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Sexta-feira, 14 de Outubro de 1988 II Série - Número 43-RC

DIÁRIO da Assembleia da República

V LEGISLATURA 1.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1987-1988)

II REVISÃO CONSTITUCIONAL

COMISSÃO EVENTUAL PARA A REVISÃO CONSTITUCIONAL

ACTA N.° 41

Reunião do dia 7 de Julho de 1988

SUMÁRIO

Finalizou-se a discussão do artigo 166.° e respectivas propostas de alteração e da proposta de artigo novo - artigo 166.°-A -, da autoria do PS.

Procedeu-se a discussão dos artigos 167.° a 169.º e respectivas propostas de alteração.

Durante o debate intervieram, a diverso título, para além do presidente, Rui Machete, pela ordem indicada, os Srs. Deputados José Magalhães (PCP), António Vitorino (PS), Costa Andrade (PSD), Nogueira de Brito (CDS), Maria da Assunção Esteves (PSD), Sottomayor Cárdia (PS), Carlos Encarnação (PSD), Almeida Santos (PS) e Miguel Galvão Teles (PRD).

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O Sr. Presidente (Almeida Santos): - Srs. Deputados, temos quorum, pelo que declaro aberta a reunião.

Eram 11 horas e 20 minutos.

Srs. Deputados, vamos continuar a discussão do artigo 166.°, relativamente à proposta de artigo 166.°-A, apresentada pelo PS.

Estavam inscritos a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves, que não está presente, e o Sr. Deputado José Magalhães.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Esta proposta do PS suscita múltiplas e tão diversificadas questões que me limitaria, nesta circunstância e neste preciso momento, a equacionar - mais sob forma de interrogação (complementar àquelas outras que ontem não foi possível desenvolver) do que sob forma de afirmação e de juízo valorativo - o conteúdo, o alcance e as implicações da posição do PS aqui resumida pelo Sr. Deputado António Vitorino.

Por um lado, o PS move-se nesta matéria em termos substancialmente idênticos àqueles que enunciaria nos inícios do processo de revisão. Estamos, no entanto, no mês de Julho e o secretário-geral do PS anunciou mesmo a sua disponibilidade para um acordo global sobre revisão constitucional até ao fim deste mês. Quer isto, portanto, dizer que não é, de facto, o mesmo o quadro em que esta proposta se move hoje, não é o mesmo o contexto. E a minha primeira pergunta, interrogação ou tópico de reflexão é: como é que o PS adequa o funcionamento de um instituto como o que agora desenha (não discutindo agora os seus contornos) com as alterações da realidade jurídica entretanto ocorridas? Serei mais preciso: no mês de Setembro, dirigentes do PS e o próprio secretário-geral do PS manifestavam a sua ideia política de que o processo de revisão e o processo de alteração de determinadas reformas legislativas estruturais deveriam ser simultâneos, concomitantes e articulados. Entendiam que não deveria haver a aprovação de qualquer lei-quadro das privatizações sem a reequacionação, na sede própria, das questões constitucionais por estas suscitadas. Esses processos deveriam articular-se de forma tal que as duas discussões corressem a par. Sabemos também, historicamente, qual foi a resposta do PSD a tudo isto: pressionar o avanço dos "pacotes", forçar conflitos com o Presidente da República e com o Tribunal Constitucional, utilizar a maioria ordinária à falta de maioria qualificada de dois terços, forçar o mais possível a delimitação dos espaços de penetração sem maioria qualificada, avançar sem pagar "portagem", reduzir ao mínimo o pagamento de "portagem" constitucional. A questão é que, neste momento, o PSD nem deixa claro qual o preço que está disposto a pagar pela "portagem" e o PS não é capaz sequer de fixar um patamar de recuo impreterível. Desse ponto de vista, a intervenção do Sr. Deputado António Vitorino tem pontos de dúvida, tem pontos de grande incerteza. E eu pergunto ao PS como é que encara, hoje, a articulação RC/PC (funcionamento da revisão constitucional e das paraconstitucionais), uma vez que várias peças que, aparentemente, poderiam qualificar-se como dignas de um processo especial de aprovação estão já em gestação ou até já produzidas e em avanço. Pergunto: a legislação a aprovar ao abrigo deste regime especial aplicar-se-ia em domínios em que já há legislação? A legislação existente nos domínios em que o Governo já legislou seria revista? Usando um exemplo que não choca tanto o PS (porque não diz respeito à constituição económica, mas sim ao estatuto da informação, o que talvez nos facilite o diálogo sobre isto): a legislação aprovada pela Assembleia em matéria, por exemplo, de concessão de frequências radiofónicas, e que deveria ser parte integrante de uma paraconstitucional, quanto àquilo que o Sr. Deputado António Vitorino definiu como princípios fundamentais, princípios estruturantes e expressões similares - essa legislação ficaria abrangida pelo novo regime, não ficaria abrangida pelo novo regime? Seria ela própria, a partir de agora, só alterável por maioria de dois terços, caso em que consolidaríamos as conquistas irreversíveis do PSD? Como é que o PS encara, em suma, a articulação entre o ilegítimo avanço no terreno do PSD e o avanço constitucional legitimador a posteriori?

Um segundo bloco de questões diz respeito aos critérios de escolha das matérias que devem constar da elencagem do artigo novo cuja consagração o PS propõe. O Sr. Deputado António Vitorino teve ocasião de definir as finalidades deste instituto, sublinhando as vantagens e as virtualidades desta técnica de reenvio para "aliviar a Constituição", sem deixar de estabelecer alguma medida de protecção residual das disposições transfegadas. Isso envolve riscos de desvalorização do conteúdo preceptivo da Constituição e, digamos, do programa constitucional e alarga, correspondentemente, a esfera deixada livre à iniciativa dos programas do Governo conjunturais. O Sr. Deputado não avançou, porém, excessivamente na explicitação das razões pelas quais o PS exclui desse esquema determinadamente - aí é realmente determinado! - matérias relacionadas com o sistema económico. O PS teve mesmo ocasião de definir como "bastante diferentes", na filosofia, nos princípios inspiradores e nas implicações, as leis "paraconstitucionais" e os mecanismos que prevê para substituir o actual artigo 83.°, n.° l, da Constituição. O Sr. Deputado António Vitorino teve mesmo o cuidado de sublinhar que, embora o pressuposto de aligeiramento da Constituição seja sempre o de que as leis que o operem ou que com ele estejam concatenadas sejam aprovadas por dois terços, o PS não confunde leis sobre matérias económicas e leis que constam do elenco do n.° 2 do artigo 166.°-A, elenco esse amovível, que "pode ter mais matérias" ou "menos matérias" do que as que lá estão e matérias "diferentes" (foi mais ou menos assim que o Sr. Deputado António Vitorino definiu o elenco!). No entanto, uma coisa foi clara: nesse elenco não cabe qualquer outra matéria, não cabe a reforma agrária, não cabe o planeamento, nem nacionalizações, em suma: nada em matéria de organização económica! Sucede que, em relação às matérias respeitantes à organização económica, o PS, por acréscimo, tem um entendimento revisivo do artigo 290.°, alínea f). Ora não somar estes dois dados, isto é, olhar a revisão em curso deixando de olhar o futuro da Constituição e, portanto, a estabilidade do regime desse ponto de vista, no que diz respeito ao âmago do sistema económico, seria uma visão desprevenida, ingénua ou então deliberada, mas

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num sentido do qual, naturalmente, discordamos de modo frontal. Parece-nos que o PS deveria aprofundar o debate sobre estes pontos cruciais.

Terceira interrogação: é sabido que o Sr. Deputado António Vitorino dedicou um especial cuidado e empenhou-se particularmente em procurar definir os critérios que nos possam permitir uma noção rigorosa do que sejam leis paraconstitucionais. Definiu-as, primeiro, pelos critérios de escolha do elenco, a seguir, pelos especiais requisitos processuais e, depois, pelas sequelas da sua criação no ordenamento jurídico, concretamente pelo seu particular vigor jurídico. Quanto aos critérios de identificação, já pude sublinhar as nossas apreensões; quanto à tramitação processual, incluindo aqui também a questão dos requisitos para a maioria de aprovação e outros aspectos de tramitação, designadamente a votação em Plenário, que era algo que constava da proposta originária do PS e a que ontem o Sr. Deputado António Vitorino, salvo grande distracção minha, não fez referência...

O Sr. António Vitorino (PS): - Ou minha!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Ou de ambos, neste caso, então... Seria bom saber em que se fica quanto às características desse regime especial. Por outro lado, o regime de prevalência e a capacidade parametrativa das leis paraconstitucionais acarretam melindrosos problemas. Gostaria de procurar suscitar algumas pistas de reflexão sobre esse ponto.

Primeiro aspecto: quanto à maioria qualificada de aprovação,- a questão que aí se coloca é a de saber se a proposta é para valer ou se a proposta é para ceder. Digo isto com toda a frontalidade, porque o PS estabeleceu um diálogo privilegiado com um pólo negociai cuja posição é, sobre este aspecto, conhecida e terminante. Aquilo que o Sr. Ministro Fernando Nogueira tem vindo a dizer no exterior (e no interior, suponho eu) sobre as leis paraconstitucionais quanto a este seu aspecto característico é: "Nem pensar!" O seu argumento básico assenta numa determinada reflexão sobre o princípio da maioria. O PSD vê na proposta do PS um atentado ao sacrossanto princípio da maioria. É evidente que há neste raciocínio algo de profundamente invertido, desde logo porque distorce o terreno do debate: estamos a debater a Constituição, estamos a debater um texto cuja característica é precisamente o facto de ser especialmente estável, de não ser uma lei como as outras, e o PSD desejaria a eliminação de aspectos fulcrais dessa lei que não é como as outras para poder tratá-la como se fosse uma lei como qualquer outra, violando os limites materiais de revisão e ficando imune a quaisquer regras de conjugação de esforços para alterar a Constituição.

Ó PSD arroga-se, no fundo, uma espécie de "quase-poder" constituinte por maioria ordinária, a partir desta revisão constitucional. Quer que o PS aceite suprimir aspectos da Constituição que representam limitações ao livre arbítrio das maiorias, mas não aceita que as leis que passem a regular tais matérias tenham de ser aprovadas por dois terços. Não quer menos do que poder aprová-las com a sua maioria. A questão é, obviamente, a de saber se há da parte dos outros partidos com assento nesta Comissão e nesta Câmara disponibilidade para, doravante, aceitar fazer tábua rasa da Constituição em matérias fulcrais.

Havendo esta contraposição de atitudes, a questão consiste em saber o que é que prevalece, se a defesa da Constituição, se a aceitação da sua alteração ou da sua "descarga" - para utilizar a expressão igualmente usada pelo Sr. Deputado António Vitorino - sem dois terços. Tanto quanto eu percebi, o Sr. Deputado António Vitorino foi particularmente terminante em afirmar a incindibilidade destes dois aspectos: "descarga", por um lado, e maioria de aprovação por dois terços para alteração dos regimes jurídicos correspondentes - não todos os regimes jurídicos correspondentes, apenas as regras gerais, mas, de qualquer das formas, dois terços para as regras gerais.

Mas o PSD, repito, diz não. E então, pode colocar-se a questão de saber se, assim como "a mulher é o futuro do homem" (lá dizia o poeta), "as leis orgânicas são o futuro das leis paraconstitucionais", isto é, se, no fundo, o CDS é o futuro do PS, se Freitas do Amaral é o futuro de Vítor Constâncio ou se não haverá, verdadeiramente, nesta lógica do PS (que não é a nossa) o caminhar para uma solução de "descarga" sem garantias em vez de uma "descarga" com garantias. Aparentemente, a única hipótese que o PS não considera é a "não descarga" dos aspectos fundamentais da lei fundamental, que, como é óbvio, é susceptível de ser revista nesses pontos, mas sem descarga e, evidentemente, sem afectação do núcleo essencial da Constituição. Podemos, obviamente, discutir em que é que consiste esse núcleo essencial e, pela nossa parte, ao contrário daquilo que os Srs. Deputados do PS frequentemente gostam de fazer, não nos arrogamos o poder de, ao milímetro, ditar os respectivos contornos e fronteiras.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Era o que faltava também!

O Sr. José Magalhães (PCP): - "Era o que faltava também", como qualquer pessoa sensata bem pode perceber, embora, por vezes, tal imputação surja no quadro de uma argumentação que visa secundarizar a gravidade da postura em que o PS se coloca quanto a isto.

Recoloco a interrogação fundamental: esta segunda característica das leis paraconstitucionais tal qual o PS as imagina (ou seja, a maioria qualificada especial de aprovação) é uma característica inarredável ou uma característica arredável? Em segundo lugar: uma eventual arredabilidade relativa pode ocorrer por pura supressão ou por via de uma espécie de acto de contornar a exigência? Seja. O PS diz: "O que é fundamental é que haja dois terços aqui." Mas alguém poderá obtemperar que deva haver dois terços mas não no momento originário e sim num momento ulterior, por exemplo, num momento de eventual necessidade de reapreciação por força de veto presidencial ("façamos intervir aqui um outro órgão de soberania, não demos a nenhum partido ou a nenhum grupo de forças o poder de, originariamente, intervir nisto"; "peça-se a intervenção de mediação de um árbitro antes de assegurar a reapreciação por maioria qualificada"). Só que isto implicaria um determinado projecto ou uma determinada conjecturação do que possa ser, por um lado, o conspecto dos órgãos de soberania e, por outro, a sua atitude potencial nos diversos quadros que são imagináveis - e muitos são.

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Seria bastante interessante que soubéssemos qual é a posição do PS face a essa situação, que é complexa. Não é, realmente, de linear congeminação, sobretudo sabendo-se que o PSD tem, também ele, uma lógica que reedita a famosa consigna "Governo, Maioria, Presidente" que já deu, na vida política portuguesa, episódios de extrema gravidade, que não devem ser esquecidos. Satisfaz-se o PS com um regime como o que descrevi?

Ontem à noite, num programa televiso, o Prof. Freitas do Amaral aludia ao papel cada vez mais importante do CDS na revisão constitucional (coisa que eu atribuo a uma falta de informação pessoal sobre os trabalhos da CERC!). Creio, em todo o caso, que pretendia sublinhar que o ponto de encontro entre o PS e o PSD poderia estabelecer-se em torno da proposta do CDS de instituição de uma figura diversa das leis paraconstitucionais.

O ponto de encontro entre o PSD e o PS seria, não aquilo que o Sr. Deputado António Vitorino, com desvelos de pai, aqui desenhou ontem, mas aquilo que o Prof. Freitas do Amaral, numa atitude de padrasto (uma vez que o projecto de revisão constitucional do CDS não foi da sua autoria), assumiu como sendo aceitável, isto é, as leis orgânicas. Mas, a ser assim, o facto seria da maior das gravidades! Seria da maior das gravidades porque o terceiro elemento característico das leis paraconstitucionais - o Sr. Deputado António Vitorino seguramente vai aprofundar esse ponto- é a definição da sua exacta natureza, dos seus contornos, no fundo, da sua densidade normativa (que creio ser a expressão mais rigorosa para caracterizar aquilo que o Sr. Deputado António Vitorino ontem aqui nos desenvolveu). Qual a densidade normativa das "pcs"?

O Sr. Deputado António Vitorino e o PS não usaram nenhum conceito doutrinariamente estabelecido. Quiseram inovar. A inovação não é, em si mesma, não meritória, mas sucede que podiam ter recorrido ao conceito estabelecido (mesmo ele sujeito a algumas incertezas) de lei-quadro; podiam ter usado o conceito de lei de bases, por exemplo - mas não! Quiseram criar alguma coisa, que o Dr. Vitorino reconheceu estar sujeita a uma dupla dificuldade interpretativa: primeiro, o parto doloroso da hermenêutica da concepção (na Assembleia da República, teriam os partidos que se entender sobre qual devesse ser o exacto limiar, a exacta espessura ou densidade normativa da lei paraconstitucional), e, num segundo momento, até, em caso de desconforto de algum dos parceiros, o próprio Tribunal Constitucional teria de se pronunciar sobre se dada lei "pc" pêra mesmo "pc", ou se era uma falsa "pc"; e se tinha ou não tinha suficiente densidade, se deixava de fora alguma matéria que devesse estar dentro; e se deixava, em termos de malha normativa, insuficientemente tratada alguma matéria que devesse ser mais intensamente tratada...

Tudo aquilo que nós discutimos ao longo já de muitos anos (na sequência, até, dos aperfeiçoamentos introduzidos pela primeira revisão constitucional) sobre as autorizações legislativas (para apurar exactamente a definição correcta e cabal do que seja o respectivo objecto, sentido e extensão) poderíamos ver transposto, de forma ainda mais melindrosa e difícil de precisar (veja-se a jurisprudência do Tribunal Constitucional neste ponto), para a problemática nova das paraconstitucionais. Pior ainda: ao contrário das autorizações legislativas, que só podem, situar-se no âmbito que a Constituição hoje traça, dentro dos limites e com todas as regras de conformação da Constituição, as paraconstitucionais "descarregariam" aspectos nucleares do próprio texto constitucional! Não estaríamos a discutir apenas questões de desenvolvimento legislativo, não estaríamos a mover-nos apenas no terreno e dentro das fronteiras da Constituição: estaríamos a discutir exactamente as fronteiras entre a Constituição e a lei ordinária, estaríamos, no fundo, a discutir a dimensão e os contornos do próprio texto constitucional! Em suma: estaríamos a discutir a questão, que tanto obceca o PSD e, em particular, o Primeiro-Ministro, de saber se a nossa "Constituição máxima", tal qual ele a imagina e detesta, não poderia converter-se, por dietas sucessivas, em "Constituição mínima". Tudo isto poderia ser feito à revelia das regras constitucionais prescritas, com preterição dos próprios limites materiais de revisão, em pontos fulcrais, uma vez que o PS, embora "só" altere a alínea f) do artigo 290.°, ao fazê-lo abre um precedente enorme. Esse precedente enorme é que, se substituirmos a alínea f) do artigo 290.°, podemos com isso viabilizar não só ulteriores propostas de supressão de outros limites materiais de revisão, como até de fraude aos limites materiais de revisão, nos pontos em que não sejam tangidos pela revisão propriamente dita.

Creio que este aspecto, o da densidade normativa das "paraconstitucionais", podendo afigurar-se prima fade como menos importante do que o aspecto da maioria qualificada especial de aprovação, é também fundamental para podermos medir as implicações da operação jurídico-normativa e política proposta pelo PS. Isto se o PS não se tiver disposto a recuar a tal ponto que todos estes limites se esfumem, numa senda de desconstitucionalizações sem limites...

Quanto às outras questões, relacionadas com o vigor jurídico, com a separação de águas, com as dimensões do pluralismo das fontes normativas (com o que isso significa, em termos de separação e interdependência de poderes no quadro do nosso sistema constitucional), devo dizer que o risco da operação (tal qual o PS a desenha e, sobretudo, tal qual pode aprestar-se a reconverter as suas posições, face ao veto do PSD) é o de governamentalização sucessiva e sistemática. Não se trataria "só" de transferência de matérias constitucionais para a lei ordinária, como de devolução ao próprio Governo de poderes nessa matéria, através, por exemplo, da continuação (basta isto) da prática perversa do abuso das autorizações legislativas ou (o que é equivalente) da aprovação pela Assembleia da República de leis vagas ditando ao Governo as soluções em sede de "regulamentação" ... E então teríamos, não apenas uma transferência da Constituição para a lei ordinária, dita paraconstitucional, como para uma lei paraconstitucional ínfima, ou mínima, com o desenvolvimento legislativo por maioria ordinária e, eventualmente, até, por autorização ao Governo - uma vez que o PS não tem a garantia de que o PSD aceite que fiquem na área de reserva.

O Sr. António Vitorino (PS): - Isso era um terrorismo total.

O Sr. José Magalhães (PCP): - O Sr. Deputado António Vitorino não nos dá a mínima garantia de que

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o PSD não vá por aí. Aliás, não aludiu sequer a este aspecto na sua intervenção. Suponho que não o fez, não porque esteja descansado, no fundo da sua alma, quanto a esse ponto, mas porque, porventura, talvez não lhe competisse suscitar esta questão. Talvez nos competisse a nós...

O Sr. António Vitorino (PS): - Basta saber direito, e direito constitucional (o que é manifestamente o seu caso), para ver que só nas matérias do artigo 168.° é que há autorização legislativa - sejamos rigorosos!

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Todos os argumentos valem, essa é que é a verdade!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, nem todos os argumentos valem.

O Sr. António Vitorino (PS): - Mas, pelos vistos, para si valem. E esse é um caso típico.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não! Para mim não valem, como verá, Sr. Deputado António Vitorino. Creio que a sua reacção é compreensível, dado o melindre da matéria, mas, sendo compreensível, não é justificada.

O Sr. António Vitorino (PS): - O que é melindroso, isso sim, é tudo o que disse antes, até aqui: neste caso, em meu entender, a observação que faz é que é inadequada - só reagi a esta última observação porque acho que não tem cabimento nenhum, já que a mera leitura do projecto resolve a dúvida que colocou. Quanto às outras questões que levantou, respondo-lhe com muito gosto: mas esta é, para já, uma mera questão de leitura, e se o interrompi foi só para não avançar excessivamente num domínio onde é relativamente evidente que não tem razão.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Nada pior do que fazer uma polémica num terreno onde ela não se trava, abandonando o terreno onde ela se deve discutir! O PS inclui no artigo 167.° da Constituição, no seu projecto de revisão constitucional (que é coisa diferente da lei de revisão constitucional, uma vez que depende de discussão política na Câmara e depende do assentimento de todos os partidos, em particular, e no caso concreto, do PSD), apenas mais as seguintes matérias: estatuto dos titulares dos órgãos de soberania, estatuto das autarquias locais, regime da organização financeira e administrativa dos serviços de apoio do Presidente da República e da Assembleia, segurança interna, sistema de informações, definição dos sectores económicos básicos nos quais é vedada a actividade a empresas privadas e outras entidades da mesma natureza. Quer isto dizer: primeiro, que não ficam incluídas matérias que entendemos fulcrais no domínio da constituição económica. Isso, no nosso projecto, não seria grave, porque não propomos a descarga: como se viu, não colocamos no artigo 167.° matérias relacionadas com a constituição económica, só que não pressupomos a descarga e VV. Exas. pressupõem - é diferente. O PS não inclui nenhuma dessas matérias da constituição económica - o que quer dizer que, nessas matérias, regeria o artigo 168.°

O Sr. António Vitorino (PS): - Isso é uma fuga para a frente, colateral e titubeante! Não foi esse o problema que V. Exa. colocou; o problema que colocou (se calhar, percebi mal, pelos vistos; fico tranquilo) foi que o projecto do PS parecia indiciar que nas matérias de leis paraconstitucionais podiam caber autorizações legislativas. Foi essa a observação que o Sr. Deputado José Magalhães fez e a essa respondo: é falso, não cabe! A mera leitura do projecto de revisão do PS permite-lhe concluir que a sua observação não tem, de facto, nenhuma razão de ser.

Quanto à segunda questão que acabou de levantar agora, mais uma vez não tem razão. O que me apetece perguntar é: quais são as matérias de organização económica que estão hoje no artigo 167.°, reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República, que o PS de lá retira? Quais são essas matérias, que o Sr. Deputado José Magalhães tão angustiadamente antevê que o PS passa a colocar na livre disponibilidade do Governo? Nenhuma! Nem todos os argumentos valem, Sr. Deputado José Magalhães. V. Exa. pode fazer o discurso político, a propósito das propostas do PS, que muito bem entender, e pode até servir-se de argumentos falsos, de não argumentos, ou de argumentos inexistentes. Simplesmente, tem de assumir a responsabilidade pela forma como argumenta. Admito que se diga tudo, que se façam todas as críticas, sob o ponto de vista político; mas que se falseiem as propostas, que se deturpe o seu próprio significado escrito, parece-me ser um convite ao corte do diálogo. Se é isso que o Sr. Deputado José Magalhães pretende, assuma, mas não o faça encapotadamente.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, deseja continuar?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, recebi uma mensagem urgente, exterior, o que quer dizer que, neste momento, estou sob dois fogos: o fogo externo e o fogo do Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. Presidente: - Além do fogo interior! Tem a palavra, Sr. Deputado.

O Sr. José Magalhães (PCP): - O Sr. Deputado António Vitorino joga com uma escala móvel. Não lhe vou censurar isso, nem vou utilizar o mesmo argumento, queixando-me da sua falta de punhos de renda, elegância, métodos ad terrorem. Não vale a pena! Deixemo-nos dessas coisas nesta matéria, porque não são necessárias.

A primeira observação que fiz, e faço e refaço (VV. Exas. terão paciência, farão o diálogo que entenderem, cortarão o diálogo, se o entenderem, mas entendo que nesta matéria tem de se usar de toda a frontalidade e de toda a transparência), é a seguinte: o elenco do PS para as paraconstitucionais é questionável; a ideia é questionável em si, ou oferece as dificuldades que procurei, humildemente, arrolar e o PS não dilucidou. Em segundo lugar, o elenco é questionável porque o PS, por um lado, não mete lá certas coisas, por outro, tem lá coisas que está disposto a tirar. Isto é evidente, o Sr. Deputado António Vitorino o disse! Portanto, por favor, não agarre no elenco do PS do artigo 166.°-A para me dizer, com ar terminante, que "jura que lá está tudo o que está no artigo 167.°", e

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que é "terrorismo", para não dizer "desonestidade" e "fraude intelectual imperdoável", em termos jurídico-constitucionais, dizer o contrário. Porque não pode dizer isso! Não pode dizer isso porque V. Exa. não tem um elenco fixo - tem um elenco móvel! O elenco final depende do PSD! Portanto, não pode dizer, como se tivesse um dogma em cima, que aquilo que está no artigo 167.° é para estar e que é "inarredável" - porque V. Exa. começou por dizer que não é inarredável! Logo, não há garantias de que não possa vir a verificar-se perversão governamentalizante...

O Sr. António Vitorino (PS): - Eu não disse isso. Tenho muita pena, mas não posso passivamente assistir a uma tentativa fruste de deturpação do que eu disse. Se o Sr. Deputado José Magalhães se incomoda pelo facto de eu assinalar que há certos argumentos seus que não têm o mínimo de base de sustentação no texto da nossa proposta e nas minhas declarações, V. Exa. ficará agastado, mas não pode impedir-me de protestar veementemente contra a deturpação objectiva e intencional que está a fazer da nossa proposta.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Resumo e concluo, porque este é um dos pontos fulcrais. Deturpação? Respondo: "Não!" Não há deturpação nenhuma! Neste sentido exacto, aliás, é bom que a discussão se faça, nesse terreno, ponto a ponto, porque estamos a discutir alíneas. E simples, qualquer pessoa faz um cotejo; faça-se um cotejo e logo se verá o que está dentro e o que está fora. Eu digo faça-se esse cotejo com a seguinte dupla menção na entrada desse dantesco inferno: "tudo o que lá está, pode não estar" e "coisas que lá não estão, podem estar"! É com essa flexibilidade (ou flexibilidade) que o PS se move no universo das paraconstitucionais. Primeiro, exclui à partida uma série de coisas: tudo o que diz respeito aos meios e formas de expropriação e nacionalização dos meios de produção e solos por motivo de interesse público, bem como critérios de fixação de indemnizações, está no artigo 168.° - não está nas paraconstitucionais, não está no regime das paraconstitucionais, não é paraconstitucional. E isso é "só" a constituição económica!

O Sr. António Vitorino (PS): - E onde é que está hoje?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas hoje não tem de estar, pela razão simples de que não há "descarga" constitucional - há Constituição! É óbvio, Sr. Deputado António Vitorino! Esse vosso tipo de mistura não deve poder fazer-se. O PS não está a realizar uma operação insindicável, do ponto de vista ético-constitucional - que foi aquilo que V. Exa. começou por invocar (não se amalgame isso também!).

Segundo aspecto: um dos grandes mistérios das paraconstitucionais do PS é se há (isso irritou muito o Sr. Deputado António Vitorino) paraconstitucionais "de plástico" e há paraconstitucionais "de bronze", isto é, se há paraconstitucionais "para encher o olho" e há paraconstitucionais "para valer" (quais são as de plástico e quais são as para valer?). É preciso realmente tocá-las, para ver se fazem eco ou soam a oco, para tentar distingui-las! Pelos vistos, há paraconstitucionais ocas e paraconstitucionais cheias e, mesmo as cheias, podem ter pequeno conteúdo, como se viu, podem ser meros princípios gerais, etéreos, diáfanos. Por exemplo, o estatuto da informação, Sr. Deputado António Vitorino, ubi? Onde está o estatuto da informação?

O Sr. António Vitorino (PS): - Está numa alínea do artigo 166.°: na alínea g) do n.° 2 do artigo 166.°

Pausa.

Não está? Está, está. É aí que está! Mas já lhe respondo. Aliás, queria dizer-lhe que não estou irritado, só me irritei duas vezes na vida; uma tinha três anos, outra foi há pouco tempo, mas não foi com o Sr. Deputado José Magalhães. Pode estar tranquilo.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Se esta fosse uma questão de irritação, era simples de resolver, por meios químicos. A nossa preocupação em relação a isto é precisamente a que decorre daquilo que enunciei e, sobretudo, esteia-se no facto de todos os pressupostos que o PS enunciou até agora serem objecto de sindicação, para não dizer de recusa global do PSD. E se o futuro das paraconstitucionais fosse o Prof. Freitas do Amaral, isto é, as leis orgânicas desmanteladas, então bem se poderia dizer que a substituição do coração da constituição económica e a alteração de aspectos fundamentais do regime democrático passariam a ser devolvidas ao partido no Poder. Creio que essa seria, de todas, a pior solução e cremos que as graves responsabilidades democráticas que isso implica são de molde a exigir um grande, grande aprofundamento da reflexão.

O Sr. Presidente: - Creio que os Srs. Deputados inscritos não se importarão de que o direito de resposta seja exercido com prioridade sobre o direito de inscrição, caso contrário perderá sentido a continuidade do debate.

Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Onde eu esperava, apesar de tudo, que o Sr. Deputado José Magalhães fizesse uma intervenção política, definitória da posição do PCP sobre a proposta das paraconstitucionais, naquilo que, eventualmente, lhe encontrasse de virtude e no muito que, decerto, lhe encontrasse de defeito, acabou por sair uma intervenção que se pode sintetizar, simpaticamente, como uma circundante perscrutação das tácticas negociais do PS, de eventuais acordos forjados é ocultos e até da definição de fasquias de recuo neste processo das paraconstitucionais. O Sr. Deputado José Magalhães não fez uma intervenção para contribuir para o debate da revisão constitucional; fez uma intervenção que, em termos jurídicos, poderia ser qualificada como uma providência cautelar, tendo em vista, através de uma jogada de antecipação sobre a definição dos limites negociais do PS e do PSD nesta matéria, marcar alguns pontos, que lhe servirão para serem invocados daqui a um, dois, três ou quatro meses, quando houver um acordo global de revisão da Constituição e houver uma lei de revisão da Constituição. É, nesse aspecto, uma mera atitude táctica, que representa e define uma forma legítima de participar no debate que nós compreendemos. Posição do PCP sobre as leis paraconstitucionais não tivemos, porque provavelmente o PCP não a tem, mas verificou-se, sim, uma tentativa de desviar o debate sobre o sentido da pro-

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posta das leis paraconstitucionais do PS para a relevância da proposta do PS na revisão constitucional em função do acordo global, tentando vincular-nos a compromissos sobre se as leis paraconstitucionais são para nós grau 10 da escala de Richter ou se são grau 8. Quais são as paraconstitucionais de bronze e as de borracha, as de plástico e as de fibra sintética, etc.? É uma táctica como outra qualquer, mas, pela nossa parte, nós continuamos empenhados em discutir mais a valia ou não valia da proposta em si do que o seu valor negociai, porque a revisão da Constituição não se esgota num negócio. E mesmo as proposta que esta revisão não acolher são importantes para o futuro do Estado de direito democrático, são importantes para futuras revisões constitucionais. São relevantes as atitudes de princípio que se tomem nestes debates.

O Sr. José Magalhães (PCP): - A quem o diz!

O Sr. António Vitorino (PS): - Quando neste debate se pretende reduzi-lo a uma perscrutação da barganha negociai apenas, como o Sr. Deputado José Magalhães faz, está a querer colocar o debate no terreno em que o PCP se move mais facilmente, mas compreenderá e terá de aceitar que o PS não o acompanhe, porque não é esse o terreno que nós entendemos que neste momento sobreleva. O que está em causa é a defesa, com a nossa humildade, com as nossas insuficiências, da nossa própria proposta e ouvirmos o que todos os partidos têm a dizer sobre ela. Entendemos que a eventual consagração das leis paraconstitucionais na revisão da Constituição não depende apenas da vontade do PS, mas também do grau de aceitação e de força política que os outros partidos possam fazer neste debate em prol da nossa própria proposta, daquilo que ela tenha de positivo, ou alertar para aquilo que eventualmente tenha de negativo e que mereça correcção. Não vale a pena o Sr. Deputado José Magalhães excluir-se deste debate e fazer de Catão dizendo, ou alertando apenas, os perigos que a proposta tem. Não vale a pena, porque não é essa a forma que nós esperávamos fosse a contribuição do PCP para este debate, bastante relevante, que é o da discussão das leis paraconstitucionais. Não reconhecemos ao PCP, nem ao Sr. Deputado José Magalhães, a vetustez de um Catão, e naturalmente confiávamos mais que fôssemos persuadidos e vencidos pelo brilhantismo de um Cícero.

Quanto às questões que, em concreto, o Sr. Deputado José Magalhães colocou: o problema da articulação entre as leis paraconstitucionais e as "conquistas irreversíveis do PSD" entretanto adquiridas em matéria de leis ordinárias que versem sobre assuntos que cabem no elenco do artigo 166.°-A da Constituição. Parece-me evidente que construímos esse elenco não em função das leis que existiam à data em que elaborámos o projecto de revisão constitucional, mas em função daquilo que consideramos ser verdadeiramente estruturante do Estado de direito democrático. Seleccionámos um conjunto de matérias que nos pareceram que tinham essa característica sob o ponto de vista material. Já tive ocasião de reconhecer que não estamos convictos de que sejam apenas estas, ou de que sejam todas estas, porque o que é estruturante também tem a ver com os diferentes entedimentos que as forças políticas têm daquilo que deve ser consensualmente considerado estruturante num Estado de direito democrático. Para nós, é claro que o PCP entende que o que é estruturante do Estado de direito democrático é a constituição económica.

O Sr. José Magalhães (PCP): - É um aspecto básico...

O Sr. António Vitorino (PS): - Naturalmente que é uma visão que tem uma raiz marxista sobre a dominância da infra-estrutura, sobre a organização da superestrutura. Corresponde a uma determinada concepção que esteve presente nos debates na Assembleia Constituinte, onde se defendeu que se deveria antepor ao título dos direitos, liberdades e garantias e ao título da organização do poder político o título da organização económica. Naturalmente dentro dessa concepção marxista-leninista é evidente que qualquer subalternização do peso relativo da constituição económica no conjunto do edifício constitucional constitui uma diminuição do conteúdo e da identidade da Constituição, tal como o PCP a interpreta e entende. Compreendo perfeitamente essa posição do PCP; é uma posição que não é acompanhada por mais ninguém, na medida em que todos os outros partidos nas suas propostas, quando se debruçam sobre a necessidade de conferir especial dignidade a alguns normativos ordinários, colocam e acento tónico na organização do poder político e na proibição de restrições dos direitos, liberdades e garantias. São duas concepções diferentes, ninguém é detentor da verdade absoluta!

Quanto à questão que colocou sobre a compatibilização entre as leis paraconstitucionais e as leis ordinárias...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Já agora que está com uma preocupação de esclarecimento, gostava de dizer que a minha observação relativamente à articulação entre as paraconstitucionais e "as conquistas irreversíveis" do PSD não era tanto essa (embora seja elucidativo o que acabou de dizer, e não comento nesta sede). Tentei apurar como é que o PS articulava a sua proposta com o devir histórico. Sucede que uma coisa era propor-se no início, em Outubro, a elaboração simultânea e concomitante de paraconstitucionais e da Lei de revisão constitucional e a situação com que VV. Exas. se deparam neste momento. Já há matérias, já há, em diversos domínios, legislação que caberia na definição que o PS dá de paraconstitucionais. O que é que faz à Lei da Rádio? Só poderia ser alterada a partir de agora por dois terços?

O Sr. António Vitorino (PS): - Creio que o único exemplo que pode dar é exactamente o da Lei da Rádio, não há mais nenhum.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto, porque VV. Exas. excluem tudo o que é económico das paraconstitucionais.

O Sr. António Vitorino (PS): - É óbvio.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Portanto, VV. Exas. entenderiam que não haveria sequer programa privatizador aprovado por paraconstitucional. A vossa noção nem abrange isso.

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O Sr. António Vitorino (PS): - O programa privatizador está protegido por uma norma de dois terços, mas não enquanto lei paraconstitucional. Essa é uma divergência entre nós os dois, não vale a pena ter ilusão, nem escondê-la. Nós entendemos que o regime das privatizações deve estar sujeito a uma lei-quadro aprovada por dois terços e fizemos essa proposta no artigo 83.° da Constituição. Só que clarificámos na altura própria que não entendíamos que essa lei-quadro fosse uma lei paraconstitucional, porque não cabe no nosso critério de leis paraconstitucionais, não cabe no critério sobre leis estruturantes do Estado de direito democrático, tal como as entendemos. Se entendêssemos que matérias desse género cabiam no conceito que perfilhamos de leis estruturantes do Estado de direito democrático tínhamo-las posto no artigo 166.°-A, tal como fizemos com as demais leis paraconstitucionais. Mas não; adoptámos uma norma específica para o problema das privatizações no artigo 83.° da Constituição. São níveis distintos e graus distintos de entendimento do valor que os respectivos instrumentos normativos têm para a consolidação do Estado de direito democrático no seu conjunto.

O Sr. José Magalhães (PCP): - E quanto à articulação da Lei da Rádio, neste caso concreto? E os outros exemplos que venham a verificar-se?

O Sr. António Vitorino (PS): - Quanto a essa questão, o nosso entendimento já foi suficientemente explicado aquando do debate do artigo 39.° da Constituição. Entendemos que o licenciamento das rádios e das televisões deve ser feito por uma alta autoridade e que essa alta autoridade deve ser criada na Constituição, deve ter a sua composição ou parte dela definida na Constituição, e nesse sentido a entrada em vigor da lei de revisão constitucional nos termos que propomos no nosso projecto- revogaria a Lei da Rádio. Neste contexto, o restante elenco das matérias paraconstitucionais não está sujeito a nenhum dos problemas de articulação que o Sr. Deputado José Magalhães colocou, na precisa medida em que os normativos que hoje estarão em vigor são aqueles quê estiverem em vigor à data da vigência da lei de revisão. Podia colocar o problema do referendo local, que é o único que está in itinere, pois há um processo legislativo em curso de aprovação da lei do referendo local nesta Assembleia da República, mas, obviamente, sobre essa questão entendemos que o resultado é o mesmo, isto é, uma vez entendido que a lei do referendo local, se eventualmente vier a ser aprovada ou entrar em vigor antes da entrada em vigor da revisão da Constituição, terá de ter as normas transitórias adequadas para permitir que não se consolidem factos consumados que não estejam protegidos por uma maioria qualificada de dois terços, de acordo com a lógica da nossa proposta.

O Sr. José Magalhães (PCP): - E o contrário também sucede? A legislação em vigor nesses domínios só poderá ser alterada por maioria qualificada de dois terços?

O Sr. António Vitorino (PS): - Exactamente. Já agora esclareço por que digo isto em relação à legislação em vigor, porque, se se der ao trabalho de verificar quais são as matérias que estão em vigor, verificará que, com excepção da alínea d), "associações e partidos políticos", que foi matéria objecto de decreto-lei de governos provisórios em 1974, todas as outras foram objecto de legislação que obteve já a maioria de dois terços de aprovação. A maioria que no passado elaborou as leis referentes a estas matérias já foi uma maioria qualificada de dois terços em todos os casos.

Relativamente à questão dos critérios de escolha das matérias, supunha que ontem tinha ficado claro que a proposta do PS não tinha como objectivo proceder a qualquer desvalorização do programa constitucional, alargando a esfera dos programas de Governo conjunturais. Parece que não ficou claro, o Sr. Deputado José Magalhães acusou disso hoje a proposta, e reafirmo que não é essa a intenção da proposta do PS. Fomos tão cautelosos no sublinhar disso que, mesmo propondo leis paraconstitucionais no artigo 166.°-A sobre um conjunto de matérias que poderiam permitir uma certa descarga da Constituição, em nenhum sítio da Constituição fizemos essa descarga em concreto. Em nenhum sítio do nosso projecto encontra a descarga de qualquer preceito da Constituição em matéria paraconstitucional, antes pelo contrário, em alguns casos até alargámos o seu âmbito em sede constitucional. Veja, por exemplo, o artigo 108.° do nosso projecto de revisão, onde alargámos as regras sobre a elaboração do Orçamento do Estado, constante do artigo 108.° da Constituição, sem prejuízo de considerarmos que a lei paraconstitucional referida na alínea h) é a Lei de Enquadramento do Orçamento do Estado e que, portanto, a ser aceite o princípio da Lei do Orçamento do Estado por dois terços, poderíamos verter para essa lei algumas das regras que estão hoje na Constituição. Simplesmente, quisemos tornar muito claro que há uma ligação indissociável entre estes dois momentos, e tornámo-lo tão claro que não fizemos nenhuma descarga do programa constitucional a benefício de inventário da criação das leis paraconstitucionais. Não há nada no nosso projecto que possa ser identificado como diminuição do programa constitucional em benefício das leis paraconstitucionais, que não temos como certas.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas compreenderá a nossa apreensão pelo facto de, não tendo V. Exa. como certas nem as leis paraconstitucionais nem a medida de descarga a que estão dispostos, dadas as exigências do PSD nessa matéria, tudo aquilo que acabou de dizer estar sujeito a benefício de resultado final...

Daí o nosso interesse, não "negocista", não mesquinho, não mercantilista e seguramente assente em princípios, em saber em que é que o PS fica nesta matéria, pois não é dominus nem das paraconstitucionais nem das descargas...

O Sr. António Vitorino (PS): - Mas ontem já lhe dei um critério. Não há descarga do programa e constitucional nas matérias das paraconstitucionais sem a garantia dos dois terços para aprovação das correspondentes leis paraconstitucionais. Não há, e portanto esse é o princípio que deve tranquilizar V. Exa., fazê-lo repousar quanto às posições do PS, ver que o Sol continua a nascer todas as manhãs vigoroso e que o céu é azul.

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O Sr. José Magalhães (PCP): - E a constituição económica?!

O Sr. António Vitorino (PS): - Já iremos à constituição económica.

Ô que queria dizer ao Sr. Deputado José Magalhães, em resumo, é que esse reenvio, para alívio da Constituição, só teria como consequência a derrogação do limite temporal ao Poder da revisão constitucional. Aí sim, as matérias que transitassem da Constituição para as leis paraconstitucionais estariam, em tudo o mais, protegidas nos mesmos termos em que hoje o estão, menos no tempo. Em vez de só poderem ser alteradas de cinco em cinco anos, por maioria de dois terços, e em qualquer momento por decisão de uma maioria de quatro quintos, passariam a ser alteráveis a todo o momento por maioria de dois terços. Esta é a única alteração significativa que resulta neste domínio da nossa proposta.

Quanto à questão da organização económica, aqui temos, naturalmente, uma divergência substancial. Não vale a pena escondê-la, porque já esteve patente na discussão que tivemos os dois sobre os artigos 80.° e 89.° da Constituição. O PS entende que a democracia portuguesa está suficientemente consolidada do ponto de vista político-institucional para considerar que, no essencial das regras de organização democrática, existem consensos alargados e que a alternância no exercício do Poder, pelo menos a credível, não se traduz em derrogação de regras fundamentais do Estado de direito democrático. Onde identificámos alguns riscos de tentação de. subversão dessas normas fundamentais, incluímo-las nas matérias objecto de leis paraconstitucionais. Refiro-me, naturalmente, à questão da Lei Eleitoral.

Relativamente à questão da constituição económica, entendemos que num moderno Estado de direito democrático a alternância no exercício do Poder exprime-se sobretudo pela existência de diferentes programas económicos e sociais, que fazem o separar de águas entre as forças conservadoras, liberais e neoliberais e as forças de esquerda, progressistas, socialistas e mesmo comunistas. Há aí um separador de águas, e é aí que se afirma a livre alternância democrática e a vontade popular, expressa através do sufrágio popular universal. É por isso que nenhum quadrante ideológico é tutor da constituição económica e que tudo o que nesta dificulte o livre exercício da alternância democrática nos parece reprovável. Já o dissemos em 1982 e reeditámo-lo agora, e naturalmente que matérias como a reforma agrária, o planeamento e as nacionalizações são matérias do livre exercício da alternância democrática e por isso lhes dispensamos o tratamento que consta do nosso projecto. E por isso também alterámos o artigo 290.°, alínea f), da Constituição quanto à apropriação colectiva dos principais meios de produção, à eliminação dos latifúndios e monopólios.

O que está verdadeiramente em causa neste debate é que o Sr. Deputado José Magalhães entende que deverá continuar a haver uma certa tutela institucional da esquerda sobre a constituição económica que fosse limitadora dessa livre alternância, porque a alternância pode ser subvertera dos valores da Constituição. Ora, nós entendemos que a força normativa da Constituição, tal como a mantemos no nosso projecto, é suficiente para garantir a efectivação dos direitos económicos, sociais e culturais e dos direitos, liberdades e garantias que são as verdadeiras conquistas irreversíveis que a Constituição consagra, e não a delimitação de sectores económicos, ou a dimensão da propriedade pública nacionalizada.

E é por isso que me confrange que destacados dirigentes do PCP afirmem publicamente que o PS fez cedências ao PSD na Comissão em matéria de direito à greve. Confrange-me porque é uma mentira, porque é falso, porque é um argumento utilizado para exercer pressão psicológica sobre quem está aqui nesta mesa e, como tal, é tão descarado que é por nós imediatamente relativizado. Sabemos o que defendemos sobre o direito à greve, sabemos como fomos nós que nesta Comissão denunciámos o sentido da alteração proposto pelo PSD e como dissemos clara e inequivocamente que com o nosso acordo não havia nenhuma alteração do direito à greve.

Como também não aceitámos nenhuma concepção redutora dos direitos fundamentais dos trabalhadores, bem como não aceitámos nenhuma alteração do conteúdo fundamental dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

Portanto, essas acusações são acusações que visam criar um ambiente psicológico, que visam ressuscitar bandeiras de luta e visam animar, manter o moral alto da base social de apoio de quem as profere, que bem precisa nesta fase histórica por que passa, mas que, naturalmente, não são argumentos que nos constranjam, que nos limitem na nossa capacidade de decisão noutras matérias ou, sequer, que nos criem problemas de consciência.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não sei bem a que é que o Sr. Deputado António Vitorino se refere. Em todo o caso, refere-se a algo sem base, na medida exacta em que defendemos aqui nesta Comissão não só o direito à greve, nas condições que resultam das actas, como manifestámos preocupações em relação ao que poderia ser o resultado de uma proposta do PSD que o PS rejeitou liminarmente na sua formulação, tendo em relação à sua versão final dito, sucintamente, aquilo que resumiria assim: "Mostrem-nos a reformulação; consideraremos oportunamente a nossa posição, em função do conteúdo concreto dessa reformulação."

O Sr. António Vitorino (PS): - Só que a reformulação...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Foi isto que o Sr. António Vitorino pessoalmente aqui disse. O que é que isso significa? Não sei, porque não estou dentro dos escaninhos políticos em que V. Exa. se move. Só o Sr. Deputado poderá dizer o que tal significa.

Em todo o caso, é inteiramente legítimo que o PCP exprima preocupação em relação ao futuro não só desse segmento da Constituição como, sobretudo, em relação à possibilidade do seu florescimento e aplicação num contexto de mudança radical do terreno vigente em matéria de organização económica. As duas coisas, Sr. Presidente e Sr. Deputado António Vitorino, não são incindíveis, isto é, não se pode dizer que, alterado o terreno da constituição económica em sentido estrito, se processe da mesma forma o exercício dos direitos colectivos ou individuais dos trabalhadores e que fio-

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resçam os direitos económicos e sociais. É mau esperar pela prova de vida para verificar o acerto desta afirmação.

Vozes.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados José Magalhães e António Vitorino, estão-me a chamar a atenção para os relativos excesso e à-vontade com que VV. Exas. dialogam sozinhos nesta matéria. Agradecia, pois, que VV. Exas. pusessem algum limite ao diálogo, tanto mais que estão outros oradores inscritos. A reclamação tem toda a justificação, e o presidente não pode ser alheio a essa margem de razão. Assim, agradecia aos Srs. Deputados que pusessem termo ao diálogo directo.

Tem a palavra o Sr. Deputado Nogueira de Brito.

O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - Também entendo introduzir aí alguma dose de reclamação, mas considero o diálogo referido extremamente esclarecedor e adequado ao papel desta Comissão...

O Sr. Presidente: - Sem dúvida; Sr. Deputado; Mas os Srs. Deputados têm a possibilidade de mutuamente se esclarecer, inscrevendo-se a seguir aos oradores já inscritos.

O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - Mas, se me permite, Sr. Presidente, há diálogos que não se devem interromper. Eu estou inscrito e, como tal, estou a ser prejudicado...

O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado desculpar-me-á, mas há limites que são razoáveis e outros que ultrapassam o razoável. Penso que, neste momento, as reclamações começam a ser justas. Até agora não interferi, mas neste momento passarei a interferir.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, creio que V. Exa. não tinha interferido porque ainda não se tinha atingido o chamado "ponto de não retorno" de diálogo excessivo...

O Sr. Presidente: - Já ultrapassaram todos os picos...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Foi apenas uma manifestação de "ciúme primário" do Sr. Deputado Costa Andrade!

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, pretendia fazer uma curta declaração.

O Sr. Presidente: - Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Uma curta interrupção, neste caso concreto, pois o Sr. Deputado António Vitorino ainda não tinha terminado.

Vozes.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, em termos particularmente correctos e sem qualquer pretensão de quebrar o diálogo, limitei-me, off the record, a chamar a atenção para o facto de que tinha havido n interrupções de parte a parte, n interrupções do Sr. Deputado José Magalhães sobre intervenções do Sr. Deputado António Vitorino e vice-versa. Não houve, pois, qualquer manifestação de ciúme. Como, porém, esta Comissão tem um regimento com algumas regras metodológicas, penso que, ao cabo de muitas tomadas de palavra da parte dos Srs. Deputados António Vitorino e José Magalhães, se justifica um certo retorno à observância de tais regras. Isto não tem nada a ver com ciúme, e na altura disse-o, de modo que não ficasse registado. Nós temos oradores inscritos e gostaríamos também de expressar as nossas posições no âmbito do debate que está a ser travado.

O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado António Vitorino já terminou?

O Sr. António Vitorino (PS): - Não, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Então, faça favor de completar a sua intervenção, Sr. Deputado.

O Sr. António Vitorino (PS): - Apenas referi isto porque o jornal O Diário, de 4 de Julho, publica declarações do Sr. Deputado Carlos Brito numa conferência realizada pelo PCP sobre revisão constitucional em que o referido deputado afirma "merecerem igualmente atenção indiciadas cedências do PS no que se refere designadamente à desprotecção das comissões coordenadoras das comissões de trabalhadores" - o que não é uma cedência do PS, é uma proposta do projecto do PS, mas a qualificação é naturalmente livre -, "aos limites do direito à greve e mesmo em relação a alterações antidemocráticas do direito eleitoral". Ora estes dois últimos aspectos não são verdade.

Quanto à questão do problema da constituição económica, é evidente que, aqui, a questão central é que nós entendemos que as matérias da constituição económica não são matérias susceptíveis de ser integradas nas leis paraconstitucionais. E foi aqui que o Sr. Deputado José Magalhães fez um passe de mágica, tornando incompreensível o sentido último da sua intervenção, pela simples razão de que, já hoje, todas as matérias atinentes à organização económica são matérias que integram a reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República, não integram sequer a reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia. Consequentemente, daquilo que consta do projecto do PS não resulta qualquer alteração qualitativa sob este ponto de vista, não há nenhuma ampliação ilegítima da esfera de intervenção do Governo: isso é uma falácia argumentativa, porque, como é evidente, se a proposta do PS quanto ao artigo 166.°-A das leis paraconstitucionais não vier a ter acolhimento, as matérias que nele se contêm, e que, excepto o estatuto da informação, que é uma inovação, foram todas retiradas da reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República (artigo 167.°), a ele retornarão, digamos, por "métodos naturais". Não há, portanto, nenhuma desprotecção à capacidade de intervenção parlamentar em matéria de organização económica. Essa acusação é completamente infundada!

Para terminar, pretendia dizer que o projecto do PS quanto a matérias de votação mantém-se: votação no Plenário, desde que requerido na especialidade por um décimo dos deputados, sendo a exigência dos dois terços, ao contrário do que o Sr. Deputado José Maga-

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lhães disse, para a votação final global. Nos termos do artigo 171.° do projecto do PS, a exigência dos dois terços é para a votação final global. Creio que era isto o essencial que, nesta fase, eu gostava de responder ao Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Eu não faria esta intervenção se, quando se discutiu o artigo 83.°, sobre a reprivatização dos bens nacionalizados, não me tivesse pronunciado sobre as leis paraconstitucionais, o que parece ter sido feito deslocadamente, segundo depreendo da intervenção do Sr. Deputado António Vitorino e do seu diálogo com o Sr. Deputado José Magalhães. Ter-me-ei, porventura, equivocado quando pensei que no artigo 83.° se tratava de uma lei paraconstitucional, e queria agora situar no momento adequado aquilo que o PSD tem a dizer relativamente a esta proposta inovadora do PS.

O Sr. Deputado António Vitorino, na sua intervenção de ontem, assentou em vários fundamentos esta criação, sendo que eu registei como fundamentais três momentos da sua intervenção. O primeiro desses momentos teve lugar quando se referiu à criação necessária de um sistema de pluralismo de fontes que não seria atacado pelo princípio da hierarquia das normas, não lançando, portanto, confusão no âmbito das fontes de direito que temos. O segundo momento foi quando se referiu ao facto de as leis paraconstitucionais poderem proteger as minorias, e o terceiro quando se referiu ao grau de operatividade dessas leis no meio a que se destinam.

Quanto à questão de um sistema de pluralismo de fontes, tive ocasião de referir, também no âmbito da discussão do artigo 83.°, o que o PSD entende sobre a matéria. Considera o PSD que o problema que se coloca relativamente à questão das leis paraconstitucionais é esta nova maioria que se pretende para a sua aprovação, que se coloca antes da elaboração da lei e não depois! Ou seja, o Sr. Deputado António Vitorino dizia que a vantagem destas leis relativamente à Constituição consistia em que o regime de revisão era menos rígido. O problema que o PSD coloca sobre a questão do pluralismo de fontes não se põe no momento da lei feita ou no momento da revogação dessa lei, mas sim no momento da elaboração da lei.

Como se cruzam as leis paraconstitucionais do PS com as leis reforçadas do PRD e com as leis orgânicas do CDS? O que é, para efeito de integração na elencagem de matérias que são objecto de lei aprovada por maioria de dois terços, e usando termos simbólicos como há pouco o fizeram os Srs. Deputados no seu diálogo, a "seda natural", a "fibra sintética", o "ferro" ou a "borracha"? O que é que deve integrar a Constituição, o que é que deve depois integrar as leis paraconstitucionais, e o que é que deve integrar as leis aprovadas por maioria absoluta? É evidente que aqui o problema se põe no momento da elaboração das matérias que serão objecto da lei, constituindo um problema de política legislativa e não um problema decorrente das leis já elaboradas. De facto, cria um problema de hierarquização de matérias e de valores que hão-de ser ou não elencados neste conjunto de matérias, cria problemas de interpretação quanto à importância de umas em relação a outras e lança uma verdadeira confusão naquele sistema de pluralismo de fontes a que o Sr. Deputado António Vitorino se referia.

Quanto à questão da protecção das minorias, entende o PS que com a criação de leis paraconstitucionais as minorias ficam protegidas? Eu pergunto: na medida em que se cria uma franja de minorias menores ou de menos minorias? O PSD entende que a protecção das minorias não se opera por virtude desta alteração, pois sabemos perfeitamente que a protecção das minorias não é inteiramente assegurada no plano das regras procedimentais. Em democracia, o asseguramento dos direitos das minorias é operado através de outros vectores que não a própria regra procedimental, isto é, a protecção das minorias opera-se através do respeito sagrado dos direitos fundamentais, através do esquema de relacionamento de poderes e do seu intercontrole e não só através de um sistema de procedimento. O sistema de procedimento tem cabimento pela observância de regras formais, mas também pela necessidade de uma certa operacionalidade da decisão, pela necessidade de não bloquear a decisão legislativa e, aí, temos que será muito mais adequado o sistema da maioria absoluta nos termos em que a Constituição o consagra.

Esta questão de protecção das minorias anda ligada a um outro vector a que se referiu o Sr. Deputado António Vitorino: o grau de operatividade das leis no meio a que se destinam. Em nosso entender, não é a aprovação por maioria de dois terços que efectivamente logrará obter uma maior operatividade das leis em causa. Do nosso ponto de vista, não há nem um acréscimo de operatividade nem um acréscimo de racionalidade, porque em democracia a racionalidade também não se determina pelo número, isto é, não há decisões mais racionais que outras; não é pelo facto de uma maioria maior operar determinada decisão que ela, por essa razão, se torna mais racional. Em democracia os valores são matérias de preferência individual e não matéria de conhecimento racional, pelo menos do ponto de vista da democracia liberal.

O que o PSD entende é que esta preocupação de consenso, que é legítima, é uma preocupação que tem efeitos desvantajosos, porque prejudica a eficácia. Desdramatizando alguma importância política que tenha aquilo que de seguida pretendo afirmar, é importante notar as hesitações que na sociedade portuguesa se viveram e as interrogações que se criaram sobre a própria revisão constitucional. A ideia dos dois terços é muito bonita, é uma ideia que pretende conseguir um resultado mais próximo do consenso, mas que não se casa com a operatividade da decisão, com a certeza mesmo da decisão. Não sei se esta proposta do PS não terá de facto uma razão de ser conjuntural, eventualmente ancorada numa certa esperança de integrar, ao menos pontualmente, uma maioria. Devo confessar, prevenindo uma eventual objecção do Sr. Deputado António Vitorino, que a nossa intervenção não tem essa razão de ser conjuntural...

O Sr. António Vitorino (PS): - Que ideia!

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Não queria alargar-me muito mais, na medida em que, no âmbito do artigo 83.°, referi o que entendia sobre as leis paraconstitucionais. No entanto, parece que o fiz

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de modo deslocado e quis aqui deixar formalmente aduzida a nossa posição sobre a matéria. Trata-se aqui de uma questão clara de confusão, de caos no âmbito do pluralismo de fontes, ao nível da elaboração, ao nível da elencagem das matérias em causa e, para resumir, é também uma questão de casamento entre o consenso e a eficácia das decisões.

Vozes.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves, como é habitual, ouvi com deleite a sua exposição e gostaria de lhe colocar uma questão. O direito eleitoral é um sistema de procedimento, ou sistema processual, como prefiro dizer. Ora, um sistema processual, ou de procedimento, deve ser uma regra neutra de decisão; e a garantia de que o sistema eleitoral seja uma regra neutra de decisão obtém-se através, senão de uma exigência de consenso, o que seria a consequência de uma concepção contratualista, pelo menos através de uma exigência de aprovação por maioria qualificada das alterações dessa regra de procedimento. Partilho a distinção a que recorreu entre regras de procedimento e resultados. Aceito e utilizo essa distinção, considero que o consenso se estabelece sobre as regras processuais e não sobre os resultados. É precisamente em nome dessa distinção, que é muito importante, que se me afigura, no mínimo, especialmente pertinente que se introduza no nosso sistema constitucional a figura das leis paraconstitucionais, no mínimo aprovadas por dois terços, e de preferência por mais. A menos que se decida fazer melhor, ou seja, que em relação a matéria tão relevante como é a da legislação eleitoral se garanta na própria Constituição o princípio da proporcionalidade plena. Como sabe, o meu ponto de vista a esse respeito é o de que se deve introduzir um círculo nacional de apuramento e proibir o duplo voto. Veja, portanto, a diferença que vai, por exemplo, entre o meu entendimento do que é uma regra neutra de decisão em matéria tão fulcral como é o direito eleitoral e o seu entendimento de que as regras de procedimento devem ser deixadas na disponibilidade da vontade das maiorias simples.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Deputado Sottomayor Cárdia, a questão que me pôs tem de combinar-se com a preocupação que nós aqui deixámos clara sobre o problema do pluralismo das fontes. De facto, já no âmbito do artigo 83.° o PSD deixou claro que, no nosso entender, estas matérias fundamentais, nomeadamente o exemplo a que o Sr. Deputado se refere, poderão eventualmente, dentro de uma lógica mais clara e menos complicativa, figurar já na Constituição. Essa é a nossa posição: devolver à Constituição aquilo que o PS quer inserido no plano das leis paraconstitucionais ou, então, mesmo que não se queira sobrecarregar exageradamente a Constituição, criar, a título excepcional, também já com indicação em sede constitucional, determinadas matérias que eventualmente precisarão de aprovação por maioria de dois terços (conhecemos o caso dos militares), mas que isso não se traduza num princípio que vá efectivamente distorcer o critério de hierarquia do valor das matérias no nosso sistema jurídico-constitucional. Portanto, essa preocupação tem de prevenir exactamente a confusão que o pluralismo de fontes levanta já a nível da elaboração do direito.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sou sensível à dificuldade do pluralismo das fontes. Na minha ignorância jurídica, sou sensível a isso. Todavia, afigura-se-me existir uma solução para essa dificuldade: é desdobrar a matéria das leis. A Lei Eleitoral contém actualmente, por hipótese, 300 artigos; a lei paraconstitucional eleitoral, supondo que essa seria uma lei paraconstitucional - e eu defendo que sim, dentro dos princípios constitucionais que proponho -, teria menos artigos, passando a matéria adjectiva da actual Lei Eleitoral para outra lei. Esta outra lei, não sendo paraconstitucional, seria uma lei ordinária, susceptível de ser modificada segundo as regras estabelecidas na lei paraconstitucional, que seriam a regra da maioria simples.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Deputado, em nosso entender, o problema não está no número de artigos e nessa complicação que se possa estabelecer, mas sim na selecção qualitativa entre as matérias que devem ser de dois terços e aquelas que não devem ser.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Exactamente. A referência ao número de artigos exprimia essa mesma preocupação. Que deve existir, obviamente. E pode ser resolvida.

Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Presidente, Rui Machete.

O Sr. Presidente (Rui Machete): - Tem a palavra o Sr. Deputado Nogueira de Brito.

O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - Pedi a palavra, há pouco, para questionar o Sr. Deputado José Magalhães e fazer uma intervenção sobre o artigo 166.°-A, proposto pelo PS, e introduzir aí uma apresentação das normas que, no projecto do CDS, constituem o desenho, o regime e a figura das leis orgânicas. Agora queria também colocar uma pergunta à Sra. Deputada Assunção Esteves.

Começaria pela observação à intervenção de há pouco do Sr. Deputado José Magalhães, indo por ordem. O Sr. Deputado José Magalhães estranhava o papel que, em entrevista ontem produzida na televisão pelo presidente do meu partido, era atribuído ao CDS na revisão constitucional e relacionava-a com a intervenção do partido nesta Comissão. Sem desvalorizar o trabalho desta Comissão e a importância que ela assume na revisão constitucional - importância que foi hoje muito claramente sublinhada pelo Sr. Deputado António Vitorino -, devo dizer que a importância que os contributos dos partidos podem assumir em matéria de -revisão constitucional não se esgota nas possibilidades que cada partido tem de intervenção nesta Comissão, começando desde logo e naturalmente com o próprio projecto que apresentaram e com as soluções que nele se contêm. Ora, dada a circunstância de o projecto do nosso partido ter sido ele próprio a arrancar com o processo de revisão constitucional, suponho que,

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embora com uma presença modesta nesta Comissão, apesar de tudo mais do que proporcional ao peso da nossa presença na Assembleia da República, continua a ser importante a nossa intervenção no processo de revisão constitucional.

Em relação à Sra. Deputada Assunção Esteves, queria pôr-lhe a seguinte questão: V. Exa. comentou a figura das leis paraconstitucionais apresentada pelo PS e a intervenção do Sr. Deputado António Vitorino, justificativa da introdução dessa figura no quadro dos actos normativos da Constituição; levanta também algumas dúvidas, que são, desde logo, resultantes da circunstância de se introduzir um pluralismo de fontes, alargando-o com mais uma fonte de direito - a das leis paraconstitucionais. Um outro assunto é uma crítica relacionada directamente com o método ou sistema de aprovação destas mesmas leis, a exigir uma maioria de dois terços e apontando (nas palavras do próprio deputado António Vitorino, segundo tenho delas conhecimento hoje) para a formação de consensos e a valorização do papel das minorias.

Mas eu pergunto, Sra. Deputada Assunção Esteves: a sua questão sobre a confusão que vai ser introduzida em matéria de pluralismo das fontes reside só no facto de se introduzir mais um grau na respectiva hierarquia com as leis paraconstitucionais, com as leis orgânicas de que fala o CDS, ou com as leis reforçadas de que fala o PRD, ou está mais ligada ao elenco das matérias e à forma de aprovação dessas leis? Isso é que me parece incomodar V. Exa. e o partido que aqui representa. Quer dizer: perturba-a haver mais uma fonte? Nesse caso, pergunto-lhe, Sra. Deputada: não acha que há, naturalmente, mais uma fonte, em relação a certas leis que são, por sua própria natureza, leis-quadro, no âmbito das quais se vão produzir novas leis, também; não acha que a confusão resulta aqui, antes e principalmente, de não se hierarquizarem, no quadro das fontes, estas leis-quadro? Daí é que resulta a confusão! Por exemplo, a confusão que já se tem verificado e que resulta de a lei do orçamento anual violar a Lei de Enquadramento do Orçamento do Estado, porque se trata claramente de fontes do mesmo grau hierárquico - não acha que isso é uma confusão perniciosa ao próprio Estado de direito democrático?

Aproveitando a circunstância de estarmos a debater as leis paraconstitucionais, objecto específico de uma proposta de artigo aditado pelo PS, o artigo 166.°-A, irei tecer algumas considerações sobre as nossas propostas, que se distribuem por vários artigos do projecto que apresentamos e que configuram as leis orgânicas - figura semelhante, com grande relação com as leis paraconstitucionais. Supomos, no entanto, que as diferenças que apresenta podem porventura transformar as nossas leis orgânicas numa possibilidade ou num espaço favorável a um acordo entre os dois maiores partidos - aqueles cujas forças somadas fornecem a maioria indispensável à revisão constitucional, em torno desta matéria das leis paraconstitucionais. Estou a falar do PS, que propõe a figura das leis paraconstitucionais, portanto, de valor reforçado, e do PSD, que não propõe e se tem mesmo mostrado relutante em relação à admissão desta figura. O que é que acontece com as leis orgânicas que o CDS propõe e cujo regime resulta do disposto no artigo 115.°, n.° 2, sobre o qual não tive oportunidade de me pronunciar, porque não estava aqui, no artigo 122.°, n.° 1 (o n.° 2 tem pouca importância nesta matéria, dado que se trata apenas de incluir a figura numa enumeração que é feita), no artigo 139.°, n.° 3, aqui com importância, na medida em que aborda um aspecto importante do regime das nossas leis orgânicas; no artigo 169.°, n.° 2, onde se faz a enumeração das matérias que hão-de constituir objecto das leis orgânicas, e no artigo 171.°, n.ºs 4 e 5, onde se completa o regime de aprovação das leis orgânicas?

Em primeiro lugar, o que é para o CDS uma lei orgânica? Aqui, insiro-me na resposta a algumas das preocupações reveladas esta manhã pelo Sr. Deputado José Magalhães, face à ausência, que ele notou, de um critério substancial de distinção em relação à proposta do PS. Claramente, o CDS opta por um critério formal nesta matéria, que supomos, aliás, não estar completamente ausente da proposta do PS, com destaque para a redacção deste artigo 166.°-A; critério formal de distinção, qual seja o de considerar como leis orgânicas as que expressamente forem consideradas como tal no texto da Constituição, nos termos da enumeração que fazemos no artigo 169.°, n.° 2. Suponho que este critério formal, que, na nossa proposta, consta, aliás, da própria redacção do artigo 115.°, n.° 2, constitui em si uma resposta às dúvidas do Sr. Deputado José Magalhães. É claro que na base deste critério formal está um critério substancial, qual seja o que nos conduziu à escolha das matérias que elencamos no artigo 169.°, n.° 2. E qual foi o critério que nos levou à escolha das matérias que hão-de ser objecto de lei orgânica? Ele assenta fundamentalmente na natureza comum dessas matérias, tratando-se, como se trata em todos os casos enumerados na disposição citada, de leis respeitantes à própria organização do Estado e a aspectos fundamentais do seu funcionamento, designadamente as que respeitam às relações deste funcionamento dos órgãos do Estado com os cidadãos e com os seus direitos. Trata-se, por outro lado, de leis que, pela sua própria natureza, são leis de enquadramento, leis-quadro, isto é, leis no âmbito de cujas molduras vão ser produzidos outros actos legislativos.

Ainda em resposta a algumas observações feitas esta manhã, quero salientar que o CDS não pretende com tal enumeração (de forma nenhuma) esvaziar o sentido da Constituição, transferindo certas matérias do conteúdo de normas constitucionais para o de leis ordinárias, embora de valor reforçado e com uma posição determinada na hierarquia dos actos normativos, isto é, colocadas imediatamente a seguir às leis constitucionais. Trata-se precisamente do contrário, na medida em que o CDS, sem prejuízo das regras fundamentais do regime da democracia representativa, designadamente da regra da maioria, entende estender a protecção e a segurança próprias das normas constitucionais a leis que constituem como que um desenvolvimento natural da própria Constituição, sendo certo que a sua inclusão no texto fundamental se torna inviável, desde logo por razões ligadas à extensão da própria Constituição - preocupação que, acho, nos deve constantemente inspirar, e que hoje, estranhamente, verifiquei não ser preocupação do PSD, nas palavras da Sra. Deputada Assunção Esteves, mas que já foi aqui várias vezes expressa pela voz do Sr. Deputado Gomes da Silva, que várias vezes brandiu a bandeira da defesa contra o excesso de verbalismo da Constituição, para eliminar, pura e simplesmente, alguns dos normativos que o integram.

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Esta é a natureza das nossas leis orgânicas, e precisamente porque as matérias que tratamos são aquelas que enumerei em termos gerais é que lhes chamamos leis orgânicas - estando, porém, abertos a alterar a designação.

Qual é, na verdade, o objecto que escolhemos para as leis orgânicas? É, desde logo, o estatuto das regiões autónomas, os regimes do estado de sítio e do estado de emergência, as leis respeitantes às eleições dos titulares dos órgãos de soberania das regiões autónomas e dos órgãos do poder local, bem como dos restantes órgãos constitucionais, o regime do referendo popular, a elaboração, aprovação e execução do Orçamento do Estado, os princípios fundamentais do sistema fiscal, a organização da defesa nacional, a organização e funcionamento do Banco de Portugal e a composição do Conselho Superior da Magistratura - são estas às matérias que nós incluímos no âmbito das nossas leis orgânicas. E qual é o regime das nossas leis orgânicas? São leis que devem ser votadas na especialidade, necessariamente, no Plenário da Assembleia da República, e que terão de contar com o voto favorável da maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções, residindo aí o respeito que entendemos prestar na definição da figura do regime das leis orgânicas ao princípio da maioria. Porém, quando essas leis orgânicas vejam a sua promulgação rejeitada por veto do Presidente da República, só poderão ser confirmadas por maioria de dois terços dos deputados em efectividade de funções, na hipótese de regressarem a votação à Assembleia da República. O que é que nós fazemos nesta matéria? Estendemos, nesta matéria da confirmação, o regime que já hoje existe para um certo tipo de normas restritivas dos direitos, liberdades e garantias a todas as leis orgânicas. E uma outra coisa nós fazemos: não as considerando, embora, como leis orgânicas, porque, obviamente, não se enquadram no critério que nos levou a definir o elenco do artigo 169.°, estendemos este regime de aprovação das leis orgânicas a todas as leis respeitantes aos direitos, liberdades e garantias. Finalmente, incluímos na definição do valor das leis orgânicas, que fazemos logo no artigo 115.°, n.° 2, a afirmação da prevalência destas leis sobre todos os outros actos legislativos, portanto, aumentamos o elenco dos actos normativos com este novo tipo de acto legislativo que é o das leis orgânicas, e inserimo-lo na hierarquia dos actos normativos, claramente em sobreposição aos outros actos legislativos.

O Sr. Presidente: - Mesmo sobre as leis de bases?

O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - Sim, mesmo sobre as leis de bases. Isto é o que eu tinha para dizer como explicação da nossa proposta respeitante às leis orgânicas. É verdade que esta explicitação constitui, de certo modo, como que a nossa posição sobre a proposta do PS expressa no artigo 166.°-A. Congratulamo-nos com muitos dos aspectos que hoje foram explanados à Comissão pelo Sr. Deputado António Vitorino, designadamente no que respeita ao elenco das matérias constantes do n.° 2 do artigo 166.°-A, o que nos leva a considerar que há neste momento entre as forças políticas representadas na Assembleia da República um consenso importante -ou estamos a caminho dele - qual seja o de definir o núcleo fundamental do texto constitucional. Não posso deixar de considerar que esse consenso que se está a formar nessa matéria é o consenso principal em torno desta tarefa de revisão constitucional e afirmo-me convicto e esperançado que venha a poder produzir o consenso necessário à própria revisão constitucional; atrevo-me também a oferecer o contributo da nossa proposta respeitante às leis orgânicas para que possa constituir também um contributo decisivo no sentido do estabelecimento desse consenso.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado, José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Esta intervenção do Sr. Deputado Nogueira de Brito vai levantar perguntas, vai carecer de réplicas - creio que tudo isso se poderia desenrolar mais adequadamente da parte da tarde.

O Sr. Presidente: - Isso certamente, porque vamos terminar às 15 horas. Mas havia uma pergunta, relativamente simples na sua formulação, não sei se simples na sua resposta, feita à Sra. Deputada Assunção Esteves - era essa que eu gostaria de ver já respondida; depois recomeçaríamos às 15 horas e 30 minutos, com a eventual controvérsia que a intervenção do Sr. Deputado Nogueira de Brito terá criado.

Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Em relação à primeira questão do Sr. Deputado Nogueira de Brito, da confusão do pluralismo de fontes, não é sobre isso que incide a nossa preocupação com a confusão. É sobre a discrepância nos critérios para a elencagem de um conjunto de matérias com prejuízo de outras, que não figurarão com esta exigência de maioria qualificada. A prova está à vista, tivemos esta manhã a discussão entre o PS e o PCP sobre os critérios e sobre as leis mais e menos importantes - é essa confusão de critérios e essa fluidez que causa alguma confusão e alguma preocupação ao PSD.

Relativamente aos dois terços, como eu disse, quando me referi à intervenção do Sr. Deputado António Vitorino, não é esta preocupação de consenso que deixa de sensibilizar o PSD mas é sobretudo o choque que se cria entre esta necessidade dos dois terços e esta preocupação de consenso com o bloqueio que a exigência dos dois terços pode criar no sistema de tomada de decisão - dei até o exemplo da própria revisão constitucional, sobre cujos destinos muitas vezes se auguraram algumas dúvidas. A questão é prática: isso não significa, como eu disse quando respondi ao Sr. Deputado Sottomayor Cárdia, que o PSD não considere, nos termos em que, de modo excepcional, a Constituição já considera, que haja matérias que careçam, excepcionalmente, de determinado tipo ou modo de ser aprovadas, nomeadamente leis-quadro ou leis de bases que integrem adequadamente as matérias que pretendem regulamentar.

O Sr. Presidente: - Vamos suspender os trabalhos. Recomeçaremos às 15 horas e 30 minutos. Estão inscritos, desde já, os Srs. Deputados Costa Andrade, Sottomayor Cárdia e José Magalhães.

Srs. Deputados, está suspensa a reunião.

Eram 13 horas.

Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Vice-Presidente, Almeida Santos.

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O Sr. Presidente (Almeida Santos): - Srs. Deputados, está reaberta a reunião.

Eram 16 horas e 5 minutos.

Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, em nome do PSD, e em complemento do que foi dito pela Sra. Deputada Assunção Esteves, pretendia explicitar um pouco mais as razões que, por princípio, nos levam a recusar esta nova categoria das leis paraconstitucionais, tal como aparecem definidas no projecto inicial do PS.

As revisões constitucionais - esta como a anterior - são normalmente realizadas em contextos muito específicos, com ambientes com uma certa densidade histórica, e são dominadas por certos tópicos que prevalecem no debate constitucional. Foi assim em 1982 e é também assim em 1988. É evidente que em 1982 a revisão constitucional se polarizou fundamentalmente em torno do poder político. Tratou-se fundamentalmente de adequar a estrutura do poder político português ao modelo tradicional e normal de um Estado de direito democrático. Desse ponto de vista, a revisão constitucional de 1982 foi plenamente conseguida. Em segundo plano, e num plano de menos evidência, ficou a organização económica, que não é menos importante na perspectiva do modelo constitucional de um Estado de direito de uma sociedade democrática e aberta. É fundamentalmente o problema da organização económica que é o grande tópico da actual revisão constitucional; foi sempre à volta da organização económica que as questões se polarizaram, tendo sido a constituição económica a grande referência dos debates e das posições avançadas, antes mesmo de os projectos de revisão constitucional dos diferentes partidos terem tomado corpo definitivo.

O projecto do PS, com alguma surpresa em relação aos grandes tópicos que tinham sido avançados, lançou também a ideia das leis paraconstitucionais. À primeira vista, poderia pensar-se que esta inovação era, afinal de contas, estranha ao grande tema que a revisão constitucional suscitara. Porém, vistas as coisas com .mais rigor, talvez esta ideia do PS, naquilo que tem de essencial e que, do nosso ponto de vista, merece ponderação mais cuidada, não tenha sido tão fortuita e talvez, afinal, esta inovação legislativa não seja tão estranha à problemática que agora se coloca. De facto, a consciência que agora se ganhou, ou, pelo menos, a consciência com que, em nosso entender, se encaram estas coisas, leva-nos a considerar que, do ponto de vista da organização económica, há que flexibilizar a Constituição em termos de viabilizar o pleno jogo democrático e pluralista normal, sem impedir nenhuma força política de aceder ao Poder e de praticar os seus próprios programas. Ou seja: o que está em causa é assegurar aqui o máximo de abertura, de pluralidade e de conflitualidade, uma vez que é do ponto de vista da organização económica que os projectos dos diferentes partidos, ideologicamente condicionados, mais conflituam entre si. Esta lógica de conflitualidade, esta lógica que pede reformas constitucionais num determinado sentido, leva, directa ou indirectamente, a ver o outro lado da medalha e cria experiência viva e actuante de dois temas completamente diferentes: temas de conflito e temas de consenso. Afinal de contas, a proposta do PS teve pelo menos o mérito de contribuir para clarificar e extremar estas duas áreas da realidade jurídico-constitucional. Ponto é - e este é um desafio que é colocado ao PS - que seja consequentemente assumido nas duas faces da medalha, designadamente em matéria de organização económica: que aí se leve até às últimas consequências a ideia de pluralidade, de conflitualidade e de alternativa e que, do outro lado, se viabilizem os consensos necessários e fundamentais. É nesta óptica que encaramos a problemática das leis paraconstitucionais. Também nós concedemos facilmente que existem diferenças qualitativas de matéria, havendo, portanto, matérias que devem naturalmente apelar a consensos fundamentais e básicos na sociedade portuguesa.

De outro ponto de vista já temos algumas dificuldades, o que já releva não da óptica dos princípios mas da óptica da adequação pragmática das coisas. Se as coisas são muito claras do ponto de vista da viabilização e da funcionalização do ordenamento constitucional para a outra vertente, para a vertente da conflitualidade e da organização económica, já temos algumas dúvidas de que, para assegurar os objectivos que o PS legitimamente se propõe com estas propostas, as coisas tenham de correr necessariamente pela via que o PS propõe, designadamente por esta categoria das leis paraconstitucionais. Entendemos que esta via seguida pelo PS comporta graves dificuldades e algumas disfuncionalidades, dificilmente ultrapassáveis do ponto de vista do sistema. E pode ser perigoso, do ponto de vista da funcionalização do sistema, deixar passar o período da revisão constitucional, que - temos de o aceitar com toda a frontalidade - é sempre um clima propício, até pelo teor das questões discutidas e pela metodologia que acaba por ser adoptada, a facilitar os consensos. Já no espaço normal de uma legislatura pode ser muito difícil assegurar, em toda a medida, os dois terços necessários para viabilizar e dotar o País destas leis.

Por outro lado, coloca-se o problema (já aqui aflorado noutro contexto pelo Sr. Deputado José Magalhães) da densidade das leis paraconstitucionais. Relativamente a esta questão, e do nosso ponto de vista, há ainda muito por clarificar. Há uma nota fundamental identificadora das leis paraconstitucionais, que são as matérias sobre que versam: as leis paraconstitucionais são aquelas que tratam destas matérias. Não está ainda bem clarificado qual a medida da paraconstitu-ionalidade dessas matérias, mas parece já ter ficado claro que não será toda a produção normativa relativa a tais matérias que tem a categoria de paraconstitucionalidade ou que dela releva. Ontem mesmo, a propósito de um exemplo tirado ao acaso dentro das áreas problemáticas que se põem ao legislador neste domínio, concluiu-se que essa não era matéria que relevava de paraconstitucionalidade. Porém, a regulamentação destas matérias suscita e carece de normas de vários níveis, que nem todas - penso eu - relevarão da paraconstitucionalidade. Qual o limiar da paraconstitucionalidade? Qual o critério para aferir da essencialidade, do princípio fundamental, do nuclear, qual o núcleo essencial que releva da paraconstitucionalidade? De resto, a própria proposta do PS é, a este propósito, relativamente assimétrica, na medida em que no artigo 166.°-A alguns tópicos são referidos sem mais. Na alínea g), por exemplo, fala-se apenas em "estatuto

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da informação", ao passo que, por exemplo, na alínea seguinte se fala em "regime geral da elaboração e organização dos orçamentos do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais". Suscitam-se, pois, várias dúvidas, o que aumenta nessas matérias a complexidade da fiscalização da constitucionalidade. Em nosso entender, as coisas estão, neste domínio, muito longe de estar clarificadas, estando nós também muito longe de, com os nossos trabalhos e reflexões, darmos sinais muito claros aos futuros intérpretes da Constituição sobre os limites da paraconstitucionalidade nestas matérias.

Posto isto, cabe perguntar se não haverá outros meios mais funcionais de assegurar o mesmo objectivo, isto é, a viabilização de respostas e soluções de consenso neste domínio. Do nosso ponto de vista, tais meios existem e, pelo menos no estado actual da nossa reflexão, são aqueles que mais ou menos temos referido: talvez seja possível elencar dentro destas áreas problemáticas os princípios de dignidade constitucional, elevando-os como tal à categoria de normas constitucionais, ou, em alternativa, assegurar ou garantir, em última instância, a mesma solução de consenso pela via, por exemplo, da necessidade de ultrapassagem do veto presidencial por maioria de dois terços. Esta é uma via possível e penso que poderemos reflectir sobre ela. O resultado final é o mesmo, apenas a via por que pretendemos obter tal resultado nos parece mais funcional e talvez mais correcta do ponto de vista dos princípios. De facto, não se suscita, à partida, desconfiança de fundo sobre o princípio maioritário, havendo uma certa presunção da bondade do princípio maioritário, sem prejuízo dos interesses últimos do consenso nesta matéria. Se, porém, em concreto e no terreno for suscitada a posteriori, e sem partirmos desta suspeição generalizada aos detentores históricos e conjunturais da maioria, pode assegurar-se os mesmos resultados e obter-se as mesmas metas de consenso.

É este o contributo que, em nome do PSD, pretendia deixar, a fim de explicitar, uma vez mais, as razões que, neste estado de coisas, fazem com que ainda não estejamos convencidos da bondade desta solução. Pelo contrário, temos para nós que ela não é conveniente, porque disfuncional e não necessária, mesmo do ponto de vista dos objectivos que o PS legitimamente se propõe. De todo o modo, repito, a discussão desta matéria é um tópico importante para a clarificação daquilo que de essencial se coloca nesta revisão constitucional. E aquilo que, pelo menos no entender do PSD, ficamos a dever do ponto de vista histórico desta revisão constitucional é legarmos uma Constituição que permita a viabilização plena e sem quaisquer restrições da pluralidade do exercício do Poder, que é própria das sociedades abertas, salvaguardando, apesar de tudo, os consensos fundamentais nas áreas problemáticas que devem relevar do consenso.

O Sr. Presidente: - Para fazer perguntas ao Sr. Deputado Costa Andrade, inscreveram-se os Srs. Deputados Nogueira de Brito e José Magalhães.

Tem a palavra o Sr. Deputado Nogueira de Brito.

O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - Sr. Deputado Costa Andrade, não há dúvida nenhuma de que hoje se vive nesta Comissão um ambiente favorável à concretização da revisão constitucional, um ambiente de consenso. De manhã, surpreendi-o no clima de intervenções que aqui foram feitas e volto agora a surpreendê-lo esta tarde na intervenção do Sr. Deputado Costa Andrade.

No entanto, o Sr. Deputado Costa Andrade, pronunciando-se sobre a proposta do artigo 166.°-A do PS e sobre a figura das leis paraconstitucionais, associou essa matéria a um dos temas centrais que, em seu entender, devem ser privilegiados nesta revisão constitucional, qual seja o tema da revisão da parte da Constituição respeitante à organização económica. Associou essa matéria ao tema das leis paraconstitucionais e apontou aí algum inconveniente que da figura poderia resultar na perspectiva do êxito da revisão, centrada nesse tema fundamental: depois de uma ultrapassagem da Constituição revolucionária, feita em 1982, iríamos agora ultrapassar a Constituição marxista e o peso da parte respeitante à organização económica.

Mas, Sr. Deputado, ponderou que no elenco do artigo 166.°-A que o PS faz não figura nenhum dos temas da organização económica?

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Et pour cause!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Misteriosa afirmação essa do et pour cause!

O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - É, pois, esta a pergunta que eu lhe quero deixar... Portanto, é ou não verdade que a maleabilidade que o Sr. Deputado Costa Andrade pretende nessa área, à qual me associo e à qual nos associamos, não desprezando, no entanto, a vantagem de alcançar os consensos necessários à revisão, não está, de facto, dependente da figura das leis paraconstitucionais?

Por outro lado, Sr. Deputado Costa Andrade, parece-me que uma das vias que traçou para ultrapassar esta questão é efectivamente uma via que se pode revelar adequada e que, na medida em que não põe inteiramente de lado a necessidade de consenso em matérias que respeitam à própria orgânica do Estado e ao seu funcionamento, também não subalterniza inteiramente o princípio da maioria.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Costa Andrade, V. Exa. congratulou-se (não seria, de resto, senão compreensível que o fizesse) com as propostas apresentadas pelo PS nesta matéria. No fundo, ter-se-á limitado a dizer que queria mais. Quanto à ganga ideológica com que nos brindou sobre a necessidade da "Constituição aberta", devo acentuar...

Vozes.

O Orador: - Os Srs. Deputados do PS não viram nas palavras do Sr. Deputado Costa Andrade nenhuma sombra de congratulação em relação a tudo aquilo que tinham dito?!

O Sr. Presidente: - Confesso que ou estive desatento ou entrei em crise de opacidade. Na verdade, para lhe ser franco, não vi congratulação nenhuma.

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O Sr. António Vitorino (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, creio que o Sr. Deputado Nogueira de Brito, que tinha estado extremamente atento a este debate, ao sublinhar aquilo a que chamou "um consenso" como o produto do diálogo desta manhã, não queria senão sublinhar o facto de o PSD, nesta matéria, e o CDS, et pour cause também, entenderem que a posição do PS quanto à constituição económica lhes é fagueira e que, nessa medida, se congratulam. Apenas querem mais, querem o resto. Saúdam o que o PS lhes dá e não consideram despiciendo e querem mais.

O Sr. Presidente: - É uma posição semelhante à vossa em relação a nós, cada vez que defendemos as soluções que constam da Constituição. Queriam menos, mas, não podendo ser menos, que fiquemos por aquilo que nós concedemos ... É uma posição idêntica, simétrica. Nós estamos no meio dos dois e encontramo-nos normalmente nesta posição: de um lado, exigem mais, de outro lado, exigem menos. Cada um está onde está, não é?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, essa é uma questão relevantíssima do ponto de vista gnoseológico, axiológico, político, que é o próprio do lugar onde estamos. Mas sucede que há aqueles que estão "mais num meio do que no outro meio" e VV. Exas., nesta matéria, estão seguramente "mais no outro meio"...

O Sr. Presidente: - Também a opinião do Sr. Deputado Costa Andrade é porventura oposta à sua.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, só por uma atitude de cautela negociai é que tal cousa poderá manifestar-se...

O Sr. Presidente: - Não, não diga isso...

O Sr. José Magalhães (PCP): - ... porque, de facto, o PSD pretende mais e não pode exagerar nos foguetes perante o muito que o PS lhe concede... É uma táctica conhecida.

O Sr. Presidente: - Já disse várias vezes que o Sr. Deputado José Magalhães há-de ser uma das grandes glórias da defesa da Constituição resultante das alterações que nós propomos... Há-de ser, conto consigo!

O Sr. António Vitorino (PS): - São os tais cinco anos!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, é violento e inadmissível, do ponto de vista político, que no preciso momento em que se está a discutir a questão do destino da constituição económica e das implicações de certas alterações em termos de configuração do regime, e tendo nós as públicas críticas, apreensões e visão que esta manhã o Sr. Deputado António Vitorino aqui exautorou e às quais procurámos responder com argumentos, o PS, através do Sr. Deputado

Almeida Santos, se limite a dizer que entende que a opção que se dispõe a praticar nos obrigará, adiante, a defender soluções que minimizem o impacte de um mal que se deveria evitar. Seguramente não contribuiremos para maximizá-lo!

O Sr. Presidente: - É que eu não estou no diálogo, hoje não estou a oficiar nessa missa; os Srs. Deputados José Magalhães e António Vitorino é que estão. Como viu, hoje limitei-me a corrigir a acta com inteira atenção ao que VV. Exas. diziam.

No entanto, devo dizer que concordei inteiramente com aquilo que o Sr. Deputado António Vitorino disse. Isso só significa que, de vez em quando, os nossos pontos de vista são divergentes, o que não quer dizer que vocês, na vossa óptica, não tenham razão e que nós, na nossa, não tenhamos também razão. Difícil é cada um de nós ter razão na óptica do outro. Era apenas isto que eu pretendia significar. Agora não tenha dúvidas de que nós não perdemos o sono com as consequências que possam derivar das nossas propostas em matéria de constituição económica. Estamos convencidos de que é a justa nova fronteira de um país que está na CEE e que, por isso mesmo, tem de repensar alguns dos aspectos da sua constituição económica.

O Sr. José Magalhães (PCP): - O Sr. Deputado Almeida Santos acabou de corroborar precisamente aquilo que eu estava afirmando. Solidarizou-se, de resto, com aquilo mesmo que eu estava a qualificar como solidário.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, se não quer valorizar, e medir com rigor, a distância que vai das nossas propostas às propostas, quer do PSD, quer do CDS, em matéria de Constituição económica, eu não posso fazê-lo por si. Tem de pegar no metro e medir. Mas é óbvio que há uma diferença abissal entre as nossas propostas e as propostas de qualquer desses dois partidos. Como há em relação ao vosso. Só que o vosso peca por não haver proposta nenhuma. Mas se não quer e não pode fazer essa medição, eu por si não posso medi-la. Se acha que não há diferença nenhuma, que não há abismo, que é tudo a mesma coisa, e que o PSD, tendo proposto 100, fica felicíssimo conseguindo 10, é um ponto de vista. Mas não é o meu.

O Sr. José Magalhaães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, permita-me que retome, com uma fundamentação adensada, as observações que vinha fazendo. O Sr. Deputado pede-me que valorize bem as diferenças entre as propostas do PS e as propostas do CDS e do PSD. Nós utilizamos outro parâmetro: medimos as propostas do PS em relação à Constituição da República! E anotamos as diferenças. E não podemos congratular-nos com as diferenças, nem podemos cruzar braços face às consequências, que entendemos negativas, dessas diferenças.

O Sr. Presidente: - Imobilista, a nossa proposta não é! Isso eu reconheço e dou-lhe toda a razão. A nossa proposta não é imobilista e assumimos a responsabilidade das propostas que fazemos no sentido da adaptação ao que consideramos uma nova conjuntura económica. Se está correcta ou não a adequação, o futuro o dirá.

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O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - Só há uma proposta conservadora: a vossa.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Era isto uma consideração entre parêntesis no quadro de uma pergunta formulada ao Sr. Deputado Costa Andrade. Nessa pergunta visava eu sublinhar que o PSD se congratulava com a "nova fronteira" traçada pelo PS em matéria de organização económica, e alertava para o facto de o PS estar neste ponto também, como todos, numa encruzilhada que é a de viabilizar a má lógica, ao mesmo tempo que apregoa uma lógica boa que não é para ser aplicada.

Isto basta para explicar tanto o contentamento do Sr. Deputado Costa Andrade como o seu descontentamento em relação à parte em que o PS não diz "sim" (até este momento, uma vez que está em curso um debate e o debate é susceptível de aprofundamentos). A minha pergunta decorre deste facto.

O Sr. Deputado Costa Andrade fez um vasto conjunto de considerações sobre as virtualidades enormes do modelo constitucional para que aponta o PSD, embora tenha omitido a componente desse projecto tendente a permitir retrocessos, formas de transcendência do regime por superação plebiscitaria camuflada, soluções potenciadoras de mexicanizações indébitas do regime, aberturas até para certas modalidades de Estado autoritário (vejam-se as propostas do PSD sobre o segredo de Estado, sobre os cidadãos que prestam serviço nas polícias e outros com estatuto diminuído, sobre a restrição de direitos dos TFPs, etc..). Embora tenha omitido tudo isto, e só tenha valorizado o que lhe apetecia, o Sr. Deputado Costa Andrade foi extremamente opaco em relação aos desejos do PSD. Disse apenas misteriosamente: "haverá outros meios de conseguir uma adequada consensualização descarregadora da Constituição". Disse: "a clarificação é importante". Mas não disse que clarificação. Foi tudo menos claro na definição do que acha que é preciso que seja clarificado. Por tudo isto, o partícipe neste processo que porventura não conheça aquilo que para o Sr. Deputado Costa Andrade é claro (e para nós é completamente obscuro) sai da intervenção do Sr. Deputado Costa Andrade cheio de perplexidades. Topa-lhe as linhas de satisfação e de insatisfação, mas não arrecada absolutamente nada quanto ao que seja, na sua inteireza, o modelo para o qual o PSD aponta neste domínio. Nós sabemos que o Sr. Deputado Rui Machete tinha, numa das intervenções feitas aqui há tempos, apontado para um determinado modelo: sabemos que ele, em entrevista pública, se tinha pronunciado pela aprovação originária e até por dois terços de certas leis - e apontava a lei eleitoral como uma das possivelmente sujeitáveis a esse regime. Mas o Sr. Deputado Costa Andrade, sobre essa matéria, é completamente impenetrável. Gostava de lhe perguntar se haverá alguma esperança de, nesta fase e neste momento, o Sr. Deputado ser um pouco mais transparente. Ou então V. Exa. já disse tudo o que sabia, caso em que teremos de convir que este diálogo é impossível por falta de interlocutor...

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Vou então tentar responder ao Sr. Deputado José Magalhães.

Eu já disse tudo o que sabia, mas, graças a Deus, Sócrates deixou-nos um bom sucessor e, com esta força maiêutica, ele é capaz de tirar ainda mais das pessoas para além daquilo que elas sabem. E talvez deste debate e desta postura maiêutica do Sr. Deputado José Magalhães eu consiga dizer mais alguma coisa, para além daquilo que não sei.

Diz o Sr. Deputado José Magalhães que não terá ficado claro, da minha referência à clarificação, em que é que as coisas estavam mais claras. Penso que o teor da pergunta é mais ou menos este.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não era bem, Sr. Deputado Costa Andrade. Fui mais claro que isso...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Então, Sr. Deputado, solicitava-lhe que explicasse melhor a sua questão acerca da clarificação.

O Sr. José Magalhães (PCP): - V. Exa. interrogou-se sobre se não haveria "outros meios". Mas não disse que "outros meios" é que conjectura.

Por outro lado, queixou-se da densidade normativa...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Deputado, enumerei dois meios (aí é que o Sr. Deputado estava francamente distraído). Primo: a possibilidade de elevar à Constituição aqueles princípios que, nestas matérias, nos parecessem ter verdadeira dignidade constitucional. Secundo: a possibilidade de assegurar o consenso, não colocando no pórtico a ideia generalizada de desconfiança (foi mais ou menos isto o que eu disse), mas, pelo contrário, concedendo o benefício ao resultado e aos detentores historicamente contingentes da maioria e, numa fase seguinte, em fase de oposição, de veto, exigindo a maioria de dois terços para a sua ultrapassagem. O resultado final, o consenso, seria alcançado da mesma maneira.

Quanto à afirmação do Sr. Deputado de que eu não indiquei alternativas, ou o Sr. Deputado não ouviu o que eu disse, ou não falei muito claro. Mas penso que na parte final da minha intervenção - e apelo tanto para as actas como para os acenos de cabeça de representantes de outras forças políticas,...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Insuspeitos, aliás.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - ... para o testemunho de concordância - falei de alternativas, Sr. Deputado. Posso voltar a repeti-las, mas penso que podemos ganhar em clarificação o que perdemos em tempo.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Deputado Costa Andrade. Era só para saber se tinha algumas, porque acho que essas não são alternativas ...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Ah, está bem! O Sr. José Magalhães (PCP): - Não. Está mal.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Por outro lado, diz o Sr. Deputado José Magalhães que não terei clarifi-

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cado aquilo que eu classificava como clarificação. Não é verdade, Sr. Deputado. A minha referência à clarificação teve este sentido: obviamente que, do mesmo passo que se aponta para matérias que exigem especial consenso, que relevam do consenso, mesmo nas sociedade modernas, que são sociedades abertas, sociedades muito expostas do ponto de vista dos seus valores, e que não têm em seu abono nem um direito natural, como tinham outras, nem o direito herdado de uma certa representação metafísica, como tiveram outras épocas, também nós não temos o arrimo de uma teoria ou de um livro escrito por alguém que, espantado com o desenvolvimento da sociedade industrial inglesa no fim do século passado, tenha gizado um modelo de organização social. As sociedades modernas não têm esses arrimos, pois as sociedades modernas são sociedades de Direito positivo, são sociedades de Direito feito pelo homem. O Direito é hoje feito pelo homem, não o herdámos. É essa, pelo menos, a minha concepção: não o herdámos, nem o copiámos. Por mais que olhe para as estrelas, não vêm de lá normas, não há normas nas estrelas.

Vozes.

O Orador: - No que toca à clarificação - o Sr. Deputado José Magalhães acusa-me de não ter clarificado em que é que estava a clarificação -, do mesmo passo e com o mesmo gesto com que se indicam matérias que reclamam especiais consensos, inevitavelmente, por argumento a contrario e pela lógica natural das coisas, está-se, directa ou indirectamente, a apontar outras matérias que não relevam desse consenso. Foi o que eu disse. Sem tomar posição quanto às posições do PS, eu disse que, do mesmo modo que se especificavam matérias que exigem particular consenso, com esse mesmo gesto se está a dizer que há outras matérias que relevam da pluralidade, da conflitualidade, e que, portanto, devemos retirar as consequências dessa mesma postura. Penso que neste processo de Revisão Constitucional é dado adquirido o de que há matérias que relevam da conflitualidade normal de forças com diferentes coeficientes e com diferentes densidades ideológicas e que o sistema político-constitucional deve ser ordenado de modo funcionalmente adequado a permitir a expressão dessa pluralidade e dessa conflitualidade na gestão normal da governação. Este é um ponto de vista.

Outra área problemática é a do consenso. Obviamente que quando o PS focaliza, com especial empenho, as matérias do consenso não está, por exclusão de partes, a dizer que há outras. Foi este contributo que considerei clarificado com a proposta do PS. De resto, a minha intervenção não releva de qualquer congratulação, nem de qualquer contentamento. Dizia-lhe eu que o Sr. Deputado não nos conhecerá bem. Mas já nos devia conhecer o suficiente para ver que o nosso estado de espírito não é de contentamento. Sou cristão e acredito que o trabalho é castigo do pecado. Nós estamos aqui a trabalhar há muitas horas e o nosso estado de espírito não é de contentamento. Estamos cansados, Sr. Deputado, isto é duro. Não há, na nossa expressão, qualquer gesto de felicidade - e estou a expiar um pouco o pecado de Adão. Felicidade não há nenhuma, penso que não transpira das minhas tomadas de posição qualquer expressão de felicidade. Pelo contrário!

Vozes.

O Orador: - Penso que já respondi, no essencial, à interpelação do Sr. Deputado Nogueira de Brito.

O Sr. Presidente: - É um argumento de que o Primeiro-Ministro ainda não se lembrou. Para justificar a Lei Laborai dele, dizer: "Estás a remir o pecado de Adão. Não te queixes."

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Diz o Sr. Deputado Nogueira de Brito, objectando a minha intervenção, que eu, afina!, trouxe à colação matéria da constituição económica, sendo certo que as propostas do PS ora em discussão não contêm nada relativo à organização económica. Et pour cause, pois é óbvio que essa é a área do consenso. Ponto é - numa certa exigência e crítica ao PS - que o PS foi o meu repto do ponto de vista das nossas concepções, que podem ser diferentes das do PS e podem ter áreas maiores ou menores de convergência e de divergência. Mas foi uma exigência feita do ponto de vista da nossa postura intelectual e ideológica. O que eu disse foi que esta proposta, apesar de parecer introduzir uma espécie de Deus ex-machina do processo de revisão constitucional (os dramaturgos gregos, quando não sabiam o que é que haviam de fazer a certos personagens no princípio, arranjavam um deus que caía no palco é tiravam ou eliminavam um actor, porque não sabiam o que é que lhe haviam de fazer), impõe uma certa ordem nas coisas, sendo profundamente clarificadora e valendo como contributo para a discussão da revisão constitucional. Foi apenas isto o que eu disse.

Entretanto, reassumiu a presidência o Sr. Presidente, Rui Machete.

O Sr. Presidente (Rui Machete): - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Para protecção dos legítimos direitos das minorias, as leis paraconstitucionais, embora insuficientes, são necessárias, em princípio. Porquê insuficientes? Exemplifico: a garantia da proporcionalidade nas eleições parlamentares não deve ficar na disponibilidade de uma maioria de dois terços. Deve ter consagração constitucional eficaz; deve introduzir-se o princípio de um círculo nacional de apuramento e proibir-se o duplo voto.

Segunda observação: no meu projecto omiti as leis paraconstitucionais porque, como se lê na nota justificativa, concordo com a proposta do PS. Estou certo de que ela se manterá, a menos que alguma melhor surja. O que me interessa nas leis paraconstitucionais é o seu efeito reforçado sobre as leis e a exigência de maioria qualificada de dois terços, pelo menos, na aprovação das leis sobre matérias estruturantes do sistema político e das suas disposições para o efeito relevantes.

O disposto nas leis actuais, que estatuem sobre matéria que será qualificada como paraconstitucional, o disposto nessas leis poderá ser distribuído por leis paraconstitucionais e leis regulamentares dessas leis paraconstitucionais, ou seja, por leis ordinárias. E assim se obviaria à confusão sobre o que é e não é paraconstitucional na disciplina das matérias correspondentes. Suponho que assim se responde à objecção do Sr. Deputado Costa Andrade sobre a medida da paraconstitucionalidade. A preferência, há momentos

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expressa pelo Sr. Deputado Costa Andrade, pela elevação à dignidade constitucional de normas suficientes ao consenso pode conduzir a uma solução melhor ainda e, nesse caso, dispensar as leis paraconstitucionais. A Constituição ficará mais longa mas os princípios mais seguros. E bem empregado será o tempo que necessariamente assim se despenderá no aperfeiçoamento da Constituição para atingir o desiderato que o Sr. Deputado Costa Andrade, na minha interpretação, pretende.

Terceira observação: o Regimento da Assembleia da República é também matéria estruturante do sistema, designadamente em legislatura com poderes de revisão constitucional. Se o novo Regimento entrar em vigor, e enquanto o estiver, a Revisão Constitucional está prejudicada, e também o estará se, antecipando-se à Lei de Revisão, forem alteradas por maioria simples leis sobre matéria que defendo seja considerada paraconstitucional. Não era a mim que competia dizer isto; por isso o que digo apenas a mim me responsabiliza.

Quarta observação: o requisito de maioria qualificada nas leis paraconstitucionais não é substituível por requisite análogo após veto presidencial. A vontade presidencial não deve ser considerada elemento necessário nem suficiente na garantia da protecção dos legítimos direitos da minorias. Não estamos a rever a Constituição à medida da confiança que temos na pessoa do actual Presidente da República. O Presidente da República será outro após 1996...

O Sr. Presidente: - Sábias palavras!

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Verdades simples, Sr. Presidente.

A solução seria pouco rigorosa do ponto de vista dos princípios, contrariamente ao que há pouco dizia o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Pretendia fazer uma intervenção que, creio eu, dará algum consolo íntimo ao Sr. Deputado José Magalhães, porque, do meu ponto de vista, colocam-se-me quatro grandes dúvidas relativamente à intenção da proposta do PS quanto às leis paraconstitucionais.

A primeira grande dúvida consiste em saber se na verdade esta invenção do instituto das leis paraconstitucionais não constituirá efectivamente uma desconfiança objectivada quanto à intervenção do Presidente da República, quanto à eficácia do exercício do direito de veto, e, em segundo lugar, se não será também uma atitude de desconfiança quanto à eficácia da fiscalização preventiva.

Por outro lado, gostaria igualmente de salientar a minha dúvida sobre a necessidade ou não de apresentar na Constituição Portuguesa uma solução singular em direito comparado. Penso que não é necessário. O PS inspirou-se porventura noutros modelos, como o Sr. Deputado António Vitorino ontem referiu, mas em nenhum desses modelos se apontam soluções consentâneas ou idênticas àquelas que o PS apresenta na sua versão de leis paraconstiíucionais, tal como o faz no seu projecto de revisão constitucional.

Em terceiro lugar, a grande dúvida que se me coloca consiste em saber se, subjacente à iniciativa e à proposta do PS, está uma tentativa de tornar como vantagem a indefinição quanto ao núcleo das matérias ou quanto ao seu restante conteúdo a incluir nas leis paraconstitucionais e se considera que isto constitui um benefício em relação ao sistema.

Por último, em quarto lugar, atendendo àquilo que hoje se verifica na nossa Constituição, ao jogo das competências reservadas, ao âmbito da intervenção do Sr. Presidente da República quanto ao direito de veto, não pensa que toda a iniciativa consubstanciada na tentativa da criação, a nível constitucional, das leis paraconstitucionais, não será mais do que tudo, uma eventual e desnecessária complexificação do sistema?

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, originariamente, inscrevi-me para responder a uma intervenção saudavelmente provocatória da Sra. Deputada Assunção Esteves. Embora essa intervenção já tenha ficado para trás, merece, porém, ser repegada na medida em que, tanto quanto percebi, o PSD posicionou-se sobre a nossa proposta de leis paraconstitucionais em dois terrenos distintos: um que tem a ver com questões de princípio (aquelas que a Sra. Deputada Assunção Esteves suscitou) e outro que tem mais a ver com a concreta inserção deste mecanismo no texto constitucional e com as consequências que adviriam desta inovação para a Constituição, em termos objectivos.

O primeiro argumento da Sra. Deputada Assunção Esteves é o do pluralismo das fontes. De facto, interroga-se a Sra. Deputada se, ao inovarmos neste domínio, não estaríamos a ir demasiado longe no pluralismo das fontes, a burocratizar e a complexificar o sistema de fontes normativas que a Constituição consagra. E a pergunta era demonstrada com uma outra pergunta, a de saber onde se punha a fasquia na definição do conteúdo do que era paraconstitucional, daquilo que já foi hoje designado como a densificação normativa da paraconstitucionalidade. Sinceramente, creio que o problema não existe, ou, se existe, é porque já existia, não sendo criado pelas leis paraconstitucionais. Isto é, hoje, na nossa prática quotidiana, tudo o que diz respeito ao tratamento jurídico-constitucional das leis de bases, das leis-quadro e das próprias leis de autorização legislativa, isso sim, é que resulta numa certa confusão. E é exactamente para que se clarifique qual é o estatuto supralegal dessas entidades normativas que as propostas de leis paraconstitucionais do PS ou de leis reforçadas do PCP ou de leis orgânicas do CDS pretendem contribuir. São questões que não resultam sequer da maioria de dois terços de aprovação, mas sim da própria lógica subjacente à existência e posição hierárquica desses mesmos normativos.

Há naturalmente duas maneiras de reagir perante a confusão: uma é a de avestruz, que é fazer o buraco na areia, meter a cabeça e dizer que não há confusão nenhuma. É a atitude do PSD e a atitude da Sra. Deputada Assunção Esteves, quando diz que não há confusão nenhuma, que a confusão somos nós que a trazemos com as leis paraconstitucionais. A outra reacção é a nossa, que reconhece que a confusão já

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existe e que as leis paraconstitucionais podem ser uma proposta, embora modesta, de suscitar a reflexão de todos sobre o modo de a resolver.

Não há dúvidas -pergunto eu- sobre a compatibilização entre os decretos-leis de desenvolvimento das leis de bases e as respectivas leis de bases, sobre o vício de que possa padecer um decreto-lei de desenvolvimento de uma lei de bases que contrarie essa mesma lei de bases? Não há dúvidas sobre qual é a eficácia real de uma lei-quadro? Ou seja, não é forçoso reconhecer que o sistema jurídico-constitucional português tem assentado na hipocrisia de chamar leis-quadro àquilo que o não é, visto não terem qualquer valor supralegal sendo, na realidade, pari passu, derrogadas por cada lei avulsa que estava suposta subordinar-se a essas mesmas leis-quadro? E quanto ao vício de que enfermam os decretos-leis de uso de autorização legislativa em relação às correspondentes leis de autorização legislativa? Trata-se apenas de inconstitucionalidade indirecta, tantas vezes consideradas pelo Tribunal Constitucional como insusceptível de decisão, de julgamento de inconstitucionalidade? Ou não haverá aqui uma verdadeira e própria inconstitucionalidade directa, resultante da violação da norma constitucional atributiva de competência à Assembleia da República para legislar sobre as matérias da reserva relativa, podendo o Governo penetrar nesse terreno legislativo apenas mediante autorização legislativa, a qual funciona como título habilitador mas também como acto parâmetro e norma densificadora dos limites do uso dos poderes legislativos derivados que ao Governo cabem na utilização de uma autorização legislativa? Ou não estaremos neste caso perante um tipo diferente de ilegalidade? Não é este já um quadro suficientemente relevante para a normalidade da nossa vida legislativa que justifique que haja um esforço de esclarecimento e uma fórmula de clarificação das relações entre actos legislativos de órgãos de soberania? As paraconstitucionais estão inocentes: elas têm todos os defeitos que os Srs. Deputados quiserem, têm talvez até alguns de que ainda não se lembraram e que eu, a título privado, lhes posso adiantar, num gesto liberal e moscovita, como diria o Fernando Pessoa; mas esse que lhe apontam é que não tem. É apenas uma tentativa de contribuir para o esclarecimento de uma questão que já está colocada em cima da mesa. E considero grave que esta Revisão Constitucional não assuma esse problema como seu e não se proponha resolvê-lo.

Quanto à questão da protecção das minorias, Sra. Deputada Assunção Esteves, é um argumento hábil dizer-se que os dois terços são a protecção de algumas minorias das minorias eleitas daquelas que são estritamente necessárias para fazer os dois terços, sendo como tal uma forma da discriminação de outras minorias, das minorias mais minorias. E daqui passa para uma conclusão interessante, que é a de que, no fundo, o que releva na questão das leis orgânicas, das leis reforçadas ou das paraconstitucionais não é a maioria de aprovação mas sim o consenso sobre o procedimento. Os dois terços na nossa proposta são com efeito apenas uma medida instrumental da formulação desse consenso sobre o procedimento. É um afloramento como o seria a exigência da maioria absoluta. Ou seja, o facto de ordenamentos jurídicos como o francês e o espanhol exigirem maiorias absolutas para aprovação das respectivas leis orgânicas, são também meros afloramentos procedimentais decorrentes da lógica política que postula a necessidade de haver consensos alargados sobre um conjunto de matérias consideradas como particularmente relevantes para a conformação de um determinado sistema normativo. Pode-se dizer que é uma exigência processual excessiva, como dizia o Sr. Deputado Carlos Encarnação: estão sozinhos, não há Direito Comparado que vos valha e portanto o opróbio de estarem numa ilha isolados. Mas não tenho medo da inovação e devo dizer que, se outra justificação não houvesse, talvez valha a pena meditar sobre o que tem sido a prática recente do PSD no Governo, maioritário, sozinho, para perceber por que é que, sim senhor, assumo que esta nossa proposta parte também de uma desconfiança recíproca. E digo mais: parte de uma desconfiança do PS em relação ao PSD. É verdade! Mas também vamos mais longe: por que é que existem Constituições? As Constituições não são instrumentos de protecção das minorias? Os textos constitucionais não existem por causa de desconfianças mútuas? Não são as desconfianças mútuas que estão na base da lógica da existência da democracia no mundo inteiro, desde os seus primórdios? A desconfiança dos barões em relação ao poder real, no que concerne à colecta de impostos excessivos para alimentar uma corte luxuriosa, em detrimento daqueles que detinham, que eram terratenentes, não era esta originariamente a forma mais cabal de desconfiança mútua? O Parlamento não nasceu de um acto de desconfiança? Não nos queiram criar complexos de culpa pelo facto de desconfiarmos! A desconfiança, desde que não seja recalcada e que tenha instrumentos institucionais saudáveis para se exprimir, não constitui mal nenhum num regime democrático; é a regra normal de vida democrática de uma colectividade.

Naturalmente que estou de acordo com a Sra. Deputada Assunção Esteves, quando diz que o consenso é sobre o procedimento e não sobre o resultado. Por isso mesmo, nós dissemos que os dois terços eram aferíveis em relação aos princípios fundamentais e não a toda a densificação normativa de uma determinada matéria que possa caber nas leis paraconstitucionais. Perguntar-me-ão: mas onde é que mete a fasquia? Qual é a relevância que isso tem para o grau de operatividade social? Mas essa questão que se coloca relativamente às leis orgânicas, reforçadas ou paraconstitucionais, é a mesma que já hoje se coloca, por exemplo, quanto às leis de bases. Onde é que o Srs. Deputados metem a fasquia na definição de uma lei de bases? Quais são os limites materiais de uma lei de bases nos termos da nossa Constituição? Como é que os Srs. Deputados olham para a Constituição e vêem o artigo 167.°, alínea e), que estabelece ser da exclusiva competência da Assembleia da República (reserva absoluta de competência) legislar sobre as bases do sistema de ensino, dizem que uma coisa tem que pertencer forçosamente às bases do sistema de ensino e outra já nelas não tem cabimento? Fazem-no através de um acto de interpretação normativa, é um acto de hermenêutica jurídica do legislador em primeira mão e, em última instância, do fiscalizador da constitucionalidade do Tribunal Constitucional.

Não creio portanto que o problema, em si, juridicamente seja novo. O que os Srs. Deputados me podem dizer é o seguinte: os senhores estão a alargar desnecessariamente o campo de matérias onde essa opera-

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cão de interpretação jurídica se torna necessária. É a vossa opinião, não a nossa. Nós entendemos que estas matérias são suficientemente relevantes para justificar a necessidade de nos entregarmos a essa tarefa de hermenêutica jurídica em sede de legislação e confiar no Tribunal Constitucional para decidir em última instância sobre a questão de fundo que coloca a sua interpretação em relação a cada lei em concreto.

Mas é exactamente essa a questão que existe em França e exactamente o mesmo problema que existe em Espanha quanto às leis orgânicas. Não se trata de nenhum problema novo, não são os socialistas portugueses que têm insónias e que se lembram de criar problemas novos a fim de torturar as mentes puras, cristalinas e límpidas dos juristas do PSD. Qual é a densificação normativa das leis orgânicas no sistema jurídico espanhol? É que a Constituição espanhola só diz "os princípios fundamentais nas matérias de", e aí até vai mais longe, estabelecendo inclusivamente que as leis restritivas de direitos são leis orgânicas, como, por exemplo, o faz o projecto do CDS! E o que são leis restritivas de direitos?

O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador).

O Sr. António Vitorino (PS): - Certo, o CDS aplica-lhes o regime das leis orgânicas. Mas em Espanha as leis restritivas de direitos são leis orgânicas. E o que são leis restritivas de direitos? Recordo que o Sr. Deputado Costa Andrade, com alguma razão, disse ao CDS que não podia aceitar essa proposta de aplicação do regime das leis orgânicas às leis restritivas de direitos na medida em que todas as leis são leis restritivas de direitos. Então os nossos colegas constituintes espanhóis são tão loucos, tão loucos que tenham mergulhado a Espanha nessa angústia de interpretação e de hermenêutica jurídica, que é a de não saberem o que são leis orgânicas ou de fazerem recair sobre a natureza de leis orgânicas todas as leis restritivas de direitos, ou seja, todas as leis? É que é importante acompanhar a evolução da interpretação do que é que tem sido a aplicação do artigo 81.° da Constituição espanhola quanto ao significado dos princípios gerais das leis orgânicas. É uma construção doutrinária, é uma construção jurisprudencial. Qual é o medo de fazermos o mesmo caminho em Portugal?

Digo-lhe mesmo mais: o que eu acuso é o legislador português de, até hoje, não ter ido suficientemente longe nessa tarefa de interpretação jurídica da Constituição no que diz respeito às leis de bases, às leis-quadro e às leis de autorização legislativa. Há insuficiências no nosso sistema jurídico, insuficiências no texto da Constituição e insuficiências na coragem de a interpretar e de aplicar a lei.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Dá-me licença que o interrompa, Sr. Deputado?

O Sr. António Vitorino (PS): - Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Deputado, compreendo aquilo que V. Exa. disse, designadamente em relação ao desenvolvimento das leis restritivas de

direitos fundamentais. Apenas pretendia lembrar-lhe que, na verdade, há uma diferença fundamental e essencial (há pelo menos duas) em relação ao artigo 81.° da Constituição espanhola. É que no artigo 81.° da Constituição espanhola são leis orgânicas aquelas que são relativas ao desenvolvimento dos direitos fundamentais e das liberdades públicas, as que se destinam a aprovar os estatutos de autonomia e as que se destinem a aprovar regime eleitoral - ponto final.

O Sr. António Vitorino (PS): - Não, Sr. Deputado, ponto final, nada!

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - E depois, as demais previstas na Constituição...

O Sr. José Magalhães (PCP): - E mais!

O Sr. António Vitorino (PS): - E mais, e mais, e mais...

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Mas são estas que consiam do artigo 81.º...

Vozes.

O Sr. José Magalhães (PCP): - A Constituição espanhola é uma verdadeira fábrica de leis orgânicas...

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Mas são estas que a Constituição espanhola enuncia no artigo 81.°...

O Sr. António Vitorino (PS): - E todas as que a Constituição como tal qualificar...

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sim, sim. E depois...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Esse "sim, sim" é fundamental.

Risos.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Mas, Srs. Deputados, em seguida, ia dizer: e todas as demais previstas na Constituição, o que é diferente...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Ah, bom!

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Mas a segunda questão que se põe, e esta é a questão principal, é que a aprovação, modificação ou derrogação das leis orgânicas exigirá apenas a maioria absoluta do Congresso. Este é que é o problema.

O Sr. António Vitorino (PS): - Eu sou um defensor das leis paraconstitucionais, e mesmo que os Srs. Deputados me digam carrémenf. que isto está condenado, que o PSD nunca aceitará leis paraconstitucionais, continuarei a defendê-las com o mesmo afã independentemente dos resultados, porque acredito nelas.

O Sr. Presidente: - É uma questão de fé!

O Sr. António Vitorino (PS): - Não é uma questão de fé, é uma questão de convicção, o que é subs-

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tancialmente diferente. A convicção tem um substrato realista, a fé é uma crença no direito natural.

Ora bem, o que queria dizer era o seguinte: O Sr. Deputado Carlos Encarnação deu um exemplo que visa essencialmente destruir o argumento dos dois terços, mas a maioria de aprovação é um minus na questão que se discutia. Desde o princípio, quando apresentei a proposta das paraconstitucionais, disse que havia que considerar vários critérios na sua caracterização. Não se pode utilizar apenas o critério dos dois terços para tentar destruir todo o edifício. Agora o Sr. Deputado Rui Machete disse, em àparte, que o exemplo da Constituição espanhola era mau. Estou de acordo com V. Exa., e é isto que faz da proposta do PS uma proposta moderada e perfeitamente realista. É porque fica a quilómetros de distância da Constituição espanhola. É porque a proposta do PS é particularmente rigorosa no elenco das matérias que se incluem como leis paraconstitucionais. É porque não deixa nenhuma cláusula aberta. É porque a única coisa que faz depender da intervenção do legislador é a densificação do núcleo de matérias que devem figurar nas leis paraconstitucionais. Vou já acabar...

O Sr. Presidente: - Deixe acabar a exposição, que é extremamente densa e extremamente sintética, e depois podemos fazer perguntas.

O Sr. António Vitorino (PS): - Acabo de seguida e peço desculpa por ter sido tão longo. Quanto ao problema que me coloca sobre como sair deste impasse, no fundo é esta a questão que está aqui colocada: O PSD diz-nos, nuns casos com argumentos atendíveis, noutros com argumentos totalmente inatendíveis, que não tem qualquer simpatia pelas leis paracontitucionais e deixa o Sr. Deputado José Magalhães naquela angustiante situação de ter que perceber o que se está a passar.

O Sr. Presidente: - Isso é divertido.

O Sr. António Vitorino (PS): - Ele desconfia que há um acordo, e, como este não pode deixar de passar por aqui, e nós estamos neste diálogo, pensará "mas onde é que está o acordo?". Não se pode deixar também o Sr. Deputado José Magalhães, que é um homem novo e que tem uma vida brilhante a viver, sofrer estas angústias para almoço, para ceia, para tudo. Como sair? O que procuramos é seriar questões. Há várias saídas possíveis, uma já foi aqui assumida na Comissão em relação ao estatuto da informação, por exemplo, e recordo esse debate. Os Srs. Deputados do PSD, na altura, disseram que achavam que não deveria haver um estatuto da informação, nem paraconstitucional nem não paraconstitucional, mas aceitavam que algumas das regras sobre aquilo que é considerado pelo PS o conteúdo fundamental desse estatuto sejam inseridas na própria Constituição.

O Sr. Presidente: - Fui eu que defendi isso.

O Sr. António Vitorino (PS): - Exacto.

Esse é um dos instrumentos possíveis em relação ao estatuto da informação, em relação a outros não será exactamente. O que gostava de deixar como conclusão

vai no sentido do que há pouco o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia referiu, de que matérias há em relação às quais também nós ficaremos mais tranquilos que constassem desde logo da Constituição do que se fossem remetidas para leis paraconstitucionais, mesmo com os requisitos que o PS coloca a estas leis, quanto mais se prescindirmos da maioria qualificada. A minha posição sobre esta matéria é a de reafirmar que na nossa proposta não há nenhuma pérfida preocupação de boicotar o processo de elaboração legislativa, ou de criar dificuldades à normal actuação legislativa do Estado. E o penhor desta verdade é que nós escolhemos leis que, exceptuando um e um só caso, já são todas elas leis em vigor aprovadas anteriormente por maioria de dois terços, sem que houvesse sequer no momento da sua aprovação o constrangimento constitucional da maioria qualificada. Agora, o que o PS gostaria também de deixar muito claro é que como é natural e está na razão de ser da natureza das coisas e dos homens, não podemos ignorar que na sequência do 19 de Julho de 1987, que permitiu a formação de uma maioria absoluta de um só partido, esse partido, o PSD, vai ter inevitavelmente, tem tido, está a ter e continuará a ter a tentação de sublinhar as componentes de matriz maioritária do sistema político português em detrimento das que resultam da matriz consensual originária. Não vale a pena ignorar este facto, é um dado da sociologia política. Ora a Constituição da República tem na base uma matriz consensual, tem na base um pacto compromissório entre partidos políticos que permitiu que para cada parte e título da Constituição usufruísse sempre, pelo menos, da convergência de, pelo menos, dois partidos na votação do essencial dos artigos dessa parte da Constituição. E é isso que justifica que nenhuma força política se possa reivindicar como a tutora ou a proprietária do que quer que seja na Constituição, porque esta tem essa origem compromissória. O PS quer manter a natureza contratualista da Constituição, a natureza compromissória e consensual de elementos fundamentais do nosso regime político e que são os que seleccionámos para as leis paraconstitucionais no artigo 166.°-A. E dizemos ao PSD: cuidado com as tentações de maioritarização do regime político, porque aquilo que se ganha na vã cobiça do poder perde-se na operatividade social das leis, perde-se na solidez do enraizamento do regime político democrático português! É legítimo fazer esta observação num momento em que a prática concreta do Governo actual tem demonstrado que sempre que entendeu sobrevalorizar apenas numa certa cegueira o valor do princípio maioritário viu-se confrontado não só com viva oposição política e social, mas também com declarações de inconstitucionalidade, porque não atendeu a estes apelos de consensualização referentes a algumas matérias relevantes da nossa vida colectiva. Pode ser que a nossa proposta de leis paracontitucionais não mereça aprovação, mas posso garantir que tenho a profunda convicção de que os alertas que aqui foram lançados a este propósito se justificam plenamente e lançam luz sobre o que se vai passar na nossa vida colectiva nos próximos dez anos.

O Sr. Presidente: - Tinha inscrito para uma resposta ou uma pergunta a Sra. Deputada Assunção Esteves.

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A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Não vou acrescentar mais àquilo que já disse. Fiquei atenta à defesa emocional com que o Sr. Deputado António Vitorino se referiu às leis paraconstitucionais, mas mantenho com a mesma veemência dois ou três pontos de objecções que lhe fiz.

Continuo a entender que os dois terços não é uma questão secundária nas leis paraconstitucionais; é, sim, uma questão importante que pode dificultar os mecanismos de tomada de decisão. Continuo a entender que pelo facto de essas leis serem aprovadas por maioria de dois terços não se cria um acréscimo de operatividade relativamente às mesma leis. Continuo a entender que as leis paraconstitucionais não têm nenhuma relação de causalidade directa com o sistema de defesa das minorias, porquanto o sistema democrático assegura essa defesa através doutros mecanismos. Atendo com certeza algumas objecções que põe relativamente a essa confusão que referi sobre o pluralismo de fontes, mas continuo a achar, e a prova está no próprio debate desta Comissão, que a determinação dos critérios é sempre muito líquida e controversa, e daí o problema que se possa levantar no plano da criação das leis paraconstitucionais. Não vou, de facto, alongar-me sobre isso; é só para deixar reafirmadas algumas conclusões que já tinha referido quando fiz a minha intervenção de manhã.

O Sr. Presidente: - Estava a seguir inscrito... O Sr. Deputado Sottomayor Cárdia pede a palavra para uma pergunta, mas agora não, porque tenho três pessoas à sua frente, eu próprio, os Srs. Deputados José Magalhães, Nogueira de Brito e depois V. Exa., se quiser.

Não tive oportunidade de ouvir e participar na parte inicial deste debate sobre as leis paraconstitucionais, em virtude das minhas obrigações noutra comissão, que me forçaram a trabalhar em matéria de legislação tributária e portanto vou ser muito conciso e tentar evitar repetições em relação àquilo que já foi referido.

Ouvi agora muito atentamente a exposição do Sr. Deputado António Vitorino que distinguiu, muito claramente, entre dois aspectos. Uma coisa é, como diriam os juristas, usando uma terminologia clássica, as questões da previsão das leis paraconstitucionais, isto é, se são precisos dois terços se é uma maioria absoluta, isso tem uma incidência política particular, e outra coisa é a parte da estatuição no que diz respeito às qualidades daquilo que é produzido em termos de leis paraconstitucionais, qual é a sua colocação em matéria de hierarquia das normas, com que atributos ficam dotadas. Até dirigiu a sua defesa, basicamente, nessa questão das fontes de direito dizendo: a verdade é que quando se fala em pluralismo de fontes esquece-se que já existe algum pluralismo de fontes no nível legislativo e que esse pluralismo é até confusionista e, portanto, usando uma linguagem simpática e zoológica, falou em avestruzes que metem a cabeça na areia. Reconheço que as duas perspectivas devem colocar-se para uma visão mais completa e que são distintas. No entanto gostaria de fazer uma observação que não invalida inteiramente as considerações que o Sr. Deputado António Vitorino fez, mas que ajuda a situar o problema. É que, tanto quanto me posso aperceber, a proposta do PS vem, não eliminar confusões já existentes, mas acrescentar um outro nível de hierarquia das normas, isto é, V. Exa. não veio mudar nada no que se passa em matéria de lei de base, decretos-leis praticados em matéria de autorização legislativa, nem em matéria de leis quadro. Acho que aí existem algumas confusões que tem toda a razão em apontar. Veio trazer uma nova categoria de normas que acrescem a essa, e com as quais pudemos estar ou não de acordo, mas que não vêm clarificar aquilo que já existia. Vem acrescentar uma nova categoria, que essa não tem grandes dificuldades, está claramente definida, e nesse aspecto estou de acordo com V. Exa., mas que não vem dissipar as dúvidas que existiam anteriormente. Este é um primeiro aspecto.

Segundo ponto. Tem toda a razão, o problema fundamental coloca-se, do ponto de vista político em relação ao aspecto da previsão ou da fatispécie, ou como lhe queira chamar, das leis quadro. É aí que se colocam as maiores dificuldades na medida em que a exigência de uma maioria de dois terços vem, de algum modo, como já deve ter sido referido várias vezes, prolongar este problema das maiorias qualificadas para além daquilo que é material e formalmente constitucional e portanto vem criar não só um aspecto de garantia, que poderá ser importante, mas vem criar um aspecto de barganha política, o que pode ser menos importante. Aliás, V. Exa. teve oportunidade de dizer algo que reputo de extrema relevância. É que as matérias que na proposta do PS são incluídas no artigo 166.°-A já foram todas elas, todas não porque há aqui uma matéria nova quanto ao referendo, aprovadas por maioria que são qualificadas mesmo sem exigência legal, isto é, são maiorias superiores à maioria absoluta. O que significa que o sistema político, naturalmente, nestas matérias sensíveis actuou com bom senso e até não havendo uma necessidade política de uma barganha para conseguir essa fasquia dos dois terços, ela foi realizada. Isto é extremamente importante porque revela a desnecessidade do estabelecimento dos dois terços a menos que se queira, o mesmo que tem acontecido para a eleição de certos órgãos onde tem havido dificuldade de chegar a resultados. As soluções alcançadas nem sempre são as melhores porque resultantes deste tipo de negociação. Daí que a exigência de uma maioria de dois terços pode - não digo que conduza necessariamente - colocar na mim das negociações políticas acesas certas matérias sobre as quais devia reinar um consenso que não requeresse esse tipo de negociações e pode permitir uma estratégia de fazer valer caro o voto para o estabelecimento desses dois terços por razões alheias à matéria que está a ser discutida. E é essa uma das razões pelas quais o PSD tem sido mais avesso, e continua a sê-lo, a esse tipo de solução.

Aceitamos portanto que são matérias nas quais é importante que haja consenso, reconhecemos que do ponto de vista da eficácia das normas é evidente que se houver por parte dos destinatários das mesmas ou de quem os represente uma atitude receptiva elas têm muito mais eficácia, isso é um truísmo de sociologia jurídica que não negamos, mas temos grandes dúvidas e grandes receios, e também não podemos esquecer que em política quando as coisas aparecem, como V. Exa. teve a hombridade de reconhecer com toda a clareza, as coisas quando aparecem num momento em que são propostas por um partido que está uma situação minoritária elas podem ter um significado político que não

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teriam se fossem apresentadas noutro momento e noutras circunstâncias. Isto para dizer que também este debate não pode deixar de ser caracterizado pela circunstância em que aparece, isto é, se nós estivéssemos a debater num seminário numa Faculdade de Direito ou se estivéssemos porventura a debater num outro momento em que houver uma outra revisão constitucional, talvez que se possam encontrar fórmulas menos complicadas e menos ambiciosas do que as do artigo 166.°-A e em que fôssemos mais receptivos àquilo que se encontra consignado. Neste momento, ela está profundamente eivada pelas sequelas de uma discussão política que não podemos olvidar. É isto que, correspondendo à sua honestidade e à sua clareza, devemos dizer com toda a abertura.

Tal não significa que não se encontrem, quando haja justificações que fiquem para além da circunstância de momento e que fiquem para além das desconfianças ocasionais, algumas fórmulas em sede da previsão da norma ou do Tabestand que possam obviar aos inconvenientes apontados e que estruturem soluções mais fundamentadas.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - O que é que o momento tem de especial?

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Sottomayor Cárdia, foi o Sr. Deputado António Vitorino, que explicitou que após as eleições que deram uma maioria absoluta a um partido essa circunstância condicionava de determinada maneira certas perspectivas, é a isso que estou a reportar-me. Não é o momento aqui, e agora, é o momento post eleições de 18 de Julho.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - E esse facto altera o seu pensamento?

O Sr. Presidente: - Não, e já expliquei que essa circunstância foi aquela que provavelmente fez despoletar algumas das propostas do PS e também, naturalmente, condiciona as nossas reacções. Suponho que isso é uma evidência, dada a maneira como estamos aqui a discutir, e que me parece ser correcto que se diga porque não estamos a escamotear as realidades. É isso e só isso. Não me queria alongar, outras coisas teria a dizer, mas ficarei por aqui; sem prejuízo de reconhecer que V. Exa. defende com muito brilho as suas convicções e tem todo o direito de defender as convicções que mito bem entender.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Só uma intervenção muito breve. É muito agradável ouvir o Sr. Deputado Rui Machete falar sobre consensos, mas receio que seja mais instrutivo tomar conhecimento das declarações do Sr. Primeiro-Ministro Cavaco Silva.

O Sr. Presidente: - Penso que se V. Exa., e para sermos justos, ouviu as declarações produzidas após a última conversa havida entre o Sr. Primeiro-Ministro e o Sr. Secretário-Geral do PS, elas não permitem apoiar as considerações implícitas que V. Exa. retirou na sua afirmação.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, creio que neste momento se justificam, tão só, seis comentários sobre a maneira como este debate se vem desenrolando. Creio que agora as coisas estão substancialmente mais claras. No entanto, não estamos a discutir mais do que aquilo a que os maníacos da especialidade chamam "a posição de partida", uma vez que, apesar das declarações do secretário-geral do PS, a verdadeira corrida ainda não começou, ou, se começou, começou num tabuleiro que nos é ocultado. Como não nos é lícito ver esse filme, não posso fazer assentar nenhum raciocínio senão naquilo que estou a ver e a ouvir, ao longo destas horas. É-me vedado fazer ilações do que desconheça, mas também não me seja pedido que deixe de fazer raciocínios sobre o que é público e designadamente sobre o que decorre da (aqui trazida à colação) intervenção do Primeiro-Ministro na RTP anteontem à noite, e das declarações públicas do secretário-geral do PS e doutros dirigentes socialistas sobre a mesma matéria.

O primeiro comentário decorre, precisamente, desse exercício de observação conjugada. Aquilo que está em causa - disse-o claramente o Sr. Deputado António Vitorino, por último - é, verdadeiramente, uma alteração fundamental do pacto compromissório originário que presidiu à instituição da Constituição da República Portuguesa e que se manteve inalterado, no seu fundamental, na primeira revisão constitucional em 1982. Essa revisão, ainda que tenha alterado alguns elementos caracterizadores da constituição económica, não introduziu uma alteração identitária. Isso permitiu que se fizesse, sobre esse conjunto de alterações, o juízo, crítico mas não obituário, que, publicamente e de forma atempada, exprimimos.

Trata-se agora de alterar o não alterado, no essencial, nessa altura, e trata-se - claramente o deixou expresso o Sr. Deputado António Vitorino - de reduzir o espaço de protagonização do sistema, instituindo uma espécie de protagonização bipolar, um "condomínio central" daqueles que entendem que da Constituição deve estar arredada uma definição material alargada do travejamento da organização económica e do seu conteúdo basilar. A expurgação da constituição económica, em vertentes fundamentais, a retirada de aspectos basilares da constituição económica do domínio constitucional, com reenvio para o mero terreno legislativo, reenvio com determinadas regras (não mais do que isso) - é o que o PS propõe.

É evidente que há, neste raciocínio do PS (que não faz o PS "perder o sono", como aqui foi dito), algo que é capaz de nos fazer perder o sono n nós. Aqui o digo, à puridade, para que não subsistam dúvidas, se alguma vez puderam existir.

O Sr. António Vitorino (PS): - "Trata-se" é uma fórmula ambígua; os franceses diriam on. Mas "trata" quem? Quem é que defende isso? A quem é que está a imputar esses objectivos? É ao PS?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado António Vitorino: é ao PS!

O Sr. António Vitorino (PS): - Então é completamente falso, digo-lhe já.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Em relação à constituição económica?

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O Sr. António Vitorino (PS): - Não, não. V. Exa. não referiu só a constituição económica. Faça o favor de distinguir.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado António Vitorino, eu referi o que referi. Qualquer leitura, de olhos abertos, do teor exacto da acta permite tirar essa dúvida, se ela lhe penetrou no espírito.

O Sr. António Vitorino (PS): - Depois da minha interrupção permite tirar essa dúvida, antes não.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Isso é uma questão de desatenção sua!

O Sr. Presidente: - Gostaria que VV. Exas. não entrassem em diálogo, mas, como já entraram, agora é apenas um desejo pio para o passado e um voto para o futuro.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Aliás, não era um diálogo - era um equívoco, pura e simplesmente. E não meu!

O Sr. António Vitorino (PS): - Meu também não era, de certeza!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Gostaria de observar que um dos aspectos fulcrais, que o Sr. Deputado António Vitorino equacionou e que "não faz perder o sono ao PS", decorre, precisamente do facto de o PSD ter uma vã cobiça do poder, ser autor de tentativas de debilitamento do enraizamento do regime democrático, apostar na sobrevalorização do princípio maioritário. Um dos factores que tem impedido que essa vã cobiça do poder tenha manifestações mais gravosas para o povo português e que tem propiciado as tais declarações de inconstitucionalidade (a que o Sr. Deputado António Vitorino também aludiu, de forma encomiástica e amiga) tem sido o facto de a Constituição ter as fronteiras que tem. Aquilo que, neste momento, se pretende é reduzir essas fronteiras, é retraçar fronteiras constitucionais. É isto que está em causa. Retraçar fronteiras constitucionais, expelindo do interior das fronteiras o travejamento essencial da constituição económica - desta constituição económica! Sei que são imagináveis 300 mil outras constituições económicas possíveis! É evidente que sim! Só que o que está aqui em jogo é saber quais são as consequências da colocação da constituição económica na disponibilidade do PSD, nos termos em que essa operação se arrisca a ser consumada.

O Sr. António Vitorino (PS): - Não tem nada a ver com o debate que está a ser travado.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Não há nenhuma lei paraconstitucional aqui sobre a constituição económica.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Pelo contrário! O PS insiste no argumento formal de que, no seu conceito (mas isso só corrobora aquilo que estou a dizer), a matéria económica não é, sequer, merecedora de uma lei paraconstitucional. No seu entender, a matéria económica tem uma área própria - não é um dos elementos estruturantes do regime democrático, tal qual estão a desenhá-lo e a imaginá-lo.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Estão lá dois terços, no essencial.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Compreendo aquilo que estão a dizer. Estou a emitir um juízo sobre as vossas reiteradas declarações. E é um juízo de inconformação que, nem por ser reiterado, deixa de dever ser expresso. É, realmente, uma diferença em relação ao compromisso constitucional originário - lamentamos essa diferença e entendemos que essa é uma diferença grave.

O Sr. António Vitorino (PS): - Acha o Sr. Deputado que é a criação da figura das leis paraconstitucionais que debilita a constituição económica? Acha que é aí que reside a diferença?

O Sr. José Magalhães (PCP): - É óbvio que é uma diferença séria em relação ao que está consignado hoje na Constituição. Então, VV. Exas. no vosso projecto esvaziam a garantia das nacionalizações, alteram o artigo 80.°, alteram o artigo 9.°, alteram o artigo 2.°, alteram o artigo 290.°, alínea f), alteram o artigo 96.°, alteram o artigo 97.°, e depois dizem, com um ar perfeitamente angélico: "mas qual é a diferença em relação à Constituição que está?!"

O Sr. António Vitorino (PS): - Não, não! Qual é a diferença operada pela criação das leis paraconstitucionais, essa é que é a minha pergunta. Se o Sr. Deputado José Magalhães quer arrastar este debate, para que, a cada momento, se faça um julgamento de tudo o que está em causa na revisão constitucional - o que serve os seus interesses tácticos e estratégicos neste debate - muito bem, estamos dispostos, até, a isso. Mas tem o ónus de, pelo menos, estabelecer um mínimo de ligação entre o que está em debate - a nossa proposta de leis paraconstitucionais - e o que está a dizer, que se refere à constituição económica.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado António Vitorino, há aqui o que se chama um nexo de exclusão, um nexo excludente. Pois se VV. Exas. excluem do espaço das "pcs" as matérias de organização económica...

O Sr. António Vitorino (PS): - Não excluímos, apenas não integramos.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, a cosmética é livre!

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Deputado, deixe-me fazer uma pergunta simplificadora, para um bom entendimento daquilo que V. Exa. está a dizer e, aliás, já disse. É muito simples, só lhe peço uma palavra, que pode ser "sim" ou "não". V. Exa. é ou não é favorável às leis paraconstitucionais? Ainda não o disse! Nestes argumentos, de ter pena de que o PS não tenha metido a constituição económica no elenco das leis paraconstitucionais, parece ser favorável a estas leis;

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mas essa afirmação ainda não veio. Gostava de que me dissesse claramente, para eu entender o seu raciocínio, e pode dizer assim: sou favorável às leis paraconstitucionais, por isso tenho pena de que aqui não estejam algumas relativas à constituição económica. Ou então: não, sou contra as leis paraconstitucionais. Só que, neste caso, não o entendo.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, V. Exa. é seguramente exímio a desenhar os terrenos ingratos que deseja que os outros percorram...

O Sr. Almeida Santos (PS): - Somos ambos!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas admitirá que nos debates a questão de percurso é uma questão em que deve haver autonomia da vontade, a capacidade de definir caminhos próprios deve prevalecer. Aquilo que me limitei a fazer, ao longo de meia dúzia de minutos, foi colocar vários sés, e procurar perceber precisamente até que ponto o PS definia a sua matriz conceptual, quanto ao que fossem as paraconstitucionais; quais eram as diferenças entre as paraconstitucionais e as não paraconstitucionais; qual era o lugar da lei-quadro das privatizações no conjunto das fontes normativas; que diferenças havia entre uma dietética na lei-quadro de privatizações e uma "choruda" lei paraconstitucional; qual era o regime de uma e de outra, em outros aspectos, incluindo procedimentos; qual era a posição recíproca do PS e do PSD, em relação a um esquema e outro; quais eram as variantes procedimentais que o PS e o PSD admitiam, se confirmação com determinadas condições, se os diplomas seriam sujeitos a fiscalização preventiva alargada, se etc.

É evidente que V. Exa. compreenderá que é extremamente difícil dar o sim num casamento, sem saber exactamente quem é a noiva. Enquanto VV. Exas. não definirem mais rigorosamente as soluções para que se encaminham, permita-me que manifeste apenas um intenso interesse (dado o que está em causa), uma honesta propensão para um sim que defenda, o maximamente possível, a Constituição da República e um não à descarga radical da Constituição da República, sobretudo à descarga que a esvaziasse de aspectos que consideramos de identidade fundamental. Dizemos um não claríssimo em relação a isso, rejeitamos uma operação traduzida numa descarga com devolução livre ao legislador ordinário, o qual seria aquele que, neste momento, não podemos deixar de ter em consideração, que está perante nós sentado na bancada do PSD. Foram estes sins e estes nãos que pude emitir ...

O Sr. Almeida Santos (PS): - Verifico que o terreno para o qual, com a minha habilidade (tal como V. Exa. diz), o puxei, continua a ser uma terra proibida - V. Exa. não deu resposta, claro. A menos que eu deva interpretar a resposta neste sentido: ou lá estão todas as paraconstitucionais que nos interessam, e só nos interessam as da constituição económica; ou somos contra as paraconstitucionais. É isto? Se é, entendo claramente, e até compreendo. Se é essa a conclusão, fica claro; mas não sei se é!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Almeida Santos, V. Exa. pode extrair todas as conclusões que entender, mas, nesta matéria, enquanto não estiver completado o processo de aclaração, todas as conclusões (como diria alguém) são apenas prematuras.

O Sr. Almeida Santos (PS): - A terra, por enquanto, é proibida. Esperemos que deixe de sê-lo antes do fim.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Aliás, esperamos, nós, PCP, algum contributo clarificador, não só deste debate, como de todos os demais que teremos ocasião de fazer, uma vez que alguns destes aspectos carecem de bastantes mais precisões; algumas dessas precisões terão este como o momento adequado, outras só serão possíveis depois de algumas das coisas, que o PS discute com o PSD, se tornarem mais concretas e palpáveis.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Entre nós, gostávamos de ficar a dever-lhe parte do êxito da nossa proposta, na medida em que tivesse feito - antes da resolução sobre ela - a sua defesa veemente, entusiástica. Com isso, ou conseguimos que a nossa proposta seja aprovada, e não sei se o PCP, nessa altura, bate palmas, ou não; ou, então, não será com a sua ajuda que o conseguimos.

O Sr. José Magalhães (PCP): - É uma triste circunstância, realmente, Sr. Deputado Almeida Santos. Mas a responsabilidade é vossa.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, estava V. Exa. a fazer a delimitação negativa do âmbito de aplicação das leis paraconstitucionais. Faça favor de prosseguir.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Exactamente, Sr. Presidente. Tinha considerado lamentável a opção excludente de matérias económicas (ou "não includente", como gostaria de dizer o Sr. Deputado António Vitorino) praticada pelo PS.

O segundo aspecto que nos leva a que façamos estas observações críticas (nestas condições e não noutras, neste momento, e com base nestes dados informativos - se outros houver, outra pode ser, naturalmente, a nossa posição e argumentos) é o facto de a descarga promovida pelo PS ser acompanhada de recarga e sinalização. E preciso não esquecer que o PS não se limita a propor uma desprotecção constitucional daquilo a que poderíamos chamar, grosso modo, a iniciativa pública - adita vários momentos de protecção e até institui garantias especiais da iniciativa privada. Em vários pontos - há até a incógnita de saber como é que se decifra a charada do artigo 47.°-A, do PSD - está por determinar qual a posição do PS em relação às ideias do PSD, de supressão de todos os obstáculos à apropriação de meios de produção por parte de entidades privadas e à criação de outros elementos de garantia especial da propriedade privada, incluindo quanto à sua exacta inserção no catálogo de direitos fundamentais. Tudo isto é uma incógnita, ainda.

O PS não se limita, pois, a um movimento de descarga - opera descarga com recarga, o que é, também, de sinalizar. O que é que isto tem a ver com as paraconstitucionais? Mesma resposta: nada! O PS coloca isso fora das paraconstitucionais - e isso é mau.

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O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, esse é que é o problema da Mesa neste momento.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Isto não é um problema de carga, é um problema de estiva.

O Sr. Presidente: - Esse é que é o problema da Mesa, é justamente isso - é por não ter nada a ver.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Tem, Sr. Presidente, tem! Há o tal nexo (tristemente) excludente. O PS desconstitucionaliza coisas relevantes e constitucionaliza outras indesejáveis.

O terceiro aspecto que gostava de focar, e esse é muitíssimo mais rápido, é o do momento e o do quadro. Significativamente o PSD dizia, através do Sr. Deputado Costa Andrade, isto, que é de assinalar: "toca a fazer paraconstitucionais", "dois terços depois da revisão constitucional é mais problemático", "é na vindima que se faz o magusto", "depois, na calma da legislatura, a coisa pode ser mais difícil". Ora isto inculca a ideia de que para o PSD estas coisas devem fazer-se "a quente". A ruptura do compromisso constitucional originário, a redução do espaço de protagonização do universo constitucional deve fazer-se "a quente" e "a toque de caixa"...

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Só quero ditar para a acta que não disse nada disso!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Costa Andrade, a acta testemunhará que V. Exa. disse que pode ser perigoso deixar passar o período da revisão constitucional, que os períodos de revisão constitucional são propícios a consensos, e que durante a legislatura poderá ser mais difícil lograr obter esses consensos - foi o que V. Exa. disse! Eu limitei-me a transpor para uma linguagem um pouco mais própria do mês de Setembro as questões relacionadas com isto; reconheço que imaginei a metáfora da vindima - não fiz mais do que isso, mais nada. Testifico que V. Exa. não falou de vindima, embora esteja a pensar nela, claro.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Exacto, o Sr. Deputado traduziu em metáforas aquilo que eu disse e fez jus ao velho brocardo "traduttore, traditore" ("tradutor, traidor"),

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Costa Andrade, a questão do traditore põe-se em relação à vossa "tradução" da constituição/económica! O que me preocupa mais é que V. Exa. tem medo dos consensos a frio - quer consensos a quente, rapidamente e a galope e, talvez por isso, pretende que o PS chege a acordo em relação à questão da Constituição económica.

Isto nos leva à consideração dos projectos do PSD, em outras vertentes. O PSD pretende, claramente, levar às últimas consequências a maioria que adquiriu - e isso coloca as questões todas que o Sr. Deputado António Vitorino há pouco não equacionou devidamente sobre as vãs cobiças do poder, os perigos para o regime democrático, etc.. O PS tem uma leitura, quanto a nós, incorrecta desses perigos e das suas raízes fundas.

Mas há mais. O PS recua em relação àquilo que reputava essencial e até o CDS tinha por razoável. Vou relembrar a argumentação do Prof. Doutor Freitas do Amaral (argumentação que, a crer no que ouvi hoje, abandonou). Há tempos, analisando o actual quadro criado pelas eleições de 19 de Julho, Freitas do Amaral sublinhava que, do ponto de vista conjuntural, lhe parecia "oportuno e conveniente consagrar, neste momento, na Constituição portuguesa a figura da lei paraconstitucional, lei-quadro, pois esta é a primeira vez que, depois do 25 de Abril, temos, no nosso país, uma maioria absoluta de um só partido, coincidindo numa mesma pessoa as funções de líder do partido maioritário e de chefe do Governo. Torna-se, pois, necessário [diz Freitas do Amaral], de harmonia com a mais pura tradição liberal europeia, tomar algumas providências para garantir os direitos da oposição e para conter os potenciais abusos da maioria. Como dizia Montesquieu: 'il faut que, par la disposition des choses, le pouvoir arrete le pouvoir' - essa será a função específica, entre outros institutos, das leis paraconstitucionais ou leis-quadro." "E em que circunstâncias - perguntava o mesmo orador - e com que contrapartidas poderá ser aceite esta nova figura do nosso direito constitucional? Se bem repararmos, todos os partidos da oposição, PS, PCP, PRD e CDS, propõem a adopção de tal figura - só o partido do Governo, o PSD, não o faz; não é de estranhar que-assim seja e, mais importante ainda, cumpre sublinhar que os votos conjugados de todos os partidos da oposição, se não se lhe somarem os do PSD, serão impotentes para introduzir no texto constitucional a figura das leis paraconstitucionais ou leis-quadro. Esta circunstância faz da aceitação ou não aceitação desta figura uma poderosa arma negociai nas mãos do PSD. Daí que, a meu ver - isto é, no entender do Prof. Freitas do Amaral -, uma recusa cega a incondicional do PSD, quanto a esta figura, não faça sentido. A única atitude inteligente, neste contexto, por parte do partido maioritário, consiste em dispor-se a aceitar a introdução das leis paraconstitucionais ou leis-quadro se e na medida em que os partidos da oposição, nomeadamente o PS, se dispuserem, pelo seu lado, a aceitar um conjunto de alterações tidas por essenciais".

Eis a tese que o Prof. Freitas do Amaral, pela boca do Sr. Deputado Nogueira de Brito, abandonou esta manhã. Após ter sustentado que a aprovação por maioria de dois terços no momento originário era fundamental, razoável e imprescindível, o CDS veio esta manhã sustentar que, afinal de contas, se bastaria com uma maioria de dois terços no momento da eventual reapreciação, dependente esta de um veto presidencial no caso de este ocorrer, como é óbvio (o que, só por si, fragiliza toda a arquitectura do sistema). Porquê estes recuos? São um resultado da campanha do PSD! O PSD quer tudo, pretende toda a espécie de descargas sem qualquer tipo de contrapartida e as que dá são fracas, nulas e irritas.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Não queremos!...

O Sr. Almeida Santos (PS): - Desculpe interrompê-lo, Sr. Deputado José Magalhães, mas se tem essa preocupação, por que é que não propôs a maioria de dois terços para a aprovação das leis de valor refor-

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çado que o PCP sugere? Reconheço que isto é uma pequena provocação, mas gostaria que me desse uma resposta.

O Sr. José Magalhães (PCP): - A resposta é simples, Sr. Deputado: não prevemos a descarga constitucional. Portanto, os limites desejáveis à maioria funcionam por força directa de disposições materiais da Constituição e não por limites formais introduzidos por maioria de dois terços através de leis ordinárias.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Carga, descarga ou estiva, se acasso VV. Exas. consideram que os dois terços são tão importantes, por que é que - repito - não os propuseram para as vossas leis de valor reforçado, como, aliás, também o não fez o CDS, o que, de resto, compreendo? Entretanto, compreendo menos essa defesa entusiástica dos dois terços, ao ponto de V. Exa. ter criticado o Prof. Freitas do Amaral por ter abandonado essa defesa e de se contentar agora com formas de fiscalização. Assim, por que é que VV. Exas. tinham essa preocupação e não a traduziram no vosso projecto de lei de revisão constitucional?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, a resposta - insisto - é extremamente simples...

O Sr. Almeida Santos (PS): - Não é ser carga ou descarga, porque a primeira é tão importante como a segunda.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, porque V. Exa. incorre no chamado "erro da confusão de cenários ou confusão de pressupostos". V. Exa. não se abstrai dos seus próprios pressupostos para partir para a compreensão de pressupostos alheios nesta matéria, um pouco como aquele que tão obcecado por se despir ou ter traje de Verão se esquece que os outros usam vestes de Inverno e não desejam abandoná-las. Peço, pois, a V. Exa. que pense em termos de vestes de Inverno que são as nossas, uma vez que achamos que a Constituição não deve ser despida de normas-chave em matéria económica.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Percebo perfeitamente que abandone a defesa à outrance dos dois terços. É, no fundo, proceder a uma tentativa inteligente de dizer que a única solução é recuarmos até à vossa proposta. Isto tem, de facto, inteira lógica.

Entretanto, não percebo a sua posição, pois estar agora a defender os dois terços quando o não fez no momento em que elaboraram a vossa proposta é algo que não faz sentido!...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, permita-me que procure, sucintamente, resumir a lógica da nossa proposta.

Há pouco fiz aquilo a que chamam "o argumento da coerência interna do PS". Tomei os pressupostos do PS para anotar o que, no cenário e nos pressupostos deste partido, ficava de fora. Ora o PS tem como pressuposto básico aquele que enunciou esta manhã o Sr. Deputado António Vitorino: "Constituição aberta", "Constituição mínima em termos de organização económica".

Pausa.

Permita-me obviamente que resuma o meu entendimento sobre esta matéria, sem ter de repetir aquilo que é a própria ganga ideológica e semântica cosmética da proposta do PS...

O Sr. António Vitorino (PS): - Desculpe interrompê-lo, Sr. Deputado. Aceito, de facto que V. Exa. caricature as minhas posições, mesmo que, posteriormente, quando revê a acta retire a caricatura!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Há-de ser difícil!

O Sr. António Vitorino (PS): - Aceito, pois, a caricatura, mas não já que resuma as minhas posições nesses termos, pois não são verídicos.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Posso - se insiste - reproduzir inteiramente as palavras de V. Exa. esta manhã para aludir ao modelo de constituição económica que o Sr. Deputado aqui defendeu. E digo que sobre ele o entendo mínimo e veiculador de uma noção minimalista daquilo que deva ser uma constituição económica. É esse o meu e o nosso juízo sobre essa matéria...

O Sr. António Vitorino (PS): - Não é esse o nosso juízo, nem o nosso objectivo.

O Sr. José Magalhães (PCP): - ... sendo público que não é esse o juízo do PS e menos ainda o de todos os seus possíveis representantes. Sucede, no entanto, que esse é um cenário de descarga.

Pelo contrário, o Sr. Deputado Almeida Santos tem no nosso projecto de lei de revisão constitucional, analisado em termos de coerência intrínseca (porque é disso que estamos a tratar), a resposta para a questão grave que enunciou. De facto, não alterámos, nem reduzimos, as fronteiras da Constituição. Pelo contrário, criámos elementos de reforço dos poderes e dos direitos das minorias, colocámos elementos de contrapeso e de controle de certos abusos potenciais da maioria, procurámos reforçar e reequilibrar o sistema, incluindo quanto à vertente presidencial, sem desfigurar o estatuto e sem regressar ao modelo anterior a 1982. Foi dentro destes parâmetros que nos movemos. Ora, nesse quadro, com as condições que presentemente caracterizam a constituição económica e com os reforços e alargamentos de competências que propusemos, não se colocava com este grau de urgência o problema que V. Exa. coloca de fazer aprovar certas leis por dois terços.

O Sr. Almeida Santos (PS): - V. Exa. não considera que teria lógica ligar ao valor reforçado das leis, que passam a impor-se a outras leis ordinárias, uma maioria reforçada? Não julga que teria mais lógica, nesse caso, ou, pelo menos, tanta lógica, como nos variados casos em que o PCP propõe que passem a ser votadas por dois terços determinadas leis? Portanto, creio que não vos repugna a maioria de dois terços.

Pergunto-lhe ainda por que é que nos casos das leis que deviam ter um valor reforçado de molde a imporem-se a outras leis, VV. Exas. abandonam a exigência dos dois terços. E fazem essa exigência um pouco avulsamente em relação a outras leis que não têm esse valor reforçado. Não lhe parece que não há lógica nisto?

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Na verdade, resignava-me se acaso não houvesse outras leis para as quais VV. Exas. pedem a aprovação reforçada de dois terços. E para aquelas a que atribuem valor reforçado VV. Exas. prescindem da maioria qualificada, ou seja, de um consenso alargado!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, em termos de coerência intrínseca adiantei aquilo que lhe posso adiantar nesta sede e neste momento. Já em termos de posição face ao quadro movente da revisão constitucional os Srs. Deputados terão a nossa maior atenção e empenhamento na consecução de soluções de defesa da Constituição. Não encontrou da minha parte nenhuma espécie de objecção a alguns dos argumentos que foram expendidos para legitimar ou justificar a exigência de uma maioria especialmente qualificada para aprovação de certas leis.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Não duvido da sinceridade de V. Exa. mas, sim, de que tenhamos o mesmo conceito de Constituição a defender. De facto, o Sr. Deputado pensa que a Constituição a defender é a que está, enquanto que o PS considera que é a do País em qualquer das suas formulações. Porém, a que está não é, para nós, necessariamente, a melhor de sempre. Portanto, o PS quer outra melhor do que a que existe, enquanto o PCP pensa que a vigente é melhor do que qualquer outra que venha. É esta a divergência entre nós.

O Sr. José Magalhães (PCP): - V. Exa. acaba de enunciar - em termos que são, quanto a nós, extremamente negativos, mas que exprimem e sintetizam rigorosamente o vosso pensamento - um dos problemas centrais deste processo de revisão constitucional e um dos aspectos-chave para o futuro do regime e dos nossos próprios partidos...

O Sr. Almeida Santos (PS): - Não há dúvida nenhuma! Temos, aliás, consciência disso!

O Sr. José Magalhães (PCP): - ... e do sistema político. Também não tenho dúvida nenhuma sobre esse aspecto. Essa é, de facto, uma questão cuja ultrapassagem dificilmente poderia ser feita neste momento e nesta sede.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Não tem solução!

O Sr. José Magalhães (PCP): - No entanto, em relação à questão que se suscitou sobre a técnica normativa utilizada pelo PS e o seu modelo gostaria de fazer algumas observações que, de resto, dão resposta a interrogações colocadas pelo PS.

Quanto à questão da maioria de dois terços, creio que o problema é que o PSD quer libertar-se dos limites constitucionais praticamente em todas as zonas - não apenas naquelas que o PS considera justificadas, mas noutras. E isto é uma margem de discordância entre o PS e o PSD, o que, aliás, é visível. O PSD quer o "bom senso" consensual sem "constrangimentos"; quer forçar resultados e consensos sem negociações, baratos e sinalagmáticos; quer, por exemplo - isso resultou muito claramente da intervenção do Sr. Deputado Rui Machete -, poder (como já ocorreu!) restringir à vontade os direitos dos partidos da oposição, aprovar a Lei da Rádio, o Regimento e a Lei Orgânica da Assembleia da República e, ao mesmo tempo, pedir consensos para alteração da organização económica... Eis todo um estão de fazer política e encarar o regime...

O Sr. Presidente: - Isso não resultou daquilo que eu disse! V. Exa. está a fazer uma interpretação que considero abusiva, mas isso é consigo!...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Lamento muito, Sr. Deputado Rui Machete. A experiência que tivemos da discussão da Lei Orgânica da Assembleia da República e do Regimento legitima todas as desconfianças. Nesse sentido, estou inteiramente de acordo com as afirmações produzidas pelo Sr. Deputado António Vitorino, no sentido de que se trata de uma questão de garantia e de segurança. Acontece que as questões de garantia e de segurança se colocam perante a natural desconfiança existente entre forças políticas e partidárias num determinado sistema político e este funciona como maneira de gestão e de arbitragem, de conglobação, e não apenas de somatório dos conflitos desenvolvidos por esse sistema de mútuas e recíprocas desconfianças, com todas as suas dimensões e afloramentos em todos os terrenos: no político, económico, social, cultural, etc.

Há, de facto, a esse nível muitas evidências contrastantes e chocantes. O espaço de compromisso deveria constar da Constituição em todas as suas dimensões e corolários. A luta pela transformação da Constituição no sentido de favorecer o partido que alcançou uma maioria absoluta num determinado momento histórico coloca problemas e desafios que põem em causa o sistema constitucional e a própria vitalidade da Constituição. Há riscos de dissolução do seu normativismo numa espécie de decisionismo, sujeito às incertezas da gestão do sistema pelo partido que o controla e que aspiraria a dominá-lo integralmente. A desconfiança existe, a experiência concreta das leis que referi é fundamental que esteja presente nesta sede, porque as descargas projectadas podem ser fundadoras de processos de maior gravidade ainda do que os que se verificaram na constância desta Constituição com o seu texto (refiro-me, por exemplo, à lei dos 49%).

Estou, repito, de acordo com as observações feitas pelo Sr. Deputado António Vitorino quanto à inaceitabilidade da visão que o PSD tem da intangibilidade do princípio maioritário e da leitura maximalista que dele faz, que é, no limite, aniquiladora dos direitos das maiorias e propiciador de uma concepção nos termos da qual a Lei Fundamental acaba por ser propriedade da maioria. A Constituição não seria então apenas minimalista, mas também minimalista e apropriada monopartidariamente. E essa seria a pior das soluções imagináveis, sobretudo se somada a um princípio que permitisse a transcedência plebiscitaria (camuflada ou não) da Constituição, através de mecanismos de intervenção ou pseudo-intervenção popular na decisão de conflitos accionados pelo chefe, em conjunturas controladas pelo partido do Poder, e só por este, à margem de mecanismos institucionais de controlo (descrevi a solução proposta pelo PSD em matéria de referendo).

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Insisto em que os projectos do PSD em matéria económica não devem ser encarados desligadamente dos aspectos que acabo de referir.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Deputado José Magalhães, é minimalista no sentido de propor o Estado mínimo teorizado por Nozick.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Será o Estado mínimo, mas aplicado com a dimensão e o conceito que ele normalmente tem em certa doutrina neoliberal, porque esse Estado é bastante máximo e armado em determinadas áreas, designadamente na da segurança, como se sabe!

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - É o Estado mínimo no sentido de Nozick?

O Sr. José Magalhães (PCP): - E não só!

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - A sua interpretação surpreende-me!

O Sr. José Magalhães (PCP): - É evidente que ao arrepio do quadro traçado pelo PS (em que há incindibilidade entre as descargas e os reenvios normativos e estes se fazem por dois terços originariamente plasmados) a posição do PSD é de inarredável gula do todo e de indisponibilidade para considerar qualquer outra solução. Isso parece-nos extremamente grave e um dos aspectos de bloqueio do processo de revisão, ainda que dele tenhamos a visão geral que deixei retraçada.

Gostaria de colocar, sob o ponto de vista técnico, alguns problemas na sequência da intervenção do Sr. Deputado António Vitorino. De facto, o Sr. Deputado equacionou aqui questões que considero extremamente relevantes e que, de resto, nos levaram a apresentar a nossa proposta respeitante às leis de valor reforçado, decorrente do facto de no nosso direito constitucional o regime jurídico das leis de bases, das leis-quadro, etc., padecer dos vícios que caracterizou de forma correcta. Adiro, pois, nesse ponto à análise que V. Exa. fez.

Sucede, no entanto, que o Sr. Deputado define as leis paraconstitucionais como leis de princípios fundamentais, ou que contém as estruturas dos regimes jurídicos. Tal noção é de uma extrema dificuldade e melindre, não só pelas mesmas razões que invocou quanto às leis de bases e leis-quadro, como pelo facto de estes institutos, que agora seriam criados, se moverem com fronteiras constitucionais alteradas.

Creio que este é um ponto suficientemente relevante para poder ser objecto de alguma atenção adicional: é que não se trata apenas de definir princípios estruturantes, mas sim de definir princípios estruturantes com a correspondente, correlativa e proporcionada descarga de conteúdos constitucionais. Portanto, a definição do que seja "princípios estruturais" torna-se redobradamente importante, por se pressupor descarga constitucional dessa matéria (simultânea ou ulterior). Alguns dos elementos que são hoje necessários para poder emitir um juízo de constitucionalidade sobre dado diploma deixariam de existir, as coisas deixariam de se situar

no terreno da constitucionalidade. Situar-se-iam, sim, num terreno de fronteiras reduzidas do edifício constitucional, face a um parâmetro legal "paraconstitucional".

Isto leva-me a perguntar ao PS se não entende que é enorme o risco decorrente dessa descarga dadas as dificuldades operacionais do conceito de princípios fundamentais ou elementos estruturadores de um regime jurídico. Tudo aquilo que o Sr. Deputado António Vitorino referiu sobre as leis de bases é susceptível de ser dito, em triplo, da definição de princípios estruturantes no caso de transfega de conteúdos constitucionais. Usando o caso do regime eleitoral, que é uma questão palpitante, façamos o exercício de decompor a análise do regime eleitoral nos seus subaspectos normais. O Sr. Deputado António Vitorino entendeu que as questões respeitantes ao ilícito eleitoral "é óbvio" que não faziam parte dos princípios fundamentais. Digo-lhe francamente que não sei porquê, uma vez que em relação ao ilícito eleitoral pode haver determinadas grandes opções, que, mesmo na sua óptica (que também me parece razoavelmente minimalista), deveriam ter de constar desses princípios fundamentais estruturantes. É óbvio que, se se inventar um regime ad terrorem quanto aos ilícitos eleitorais ou, pelo contrário, um regime laxista, propiciando violações em tropel, o conteúdo preceptivo das normas protegidas é alterado, porventura esvaziado. Portanto, a segurança quase tranquilizada com que o Sr. Deputado António Vitorino disse "ilícitos eleitorais é óbvio que não" só nos dá intranquilidade...

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador.)... a esse terrorismo de interpretação do legislador em matéria de ilícitos eleitorais.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado António Vitorino, ou damos de barato a estabilidade dos conteúdos constitucionalmente plasmados ou não! Se, entretanto, V. Exa. me diz que não há descarga, o raciocínio que estou a fazer cai...

O Sr. António Vitorino (PS): - É óbvio que cai!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Se o Sr. Deputado me diz, ao invés, que há descarga, o raciocínio mantém-se. A escolha é sua!...

O Sr. António Vitorino (PS): - Aliás, é uma queda livre. Entretanto, o que o Sr. Deputado José Magalhães tem de demonstrar é onde estaria essa descarga, porque até este momento não o fez. De facto, não há nada na Constituição que constitua limite à definição pelo legislador comum dos ilícitos eleitorais, a não ser as regras gerais aplicáveis a todas as formas de ilícitos, eleitorais ou não. Como é evidente, está fora de causa retirar da Constituição normas limitadoras da faculdade geral do legislador comum de estabelecer ilícitos apenas porque a lei eleitoral passaria a estar protegida pela regra dos dois terços. Portanto, V. Exa. escolheu um

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mau exemplo, qual seja o dos ilícitos eleitorais! Compreendo o seu raciocínio e julgo que até tinha facilitado se escolhesse outro exemplo, porque nesse não tem base de sustentação.

Entretanto, já hoje a Constituição, a não ser nas regras gerais limitadoras da definição de ilícitos, lhe pode dar essa garantia.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Percebo que o preocupe a argumentação em torno dos aspectos mais frágeis, mas relembro-lhe que no vosso cenário - e só estou a mover-me nele porque, infelizmente, não posso fazê-lo noutro -, ou no vosso quadro de pressupostos, é preciso apurar muito rigorosamente o que é que fica dentro e fora. V. Exa. acaba de me confirmar o que é que fica fora e de aditar aos autos o "mérito da desprotecção vigente". É, de facto, uma nova figura. Entretanto, pede-me com um ar um pouco inconsolado: "Não nos chamem tolos, nem nos insultem!" Porém, eu não estava desgraçadamente a discutir isto no terreno da inteligência política mas, sim, na área da comparação quase tabeliónica do que fica dentro e fora. E isso fica de fora, o que é que hei-de fazer?!...

O Sr. António Vitorino (PS): - Desculpe, Sr. Deputado, mas não é sério argumentar assim, porque não me pode imputar a responsabilidade de me servir da desprotecção existente como alibi para defender a minha posição, quando V. Exa. sabe perfeitamente que não existe nenhuma desprotecção existente. E digo isto na medida em que, se na actual Constituição existisse essa desprotecção em relação à definição dos ilícitos eleitorais, o PCP teria decerto, no seu projecto de lei de revisão constitucional, proposto normas limitadoras dessa desprotecção. E como a este propósito nada propôs... Não é sério argumentar nessa base falaciosa.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado António Vitorino, uma coisa é acusar-me de falta de memória ou de falta de percepção; outra coisa é deslocar as questões para o terreno da seriedade política ou argumentativa, coisa que lhe peço veementemente que .não faça, por uma razão simples: é porque não tem legitimidade para isso.

As propostas que são apresentadas estão sujeitas ao fogo crítico, podemos naturalmente verificar quando um argumento é correcto ou não é correcto. Mas é uma técnica que me lembra desagradavelmente a intervenção desabrida de alguém há tempos na televisão a propósito do Tribunal Constitucional, zarpar de argumentos de suspeição a propósito de uma questão tão miúda e tão modesta como aquela que coloquei. Se V. Exa. entende que é ilegítimo fazer uma comparação tabeliónica deste tipo, tem todo o direito de o dizer. O que não tem seguramente é o direito de dirigir uma suspeição (in)fundada em critérios de honestidade política. Sugiro que não o faça!

O Sr. António Vitorino (PS): - No caso de eu também ter accionado alguma zona de nenufaridade sensitária do Sr. Deputado José Magalhães com o argumento "sério", eu digo que o seu argumento não é um argumento produtivo e frutuoso para o diálogo que estávamos a travar.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Isso é coisa totalmente diferente, Sr. Deputado António Vitorino, como bem compreenderá.

O Sr. António Vitorino (PS): - É que era este o sentido que eu lhe estava a dar, e não outro.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Quanto à "nenufaridade", é, obviamente, inexistente. Não está cá o nenúfar da Casa.

Como o Sr. Deputado António Vitorino teve ocasião de sublinhar, esta manhã, a legislação vigente sobre as matérias previstas no artigo 166.° ficaria protegida quanto aos elementos estruturantes. Essa legislação abrange, como se sabe, o ilícito eleitoral e portanto estas minhas perguntas não decorrem de uma técnica viciosa de argumentação, mas de uma preocupação de saber o que fica protegido e o que fica sujeito à maioria. É importante que nos entendamos quanto a isto para que saiba, cada um, com frontalidade, e também com seriedade, quais são os resultados da aplicação do mecanismo proposto pelo PS.

Mas anotava outros aspectos: leríamos que ver se nos princípios estruturantes, no vosso cenário repito, coisas como as relativas à capacidade eleitoral estariam incluídas. E as coisas relacionadas com sistemas eleitorais? Seguramente teriam que estar, pelo menos, em relação ao seu núcleo fundamental. O próprio recenseamento eleitoral estaria? Em relação ao processo eleitoral que garantias, designadamente quanto às campanhas? Estes são aspectos fundamentais e estou só a tomar o exemplo da lei eleitoral. Se formos a cada um dos outros regimes teríamos que nos desdobrar em perguntas deste tipo.

A minha pergunta e interrogação básica é se não corremos o risco de eliminar aspectos essenciais da Constituição, à falta de uma adequada definição. Repare-se que a noção que o Sr. Deputado António Vitorino aqui trouxe de que as "pcs" abrangem só os princípios estruturais, os princípios fundamentais, é uma aclaração do sentido da proposta do PS, é uma aclaração que foi feita agora e não antes, pelo menos que eu me tivesse apercebido. Corremos o risco de o Sr. Deputado António Vitorino, daqui a uns tempos, poder vir dizer, em relação às paraconstitucionais, o mesmo que aqui disse sobre a posição do Tribunal Constitucional em relação às leis de bases: "o Tribunal Constitucional não teve a coragem de fazer as descodificações e distinções necessárias face àquilo que é o conceito de paraconstitucionais", que "o Tribunal Constitucional .fez, em relação às paraconstitucionais, o mesmo que fez em relação às leis de bases", etc. Acresce, porém, que a acusação do Sr. Deputado António Vitorino teria de ser muito mais grave porque diria, nesse cenário, respeito às fronteiras constitucionais. Então a acusação seria: "o guarda da Constituição não defendeu as fronteiras constitucionais tais quais eu (ele, o Sr. Deputado António Vitorino) as imaginava quando fiz esta norma constitucional", "o guardião da Constituição subverteu os resultados da revisão constitucional", "o guardião da Constituição colocou a fronteira constitucional mais atrás do que ela devia ser".

E eu pergunto-lhe: como é que ultrapassa este argumento? Creio que é uma questão que tem de ser objecto de contemplação.

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O Sr. António Vitorino (PS): - Desculpe, Sr. Deputado José Magalhães, mas é que as actas demonstrarão que eu só fiz referência à posição do Tribunal Constitucional nesta matéria, depois de ter sublinhado que a insuficiência maior neste domínio é do legislador. Portanto: o que sublinhei foi a lacuna do sistema legislativo que pretendemos colmatar, que o Tribunal Constitucional por si só não tem preenchido totalmente.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Eu tinha percebido isso, Sr. Deputado António Vitorino, não inculquei o contrário. Mas, face à vossa proposta, o risco é que a questão se coloque com predomínio do segundo momento, e não do primeiro momento. Porque suponha que V. Exa. entende que a fronteira da lei paraconstitucional e do princípio fundamental ou do elemento estruturador ou estruturante é x + 20, e o outro protagonista da elaboração desse regime entende que esse limite é x + 10. VV. Exas. estabelecem, por lei aprovada por todos os que se desejem associar a isso, um determinado regime normativo, e o regime é minguado. Em caso de litígio, quem decide? O Tribunal Constitucional. Portanto a questão coloca-se.

Uma última observação. Quais são os efeitos colaterais da instituição de um regime destes? Sabendo-se que o PSD está apostado numa estratégia de transcendência, de superação plebiscitaria camuflada do regime, e prevendo o PS também a instituição do referendo - embora o PS preveja no seu projecto de revisão constitucional, no artigo 112.°-A, n.° 4, que as matérias que sejam objecto de lei paraconstitucional não possam ser -objecto de referendo -, não temos decifração da posição do PSD sobre a questão do referendo. Se, porventura, houvesse qualquer associação entre a consagração de leis paraconstitucionais, neste ou naquele domínio, mas com possibilidade de referendo, designadamente abrogativo, em matérias desse tipo, é óbvio que a situação criada seria extremamente grave para a própria estabilidade do sistema criado no vosso ideário e no vosso conceito.

O juízo sobre o sistema, além de estar dependente do conjunto de interrogações que há pouco foram suscitadas, ainda está dependente de saber se o sistema não está aberto à superação plebiscitaria, camuflada ou aberta. E, designadamente, qual a posição do PSD sobre o artigo 112.°-A (porque o artigo 166.°-A não pode ser visto desligadamente do regime referendário em cuja degeneração plebiscitaria o PSD está apostado). Esse regime referendário sonhado pelo PSD, que poderia inclusivamente abranger matérias da revisão constitucional, por maioria de razão poderia abranger matérias de lei ordinária paraconstitucional...

Devo dizer, por outro lado, e por último, que nos parece extremamente positivo que se opere a clarificação do regime jurídico das leis reforçadas. Aliás nós propusemo-la. E é essencial que isso seja acompanhado das cautelas adequadas para evitar que a repartição de competências entre órgãos de soberania seja subvertida neste ponto, que é uma pedra de toque para aferir da própria estabilidade e existência do Estado de Direito Democrático em Portugal.

Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Vice-Presidente Almeida Santos.

O Sr. Presidente (Almeida Santos): - Daria agora a palavra ao Sr. Deputado Nogueira de Brito e depois

ao Sr. Deputado Sottomayor Cárdia, aos quais pedia um esforço de comedimento no dispêndio de tempo. No fim falará o Sr. Deputado António Vitorino, a quem peço o mesmo. Tem a palavra o Sr. Deputado Nogueira de Brito.

O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - Vou ser rápido. Uso da palavra, também para questionar o Sr. Deputado António Vitorino, e fazia-o começando por um esclarecimento em relação à questão posta pelo Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. Deputado José Magalhães pôs também uma questão ao Sr. Deputado António Vitorino e, no decurso dessa questão, citou posições do meu partido sobre as leis paraconstitucionais, mais precisamente do presidente do meu partido, Prof. Freitas do Amaral.

Queria dizer o seguinte: mais uma vez o Sr. Deputado José Magalhães é exímio em isolar declarações de um contexto e em sublinhar o sentido resultante desse isolamento. É claro que as declarações que foram feitas sobre as leis paraconstitucionais e a sua importância foram feitas no contexto de uma apreciação global dos projecto de revisão constitucional e de uma tentativa de detecção de áreas possíveis de acordo, na perspectiva da formação da maioria de dois terços.

É claro que nós não subalternizámos nunca - o Prof. Freitas do Amaral não subalternizou quando fez essas declarações, nem ontem à noite quando se pronunciou sobre o assunto, nem hoje nós aqui quando nos pronunciámos sobre a nossa proposta ou o nosso projecto - o sentido político da criação das leis paraconstitucionais ou das leis orgânicas, e aliás o que fizemos foi não colocar apenas esse sentido político, os efeitos políticos da criação dessa figura, na perspectiva da defesa das minorias mas em sede - para nós porventura mais importante - de equilíbrio de poderes, de equilíbrio entre o poder legislativo e o poder executivo, designadamente na perspectiva de uma situação de governo maioritário, com o é aquela que temos agora. No entanto, entendemos que a solução que encontramos para esta figura, no tocante à delimitação dos seus contornos, é uma solução equilibrada, designadamente no modo como essa solução trata o princípio maioritário. E, por isso, nessa solução - repito sem subalternizarmos o efeito político que ela possa vir a ter em sede de equilíbrio dos poderes - deslocámos, desde o princípio, a exigência dos dois terços para a confirmação dos actos normativos. Era esta a primeira questão que queria pôr ao Sr. Deputado António Vitorino. Quando, há pouco, o Sr. Deputado falou das soluções possíveis para uma situação de desacordo entre o PS e o PSD, em relação à figura das leis paraconstitucionais, aludiu apenas à possibilidade de deslocação de alguns dos princípios respeitantes às matérias que o PS considera como devendo constituir objecto de leis paraconstitucionais, para a própria Constituição. Solução que foi apenas uma das soluções alvitradas pelo Sr. Deputado Costa Andrade. O Sr. Deputado alvitrou, porém, uma outra hipótese de solução que é uma solução que se identifica com o nosso delineamento das leis orgânicas e que consiste em deslocar a exigência dos dois terços para sede da confirmação e não da aprovação inicial da lei. Gostaria de saber qual a posição do PS, pela voz do Sr. Deputado António Vitorino, sobre esta possibilidade de saída para um desacordo inicial. Aproveito estar a usar da palavra, e

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muito rapidamente - não irei, Sr. Presidente, infringir a regra que me impôs -, para responder aqui ao Sr. Deputado Rui Machete quando há pouco me perguntou, a propósito da definição de um princípio da prevalência das leis orgânicas, se elas prevaleceriam sobre as leis de bases. Eu disse que prevaleciam sobre as leis de bases, mas o que eu queria efectivamente dizer é o seguinte: é que naturalmente as leis orgânicas - e aliás resulta da forma como defini as leis orgânicas propostas pelo CDS - serão leis de bases ou leis-quadro. E, portanto, elas prevaleceriam sobre outras leis de bases que, porventura, conflituassem com uma lei definida por nós como lei orgânica, ou com outra denominação que ela possa ter na terminologia usada por outros partidos. Aliás, ao definir uma destas espécies - muito embora, como diz a Sra. Deputada Assunção Esteves, acrescentando o elenco dos actos normativos, mas, ao defini-la com o maior rigor, nós estamos a contribuir para eliminar as confusões a que se referiu o Sr. Deputado António Vitorino. Porque realmente a confusão hoje existe, na medida em que, para além de uma referência em termos sistemáticos à iei de bases, todas as outras categorias são referidas avulsamente no texto constitucional e, portanto, sem que haja uma preocupação de as definir. São referidas e não definidas. São referidas avulsamente e isso introduz uma grande confusão no panorama dos nossos actos normativos. Ao acrescentar um tipo, mas ao defini-lo, nós estamos a contribuir não para a confusão (e aqui respondo à Sra. Deputada Assunção Esteves e ao Sr. Deputado Rui Machete) mas para eliminar essa confusão.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sottomayor Cárdia.

O Sr. Sottomayor Cárdia (PS): - Sr. Presidente, a minha brevíssima intervenção dirige-se especialmente aos Srs. Deputados do PSD.

Sou muito sensível à questão da hierarquia das normas e basicamente talvez por não ser jurista mas apenas lógico. Esta questão da hierarquia das normas é uma questão muito importante e impressiona-me o risco de indeterminação do alcance da paraconstitucionalidade.

Pergunto-me, contudo, se não há uma maneira simples, simples como orientação, de obviar a este inconveniente. O disposto nas leis actuais, que estatuem sobre matéria que será qualificada como paraconstitucional, poderá ser distribuído por leis paraconstitucionais e por leis regulamentares dessas leis, ou seja por leis ordinárias. Poderá e, do meu ponto de vista, afigura-se-me que deverá ser distribuído. Se assim for, parece-me que o argumento sobre a incerteza e confusão sobre o que é e não é paraconstitucional, na disciplina das matérias correspondentes, desaparece.

Já que estou no uso da palavra, e verificando que ignorava existir controvérsia entre os juristas sobre a interpretação da Constituição no que respeita à hierarquia das normas, então permitir-me-ia sugerir que isso seja também objecto do nosso debate, no momento próprio, e que não apenas o legislador ordinário, mas o próprio legislador constituinte, contribua para aclarar essas dúvidas, ou preencher essas lacunas, que existem actualmente.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino, se possível para um remate e, se possível, sucinto.

O Sr. António Vitorino (PS): - Uma pequena nota prévia: sempre terei que carregar com a mágoa de não ter conseguido demover a Sra. Deputada Assunção Esteves da sua rejeição das leis paraconstitucionais, nem mesmo recorrendo a argumentos emocionais, que eram, confesso, a minha arma secreta.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Se eram racionais era só estado de espírito.

O Sr. António Vitorino (PS): - Não, não, emocionais só.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Emocional também.

O Sr. José Magalhães (PCP): - O Sr. Deputado António Vitorino é insuspeito de qualquer confusão entre emocional e racional, sobretudo em matéria de armas secretas...

O Sr. António Vitorino (PS): - Talvez em todos nós haja uma mistura desses dois sentimentos.

Quanto ao Sr. Deputado Rui Machete, direi - ele não está presente, mas convém registar este ponto para a acta - que a única questão em que estou de acordo com ele é que a nova categoria que nós criamos de leis paraconstitucionais não resolve o problema que levantei das relações entre actos legislativos, mas torna a matéria tão premente que, obviamente, com a sua consagração, não se pode deixar de equacionar uma solução que englobe todas as vertentes: a das leis paraconstitucionais, a das leis de bases e das leis-quadro e a das leis de autorização legislativa.

A questão que também foi colocada, e já foi respondida pelo Sr. Deputado Nogueira de Brito, é que as leis paraconstitucionais, ou leis orgânicas, ou leis reforçadas, prevalecem sobre todas as demais leis em razão da matéria, ou seja sempre que qualquer outra lei, nem que seja por conexão legislativa acessória, versar matérias que visem alterar, modificar, suspender, revogar matérias objecto de leis paraconstitucionais, essa alteração, suspensão, limitação, revogação estará impossibilitada pela prevalência das leis paraconstitucionais em razão da matéria.

Quanto à questão que o Sr. Deputado Nogueira de Brito colocou do veto reforçado, isto é, da confirmação por dois terços no caso das leis paraconstitucionais, naturalmente que nós entendemos que uma proposta está ligada à outra, mas elas podem ser dissociadas em tese geral, em abstracto. E, portanto, entendemos que, independentemente da maioria da aprovação, se confirma, nestas matérias, que o veto só possa ser ultrapassado por uma maioria qualificada de dois terços. Só que na nossa proposta há uma lógica interna: é que, como a aprovação é por dois terços dos deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções, a confirmação será por dois terços dos deputados em efectividade de funções.

Esta é, pois, a nossa lógica! Como é natural, se não houver dois terços na aprovação, a confirmação já não

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precisa de ser feita por dois terços dos deputados em efectividade de funções e pode ser apenas por dois terços dos deputados presentes. É, pois, a ligação entre as duas maiorias que estabelecemos na nossa proposta. Deixei o Sr. Deputado José Magalhães para o fim porque nas refeições a sobremesa também fica para o final.

O Sr. Presidente: - Não foi o prato forte?

O Sr. António Vitorino (PS): - Não, Sr. Presidente. É que o Sr. Deputado José Magalhães faz sempre intervenções que constituem verdadeiras cerejas do debate parlamentar: são saborosas, suculentas, mas com caroço. É por esta razão que disse que o deixava para o fim.

Não vou antecipar o debate que vai ser, provavelmente, travado nesta Comissão e no Plenário a propósito do artigo 290.°, ou seja, sobre essa questão nova que surgiu no debate sobre a revisão constitucional pela voz do secretário-geral do Partido Comunista Português e que é a relativa à identidade da Constituição e à identidade do sistema democrático-constitucional. Essa é uma matéria interessantíssima, que apenas está indiciada nas declarações do Dr. Álvaro Cunhal, mas que nos levará muito longe. Levar-nos-á, se calhar, a ter que assumir o balanço de 25 anos de vida política portuguesa, de debate político-partidário em Portugal, bem como uma leitura realista do significado das transformações políticas, económicas e sociais introduzidas no nosso país nos últimos 15 anos. Esse será, provavelmente, um momento interessante desta revisão para que nos encontremos com a história e para que façamos o balanço do papel que cada partido teve na sociedade portuguesa neste último quarto de século. Não vou antecipar esse debate, vou apenas dizer que no momento em que discutimos as propostas de alteração sobre a constituição económica o Sr. Deputado José Magalhães não conseguiu demonstrar ao Partido Socialista que a descarga que fazíamos da constituição económica alterava a sua natureza fundamental. Portanto, para efeitos operativos do debate não vale a pena estarmos, neste momento, a imputar uma conclusão que não teve uma demonstração fáctica no local e no momento próprio, que foi o do debate das alterações à constituição económica. Concedo que num ou em outro ponto relativo à reforma agrária pode ter tido alguma razão, mas só aí e em mais nenhuma outra passagem da Constituição económica, incluindo naquilo que diz respeito à apropriação colectiva dos meios de produção. Os exemplos que o Sr. Deputado José Magalhães deu foram infelizes. Ao dizer que eu me tinha louvado encomiasticamente das declarações de inconstitucionalidade recentemente feitas pelo Tribunal Constitucional, deixou indiciar que o. Partido Socialista, ao não se identificar com o sentido das mesmas no projecto de revisão constitucional, apunhalaria pelas costas os próprios fundamentos dessas declarações de inconstitucionalidade. Ora, isto não é verdade porque as duas declarações de inconstitucionalidade que foram proferidas até este momento foram as seguintes: uma referente às regras de elaboração do Orçamento e outra à lei do despedimento individual. No nosso projecto de revisão constitucional as regras de elaboração do Orçamento mantêm-se intactas. Até tivemos a preocupação de propor o seu alargamento em matéria de elaboração do Orçamento, o que é uma atitude exactamente ao arrepio, no sentido contrário àquilo que o Sr. Deputado José Magalhães nos imputou.

Em relação ao artigo 53.°, gostaria de dizer o seguinte: não só não propusemos alterações ao artigo 53.°, como, inclusivamente, no debate que travámos nesta Comissão exprimimos a nossa recusa total em alterar esse mesmo artigo da Constituição. Portanto, se o projecto de revisão constitucional do Partido Socialista fosse aprovado na íntegra, a Constituição da República dele resultante continuaria a fundamentar aquelas declarações proferidas pelo Tribunal Constitucional, nos precisos termos em que o foram.

Quanto ao último problema que o Sr. Deputado José Magalhães levantou, ou seja, àquele que diz respeito à fronteira entre o texto constitucional e as leis paraconstitucionais, e no que concerne aos princípios estruturantes, gostaria de dizer o seguinte: como é óbvio, esta é uma matéria relevante e em relação àqueles exemplos que deu - ilícito e capacidade eleitoral, sistema eleitoral, recenseamento e campanha - entendemos que as normas que hoje constam da Constituição são normas estruturantes destes regimes. Assim, não se justificaria, nem mesmo com a criação das leis paraconstitucionais, que todas elas fossem eliminadas da Constituição. Aquelas que viessem a ser eliminadas da Constituição teriam, de certo, que fazer parte das leis paraconstitucionais por expressa cominação da própria Constituição - solução esta que, aliás, já adoptámos quanto ao estatuto da informação. Quando no n.° 4 ou no n.° 5 do artigo 37.° elencámos matérias sobre o direito de resposta, sobre o direito de antena e direito de réplica, sobre o licenciamento de estações emissoras de radiotelevisão, dissemos que estavam aí matérias que entendíamos que constituíam princípios estruturantes e que deveriam forçosamente constar da lei paraconstitucional do estatuto da informação.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Nogueira de Brito.

O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - Sr. Deputado António Vitorino, suponho que essa questão de "descarga" que foi colocada pelo Sr. Deputado José Magalhães se coloca nos seguintes termos: em relação a alguns destes temas elencados como contendo projectos de leis paraconstitucionais VV. Exas. promovem a descarga dos dispositivos constitucionais? Isto é, VV. Exas. em algum deles preparam-se para transferir para as ditas leis normas que estão hoje na Constituição?

O Sr. António Vitorino (PS): - Não, Sr. Deputado. Não nos entregamos sequer a esse exercício - o que, aliás, tive ocasião de explicar logo no início - porque quisemos demonstrar, por via cautelar, que em relação a estes aspectos o nosso objectivo não era o de vulnerabilizar nenhum dos elementos fundamentais da Constituição. Nunca o poderíamos fazer, nem nunca assentiremos em qualquer solução intermédia ou mitigada que se traduza numa diminuição das garantias constitucionais nestas matérias. Agora há uma coisa que é importante esclarecer e que é a duplicidade de argumentação do PCP em relação a esta matéria. Se tivéssemos utilizado a táctica contrária, que era a de

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integrar nas leis paraconstitucionais a matéria da Constituição económica e de vulnerabilizar outras matérias, como é o caso do sistema eleitoral, a organização do Orçamento do Estado...

O Sr. José Magalhães (PCP): - ... ou o estado de sítio e de emergência ou qualquer outra coisa desassisada! Nesse caso seriam, como é óbvio, criticados duplamente.

O Sr. António Vitorino (PS): - O Sr. Deputado José Magalhães viria também dizer que estávamos a enfraquecer a identidade do sistema democrático.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Aliás, com toda a razão!

Vozes.

O Sr. António Vitorino (PS): - Termino já!

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não termine já. Sr. Deputado. É que está a entrar no mais interessante...

O Sr. António Vitorino (PS): - Não, Sr. Deputado. É que não vou nem quero antecipar o tal debate.

Sr. Deputado José Magalhães, já está prometido que vamos travar esse debate sobre a identidade da Constituição, que, aliás, é o mais interessante de toda esta revisão constitucional. Travá-lo-emos a propósito do artigo 290.° Isso é inevitável e, aliás, está prometido. Em meu entender, o que é insufragável é que com esta proposta das leis paraconstitucionais nós não vulnerabilizamos as garantias fundamentais referentes às matérias nelas elencadas. Se não incluímos nas leis paraconstitucionais matérias de organização económica é porque entendemos que aqueles elementos de garantia constitucional, em sede de organização económica, estão devida e adequadamente salvaguardados no nosso projecto de revisão constitucional nos normativos directamente referentes à organização económica.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, suponho que chegámos ao fim da discussão deste artigo.

O Sr. José Magalhães (PCP): - A discussão desta matéria ficou adiada para o artigo 290.°, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vamos ter que interromper os nossos trabalhos, que irão ser retomados às 21 horas e 30 minutos. Peço aos vários partidos que assegurem o quorum para essa hora.

Está suspensa a reunião, Srs. Deputados.

Eram 18 horas e 35 minutos.

Srs. Deputados, está reaberta a reunião. Eram 22 horas e 10 minutos.

Srs. Deputados, vamos retomar os nossos trabalhos com a análise do artigo 167.°, em relação ao qual há uma proposta do CDS, que inclui na alínea g) a referência ao regime do referendo popular. Essa proposta do CDS inclui também uma nova alínea j), sobre a "Elaboração, aprovação e execução do Orçamento do Estado." A alínea l) também é nova e diz respeito aos "princípios fundamentais do sistema fiscal". A alínea r) é ainda nova e diz respeito à "organização e funcionamento do Banco de Portugal". São, portanto, matérias novas, em parte decorrentes da consagração do referendo e da sua inclusão na reserva absoluta da Assembleia da República, o que representa uma proposta reforçativa dessa competência.

O PCP introduz sete novas alíneas relativas ao seguinte: "regime específico de inserção das estruturas das Forças Armadas na Administração", "responsabilidade dos titulares de cargos políticos", "definição e regime de utilização dos símbolos nacionais", "regime geral de elaboração e organização dos Orçamentos do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais", "bases do sistema fiscal e lei-quadro da adaptação dos sistemas fiscais regionais", "estatuto das autarquias locais, incluindo o regime das finanças locais" (proposta que também é apresentada pelo PS), "definição dos critérios de classificação dos documentos ou informações oficiais de difusão reservada ou interdita."

O PS elimina, na alínea c), a referência ao Provedor de Justiça e aos membros do Conselho de Estado e inclui a eleição dos titulares dos órgãos políticos nas leis paraconstitucionais, razão por que não lhes faz aqui qualquer referência.

A alínea d) refere o que consta hoje da alínea g), ou seja, o estatuto das autarquias locais, incluindo o regime das finanças locais. É a tal proposta idêntica à do PCP, que há pouco referi.

A alínea e) é nova e vai no sentido de incluir na competência de reserva absoluta da Assembleia da República o regime da organização administrativa e financeira dos serviços de apoio do Presidente da República, que, como sabem, é uma proposta que fazemos no lugar próprio. Portanto, entendemos que essa matéria deveria estar incluída na reserva absoluta da Assembleia da República.

A alínea h) diz respeito aos sistemas de segurança interna e de informações, que hoje constam da alínea f) do n.° 1 do artigo 168.° Portanto, essa matéria passaria da reserva relativa para a reserva absoluta da Assembleia da República.

Aí também se faz referência à actual alínea j) do artigo 168.°, que diz respeito à definição dos sectores económicos-base nos quais é vedada a actividade a empresas privadas e a outras entidades da mesma natureza.

O PRD inclui também na alínea d) o regime do referendo. É por essa razão que a actual alínea d) passa para alínea d'), o que também decorre da sua proposta relativa àquele assunto.

A alínea h') é nova e refere-se à "organização e competência dos tribunais e do Ministério Público e estatuto dos respectivos magistrados". Esta alínea é trasladada da alínea q) do n.° 1 do artigo 168.°, que se refere à reserva relativa. Essa matéria passa, portanto, para a reserva absoluta.

O PRD suprime a alínea l) e, portanto, elimina também as consultas directas aos eleitores. Apenas faz referência ao referendo nacional.

As restantes alíneas são novas, transferidas, na sua maioria, do artigo 168.°, portanto da reserva relativa para a reserva absoluta. Essas alíneas dizem respeito

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ao seguinte: "organização e competência do Conselho de Comunicação Social e da Alta Autoridade para o Áudio-Visual"; "regime geral de elaboração e organização dos orçamentos do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais"; "composição do Conselho Nacional do Plano", "bases do sistema de segurança social e do serviço nacional de saúde" - hoje a alínea f) do n.° 1 do artigo 168.° -; "bases do regime jurídico das empresas do sector público, incluindo o de participação de capital privado e o de alienação de bens" - que é a actual alínea v) do n.° 1 do artigo 168.° -; "regime jurídico relativo à transferência de empresas de sector de propriedade e aos critérios e modos de indemnização por nacionalização"; "definição dos sectores estratégicos da economia, nos quais é vedado ou limitado o exercício de actividade por empresas privadas ou entidades da mesma natureza" - é a actual alínea y) do n.° 1 do artigo 168.° -; "bases da reforma agrária, incluindo os critérios de fixação dos limites máximos da propriedade e da exploração agrícola privadas da terra, os de atribuição de direito de reserva e os de indemnização".

Como não está aqui presente o representante do CDS para justificar a sua proposta, perguntaria ao PCP se gostaria de dizer alguma coisa em justificação da sua, embora me pareça que, em geral, significa o reforço da reserva absoluta, o que é, em parte, uma decorrência de outras propostas que já foram apreciadas em sede própria.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, em relação à Assembleia da República o Grupo Parlamentar do PCP apresenta três tipos de alterações, com objectivos distintos. Como puderam apreciar, apresentámos propostas que visam constitucionalizar e explicitar garantias e também deveres dos deputados e certos direitos dos grupos parlamentares. Por um lado, preocupa-nos a colocação da Assembleia da República ao abrigo da arbitrariedade da maioria de cada momento. Por outro lado, preocupa-nos a ideia de aproximar mais a Assembleia da República dos cidadãos. Neste caso trata-se de aperfeiçoar aquilo que na primeira revisão constitucional veio a sofrer algumas correcções em confronto com a redacção originária da Constituição. Refiro-me à área de reserva de competência da Assembleia da República. Em nosso entender, com a criação desta zona de indelegabilidade absoluta contida no artigo 167.° a primeira revisão constitucional operou uma distinção positiva.

Em relação ao artigo 167.°, trata-se, pois, de fazer um alargamento adicional por forma a abranger determinadas matérias, que, pela sua importância, não devem, em qualquer circunstância, ser objecto de autorizações legislativas ao Governo. É óbvio que esta nossa proposta se articula com a que apresentamos no próprio artigo 115.° quanto à supremacia legislativa das leis. Deve ser lida em conjunto com essa proposta, tem que ser lida tendo em conta esta nossa posição, este nosso pressuposto. No entanto, a proposta é encarável por si, tem valor autónomo e é nesse sentido que agora a apresento.

As matérias que o PCP propõe para inclusão nesta área de reserva são as constantes das alíneas o) e u) apresentadas.

Chamo apenas a vossa atenção para a importância de que se reveste, em especial, o texto respeitante à inserção das estruturas das Forças Armadas na Administração Pública.

Ó debate que travámos sobre esta matéria, aquando das reflexões sobre o que devesse ser a área própria do Ministério da Defesa Nacional e o conteúdo adequado da sua lei orgânica, veio chamar a atenção para a importância de que tudo o que diga respeito a certos aspectos da inserção das Forças Armadas na Administração Pública seja objecto de contemplação.

Uma das sedes próprias para isso poderia ser a própria Lei de Defesa Nacional, mas a não ser esta lei (como é o caso neste momento) entendemos que poderia haver uma legislação específica sobre a matéria a aprovar pela Assembleia da República, e apenas por ela, por forma que não caiba ao Governo aprovar por decreto-lei, dentro dos seus poderes legislativos, tudo aquilo que diz respeito à articulação entre as Forças Armadas e os órgãos de soberania nesta área específica.

Entendemos que não se trata de uma questão do Governo. A administração militar, que não tem identidade com outras áreas de administração e não deve ser tratada como tal, deve ser objecto de um regime adequado. O que aqui se sublinha é que esse regime deve ser aprovado pela Assembleia da República.

Em relação à definição e regime de utilização dos símbolos nacionais, partimos da experiência que neste domínio se veio tecendo, e que foi assinalada, de resto, por sobressaltos... Lembro só o que diz respeito à definição das competências dos órgãos dos governos próprios das regiões autónomas neste domínio, os problemas de articulação entre as competências para a definição da utilização dos símbolos nacionais pelos órgãos de soberania e as competências dos órgãos dos governos próprios das regiões autónomas, que nesta matéria entendo que são nulas. As dúvidas e os melindres de que, na nossa experiência, tudo isto se veio revestindo aconselham a que a questão não possa ser entendida como da competência governamental, deva ser claramente atribuída à Assembleia da República, e dentro das competências desta colocada na zona de reserva absoluta.

Relativamente aos regimes de elaboração e organização dos orçamentos do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais, tratar-se-ia de fazer uma trasladação dignificante do artigo 168.° para o artigo 167.°, tornando a matéria indelegável. Isso parece particularmente importante. No caso do PS e das leis paraconstitucionais esse efeito decorre do próprio artigo 166.°-A. No nosso caso trata-se de o fazer por outra via.

No que se refere às bases do sistema fiscal e ao estatuto das autarquias locais, a ratio desta proposta é exactamente a mesma, isto é, visamos um acréscimo de tutela e sobretudo a preocupação com o uso de autorizações legislativas em domínios como estes. A experiência recente do pacote fiscal chama a atenção para a importância do uso de leis materiais neste domínio e para as inconveniências e efeitos nefastos do recurso a autorizações legislativas.

Creio que tudo aquilo que pudermos reflectir neste quadro acerca dos inconvenientes concretos decorrentes da experiência de apresentação da reforma fiscal por este Governo é de molde a inspirar mais cautelas do que aquelas que o texto constitucional, mesmo na sua redacção de 1982, contém.

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Em relação à definição dos critérios de classificação de documentos ou informações oficiais de difusão reservada ou interdita, gostaria apenas de sublinhar que o recente debate acerca do regime jurídico do segredo de Estado, travado no Plenário da Assembleia da República ontem mesmo, veio confirmar a necessidade de prestar mais atenção a todos os aspectos relacionados com essa questão.

A situação que se vive é caracterizada pela pluralidade de instrumentos jurídicos de regulamentação, pelo carácter avulso desses instrumentos, pela existência de zonas de lacuna e de indefinição, e, por outro lado, pela subsistência de múltiplas práticas que conduzem a que de diversos ministérios sejam desencadeados processos de classificação à luz de critérios dúbios, o que leva a que à opinião pública sejam furtados elementos informativos e documentos. Tudo isto ocorre com prejuízo da própria transparência que é devida à população por imperativos diversos, constitucionalmente consagrados, desde logo o direito dos cidadãos à informação, e, por outro lado, o seu direito à participação na Administração Pública e na formação das suas decisões.

Assim, Sr. Presidente, Srs. Deputados, se o PS entende que a matéria do segredo de Estado é susceptível de vir a ter algum grau de consagração constitucional, se o PS considera que a proposta do PSD respeitante à concessão ao segredo de Estado da característica de um bem constitucionalmente tutelado é susceptível de ser colhida, a nossa proposta assume carácter ainda mais vital.

O Sr. Presidente: - Na nossa proposta há um artigo em que indirectamente referimos o segredo de Estado. Não me lembro agora qual é, mas já passámos por ele. Referimo-lo indirectamente através da expressão "salvo em caso de segredo de Estado".

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Está no artigo 167.°, alínea h).

O Sr. Presidente: - Exactamente. Cá está: "e definição do segredo de Estado".

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, foi por isso mesmo que trouxe a debate a posição do PS.

De facto, interrogo-me acerca da maneira como o PS avalia a necessidade de dar tratamento a esta matéria, dado que a proposta do PSD no que se refere ao segredo como componente do estatuto dos titulares de cargos políticos é, como sabe, bastante mais alargada, e de resto inaceitável, a qualquer título. Digamos que na alínea u) o PCP converge, em termos de preocupação, com o que decorre da alínea h) apresentada pelo PS.

Sr. Presidente, são estas as considerações que gostaria de produzir sobre as propostas que o PCP apresenta quanto à revisão do artigo 167.° da Constituição da República.

O Sr. Presidente: - O PS dá por justificada a sua proposta, até porque em parte se limita a transferir matérias da actual reserva relativa para a reserva absoluta.

Portanto, solicitaria ao PSD, se porventura está interessado nisso, que justificasse a sua proposta, embora ela se limite a uma referência ao referendo popular, na alínea f), na decorrência do facto de o propor.

Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Presidente, entendemos que sendo o referendo popular um instituto com a dignidade que tem, e não que pretendemos dar-lhe, é evidente que ele terá que estar inserido obrigatoriamente dentro das matérias de reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia.

O Sr. Presidente: - A ID não se encontra presente. Perguntaria ao Sr. Deputado Galvão Teles se pretende justificar a proposta apresentada pelo PRD.

O Sr. Migue) Galvão Teles (PRD): - De facto, é relativamente simples justificar a proposta apresentada pelo PRD quanto a esta matéria.

O PRD pensa que a reserva de competência absoluta é excessivamente reduzida no texto actual da Constituição. Não porque o meu partido tenha a obsessão da preponderência parlamentar - enfim, procura um equilíbrio - mas porque lhe parece que há matérias fundamentais que, independentemente de maiorias e do apoio que um governo tenha na Assembleia da República, devem ser debatidas publicamente.

Praticamente tudo o que se encontra expresso na proposta do PRD quanto ao artigo 167.° traduz-se em transferências feitas do artigo 168.°, portanto, da reserva relativa, e respeita àquelas matérias que ao PRD pareceram mais delicadas. Neste sentido, não somente todas as matérias que se referem à estrutura do Estado e ao estatuto dos órgãos constitucionais - aliás, o PRD propôs, na redacção sugerida para o artigo 171.°, n.° 5, que fosse exigível uma maioria de dois terços para a sua aprovação - mas outras fundamentais para a estrutura do Estado, seja no aspecto da Constituição política em sentido estrito, seja no aspecto particularmente delicado da constituição económica.

Nesta última matéria o PRD sugere que passem a fazer parte da reserva absoluta de competência, para além da lei definidora dos sectores estratégicos da economia, a qual consistiria numa lei de processo especial exigindo a maioria de dois terços para ser aprovada, ainda as bases do regime jurídico do sector público, incluindo o da participação do capital privado e o de alienação de bens, que está hoje referido no artigo 168.°, n.° 1, alínea v).

Por outro lado, dever-se-ia incluir o regime jurídico relativo à transferência de empresas de sector de propriedade, e aos critérios e modos de indemnização por nacionalização, o qual é um ponto particularmente melindroso, que inclusivamente o PS torna objecto de uma lei paraconstitucional. Nós não o fazemos, mas pelo menos sugeriríamos uma reserva absoluta no que respeita a esta matéria.

Finalmente, refiro a matéria também extremamente delicada das bases da reforma agrária, sendo certo que o PRD, porventura com algumas ilusões quanto a critérios de rigor democrático que o Governo observasse neste período, esperava que a alteração da Lei de Bases da Reforma Agrária se fizesse somente após a revisão constitucional. Nesse domínio, o meu partido tinha proposto, mediante o artigo 99.°, a salvaguarda de

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direitos adquiridos. Na proposta apresentada pelo PRD, a alínea v) do artigo 167.° conecta-se com o disposto no artigo 99.°, segundo o qual "serão respeitadas, nos limites constitucionais, a propriedade pública, privada e cooperativa e a posse útil da terra e dos meios de produção utilizados na sua exploração, sem prejuízo de direito de reserva conferido por lei anterior a esta norma". Por outras palavras, o PRD propunha que em matéria de zona da reforma agrária se consolidasse definitivamente a situação existente e se - esperava o PRD - pacificasse a situação.

Provavelmente a situação complica-se hoje com a aprovação da proposta do Governo relativa a esta matéria. Em todo o caso, essa proposta mantém limites, embora eu não tenha compreendido e continue a não compreender, e disso depende em grande medida a constitucionalidade da proposta, se ela, em matéria de reforma agrária actual - isto é dito en passant -, continua a respeitar o princípio de que há limites máximos da exploração privada da terra, e se as expropriações previstas nessa proposta são expropriações obrigatórias, ou se, como a letra parece sugerir, antes e mais propriamente expropriações facultativas.

Seja como for, o PRD considera que a matéria da reforma agrária, até por razões históricas, é uma matéria fundamental e que, ainda que não se exija uma maioria de dois terços - aí admitimos que o Governo tenha liberdade fora do limite que seria a salvaguarda constitucional de direitos adquiridos -, deveria constituir objecto de reserva absoluta da Assembleia da República, como peça essencial da constituição económica do Estado português.

O Sr. Presidente: - Estão apresentadas as propostas. Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Gostaria fundamentalmente de tecer algumas considerações genéricas em relação a estas matérias, e de acordo com o seguinte princípio: temos alguma dificuldade em estar a apreciar estas matérias, de per si, sem entrar em linha de conta com a apreciação das matérias em sede de artigo referente às leis paraconstitucionais, em relação às matérias de competência relativa na Assembleia, enfim, é um todo de elementos que se entrecruzam e que nos é difícil apreciar de uma maneira isolada.

Por outro lado, o que acontece, e que em apreciação geral diríamos, é que há aqui uma amálgama de coisas, nem sempre obedecendo a princípios claros de escolha de conjuntos de normas e de matérias, que nos é difícil compreender, mesmo tomando isoladamente esta referência.

Além disso, verificamos que na maior parte dos casos transferem-se matérias da competência da reserva relativa da Assembleia da República para a sua reserva absoluta, o que, como VV. Exas. já noutras intervenções anteriores deixaram explícito, refere alguma desconfiança em relação à maioria recém-criada. No entanto, a nosso ver isso não justificará a alteração de um artigo para o outro, de uma zona para a outra da Constituição da maior parte dessas matérias, exceptuando...

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Deputado Carlos Encarnação, devo dizer-lhe que ocorre exactamente o contrário: quando se transfere da reserva relativa para a reserva absoluta mostra-se é confiança na maioria parlamentar. Pode-se quando muito mostrar desconfiança no Governo, mas na maioria não, nessa prova-se confiança.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - A sua distinção é hábil, mas...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Qualquer bofetada no Governo é um bofetão na maioria. É o que acabámos de perceber todos.

Risos.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - A distinção do Sr. Deputado António Vitorino é hábil, todos nós a compreendemos e eu próprio a compreendi, mas... Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Gostaria de dizer o seguinte: evidentemente que nos termos constitucionais modernos, quando os governos têm a maioria, aparentemente é relativamente indiferente que as matérias sejam debatidas na Assembleia ou sejam reguladas pelo Governo, porque a linha essencial dos diplomas será igual. Portanto, não é desconfiança na maioria (esta ou outra) que determina a nossa proposta.

O que eu diria é que há matérias particularmente delicadas, e o que a experiência parece indiciar - apesar de tudo, não digo que seja a minha -, e creio que a nossa Constituição será daquelas que tem uma matéria de reserva absoluta da Assembleia da República mais restrita, é que o debate parlamentar acerca de certas matérias é útil.

Isto por duas razões: porque dificulta, digamos, preceitos fraudulentos. Quando digo "fraudulentos" espero que entendam, cuidadosamente: trata-se de fórmulas dificilmente sustentáveis racionalmente. Apesar de tudo, numa Assembleia é necessário discutir, e, embora se conheçam as maneiras como se discute, há um mínimo de racionalidade que se torna difícil desrespeitar. Por outro lado, mesmo dentro da maioria, a contribuição das diversas sensibilidades é normalmente útil. A experiência dos parlamentos o que parece dizer é que em certas matérias fundamentais, ainda que o Executivo tenha a maioria e a garantia absoluta de que a linha geral da sua orientação se encontra assegurada, e sobretudo nesse caso, a participação parlamentar tem efeitos úteis. Tanto assim que os governos em geral, mesmo quando a matéria não é de competência absoluta, salvo num caso ou noutro, em relação a esses diplomas fundamentais procuram normalmente a discussão e o consenso da sua própria base de apoio parlamentar.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Com certeza, Sr. Deputado. Compreendi as observações que foram feitas. Só que continuo a dizer que nesta Constituição, e de acordo com os princípios aqui formulados em relação às matérias de competência em sentido absoluto e em sentido relativo, há outras fórmulas para trazer os assuntos à discussão no Parlamento.

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Portanto, de qualquer modo, seja por arrumação fundamental das matérias, seja por actuação dos mecanismos que nesta altura já existem na nossa Constituição, com certeza que o Governo e a sua maioria se não furtariam ao debate parlamentar. Penso que a questão não se põe nesses termos.

A questão que se coloca é a de saber se o Governo tem ou não maior facilidade em legislar acerca de determinadas áreas, sendo certo que na maior parte delas poderá não se furtar - no caso de ratificação ou noutro complementar - a uma apreciação, em sede parlamentar, dessas mesmas matérias.

Neste âmbito, devo dizer que é reportando-me a uma frase proferida há pouco pelo Sr. Deputado António Vitorino que fiz a pequena blague de dizer que havia uma desconfiança - ele disse-o - em relação à questão fundamental que nos dividia quanto às leis paraconstitucionais. Penso que ele não me levou a mal esta minha referência. Antes pelo contrário, deverá certamente ter compreendido aquilo a que me reportei quando fiz a referência que fiz.

O Sr. António Vitorino (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Com certeza, Sr. Deputado. Elas são muito sérias, muito mais complicadas e, por vezes, muito mais ofensivas, eu compreendo. Mas sempre com a melhor das intenções.

Risos.

De facto, nunca verifiquei aqui nas intervenções do Sr. Deputado José Magalhães qualquer tentativa que fosse - aliás, seria absolutamente inadmissível - de uma pérfida intenção, de uma intenção malévola, de uma intenção de ofender quem quer que fosse, porque V. Exa. certamente não seria capaz de tal.

O Sr. Presidente: - Não, não! Nem eu consentiria numa coisa dessas!...

Risos.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Ainda assim diria que realmente isto é, em súmula, o que nos é dado ver das alterações apresentadas.

Evidentemente que no meio destas alterações propostas há coisas com certeza que o PSD admite como possíveis e outras que o PSD admite como dificilmente possíveis.

Assim, referir-me-ia concretamente a uma delas relativa ao PS: por exemplo, já a referimos noutras circunstâncias, e que é a que diz respeito ao regime de organização administrativa e financeira dos serviços de apoio do Presidente da República e da Assembleia da República. Já o referimos na discussão de outra proposta - creio que do PCP - em relação a esta matéria, com a qual discordámos, e frisámos que ela seria porventura mais adequada à formulação mantida pelo PS.

Relativamente às alterações apresentadas pelo PCP, o que acontece é que, na verdade, a maior parte dos casos continua na mesma senda. Há questões que são de reserva relativa que passam a ser de reserva absoluta. Há questões difíceis de compreender porquanto inserem matérias que ou já estão previstas em lei ordinária, designadamente no caso da Lei de Defesa Nacional, ou deverão ser inseridas, quanto a nós, em matérias que não devem aqui estar contidas, como já abundantemente noutros locais e em comentários a outros artigos nós fizemos referência.

Portanto, em termos gerais daria por formuladas as apreciações do PSD em relação às várias propostas aqui presentes.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - O PRD, com algum critério, melhor ou pior, procurou transferir certas matérias de reserva relativa de competência legislativa para a reserva absoluta.

Assim, Sr. Deputado Carlos Encarnação, perguntar-lhe-ia o seguinte: das onze matérias abrangidas pela proposta do PRD, sejam elas total ou parcialmente novas, quais são aquelas que repugna ao PSD que pertençam à reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República?

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Deputado, a pergunta formulada dessa maneira simples leva-me a que lhe responda também da maneira mais simples possível.

De facto, há uma proposta com a qual concordamos que é a relativa ao regime de referendo.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Mas, Sr. Deputado, repugna-lhe, por exemplo, que o estatuto do Ministério Público esteja incluído nas matérias de reserva absoluta da competência legislativa da Assembleia da República?

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Não, Sr. Deputado, a questão que se coloca é esta: por alguma razão entendemos ...

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - O Sr. Deputado considera que se a composição do Conselho Nacional do Plano, se se mantiver como está estabelecido na Constituição...

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Como sabe, temos propostas de alterações em relação a esse aspecto.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Eu sei, Sr. Deputado. Mas suponhamos que vinha expresso na vossa proposta - aliás é provável que assim seja porque ela é semelhante à do PS - a criação de um conselho económico e social em vez do Conselho Nacional do Plano. Repugna-lhe que o modo de eleição dos membros desse novo conselho pertença à reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República?

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Deputado Galvão Teles, o problema pode ser visto assim, bem como de outra maneira. Se o PS e o PSD, ambos coincidentes na proposta, o não colocaram neste sítio é porque com certeza entenderam que deveria ficar melhor noutro.

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O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Então diria, sem ofensa para o PS, que ele esteve distraído quanto a esse ponto.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Não acredito que o PS estivesse distraído mesmo em relação a esse ponto.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Nesse ponto estava de certeza.

O Sr. António Vitorino (PS): - Em relação a que ponto? Distraído estava eu agora.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Nós propomos a manutenção do Conselho Nacional do Plano, que vale pouco, é certo, mas suponhamos que o substituíam. Não propusemos a substituição do Conselho Nacional do Plano por um Conselho Económico e Social. Aliás, devo dizer que aí houve grandes divergências em minha casa e fui sobretudo eu que me opus a essa solução, mas, enfim, não importa.

Então, vamos supor que se cria um Conselho Económico e Social. Pergunto agora ao Sr. Deputado António Vitorino - desculpar-me-ão, isto já perturba um pouco a ordem da reunião - por que é que V. Exa. não apresentou isso na reserva de competência absoluta da Assembleia da República. Dir-lhe-ia que foi porque esteve distraído.

O Sr. António Vitorino (PS): - Já respondo, Sr. Deputado. Vou ver se estive distraído nesse ponto.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Talvez seja eu que esteja distraído e o conselho se encontre incluído na proposta do PS, na área de reserva de competência absoluta da Assembleia...

O Sr. José Magalhães (PCP): - A lógica é não meter coisas sobre a Constituição.

O Sr. António Vitorino (PS): - É rigorosamente falso, Sr. Deputado. Mas realmente aprecio muito que o Sr. Deputado José Magalhães não perca uma.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Registo as respostas do Sr. Deputado Carlos Encarnação e da Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves à minha pergunta.

Vozes.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - A resposta da Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves não foi para a acta. Muito bem.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Deputado Galvão Teles, eu disse-lhe que havia duas maneiras de lhe responder e que a mais simples era aquela. Todavia, na introdução que fiz às considerações do PSD acerca dos vários tipos de propostas e à arrumação de todas estas matérias dei-lhe uma outra resposta antecipada.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Eu percebo, Sr. Deputado.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Disse-lhe que entendo que deveríamos considerar todas estas matérias globalmente e não parcelarmente em relação a cada um dos artigos que estamos a discutir. No entanto, evidentemente que da nossa intenção inicial resulta isto e não mais do que isto.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sr. Deputado, não perguntei por que é que não estavam de acordo, perguntei por que razão repugna. Uma coisa é não estar de acordo, há muitas razões para tal, e outra é repugnar.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Em primeiro lugar, gostaria de dizer que não estivemos distraídos quanto à inserção do Conselho Económico e Social.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Então fui eu que estive.

O Sr. António Vitorino (PS): - Esse ponto está referido na alínea m) do n.° 1 do artigo 168.° da nossa proposta: "sistemas de planeamento e concertação social, incluindo a composição, a organização e o funcionamento do Conselho Económico e Social".

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Diria que considero muito mal que seja reserva relativa a composição do Conselho Económico e Social, salvo o devido respeito... Já estou de novo a interromper e a anarquizar a reunião, o que não quer dizer que seja propriamente anarquista.

O Sr. António Vitorino (PS): - Então, o melhor é passar essa informação para O Independente!

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Pois é. Dizia eu que, salvo o devido respeito, se se estabelecer um conselho económico e social, é inevitável que a sua organização e competência seja considerada matéria de reserva absoluta, de competência absoluta do Parlamento.

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Deputado Galvão Teles, eu não me afasto muito do que V. Exa. disse. Simplesmente o que se verifica hoje no texto constitucional é que o Conselho Nacional do Plano está lá como matéria de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Mas o Conselho Económico e Social, pelo menos politicamente, terá muito mais significado que o Conselho Nacional do Plano.

O Sr. António Vitorino (PS): - Não digo o contrário e não vejo que haja grandes objecções quanto a isso. O critério que seguimos foi de manter o paralelismo com a solução actual de integração do Conselho Nacional do Plano na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.

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Seja como for, a nossa lógica é a de que a reserva relativa não deixa de ser uma área de competência da Assembleia da República. Ela apenas abre a porta à utilização por via da autorização legislativa.

Varria também, desde já, a testada em relação à acusação de antieconomicismo que temos no nosso projecto de revisão. O Sr. Deputado José Magalhães descobrirá, decerto com grande prazer, que o PS transfere para a reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República, mediante a alínea i) do artigo 167.°, uma matéria económica, mais concretamente a definição dos sectores económicos básicos nos quais é vedada a actividade a entidades privadas e outras da mesma natureza.

O Sr. José Magalhães (PCP): - E em matéria de privatizações?

O Sr. António Vitorino (PS): - As privatizações são expressas numa lei formal, como é óbvio, e sempre indelegável porque sujeita a uma maioria de dois terços, tal como as paraconstitucionais. Estas leis também são, na nossa óptica, matérias da reserva "absolutíssima" de competência legislativa da Assembleia da República. A mera exigência da maioria qualificada é suficiente para a tornar indelegável.

Mas, se o Sr. Deputado José Magalhães acha que isso não é suficientemente claro, não temos a menor dúvida de dizer no artigo 167.° que, para além das leis paraconstitucionais, é também da reserva de competência da Assembleia da República legislar sobre determinadas matérias. Se isso tranquiliza o Sr. Deputado José Magalhães, e se essa garantia o faz votar a favor das leis paraconstitucionais, então teremos o maior prazer de lhe dizer: seja bem-vindo a esta Casa,

Quanto à questão da definição da reserva relativa e da reserva absoluta, trata-se de uma matéria que já na outra revisão constitucional nos ocupou detalhadamente, e que, em regra geral, só é possível dirimir no final, quando se tem uma visão global de todas as alterações introduzidas na Constituição e do peso relativo das matérias que nesta sede devem ser tratadas.

Contudo, creio que não se deve entender esta matéria do alargamento das competências da Assembleia da República, designadamente da reserva absoluta, como uma forma de desconfiança em relação ao Governo. Isto na medida em que, como todos sabemos hoje em dia, mesmo nas matérias de reserva absoluta e de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, o que se tem vindo a assistir é ao crescimento do número e âmbito das iniciativas governamentais.

Isto na medida em que, mesmo nas matérias de reserva absoluta e de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, o que se tem vindo a assistir é ao crescimento das iniciativas governamentais, pelo que não se pode dizer que exista qualquer marginalização do Governo em relação a matérias tão relevantes. Com o alargamento da reserva da Assembleia da República, o que há é, isso sim, relevantes consequências no que diz respeito, por exemplo, à publicidade dos debates e aos diferentes contributos pluripartidários na elaboração dessa legislação ou, no mínimo, das suas linhas fundamentais. É que a Assembleia da República é um órgão plural, aberto, e que propicia melhores condições de debate público de certas matérias. Por outro lado, não ignoramos que há razões técnicas decorrentes da crescente complexificação da legislação que explicam e justificam por que é que o Governo tem directa ou indirectamente cada vez mais poderes legislativos, mas essas razões técnicas podem, com vantagem, ser compaginadas com o aumento da reserva absoluta, através do incremento das iniciativas legislativas de origem governamental nessas matérias, que são submetidas à discussão do Parlamento. O Sr. Deputado Miguel Galvão Teles referiu que o Parlamento português é dos que tem, talvez, uma reserva absoluta de competência legislativa mais restrita. Pela nossa parte fizemos um esforço de alargamento dessa reserva absoluta, mas quando se faz a comparação nos outros sistemas os textos constitucionais consagram amplíssimas competências legislativas, mas na prática verifica-se o recurso sistemático ou a autorizações legislativas ou aos chamados decretos legislativos emitidos no uso de poderes de urgência que depois, em regra, são submetidos a subsequente processo de mera ratificação parlamentar (às vezes até tácita). Há, contudo, uma vertente importante a que os Srs. Deputados do PSD não deviam ser insensíveis, que é a vertente do controle parlamentar da acção do Governo. Hoje em dia discorremos ainda em termos tributários da concepção clássica do controle parlamentar exercido por um órgão de soberania, o Parlamento, sobre a acção do outro órgão de soberania, que é o Governo. Mas com o advento e a eclosão do parlamentarismo maioritário todos temos consciência de que esse controle do Parlamento sobre o Governo se tornou em boa parte uma ficção jurídica e política e que na prática o que releva em termos de significado democrático é o controle da maioria parlamentar sobre o seu próprio governo, que pode ser maior, pode ser menor, pode ser exercido de forma mais pública ou menos pública, mas a verdade é que as maiorias parlamentares hoje em dia, além das responsabilidades inerentes à condição de maioria, têm ainda essa responsabilidade de controle acrescida, dado serem verdadeiramente fiéis depositárias de uma função de controle e de garantia sobre os seus próprios governos. É que o controle da oposição é cada vez mais um controle que tem garantias mínimas nos textos constitucionais e nos regimentos, mas que é limitado quanto à sua eficácia, pelo que uma parte significativa do controle da acção do Governo cai hoje directamente sobre a actuação das próprias maiorias parlamentares. E tudo o que signifique esvaziar as reservas de competência do Parlamento significa também esvaziar as condições de controle da maioria parlamentar sobre o seu próprio governo. Por muito teórica que esta matéria pareça, em termos concretos, hoje em dia em Portugal, face à conduta do PSD, penso que é um valor que não pode ser abandonado porque é um valor importante para a identidade da nossa vida democrática.

Sobre as propostas dos outros partidos penso que há várias que merecem simpatia do PS. Estamos perante matérias que devem ser objecto de ponderação global. Tenho dúvidas sobre duas propostas do PCP. Uma sobre o significado da alínea p), que na minha opinião já está consumido no disposto na alínea g), e por isso a minha dúvida sobre o que é que levou o PCP a proceder a esse desdobramento, na medida em que, no meu entender, o regime de responsabilidade dos titulares de cargos políticos é matéria indissociável do es-

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tatuto dos titulares dos órgãos de soberania, do poder local, do Conselho de Estado e do Provedor de Justiça, matéria que o PCP mantém inalterada na alínea g) da sua própria proposta. Não percebo qual é o sentido do desdobramento, na medida em que, tanto quanto sei, não se colocou a questão quando se tratou de aprovar aqui a lei do regime de responsabilidade dos titulares de cargos políticos. Quanto à alínea o) do projecto do PCP, não percebi bem qual era o conteúdo concreto desta alínea o). O que é o "regime específico de inserção das estruturas das Forças Armadas na Administração"? Em concreto, que matéria é esta que é autonomizável das bases gerais da defesa nacional e da organização e funcionamento das Forças Armadas? Em que é que consiste esta destrinça, e em que é que se distingue da actual alínea n), que o PCP também mantém inalterada? Era tudo quanto tinha a dizer neste momento.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Era só para dizer que o PRD também esteve distraído, e queria dar a minha adesão, sobretudo depois de uma experiência que tive, à proposta do PS quanto à alínea h).

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Quero apenas dar resposta ao desafio lançado pelo Sr. Deputado Miguel Galvão Teles depois da intervenção do meu colega Carlos Encarnação, que foi esclarecedora e suficiente quanto à posição do PSD. O Sr. Deputado Galvão Teles perguntou se nos repugnava que qualquer das alíneas propostas pelo PRD fosse incluída na reserva absoluta de competência. Penso que a questão não se pode colocar em termos de repugnância ou não repugnância. Até porque, do ponto de vista do poder e da intervenção da Assembleia da República, qual é a diferença que há entre a reserva absoluta e a relativa? No fundo, a grande diferença é a da publicidade. A Assembleia da República tem sempre o poder de conceder autorizações legislativas, e não parece que a lei de autorização legislativa não faculte ao Parlamento uma intervenção efectiva e mesmo uma intervenção com ressonância e repercussões de carácter público. E o caso recente da aprovação da lei de autorização legislativa em matéria de legislação laboral é disso prova, já que o facto de ter sido feito em termos de autorização legislativa não privou o Parlamento de um debate verdadeiramente desenvolvido. Penso, pois, que o problema não se coloca em termos de repugnância ou não. A questão não parece ser a do que está proposto em termos de princípio. O problema é saber qual é a mais funcional: sendo certo que a reserva absoluta veda, de certa maneira, a comunicabilidade, a reserva relativa matem a plena comunicabilidade e, daí, muito maior funcionalidade. A reserva absoluta corta uma certa comunicabilidade. Ora, nada nos garante que num sistema de maior plasticidade nenhum dos órgãos resulte diminuído nos seus poderes. Quem ganha com este sistema é o próprio sistema constitucional em si. É natural que numa fase ulterior, à medida que as coisas se vão afinando, seja possível caminhar para uma maior

demarcação de competências, porventura mais estanques. Mas nesta fase, ainda experimental (pois acedemos à democracia há relativamente pouco tempo), joga a favor da democracia manter um sistema que seja mais aberto, com maior plasticidade e comunicabilidade. Este sistema é mais funcional; não cria tantas limitações como o outro, nem priva nenhum dos órgãos de soberania do seu poder de intervenção.

É por isso que, por princípio, mantemos a actual redacção. Limitámo-nos apenas ao adiamento do regime do referendo popular, mas obviamente - porque estas coisas não são coisas de princípio - não há nada escrito que diga que "isto" tem de ser consagrado e "aquilo" não. A nossa solução parece-nos ser a melhor para o sistema constitucional português, porque pensamos ser preferível manter a comunicabilidade entre estes dois órgãos de soberania do que limitá-la. Mas naturalmente que uma ulterior reflexão não nos coibirá, se virmos nisso conveniência, de atender a outras propostas. Uma norma como a que consta do projecto do PRD - o "regime jurídico relativo à transferência de empresas de sector de propriedade e aos critérios e modos de indemnização por nacionalização" - representaria já, do nosso ponto de vista, um ganho substancial em relação ao estado actual; por princípio, uma norma como esta não nos repugna. Em relação a qualquer das alíneas propostas o problema não se coloca em termos de repugnância ou não. Trata-se, sim, de saber qual o sistema geral adequado: se o de alargar o âmbito da reserva relativa, se o da reserva absoluta. Parece-nos que é de maximizar o campo da reserva relativa e por isso mantivemos a Constituição nesta parte inalterada, apenas aditando o caso, óbvio e consensual, do regime do referendo.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães, a quem pedia fosse conciso na sua intervenção porque não me parece que possamos dilucidar aqui esta matéria com natureza definitiva, pois decorre de tudo o que se passar relativamente à substância das matérias a que se referem as alíneas.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Só para duas explicações, uma adesão e uma crítica sob forma interrogativa.

A adesão é à proposta do PS da alínea h), pelas razões que já aqui foram sublinhadas e que me dispenso de repetir.

As duas explicações dizem respeito à proposta do PCP quanto às alíneas o) e d). Começaria, aliás, por esta. Pareceu extremamente simples ao Sr. Deputado António Vitorino a inequivocidade da inserção da matéria da responsabilidade dos titulares de cargos políticos na alínea g), vigente, do artigo 167.° Creio que é uma razoável hermenêutica, excepto se alguém resolver ler essa matéria à luz da alínea c) do artigo 168.°, respeitante à "definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como processo criminal". De crimes de responsabilidade se trata. Sabemos que a matéria se cifra (mas até pode não se cifrar apenas) na definição de crimes, nem sobretudo isso, mas também a questão não é líquida. Sucede que, historicamente, felizmente, enveredou-se pela elaboração de legislação no âmbito da Assembleia da República, de resto por iniciativa de partidos, sem contributo governamental. Não se colocou, em caso algum,

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a questão de ser solicitada uma autorização legislativa. Se se firmasse um consenso interpretativo como aquele que o Sr. Deputado António Vitorino aqui exprimiu, prima fade, isso não seria negativo. Só que não é absolutamente líquido que assim seja ...

O Sr. António Vitorino: - O que vejo na proposta do PCP, compreendo a lógica da sua observação, é a jurisprudência das cautelas, mas o que vejo na sua proposta é o risco de dissociar a lógica dos crimes de responsabilidade da natureza do estatuto, e uma coisa não é cindível da outra...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Também entendo que sim, Sr. Deputado, são aspectos incindíveis.

O Sr. António Vitorino (PS): - ... e, portanto, receio que a separação em alíneas possa dar origem a esta outra interpretação que, apesar de tudo, acho mais perigosa do que a de tentar chegar lá pela alínea c) do artigo 168.° da Constituição.

que esta preocupação do PCP é susceptível de ser consumida através de mais uma precisão. Como o Sr. Deputado António Vitorino reparará, a alínea g) em vigor tem o cuidado de fazer um elenco explicitativo, incluindo o regime das respectivas remunerações.

O Sr. António Vitorino (PS): - Pode cair.

O Sr. José Magalhães (PCP): - É óbvio que se pode ou fazer cair isto, o que não creio que seja prudente, ou aditai a isto o inciso "e incluindo o regime das respectivas remunerações, bem como dos crimes de responsabilidade". Ponto. E então aí todas as objecções ficariam absolutamente aplicadas...

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Ponto e vírgula, concretamente...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Exactamente. Ortograficamente, ponto e vírgula e a conversa teria ponto final político, com bom êxito!

Em relação à questão suscitada pela alínea o), aí creio que a observação do Sr. Deputado António Vitorino se satisfará, não com uma conversa com o Sr. Deputado Jaime Gama, mas com uma reflexão retrospectiva sobre o que foi entre nós o debate sobre a celebrada lei orgânica do Ministério da Defesa Nacional e o problema que esta co-envolvia. Na verdade, determinar-se o que é que seja a organização de um ministério como este oferece algumas dificuldades. Não se trata tão-só da definição daquilo que é próprio dos ministérios ordinariamente considerados, pois este ministério deveria, na sua lei orgânica, ter organizado, estruturado, apenas os aspectos estritamente administrativos da máquina dependente directamente do Governo. Não deveria recobrir outras matérias que possam dizer respeito à inserção das Forças Armadas na estrutura da Administração. Operada a alteração decorrente da primeira revisão constitucional, ainda aí se tem por injustificada uma indiferenciação entre o aparelho militar e a Administração Pública nas suas diversas vertentes. Aplicar às Forças Armadas um tratamento idêntico ao de departamentos governamentais comuns

ou departamentos ordinários da Administração Pública parece-me inadequado. Tratar da mesma forma as Forças Armadas e a "Junta dos Bacalhaus" não parece correcto. O que seja o regime jurídico da inserção das Forças Armadas na Administração é alguma coisa que deveria ter definição, repito, na Lei de Defesa Nacional, com o seu regime específico de aprovação. Não deveria ser matéria susceptível de normação governamental...

O Sr. António Vitorino (PS): - Em que é que se distingue isto das bases gerais da organização e do funcionamento das Forças Armadas?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não sei se poderemos desenvolver muito o diálogo nesta sede, porque ambos precisaríamos de ter à frente dois instrumentos jurídicos fundamentais. O primeiro, a Lei de Defesa Nacional, e o segundo, a Lei Orgânica do Ministério da Defesa Nacional, aprovada há alguns meses mediante mero decreto-lei.

Do cotejo entre a zona recoberta por uma e a zona recoberta por outra, encontraríamos facilmente algumas matérias e algumas normas que deveriam, saudavelmente, constar da Lei de Defesa Nacional, e nunca da Lei Orgânica do Ministério de Defesa Nacional. V. Exa. repararia, então, que, infelizmente, constam do segundo instrumento e não do primeiro certas dessas normas-chave...

O Sr. António Vitorino (PS): - Não digo o contrário, não conheço o diploma. Só que o problema é saber qual o sentido útil de uma alínea autónoma, na medida em que, na prática, o que se está a pretender dirimir é uma questão de repartição de tratamento de matérias entre o que já se encontra hoje contido na alínea n) e aquilo que é a própria Lei Orgânica do Ministério da Defesa. Se bem percebi, é isso...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Mais precisamente: se a alínea n) do actual artigo 167.° reza "Organização da defesa nacional, definição dos deveres dela decorrentes e bases gerais da organização, do funcionamento e da disciplina das Forças Armadas", uma adequada e escorreita interpretação do que seja a organização das Forças Armadas há-de incluir na noção de organização das Forças Armadas não apenas o organigrama das Forças Armadas mas as formas da sua inserção específica na Administração Pública.

O Sr. António Vitorino (PS): - Talvez seja mais preciso dizer que o que está em causa é o âmbito das bases gerais, o que se entenda por "bases gerais".

O Sr. José Magalhães (PCP): - Estão em causa as duas coisas e, de resto, do jogo entre as duas coisas e da diluição dos dois conceitos resulta uma assinalável perda de competências. Uma má interpretação do que sejam as bases gerais (com um consequente alargamento da área de desenvolvimento por decreto-lei governamental), acompanhada e potenciada por um mau entendimento do que seja "organização" (excluindo desta certas matérias que, devendo constar da Lei de Defesa Nacional, acabam por ser objecto de mero decreto-lei governamental, supostamente organizativo de um ministério, mas realmente organizativo das For-

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ças Armadas), introduz uma distorção por dupla via. Parece-nos que tal é obviamente inconveniente e que deveria presidir a esta matéria o mesmo tipo de preocupação que a Constituição manifesta em relação ao Estatuto das Forças Armadas e ao próprio prestígio e dignificação da sua organização, que conduziu à opção pela inclusão na alínea n) deste preceito e, em certa medida, à própria elaboração da Lei de Defesa Nacional.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, sugeria-lhes que puséssemos um ponto final nesta discussão, pois trata-se de uma discussão técnica, que, creio eu, não dispensará um segundo momento. Nessa altura, ter-se-á de fazer uma arrumação mais técnica do que outra coisa, em decorrência do que for aprovado noutros locais.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, pretendia apenas abordar um aspecto resultante de uma observação do Sr. Deputado Costa Andrade.

Sr. Deputado Costa Andrade, não sei em que medida é que ainda estamos num sistema experimental de democracia (francamente, já me parece bastante tempo), sobretudo para defender o alargamento da esfera de delegabilidade ao Governo, em nome de razões de "plasticidade", de "comunicabilidade", de "abertura", etc... No entanto, não pretendo fazer polémica relativamente a este aspecto, mas apenas apontar para uma questão. Além de todas as razões que o Sr. Deputado António Vitorino usou (na verdade, insuperavelmente, porque estava a falar ao coração da maioria) para defender este alargamento na própria óptica da maioria e das suas vantagens absolutamente inexcedíveis em saber alargar a sua área de competência indelegável,...

O Sr. António Vitorino (PS): - Tenho aprendido com o PCP...

O Sr. José Magalhães (PCP): - ... gostaria de aduzir um argumento relacionado com um dos inconvenientes desta solução.

É evidente que a aprovação de leis materiais garante, primeiro, inquestionavelmente, mais publicidade, segundo, mais participação dos partidos da oposição nos processos legislativos, e terceiro, que a Assembleia da República faça opções legislativas concretas sobre cada norma concreta. E isto não ocorre nas autorizações legislativas, nem quanto à publicidade, nem quanto à participação da oposição, nem quanto à opção concreta pela norma concreta. Acresce que não podemos esquecer que nos processos legislativos em Portugal, ou em certos processos legislativos, há uma característica ausente de outros sistemas, qual seja a obrigatoriedade de participação de organizações de trabalhadores, tanto de sindicatos como de comissões de trabalhadores. Como é evidente, entendemos que em relação às autorizações legislativas, como em relação às leis materiais, se coloca a obrigatoriedade de participação dessas entidades. No entanto, sabe-se como nesta matéria tem havido flutuações, designadamente por parte do PSD, e como não se pode, portanto, usar o argumento que o Sr. Deputado Costa Andrade utilizou quanto à "indistinguibilidade" virtual entre a aprovação de leis materiais e leis de autorização legislativa. Sabemos que, nesta matéria, o PSD tem uma posição que considera dispensável, postergável ou secundária a efectivação dos direitos dos trabalhadores na elaboração da legislação do trabalho. Ora, esta ideia do PSD parece-nos particularmente nefasta. Importa que não colha...

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, quero apenas deixar aqui um esclarecimento sobre aquilo que eu disse - e para que não fique mal entendido - quando me referi, de certa maneira, ao carácter "experimental" do nosso sistema jurídico-constitucional. Pretendia dizer, obviamente, que nos encontramos ainda numa fase de construção e de aperfeiçoamento. E, se dúvidas houvesse quanto a isso, bastaria atentar nas propostas do PCP, do PRD, do PS e dos restantes partidos para ver quanto ainda estamos a fazer nesta matéria. O meu argumento relevava, pois, desta postura. Quem, de certo modo, acredita já numa certa estabilidade é o PSD, na medida em que, nesta matéria, mantém o estado de coisas. Mas estamos ainda no campo do "fazer", altura em que tudo releva de uma certa visão prospectiva que, como todo o caminhar para o futuro, como toda a inovação, tem, quer queiramos quer não, um carácter experimental, um carácter de certa aventura de criação de coisas novas. Foi apenas nesse sentido que quis usar a palavra "experimental". Repito: se dúvidas houvesse quanto a isso, bastaria olhar para as páginas 252 e 253 desta compilação de textos comparados (as quais não devem ter paralelo, mesmo no aspecto gráfico, de tanta proposta de alteração) para desfazer tais dúvidas.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vamos agora iniciar a análise do artigo 168.°, em relação ao qual as dificuldades são ainda tecnicamente maiores, na medida em que se propõem mais transferências do artigo 168.° para o artigo 167.° do que inversamente. Não obstante, há fenómenos nos dois sentidos, como veremos neste breve resumo.

O CDS, na alínea p) do n.° 1, refere o "regime geral dos orçamentos" em vez da actual fórmula "elaboração e organização dos orçamentos" e corta a referência "do Estado". Quanto ao n.° 4, menciona que as autorizações legislativas contidas no Orçamento devam caducar no fim do ano económico respectivo. Aliás, já hoje se entende mais ou menos que assim é. No entanto, seria a consagração expressa desta regra.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Não está mal redigida.

O Sr. Presidente: - O PS faz uma proposta parecida, mas talvez ainda melhor redigida.

Por seu lado, no n.° 1, o PCP acrescenta às autorizações legislativas o chamado "estado de necessidade" (não diz "estado", mas sim "caso") propondo, portanto, uma norma restritiva de concessão de autorizações legislativas. Na alínea i) o PCP, em vez de "criação de impostos e sistema fiscal", fala em "criação de impostos e regime geral das taxas dos serviços públicos", e na alínea q) inclui uma referência aos "tribunais arbitrais e demais estruturas de composição de conflitos", não considerando, portanto, que estão incluídos

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na actual referência aos tribunais. Na alínea r) menciona o "regime geral do sector cooperativo", alínea essa que hoje se refere às autarquias locais. Na alínea v) acrescenta ao estatuto das empresas públicas o "regime geral dos institutos públicos". O PCP adita ainda quatro novas alíneas, a primeira das quais é relativa ao "regime das ordens honoríficas e da concessão de distinções honoríficas", a segunda ao "formulário e publicidade dos actos normativos", a terceira às "bases do sistema financeiro" e a quarta ao "estatuto do Banco de Portugal". No n.° 2, o PCP propõe que "as leis de autorização legislativa devem definir o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização, a qual é susceptível de prorrogação, não podendo exceder seis meses", limite que hoje não existe.

Por seu turno, o PS transfere do artigo 167.° para o artigo 168.° a referência às bases do sistema de ensino, por analogia com a referência a outras bases também previstas no artigo 168.° e na medida em que não nos pareceu que as bases do sistema de ensino devessem ter uma dignidade excepcionalmente acrescida em relação às outras bases que constam deste preceito. Na alínea l), substitui-se "meios e formas de intervenção e de nacionalização e socialização dos meios de produção" por "meios e formas de expropriação e nacionalização de meios de produção e solos por motivo de interesse público", linguagem que é exactamente a que propõe em sede de constituição económica. Assim, trata-se apenas de uma adequação de linguagem àquilo que foi proposto na sede própria. Na alínea m), o PS, mantendo o sistema de planeamento, fala agora em "concertação social, incluindo a composição, a organização e o funcionamento do Conselho Económico e Social". Actualmente nesta alínea refere-se o Conselho Nacional do Plano e as regiões Plano, mas o facto de lermos substituído o Conselho Nacional do Plano pelo Conselho Económico e Social e eliminarmos as regiões Plano justifica a redacção que propomos, que está, pois, dependente do que vier a ser adoptado na sede própria. Na alínea n) falamos em bases da política agrícola - em vez de "reforma agrária" -, "incluindo a fixação dos limites máximos e mínimos das unidades de exploração agrícola privadas". Acrescentamos, pois, os limites mínimos aos limites máximos actualmente previstos na norma, na medida em que também existem esses limites no capítulo da reforma agrária quanto ao emparcelamento. Na alínea r), em vez de "organizações populares de base", tal como na altura própria propusemos, propomos que se fale na "participação das organizações de moradores no exercício do poder local". Por fim, acrescentamos um n.° 5, em que propomos que "na lei de aprovação do Orçamento podem ser concedidas autorizações ao Governo nos termos do presente artigo, as quais, quando sobre matéria fiscal, só caducam no termo do ano económico a que respeitam". Parece, assim, haver uma dilatação de prazo mas, em rigor, faz-se uma restrição relativamente ao entendimento ou a alguma prática anterior.

Quanto ao PSD, na alínea j) refere-se à delimitação do sector público da economia, e bem assim dos meios e formas de intervenção, de nacionalização ou de privatização dos meios de produção e dos critérios de fixação das indemnizações, em vez de, como hoje, referir os critérios básicos no lugar próprio. Na alínea l) fala no "sistema e organização do planeamento nacional e composição do Conselho Económico e Social", porque também propõe a substituição do Conselho Nacional do Plano pelo Conselho Económico e Social e porque fala em sistema de organização e planeamento em vez de "Plano". A alínea m) reproduz a actual alínea o); a alínea n) reproduz a actual alínea p); a alínea o), a actual alínea q), e a alínea p), a actual alínea r). O PSD elimina a alínea s), que se refere às organizações populares de base, com o que, manifestamente, deixa de respeitar um limite material de revisão, assunto que já foi aflorado e será oportunamente discutido. Por seu lado, a alínea q) reproduz a actual alínea t); a alínea r), a actual alínea u); a alínea s), a actual alínea v), e a alínea t), a actual alínea x). A alínea u) da proposta do PSD constitui uma nova alínea, relativa ao "regime geral do segredo de Estado e do dever de sigilo", correspondentemente a uma proposta atrás apresentada.

A ID elimina a referência aos crimes, às bases da reforma agrária e ao estatuto das autarquias, porventura por tê-lo transferido para o artigo 168.°, segundo suponho. No restante, a ID mantém a actual redacção do artigo 168.°

Por seu lado, o PRD suprime a alínea f), que se refere às bases do sistema de segurança social e do serviço nacional de saúde, visto tê-la transferido para o artigo 167.° Atendendo a que tudo o que o PRD suprime neste preceito foi por ele transferido para o artigo 167.°, não vale a pena, neste momento, estarmos à preocupar-nos com este problema. O PRD propõe ainda um n.° 5, em que estabelece que "da lei que aprova o Orçamento apenas podem constar autorizações legislativas que directamente respeitem à obtenção de receitas e à realização de despesas públicas".

Finalmente, os deputados da Madeira, autores do projecto n.° 10/V (que não estão presentes), propõem na alínea i) o aditamento à actual redacção da fórmula "sem prejuízo do disposto no artigo 229.°, alínea y)". Este preceito, para o qual remetem, refere-se à competência das regiões autónomas para exercerem poder tributário próprio. No n.° 4 reproduzem o actual artigo, isto é, "as autorizações caducam com a demissão do Governo a que tiverem sido concedidas, com o termo da legislatura ou com a dissolução da Assembleia da República" - e acrescentam "e dos parlamentos regionais". Este aditamento decorre do facto de, atrás, ter sido proposto que a Assembleia da República possa passar a conceder autorizações legislativas também às assembleias regionais.

Feito o resumo, peço ao PCP, uma vez que não está presente o CDS, para, se assim o entender, justificar a sua proposta.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, a filosofia que nos leva a apresentar esta proposta decorre daquilo que já tive ocasião de expor no debate anterior. A preocupação é exactamente a mesma, se bem que, naturalmente, transposta para a zona de reserva relativa de competência legislativa. Trata-se de, ou aditar puramente ou explicitar, sendo portanto o conteúdo útil dessas propostas a que se aplica esta característica uma mera inovação relativa.

Em relação à alínea i), trata-se de precisar um aspecto que foi debatido com uma certa polémica no quadro de elaboração da Lei de Enquadramento do Orçamento do Estado, diploma que veio a ser vetado pelo

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Sr. Presidente da República, na sequência da declaração de inconstitucionalidade no Tribunal Constitucional. A reflexão aí feita sobre o regime jurídico das taxas conduz-nos a propor uma clarificação traduzida na expressão que os Srs. Deputados encontrarão no segmento final dessa alínea.

O Sr. Presidente: - Mas por que cortaram a referência ao sistema fiscal, que é mais do que a criação de impostos?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não queremos diminuir o conteúdo! Agradeço a vossa vigilância. É uma coisa que nunca se deve descurar...

O Sr. António Vitorino (PS): - Nunca, Sr. Deputado.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, a alínea q) trata de fazer uma explicitação, o que, aliás, nos parece extremamente importante. A alínea q) do texto em vigor refere-se à organização e competência dos tribunais, do Ministério Público e ao estatuto dos respectivos magistrados. Neste caso trata-se de deixar bem claro que a matéria respeitante aos tribunais arbitrais - que, aliás, já originou uma declaração de inconstitucionalidade no Tribunal Constitucional- e às outras estruturas eventualmente criadas de composição de conflitos se inclui na área de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República.

Quanto ao Ministério Público e aos respectivos magistrados, não há nesta sede alterações. Temos propostas respeitantes ao reforço da autonomia do Ministério Público, que irão ser apresentadas na sede própria.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, devo pensar que foi lapso deixarem cair a palavra "estatuto" dos respectivos magistrados, já que a competência e a organização dos tribunais não se refere, como é evidente, aos magistrados?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Portanto, o "estatuto" mantém-se?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto, Sr. Presidente. A ideia é a de não fazer qualquer aditamento senão o que está no segmento intermédio dessa norma e que aí foi aditado, "incluindo os tribunais arbitrais e demais estruturas de composição de conflitos".

Quanto ao regime geral do sector cooperativo, trata-se de não deixar omitida uma matéria que pode ainda adquirir no futuro uma maior importância e relevo. Este ponto visa contrariar ideias de desvalorização da importância do sector cooperativo.

Em relação a esta matéria não somos acompanhados pelo Partido Socialista, que, embora preveja aquilo a que chama um sector de propriedade social e no qual inclui também o conjunto das empresas cooperativas em qualquer modalidade, não considera que essa explicitação seja relevante (isto numa primeira leitura, numa primeira apresentação e ressalvada a hipótese

"jupiteriana" que o Sr. Presidente há pouco levantou). Temos alguma esperança que venham a entender isso relevante.

Em relação à alínea v), sabemos que o texto actual da Constituição refere já o estatuto das empresas públicas. Trata-se, também, de não subestimar a importância do regime jurídico geral do enquadramento dos institutos públicos. Pensamos que a proliferação avulsa de institutos públicos, a ausência de um regime geral de enquadramento dessas pessoas colectivas de direito público, que entre nós assumem uma grande importância, deveria ser objecto de contemplação nesta alínea da Constituição.

Chamo também a vossa atenção para as consequências razoavelmente graves da pluralidade existente, neste momento -isto para não dizer alguma anarquia-, no regime das ordens honoríficas e da concessão de distinções honoríficas. Lembro, por exemplo, aquilo que ocorreu com a criação da Ordem de Camões pela Assembleia da República.

Tem havido alguma margem de conflito entre a Assembleia da República e o Governo. A margem de conflito que se tem estabelecido, também, entre o Governo e o Presidente da República, como entidade com especiais responsabilidades e funções - de resto, supremas em matéria de distinções honoríficas -, leva-nos a considerar que a questão deveria ser objecto de desgovernamentalização e de inserção nesta área de reserva relativa da Assembleia da República.

Quanto ao formulário e publicidade dos actos normativos, creio que a importância da matéria e, igualmente, o peso dos precedentes nos deveriam levar a reflectir. Aquilo que ocorreu nos tempos da defunta maioria AD, com a substituição do regime de formulário e publicidade dos actos normativos, aquilo que tem vindo a suceder nos tempos mais recentes é de molde a que procuremos acautelar este ponto.

Em relação ao estatuto do Banco de Portugal já pudemos debater, de certa forma, algumas das implicações ou dos pressupostos das nossas propostas. Quando discutimos a questão da alteração do sistema de nomeação do governador do Banco de Portugal e dos vice-governadores, quando discutimos as propostas respeitantes ao estatuto do Banco Central pudemos, nessa altura, avaliar quais os rumos que esse estatuto poderá assumir no contexto da evolução das nossas próprias instituições financeiras. Nessa altura tivemos ocasião de sublinhar que esta matéria não deve ser uma questão de Governo, embora este tenha, naturalmente, poderes que deverão ser acautelados quanto às políticas em que a intervenção do Banco de Portugal se verifica nos termos constitucionalmente prescritos. No entanto, a definição do estatuto do Banco de Portugal pela Assembleia da República, a recusa da sua pura governamentalização reveste vantagens que me parecem de encarecer.

Creio, Sr. Presidente, que V. Exa. também introduziu o debate das propostas respeitantes ao n.° 2, isto é, ao regime jurídico das autorizações legislativas. Quanto a isso gostaria apenas de dizer que a nossa preocupação foi a de contribuir para resolver um aspecto que está ainda em aberto na redacção actual do preceito. Esse preceito foi aperfeiçoado na primeira revisão constitucional, embora tenha dificuldades de aplicação de que todos estamos cientes. É a essa lacuna ou a essa dificuldade de aplicação que procuramos dar

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resposta. Entendemos necessário estabelecer um limite para a prorrogação da duração das autorizações legislativas. Verificamos, aliás, que este é um aspecto em que a cautela é particularmente justificada, porque tem havido um excesso na fixação das durações, de que o Governo tem vindo a lançar mão. Por outro lado, creio que em vários sectores têm-se verificado fenómenos anómalos, para os quais gostaria de alertar.

A norma constitucional sobre a duração das autorizações legislativas, designadamente no que diz respeito à actuação do Ministério da Justiça, tem vindo a ser objecto de uma prática consistente no seguinte: tendo a Assembleia da República concedido uma autorização ao Governo, este utiliza essa autorização mediante um decreto-lei, cujo último ou penúltimo artigo refere, conspicuamente, o seguinte: "As disposições constantes do presente diploma entram em vigor com a publicação da legislação referente ao regime de financiamento" ou "as disposições constantes do presente diploma entram em vigor com as portarias de instalação ou de afectação de...". Eis, então, que, subitamente, legislação tão importante como, por exemplo,

o mês de Dezembro de 1987 no limbo, embora o Governo tenha publicado até ao fim desse ano, como, aliás, tinha que fazer - o decreto-lei que regulamenta a lei do acesso ao direito. Estando o regime de financiamento em melindrosas negociações, todo o novo regime do acesso ao direito está, neste momento, pendente, não está em vigor. Continua em vigor a Lei n.° 7/70 do dealbar do caetanismo, imperturbavelmente e com fraude manifesta ao n.° 2 do artigo 168.° da Constituição.

A Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais é um segundo exemplo flagrante. Aí o Governo obteve da Assembleia da República uma lei que é em si mesma uma super-autorização legislativa camuflada, cheia de normativos absolutamente em branco, ou diáfanos. O Governo usou essa autorização legislativa mediante um regulamento, um decreto-lei, que, aliás, acaba de ser publicado. Esse decreto-lei, esse regulamento tem uma conspícua disposição, que refere algo como: "as normas do presente diploma entram em vigor à medida que forem saindo as diversas portarias de instalação". A autorização legislativa será, pois, usada no prazo e de acordo com o calendário que o próprio Governo imagine. Dir-me-ão que se trata de uma verdadeira fraude à Constituição e que nesses casos não há qualquer benfeitoria possível porque, contra a vontade de não cumprir, os remédios constitucionais situam-se em outra esfera (e muitos deles na esfera puramente política). Creio, no entanto, que vale a pena fazer uma reflexão sobre esta matéria, para lograr soluções.

O regime relativo à duração tem na benfeitoria proposta pelo PCP uma das terapêuticas. Para tudo aquilo que acabei de descrever não é, porém, terapêutica suficiente. Reconheço isso a todos os títulos!

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, não creio que a maioria desses problemas encontre solução na vossa proposta.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Foi isso que acabei de referir, Sr. Presidente.

Como bem reparará, estes fenómenos de perversão galopante verificaram-se intensamente a partir do mês de Dezembro de 1987. Portanto, nos meses de Setembro/Outubro/Novembro, altura da apresentação de projectos de revisão, não se nos colocavam estes problemas que acabei de resumir, apelando, no fundo, a uma reflexão conjunta que permita encontrar alguma forma de dar resposta à situação que se encontra criada.

O Sr. Presidente: - O PS dá por apresentada a sua proposta.

O Sr. Deputado António Vitorino quer ainda pronunciar-se sobre o n.° 5?

O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, parece-me que, apesar de tudo, esse ponto da proposta é importante e que merece alguma apresentação. Isto sem prejuízo de, intercalarmente, chamar a vossa atenção para o seguinte: é por lapso que a primeira parte da actual alínea j) - "definição dos sectores de propriedade dos meios de produção" - não está recuperada na nossa proposta relativa ao artigo 168.° A segunda parte passou para a reserva absoluta, mas a primeira deve entender-se como constante da reserva relativa. Trata-se, pois, de um lapso.

O n.° 5 tem como objectivo fundamental colocar à reflexão da Comissão a situação anómala que se tem verificado de se integrarem na lei do Orçamento do Estado, e cada vez de forma mais abundante, autorizações legislativas, cujo regime jurídico não é, de facto, suficientemente claro e preciso. Doutrinariamente, têm havido diferentes concepções acerca dessas autorizações legislativas. Há quem defenda que se trata de autorizações legislativas de tipo especial, não sujeitas às regras do artigo 168.° da Constituição. Os defensores desta tese não têm, em meu entender, base constitucional que a proteja, ou melhor, não conseguem encontrar base constitucional para a tese que defendem, a não ser uma interpretação lato sensu da natureza da função de direcção política e de programa de orientação financeira do Estado, que está ínsita na natureza do próprio Orçamento do Estado e que permitiria a definição de autorizações legislativas a utilizar nesse contexto segundo uma lógica diversa e segundo regras exógenas ao que sobre a matéria dispõe a Constituição. Em nosso entender, a lei do Orçamento pode conter autorizações legislativas, mas estas têm que respeitar o disposto no artigo 168.° da Constituição, designadamente têm que definir o objecto, o sentido e a extensão sobre que versam. Quando essas autorizações versam matéria fiscal entende-se e reconhece-se que podem caducar segundo um regime excepcional. Assim, quanto à duração das autorizações em matéria fiscal, entendemos que se justifica reconhecer a sua especial natureza e a sua integração no programa financeiro, que é o Orçamento do Estado, e, consequentemente, determinar um regime de caducidade diverso, independentemente do termo de legislatura, da dissolução da Assembleia da República ou da demissão do Governo. Na nossa proposta tais autorizações só caducam com o termo do ano económico a que respeitam. Fora o caso da caducidade, as autorizações contidas na lei do Orçamento devem em tudo o mais ser autorizações como as outras, que respeitem o disposto no artigo 168.° da Constituição. Nesse sentido somos

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mais restritivos que as propostas de outros partidos que se preocuparam com a mesma questão. É o caso da proposta do CDS, que não distingue as diferentes autorizações legislativas concebíveis. Refere todas as autorizações contidas no Orçamento. O PRD fala em autorizações destinadas à obtenção de receitas e à realização de despesas públicas. Entendemos que é mais preciso falar em autorizações sobre matéria fiscal e reconhecer só a essas esta natureza excepcional.

Quanto à questão que foi colocada pelo Sr. Deputado José Magalhães, gostaria apenas de dizer o seguinte: o problema que o Sr. Deputado coloca é interessante, mas não tem a ver com a duração da autorização legislativa. Isto porque sempre se tem entendido que a duração da autorização legislativa tem como objectivo a sua utilização, isto é, a emissão dos actos legislativos em que se traduz a sua utilização. A utilização de uma autorização legislativa não significa a entrada em vigor dos diplomas legislativos que constituam uso da autorização legislativa. De facto, é difícil rigidificar muito o sistema, na medida em que é conceptualmente aceitável que uma autorização legislativa seja usada mediante um decreto-lei cuja entrada em vigor esteja sujeita a condição. É o caso, por exemplo, das autorizações legislativas em matéria fiscal, que são utilizadas por decreto-lei, que não se destina a entrar em vigor imediatamente, mas sim, no início do ano económico seguinte. É o caso também das autorizações legislativas em matéria de revisão de Códigos de Processo Civil ou de Processo Penal, cuja utilização justifica uma vacatio legis assinalável para preparar o meio jurídico aos novos normativos e à sua entrada em vigor. Poderia ser excessivo, digamos assim, que a Constituição rigidificasse este sistema.

Creio que a solução para o problema que o Sr. Deputado José Magalhães coloca é a que pode ser alcançada por duas vias. Hipótese n.° 1: em casos em que repute tal como fundamental, a lei de autorização legislativa pode ela própria estabelecer, dentro da definição da extensão, um prazo máximo da entrada em vigor dos diplomas a utilizar, independentemente do prazo do uso da autorização. Hipótese n.° 2: o facto de se conferir uma autorização legislativa não preclude o poder do Parlamento de intervir na matéria e de, consequentemente, determinar, por exemplo, através de um projecto de lei avulso, a revogação do artigo do decreto-lei de uso de autorização legislativa que estabelece um modo diferido de entrar em vigor do normativo desse mesmo decreto-lei, na medida em que a Assembleia da República não vê precludidos os seus poderes sobre urna dada matéria pelo facto de ter conferido ao Governo uma autorização legislativa. Isso ao contrário de outros sistemas legislativos em que acontece o contrário: o Parlamento confere uma autorização legislativa e durante o prazo que cabe ao Governo para utilizar essa autorização legislativa o Parlamento perde competência legislativa sobre a matéria.

Portanto, creio que estas são as duas aproximações para resolver o problema que o Sr. Deputado José Magalhães coloca.

O Sr. Presidente: - O PSD quer apresentar a sua proposta?

Pausa.

Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Quando o Sr. Presidente se referiu às alterações de cada proposta acabou por resumir aquilo que nós tínhamos para alterar.

O Sr. Presidente: - Sra. Deputada, talvez a alínea j) careça de alguma justificação.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Sr. Presidente, em relação ao texto actual eliminamos duas alíneas e alteramos uma com absorção de outra. Em primeiro lugar, é eliminada a alínea m), que é a que diz respeito às bases da reforma agrária, incluindo os critérios de fixação dos limites máximos das unidades de exploração agrícola privada. Aliás, isto está de acordo com as nossas propostas relativas à política agrícola em matéria de alteração da Constituição.

A alínea s), "participação das organizações populares de base no exercício do poder local", tem a ver com a supressão no nosso projecto de revisão constitucional dessas organizações.

A alínea f) adquire uma nova redacção na nossa proposta, com a absorção da alínea l). Assim, passa a ter a seguinte redacção: "[...] delimitação do sector público da economia e bem assim dos meios e formas de intervenção, de nacionalização ou de privatização dos meios de produção e dos critérios de fixação das indemnizações". Esta fusão das alíneas na alínea y) tem também a ver com critérios de conformidade à nossa proposta em matéria de constituição económica e à filosofia que ela co-envolve no que diz respeito quer ao sector público quer ao sector privado da economia.

Acrescentamos a este elenco da nossa proposta a alínea u), que propõe que também seja da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República o regime geral do segredo de Estado e do dever de sigilo.

Relativamente às propostas anteriores, ainda não reflectimos sobre muitas das inovações que foram aqui apresentadas. No entanto, gostaria de dirigir uma pergunta de esclarecimento ao Sr. Deputado José Magalhães sobre a proposta do PCP em relação a este artigo. O que é que o PCP entende sobre "E da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização do Governo, em caso de necessidade..." O que é isso? Isto é um aperto da reserva relativa de competência no sentido de a aproximar de uma reserva absoluta?

O Sr. Presidente: - Não está presente nenhum representante da ID para justificar a sua proposta.

Os representantes do PRD também não estão aqui presentes. Porém, já aqui foi dito que se trata de simples transferências para o artigo 167.°

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, é que na minha exposição omiti a primeira das alterações que o PCP propõe neste domínio. Ela visa, manifestamente, procurar estabelecer, como um dos requisitos para o recurso ao instrumento da autorização legislativa, a necessidade. De resto, não somos particularmente originais nessa matéria. Há no mesmo sen-

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tido diversas posições públicas, nomeadamente a do Sr. Professor Jorge Miranda, que já foi manifestada em diversas circunstâncias, designadamente no início da revisão constitucional.

Nesses textos, VV. Exas. encontrarão uma referência à lacuna existente nesta matéria e à utilidade de uma norma que estabeleça um critério que permita delimitar como elemento estruturador, como requisito, como directriz ou, de alguma forma, critério para uso deste instituto, a necessidade. A formulação, obviamente, poderá não ser a do PCP - a ideia é patente: visa-se contrariar o abuso, o recurso desnecessário às autorizações legislativas, designadamente como forma de substituição da actividade directa e imediata da Assembleia da República. Creio que a prática de alguns governos (e, dificilmente poderá deixar de se reconhecer, deste Governo) aconselha a que se tenha isto em particular atenção. A Assembleia da República, em muitos casos, tem vindo a ser confrontada com autorizações legislativas que não são só desnecessárias: são verdadeiramente acintosas! Creio que excedem, até, um pouco, o campo da proposta do PCP, porque não têm nenhuma razão de necessidade específica, não têm nenhuma razão de impossibilidade de realização do adequado labor legislativo pela própria Assembleia; tudo aconselharia mais publicidade, mais participação, normação directa e imediata, preceito a preceito, pela Assembleia. No entanto, eis que, de súbito, encontramos aqui coisas a que se chama autorização legislativa, para resolver problemas que poderiam ser resolvidos por outra forma...

O Sr. Presidente: - Para fazer uma pergunta, tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.

A Sra. Mana da Assunção Esteves (PSD): - Coloco uma hipótese prática: imagine o Sr. Deputado que há uma lei, que é uma autorização legislativa da Assembleia ao Governo, sem que seja em caso de necessidade. O que é que acontece a essa lei, qual o vício dessa lei, quem é que afere esse caso de necessidade, quem é que controla a acção da Assembleia, no plano das autorizações legislativas que ela queira conferir ao Governo? Isto tem de ter, de facto, um certo interesse prático, sob pena de não valer a pena estar aqui. Não percebo o que é que acontece a uma lei com autorização legislativa, sem ser em caso de necessidade e quem é que controla esse fenómeno patológico do processo legislativo, neste caso.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - O que são requisitos de necessidade? Ou seja: como é que se prova que se atingiu o patamar da necessidade, segundo o PCP?

O Sr. Presidente: - Isso só tinha alguma justificação, embora introduza um processo complicado, se se consagrasse que tem de constar do pedido de autorização legislativa justificar o pedido. Seria, de algum modo, a razão de ser da petição; além do objecto, da duração, etc., ter-se-ia que especificar também a razão por que se pede a autorização legislativa.

O Sr. Rui Machete (PSD): - Seria insindicável.

O Sr. Presidente: - Para fazer uma pergunta, tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.

O Sr. António Vitorino (PS): - Ao contrário dos oradores que me antecederam, por acaso até percebo bem aquilo que está aqui, na proposta do PCP.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Eu também percebo!

O Sr. António Vitorino (PS): - Bom, não estava a querer passar nenhum atestado de não compreensão aos oradores que me antecederam; só queria dizer que pela minha parte percebo o que está na proposta do PCP ...

O Sr. José Magalhães (PCP): - É uma competição entre a Agatha Christie e o Dashell Hammett, pura e simplesmente.

O Sr. António Vitorino (PS): - Nem isso, porque eu entendo que isso é exactamente o que já está na Constituição e só assim é que se deve entender o que já hoje está na Constituição. Ou seja, não pode ser a explicação que o Sr. Deputado José Magalhães ensejou, da urgência, porque então haveria uma contradição insanável entre a identificação da necessidade de apresentar a autorização legislativa na óptica da urgência e a própria proposta que o PCP faz no n.° 2, de admitir que as autorizações legislativas possam ser prorrogadas, não podendo exceder seis meses, o que derroga completamente qualquer critério de urgência; quando se pode prorrogar uma autorização legislativa por um prazo tão longo, seis meses, não militam razões de urgência. O que está em causa, portanto, é considerar que o Governo só deve suscitar uma derrogação da ordem normal de competências, que é o primado legislativo da Assembleia da República, também sobre estas matérias, em caso de entender que há vantagens em seguir esse procedimento.

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Isso é completamente diferente.

O Sr. António Vitorino (PS): - Não é completamente diferente, porque é esse exactamente o critério que tem de estar subjacente à própria decisão parlamentar de autorizar - nem outro poderá ser!

O Sr. Costa Andrade (PSD): - Isso é um juízo de conveniência. Aqui está em causa um juízo de necessidade; a necessidade é uma exigência dramática.

O Sr. António Vitorino (PS): - Mas isto é copiado de certos sistemas legislativos onde os governos podem legislar em caso de necessidade e urgência - os critérios são cumulativos: "em caso de necessidade e urgência"; é o caso do sistema italiano, onde o Governo pode emitir decretos-leis em caso de necessidade e urgência, que são decretos-leis que têm de ser submetidos à ratificação parlamentar num prazo de x sessões, sob pena de caducarem. Esta é a inspiração; só que, como não há nenhuma proposta nesse sentido do PCP, isto é, de completar a lógica que teria o caso de necessidade nessas circunstâncias, entendo - na minha humilde opinião - que o critério da proporcionalidade

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que está, no fundo, subjacente a este inciso "no caso de necessidade" já se contém no n.° 1 do artigo 168.° da Constituição, porque diz ser "da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias", e só será concedida a autorização ao Governo quando o legislador parlamentar, ele próprio, tiver a convicção de que há vantagens, de que é necessário, para mais proficuamente legislar sobre estas matérias, conceder uma autorização ao Governo. O que eu queria apenas sublinhar é que a eventual rejeição do inciso do PCP não deve levar a uma interpretação mais laxista do significado do primado legislativo da Assembleia da República, que está consagrado no artigo 168.° da Constituição. A minha pergunta é se o Sr. Deputado José Magalhães está de acordo com esta interpretação.

O Sr. Presidente: - Não está, claro.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - É a chamada "pergunta-convite à adesão"... Respondo que seria melhor aprovar a proposta do PCP, mas a rejeição não legitima hermenêuticas laxistas.

A nossa ideia é precisamente fazer um explicitação - e tão-só. É evidente que sabemos haver uma distinção entre necessidade e urgência, de resto tratámos as duas matérias separadamente; na minha reflexão, a que o Sr. Deputado António Vitorino aludiu, descrevi as práticas mais recentes do Governo, em que as duas coisas aparecem amalgamadas, isto é, há uma violação das regras respeitantes à urgência e uma violação das regras respeitantes à necessidade. Em matéria de acrescento ou de utilidade, creio que, apesar de tudo, o aditamento de um inciso deste tipo alertaria, desde logo, para a necessidade de justificação dos pedidos de autorização legislativa apresentados pelo Governo. Isso, sistematicamente, não se verifica e admito que um inciso deste tipo pudesse ser relevante para dar satisfação àquilo que, em saudável hermenêutica, decorre deste preceito.

Resisto à tentação de tentar enveredar pelo caminho para o qual nos empurrava a Sra. Deputada Assunção Esteves, ao procurar sindicar quais seriam as consequências, no terreno que procurou situar, da violação deste dever, embora recorde as regras, esta manhã ensejadas pelo Sr. Deputado António Vitorino, e o veemente protesto que fez em relação ao Tribunal Constitucional, quanto à sua posição relativa à problemática questão das bases gerais dos regimes jurídicos. Tudo isso podia aplicar-se, mutatis mutandis, a esta matéria. Não creio, no entanto, que as ambições desta proposta legitimem que se enverede por esse caminho. Creio que seremos todos reconfortados em entender que é inteiramente absurdo que as práticas governamentais conduzam à subversão do exercício normal das competências parlamentares, como lastimavelmente vem ocorrendo por demais. Se deste debate resultar revigorado o critério que, em saudável hermenêutica, flui do artigo 168.° da Constituição, o contributo do PCP não terá sido senão digno de alguma estima. Se pudermos, ainda por cima, convergir numa explicitação saudável e bastante, que ultrapasse o problema - aliás, um pouco "eciano" - que o Sr. Deputado Almeida Santos há pouco aventava e se se encontrasse uma formulação melhor do que esta a que alude, "ou em caso de necessidade", diria necessitas, estaremos perfeitamente de acordo com isso.

O Sr. Presidente: - Não me repugnaria uma formulação deste género: não punha cá "em caso de necessidade", mas estabelecia no n.° 2 que as leis de autorização legislativa devem definir o objecto, o sentido, a extensão e a duração, e podem definir outras razões justificativas da autorização solicitada. Assim, já ficava entendido que tudo isto são elementos justificativos, e haveria uma margem vinculativa e uma margem facultativa. O Governo pede uma autorização, quer que lhe seja concedida, justifica-a o melhor que puder e entender. Eu não seria contra uma formulação deste género, mas "estado de necessidade", isso não.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Terei necessidade de reflectir colectivamente sobre o conjunto das implicações daquilo que V. Exa. acaba de propor. Em todo o caso, devo dizer que, prima fade, essa solução acabaria por tornar a justificação perfeitamente facultativa e, logo, aditar dúvidas àquilo que não as suscita neste momento - seria a pior via.

O Sr. Presidente: - "Outras razões justificativas" - estas também passavam a sê-lo. Não era só indicar um objecto e cumprir formalidades, isto ficaria entendido como sendo já formas de justificar o pedido; já seriam conteúdos de justificação e poderiam definir outras situações justificativas. Não sei se isto não complica mais do que simplifica. Mas é uma formulação que não me repugna. Se o Governo entender que, além daquilo que é obrigatório, deve ainda dar novas justificações, por que não?

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - (Por não ter faiado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador)

O Sr. José Magalhães (PCP): - Pudera, isso tinha a ver com a repartição de competências!

O Sr. António Vitorino (PS): - Eu fui mais discreto, citei a Constituição italiana.

O Sr. Presidente: - A urgência seria um critério facultativo, não necessário. O Governo é que sabe se precisa ou não de justificar, além de um certo mínimo.

O Sr. António Vitorino (PS): - Queria recordar ao Sr. Deputado José Magalhães que hoje de manhã não fiz nenhum veemente protesto em relação à posição do Tribunal Constitucional - fiz apenas uma constatação, não um protesto.

O Sr. Presidente: - Isso não está deslocado no tempo? VV. Exas. vão reiniciar a vossa disputa da manhã?

O Sr. António Vitorino (PS): - É que, como o Sr. Deputado José Magalhães não perde nenhuma oportunidade de chamar a atenção para as minhas opiniões sobre o Tribunal Constitucional, também não posso perder uma oportunidade de precisar o sentido delas.

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O Sr. Presidente: - Só não quero que reiniciem a discussão desta manhã. Não a esta hora da noite!...

Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Quanto à lógica dos contributos para uma boa interpretação, que o Sr. Deputado José Magalhães consegue, de facto, atribuir como vantagem a esta proposta do PCP, queria tomar a liberdade de discordar da interpretação do Sr. Deputado António Vitorino, no que diz respeito à relação que estabelece entre esta proposta e a eventual interpretação que resulta do artigo 168.°, na redacção actual. Entendo que o artigo 168.° dá inteira liberdade à Assembleia da República para conceder autorizações legislativas; não lhe põe nenhuma condição, nem está implícito, sequer, o requisito da necessidade. Quando a Constituição quer vedar a liberdade à Assembleia da República, em matéria de competência legislativa, fá-lo remetendo para a competência absoluta. Há na reserva relativa uma margem de liberdade do Parlamento, no sentido de conferir, ou não, ao Governo poderes de legislar. Nesse sentido, a expressão "em caso de necessidade", no nosso entender, é nociva, porque não vem dirigir-se ao Governo e à necessidade de o Governo justificar os pedidos de autorização legislativa; vem referir-se à Assembleia da República, é um comando constitucional que limita os poderes de escolha da Assembleia, no sentido de exercer, ou não, esse poder legislativo. Nós diferimos da interpretação que o Sr. Deputado António Vitorino faz, e dessa diferença de interpretação decorre uma menor complacência para com a proposta apresentada.

Quanto ao problema da justificação, parece-me que ela terá, necessariamente, de existir, porquanto o n.° 2 impõe a definição do objecto à lei de autorização legislativa. Aqui está ínsita a ideia de que tem de haver uma justificação e uma determinação clara do âmbito daquilo que a lei de autorização vai permitir que o Governo venha legislar, mas, sublinho, esta expressão "em caso de necessidade" não se dirige a uma limitação ao Governo, dirige-se a uma limitação do poder da Assembleia da República que não é, de modo nenhum, a interpretação que nós colhemos do artigo 168.° e da ideia de uma reserva relativa de competência legislativa.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Gostaria apenas de dizer que vamos ponderar as observações feitas. A este propósito, gostaria de relembrar, já que se falou na Constituição de 1933, que foi precisamente a revisão de 1945, ao criar a figura do governo legislador, com poder legislativo próprio, que instituiu simultaneamente (foi esse o preço) a ideia da reserva relativa de competência da então Assembleia Nacional. Tudo o que ocorreu depois esteve na base do regime que, em 1976, veio a ser instituído e aperfeiçoado na primeira revisão constitucional. A existência do governo legislador não é, por isso, posta em causa - nós, de certa forma, pômo-la em causa com as nossas propostas, sim, mas as respeitantes ao artigo 115.° A questão do abuso das autorizações legislativa, da definição das regras do seu uso, merece uma dupla reflexão e limitação, tanto em relação à cláusula da necessidade como em relação à da urgência - são coisas diferentes e a mistura entre as duas pode ser perniciosa. A resolução das questões de urgência não basta para dar resposta ao quadro criado; o apontar para uma cláusula que inculque uma ideia de normalidade no exercício destes poderes é o nosso objectivo óptimo neste domínio. Esse objectivo óptimo, obviamente, é sempre susceptível de alguma margem de perversão aplicativa. Sabemos que a cláusula é modesta nas suas implicações. Não sei se isto a torna sedutora para o PSD, em todo o caso, é, de facto, modesta nas suas implicações. Portanto, trabalhar-se para a sua inserção no n.° 2, ou no n.° 1, no proémio, ou para uma cláusula própria, desde que não seja um voto pio, conta com toda a nossa simpatia.

O Sr. Presidente: - Podíamos, talvez, dar por arrumado o artigo 169.°, na medida em que o CDS não está presente.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Em relação às propostas das regiões autónomas, creio que o debate se fará na sede própria, anotando-se todavia a dimensão brutal da proposta que é feita e que não tem aqui votos secundantes.

O Sr. Presidente: - Teremos oportunidade de voltar ao tema.

Quanto ao artigo 169.°, o CDS faz uma proposta, mas não está aqui para a apresentar, portanto passa-se à frente. Acontece que é apenas uma mera correcção de forma.

Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Só para fazer uma referência: as modificações no n.° 1 são mera consequência das transferências para a competência absoluta, o que mostra que o PRD não quis alargar a competência reservada à Assembleia; o que quis foi reequilibrar, do seu ponto de vista, aquilo que é reserva absoluta e o que é reserva relativa. Há ainda a proposta quanto ao n.° 5, isto é, a proibição daquilo que, ao que parece, se chamam as autorizações legislativas "à boleia" na Lei do Orçamento do Estado. Obviamente, a urgência da aprovação do Orçamento, a pressão sob a qual o Orçamento é votado, impedem frequentemente que haja uma ponderação mínima relativamente às autorizações que estão a ser concedidas. Nesse aspecto creio que era um aperfeiçoamento significativo, como o são, por exemplo, a proposta do PS e, salvo erro, do CDS quanto à não caducidade de autorizações legislativas contidas na Lei do Orçamento por demissão do Governo. Penso que era um aperfeiçoamento não direi essencial mas com alguma importância o proibir que as autorizações legislativas contidas na Lei do Orçamento excedam o que é próprio de matéria orçamental.

O Sr. António Vitorino (PS): - A nossa proposta é mais restritiva.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - A nossa proposta não diz respeito à caducidade, a vossa é mais restritiva. O PS não proíbe que as autorizações excedam a matéria fiscal. Diz é que as autorizações em matéria fiscal, e só essas, duram até ao fim do ano.

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O Sr. António Vitorino (PS): - E todas elas têm que respeitar o artigo 168.°

O Sr. Presidente: - Quando sobre matéria fiscal só caducam.

O Sr. António Vitorino (PS): - Há um regime de excepção quanto à caducidade apenas para as autorizações em matéria fiscal.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Não é incompatível com o nosso ...

O Sr. António Vitorino (PS): - Não é incompatível, só que é mais restritivo.

O Sr. Presidente: - Correcto, é o regime geral.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sim, mas penso que o que consta do nosso projecto no n.° 5, que salvo erro foi sugerido pelo Dr. Silva Lopes, tem alguma importância no sentido de impedir a autorização legislativa "à boleia", conforme a denominação que lhe deram.

O Sr. Rui Machete (PSD): - Tecnicamente é assim que se chama. É da tradução do francês, ou do inglês, suponho.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Mais exactamente, suponho que são os chevaliers budgetaires, só que, como os chevaliers modernos andam de automóvel, a ideia da "boleia" deve decorrer daí.

Risos.

A questão colocada pelo Sr. Deputado António Vitorino é mais profunda do que isso. Pode complexificar-se se tivermos em atenção as chamadas autorizações legislativas sobre matéria com nexo directo com o Orçamento e as autorizações sem nexo directo com o Orçamento que o Tribunal Constitucional considerou que também podiam ser incluídas no Orçamento,...

O Sr. António Vitorino (PS): - É óbvio.

O Sr. José Magalhães (PCP): - ... o que foi polémico. Creio que são essas que preocupam o Sr. Deputado Galvão Teles.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Eram essas.

O Sr. António Vitorino (PS): - É que já se tentaram criar tribunais com base em autorizações legislativas contidas na Lei do Orçamento.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Estou muito bem lembrado, Sr. Deputado António Vitorino. Foi nos tempos do bloco central, numa leda madrugada...

O Sr. Presidente: - Acho que podíamos dar por discutido o artigo 169.°, na medida em que a proposta do PS pressupõe a aprovação das leis paraconstitucionais e, portanto, depende de serem aprovadas ou não aprovadas. As alterações do PS são mera adaptação às alterações das alíneas que dependem do que se resolver no lugar próprio. O único acrescento é uma referência à composição do Conselho Superior da Magistratura. Não vamos fazer agora questão disso.

Amanhã começaríamos às 10 horas, com o artigo 170.° Haverá reunião da parte da tarde. Na semana que vem haverá reuniões na terça-feira de tarde, na quarta-feira da parte da tarde e à noite, na quinta-feira de manhã, de tarde e à noite e na sexta-feira da parte da manhã.

Srs. Deputados, está encerrada a reunião.

Eram 0 horas e 15 minutos do dia seguinte.

Comissão Eventual para a Revisão Constitucional

Reunião do dia 7 de Julho de 1988

Relação das presenças dos Srs. Deputados

Rui Manuel P. Chancerelle de Machete (PSD).
Carlos Manuel de Sousa Encarnação (PSD).
António Costa de Sousa Lara (PSD).
Carlos Manuel Oliveira e Silva (PSD).
José Mário Lemos Damião (PSD).
Ercília Domingues Monteiro Pinto Ribeiro da Silva (PSD).
José Luís Bonifácio Ramos (PSD).
Licínio Moreira da Silva (PSD).
Luís Filipe Garrido Pais de Sousa (PSD).
Maria da Assunção Andrade Esteves (PSD).
Manuel da Costa Andrade (PSD).
Mário Jorge Belo Maciel (PSD).
Rui Alberto Limpo Salvada (PSD).
Manuel António de Sá Fernandes (PSD).
António de Almeida Santos (PS).
António Manuel Ferreira Vitorino (PS).
José Manuel Santos Magalhães (PCP).
Miguel Galvão Teles (PRD).
José Luís Nogueira de Brito (CDS).
João Manuel Caniço de Seiça Neves (ID).

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