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Segunda-feira, 28 de Novembro de 1988 II Série - Número 58-RC
DIÁRIO da Assembleia da República
V LEGISLATURA 1.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1987-1988)
II REVISÃO CONSTITUCIONAL
COMISSÃO EVENTUAL PARA A REVISÃO CONSTITUCIONAL
ACTA N.° 56
Reunião do dia 27 de Outubro de 1988
SUMÁRIO
Iniciou-se a discussão do 1.° Relatório da Subcomissão da CERC, respeitante ao Preâmbulo e aos artigos 1.° a 11.° e respectivas propostas de alteração.
Durante o debate intervieram, a diverso título, para além do Presidente, Rui Machete, pela ordem indicada, os Srs. Deputados Pedro Roseta (PSD), Nogueira de Brito (CDS), José Magalhães (PCP), Sousa Lara (PSD), Alberto Martins (PS), Costa Andrade (PSD), Pais de Sousa (PSD), Ferreira de Campos (PSD), Maria da Assunção Esteves (PSD) e Almeida Santos (PS).
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O Sr. Presidente (Almeida Santos): - Srs. Deputados, temos quorum, pelo que declaro aberta a reunião.
Eram 16 horas e 25 minutos.
Srs. Deputados, iniciaremos os nossos trabalhos com a análise do artigo 1.°, sob a epígrafe "República Portuguesa", relativamente ao qual o CDS apresenta uma proposta de alteração em que substitui a palavra "baseada" por "fundada" - o que não se me afigura uma alteração de tomo -, a expressão "vontade popular", por "vontade do povo português", e propõe ainda que onde se diz "empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes" se consagre "e na solidariedade social".
O PS propõe a seguinte redacção: "Portugal é uma República soberana baseada na dignidade da pessoa humana, na vontade popular" - até aqui reproduz o actual texto constitucional - "na igualdade, na solidariedade e no trabalho" - o que constitui um acrescento - "e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa ç fraterna" - alterando portanto; nesta parte, o texto actual, que é "empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes".
O PSD, tal como o CDS, substitui a palavra "baseada" por "fundada", mantendo a expressão "vontade popular" e substituindo o segmento "empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes" pela expressão "na solidariedade e na justiça social".
Os Srs. Deputados Sottomayor Cárdia e Helena Roseta, embora apresentem projectos autónomos, propõem para este preceito normas coincidentes, totalmente originais, ou seja:
"1 - Portugal é uma nação soberana.
2 - A Constituição é a lei suprema da nação portuguesa.
3 - O Estado Português é uma República subordinada à Constituição."
Por seu turno, o PRD, onde se diz "e empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes" propõe que se consagre "e subordinada aos valores da liberdade, da igualdade e da solidariedade".
Dado o CDS não estar presente para apresentar a sua proposta, o PS justificaria a sua muito sucintamente no sentido de que a expressão "empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes" tem estado ligada à carga mitificada, do ponto de vista ideológico, da Constituição. Pensamos que essa guerra pode terminar com uma expressão que consideramos equivalente, ou seja "empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e fraterna". Simultaneamente, como fundamentos da República Portuguesa, além da dignidade de pessoa humana e da vontade popular, acrescentamos a igualdade, a solidariedade e o trabalho.
Quererá o PSD justificar a sua proposta?
Pausa.
Tem a palavra o Sr. Deputado Pedro Roseta.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Antes de mais e dado ser a primeira vez que uso da palavra na Assembleia da República depois do meu regresso, não queria deixar de agradecer as palavras amáveis de boas vindas ontem proferidas pelo Sr. Presidente e meu querido amigo deputado Rui
Machete, bem como a forma calorosa como V. Exa. e muitos deputados de todos os partidos sem excepção, que me conheciam, me receberam, passado sete anos. Após esta longa ausência - e conto ter ocasião de repetir o que agora digo no Plenário - espero participar com utilidade nos trabalhos da Assembleia. Todos sabem a importância que sempre atribuí a esta Assembleia, não apenas no que se refere ao sistema de governo, mas também à defesa da liberdade e, sobretudo, à luta pela dignidade e pelo bem comum de todos os portugueses.
Sr. Presidente, Srs. Deputados, todos aqueles que, na altura, estavam na Assembleia Constituinte - há muito poucos já pelo menos entre os que se encontram nesta Sala - terão presente a declaração de voto e as intervenções do PSD ao longo dos trabalhos daquela Assembleia. Como sabem, o PSD votou contra este artigo 1.° Não vou, obviamente, repetir aqui os motivos por que o fez, mas, inclusivamente por uma razão de ligação com esses tempos, gostaria de dizer que propomos a eliminação da expressão "empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes" por motivos que nos parecem de um extremo relevo e que contendem com o nosso entendimento essencial do que é a democracia. É certo (sobretudo, para quem aqui chega já numa época tardia, como é o meu caso) que não nos compete travar, nesta sede, grandes discussões de índole ideológica ou mesmo, um pouco pretensiosamente, de índole filosófica. No entanto, julgo que não podemos avançar nestes artigos emblemáticos que comtêm os princípios fundamentais da Constituição sem referir algo nestas áreas.
A nossa tarefa não nos obriga a ser perfeccionistas, nem a ter como objectivo tirar álibis a quem quer que seja, mas sim, como ontem foi dito e muito bem pelo Sr. Deputado António Vitorino, entre outros (o Sr. Deputado Costa Andrade, é evidente, já o disse varias vezes), a de acabar com a querela constitucional, que já durou demais, não apenas porque os portugueses têm outras preocupações, mas porque é altura de nos prepararmos para responder a outros desafios que se perfilam no horizonte. Não estou a pensar apenas no tão falado desafio europeu de 1992, mas no desafio essencial que é a luta pelo bem comum e pelo bem-estar dos Portugueses e também, numa perspectiva de mais longo prazo, já integrado no espaço europeu, numa luta pelo espaço que é o da Europa, num mundo em que estão a emergir novos poderes e novas áreas, nomeadamente os países do Sudoeste asiático.
Dito isto, e - repito para o Sr. Deputado Nogueira de Brito - agradecendo a forma como fui acolhido pelos deputados de todos os partidos, começaria por dizer que, tal como já tentou fazer noutras ocasiões, nomeadamente em 1981-1982, o PSD pretende remover as excrescências existentes na Constituição, algumas até certo ponto explicáveis em 1975, mas que têm hoje fundamento, com o objectivo de tornar a Constituição numa Constituição de todos e para todos os Portugueses. Nesta primeira intervenção referir-me-ei não só ao artigo 1.° como também aos preceitos seguintes, nomeadamente ao artigo 2.° quando consagra o objectivo de assegurar a transição para o socialismo, pelo que farei simultaneamente a crítica das duas expressões "empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes" e "transição para o socialismo". Tentarei ex-
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plicitar as razões por que o PSD pretende eliminá-las, congratulando-me vivamente desde já que outros projectos, o do PS e o do CDS, entre outros, também se proponham fazê-lo.
Em primeiro lugar, visa-se transformar a Constituição numa Constituição para todo os Portugueses, eliminando conotações com ideologias partidárias, e torná-la moderna. O Sr. Deputado José Magalhães invocou o programa fundamental do PSD, mas, como verá da minha intervenção, a sociedade moderna no tempo de vigência da Constituição, aproximadamente treze anos, caracterizou-se por uma evolução equivalente à passagem de muitas gerações - certos autores falam numa evolução equivalente a entre quinze e vinte gerações. Consequentemente, o argumento daquilo que se disse ou se fez em 1975 e, por maioria de razão, em 1974 - altura em que aprovámos o programa do PSD que será um dia certamente actualizado, como todas as outras coisas têm de o ser, nomeadamente como estamos a fazer relativamente à Constituição - é um argumento que não colhe, a não ser para aqueles que têm uma concepção fixista da História, o que não é o meu caso nem o caso do PSD, como veremos de seguida.
O PSD pretende ultrapassar um determinado momento histórico, formulações datadas e, por maioria de razão, neste caso, uma formulação contra a qual votou já em 1975. O PSD quer ultrapassá-la não só porque pretende que Portugal tenha finalmente uma Constituição em que todos os Portugueses - enfim, "todos" talvez seja exagero - ou, pelo menos, a quase totalidade dos portugueses se reconheça, mas também que possua uma Constituição virada para o século XXI, em que sejam eliminadas as formulações ideológicas oriundas do velho século XIX. Estas formulações, quer queiram, quer não (a menos que me façam a demonstração do contrário), são formulações datadas, com raízes no século passado. Ora, se me permitem e sem pretender fazer sociologia barata, posso dizer que a sociedade dos nossos dias se caracteriza pelo facto de, em primeiro .lugar, ser uma sociedade essencialmente mutável. O ritmo que a ciência, e a técnica e, sobretudo, a informação lhe introduziram levaram o homem dos nossos dias a, constantemente, pôr em causa as suas maneiras de ver e de fazer. No nosso tempo, o homem sente-se levado, a todo o momento a repensar e a refazer o que ele próprio e as gerações precedentes fizeram, o que permite sustentar que a vida sofreu, em curto espaço, como, por exemplo, nestes catorze ou quinze anos, uma evolução de muitas gerações, sobretudo se quisermos comparar com as sociedades de base agrária de tempos passados, por essência mais estáveis.
Em segundo lugar, depois da mutabilidade, referiria o antidogmatismo. O homem do nosso tempo, quer se queira, quer não - alguns de nós aceitarão isso melhor que outros -, caracteriza-se por uma grande hostilidade a quaisquer princípios imutáveis, a normas absolutas, que lhe sejam impostas sem que ele as possa verificar - pela prática, de que já falaremos a seguir. Portanto, pensando que o modelo ideal está no futuro e não no passado - e aqui temos uma importante divergência entre aqueles, e são muitos felizmente, que propõem alterações a este artigo e aqueles, que são poucos, felizmente também, que não as propõem - o homem de hoje está virado para o futuro, mesmo no campo da religião, onde há, obviamente, verdades reveladas e absolutas, que ele aceita hoje com plena liberdade, como homem livre que quer aderir ou não a um conjunto de determinadas verdades. Mas o que o homem de hoje - dizia - não pode de maneira nenhuma aceitar é que o poder político lhe imponha algumas "verdades" e, como veremos adiante, que lhe imponha determinados objectivos.
Em terceiro lugar, falaria da liberdade. Não vou obviamente cansá-los com considerações sobre o que é a liberdade para o homem contemporâneo mas não poderia deixar de mencionar com muita veemência a importância da liberdade que não tolera amarras do tipo das que, em Portugal, alguns quiseram colocar aos cidadãos. Referiria em seguida o pragmatismo: o homem moderno é prático, é conduzido para a acção e quer substituir a teoria pela praxis, goste-se ou não - e eu talvez fosse dos que poderia pôr reservas àquilo que alguns chamam o pensamento operativo - revestindo-se a teoria da praxis nos nossos tempos de um grande relevo.
Desenvolveria agora uma característica que se me afigura essencial: o homem do nosso tempo caracteriza-se pela historicidade, isto é, vive o sentido da história, a realidade está em contínuo movimento: nada em sua volta considera definitivo ou duradouro. O próprio ser para ele é um devir contínuo. Esta consciência histórica, que anteriormente existia muito mais mitigada ou apenas em determinadas elites intelectuais, é dada também pelos mass media. De tudo isto resulta a exigência de pôr continuamente em causa toda a estrutura, toda a tentativa de estabilizar e fixar no tempo aquilo que está e deve continuar em perpétuo movimento. E - desculpem-me os redactores da Constituição inicialmente os quais me incluo, pelo que não sei se isto é uma autocrítica, embora, como já disse, o PSD tenha votado contra este artigo - fomos bastante simplistas...
O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador).
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - O Sr. Deputado Nogueira de Brito não estava cá na altura, pelo que está isento desta crítica...
A sociedade, como todos sabem, evolui para um modelo crescentemente complexo e diversificado que não se compadece com expressões simplistas, tais como "sociedade sem classes" e outras que ainda abundam na nossa Constituição.
Po outro lado, a ligação da definição clássica de "classe", radicada em certas doutrinas do século passado, com a detenção da propriedade dos meios de produção não tem hoje, como sabem, grande sentido e pouco ou nada tem a ver com a detenção do poder real. São as tecno-estruturas, as classes burocráticas - perdoar-me-á, Sr. Deputado José Magalhães, que não caracterize aqui longamente como surgiram e o que são as classes burocráticas -, que hoje detêm o poder. Amanhã serão os detentores da informação. Todos nós somos sujeitos passivos da informação, todos nós consumimos informação, mas a classe dominante amanhã não será certamente composta pelos detentores da propriedade dos meios de produção, mas sim
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pelos detentores do poder de informar. Penso que o poder real será detido, por um lado, por aqueles que comandarem nos grandes espaços intercontinentais as descobertas tecnológicas e suas aplicações ao quotidiano, os chamados "avanços" da ciência e da tecnologia, e, sobretudo, por aqueles que detiverem o poder de informar, de invadir as casas de todos os cidadãos e de condicionar, direi mesmo de comandar, de uma forma, por vezes, mais ou menos indirecta, outras vezes até muito mais directa, quer os comportamentos individuais quer a vida das sociedades, através desse poder imenso que é a detenção do poder de seleccionar e de transmitir em larga escala a informação.
Resumindo, tem-se verificado e vai acentuar-se a emergência de novas classes, a cada vez maior complexifícação social e até (se bem que me possa dizer que tal ainda não aconteceu em Portugal) o corte da ligação automática entre a detenção da propriedade e o poder de decisão. De facto, não são os detentores de 1% ou 2%, ou menos, de acções da IBM que têm o poder (muitos são até, como sabem, colarinhos brancos ou operários, pertencem a todas as classes sociais) em sentido clássico, mas aqueles que., eventualmente sem a detenção de partes significativas da propriedade das grandes empresas, são efectivamente titulares do poder de decisão e de condicionamento dos comportamentos alheios.
Daqui resulta que muitos pensadores sociais-democratas de hoje - perdoar-me-ão se não fizer aqui um elenco exaustivo, mas certamente sabem quem eles são - entendem que a sociedade sem classes é, nos nossos dias, uma pura utopia, e que ainda o será mais no futuro. É uma utopia que está, cada dia, a ser destruída pela evolução social e tecnológica constituindo inclusivamente - perdoem-me o anglicismo - um nonsense.
Daqui, acompanhado, aliás, por pensadores de outras origens, concluiria que as formulações constantes dos artigos 1.° e 2.° nada têm a ver com a sociedade moderna, cujas características e cuja evolução, pelo contrário, impõem a sua rápida substituição.
Numa segunda parte desta minha intervenção quereria responder a outras questões relevantes: terão estas expressões alguma coisa a ver com o objectivo essencial da política? Poderá ter a actividade política como objectivo quer a construção de uma sociedade sem classes quer a transição para o socialismo ou a transição para o que quer que seja? Gostaria de reflectir sobre este ponto para melhor podermos situar e compreender as propostas do PSD, que aliás vêm já de trás. Penso que, se nos debruçarmos um pouco sobre as relações entre o poder político e a sociedade e, à luz destas questões que me parecem essenciais, se quisermos saber se o poder pode impor um objectivo à sociedade, se a missão do poder é conduzir (ainda que por formas "doces" e enviezadas) a sociedade para um modelo predeterminado, teremos de responder, e o PSD obviamente responde que não. Para o PSD nenhuma finalidade, nenhum objectivo final é aceitável. Para nós, o objectivo essencial da política não é aquele. Recordo que se entende desde a Antiguidade, que a política deve ter como objectivo essencial a realização do bem comum, ou seja a promoção do bem-estar material e espiritual que permitam o desenvolvimento integral de cada homem enquanto pessoa. É óbvio que para estabelecer os sucessivos modos dessa promoção em cada momento deverá ser respeitada a vontade popular. E chegamos ao cerne das divergências que havia entre nós e que agora, felizmente, estão reduzidas, porque, ao nosso lado, há agora uma larga maioria, muito anterior ao acordo de que tanto se falou ontem, que consta de projectos publicados muito antes do acordo, com o que me congratulo...
O Sr. Presidente: - Isso não faz parte do acordo!
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - É o que estou a dizer, Sr. Presidente - um acordo que se verificou muito antes deste Outubro; que muito antes do acordo de que se falou aqui, se tenha verificado este desiderato comum. Era por isso que me estava a congratular, Sr. Presidente, com o facto de, na grande separação das águas que é, para além daquela que divide os que são personalistas e os que são transpersonalistas - e esta já é uma divisão muito clara que me separa do Sr. Deputado José Magalhães e dos membros da sua bancada, embora não interesse pessoalizar as questões -, a que divide aqueles que são determistas dos que são antideterministas, os primeiros estarem agora em larga maioria em Portugal.
Queria terminar esta minha primeira intervenção - e já não é sem tempo. Depois falaria - se o Sr. Presidente me desse a palavra mais tarde - sobre a questão essencial da justiça e sobre a importância para várias correntes do pensamento contemporâneo da ideia de justiça como valor que o PSD quer introduzir no artigo 1.°...
O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - Social.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Sim, justiça social - depois aguardarei os seus comentários, mas ainda não cheguei lá.
Mas gostaria de dizer ainda algo sobre esta distinção entre os deterministas e os não deterministas, entre aqueles que respeitam a pessoa - a sua vontade, a sua autonomia, a sua liberdade -, que admitem que a sociedade não tem um determinado objectivo, que é ridículo pretender que, por motivos ideológicos, sejam eles quais forem, se pode predeterminar um estádio final de desenvolvimento, um modelo de sociedade a que, forçosamente teria de se chegar, e aqueles que as querem predeterminar de acordo com as suas ideologias. Não concorda, Sr. Deputado?
Vozes.
Ainda bem. Vozes.
Sr. Deputado José Magalhães, será democrática a sociedade em que o poder se atribui um objectivo final inelutável e imutável como a sociedade sem classes? Esta sociedade, Sr. Deputado, a meu ver, não só não pode ser plenamente democrática, como é uma sociedade a histórica, é uma sociedade que se opõe à democracia, que, como sabe, diversos pensadores classificam como a sociedade histórica por excelência, sociedade que acolhe e preserva a indeterminação, em
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contraste com o totalitarismo que, edificando-se sob o signo da criação (da sociedade sem classes, do homem novo, etc..), se opõe a essa indeterminação, que distingue as sociedades plenamente democráticas das sociedades predeterminadas, das sociedades cujo desenvolvimento inelutável desemboca nos "amanhãs que cantam" que todos infelizmente conhecemos. Aquela característica - a indeterminaçâo, o respeito pela evolução livre das sociedades pela vontade popular, pela vontade das novas gerações - é, para nós, característica essencial da democracia. É evidente que isto não é totalmente novo. Tocqueville foi o primeiro a pressenti-lo há já um século e meio. Gostaria ainda de citar Edgar Morin, que, como outros, apenas admite que as sociedades do nosso tempo sejam, quando muito, multideterminadas. Isto é, que no seu seio haja determinações diferentes da qual, evidentemente, haverá uma resultante que é a vontade maioritária em cada momento, mas que, por essência, a sociedade democrática é uma sociedade multideterminada, em que, obviamente, haverá, se quiser, elementos mais ou menos socializantes, mais ou menos de mercado, mais ou menos de acordo com certas teorias que defendem a justiça social, a justiça comutativa, a justiça distributiva, etc. Parece-me que este ponto é, efectivamente, essencial.
Diria, a concluir, que tudo o resto é do domínio da mitologia. Continuar hoje a insistir na referida fraseologia que até poderia ser compreensível, apesar do nosso voto contrário em 1975-76 (e nós compreendemos a posição do PS e do CDS na altura), é mitificá-la! Passados tantos anos, é cristalizar mitos: o mito do caminho (ou do regresso) para a idade do ouro, o mito do regresso à unidade de objectivos entre todos. Ora, esta unidade de objectivos é, pura e simplesmente, impossível e insustentável numa sociedade aberta e democrática. É a altura, portanto, uma vez que a sociedade mudou muito e vai mudar ainda mais de acordo com a vontade popular, de fazer com que também a Constituição mude, para que não cristalize em concepções fixistas, acabando por se transformar num empecilho ultrapassado e dogmático, logo prejudicial. Congratulo-me, em conclusão que ela vá mudar, porque a maioria qualificada para tanto já existe.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Nogueira de Brito, além de intervir, como pediu, fará o favor de justificar a proposta do seu partido.
O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - Efectivamente o CDS votou, em 1976, o artigo 1.° tal como se encontra redigido. Acaba de ser dito - e eu acredito que seja verdade- que o PSD não votou o artigo 1.°
Uma voz: - Votou contra!
O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - Bom, votou contra.
No entanto, depois das referências que foram feitas ao voto do CDS e ao do PSD, sinto alguma necessidade de justificar a mudança do sentido do voto, embora, o Sr. Deputado Pedro Roseta (com cuja intervenção me congratulo) tenha justificado abundantemente a mudança em si própria. A certa altura da sua intervenção, pensei até que o Sr. Deputado Pedro Roseta estava a justificar de mais a mudança e que havia aí algum pensamento reservado nessa matéria, alguma tentativa de justificação. Depois o Sr. Deputado Pedro Roseta desembocou em teses personalistas, que me são caras, e afirmou que a sua ideia de mudança ancorava fundamentalmente nesta outra ideia: a de que o proprietário do seu destino não é outro se não o próprio homem - é o homem que constrói a História em cada momento. E nessa altura reconciliei-me com a sua intervenção.
Apesar de o Sr. Deputado Roseta ter justificado amplamente a mudança diria o seguinte: o voto do CDS sobre o artigo 1.°, com o empenho na transformação da sociedade portuguesa numa sociedade sem classes, foi na altura justificado e, obviamente, não foi determinado pelas mesmas razões que levaram as bancadas socialistas a dar o seu voto favorável a esta formulação, a qual ancorou na mesma ideia personalista que constitui a matriz do pensamento do nosso partido, que valoriza a ideia de solidariedade de forma tal que fez apostar o partido na ultrapassagem de uma sociedade dividida por uma sociedade unida pelos vínculos da solidariedade. E daí a transformação numa sociedade sem as divisões de classe determinadas pela titularidade ou detenção dos meios de produção. O que veio a revelar-se, no contexto de todos os artigos que foram votados e do próprio preâmbulo da Constituição, é que não era esse o sentido que efectivamente os constituintes atribuíram ao artigo 1.° Era um sentido marxista muito marcado que era atribuído a esta formulação. E por isso o Sr. Deputado José Magalhães revela agora um espanto que certamente é irónico.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não tem ironia nenhuma, Sr. Deputado. Era apenas constatar que o CDS não estava de reserva mental, segundo a descrição do Sr. Deputado Nogueira de Brito - encontrou foi a luz na estrada de Damasco, o que pode acontecer a muito boa gente.
O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - O que é muito próprio do CDS, como pode calcular.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto, é próprio, embora tenha ainda um outro picante significado.
O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - Verificamos, hoje em dia, que é o início da carga programático-ideológica da Constituição que está vertida no artigo 1.° e, em nosso entender, no próprio preâmbulo. Daí termos proposto a eliminação do preâmbulo, que deixaria de ter algo a ver com uma Constituição que seja expurgada desta carga. Mas não é só o expurgo da carga ideológica, neste sentido, da Constituição datada, da Constituição que reflecte apenas a visão de alguns, que nos leva a propor, concretamente, a eliminação da expressão "transformação numa sociedade sem classes". Entendemos que a Constituição, neste pórtico constituído pelos primeiros artigos, deve fundamentalmente traduzir o que é a sociedade portuguesa. Foi por isso que há pouco, a propósito disso, pensei, Sr. Deputado Pedro Roseta, que estava a ir longe de mais na sua justificação da mudança do sentido de voto. É que para nós há valores que permanecem, designadamente os que caracterizam a democracia, comum a todos nós, e são
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esses valores - os que não nos dividem e, estou em crer, que nem os dividem do Sr. Deputado José Magalhães - que devem constar desses artigos. Portanto, esta ideia de transformação, de transitoriedade, não é própria de uma Constituição; para além da carga ideológica-programática, dá uma ideia de devir à sociedade portuguesa a caminho de uma meta fixa que se me afigura completamente inadequada ao texto constitucional. É este o conjunto de razões que nos levam a propor a alteração do artigo 1.°
Congratulamo-nos também com a circunstância de esse conjunto de razões ser mais ou menos comungado por um amplo leque de partidos autores de projectos de revisão. Diria mesmo que, em relação a tais artigos, as razões são comungadas por todos os que propõem a sua alteração. Há um mínimo comungado por todos, embora haja aqui gradações. E o CDS faz votos para que nesta matéria - embora congratulando-se com a evolução positiva verificada, designadamente pela parte do PS - não nos quedássemos pela formulação do PS. Supomos que seria importante, apesar disso, ir mais além nessa tentatvia de expurgo da ideologia e da transitoriedade em relação a estes artigos.
O Sr. Presidente: - Pedia ao Sr. Deputado José Magalhães que presidisse por cinco minutos, e pode começar por se inscrever a si mesmo. Perguntava então quem é que quer usar da palavra entretanto.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Se houver alguma observação complementar da bancada do PSD, no sentido de justificar a proposta que apresentou, não usaria da palavra e aguardaria; no caso de ter sido feita a apresentação em termos cabais, ainda que não tenha sido feita a fundamentação em concreto da proposta do PSD quanto à parte, vamos chamar-lhe, positiva, usaria eu da palavra, sem esgotar a margem de apreciação possível.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Pedro Roseta, quer usar da palavra?
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Preferia usar da palavra no fim.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: não nos contamos entre aqueles que apresentaram propostas de alteração nesta matéria. Entendemos que não cabia, da nossa parte, qualquer alteração do sentido e natureza da Constituição em relação ao que se dispõe neste seu primeiro artigo, com o conteúdo e as implicações que a hermenêutica lhe vem reconhecendo e que, pela nossa parte, consideramos correcto. Não vale a pena reconstituir as raízes, a genealogia e os meandros da confecção desta disposição da Constituição da República Portuguesa. Apenas sublinharia, pela minha parte e neste momento, que seria falsear a realidade histórica e elementares aspectos de reconstituição dos processo de elaboração da Constituição da República Portuguesa, sustentar que, na elaboração desta preceito, não houve um esforço compromissório. Os diversos partidos, com assento na Constituição, puderam, na verdade, terçar armas, gizar expressões de concepções de mundo diferentes e elaborar uma norma constitucional com a mesma dignidade das demais inserida nos princípios fundamentais. Tratou-se de um acto livre, tratou-se de um compromisso constitucional, fixado em condições históricas pelo próprio devir das coisas, alteradas, designadamente pela mudança de posicionamento de alguns dos protagonistas do processo constituinte. Que se ofereça hoje um outro conspecto não nos suscita senão uma discussão e uma crítica quanto aos seus aspectos negativos; que se dissociem da Constituição, reescrevendo a história, aqueles que são os seus autores, parece-nos mais questionável do ponto de vista político, e isso mesmo criticamos. O que seja o socialismo constitucional é alguma coisa que só pode atingir-se fazendo uma análise seguramente aprofundada das diversas disposições constitucionais a partir das quais ele se pode reconstituir. Não se trata do decalque de qualquer noção importada, não se trata da cópia do programa político-partidário de qualquer partido, não se trata de uma pura imitação; trata-se de uma construção que é o produto de uma conjugação de esforços. Isto é alguma coisa que não sofre contestação razoável; afirmá-lo é dizer o direito tal qual ele foi gerado num determinado contexto.
Sucede que o CDS confessou aqui que tinha in itinere descoberto uma outra verdade, concluindo que fora enganado. Não poderá esquecer-se, em matéria de enganos, que foi ele próprio defensor de um "socialismo personalista" consoante nos disse em 1974, nesses anos de brasa, ele próprio defensor de uma "sociedade sem classes" (e tal, a "amaldiçoada", a "horrível", a "dogmática", a "determinista"), defendeu uma sociedade sem classes talvez por ser apenas de proprietários, proclamou a "necessidade de supressão do capital" através da sua absorção por todos, uma migalha a cada um, porventura uma "migalha" maior para alguns do que para outros, etc.. Mas, afinal de contas, o CDS tinha sido completamente enganado. Tendo sido enganado, votou contra a Constituição.
O PSD não! O PSD, em relação a este artigo, achou que devia projectar na Constituição a sua própria concepção de socialismo, e é saboroso reler as actas desse tempo e verificar as considerações que os deputados de então do PSD fizeram sobre a sua própria noção de socialismo. Pouparei aos Srs. Deputados do PSD o horror, ou pelo menos o incómodo, de terem de ser confrontados com os seus próprios irmãos de sangue a propósito das coisas "deletérias" e "horrendas" que. eles disseram, absolutamente insensíveis a estas ideias aqui evocadas tão, tão, tão "modernas" de "mutabilidade", "antidogmatismo", "pragmatismo", "historicidade", "complexificação social", "aclassismo", etc. Os pensadores sociais-democratas de hoje são seguramente muito diferentes dos pensadores sociais-democratas de ontem, e seguramente diferentes dos pensadores sociais-democratas de amanhã, o que, obviamente, valerá o, que valer para o PSD como partido, mas não deixará de suscitar aos portugueses alguma perplexidade. Não é por acaso que o PSD se apresenta hoje como um partido pragmático, um partido que não confere à questão principológica uma importância tão grande, um partido empregador, um partido garantidor. Ora um
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partido preocupado com coisas que, sendo vitais para todos nós e que dizem respeito a todos os Portugueses, designadamente em relação a tudo aquilo que é indispensável para a sobrevivência, não tem, obviamente, muito a ver com o que pensam os pensadores que pensam. Terá mais a ver com o que pensam os empregadores do PSD, em particular os que estão incrustados no aparelho de Estado, usando-o abundantemente para todos os efeitos, inclusivamente para alguns que não são propriamente aqueles para os quais o aparelho de Estado foi pensado...
Gostaria de sublinhar este primeiro aspecto porque me parece particularmente penoso que para alguns partidos se despojarem daquilo em que em determinado momento acreditaram tenham de reconstruir a história, mesmo naquela em que participaram. Há disso abundantes testemunhos e no caso do PSD, como, de resto, ontem tive oportunidade de dizer, há até um testemunho adicional decorrente do facto de o PSD manter em programa aquilo que pretende suprimir constitucionalmente. O Sr. Deputado Pedro Roseta pode aqui invocar, com gáudio e júbilo, o facto de, em seu entender, haver uma maioria abundante que está de acordo com a supressão do socialismo. Pelos vistos, essa maioria não se projectou ainda no programa partidário do PSD! Portanto, um cidadão que numa bela tarde de chuva dobrar a Rua do Arco do Chafariz das Terras para passar para a Rua de São Caetano e bater à fortaleza iluminada do PSD lá poderá pedir e obterá um exemplar cor-de-laranja, edição de 1986 e quiçá de 1988, onde encontrará, entre outras coisas, a definição programática, intensa, bem servida, bem fornida de palavras, dos objectivos do PSD em matéria de socialismo...
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - É a sociedade sem classes, Sr. Deputado?
O Sr. José Magalhães (PCP): - É, seguramente, a sociedade sem classes! O Sr. Deputado Pedro Roseta esteve fora do País sete anos, mas de certeza lembra-se das alturas em que difundia por ai esse programa aos sete ventos. Terá, muitas vezes, dito em sessões de esclarecimento coisas como esta: "estes ideais de liberdade, igualdade, solidariedade,...
Vozes.
Sr. Deputado, o problema está na frase a seguir "não há verdadeira democracia sem socialismo nem socialismo autêntico sem democracia." Está lá!
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Já ouvi isso aonde, Sr. Deputado?
Risos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas é que tem que ouvir pior, Sr. Deputado. "Estes ideais são herança de um complexa tradição cultural, historicamente alimentada pelos contributos do humanismo, do cristianismo e da filosofia ocidental, das lutas das classes trabalhadoras, da análise das formas de contradição e opressão da sociedade capitalista e de combate contra o fascismo, o imperialismo e o totalitarismo." Isto o Sr. Deputado reconhece?
"O PSD pretende reunir todos os que aceitam os ideais do socialismo e procura realizá-los pela construção da democracia, independentemente da crença religiosa ou formação filosófica. O PSD apresenta a todos os portugueses uma proposta realista, independentemente de dogmatismos e obediências, arreigadamente popular", etc., etc., etc. A seguir encontrarão os Srs. Deputados páginas inteiras de crítica ao capitalismo ( esse conceito inexistente, verberado doutamente pelo Sr. Deputado Pedro Roseta!) "que multiplicou as desigualdades sociais" e, a seguir, em laudas inteiras, são enumerados os objectivos essenciais do "socialismo democrático e humanista", pelos quais o PSD dizia bater-se in illo tempore.
Vozes.
O Sr. Presidente: - Já terminou a sua intervenção, Sr. Deputado José Magalhães?
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Presidente. Estava apenas a procurar citar tudo o que diz o programa sobre o socialismo...
O Sr. Presidente: - São 20 citações que terá que fazer, Sr. Deputado. O programa do PSD fala para aí umas 20 vezes em socialismo.
Vozes.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, o problema é complexo. Segundo o índice anotado do programa em causa, as referências são apenas três. É certo que o índice e as remissões estão totalmente erradas. Não entremos em detalhes; em todo o caso, as três referências que aqui são resenhadas são, evidentemente, inexactas.
Tudo isto passou, tudo isto transitou na história do PSD. O PSD é hoje um partido sem programa, é um partido, em termos ideológicos, à deriva, é um partido onde se albergam e em que se reconhecem gentes de concepções filosóficas e políticas extremamente diferenciadas, alguns agregados pela pura lógica bruta dos interesses, outros pela lógica do negocismo e do clientelismo, outros pela permanência no aparelho de Estado e pela necessidade de singrar na vida e outros ainda porque julgaram encontrar no PSD ânimo para a resolução dos problemas nacionais, coisa de que se vão desiludindo aos bocadinhos, esforço que nós acreditamos que há-de ser intensificado porque a própria prática do PSD desmente, por um lado, as promessas que fez e, por outro lado, a genuinidade dos intuitos que proclamou em determinados momentos históricos. Aquilo que dizem os pensadores sociais-democratas, bem se provou, não se escreve, é falível, é volúvel, é alterável. O PSD é um partido de poder, não é um partido de programa. É um partido para quem o único programa é permanecer no poder. Todos podem integrar-se ali. Uma sociedade que tenha um objectivo final serve o PSD, desde que seja a perpetuação do capitalismo. Se o objectivo final for a supressão das desigualdades já não serve ao PSD. Em matéria de "finalismos" tudo depende da finalidade. Para o PSD há certas finalidades aceitáveis, outras não o são. Perpetuar-se é a finalidade eminente, é a finalidade que
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aquece o coração do PSD. Tudo o resto é ganga ideológica, tudo o resto serve para excurses empáticos, que são uma tentativa de reconstituição deformadora do debate constituinte que teve lugar há catorze anos, o que me parece francamente impossível.
Estamos em processo de revisão constitucional e não em processo constituinte. Portanto, aquilo que interessa apurar é qual é a grandeza e as implicações das alterações propostas. Curiosamente, nesse ponto o PSD não foi explícito. O PSD está a discutir o artigo 1.° como se estivesse a começar a fazer uma. Constituição: "na página branca inscrevamos a palavra artigo, um n.° 1 e pensemos num conteúdo normativo principológico!". Ora não é isso que se trata aqui! A Constituição tem um determinado conspecto. Há que debater um a um os artigos. São esses artigos que definem a feição da Constituição.
O Sr. Deputado Almeida Santos disse aqui ontem que é impossível que VV. Exas., lendo as actas, percebam o alcance das observações de alguns de nós quanto ao sentido das alterações a introduzir na Constituição. O resultado final há-de ser o que se formar a partir da avaliação global desse conteúdo normativo da Constituição nas suas diversas componentes.
Por isso, em sede de hermenêutica constitucional não sou capaz de desligar a proposta do PSD para este artigo das propostas apresentadas pelo mesmo partido em relação aos artigos 2.°, 9.°, 10.°, 80.°, 81.°, 83.°, 90.°, 96.°, etc.. A sua proposta para o artigo 1.° não é outra coisa senão uma componente articulada com todo o resto do seu projecto de revisão constitucional. A sua proposta de revisão constitucional não é minimalista, mas, sim, maximalista. Neste ponto, também, é claramente maximilista! A proposta do PSD não é uma proposta de alargamento da Constituição. É, sim, uma tentativa de sectarização e de fechamento da Constituição, no sentido de consagrar, fazendo-lhe uma leitura global, uma concepção que é determinada politicamente, que é marcada ideologicamente (o PSD até gostaria que ela fosse marcada ideologicamente por aquelas concepções que a sua bancada expendeu para a acta). O PSD gostaria de incrustar da Constituição e do texto que venha a resultar da consumação de entendimentos com o PS toda a carga ideológica que para aqui foi vertida pelo Sr. Deputado Pedro Roseta.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Isso é pura fantasia!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Isso seria, porém, em termos de hermenêutica constitucional, pura fantasia. A norma a aprovar, qualquer que ela seja, não virá incrustada, baptizada, enroupada por concepções como aquelas que aqui foram transpostas. Mas o PSD insiste na tentativa de desidentificar a Constituição. Procura identificá-la com as suas concepções pseudo-antideterministas, pseudo-personalistas, pseudo-historicistas, pragmatistas (no sentido de desprovidas de princípios orientados por uma transformação no mundo), "antidogmáticas" (mas verdadeiramente dogmáticas num sentido destrutivo) e mutáveis (no sentido em que são levianas e escoradas numa concepção política e filosófica que profundamente criticamos).
Essas tentativas não podem, quanto a nós, surtir efeito. Aquilo que importa aqui é apurar qual o alcance que se pode dar ao texto do PS (utilizando critérios
de hermenêutica constitucional, utilizando os critérios necessários para definir ou identificar uma Constituição a partir de redacções que sejam aprovadas para o texto constitucional e não a partir de arautos do pensamento Talassa).
Nesse sentido considero irrelevante as considerações feitas. Serão relevantes para o discurso ideológico e político, para consideração académica, para companha militante política conduzida a partir de uma cartilha, de resto, bastante pouco moderna e bastante gasta. Não são relevantes para efeitos jurídico-constitucionais.
O que é que vai ser votado? O que é que vai ser discutido? Vai se aprovada a proposta do PSD? Vai ser aprovada a proposta do Partido Socialista? Eis o que não se sabe! Como há pouco sublinharam os Srs. Deputados Almeida Santos e Pedro Roseta, esta matéria é extra-acordo.
Vozes.
Está por saber como é que pode gizar-se um consenso e com que conteúdo. E das duas uma: ou o PSD vota a proposta do PS ou o PS vota a proposta do PSD. Se o PS não votar a proposta do PSD não haverá alteração. Se o PSD não votar a proposta do PS alteração não haverá.
Vozes.
Suponho que isso não originará uma crise nem levará o Primeiro-Ministro Cavaco e Silva a tomar qualquer medida drástica anti-Partido Socialista, a fazer novo ultimatum - aliás, receio que se fizer outro ultimatum o PS ceda outra vez...
O Sr. Presidente: - As crises estão a surgir de uma forma bastante imprevista, Sr. Deputado.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, tive o cuidado de não aludir a esse aspecto.
O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado não ponha de lado a hipótese de uma crise por causa do artigo 1.°
Risos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Isto quer dizer que o conteúdo de uma norma que venha a alterar a actual norma constitucional está, em absoluto, por determinar. Só face a uma certificação desse conteúdo é que valeria verdadeiramente a pena emitir considerações sobre o sucedâneo principológico a introduzir na Constituição neste ponto.
Vozes.
Aliás, curiosamente, o Sr. Deputado Almeida Santos estabeleceu aqui uma equivalência entre a proposta do PS e o texto actual. Sabe-se que a Constituição tem uma ideia-base, que este artigo exprime bem, mas que também encontra arrimo em outros artigos, em outras disposições. Essa ideia é a de que a função constitucional não é a mera sagração do real, não é a manutenção do real. A ideia do combate às desigualdades, da realização da justiça social, da garantia da dignidade (que é um conceito cuja definição constitucional
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exige algumas precisões) passa por transformações e não pela manutenção do real. E não passa pela manutenção do real porque este é, desde logo, caracterizado por toda uma série de pechas, de chagas e mesmo de flagelos, que constitucionalmente se quer alterar, se quer combater, se quer enfrentar. A Constituição assume-se como Constituição combatente, como Constituição não acomodada, como Constituição que enfrenta o real. Essa ideia que, no fundo, está subjacente a todo o articulado constitucional e que lhe confere uma luz própria e uma feição própria, pode ser alterada, pode ser desfigurada.
Como é evidente, ela pode ser alterada: os limites materiais de revisão não o proíbem. Não deve, porém, ser desfigurada. Gostaria de estabelecer uma diferença entre a alteração e a desfiguração e a disfiguração muito grande e a menos relevante. Isso é fundamental para situar, desde logo, as diferenças entre os diversos tipos de propostas que existem, a diferença entre a proposta do CDS e do PSD, a diferença entre a proposta do PS e a do PSD.
O Partido Socialista foi muito pouco específico. Creio que valeria a pena que esse aspecto fosse aprofundado. O Sr. Deputado Almeida Santos a certa altura disse: "não, aquilo que nós propomos é uma mera equivalência. O PS quer uma sociedade soberana, baseada na dignidade da pessoa humana, na vontade popular, na igualdade, na solidariedade, no trabalho, enfim a constituição de uma sociedade livre, justa e fraterna. "Ora, todos este conceitos são eminentes, já com sede e com arrimo constitucional, com projecção relevante. Uma sociedade não pode ser livre se contiver em si mesma elementos de opressão. Uma sociedade não será seguramente justa se for assente na perpetuação das desigualdades, na invasão e na perpetuação do poder dos monopólios, na reconstituição do poder dos grupos económicos, na proliferação das injustiças sociais, no fenecimento dos direitos dos trabalhadores, no estabelecimento de poderes e prerrogativas patronais esmagadoras da liberdade do universo empresarial, na firmação de um dogmatismo ou na incrustação nos aparelhos de poder de um partido que quer dominar plenipotenciariamente o sistema político, etc.. Tudo isso seria incompatível com uma sociedade livre, justa, com uma sociedade fraterna. Isto é evidente. Mas então a proposta do PS é um eufemismo, tendente a suprimir o verbo, mas não o conceito, a palavra, mas não a ideia, a veste, mas não a carne constitucional? É essa a ideia do Partido Socialista? Aquilo que o PS vem sugerindo publicamente é que socialismo "já foi", "já deu". Uma Constituição - e nesse sentido o PS até se reclama de uma certa "nobreza", "generosidade", "largueza de vistas" e "sentido de Estado" - deveria dissociar-se da fixação do socialismo, palavra maldita ou tornada maldita. Por enquanto, o PS tem-na no próprio nome, portanto aí tem de a carregar. Transpô-la para a Constituição é que não. Eis o argumento que é utilizado. Seguramente, o poderemos ouvir, mais lubrificadamente, da boca dos próprios.
Em todo o caso, o que nos perturba nesta sede e neste momento é o preço que o PS pretende pagar por isso e as implicações disso. É que esta proposta aparece aparelhada na lógica do projecto do Partido Socialista com outras alterações da Constituição, designadamente as que dizem respeito ao projecto transformador e aos mecanismos da transformação. Seria bem pouco uma Constituição finalista se desprovida de elementos que garantam a prossecução da finalidade que proclama como eminente. Pelos vistos, o Partido Socialista actua ou quer actuar nos dois domínios. Por um lado, esbatendo a definição dos fins e, por outro lado, suprimindo meios, métodos e garantias. Como dizia, no mês de Novembro do 87, um deputado do Partido Socialista no jornal oficial do PS, que as pessoas podem realmente interrogar-se é se compete aos socialistas tal objectivo.
É evidente que não posso pronunciar-me senão na minha qualidade de deputado do PCP. É evidente que não me cabe tomar opções que só ao Partido Socialista dizem respeito. Em todo o caso, não posso deixar de emitir um juízo de incomodidade, de não aceitação fácil, de rejeição, de crítica frontal enquanto partido do mesmo campo em relação a essa postura, que julga obter um alargamento de espaço no momento em que apenas faz uma cedência.
Esse Sr. Deputado que citei dizia, a certa altura, isto: "a Constituição não é um regulamento militar, é sim a norma dos direitos e dos deveres do cidadão e o objectivo a atingir pela sociedade portuguesa. O nosso objectivo é o socialismo; não deve ser com o nosso voto, nem sem o nosso protesto que o ideal da sociedade portuguesa deve ser encurtado, feito descer em relação àquilo que era em 1976; a sociedade que encurta o seu horizonte desceu o seu ideal, trouxe-a para a terra a terra, perdeu a fé em si mesma. Continuemos socialistas!" É uma citação do Sr. Deputado Raul Rego.
Devo dizer, Sr. Presidente e Srs. Deputados, que, pela nossa parte, não deixaremos de sustentar que a opção não é correcta, que a tentativa ou de dulcificação sem desnaturação do conteúdo ou de desnaturação do conteúdo com dulcificação não é objectivo no qual nos possamos reconhecer. Gostaria também de sublinhar, de novo, que aquilo que o PSD quer não é apenas aquilo que inculca esta norma. O PSD quer tudo, e aquilo que pretende é o que decorre de todo o seu projecto de revisão constitucional e de tudo aquilo que desse projecto conseguiu transpor para o acordo celebrado em 14 de Outubro com o PS. Não somos capazes de deixar de ler a proposta do PSD senão tendo em conta estes elementos. De facto, se fosse lida com outros olhos, a proposta poderia ser até considerada largamente subscritível.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Milagre! Subscreva-a!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Na verdade, quem é que pode pensar que Portugal não há-de ser uma república fundada na solidariedade?! O grande problema é saber em que é que consiste o conceito de solidariedade, porque, se este consiste na zurrapa ideológica que o Sr. Deputado Pedro Roseta verteu há pouco para a acta, será então um conceito muito sui generis! Mau será se consiste em afirmar que a "complexificação social" vai de par com o "desligamento entre a propriedade e o poder" (suponho que é, mais uma vez, a alusão à revolução dos managers, às ideias velhas e revelhas dos anos 40 e 50 do poder "managerial"). Mau será se a ideia que se pretende transpor para a Constituição é a de que os detentores do poder já não são
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as classe, e que "quem tem o poder da informação tem tudo", "manda quem tem o poder de entrar em nossa casa pelo telejornal todas as noites" (devem estar a referir-se ao PSD) - tudo coisas que não têm nada a ver com as classes, nem sequer com a luta política nas suas diversas componentes, mas, sim, com o éter pairando acima das classes.
Pela nossa parte, não vemos que o PSD tenha materializado zurrapa ideológica deste jaez sequer na proposta que apresentou. Foi alguma coisa que foi agora aditada para a acta, que faz parte dela, desgraçadamente lá estará exposta ao aplauso de quem nela se reconhecer e às chufas de quem, como nós, as criticar.
Não nos tentem fazer passar o Sr. Bennedetti ou o Sr. Murdoch ou o Sr. Maxwell por criaturas que gravitam acima das classes, criaturas que, embora nos entrem todas as noites pela casa vindos do éter aos trambolhões, supostamente pairariam acima das classes. Segundo sei, o poder do dinheiro não é coisa que, estando no éter, não deixa de estar ligadíssima à terra, passa por pessoas, move-se, passa até por discursos como o do Sr. Deputado Pedro Roseta, que, se é alguma coisa, é tudo menos vindo do éter e pairando acima da luta de classes. Trata-se, de facto, de uma barroquíssima expressão das formas através das quais um pensamento razoavelmente caduco em termos históricos se transmuta, se traveste para se apresentar, servido frio, às 5 da tarde em defesa de uma proposta que é largamente má.
Em suma, Sr. Presidente, não poderemos subscrever qualquer ideia de alteração da Constituição neste ponto.
Vozes.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Pedro Roseta.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Gostaria, talvez, de começar por fazer algumas considerações sobre a ultrazurrapa da pseudo-ideologia do Sr. Deputado José Magalhães. De facto, quando se discutir o artigo 290.° da Constituição, vou demonstrar que ele não vive só como parece, em 1974 ou no século XIX, mas vive alguns milénios atrás, ou seja, numas épocas fixistas piramidais, em que as pessoas tinham uma concepção totalmente imobilista e faraónica da sociedade, que é uma bela encarnação do Ramsés II! No entanto, isso ficará para mais tarde.
Vozes.
Espero que V. Exa. não se ofenda, dentro desta harmonia jocosa que aqui reina!
Risos.
Evidentemente, não vou agora tecer as considerações que merecia o poder dos burocratas, porque esse, de facto, é um poder real e opressor: o poder da classe burocrática. Evitei há pouco fazê-lo, mas a seu tempo lá iremos. Repito: esse é um poder real, muito maior até do que o dos detentores de alguns pequenos meios de produção que existem em Portugal - e não falo obviamente nos grandes - que não dispõem certamente do poder que os burocratas detêm.
Entretanto, ficará para o debate do artigo 290.° a oportunidade de demonstrar o carácter profundamente fossilizado do pensamento faraónico do Sr. Deputado José Magalhães e da sua concepção fixista e ridiculamente ultrapassada da sociedade, que nada tem a ver com o pensamento contemporâneo.
Queria, pois, dizer que ao propor a introdução dos valores da solidariedade e da justiça social o PSD o fez para dar resposta a uma questão essencial e primordial em qualquer comunidade humana: a questão axiológica.
Entendemos de facto que o artigo emblemático da Constituição não deve consagrar objectivos. É evidente que os outros partidos podem não partilhar, ou ter partilhado agora ou no passado, desta maneira de ver. Porém, aquilo que compete a um artigo 1.° - e desculpem lembrar-lhes que estou a discutir o artigo 1.°, e não outros - é referir os valores fundamentais em que uma sociedade deve ser fundada. E já constam alguns do actual artigo 1.°, por via do acordo entre o PS, o PSD e o CDS, nomeadamente aquele que nos parece essencial, ou seja, a dignidade da pessoa humana, bem cerne a vontade popular; agora propomos acrescentar a solidariedade e a justiça social.
Ora, julgo que não tenho necessidade de tentar definir nesta sede o que sejam a solidariedade e a justiça social, mas quero referir que, ao contrário do que foi dito há pouco, estes são valores que não são tirados do programa do PSD. Não são sequer extraídos de ideologia que norteie exclusivamente o PSD. Tenho comigo provas, que não vou obviamente ditar para a acta, de que são valores constantes de coisas tão diferentes como os programas dos partidos socialistas democráticos e sociais-democratas, mas são também valores constantes da doutrina social da Igreja Católica, que tem em Portugal, atendendo às convicções, às características e à identidade histórico-cultural da população portuguesa, um peso que nos merece o maior respeito e um relevo que todos conhecem. Podia evidentemente ler alguns textos do magistério pontifício ou do Concílio Vaticano II que vão no sentido da necessidade de dar primordialmente resposta às exigências da justiça social ("que não se ofereça como um dom de caridade aquilo que já é devido a título de justiça"). Poderia ainda obviamente referir o pensamento de alguns filósofos que V. Exa. vai classificar como ultrapassados, etc.. Não vou obviamente maçá-lo com a leitura, até porque os textos são muito longos e não são os da sua preferência.
O Sr. José Magalhães (PCP): - V. Exa. trouxe o tratado do arquitecto Taveira!
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Não, Sr. Deputado, trouxe a Teoria da Justiça, de John Rawls, professor de Haryard, o que basta para V. Exa. não gostar! A Teoria da Justiça não é obviamente um texto antigo, mas tem suscitado uma consideração muito vasta. Nada tem a ver com as teorias neoliberais. John Rawls considera que a injustiça é constituída pelas desigualdades que não beneficiam a todos. Os princípios da justiça para ele e para outros modernos nada têm a ver com o pensamento do PCP. Julgo até que seria um insulto chamar moderno ao PCP. Cada pessoa, para Rawls, deve ter direitos iguais num sistema o mais alargado
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possível de liberdades. E as desigualdades sociais e económicas devem ser organizadas por forma que se possa razoavelmente esperar que sejam vantajosas para todos. Acresce que devem estar ligadas a posições e funções que, embora detidas por alguns em determinados momentos históricos, estejam abertas a todos os outros, a todos sejam acessíveis.
Poderia ainda precisar as diferenças entre os conceitos de justiça comutativa, própria dos neoliberais, com os quais não nos identificamos obviamente, apesar daquelas confusões ideológicas e daquela amálgama, muito típica dos comunistas portugueses - lá fora, muito menos -, que aqui foram despejadas, e de justiça distributiva, esta sim essencial para os sociais-democratas. Quererão VV. Exas. que recorde as noções de justiça comutativa, nos termos da qual o Estado deve garantir a equivalência dos valores permutados, ou seja, que cada qual deve receber de acordo com a prestação que efectuou, bem diferente da justiça distributiva, segundo a qual cada cidadão deve receber proventos da colectividade atendendo não só ao tipo de actividade produtiva que lhe presta permanentemente mas também à situação social de carência em que se encontra?
Portanto, o nosso sentido de justiça social é baseado no pensamento social-democrata de hoje na doutrina social da Igreja e também em alguns filósofos contemporâneos que, distinguindo muito claramente entre a justiça comutativa e a distributiva, dizem que sem esta última não há verdadeira justiça. O primeiro é um conceito redutor neoliberal e, por isso, o PSD insiste que, embora não querendo de modo algum ideologizar, ele próprio, a Constituição, há um leque muito largo de valores que são aceites por variadas correntes de pensamento e forças políticas que delas se reclamam. E, sendo elas representativas de uma esmagadora maioria da população, seria perfeitamente defensável a introdução dos referidos valores na Constituição, sendo certo que, como já disse, na nossa opinião, este primeiro artigo deve ser emblemático e axiológico - um preceito que contenha valores, e não objectivos, pelas razões que já largamente expendi. Aliás, em relação a estes valores, como a solidariedade e a justiça, foi dito pelo Sr. Deputado José Magalhães que os aprovava. Não sei por que é que V. Exa. está à espera de subscrever...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Desculpe interrompê-lo, Sr. Deputado, mas o que V. Exa. acaba de dizer é impossível!...
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - ... a nossa proposta de consagração destes valores neste artigo emblemático da Constituição.
Em conclusão, o PSD, para além da suspensão daquela expressão oriunda de doutrinas de raiz marxista que debatemos há pouco, propõe a consagração dos valores de solidariedade e de justiça social que dignificariam a Constituição da nossa República. Julgo, aliás, que vão congraçar em breve uma larguíssima maioria entre as forças políticas representadas nesta Câmara.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sousa Lara.
O Sr. Sousa Lara (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Não quero deixar de me congratular com a introdução feita pelo meu companheiro e colega de bancada Pedro Roseta, que assumo também integralmente.
Desejo ainda fazer um pequeno comentário a título pessoal, se me é permitido, às propostas formuladas pelos Srs. Deputados Sottomayor Cárdia e Helena Roseta. Suponho, aliás, que o poderei fazer, embora eles não estejam presentes na reunião da Comissão.
Ora, como já de disse, e mais do que uma vez, os primeiros artigos da Constituição são emblemáticos, pois assumem também a função de pórtico do edifício jurídico português, E, por isso mesmo, devem traduzir os parâmetros essenciais da sociedade portuguesa.
Na verdade, apesar de todas as críticas que tenho ouvido relativamente às propostas para o artigo 1.° dos Srs. Deputados, que referi, penso que elas têm uma virtude. Refiro-me ao facto de referirem no n.° 2 do proposto preceito a expressão "nação portuguesa". Portugal é uma das mais antigas nações da Europa. Trata-se, aliás, de uma característica que nem todos os Estados europeus podem reivindicar e, por isso, entendo que é feliz esta proposta. Evidentemente que é atendível a crítica que se aponta a ambas as propostas de pretenderem dividir o artigo 1.° em números, sendo ele um preceito especialmente solene. Suponho, aliás, que esta crítica é comumemente aceite por todos os presentes e, por conseguinte, não colhe nem uma, nem outra proposta. Mas fica feito o meu elogio do seu mérito.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.
O Sr. Alberto Martins (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Creio que estes artigos iniciais são princípios estruturantes do texto constitucional não só pela própria designação, mas pelo seu conteúdo. Nesse sentido, admito que haja um relativo consenso quanto a considerar o Estado Português como um Estado de direito, republicano, democrático e social. Por isso, esta questão da sociedade sem classes tem de ser vista e tida como uma referência histórica datada, cujo conteúdo continua a ter sentido, se for lida num sentido de solidariedade social, e não só individual, e igualitário.
Portanto, a supressão desta fórmula é mais uma superação de uma hipoteca nominalista da Constituição e menos uma transgressão de valores fundamentais. E não o é em nome da recusa da utopia, porque esta frase construiu-se como uma utopia concreta e tal verificou-se a partir da "Crítica do Programa Gotha", de Marx, que teve grande tradução no movimento operário e popular. No entanto, a ideia de utopia concreta está inserida no nosso texto constitucional.
Penso que quando se fala na construção de uma democracia económica, social e cultural e no aprofundamento da democracia participativa, estas não são realidades que estejam tout court realizadas hoje. Por isso, há neste ponto uma dimensão utópica, um sentido prospectivo. Assim, a utopia em si não é algo de liminarmente recusável, mas, pelo contrário, dá um sentido dinâmico à realização da democracia.
Além disso, tanto quanto sei, a ideia de classe social não é univocamente recusável no pensamento social-democrata ou no socialista. A ideia de classe so-
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cial, se for tida de forma restritiva como propriedade ou não dos meios de produção, é-o. Porém, se for tida como lugar no processo produtivo e político, deixa de ser. Portanto, pode ter nesse aspecto algo de consensual.
Diria, assim, que a Constituição ganha se assumir uma abertura democrática mais ampla no sentido de não se referenciar, em termos de sociedade, a modelos globais apriorísticos, como é este da sociedade sem classes, e, a mais do que valores, a princípios estruturantes.
Ora, o princípio estruturante da solidariedade social, da igualdade e da liberdade são princípios estruturantes que respondem, resolvem e colocam substantivamente os problemas que estão aqui colocados. Aliás, fazem-no com vantagem. Porquê? Porque resolvem este problema da hipoteca nominalista.
No entanto, este modelo global apriorístico não se resolve na pura recondução ao humanismo personalista, porque seria limitador de uma visão da Constituição. Ainda assim, há que reter a ideia de que a História é feita pelo Homem individual e pelos homens colectivamente assumidos. Nesse sentido, os princípios são estruturantes da sua acção e de um projecto de sociedade que a Constituição tem de ser em termos de grande princípios.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Pedro Roseta.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Sr. Deputado Alberto Martins, não pretendi reduzir as propostas do PSD ao humanismo personalista. Pelo contrário, e sobretudo nesta segunda intervenção, tentei demonstrar a larga radicação das nossas propostas, que são comuns às grandes famílias políticas, que costumamos chamar democráticas, aqui representadas, e que vão muito além do humanismo personalista, se bem que essa seja uma das essenciais.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Dá-me licença, Sr. Presidente?
O Sr. Presidente: - Faça favor, Sr. Deputado.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado Alberto Martins, creio perceber o sentido fundamental da sua intervenção. Em todo o caso, gostaria que pudesse precisar o seu ponto de vista em relação a alguns dos aspectos que focou. Há um contraste enorme entre aquilo que disse e aquilo que há pouco o Sr. Deputado Pedro Roseta procurara situar, em nome da bancada do PSD, ao apresentar a sua própria proposta. Classificar o património constitucional e o sentido do texto constitucional como fez a bancada do PSD é assumir todo um mundo de valores. Aliás, enfaticamente se proclamou, reproclamou, triproclamou o sentido puramente emblemático e axiológico do artigo 1.° Curiosamente foi aduzido tudo o que se pode aduzir com proliferação multivária de fontes de inspiração desde o "pobre" Rawls que para aqui não era muito chamado até várias encíclicas, trazidas à colação a pontapé. Em todo o caso, uma coisa é certa: tudo convergia para um juízo inteiramente contrário àquele que o Sr. Deputado acaba de exprimir. Para o PSD, não se trata senão de dar à Constituição uma determinada feição
ideológica contrária àquela que o Sr. Deputado acabou de exprimir. Perfeitamente contrária tanto quanto me posso aperceber!
Pode suceder que eu tenha percebido mal aquilo que V. Exa. quis dizer, desde logo quanto ao primeiro aspecto. Este, lembrar-se-á seguramente, é o da qualificação precisa daquilo que estamos a discutir. Estamos num título em que o que está em causa são aquilo a que a Constituição chamou princípios fundamentais. Estes não são da mesma natureza, tal qual estão esparsos por estes artigos, que nos cabe agora apreciar. E portanto, se há preceitos com princípios fundamentais daquilo a que se chama a ordem jurídica constitucional propriamente dita, designadamente o princípio da constitucionalidade etc., etc., há outros que são importantes para qualificar a República como tal. Estes de que agora estamos a falar, este concretamente, é útil para situar uma grande opção conformadora do "sistema todo", do edifício constitucional. E aquilo que o PS faz, aquilo que o Sr. Deputado acaba de defender, de sustentar, não é a supressão da ideia transformadora, tanto quanto percebi, não é a supressão - utilizando as suas próprias palavras - "da dimensão utópica". Não se trata da "recusa da utopia" - pareceu-me ouvi-lo dizer. Trata-se, em relação à identidade política do País e às opções que aqui se devem cometer quanto a todos os aspectos - sistema económico, político, social e por aí adiante -, de suprimir o nomen "socialismo", mantendo, tanto quanto percebi, a ideia da transformação, da dinâmica, do movimento. E mais - se bem percebi também -, o PS entende que se deve desligar o aspecto da confecção da Constituição (na sua redacção actual e naquilo a que chamou "uma expressão histórica datada") do conteúdo útil constitucional que não definiu rigorosamente. Em todo o caso, pareceu-me que a maneira como o definiu era bastante para a situar como oposta àquela que foi situada pelo PSD.
É assim, ou é logro decorrente da minha incapacidade de percepção?
O Sr. Alberto Martins (PS): - Estou de acordo com o entendimento que V. Exa. fez do meu entendimento.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Então estamos entendidos! Agora o entendimento com o PSD é que pode ser prejudicado por este nosso entendimento, se bem o entendo!
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Resulta deste entendimento que o PCP vota favoravelmente a proposta do PS?
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Deputado. Resulta deste entendimento que o entendimento do Sr. Deputado Alberto Martins, que é coincidente com o meu entendimento do entendimento dele, não é coincidente com o entendimento do Sr. Deputado Pedro Roseta da norma proposta pelo PS. Daí VV. Exas. não se entenderem bem quanto a este aspecto, ou então estamos todos mal entendidos...
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - É que senão estaríamos no mesmo partido.
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O Sr. José Magalhães (PCP): - Pode suceder é que não se apure futuramente o entendimento que presidiu à alteração da norma constitucional!
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Isso era o que o Sr. Deputado queria!
Risos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Isso é seguramente o que está alcançado neste momento!
O Sr. Pais de Sousa (PSD): - Sr. Presidente, Sr s. Deputados: Quero apenas deixar uma, talvez duas breves notas face ao debate que está a ser travado.
A primeira é para, de alguma forma, contraditar a perspectiva que o Sr. Deputado José Magalhães tentou imprimir à concepção do PSD, lendo-nos aqui alguns extractos do programa do nosso partido. É que nós não confundimos a lei fundamental com o programa do partido. Para nós aquela está bastante para além do partido, e não colocamos no mesmo plano uma e o outro. É que a nossa proposta para o artigo 1.° visa substituir ou de alguma forma eliminar a expressão "empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes", porque se nos afigura que esta expressão é ideológica, equívoca e restritiva.
Por outro lado, queríamos acentuar que de um artigo, emblemático, como é o artigo 1.° devem constar os grandes princípios de valor da nossa lei fundamental, e portanto as suas matrizes, que foram de alguma forma referidas pelo Sr. Deputado Alberto Martins, e desde logo a matriz democrática e a social. A nossa proposta visa expressamente a introdução dos valores "solidariedade e justiça social", que, no fundo, são comuns às várias forças políticas, o que, curiosamente, foi também certificado, directa ou indirectamente, pelo Sr. Deputado José Magalhães. E isto à luz da regra do máximo denominador comum sobre estes conceitos. Sobre estas perspectivas temos abundantes exemplos travados aqui na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional aquando da primeira revisão em 1982.
Para o PSD uma Constituição é, ou pelo menos deve ser, um conjunto de princípios e de normas jurídicas que, definindo democraticamente um projecto para um todo colectivo, se abre ao pluralismo. Nesse sentido a Constituição não tem que ser, sequer acessoriamente, depósito de qualquer princípio ideológico, ou, como alguém disse, "não tem de ser, não deve ser, não pode ser, um catecismo doutrinário". A proposta do PSD visa um mínimo de articulado, com conteúdo cabal, para um máximo de consenso nacional.
O Sr. Presidente: - Vamos ver se conseguimos ultrapassar este problema. Faria um breve resumo da posição do PS. Depois de vos ouvir com todo o enlevo e atenção, encontro-me, mais uma vez, na posição em que me encontrei com frequência nesta Comissão, ou seja, a de tentar, até onde posso, pôr alguma simplicidade naquilo que os meus colegas e amigos, por excesso de inteligência, de perspicácia e de cultura, por vezes dificultam, quando as coisas já são de si difíceis, como é o caso.
Queria dizer, pura e simplesmente, que para nós está em causa um problema de semântica constitucional. Fundamentalmente está o problema de uma frase. Cada
um de nós tem um entendimento do que isso quer dizer. Todos sabemos o que é uma sociedade sem classes e com classes. Isto pode ser dito de milhentas maneiras, não necessariamente desta. Que no nosso país continua a haver discriminações e classes e que na Suíça, que por acaso é capitalista, não há é uma evidência. Esta frase é um pomo de discórdia em termos de Constituição da República. Vamos então eliminar esse pomo de discórdia e eliminar o correspondente problema semântico. Em vez de dizermos - e é só esse o sentido da nossa proposta - "empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes", linguagem datada e apropriada por alguns partidos, um dos quais é o meu, temos que reconhecer que do léxico comum dos nossos dias, em Portugal, esta frase não consta. Não vejo ninguém andar por aí a raciocinar em termos de luta de classes. É claro, e devo dizê-lo, que ainda hoje entendo que as lutas de classe e os antagonismos sociais são factores determinantes da história. Mas não os únicos! Mas valerá a pena este pomo de discórdia, só porque uns acham que tem um significado marxista ou que reflecte a ideologia do partido A ou do partido B, e a Constituição não deve estar arrumada à ideologia de nenhum partido, antes deve ser a Constituição de todos os partidos e de todos os Portugueses?
O que propusemos? Aquilo que, em nosso entender, pode ser um substituto razoável e não conflitual da expressão "empenhada na sua transformação numa sociedade sem classes". Assim: "[...] na igualdade, na solidariedade e no trabalho, e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e fraterna". Devo dizer que considero que isto é mais do que aquilo. O que o PS propõe - "[...] na igualdade, na solidariedade e no trabalho, e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e fraterna" - é mais do que "empenhada na transformação de uma sociedade sem classes". Mas é também aquilo...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas isso deve dilacerar o coração do Sr. Deputado Pedro Roseta.
O Sr. Presidente: - Para tranquilidade de V. Exa., no nosso entendimento, é também aquilo. Porque, se houver justiça social, se houver fraternidade, se houver solidariedade, claro que não há classes. E não é por ser ou deixar de ser uma utopia. Temos na Constituição mais 55 utopias - passe a caricatura -, entre grandes, pequenas e médias. Há metas na Constituição que neste momento são irrealizáveis, são pontos de chegada, são aquilo para que a Constituição nos manda caminhar. Têm o valor que têm. São setas apontadas ao futuro.
Com o voto do PS sai de cá o "empenhamento na transformação numa sociedade sem classes", desde que o PSD vote uma proposta com a qual estejamos de acordo, Estamos naquele domínio em que a revisão constitucional é para nós muito cómoda. Feito o acordo mínimo com o PSD, não morre ninguém se cá ficar o que cá está. Espero que nos entendamos. Quando todos os partidos que fazem propostas eliminam esta expressão, a meu ver a expressão está condenada.
Outra questão é saber o que vamos cá pôr em troca. Era isto que devíamos discutir, e não o fizemos. Esse é que é o verdadeiro problema, porque todos nós, à
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excepção do CPC, estamos de acordo em tirar de cá a expressão. Admito até que aquilo que o PS propôs é, de algum modo, tautológico - a solidariedade e a fraternidade são conceitos próximos. Talvez a justiça deva ser qualificada de social, como prefere o PSD. Enriquece. Vamos discutir o que cá deve ficar. Se arranjarmos uma frase que mereça o nosso acordo, este artigo será alterado e a Constituição não perde nada com isso. Tem a palavra o Sr. Deputado Costa Andrade.
O Sr. Costa Andrade (PSD): - Sr. Presidente, é evidente que há divergências de pormenor entre a proposta do PS e a do PSD. Mas pela parte do PSD, obviamente, não deixaremos de dar o nosso contributo, na medida do que for necessário, para que aquilo em que estamos de acordo obtenha vencimento. Não vale a pena, na base de entendimentos divergentes quanto a determinados tópicos, deixarmos de valorizar aqueles tópicos em que estamos de acordo. Da parte do PSD, e tomando como boa a indicação que o Sr. Deputado Almeida Santos acaba de dar, entendemos que, ganho o acorde em eliminar a expressão "sociedade sem classes", também deveremos caminhar no sentido de uma formulação que talvez tenha de ter algo de alternatividade, tanto em relação à proposta do PS como em relação à do PSD.
O Sr. Presidente: - Aí, nós somos bastante ciosos dos valores aqui consagrados. Na medida em que sejam repetitivos podemos pensar noutra formulação. Em nosso entender, a questão é apenas semântica, de substituição de uma frase que nos divide por uma frase que nos pode unir. Penso até que o PCP não tem nada contra a nova frase que propomos. Lamenta é a perda da frase que cá está. Não por uma razão positiva, mas por uma razão negativa.
Se concordassem, passaríamos ao artigo 2.° Relativamente a este...
Faça favor, mas nós temos de acabar com isto um dia...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Seguramente, Sr. Presidente, e hoje é até mesmo um dia daqueles em que nem apetece terminar. Nesse ponto o debate não foi irrelevante. Creio mesmo que a intervenção que V. Exa. acaba de fazer tem um significado que merece pelo menos ser pontuado por duas ou três interrogações. E eram essas que gostaria de formular.
O Sr. Presidente: - Demorou foi a pedir a palavra! Costuma ser mais rápido!
Vozes.
O Sr. José Magalhães (PCP): - A questão está precisamente na grande opção subjacente à intervenção do Sr. Deputado Almeida Santos. Essa grande opção, de resto na esteira da ideia que tinha sido ventilada pelo Sr. Deputado Alberto Martins, procura, por um lado, reduzir o texto constitucional, neste ponto, a alguma coisa de puramente nominal e semântico. Digamos que tem havido quem se tenha encarregado na prática de, por um lado, engavetar conceitos constitucionais e, por outro lado, rumar para um pólo oposto ao constitucionalmente apontado. Tudo isso é, no fundo, a história da nossa história recente. Não é isso que trago aqui a debate, embora esteja subjacente a tudo o que estou a dizer.
O que quero sublinhar é que aquilo que o PS neste momento diz é o oposto do que disse na primeira revisão. Não deixa de ser interessante que quem cotejar, por exemplo, o Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.° 129, de 29 de Julho de 1982, p. 5433, possa encontrar um orador da bancada socialista proclamando, altissonantemente, isto: "Não queremos ser acusados também de termos tirado o socialismo da Constituição, Sr. Presidente, Srs. Deputados, o socialismo é o nome do nosso partido, é o seu ideário, é o seu programa, é a sua essência, somos nós; votarmos contra a permanência desta expressão era votarmos pelos nossos adversários, contra nós mesmos, não faremos isso." "Palmas do PS." "Palmas da UEDS." O orador era o Sr. Deputado Almeida Santos. E mais adiante: "[...] penso que estamos agora em condições de votar conscientemente uma inscrição, uma meta para o socialismo como exigência de justiça social, de igualdade de oportunidades, de justiça na repartição dos bens, esse é o nosso socialismo." "Aplausos do PS." O orador era o Sr. Deputado Almeida Santos. E a p. 5456 logo encontraremos...
O Sr. Presidente: - Isso é só passado.
O Sr. José Magalhães (PCP): - O passado é o único elemento que toda a gente tem para apurar uma coisa chamada coerência!
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Isso é passadismo. O PCP em questões de coerência não pode dar lições a ninguém.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Em relação ao aspecto fulcral em debate, sublinhava-se adiante, numa intervenção de um outro deputado: "subsiste o princípio socialista e a perspectiva dinâmica da transição para o socialismo; sem dúvida que tal facto faz do artigo 2.° uma norma programática, mas, como diversas vezes tive ocasião de dizer nesta Assembleia, não há no mundo moderno e nas sociedades modernas constituições assépticas, nem constituições sem o seu élan vital, nem programa motivador, por isso a manutenção do socialismo no artigo é uma derrota da AD"; "o socialismo não foi abolido, nem pelo referendo, nem pelo debate parlamentar, estamos certos que não o será pela votação a que iremos proceder"; "esta revisão, tantas vezes acusada de tantos malefícios, não castrará o norte programático da Constituição e do 25 de Abril". Quem era o orador? Era o Sr. Deputado da UEDS António Vitorino. E por aí adiante! Quem folhear estas páginas verá muito mais do que estou a dizer, lerá muito mais do que disse.
É isto passadismo, Srs. Deputados? O PS vivia em 1982 no passado e subitamente começou a viver no presente? Descobriu subitamente que é tudo um problema de semântica? Os anos de 1982 a 1988, seis anos - quase tantos como aqueles que o outro serviu Labão e quase tantos como os que o Sr. Deputado Pedro Roseta serviu no estrangeiro - , bastaram para o PS descobrir que, afinal de contas, tudo isto era se-
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mântico? Afinal tudo era um pomo de discórdia a sacrificar e a suprimir para aplacar a fome dos Srs. Deputados do PSD, para os apaziguar e para poderem incensar aqui o Rawls, as encíclicas e tudo o mais que eventualmente possa satisfazer a sua curiosidade ideológica, filosófica, política e poética?! É isto?
A minha pergunta é esta, Sr. Deputado Almeida Santos: porquê o contraste entre a p. 5455 do Diário da Assembleia da República, n.° 129, de Julho de 1982, e a página que há-de conter aquilo que aqui foi dito, do Diário da Assembleia da República, série especial, de 1988? Porquê? O que é que mudou verdadeiramente?
O segundo aspecto é tão preocupante como o primeiro: até onde é que o PS está disposto a ir? Porque o PS diz que o diz na proposta que apresentou, mas o Sr. Deputado Almeida Santos, vertiginosamente, apontava já, com a caneta lesta, que, talvez onde está "liberdade igual a fraternidade", pudesse estar outra coisa qualquer: "justiça social" ou talvez "solidariedade".
O Sr. Presidente: - Desculpe, Sr. Deputado, mas o que eu disse é que admito que haja aqui conceitos que possam ter o mesmo significado, havendo, portanto, uma duplicação de conceitos. Os conceitos de igualdade e de fraternidade são conceitos muito próximos e os conceitos de solidariedade e de justiça social também o são. Admito isso. Não sou rígido, nem agarrado a fórmulas, e, como estou disposto a abandonar aquela frase, também o estarei para discutir esta. O que não estou disposto é a apoiar uma solução que não contenha valores que consideremos correspondentes aos da formulação substituída. É este o sentido da minha intervenção.
Agora, não me vai - porque eu não deixo - coarctar a minha liberdade de, em discussão semântica, formal e de redacção, fazer correcções. Vou fazê-las até à última hora, caso entenda que uma fórmula é melhor do que outra. Pessoalmente aceito-o e o meu partido fará o que entender. Não há fórmulas imperfeccionáveis. Faz-se uma proposta e sabe Deus com que vertiginosidade a redigimos. Não estamos agarrados à palavra.
Felizmente, repito, o PS está numa posição muito cómoda: não precisamos desta alteração; achamos que é pacificadora, que a Constituição deve ter uma função pacificadora, e que devemos acabar com querelas semânticas.
A nossa formulação não é um "non plus ultra". Não é o Padre-Nosso.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, V. Exa. respondeu à minha segunda questão, pelo que estou a compreender. Deixou, portanto, em aberto a primeira.
O Sr. Presidente: - Mas eu ainda não respondi. Isto foi só uma explosão justa de "cólera" porque o meu amigo me provocou rudemente. Eu já respondo.
O Sr. José Magalhães (PCP): - É que não terei absolutamente nada a aditar à formulação da segunda das partes que apresentei. Trata-se de saber, uma vez que o PS se dispõe a partir com a nau de vela panda, para que porto é que se ruma...
O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado já percebeu qual é! Mas gostaria de lhe dizer o seguinte: se o meu amigo se dá ao deleite de ir buscar as transcrições das minhas declarações de 1974-1975, prometo-lhe que, fielmente, vou buscar as afirmações do seu partido em 1974-1975 e transportá-las também para a actualidade!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Faça favor. Até as de 1982.
O Sr. Presidente: - Vou fazê-lo e quero saber se vocês ainda hoje estão de acordo com aquilo que disseram em 1974, 1975, 1976, 1977, etc.. Quero saber se pessoas e partidos inteligentes ficam indiferentes à evolução da vida. O mundo de hoje é o mesmo de 1974? Estamos no Mercado Comum! Passou-se o que se passou! Estamos a assistir às evoluções, a verdadeiros sismos civilizacionais, e não me diga que temos de nos manter agarrados às afirmações de há 10, 13 ou 14 anos! Isso seria, não um acto de coerência, mas de estupidez, e eu entendo que a coerência tem o limite da estupidez! Coerência no erro, nunca! Os erros corrigem-se!
E não esqueça que a revisão de 1982 foi a revisão possível na época e que, para de algum modo tornar possível as correcções que se fizeram, houve que deixar de fazer outras. Havia equilíbrios a fazer e fomos fiéis a esses equilíbrios. Fomos prudentes. Quantas vezes nos terá apetecido - já nessa altura - introduzir correcções que não introduzimos? Mas não havia condições para isso, como não houve, durante muito tempo, condições para muitas outras coisas.
Consequentemente, vamos entender-nos sobre isso. Nós vivíamos, não "do" passado, mas "de um" passado que era presente e que agora é passado. Claro que é! É evidente! Porque o país mudou? Claro que mudou! Se mudou! Mudou o mundo, mudámos todos, vocês mudaram, o discurso do vosso partido mudou e o do nosso também! É melhor falarmos nisso! E, se cada um de nós vai responsabilizar o parceiro pelas afirmações que fez há 15 anos, faz um bom exercício de memória, mas não mais do que isso!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, o que estou a exibir é o recorte da Acção Socialista de 12 de Novembro de 1987, com um artigo do deputado Raul Rego sobre esta mesma matéria, exibindo a tal noção "passadista", "demodé" e "perfeitamente retardada."
O Sr. Presidente: - Sabe que o nosso partido tem uma virtude inestimável que é a de praticar a livre opinião! Votamos, há uma opinião que vence e todos respeitam a opinião que venceu. O deputado Raul Rego tem o direito de dizer o que quer e há muito mais gente que diz o contrário, havendo outros que se colocam no meio dos dois. Normalmente é até o médio virtus que colhe a maioria da votação. Somos um partido assim. Sempre o seremos e, com o meu voto e a minha colaboração, nunca deixaremos de o ser. No PS, a opinião isolada não tem significado em termos de vontade colectiva. O que o tem são as votações maioritárias. Mas cada um tem o direito de exprimir as suas opiniões como quiser e ninguém lhe vai à mão por isso.
Mas, Sr. Deputado, com o seu consentimento, poderemos passar ao artigo 2.°?
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O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, há ainda um deputado inscrito.
O Sr. Presidente: - Peço desculpa.
Tem a palavra o Sr. Deputado Ferreira de Campos.
O Sr. Ferreira de Campos (PSD): - Sr. Presidente, queria fazer uma intervenção muito breve.
O Sr. Presidente reconheceu há pouco que o PS apresentava esta formulação, que quereria o mais abrangente possível, e tenho uma dúvida, que é pessoal mas que gostaria de lhe colocar. O PS, na sua proposta do artigo 1.°, diz que "Portugal é uma república soberana baseada na dignidade da pessoa humana, na vontade popular, na igualdade, na solidariedade e no trabalho". Ora, é sobre esta expressão "e no trabalho" que quereria questioná-lo. Julgo que introduzir aqui esta expressão é talvez um pouco restritivo e que talvez também ela esteja carregada de carga ideológica. O que é que o PS quererá, muito concretamente, dizer com esta expressão? Quererá, por hipótese, dizer que todos devem trabalhar? Será esse o objectivo?
O Sr. Presidente: - O PS quer dizer que o trabalho é um valor fundamental de qualquer sociedade. Más, esta expressão aparece noutras constituições onde não tem feito "cócegas" a ninguém, nomeadamente - que me lembre - na Constituição italiana. Há outras constituições ocidentais que têm esse valor na base da definição do Estado ou da República, e ninguém levanta problemas por causa disso. A ideia é a de que o trabalho é um valor fundamental da nossa sociedade e de que é necessário que toda a gente o assuma como tal. E o que queremos dizer.
O Sr. Ferreira de Campos (PSD): - Sem dúvida. Mas não lhe parece que o trabalho seria apenas uma das componentes e um dos lados de outros valores mais genéricos e superiores como os da solidariedade, da justiça social e da fraternidade?
O Sr. Presidente: - Devo dizer-lhe que, para mim, a solidariedade e todos os outros valores de justiça social não valem nada se não for levado a sério o valor trabalho. Não existe solidariedade nenhuma se uns trabalharem e outros não. Não existe nenhum progresso se deixarmos instituir a mandria. O trabalho é, na verdade, um valor fundamental das sociedades modernas. Pode estar expresso, pode estar implícito, pode estar no capítulo dos trabalhadores, pode ficar onde quiserem, mas não tenha dúvidas de que é um valor fundamental!
E, já agora, diria também o seguinte: nós não abdicamos de que, ao lado do "fundamento" da República, haja o seu "empenhamento", ou seja, uma ideia finalista do objectivo a prosseguir. Na vossa proposta deixa-se cair essa ideia do empenhamento, mas, para nós, além da definição dos valores, é fundamental uma ideia de empenhamento. Ora, como hoje o artigo está construído nessa dupla base, redigimos também o nosso mantendo as referências à base, ao fundamento e ao empenhamento em algo que consideramos fundamental.
São estas as nossas duas exigências. Mais palavra, menos palavra, para nós é um problema ultrapassável.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, não percebi a sua menção final. Portanto, o PS entende...
O Sr. Presidente: - ... que devem existir os dois vectores: o fundamento e o empenhamento.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Isso percebi, Sr. Presidente, mas creio que a referência que faz à matriz inspiradora da proposta do PS tem todas as implicações que me parecem decorrer da invocação do exemplo italiano, uma vez que é sabido o alcance profundo que é atribuído na Constituição italiana a esse segmento principológico.
O Sr. Presidente: - Eu sei que a Constituição italiana não dá o relevo que dá a nossa aos direitos dos trabalhadores. A nossa é talvez, das Constituições do Ocidente que conheço, a que dá mais relevo a esses direitos e, como sabe, não tocámos nos direitos dos trabalhadores. Pelo contrário, preocupámo-nos em lhes dar pequenos reforços. Nessa medida, e como já cá estava esse valor, entendemos dever trazê-lo para a definição da própria República.
Srs. Deputados, quanto ao artigo 2.°, há uma proposta do CDS - que não está cá para justificá-la - no sentido de que a República Portuguesa é um Estado de direito. O CDS elimina a expressão "democrático", não obstante a mantenha no artigo 9.°, eliminando também a expressão "soberania popular" e referindo apenas "no respeito dos direitos e liberdades fundamentais e no pluralismo de expressão e organização políticas democráticas". Depois, tudo o que se segue à expressão "que tem por objectivo " é cortado.
O PS, praticamente, só elimina a referência à expressão "assegurar a transição para o socialismo". Dispenso-me de justificar esta eliminação porque me parece que podemos convalidar aqui todas as justificações que foram feitas relativamente à supressão da referência à transformação numa sociedade sem classes. Para além disso, a nossa proposta tem apenas uma alteração de linguagem que não tem grande significado. No fundamental, é só isto.
O PSD elimina a expressão "baseado na soberania popular" provavelmente porque, já no artigo 1.°, fala na vontade popular. Introduz a expressão "o equilíbrio dos poderes", o que nos parece um boa aquisição.
A proposta dos deputados Sottomayor Cárdia e Helena Roseta, em vez de usar a expressão "tem por objectivo", substituiu-a pelo termo "visando", sendo uma proposta com uma versão algo diferente das outras porque são retiradas as expressões "de direito" e "baseado na soberania popular", acrescentando-se à expressão "no respeito e garantia das liberdades e direitos fundamentais" a expressão "dos Portugueses". Parece-me isto redutor, porque os direitos fundamentais, para nós, não são apenas dos Portugueses mas de todo o ser humano. Esta proposta introduz ainda a expressão "na divisão dos poderes públicos e na soberania popular", cortando também a expressão "assegurar a transição para o socialismo".
O PRD, em vez de usar a expressão "baseado", diz "assenta". E elimina a expressão "que tem por objectivo assegurar a transição para o socialismo" dizendo: "e na participação democrática dos cidadãos na vida política e vinculado à promoção e realização da democracia económica, social e cultural".
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O PS dá por reproduzido o que disse quanto à eliminação da expressão "empenhada na transformação de uma sociedade sem classes". A razão desta supressão é fundamentalmente a mesma.
Assim sendo, pedia ao PSD o favor de justificar a sua proposta.
Tem a palavra o Sr. Deputado Pais de Sousa.
O Sr. Pais de Sousa (PSD): - Srs. Deputados, na mesma perspectiva que foi brilhantemente expendida pelo meu companheiro deputado Pedro Roseta, que, no fundo, é a perspectiva de, finalmente, acabarmos em Portugal com a chamada querela constitucional, e porque a anotação que foi feita ao artigo 1.° e as ideias e princípios então ventilados se aplicam de alguma maneira às razões de fundo na base da nossa proposta de alteração para este artigo 2.°, diria apenas o seguinte: o PSD propõe a eliminação da obrigatoriedade da transição para o socialismo, estando subjacente a esta proposta a ideia de não vincular rigidamente os Portugueses a um determinado caminho político, tanto mais que se trata de uma fórmula datada e com identidade histórica e conjuntural. Pensamos que há que abrir e adaptar o texto à realidade constitucional e, nesse sentido, a nossa proposta enumera os postulados básicos da democracia pluralista e representativa, introduzindo expressamente o princípio da divisão e equilíbrio de poderes.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, será seguramente relevante que o PS possa ainda explicitar - o que não fez - o conjunto de razões que o levam, neste caso concreto, a entender que a ideia de um sistema em transição dever ser suprimida. Gostaria, de resto, de perceber com rigor até que ponto é que o PS deseja ir. O Sr. Presidente foi particularmente económico na produção de alegações em defesa desta causa, mas o que está aqui em jogo é a própria riqueza e natureza da definição do Estado de direito democrático português e, designadamente, o saber se se coloca, como objectivo e elemento essencial do Estado de direito democrático em Portugal, uma ideia de transformação, de transição e de movimento para um aprofundamento das diversas dimensões e significados da democracia, em termos tais que se venha a atingir um estádio de desenvolvimento mais elevado e de aperfeiçoamento do Estado de direito democrático - uma espécie de superação positiva, transformadora e criativa, a partir de uma etapa de desenvolvimento menor.
É essa a ideia básica da Constituição ao falar de transição para o socialismo, a ideia de que o Estado de direito democrático se deve superar enquanto tal, transformando-se num tipo mais aperfeiçoado de Estado, resultante de mais democracia e não de menos democracia, de mais participação e não de menos participação. Ò nome de guerra desse objectivo, o seu nome de baptismo, é, historicamente, como se sabe, socialismo. Obviamente que a noção poderá variar em função das ordens jurídicas e a nossa - sublinho-o outra vez - não é importada nem decalca coisíssima nenhuma. É nossa e tem o significado que tem a partir da matriz que foi gizada em Portugal nas condições historicamente conhecidas.
O PS, neste ponto, parece reeditar a sua ideia de suprimir a palavra, e a questão é a de saber em que medida é que fica, de conceitos, alguma coisa. O que é que fica rigorosamente? Em que medida é que se pode conceber, na visão do PS, o Estado de direito democrático não como uma realidade imutável mas como um realidade em transformação e em devir? Há, apesar de tudo, uma diferença radical ou uma diferença de anotar - e não vou entrar agora em concursos de medida - entre uma posição deste tipo e aquela outra que foi anunciada da parte da bancada do PSD.
No entanto, devo dizer que julgo que se trata, em qualquer dos casos, de uma visão empobrecedora. A ideia de uma relação necessária entre democracia e socialismo, a ideia de um Estado de direito democrático em transformação para o socialismo como tal e a ideia que agora é proposta não são iguais - há uma redução do conteúdo constitucional, uma redução em termos de opções do Estado de direito democrático.
Sr. Presidente, também gostaria de sublinhar que não nos parece que a por demais conhecida violação das directivas constitucionais socialistas pelas manchas governativas de vários anos, as involuções, ou recuos, ou maiorias conjunturais, as tentativas de perpetuação no poder, por bons e maus modos, do PSD - nada disto deve legitimar uma espécie de embaraço democrático e republicano em defender e apostar numa república que se autotransforme e caminhe para a meta normal quando se visa uma maior democracia em todos os planos. Quando é assim, aquilo que se visa tem um nome, e ele não envergonha quem quer que seja que lute pela transformação social. Então, porquê tirá-lo da Constituição? Eis a questão basilar!
Quanto ao caso do PSD, gostaria de fazer algumas perguntas. A pergunta colocada pelo PSD, mais uma vez, liga-se com tudo. De resto, também isso se passa com a questão colocada pelo PS, pois ele faz reduções noutros pontos da Constituição em consonância com este. Ele é insusceptível de ser lido de per si.
De qualquer modo, no caso do PSD, além da tal ligação fatal ou inquinante, ainda há alguns mistérios da tal Rua do Arco do Chafariz das Terras. Porquê suprimir-se no texto constitucional a alusão à soberania?
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - É a Rua de São Caetano!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, a Rua de São Caetano é à direita. A outra é do outro lado, faz cruzamento. O Sr. Deputado Pedro Roseta esteve no estrangeiro muito tempo e já não tem ideia da topografia da cidade em relação a essa área. O pior é a topografia da Constituição, que neste ponto é relevante.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - São Caetano é mais... Não me diga que quer acabar com os santos?!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Por que é que suprimem aqui a noção de soberania popular? Porquê? A República Portuguesa é um Estado de direito democrático baseado na soberania popular.
O Sr. Presidente: - Nós não a eliminamos, Sr. Deputado!
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O Sr. José Magalhães (PCP): - Pois não, Sr. Presidente, elimina-a o PSD. É um mistério da Rua de São Caetano. Ou é um gralha da famosa dactilógrafa do Sr. Deputado Rui Machete?
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - O Sr. Deputado quer já a resposta ou prefere que responda no fim?
O Sr. José Magalhães (PCP): - Talvez seja preferível, uma vez que os senhores foram interpelados em segundo lugar, que o façam no momento próprio. Por mim não terei nenhuma objecção a que a soberania popular seja objecto de defesa imediata, sobretudo se se tratou aqui de um lapso.
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Não foi um lapso, Sr. Deputado.
O Sr. José Magalhães (PCP): - A outra matéria que é intrigante, o segundo mistério da Rua de São Caetano, é este inciso relativo à "divisão e equilíbrio de poderes". Em bom rigor, a Constituição, ao prever o pluralismo de expressão e organização políticas democráticas, etc., etc., prevê o que prevê, e uma das coisas que prevê é a separação e a interdependência. Nem prevê o conceito de divisão de poderes. O que prevê é a separação e interdependência dos órgãos de soberania e, portanto, tem uma conceptologia própria adiante, en su sitio.
Aqui trata-se de estabelecer um princípio, como aliás é próprio da sede em que estamos a fazer o debate, o qual é substituído, na vossa lógica, pelas duas noções seguintes: em vez de "pluralismo de expressão e organização política democráticas" (sendo a última expressão bastante rica e densa, como se sabe), propõe-se a formulação "pluralismo de expressão e organização políticas", excluindo-se o termo "democráticas". Mas porquê, Srs. Deputados?
Além disso, a vossa lógica baseia-se também na divisão e equilíbrio de poderes, o que significa consagrar o noção de divisão, conceito introduzido ex novo com uma carga que traz em si mesma resquícios de um debate de fundo bastante antigo, para o qual o PSD foi acordado nos seus tempos de governo minoritário. Talvez sejam as feridas desse governo que aqui estamos todos a purgar nesta redacção do PSD!
Em todo o caso, não nos parece que a questão mereça ser salientada nesta sede, com este cariz, e sobretudo com alteração do conceito constitucional hoje aplicável.
Aguardo realmente com bastante curiosidade a explicitação das razões que tenham levado o PSD a fazer esta proposta. Seguramente que não terá sido qualquer encíclica nesta matéria nem o grande Montesquieu, porque, como é sabido, a Constituição está bastante para além de Montesquieu!
O Sr. Presidente: - Pela parte que me diz respeito, responder-lhe-ia já, para não perdermos o imediatismo da conversa.
Por um lado, este tem sido o núcleo essencial da nossa querela semântica: as referências ao caminho para o socialismo. Nós entendemos que estas referências têm a explicação histórica que todos conhecemos,
mas a verdade é que a história, ela própria, se encarregou de revelar que aquilo que os constituintes julgaram que nessa altura seria a Constituição material não o era tanto como isso. Era mais episódica, mais datada do que se julgou.
De facto, há doze anos que não se transita coisa nenhuma para o socialismo, há doze anos que não há apropriação colectiva. No momento em que nos dispusemos, bem ou mal - mal na opinião do deputado José Magalhães -, a eliminar como obrigação constitucional a apropriação colectiva, e não como mera possibilidade, a qual se manterá no texto, que de algum modo desinflamámos a planificação democrática tal como a Constituição a concebe e que também eliminámos a impossibilidade de reprivatizar empresas que foram nacionalizadas, nessa altura não faz sentido mantermos aqui uma referência à via para o socialismo. A não ser que pretendamos mesmo forçar uma desadequação da Constituição à realidade.
A realidade neste momento - espero que por pouco tempo - é a de um governo que é liberal, que defende o capitalismo liberal. Está no seu direito. Tem algum significado a Constituição referir que estamos em transição para o socialismo? Mesmo que tenhamos estado nessa via durante estes anos, sem transição efectiva de coisa nenhuma do sector privado para o colectivo? Essa expressão vai desaparecer da Constituição com o nosso voto. Daí a coerência da eliminação dessa referência à apropriação colectiva como uma forma impositiva, ficando referenciada apenas como uma faculdade.
É preciso que a Constituição material não envelheça além de um certo ponto, sob pena de se transformar em algo que não é minimamente respeitado.
Sou socialista, o meu partido é socialista e eu gostaria muito que a Constituição do meu país incluísse a expressão "o caminho para o socialismo" se não acontecesse que o meu país não quer o caminhar para o socialismo. Neste momento o País não quer isso, embora eu queira. É óbvio que não quer. Portanto, a Constituição material impõe-nos uma atitude de coerência.
Quanto à divisão e equilíbrio dos poderes, confesso que não morro de amores pela fórmula e designadamente que ela fique aqui estabelecida. De qualquer modo, considero que não fica mal num Estado de direito consagrar uma referência à divisão e ao equilíbrio dos poderes, porque essa foi sempre uma salvaguarda clássica do regular funcionamento das instituições.
Aqui, o Partido Socialista tem uma posição que se pode considerar próxima da definitiva. A nossa formulação é esta e não é passível de grandes alterações. Em relação à queda da expressão "transição para o socialismo", realmente ela vem no sentido de cortar o mito pela causa, por razões que são conhecidas. O resto está cá.
Para além disso, não se esqueça o Sr. Deputado José Magalhães de que enquanto hoje a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa são um "instrumento", passam na nossa proposta a ser um "objectivo". Esta alteração é de profundo alcance. Se nós conseguirmos realizar a democracia económica, a democracia social e democracia cultural, esta é também, no nosso entendimento, uma outra fórmula de dizer "socialismo".
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O Sr. José Magalhães (PCP): - Eu acentuei esse aspecto, Sr. Presidente!
O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Gostaria de responder ao Sr. Deputado José Magalhães relativamente às três objecções que colocou à nossa proposta.
A primeira diz respeito ao problema da supressão da expressão "baseado na soberania popular". A segunda refere-se à eliminação do atributo "democráticas" a seguir à expressão "organização política". A terceira reporta-se à problemática da inscrição, de novo, da expressão "o equilíbrio de poderes".
Quanto à primeira expressão, devo dizer que é do entendimento do PSD que a expressão "Estado de direito democrático" envolve, de modo inequívoco, o princípio democrático. Ora, este traduz-se, nem mais nem menos, na ideia de soberania popular. É claramente tautológico mencionar a soberania popular depois de defender que a República Portuguesa é um Estado de direito democrático. Isto é repetir o que está dito e é até, do ponto de vista estético-jurídico, inconveniente.
Mas o problema da expressão "Estado de direito democrático" justifica ainda a resposta às outras duas questões colocadas.
A primeira diz respeito à eliminação do atributo "democráticas" a seguir à expressão "organização política" e cinge-se aos seguintes termos: esta última expressão não carece daquele atributo, porquanto o princípio do Estado de direito democrático é um princípio constitucionalmente conformador, e, na medida em que nós o defendemos logo no início do preceito, é óbvio que dentro desse sentido conformador não faz sentido repetir-se que as organizações políticas têm de ser democráticas, porque é óbvio que assim tem de ser. Não faz sentido porque é uma consequência natural daquilo que se afirma no início do artigo.
Quanto à questão que o Sr. Deputado José Magalhães coloca acerca do problema da divisão e equilíbrio de poderes, creio que esta expressão cria realmente alguns pruridos do ponto de vista de uma certa visão mais "hollista" da nossa sociedade política. Para quem não tem essa visão a expressão faz sentido, sobretudo porque ela evita, de modo decisivo para a interpretação de todos os preceitos constitucionais, o problema do espectro de um certo "rousseaunianismo" original que possa comportar gérmenes de perigo totalitário; ou, melhor dizendo, Montesquieu tempera Rousseau.
Assim, é importante mostrar claramente à partida que os deveres são repartidos e equilibrados. Esta é uma condição de liberdade do indivíduo e de organização de poder político democrático, e não faz mal que aqui fique estabelecida, pois tira equívocos teóricos e práticos.
Sr. Deputado José Magalhães, era mais ou menos isto que lhe pretendia dizer, tendo em conta todas as afirmações que são reforçadas pelo sentido que o artigo 2.° tem no contexto interpretativo de toda a Constituição e, portanto, no sentido conformador que este princípio tem face aos outros artigos que figuram na Constituição.
O Sr. Presidente: - Sra. Deputada, não sei se disse isso enquanto me ausentei, mas o PSD mantém no artigo 3.° que a soberania reside no povo. De qualquer modo, não deixamos sair daqui a palavra "soberania". Não vale a pena envolvermo-nos nisso porque é ponto assente.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, neste caso o PSD até vai ao ponto de pretender introduzir no artigo 111.° a alusão ao exercício da soberania pelo povo.
O Sr. Presidente: - Não vale a pena discutirmos esse ponto.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Aliás, isso acontece com um património de debate, que já consta de resto destas actas, muito interessante acerca do alcance bastante perigoso e acentuadamente totalitário dessa proposta numa das vertentes possíveis.
A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras da oradora.)
O Sr. José Magalhães (PCP): - Du rousseanisme à outrance! Disso não tenho dúvida nenhuma.
O Sr. Presidente: - A única dúvida que tenho neste momento em termos de redacção é a de se valerá ou não a pena referir expressamente a divisão de poderes. Também me inclino para que há um enriquecimento com essa referência. No entanto, não gostaria de pronunciar-me em definitivo.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, não seria possível ser um pouco mais específico? É que a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves, nas alegações que proferiu, foi contraditória. Ela entende que o artigo 2.°, na redacção proposta pelo PSD, estaria bem... Não aludo à questão da expressão da referência à transição para o socialismo. Estou só a aludir aos outros aspectos que a Sra. Deputada abordou nas considerações de há pouco. Neste sentido, e segundo ela, seria redundante a Constituição com a redacção que tem ao mencionar a soberania, uma vez que já se alude ao princípio democrático como tal, o qual inclui obrigatoriamente essa componente. A Constituição não deve ser repetitiva; logo, deve proceder-se à eliminação que o PSD propõe.
O Sr. Presidente: - Há repetições salutares!...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Exactamente, Sr. Presidente. Mas o PSD entende fazer uma repetição perfeitamente repetitiva em relação ao princípio da separação e interdependência de poderes - de resto, mal expresso na sua proposta - em relação a esse ponto.
Isto significa que o que dói ao PSD é a questão de separação de poderes - toca a sublinhar! Mas quando se trata da questão da soberania, que, como se sabe, desgraçadamente bastante doeu neste país, aí já não é necessário sublinhar... Santo Deus, tem que haver um critério para as repetições e para as ênfases!
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Quando, ainda por cima, a Constituição é enfática, coloca-se uma questão adicional que nós muitas vezes aqui temos abordado, que é o significado de desenfatizar. A Constituição enfatiza, coitada, o termo democrático e nós desenfatizamos. Qual é o significado da desenfatização daquilo que estava desenfatizado? Seria leitura por descarga, por redução de conteúdo, o que neste caso seria completamente ilegítimo. Em todo o caso, é um risco que entendemos que não se deve correr!
Por outro lado, dizer que isto é uma preocupação estético-jurídico-constitucional, é, quanto a nós, apenas um certo deprezo pela respectiva estética, a qual é bastante relevante e apreciável. Não vemos que aqui a questão importante seja a questão estética. Estamos inteiramente disponíveis para fazer todas as mudanças estéticas que desejem - todas!
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Quem diria!
O Sr. José Magalhães (PCP): - No entanto, não confundamos as alterações de conteúdo com as mudanças puramente estéticas.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Isso é revisionismo, Sr. Deputado!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, só lhe peço que não cite o Bernestein a esta hora, nem o contraste entre a reforma e a revolução, nem a Rosa Luxemburgo, por favor.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Foi um aparte!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Neste caso, estávamos há pouco a discutir mais simplesmente Rousseou a convite da Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves. Entretanto, o Sr. Deputado Pedro Roseta entrou na sala e já saiu. Neste momento estávamos a verificar se se tratava de redundância desejável ou malquista, e eu estava a concluir que aí onde ela existe é benquista.
Finalmente, falta ainda o Sr. Deputado Nogueira de Brito apresentar a sua proposta de destruição do artigo 2.°
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.
O Sr. Alberto Martins (PS): - Primeiramente, em relação à proposta apresentada pelo PSD e à intervenção que acabou de fazer a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves, creio que é perigoso valorar um conceito fora do terreno constitucional em que ele se inscreve, e desde logo o conceito de Estado de direito democrático, ou, se quiser, Estado de direito social ou Estado de direito liberal.
Isto porque se se trata de conceitos de Estado de direito, todos eles democráticos, e têm conformações históricas distintas ao longo do tempo. Por exemplo, o conceito de Estado de direito liberal conformou-se em termos genéticos de soberania nacional em termos de sufrágio universal que não era rigorosamente universal.
Sra. Deputada, se formos por um incurso ao nível da doutrina, esta ideia, que também me parece interessante, de definir o Estado de direito democrático com todos estes atributos, nomeadamente o primado da lei, a pluralidade da expressão, a garantia dos direitos fundamentais e a divisão e interdependência de poderes, temos que considerar doutrinalmente que há também um outro atributo, desde o início deste século atribuído ao conceito de Estado de direito democrático, que é o controle da constitucionalidade das leis. Assim, se formos para uma lógica de consagração doutrinal do conceito tal como é definido na doutrina constitucional, julgo que não ficaria mal definirmos também a ideia do controle da constitucionalidade das leis. Este é um valor essencial de respeito pela lei fundamental e pelo espírito das leis (já que estamos na citação dos clássicos).
Quanto à proposta apresentada pelo PS, devo dizer que o Sr. Deputado Almeida Santos já colocou aqui uma questão que para mim é a essencial. De facto, a transição para o socialismo é vista neste artigo, na sua redacção inicial, com uma concepção finalista e a democracia económica, social, cultural e o aprofundamento da democracia como um meio e, portanto, nalguma medida como uma realidade instrumental.
Ora, creio que isso é o inverso do que deve existir. Devemos ter uma concepção finalista da democracia e, nesse sentido, a ideia da democracia económica, social e cultural e do aprofundamento da democracia pode reconduzir-se na sua plenitude à ideia de socialismo.
Isto até porque a ideia de transição para o socialismo é uma ideia datada historicamente. Não na Constituição Portuguesa, mas na própria história recente das sociedades. Essa ideia nalgumas sociedades chamou-se ditadura do proletariado, noutras democracia popular, noutras Estado de todo o povo. E, portanto, foi algo de datado historicamente e que não se adequa rigorosamente, embora Duverger considerasse que foi uma especialidade da Constituição Portuguesa, esta ideia de uma solução aberta, nominal, que em todo o caso em meu juízo e tal como o Sr. Deputado Almeida Santos disse, a ideia da democracia económica, social, cultural e o seu aprofundamento na sua plenitude e projecção são o socialismo.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Nogueira de Brito.
Vozes.
O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - Sr. Presidente, o CDS verifica por esta discussão, e já verificava pela mera comparação dos textos, que realiza a síntese mais perfeita de todas as ambições expressas nas várias propostas de alteração do artigo 2.°
Por um lado, verificamos com algum desgosto, e confirmando as nossas previsões e a nossa ideia um pouco pessimista nesta matéria, que há efectivamente pontos de contacto entre as várias propostas de alteração do artigo 2.° e do artigo 1.°, destes artigos que constituem o pórtico da Constituição, mas que não há pontos de contacto comuns a todos eles. Verifica-se, por exemplo, que, juntamente com o PSD, o CDS tem a preocupação de tornar o texto "enxuto" e evitar repetições desnecessárias, muito embora tal objectivo não
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seja porventura conseguido exactamente da mesma maneira. A única divergência estará na colocação do qualificativo "democrático".
Por outro lado, verifica-se que entre o PS e o PSD há a preocupação de deixar cair uma referência datada, que o Sr. Deputado Alberto Martins acaba de referir, e de a substituir da melhor forma possível, isto é, de manter o carácter transitório da nossa sociedade organizada politicamente a caminho de algo, que é o socialismo, dito de uma forma porventura mais eufemística, através daquilo que até aqui...
O Sr. Presidente: - Já lá estava! Com os vossos votos!
Vozes.
O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - ... era o instrumento para o conseguir e que agora passa a ser o objectivo. Mas vai ser confessado aqui pelos Srs. Deputados do PS que, no fundo, se reconduz a deixar consagrado na Constituição este finalismo (de que falou o Sr. Deputado Alberto Martins, com algum desgosto para o Sr. Deputado Pedro Roseta) da nossa sociedade politicamente organizada que é o caminho para o socialismo, agora definido pelos atributos, tal como pretendíamos, do Estado de direito democrático. Entendemos realmente que ele se define pelos atributos, que são os que aqui estão, e que o qualificativo "democrático" cobre outros atributos que o PSD entende necessário incluir para qualificar o pluralismo de expressão e organização deste Estado de direito. É essa a intenção do nosso projecto.
É claro que no respeitante ao trânsito, à passagam, somos efectivamente radicais: não há trânsito nenhum! Dizemos aqui o que é a sociedade portuguesa, não aquilo que alguns pretendem ela venha a ser.
Vozes.
Risos.
Diria que estes dois projectos se revelam irmanados no "socialismo envergonhado"...
Vozes.
O do PSD e o do PS!
O Sr. Presidente: - A diferença é que este socialismo que está aqui é o nosso, o que lá estava não era.
Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Presidente, Rui Machete.
O Sr. Presidente (Rui Machete): - Mais algum dos Srs. Deputados está inscrito? Podemos dar por concluída a discussão do artigo 2.°?
Vozes.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Gostaria de formular uma pergunta ao Sr. Deputado Nogueira de Brito, porque o Sr. Deputado não teve ocasião de acompanhar a fase anterior do debate e portanto não pôde fruir em directo algumas das considerações que os Srs. Deputados da bancada do PSD e o próprio PS tinham vindo a produzir sobre este ponto.
O Sr. Presidente: - Eu também não pude fruir pelas mesma razões e não vou fazer perguntas nenhumas.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto. É absolutamente irreparável, só que sucede que eu, que tudo fruí, tenho uma pergunta a fazer ao Sr. Deputado Nogueira de Brito, embora a proposta do CDS deste ponto de vista seja uma proposta pouco viável, segundo indicou o Sr. Deputado Almeida Santos. Só tenho uma curiosidade, que é a de saber como o CDS demonstra o proclamado carácter virtuoso e sintético desta proposta. Seria verdadeiramente uma síntese original, porque seria uma síntese amputatória (que seria o contrário das sínteses propriamente ditas, que não devem amputar coisa nenhuma). Importa saber quão longe é que o CDS vai na amputação. É que os senhores suprimem a menção ao Estado de direito democrático e, ainda que a epígrafe a mantenha, o texto regressa à noção de Estado de direito. Regressa, Sr. Deputado Nogueira de Brito!
O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - Regressa!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Aparentemente a vossa preocupação não é a de regressar à noção de Estado de direito como tema de luta contra o Estado monárquico pré-constitucional. Claramente não é isso.
A vossa preocupação é em relação à democracia económica, social e participativa, que querem expurgar. O Sr. Deputado Nogueira de Brito considera portanto que o projecto do PS nesse ponto (é a única utilidade da vossa interpretação) mantém aspectos fulcrais de dinâmica, de transformação e de aprofundamento das diversas componentes de democracia, razão pela qual considera que esse projecto é ainda a manutenção do socialismo constitucional. Foi esse o alcance da intervenção do Sr. Deputado Nogueira de Brito, tanto quanto eu me apercebi dela. E até admite que o próprio projecto do PSD se irmanaria com o projecto do PS (o que já me parece demasiado ousado!) na manutenção de uma própria ideia de dinâmica constitucional. Não é assim, e creio que se as considerações do Sr. Deputado podem ter algum apoio até nas intenções declaradas pelos proponentes quanto ao projecto do PS, já não é assim quanto às propostas do PSD, sobretudo na leitura que delas é feita por alguns dos seus deputados.
Seria útil, apesar de tudo, clarificar isso. Eis o que pretendi suscitar, Sr. Presidente.
O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - Sr. Deputado José Magalhães, nós não suprimimos a epígrafe. E aqui é que se produz a síntese, porque não suprimimos assim a ideia de Estado de direito democrático. O que entendemos é que o Estado de direito se define como democrático pelos atributos que apontámos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Atributos empobrecidos!
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O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - Empobrecidos, amputatórios, como o Sr. Deputado diz, porque nós recusamos essa ideia de dinâmica, de objectivo, de determinação, necessária à definição do Estado de direito democrático, isto é, de "caminho para", que, pelos vistos, se mantém intacta na formulação do PS. E não vejo que haja aí diferença em relação à formulação...
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - O Sr. Deputado José Magalhães já fez notar a diferença.
O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - Sr. Deputado Pedro Roseta, o objectivo da proposta do PS é esse, de acordo com a afirmação e o esclarecimento aqui feitos pelos dois deputados do PS presentes, os Srs. Deputados Almeida Santos e Alberto Martins.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Assumimos!
O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - Também pelos atributos definem o caminho para o socialismo, que apenas nessa expressão suprimem o texto do artigo 2.° VV. Exas. não dizem "tem por objectivo a realização", mas "visando a realização" da democracia económica, social e cultural e aprofundamento da democracia participativa.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Que não é para nós o caminho para o socialismo.
O Sr. Almeida Santos (PS): - O nosso socialismo!
O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - Que não é para VV. Exas. - e isso já é importante - o caminho para o socialismo, mas que é para o PS. O que, Sr. Deputado Pedro Roseta, vai deixar no ar essa enorme e grande confusão.
De qualquer modo, o Estado Português é um Estado em trânsito. V. Exa. argumentou profundamente, e bem, contra essa fórmula de transitoriedade de "caminho para", que se arriscava sempre a ser um caminho apenas para alguns e não para todos. Mas V. Exa. não deixa também de visar aquilo que no entender dos Srs. Deputados do PS continua a ser o caminho para o socialismo. Aliás, Sr. Deputado Pedro Roseta, não estranharei que os partidos sociais-democratas deste país, PS e PSD, se encontrem unidos neste objectivo. Não é de estranhar! E até o Sr. Deputado Costa Andrade, que não está presente, certamente vitoriaria esta tese, de acordo com o que disse tempos atrás.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Nogueira de Brito, V. Exa. tal como eu não beneficiámos da discussão anterior, mas há algo que não consigo deixar de dizer, apesar da hora um pouco tardia: é que, como V. Exa. compreenderá, uma coisa é o ideal político de um partido político, outra coisa é consignar esse ideal político na Constituição. Nós não pretendemos que a Constituição pertença ao PSD, como entendemos que ela não deve pertencer a nenhum outro partido. A Constituição tem de ser de todos os portugueses, sejam quais forem as suas opções partidárias. Portanto, não poderíamos nunca pretender que a expressão aqui consignada na nossa proposta fosse a tradução de um caminho que só pudesse ser compartilhado por aqueles que subscrevessem as teses sociais-democratas. Isso para mim é absolutamente claro, e de resto a grande crítica que nós fizemos justamente a esta transição para o socialismo, e a crítica que eu particularmente faço é que este artigo visava introduzir uma única via e um certo tipo de socialismo que caracterizei num artigo, que normalmente o Sr. Deputado José Magalhães gosta de citar, referindo-o como um princípio estrutural colectivista e marxista e que desequilibrava profundamente a Constituição. E que penso ter justamente caducado pela evolução da Constituição material.
Ora, isso é uma coisa completamente diferente daquilo que aparece na nossa proposta e que também, suponho, aparece na proposta do PS, mas não me cabe defender esta, que é o aprofundamento do carácter normal da democracia numa sociedade avançada do ponto de vista económico. É algo que não tem a ver com uma determinada uma opção social-democrata, ou uma opção liberal, ou uma opção democrata-cristã, ou até provavelmente uma opção comunista depois da Perestroika, pois nós não sabemos bem o que é, essas são escolhas que devem ser propostas nos programas de governo a sufragar pelo eleitorado.
Vozes.
O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - Sr. Presidente, folgo muito com a interpretação que V. Exa. acaba de dar e com a intenção que V. Exa. sublinha ser a do PSD. Só faço votos para que V. Exa. não seja obrigado a votar favoravelmente a proposta do PS, porque nessa altura ficará como interpretação do conteúdo dessa proposta o que hoje foi dito pelos Srs. Deputados Almeida Santos e Alberto Martins.
Na realidade, o Sr. Deputado Alberto Martins foi muito claro. O Sr. Deputado, na explicação que deu - peço desculpa se a interpretação não for a correcta -, notou que o PS retirou o "trânsito para o socialismo" apenas para evitar certos equívocos, porque também já era claro que este trânsito se fazia pela via prevista no artigo 2.°, e não por outras vias historicamente datadas, algumas porventura agora em vias de transformação, que o Sr. Deputado Alberto Martins referiu concretamente. E foi por não pretender estabelecer confusões com as outras vias, embora a via única estivesse aqui expressa, que o PS retirou o trânsito para o socialismo. Mas fê-lo com esta ideia: retirou ao trânsito a referência à estação de destino, mas deixou ficar os carris onde estavam, na certeza de que eles o levariam ao socialismo. Isto foi dito, Sr. Deputado!
O Sr. Presidente: - É uma afirmação de fé!
O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - Fico esclarecido. Como não queremos ir para o socialismo por esta via, nem por' outra qualquer, entendemos preferível ser amputatórios na nossa síntese, como diz o Sr. Deputado José Magalhães. Sempre é mais claro!...
Vozes.
Sr. Deputado, V. Exa. não nos quer levar para destino nenhum, acaba de o afirmar!
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O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Já o tinha afirmado antes.
Vozes.
O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - O Sr. Deputado Pedro Roseta tinha-o afirmado com larga veemência, e fico satisfeito com tal facto. Só faço votos - volto a dizê-lo - para que o texto votado não seja o do PS.
Vozes.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Só para simplificar, queria fazer-lhe uma pergunta muito simples.
Quereria fazer o favor de nos esclarecer se V. Exa. é contra o objectivo da realização da democracia económica, social e cultural?
Diga-me se sim ou não. Se é...
Vozes.
Mas é que toda a gente sabe que o nosso socialismo é um socialismo democrático. Já o dissemos inúmeras vezes.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - O vosso socialismo é só isso?
O Sr. Almeida Santos (PS): - Não, pois entendemos que a democracia económica, cultural e social é uma forma de realização do nosso socialismo democrático. O nosso não é o dos outros, nem é sequer o vosso, que VV. Exas. também o são em certo sentido, nem é preciso ler o vosso programa.
Pergunto é se se deixa de votar a nossa proposta porque se é contra a democracia económica, cultural e social! É uma atitude! Respeitamo-la.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Não, desculpe. Tenho de esclarecer que fui contra a interpretação do Sr. Deputado Alberto Martins. Nós mantemos "visando a realização da democracia económica [...]".
O Sr. Almeida Santos (PS): - Mas "visar" e "ter por objectivo" é rigorosamente a mesma coisa. Não nos embrenhemos na discussão de palavras equivalentes...
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Não, Sr. Deputado, não é isso. Trata-se de uma questão de interpretação.
Vozes.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, peço que respeitem a ordem de inscrição e não falem todos ao mesmo tempo, a fim de nos entendermos.
O Sr. Almeida Santos (PS): - É o nosso entendimento do socialismo democrático.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Nogueira de Brito.
O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - Congratulo-me imenso que, ao ser-me feita pelo Sr. Deputado Almeida Santos uma pergunta, o Sr. Deputado Pedro Roseta te-
nha necessidade de ser ele a responder. Porque estou irmanado com as exposições que hoje têm sido feitas pelo Sr. Deputado Pedro Roseta, devo dizê-lo!
O Sr. Pedro Roseta (PSD): -É que V. Exa. não ouviu integralmente as minhas intervenções...
Vozes.
O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - Sr. Deputado Almeida Santos, é óbvio que não posso responder simplesmente a uma pergunta tão simples, porque a resposta não é simples. Como é uso dizer-se, não há perguntas indiscretas, só há respostas indiscretas. Não é que aqui se trate de um problema de discrição, nem pretendo ser discreto sobre o nosso sentido de voto. Mas, Sr. Deputado Almeida Santos, não posso acompanhar a vossa formulação, quando VV. Exas. sustentam que esta via é aquela que conduz ao socialismo. Falta V. Exa. esclarecer-me sobre o que entende por democracia económica, democracia social...
O Sr. Almeida Santos (PS): - Vota o que está na Constituição ou vota uma particular interpretação da Constituição?
O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - Não, Sr. Deputado Almeida Santos, temos de votar muitas coisas. E para saber como vou votar, tenho de ser esclarecido.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Então tenha a coragem de votar - tirar-lhe-ei o meu chapéu pela implícita coragem - contra a realização da democracia económica, social e cultural...
O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - Sr. Deputado Almeida Santos, se V. Exa. entende que esta via é uma espécie de pousada espanhola, em que cabe tudo e mais alguma coisa, teremos igualmente de o dizer. Mas V. Exa. diz: "Votem isto porque para nós significa uma coisa..."
O Sr. Almeida Santos (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador.) As coisas têm o significado objectivo que têm e a nossa intenção é a seguinte: o nosso socialismo democrático, tal como nós o entendemos, consiste exactamente na realização da democracia económica, social e cultural...
Vozes.
O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - Sr. Deputado Almeida Santos, está demonstrado que se trata de uma tentativa de transpor para a Constituição elementos de um programa partidário...
Vozes.
O Sr. Deputado Almeida Santos tem de me dar o benefício da dúvida...
O Sr. Almeida Santos (PS): - Dou, dou...
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O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - ... de que eu tenha de pensar duas vezes em votar essa proposta. Depois votarei com toda a coragem, esteja descansado!...
Vozes.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Nogueira de Brito, compreendo que tenha algumas dificuldades ou alguns engulhos se ficar amarrado a uma determinada interpretação. Mas não é isso que acontece: as normas valem objectivamente por si. E reparará o meu Exmo. Amigo o seguinte: a democracia participativa pode ser uma via para várias coisas muito deferentes, para aquilo que depende da participação, e pode ser constituída através dela - é mais um aspecto de processo do que de resultados materiais concretos a obter.
Já é diferente no que diz respeito à democracia económica, social e cultural, mas compreendo que possamos ter ideias um pouco diversas sobre o que é a democracia económica, social e cultural na perspectiva de cada um dos programas partidários, ou na perspectiva de cada uma das pessoas. Simplesmente, alguns dos valores fundamentais da democracia económica, social e cultural serão certamente partilhados por todos os democratas, o que é suficiente para dizer que esta norma constitucional não é uma norma apropriada por nenhum dos partidos políticos. Foi nesse sentido e com essa intenção - de resto, devo dizer que creio ter sido o autor material da proposta do PSD neste capítulo - que a redigimos e é com essa intenção que a mantemos e que a votaremos; depois, por hipótese, alguém fará uma interpretação diversa. Resta saber se, do ponto de vista da hermenêutica, essa interpretação é consentânea com aquilo que está escrito na Constituição. Mas que cabem lá também as concepções do PS, cabem certamente. É essa a nossa intenção: que possam caber intenções de todos aqueles que respeitem os princípios básicos da democracia.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Creio que o debate que procurei suscitar com a pergunta ao Sr. Deputado Nogueira de Brito...
O Sr. Presidente: - Com êxito, pelos vistos!...
O Sr. José Magalhães (PCP): - ... foi produtivo. Apenas se arrisca a ser um pouco repetidor de evidências. Até agora, nunca vi alguém suscitar que a Constituição da República Portuguesa, na sua matriz de 1976 e, seguramente, no texto posterior a 1982, instaurasse em Portugal um governo operário e camponês, ou um Estado socialista de todo o povo, ou uma ditadura do proletariado, ou uma democracia popular na sua conformação hitoricamente conhecida ... Se alguém há-de buscar um conceito para a Constituição Portuguesa de uma sociedade em transformação, é aquela que a própria Constituição estabelece, designadamente nos artigos que aqui foram referidos (nos artigos 1.°, 80.°, 81.°, 86.° e por aí adiante), desembocando numa sociedade sem classes, a que se pode chamar justamente sociedade mais justa, mais livre e mais fraterna, que será precisamente aquela onde não haja opressão de classe.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, recordo que desembocava numa sociedade sem classes "através do exercício do poder político pelas classes trabalhadoras...". Se isto não é a vulgata marxista...
O Sr. José Magalhães (PCP): - O Sr. Presidente está a falar da Constituição de 1976 na redacção originária. No seu excurso, o Sr. Presidente estudou profundamente a Constituição, mas não estuda há muitos anos o programa partidário do PSD. A teoria que o Sr. Presidente expôs para a Constituição da República aplicar-se-á porventura com proveito e razão ao programa partidário do PSD, que está inçado dessas "abomináveis" manifestações colectivistas e marxistas, inçado de referências ao capitalismo como coisa ominosa, horribile dictu, e inçado de referências ao socialismo como futuro de todos nós...
O Sr. Presidente: - Parou no Bernstein, mas não tem nem Lenine, nem Estaline, nem Krutchev, nem Gorbachev...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Seguramente que não sigo o exemplo do Sr. Primeiro-Ministro, que dorme com Bernstein à cabeceira.
Em todo o caso - e era esta a minha observação - não tem nenhuma razão, Sr. Presidente, para entender que está na proposta do PS aquilo que não está. Aquilo que o Sr. Deputado Alberto Martins aqui veio sustentar, para explicitar o alcance basilar da proposta do PS, distingue-se, quase ponto a ponto, da concepção expendida e fundamentada no início desta reunião plenária em nome da bancada do PSD. Distingue-se no sentido finalista, distingue-se na dinâmica transformadora, distingue-se na ideia de que o Estado na sua conformação actual não é uma realidade imutável, mas sim uma realidade que deve sofrer um aproveitamento, distingue-se quando procura estabelecer um nexo identificativo entre ò que está e o que o PS propõe que se mantenha. O PSD rejeita isso abertamente e o mistério é apenas o de saber como é que vota: se vota novamente "enganadinho", se vota outra vez com reserva mental, como aconteceu em 1976 e em 1982. Mas que se diga que as propostas são a mesma coisa, não são: o debate de agora provou-o cabalissimamente. Se os senhores se entendem para redigir uma terceira proposta, se o compromisso decorrente do acordo, na parte em que não haja caducado, é válido também para conduzir a um outro texto referente à definição de Estado de direito democrático, não sabemos.
Em todo o caso, o que este debate prova clarissimamente é a dimensão e a natureza da proposta do PS. E se nós lamentamos que, relativamente à transição para o socialismo, a proposta aponte para aquilo para que aponta, de forma distinta da sua conformação actual, não seremos suficientemente estultos para a confundirmos com propostas que implicariam uma desfiguração visceral e total do mandato constitucional, da opção basilar constitucional em relação a este ponto. Era essa não confusão e não identificação que gostaria de aqui sublinhar. O Sr. Deputado Nogueira de Brito confirmou, de forma claríssima, a contrario, aquilo mesmo que eu vinha afirmando.
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O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Pedro Roseta.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador.) Nada tem a ver com o artigo 2.°, mas, já que foram aqui faladas as minhas leituras (não tenho culpa de gostar de ler), queria recomendar ao Sr. Deputado José Magalhães - e faço-o para a acta porque tem um sentido político - a leitura de mais um outro texto de um homem que tem um nome abstruso, Han Fei Tseu, que é nada mais nada menos que um pensador sobre estes problemas do poder chinês do século III antes de Cristo. Nesse texto, com o título "Os perigos do discurso", Han Fei Tseu faz uma explanação dos perigos da época, alguns dos quais aindas são actuais, sobretudo em certos países e sistemas políticos que lhe são caros. Han Fei Tseu começava por dizer que "o meu verbo era fácil, os meus períodos enlaçavam-se lustrosamente", mas ele próprio reconhecia que já naquela altura os tempos variavam. É evidente que naquela altura acabavam todos - que não será o seu caso, estamos em Portugal não noutras paragens - com a cabeça cortada e outras malfeitorias horríveis (daí o título "Os perigos do discurso") a que os governantes submetiam os pensadores e conselheiros políticos quando estes mudavam de opinião ou quando os governantes mudavam: uns eram assados, outros eram salgados, secados, etc....
Risos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sinto-me muito aliviado por não vivermos nessa época com o PSD no poder!
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Mas, Sr. Deputado, onde eu pretendia chegar - e era essa a razão por que lhe recomendava este texto - era a que certos perigos do discurso mantêm-se. E não posso admitir que o Sr. Deputado, com base no programa do meu partido ou naquilo que os nossos deputados e eu próprio (faltou citar-me a mim) dissemos há sete ou catorze anos, daí extraia provas de incoerência. Como o Sr. Deputado Almeida Santos há pouco referiu: coerência sim, mas não no erro - na altura muita coisa nem teria sido erro - e, além disso, como explanei largamente no início desta sessão, nós mudamos porque o mundo e o País mudaram, nós mudamos porque temos sucessivos mandatos populares, mudamos de acordo com a vontade dos Portugueses e - é isto que importa sublinhar - não de acordo com factos e com evoluções ideológicas ocorridas em países longínquos. É esta a grande diferença entre nós: o Sr. Deputado pretende fazer terrorismo ideológico, diria mesmo terrorismo psicológico, amedrontando-nos com o nosso programa. Sabe que sou um revisionista e porventura até entendo que o referido programa deve oportunamente ser revisto e que, estando inspirado em Bernstein, dou importância decisiva ao movimento ... Não venha pois fazer terrorismo ideológico e psicológico quando ninguém sabe qual é a coerência do PCP! O que é que o PCP pensa hoje? Se lêssemos os documentos do seu partido desde a origem, se lêssemos os números do Avante, por exemplo, no período estalinista, e antes e depois da Guerra, e daí para cá, no período da estagnação, no período Brejnev, etc.., verificamos que constantemente mudaram e que hoje dizem exactamente o contrário ou, perdão, começam, a muito custo, a querer dizer o contrário do que há anos proclamavam!
Ora, os perigos do discurso projectam-se sobretudo no futuro. O Sr. Deputado José Magalhães tem de pensar - ainda por cima havendo actas - que os actuais perigos do discurso verificar-se-ão no futuro. Como disse ontem o Sr. Deputado Almeida Santos - e é pena que ele não esteja presente, pois louvo-me abundantemente nele, na medida em que temos pontos comuns nestas intervenções -, deve pensar no seu futuro! Ora, nós motivamo-nos por um objectivo que é permanente e que foi aquele que tentei definir no início desta tarde, ou seja, a promoção do bem comum. É esse o objectivo fundamental da política: a procura do bem comum, do bem-estar material e espiritual dos Portugueses, de acordo com a sua vontade. Para o alcançar os meios podem variar! É evidente que não podemos receber lições de coerência de um partido que se comporta de uma forma contrária a isto. Qual é a coerência ideológica do PCP? Como é que o PCP pode afirmar que não temos ideologia - e não posso deixar de protestar quanto a isso -, que a nossa única ideologia são as benesses do poder e outras malfeitorias, que não quero reproduzir, e, simultaneamente, vem dizer que o Sr. Deputado Pedro Roseta tem uma ideologia "assim e assado"? Cai evidentemente em contradição, a não ser que pretenda separar-me dos meus companheiros de bancada, o que não posso admitir.
Só que - e concluo - o Sr. Deputado enferma do erro do maniqueísmo, o Sr. Deputado arroga-se o direito de dizer, em cada momento, sublinho, o que é bem e o que é mal. Aquilo que é bem é, portanto, justo, e o Sr. Deputado, porque tem o monopólio do bem, tem a auto-autorização, a autojustificação para, em cada momento, mudar de posição, mas não a concede aos outros. No PCP ou fora dele, daqui a anos, o Sr. Deputado rir-se-á de tudo o que disse e meditará certamente nos perigos do discurso (não porque haja, graças a Deus, o perigo de ser assado mas o de ser ridicularizado, o que talvez seja igualmente mau) quando ler o que tem dito aqui.
Porém, o problema é de maniqueísmo porque o Sr. Deputado julga que o PCP pode mudar, como Le-nine mudou, como Estaline mudou, como Gorbachev muda, pode constantemente fazer inflexões ideológicas - ainda veremos a União Soviética e o PCP atrás, ou à frente, tanto importa...
O Sr. José Magalhães (PCP): - E mesmo ao lado!
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Ou ao lado, como queira. Vê-los-emos em pleno e escandaloso revisionismo, vê-los-emos a dar o dito por não dito, vê-los-emos a defender, além da Perestroika, a iniciativa privada, etc., etc., mas sempre com uma autojustificação de quem como possuidor da verdade nela está sempre, ainda que diga o contrário do que disse no mês anterior. Mas aos desgraçados que, dentro desta ideologia maniqueia, estão do lado do mal não os autoriza a mudar de posição. Aqui é que está - e é esta a razão que me levou a pretender o registo em acta- a denúncia do terrorismo ideológico que o Sr. Deputado tem feito, em que diz que o PCP é coerente porque tem a sua
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própria coerência, mas não admite que os outros a tenham. O PCP muda, está bem; os outros mudam, são incoerentes e outras coisas feias. É esta prática que tem de ser exautorada.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, não é regra na Comissão fazer protestos em diferido, com quatro ou cinco horas...
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Não foi um protesto, foi uma intervenção!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas V. Exa. não pôde aperceber-se com rigor desse facto porque não estava presente na altura em que encetámos o debate. Esta intervenção do Sr. Deputado Pedro Roseta é a réplica a uma intervenção por mim produzida em nome da minha bancada, no início deste debate, cerca das 16 horas e 30 minutos, sendo portanto o resultado da fumigação e da decantação do conjunto de considerações que, no espírito do Sr. Deputado Pedro Roseta, foram produzidas por algumas das observações que fiz e que constam da acta. Não vou responder-lhes agora, nesta sede...
O Sr. Presidente: - E que aqui dá por reproduzidas...
O Sr. José Magalhães (PCP): - É óbvio, sustentadas e reproduzidas...
Não vou, nesta sede, fazer uma réplica a esse nível. Apenas pudemos verificar que novamente se comprovou que quando a história se repete a primeira vez é, naturalmente, como tragédia, a segunda, não. Já tínhamos aqui tido o Sr. Deputado Pacheco Pereira, agora temos le même par d'autres moyens, com o mesmo espírito e, espero eu, não com as mesmas consequências. Porque repare-se: se formos reger os nossos debates pelo espírito e pela vontade de ter a última palavra e na verdade absoluta, se formos acabar os nossos debates taxando de maniqueu safado aquele que é nosso adversário político...
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Maniqueu safado?
O Sr. José Magalhães (PCP): - O "safado" é aditamento meu, mas não negue que vai bem de acordo com o resto do seu discurso...
Por isso, Sr. Presidente, ninguém pode ter a intensão nesta Comissão de amedrontar quem quer que seja porque é quase tudo gente crescida que já não usa bibe nem cede ao terrorismo ideológico. Nesse sentido, deixaria completamente de lado a preocupação de encerrar por mim qualquer coisa que é insondavelmente aberta, desejavelmente aberta, o que decorre precisamente da tolerância democrática, base inabalável do funcionamento da instituição parlamentar. Por isso estamos aqui e, por isso, face a um acordo tão monstruoso como o celebrado entre o PS e o PSD, não renunciámos a vir discuti-lo aqui. E recusámos o terrorismo ideológico tendente a inculcar a ideia no povo português de que a revisão estava feita e de que dois homens de pedra e cal, numa bela tarde, decidiam o futuro do País. Vê-se, rapidamente, como dois homens de pedra e cal não decidem o futuro do País e, até, como dos dois homens, um deles não exerce já as funções que exercia na véspera. É uma boa lição para as pessoas que julgam que erguendo a voz, ou fazendo terrorismo ideológico, ou assumindo maiorias num determinado momento conjuntural, podem decidir para sempre o destino dos demais e traçar mapas e caminhos obrigatórios para todos os outros. Isso, como é óbvio, não aceitamos.
Termos em que, Sr. Presidente, estamos completamente disponíveis para continuar o debate.
O Sr. Presidente: - Eu é que fiquei ligeiramente amedrontado porque amanhã vamos começar por discutir a "Soberania e legalidade", que é a epígrafe do artigo 3.°, e não estou bem a ver como é que alguma das considerações ultimamente produzidas se enquadrarão nisso. Percebo que, por vezes, é necessário fazer alguns excursos. Portanto, eles estão feitos.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - É evidente, Sr. Presidente.
A nossa posição já é conhecida. Ela já foi aqui exposta e fica a constar das actas. Portanto, penso que não é necessário voltar aqui a repeti-la.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Remete-se para a acta n.° 60. Estou de acordo, Sr. Presidente.
O Sr. Presidente: - Se o método fosse seguido por todos os Srs. Deputados muito, aceleraríamos os nossos trabalhos.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Que mau!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Se assim taxarmos o adversário .que se opõe do ponto de vista político, do ponto de vista ideolólgico, a todas as coisas que nós dissemos e que é de admitir que acreditemos, então os debates na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional complicar-se-ão muito na primeira leitura, e mesmo na segunda leitura, para já não dizer no Plenário. É uma questão de gosto! Os perigos do discurso - como a história desta Comissão e a história da vida em geral ensina - são multilaterais e são tão perigosos os perigos do discurso inicial como os do discurso secundário ou da réplica ... O que quer dizer que quando se lança uma pedra pode não se obter, em resposta, uma orquídea mas um pedregulho...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, o meu grupo parlamentar vai ter isso em conta, como, aliás, tem sucedido desde o primeiro momento de actividade da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Essa é um boa aquisição, Sr. Deputado! Valeu a pena a minha intervenção!
Vozes.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, está encerrada a reunião.
Eram 19 horas e 25 minutos.
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Comissão Eventual para a Revisão Constitucional
Presidente: Rui Manuel Parente Chancerelle de Machete (PSD).
Vice-Presidente: António de Almeida Santos (PS). 
Secretário: José Manuel Santos de Magalhães (PCP). 
Secretário: Carlos Manuel de Sousa Encarnação (PSD). 
António Costa de Albuquerque de Sousa Lara (PSD). 
José Augusto Ferreira de Campos (PSD). 
José Luís Bonifácio Ramos (PSD). 
Licínio Moreira da Silva (PSD). 
Luís Filipe Garrido Pais de Sousa (PSD).
Manuel da Costa Andrade (PSD).
Maria da Assunção Andrade Esteves (PSD).
Mário Jorge Belo Maciel (PSD).
Miguel Bento Martins da Costa de Macedo e Silva (PSD).
Pedro Manuel Cruz Roseta (PSD). 
Rui Manuel Lobo Gomes da Silva (PSD). 
Alberto de Sousa Martins (PS). 
António Manuel de Carvalho Ferreira Vitorino (PS). 
Jorge Lacão Costa (PS). 
José Luís Nogueira de Brito (CDS).