, nos países de emigração (talvez VV. Exas. não tenham ponderado suficientemente esse argumento) a grande, esmagadora maioria daqueles que são já residentes nesse país há longo tempo, têm essa cidadania; o que significa, desde logo uma limitação por um critério que é, por um lado, objectivo e por outro lado, de alguma justiça, em termos de participação política, já que os novos cidadãos com dupla nacionalidade participam politicamente na actividade desses países.

Em segundo lugar, obviamente que esse mesmo critério se aplica em relação aos portugueses da segunda geração, que nasceram nesses território e que, pelo critério de jus soli, têm a dupla nacionalidade - a do país e a portuguesa. Julgo que esse é um critério extremamente importante: é objectivo; fundamenta-se em razões que levam a que os emigrantes portugueses e os portugueses de segunda geração possam considerar seriamente, dado que é uma decisão cuidada e que atende à circunstância de eles poderem já participar na vida política dessas comunidades em que se encontram inseridos se tiverem dupla cidadania; e, repito, se for devidamente trabalhado, dá uma resposta, que considero relevante, a muitas das preocupações legítimas aqui expressas pelos Srs. Deputados do PS.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, não se importa de precisar esse ponto de vista? Em que medida é que a utilização desse critério poderia salvaguardar preocupações como as que foram enunciadas?

O Sr. Presidente: - Algumas, não disse que seriam todas; mas foi-me dito há pouco (como V. Exa. ouviu) que a atribuição da cidadania pelo jus sanguinis, significava um alargamento daqueles que são portugueses - é exacto! Só que esse jus sanguinis é atribuído a quem não nasceu em Portugal - o critério de jus sanguinis significa que são os descendentes de portugueses, mesmo residentes em território estrangeiro. Nos países de imigração - é o caso do Canadá, é o caso dos EUA, é o caso da África do Sul - há um critério de jus soli; o que significa que esses cidadãos portugueses de segunda geração, fruto da aplicação do critério do jus sanguinis, numa preocupação justificada de manter laços à nação portuguesa, têm, todavia, uma dupla nacionalidade. O que eu acrescentei, foi que me parece correcto e legítimo que, nesta circunstância, em que eles já participam, por direito, na vida política de outros Estados, embora mantenham laços com Portugal, não há o mesmo tipo de razões que justifiquem a sua participação.

Estou a exprimir uma opinião pessoal que resulta de uma análise que, penso, é feita, pelo menos, com toda a boa fé e com toda a intenção de encontrar uma solução, e por isso mesmo, porque entendo que é essa a minha missão, queria deixá-la aqui claramente dita. Pode haver, evidente e logicamente, quem não aceite, mas em termos nacionais, parece-me de grande razoabilidade que pessoas com dupla nacionalidade, residentes no estrangeiro, e exercendo, no fundo, os direitos de cidadania, resultantes dessa dupla nacionalidade, não possam, com grande legitimidade, exercer esse direito em Portugal, a propósito do Presidente da República e, provavelmente, a propósito dos próprios deputados - porque as razões, no fundo, são similares.

Insisto: penso que esta matéria deve ser suficientemente trabalhada, porque nela reside uma grande parte das respostas às questões que foram colocadas, no que diz respeito ao alargamento do círculo dos eleitores. Isso obviaria a questões que me parecem mais complexas e essas mais susceptíveis de criar problemas, como são as relativas às circunstâncias de as pessoas estarem mais ou menos anos ausentes do território nacional - o que, aliás, tem dificuldades de prova complicadas, em alguns casos, e que são critérios (como disse o Sr. Deputado Carlos Encarnação) que podem ser perfeitamente contingentes. E, mais ainda, há a questão de estarem na Suíça, ou nos países da CEE, ou noutros países além-mar, na América ou em África - segundo observação que foi feita, e que merece resposta atenta mas negativa. O facto de se dizer que as pessoas que estão afastadas de Portugal não têm um conhecimento da vida portuguesa suficiente para poderem exprimir o seu voto - eu diria que isso depende muito das circunstâncias. Mas, na verdade e ainda, o

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tal critério da dupla nacionalidade tem a sua relevância nesta matéria, porque, repito, não é só a segunda geração que tem dupla nacionalidade; a esmagadora maioria daqueles que estão longos anos em território estrangeiro e integrados nessas comunidades, também tem a dupla nacionalidade.

É óbvio que há técnicas, no que diz respeito ao recenseamento, que podem eventualmente ser utilizadas para, de algum modo, medir o interesse; o argumento, que foi usado, de que para a Presidência da República que é uma questão importante, as pessoas vêm, acorrem, inscrevem-se, significa que algum tipo de interesse pelo País têm, a ponto de se justificar o ónus da sua inscrição e, naturalmente, da sua informação.

O problema do voto por correspondência já foi referido, penso que não pode, nestas circunstâncias, ser generalizado - os argumentos referidos pelo Sr. Deputado Almeida Santos parecem óbvios e têm de ser considerados, nestes casos, como uma excepção, efectivamente; é nesse sentido que nós o propusemos, é nesse sentido que, penso, devem ser mantidos.

Existem duas dificuldades que têm de ser cotejadas com o interesse, ou a justiça, de reconhecer o, direito de voto aos emigrantes; uma, primeira, é a de que, apesar de tudo, pode haver algum afastamento - eu diria que esse é um argumento que tem uma certa validade, mas não deve ser exagerado, porque, há pouco, o Sr. Deputado Almeida Santos citou o caso de alguns eleitores, em Portugal, que também não estão inteiramente conscientes, ou com informação completa, depende muito das circunstâncias - em todo o caso tem alguma valia e alguma razão para ser ponderado. Outra, segunda, e é um argumento naturalmente importante, é a questão da campanha eleitoral - embora, também aí, esse argumento não possa ser sobrevalorado em excesso, mas pode obviamente haver limitações resultantes, não tanto da circunstância do candidato não poder lá ir, mas do meio em que habitualmente o emigrante vive, apesar das comunicações.

A questão é a de saber se, ponderando estas duas coisas, com este tipo de limitações, que são importantes e que reduzem fortemente o círculo daqueles que serão eleitores como emigrantes, e reduzem em termos objectivos e que me parecem sérios e justificados, devemos dizer que - por essas considerações que foram feitas e que, a meu ver, têm algum valor, mas não decisivo - podemos recusar essa justiça aos emigrantes ou, pelo contrário, lha devemos dar. É aqui que as coisas se põem.

Nós pensamos que as soluções - qualquer delas - não são isentas de dificuldades, não pensamos, portanto, que não sejam patrióticos ou que estejam a ofender os emigrantes, os partidos que se opõem; penso apenas que fazem uma valoração diferente daquela que nós realizamos, gostaríamos que se dispusessem a analisar connosco, seriamente, caso a caso, as dificuldades levantadas, e que, de algum modo, se predispusessem a valorar, em termos que nos parecem devidos, a circunstância de os emigrantes, também esses que estão mais ligados a Portugal, darem contribuições significativas e não, muitas vezes apenas, em termos puramente monetários ou de equilíbrio da balança de pagamentos, para o País. Nós tivemos, nós todos, portugueses, alguma culpa de eles estarem lá fora e não viverem - como dizia o Sr. Deputado Almeida Santos - o aconchego de se encontrarem em Portugal.

Portanto, em termos que, penso, são muito claros, ponderados, e não estamos a opor nenhum labéu em quem pensa de maneira diferente, mas, naturalmente, temos a legitimidade, e não reconhecemos a ninguém autoridade para nos dar lições de pedagogia ou de como nos devemos comportar nesta matéria - era só o que mais faltava! -, propusemos este preceito e continuamos a pensar que ele satisfaz melhor razões de justiça, do que o princípio contrário.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Permita-me que faça uma pergunta. Dado o adiantado da hora, não vou comentar os seus próprios comentários, que, aliás, apreciei; quero apenas perguntar o seguinte: as preocupações de V. Exa. valem, obviamente, como preocupações manifestadas por alguém que qualificadamente as exprime, obviamente de boa-fé. Não admira, Sr. Presidente, Deputado Rui Machete, que o exemplo que o PSD acaba de nos dar, com a apresentação da proposta de alteração da lei eleitoral para o Parlamento Europeu, na qual nenhuma das preocupações, que o Sr. Deputado Rui Machete acaba de expender, estão vertidas, quer sob forma de proposta legislativa, quer na justificação de motivos que a acompanha, seja de molde a deixar o PS e outros partidos bem mais intranquilos, relativamente à posição do PSD, na medida em que não acompanha, nessa via, muitas das preocupações que o Sr. Presidente, Deputado Rui Machete, acaba de manifestar aqui?

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Jorge Lacão, devo confessar que não conheço em pormenor o articulado da proposta de lei, em relação à eleição para o Parlamento Europeu; mas há uma razão óbvia que leva a que esta matéria não tenha sido cuidada, nos termos em que eu a expus - dado que, como há pouco foi sublinhado pelo Sr. Deputado Sottomayor Cárdia, no que diz respeito aos países da CEE, não se põe com a mesma acuidade com que se põe, no que respeita às colónias portuguesas nos EUA, ou no Canadá, ou na África do Sul, ou na Austrália.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, peço desculpa, mas a questão na proposta não é essa. O nosso sistema confere o direito de voto aos emigrantes residentes no território dos países membros da Comunidade; o que o PSD pretende é alargar esse direito, reconhecendo a capacidade eleitoral activa a todos os emigrantes portugueses, residentes nos países fora da Comunidade, através da forma da eleição por correspondência, e sem entrar em linha de conta com qualquer critério restritivo ou limitativo, designadamente os problemas da dupla nacionalidade, ou outros.

Portanto, não se trata de confirmar o direito de voto dos emigrantes portugueses nos territórios da Comunidade Europeia; trata-se, sim, de alargar esse direito aos países exteriores à Comunidade sem revelar qualquer tipo de preocupação. Isto é uma razão suficiente para que estejamos preocupados.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, se estivéssemos aqui a discutir não a eleição do Parlamento Europeu mas a do Presidente da República a sua observação não teria razão de ser porque nesse caso teria ponderado justamente esses elementos. É completamente diferente

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estarmos a discutir a eleição dos Deputados para o Parlamento Europeu do que discutirmos a eleição para um órgão impessoal.

Em todo o caso, aquilo que eu disse mantenho-o, e penso que é uma preocupação importante, de uma maneira particular, quando estamos a discutir - aliás, foi nessa base que fizemos esta discussão - a eleição de um órgão como o Presidente da República.

Com certeza que V. Exa. não considera que todo esse tipo de cautelas tenha sido apresentado quando discutimos a eleição para a Assembleia da República.

São coisas diferentes, embora eu aceite que possa haver algum aspecto dessas preocupações que pudesse ter um eco mais acentuado na discussão que terá sido travada.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Presidente, gostaria de dizer que da posição favorável ou contrária à concessão do direito de voto aos emigrantes, no caso da eleição presidencial, não se pode inferir que os respectivos proponentes sejam considerados, pela posição que manifestam, a favor ou contra os emigrantes. Estou inteiramente de acordo com a afirmação de V. Exa., Sr. Presidente. É importante que o que se vier. a conhecer deste debate não seja uma deturpação do que aqui foi dito. Isto para além do teor global da sua intervenção, ou seja, o espírito que miraculosamente vai inspirar o modo como os meios de comunicação social e, à partida, o seu próprio partido vão dar desta questão nos Estados Unidos, no Canadá, na África do Sul, na Venezuela e, naturalmente, na Europa.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Sottomayor Cárdia, agradeço muito as suas palavras mas compreenderá que não tenho poderes taumatúrgicos.

Essencialmente, V, Exa. não poderá apenas considerar este aspecto, que considero relevante e justo, mas também sublinhar a recta intenção com que as propostas são elaboradas e discutidas, ao contrário de algumas interpretações que foram feitas acerca dos nossos desígnios últimos.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Verifico que V. Exa. reconheceu que necessitava de ter poderes taumatúrgicos para...

O Sr. Presidente: - Mas o Sr. Deputado não deve presumir isso. Sou responsável pelos meus actos mas, por aquilo que dizem alguns jornalistas, já não poderei ser responsabilizado.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Não, Sr. Presidente, estava a referir-me ao PSD. Cada um interpreta como quer. Reportava-me ao PSD no Canadá, na Venezuela, no Brasil, na África do Sul, etc. E se citei a Comunicação Social é porque sei que nesses países o PSD é muito influente nos media...

Vozes.

O Sr. Presidente: José Magalhães.

Tem a palavra o Sr. Deputado

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, pretendo apenas observar que é público e notório que V. Exa. tem a ideia de que "a melhor maneira de chegar a uma conclusão e de discutir os problemas não é aumentar o número de decibéis nem dar murros na mesa". Excelente.

Bom era que fosse esse o critério do PSD, e nesta matéria não tem sido. De resto, a posição que o Sr. Presidente acaba, por sua conta e risco, de exprimir em relação a uma solução alternativa, a uma reformulação, a um caminho para outra solução que envolveria uma aceitação de exclusão dos casos de dupla nacionalidade tem sido verberada no exterior como "lesiva das mais lídimas aspirações das comunidades de emigrantes" que citou. Isto precisamente nos países em que esses casos de dupla nacionalidade são mais frequentes e em que a sua intervenção nos actos políticos das pátrias, a que pertencem de resto, está garantida!

A questão tem sido conduzida nesses termos que eu não poderia deixar de evocar aqui, porque eles me parecem, acima de tudo, caracterizados pelo murro na mesa e pelo decibel, que de forma nenhuma contribuem para que se possa reflectir acerca desta matéria, ponderando os diversos argumentos.

Portanto, iria ater-me sobre esses argumentos no sentido de que eles venham a ser objecto de algum aprofundamento na altura devida e pela forma própria.

Em primeiro lugar, quem analisar a intervenção que o Sr. Presidente acaba de fazer verificará que ele teve o cuidado de não abordar três ou quatro aspectos fulcrais para se poder ajuizar sobre esta matéria. Ajuizou e valorou, em termos que de resto são correctos, a natureza do acto electivo, a sua importância, a distinção decorrente do carácter unipessoal, e por aí adiante. Mas, já assim não se verificou quanto à questão da aplicação dos princípios eleitorais, designadamente quanto a todos os aspectos relacionados com a igualdade das candidaturas. Não me parece que esta seja uma questão subestimável ou arredável.

Segundo aspecto: o Sr. Presidente não abordou também...

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Por esse motivo, admite que os emigrantes residentes em países das Comunidades Europeias podem ser considerados à parte.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Deputado Sottomayor Cárdia, porque em relação aos países das Comunidades Europeias, como V. Exa. poderá verificar pedindo mais informações ao STAPE também há problemas bastante sérios, traduzidos, por exemplo, pelo envio ou pelas devoluções dos próprios boletins de voto. Por outras palavras, uma dicotomia estabelecida nos termos de "Nos países da Comunidade Europeia tudo vai bem e nos outros tudo vai mal" consistiria numa simplificação obviamente fora do seu espírito, mas, além disso, e mesmo que elaborada com mais rigor, seria sempre uma simplificação inaceitável.

De facto, não se verifica tal coisa, e o retrato da situação não permite que se faça um juízo benévolo quanto a isso. Por outro lado, essa dicotomia traduziria problemas de discriminação e de desigualdade de tratamento.

Em segundo lugar, o Sr. Presidente omitiu os aspectos relacionados com a segurança do voto. Não creio que se possam arredar esses aspectos dessa forma, designadamente porque dado o uso do voto por correspondência, sobretudo para uma eleição deste tipo, em

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que com um voto por correspondência se pode ganhar - com um voto por correspondência se pode perder, o problema não pode ser encarado nesses termos.

O Sr. Presidente: - Da excepcionalidade do voto por correspondência? V. Exa. seguramente não ouviu o que eu disse.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Presidente, a questão não é quanto à excepcionalidade, ou então não entendi rigorosamente aquilo que o Sr. Presidente disse.

O Sr. Presidente: - Não deve ter entendido.

O Sr. José Magalhães (PCP): - A não ser que o Sr. Presidente admitisse que poderia haver uma deslocação ao território nacional para exercer o direito de voto, facto que resolveria obviamente esse problema. Mas, isso não foi colocado a título nenhum em circunstância nenhuma. E deixaria em aberto todas as outras questões?

Nenhum dos Srs. Deputados do PSD aventou essa hipótese de deslocação e exercício de voto no território nacional mediante certas condições. Isso não foi aventado.

Por outro lado, o Sr. Presidente omitiu as questões relacionadas com a tão aludida "factura da diáspora", designadamente os aspectos relacionados com a famosa situação dos cem mil "portugueses"-chineses.

O Sr. Presidente: - O caso desses portugueses provavelmente resolve-se com o voto no território nacional.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Por último, o Sr. Presidente omitiu por completo as implicações do artigo 124.°, na vossa redacção, em articulação com o artigo 127.°, ou seja, a famosa hipótese do candidato do Ohio. Eu sei que se sete mil e quinhentos residentes resolverem propor a candidatura de um cidadão que reúna as condições adequadas, e esse cidadão resolver fazer uma campanha toda ele centrada na ideia de que deveriam participar no acto eleitoral os emigrantes portugueses de todo o mundo, isso colocará obviamente problemas, mas não é impossível.

Apenas o que não é possível neste momento, seria possível no cenário do PSD, era o candidato vindo do exterior. Não me parece que este seja, de todos os cenários e de todos os problemas enunciados, um que deva produzir uma verdadeira vertigem, mas a verdade é que a proposta suscita esse problema...

O Sr. Presidente: - Não me vai certamente tirar o sono.

O Sr.. José Magalhães (PCP): - ... e desconfio se realmente o Sr. Presidente poderá dormir tranquilo.

Estas seis questões não foram abordadas na intervenção do Sr. Presidente, mas merecem consideração. Estou certo de que a teremos amanhã.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados: reuniremos novamente amanhã, às 10 horas e 30 minutos. Está encerrada a reunião.

Era 1 hora e 20 minutos do dia seguinte.

Comissão eventual para a revisão constitucional

Reunião do dia 29 de Junho de 1988

Relação das presenças dos Srs. Deputados

Rui Manuel P. Chancerelle de Machete (PSD).
Carlos Manuel de Sousa Encarnação (PSD).
António Costa de Sousa Lara (PSD).
José Luís Bonifácio Ramos (PSD).
Luís Filipe Garrido Pais de Sousa (PSD).
Manuel da Costa Andrade (PSD).
Maria da Assunção Andrade Esteves (PSD).
Mário Jorge Belo Maciel (PSD).
Miguel Bento da Costa Macedo e Silva (PSD).
Rui Manuel Lobo Gomes da Silva (PSD).
António de Almeida Santos (PS).
António Manuel Ferreira Vitorino (PS).
Jorge Lacão Costa (PS).
José Eduardo Vera Cruz Jardim (PS).
José Manuel Santos Magalhães (PCP).
Miguel António Monteiro Galvão Teles (PRD).

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