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Terça-feira, 29 de Novembro de 1988 II Série - Número 59-RC
DIÁRIO da Assembleia da República
V LEGISLATURA 1.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1987-1988)
II REVISÃO CONSTITUCIONAL
COMISSÃO EVENTUAL PARA A REVISÃO CONSTITUCIONAL
ACTA N.° 57
Reunião do dia 28 de Outubro de 1988
SUMÁRIO
Deu-se continuação à discussão do primeiro relatório da Subcomissão da CERC respeitante ao preâmbulo e aos artigos 1.° a 11.° e respectivas propostas de alteração.
Durante o debate intervieram a diverso título, para além do presidente, Rui Machete, pela ordem indicada, os Srs. Deputados Almeida Santos (PS), Pais de Sousa (PSD), José Magalhães (PCP), António Vitorino (PS), Sousa Lara (PSD), Pedro Roseta (PSD), Guilherme da Silva (PSD) e Mário Maciel (PSD).
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O Sr. Presidente (Rui Machete): - Srs. Deputados, temos quorum, pelo que declaro aberta a reunião.
Eram 11 horas e 20 minutos.
Srs. Deputados, vamos iniciar os nossos trabalhos com a análise do artigo 3.°, que tem como epígrafe "Soberania e legalidade".
Há uma proposta do CDS, que, no fundo, se traduz na supressão do n.° 2.
Há uma proposta de alteração ao n.° 3, do PS.
Há uma proposta de alteração ao n.° 2, do PSD.
O Sr. Deputado Sottomayor Cárdia também apresenta uma proposta de alteração e uma outra de supressão a um dos números do artigo 3.°
O mesmo se diga da proposta apresentada pela Sra. Deputada Helena Roseta.
O CDS não se encontra aqui presente para justificar a sua proposta.
Assim, gostaria de saber se o PS quer justificar sucintamente as razões da sua proposta de alteração.
Pausa.
Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Presidente, a nossa proposta tem uma justificação muito simples.
Pensamos que talvez seja bom pôr termo ao equívoco permitido pela actual redacção do n.° 3, segundo o qual pode parecer - aliás, tem havido tendências interpretativas nesse sentido - que as regiões autónomas e o poder local não fazem parte do Estado. Segundo uma determinada concepção, que no meu entender é a mais correcta, estas também fazem parte do Estado. Portanto, em vez de "A validade das leis e dos demais actos do Estado" das regiões autónomas e do poder local" dir-se-ia "A validade das leis e dos demais actos do Estado, incluindo as regiões autónomas e as autarquias locais"...
Não fazemos grande questão nesta proposta. Se ela não for aprovada não ficaremos infelizes. Pode até vir a criar problemas interpretativos. As regiões autónomas poderão inclusive pensar que é "birra" nossa para criar desagrados. De facto, não é! É apenas um primor técnico. Portanto, os outros partidos estão à vontade para aprovar ou não a nossa proposta, sem que isso constitua para nós a nossa proposta, sem que isso constitua para nós qualquer problema.
Não temos grande disponibilidade para aprovar qualquer das outras propostas. Já na discussão na generalidade que fizemos em outros locais dissemos que a adição da expressão "e ao direito" pode gerar alguma confusão.
Não percebemos qual é a razão de ser da proposta de eliminação do actual n.° 2. Não sabemos se isso é lapso ou se é intencional. De resto, a proposta é igual às restantes. Não merece o nosso apoio.
As propostas dos Srs. Deputados Sottomayor Cárdia e Helena Roseta, que são coincidentes, eliminam também o actual n.° 2. Estas duas propostas também não merecem o nosso apoio.
Assim, das duas uma: ou votamos a nossa proposta ou defendemos a manutenção da actual redacção do artigo 3.° Qualquer das soluções nos serve.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Pais de Sousa.
O Sr. Pais de Sousa (PSD): - Sr. Presidente, o PSD propõe para o n.° 2 do artigo 3.° a eliminação da expressão "e funda-se na legalidade democrática" e a introdução do inciso "às leis e ao direito".
O n.° 2 reafirma o princípio da constitucionalidade do Estado, segundo o qual este encontra-se submetido à lei fundamental - não é sujeito, mas, sim, objecto da Constituição, o que co-envolve, em certo sentido, a própria ideia de constituição.
As razões que nos levam a propor esta alteração devem ser procuradas nos debates ocorridos quer no âmbito da primeira revisão quer no âmbito da própria Assembleia Constituinte. A expressão "legalidade democrática" é, de certa maneira, equívoca. No entanto, ela parece abranger os princípios ou regras do Estado de direito democrático. Alguns autores questionam-se, aliás, se com isto se quer expressar uma ideia de submissão das autoridades públicas à lei formal.
Quanto à proposta do PSD, nós entendemos que se justifica a clarificação da norma. Quando propomos a introdução do inciso "e ao direito", entendemos que os valores materiais do direito devem ser considerados para aiém ua mera lei positiva. No fundo, é o tal apelo ao princípio ético-jurídico a que já tínhamos feito alusão quando se tratou de anotar a alteração proposta para o artigo 208.° Quanto a nós, esta expressão "e ao direito" deve ser entendida em sentido objectivo. No fundo, o Estado aceita os valores de justiça que são anteriores à sua própria existência; portanto, o Estado deverá respeitar as formas jurídicas - deverá, de alguma maneira, subordinar-se ao princípio da juridicidade.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, dada a disposição já manifestada pelo Partido Socialista, penso que não se justifica alongarmo-nos muito na discussão desta matéria. Em todo o caso, gostaria de comentar as propostas de alteração apresentadas pelos diversos partidos e pelos Srs. Deputados que as formularam de forma independente.
Em relação à proposta do Partido Socialista, gostaria de dizer o seguinte: compreendo a sua preocupação, a sua razão de ser, mas a verdade é que no n.° 3 estamos a discutir uma questão que, normalmente, se aborda com a epígrafe "Legalidade" - de resto, é essa a epígrafe que o artigo tem.
A meu ver, não tem muito sentido dizer "incluindo", porque naquilo que diz respeito à legalidade as regiões autónomas e as autarquias - e por que não também as regiões administrativas, os institutos públicos e as outras pessoas colectivas de direito público - não estão abrangidas no conceito de Estado. São conceitos distintos.
Essa clarificação visa, por um lado, compreensíveis efeitos políticos, mas, por outro lado, introduz confusão, porque aquilo que se está a tratar é da legalidade. Ora, no que diz respeito à legalidade, o conceito de Estado não abrange, efectivamente, as entidades que têm em relação a ele uma personalidade jurídica distinta.
Portanto, se o Partido Socialista pretendia - o que, aliás, me parece desnecessário, visto que essa ideia já está suficientemente clara na redacção do actual n.° 3 - encontrar uma fórmula para traduzir essa ideia, não podia, a meu ver, ir pela via que escolheu.
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No que diz respeito à proposta apresentada pelo CDS de supressão do n.° 2 da redacção actual, penso que ela não é conveniente, na medida em que é importante dizer que o Estado se subordina à Constituição.
A ideia de que o Estado se funda na legalidade democrática não é uma fórmula muito feliz ou um pensamento perfeitamente claro. Estamos a tratar de problemas relacionados com a legalidade e com a soberania. Parece-me bem dizer no n.° 1: "A soberania, una e indivisível, reside no povo, que a exerce segundo as formas previstas na Constituição." É aí que está o cerne e o fundamento do Estado. Dizer que o Estado se funda na legalidade democrática pode querer traduzir a ideia de que a legitimidade dos actos do Estado resulta da circunstância de ele obedecer ao princípio da legalidade. No entanto, esta fórmula também pode dar uma outra ideia que, de algum modo, teve os seus afloramentos num determinado momento do processo político português, mais precisamente na altura revolucionária - e não em 1974, mas sim em 1975 -, e que é a de uma certa concepção muito restritiva daquilo que se entende por democracia e por aquilo que é a legalidade em democracia. Portanto, o Estado, em rigor, funda-se na circunstância de haver um poder constituinte, de que é titular o povo. Não se funda na legalidade democrática, embora o respeito por esta possa corresponder a uma ideia de lhe assegurar a legitimidade no seu funcionamento, o que são coisas distintas.
Por outro lado, temos a questão da subordinação ao direito. A ideia de direito não se traduz apenas - embora também o seja - na hipótese de se abrir para uma referência a um ordenamento jurídico supra-positivo, que é uma questão que depende dos intérpretes e das concepções de quem aplique a Constituição, visto que aí temos uma discussão ou um diálogo bastante similar àquele que tivemos a propósito da interpretação a dar no artigo 2.° à questão da democracia económica, social e cultural. Diz também respeito à necessidade de não excluir, e de o afirmar de uma maneira inequívoca, a subordinação aos princípios gerais de direito. Os princípios não são normas legais, não são preceitos jurídicos, mas são conformadores do ordenamento jurídico e desempenham um papel essencial na estruturação dos ramos de direito e até nas garantias dos cidadãos. Penso, por exemplo, no direito constitucional e no direito administrativo.
Portanto, não me parece que a proposta que nós apresentámos mereça uma crítica tão desdenhosa como aquela que foi formulada pelo Partido Socialista. Compreendemos que, por razões que resultam da economia da vossa proposta e do contexto histórico em que ela se desenvolveu, não estejam abertos a essa consideração. Parece-me que o que está aqui em causa são razões exteriores ao mérito da mesma - pelo menos naquilo que foi explanado.
Pausa.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, gostaria de emitir um juízo sobre as propostas em debate.
Curiosamente, nenhum dos proponentes tocou na única questão cuja provável discussão e clarificação poderia ter alguma utilidade.
O artigo que estamos a debater foi objecto de algumas alterações na primeira revisão constitucional. O anterior artigo 3.° estabelecia no seu n.° 4 que "O Estado está submetido à Constituição" e não "O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade democrática". O actual n.° 3 resulta apenas da reinserção sistemática - de resto correcta - do antigo artigo 115.°
Com as obras feitas na primeira revisão constitucional aquilo que veio a ressaltar foi o seguinte: a epígrafe fala daquilo que o artigo não trata e aquilo que o artigo trata não tem projecção na epígrafe, já que o tema dominante do artigo são as diversas dimensões da constitucionalidade, e aquilo que se aborda é todo o conjunto de afloramentos desse princípio basilar estruturante do Estado de direito democrático. São, quanto a mim, secundárias as reflexões sobre o alcance do que seja o facto de o Estado se fundar na legalidade democrática, coisa em que vejo uma relação de submissão à legalidade democrática tal qual ela resulta do processo de produção dos actos de vontade, designadamente no plano normativo, dos órgãos de soberania que têm poder legislativo. Não consigo ver aí um afloramento de qualquer concepção restrita do que seja a democracia, pele menos com o sentido (amplo) em que a Constituição a consagra na sua versão actual - assim a mantivesse, coisa que infelizmente não é indiciada por alguns consensos pactuados em matéria de revisão. Essa, sim, é nossa preocupação. Não creio que haja grande vantagem em alterar a Constituição neste ponto. Pelo contrário, poderia haver desvantagem, sobretudo na versão do PSD.
Curiosamente, o PSD expurga e adita. Expurga o "democrático" e adita o "direito": o direito não qualificado e o democrático com a qualificação que é sabida.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, nós não expurgamos o "democrático". Expurgamos, sim, a expressão "legalidade democrática", o que é radicalmente diferente. É só uma questão de precisão.
O Sr. José Magalhães (PCP): - o Sr. Presidente sabe perfeitamente...
O Sr. Presidente: - Por saber isso perfeitamente é que digo isso, Sr. Deputado.
O Sr. José Magalhães (PCP): - V. Exa. conhece a génese do conceito da legalidade democrática e a preocupação de qualificação da legalidade, ultrapassando a postura idolátrica de respeito pelo direito (qualquer que ele seja) e pela lei (qualquer que ela seja) - num positivismo bastante raso ao chão, que pode conduzir ao cumprimento de uma legalidade antidemocrática em homenagem a uma obediência abstracta à lei. Os constituintes portugueses reflectiram neste texto demasiados anos de submissão a um quadro constitucional que tinha entre as suas matrizes fundamentais esta componente que acabei de descrever. A opção pela utilização frequente da expressão "legalidade democrática", que tem, como é óbvio, dificuldades hermenêuticas, é marcada pela necessidade de um contraste na parte negativa e pela necessidade de uma apologia e até de uma pedagogia democrática na outra vertente. Assim,
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enveredou-se pela não alusão à noção inqualificada apenas de lei, mas a referência reiterada à noção complexiva de legalidade democrática. Substituí-la para quê? Para substituí-la pela noção de "lei e de direito" à la Reagan/Bush? É que, ainda por cima, isso foi justificado pelo Sr. Deputado Pais de Sousa com uma alusão aos diáfanos "valores materiais do direito" - e suponho que direito com maiúscula, embora na vossa proposta esteja com minúscula, mas é um lapso - e "entendido em sentido objectivo". É um mau caminho. Enxertar na matriz constitucional em sede de princípios fundamentais, o que tem um valor conformador que não escapará a ninguém, esta noção ou esta alusão ao direito assim recebido e assim tornado em elemento ao qual o Estado está subordinado, em termos paralelos ao da Constituição (e até, como certos Srs. Deputados o entendem, anterior à própria Constituição como elemento fundante, anterior à própria Constituição e dela própria conformador), é, como se sabe, um caminho que abre portas que podem conduzir, através de uma auto-estrada, a noções susceptíveis de pôr em causa a própria legalidade democrática em nome de uma contradição com o Direito, com maiúscula, como deve ser quando se começa a beber a água na qual o PSD pousou os lábios sem ousar ir até ao fim. É isso que nos preocupa e é isso que nos parece não merecer consagração, até porque poderia ter desenvolvimentos preocupantes no próprio domínio da aplicação do direito, onde, como se sabe, na experiência revolucionária portuguesa resultante da ruptura operada pelo 25 de Abril originou alguns litígios que tiveram afloramentos no próprio sistema judicial português. Os Srs. Deputados não desconhecem seguramente algumas reivindicações e pretensões jurídicas introduzidas perante os tribunais portugueses com base, precisamente, na invocação de disposições de direito contra não só a legalidade democrática como a própria Constituição da República. Não estou a pensar obsessivamente em certos poucos cidadãos que se consideram "esbulhados" (seguramente foram esbulhados dos seus privilégios!), mas os exemplos abundam e coíbo-me de desenvolver ulteriores considerações sobre a matéria.
Como o Sr. Deputado Pais de Sousa manifestava desejo de interromper, se V. Exa., Sr. Presidente, estiver de acordo, por mim não me oporei a tal.
O Sr. Pais de Sousa (PSD): - É que das palavras do Sr. Deputado José Magalhães parece inferir-se que a Constituição não assegura suficientemente o princípio democrático, que resulta claríssimo e está expresso ou plasmado suficientemente. Mas das suas palavras parece retirar-se que o princípio democrático não consta do normativo. Ou tem de estar em todos os artigos o princípio democrático?
O Sr. José Magalhães (PCP): - É evidente, Sr. Deputado Pais de Sousa, que não tem de estar em todos os artigos! Se estivéssemos a escrever uma Constituição inserindo numa folha branca as palavras artigo 3. ° e se, por acaso, não estivesse escrito na página que agora estamos a debater aquilo que está escrito (e está-o há muitos anos e ainda por cima tem uma vasta sedimentação e elaboração doutrinal jurisprudencial, administrativa, burocrática, até parlamentar), teríamos um outro grau de latitude para fazermos
as opções de redacção. Como aquilo de que se trata é de fazer uma mutação por via de supressão, não se trata de prótese nenhuma. A prótese que o PSD faz é a de insersão de um conceito de direito inespecificado, indeterminado," de resto com algum ranço ideológico, que não nos surge qualificado de forma alguma e que pode surgir contraposto. É apenas isto que sublinho. Portanto, VV. Exas., ao tirarem e ao porem, não tiram nem põem de forma inocente: aquilo que põem não nos parece correcto e aquilo que tiram parece-nos que está bem. Não creio, Sr. Presidente, que pudesse sintetizar em menos palavras a ideia que gostaria de exprimir.
Em relação aos outros aspectos quero sublinhar que entendo a proposta apresentada pelo PS. Compreendo, no entanto, as objecções que foram aduzidas pelo PSD, pois é evidente que sabemos que a organização do Estado democrático português nos planos horizontal, vertical, etc., compreende uma novidade enorme, que é a existência das regiões autónomas e de um poder local democrático. Este e aquelas não poderiam ter em relação à legalidade democrática, à Constituição, senão um nexo de subordinação estrita. Mas a transmutação do Estado" para esta noção em que se estabelece uma noção de inclusão, que verdadeiramente nada tem a ver com o conceito original da Constituição nem com o conceito da Constituição revista neste ponto, parece-nos oferecer nas dificuldades que o Sr. Deputado Rui Machete pôde evidenciar. Realmente do que se está a falar no n.° 3 é da "validade das leis e dos actos do Estado" como tal - incluindo os actos políticos, os actos de Governo, os actos não normativos -, e depois dos actos próprios, incluindo no plano normativo, das regiões autónomas e do poder local, na sua estrita medida e com os mecanismos de sancionamento que existem.
São coisas diferentes do ponto de vista conceptual. Verdadeiramente sabendo-se isto tudo no que diz respeito à organização do Estado democrático, não sentimos necessidade de fazer esta aclaração. Tendo a vantagem que se torna evidente, a proposta do PS acarreta também problemas que ficaram equacionados. O que quer dizer que, muito provavelmente, teremos contribuído para alguma aclaração interpretativa, mas não vejo, em termos de redacção, que esta ultrapasse as dificuldades que foram enunciadas.
O Sr. Almeida Santos (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador)... na altura pareceu-nos que era clarificador, mas afinal é capaz de levantar mais problemas do que os que resolve. Não fazemos questão, não vale a pena preocuparem-se com isso.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Esta norma chama a atenção para um outro aspecto que acabámos por suscitar, mas não nesta sede. Esta norma promete aquilo que a Constituição não dá, designadamente a do n.° 3. Promete um sistema de fiscalização da desconformidade com a Constituição dos tais "demais actos do Estado, incluindo as regiões autónomas e as autarquias locais...", nos casos em que essa desconformidade se verifique. Pude constatar que na parte do acordo aberto PS/PSD este aspecto não é contemplado e, designadamente, não há nenhum sinal, nenhum indício de qualquer pré-entendimento dos dois partidos...
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O Sr. António Vitorino (PS): - Na única parte existente do acordo!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Na única parte existente do acordo não há nenhuma menção a este aspecto, admitindo, portanto, que o acordo é existente ou subsistente, como diz o Sr. Deputado Ferreira de Campos...
O Sr. Almeida Santos (PS): - Consistente!
O Sr. José Magalhães (PCP): - ... e mesmo "consistente" na opinião do Sr. Deputado Almeida Santos...
O Sr. António Vitorino (PS): - O ar guloso do Sr. Deputado Carlos Brito ontem na televisão reforça a consistência do acordo. Temos essa dívida de gratidão.
Risos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Eu estava a referir-me, Sr. Deputado António Vitorino, eu próprio, com ar "guloso", à questão da ausência de uma forma de garantia e de efectivação desta promessa constitucional contida no n.° 3 do artigo 3.° Se verdadeiramente se entra agora nos meandros de saber como é que esse entendimento se pode fazer, se na base do parágrafo "vinte e quatro" do acordo PS/PSD ou na base de um entendimento alargado entre os partidos com assento na Comissão, pelo menos como princípio de pagamento desta promessa constitucional, creio que esse seria o único aspecto neste ponto relevante. Os demais seriam ou aperfeiçoamentos minudentes ou então seriam susceptíveis de introduzir aí, onde a Constituição é clara, uma ambiguidade perturbadora. No caso da proposta do PSD, essa ambiguidade não seria ambiguidade nenhuma: seria uma opção perturbadora e constituiria um recuo sério em relação ao texto constitucional na sua versão revista, neste caso revista no sentido positivo.
O Sr. Presidente: - Penso que não se justificará estarmos aqui a debater esta matéria. Gostaria apenas de referir que quando nós propomos a supressão da expressão "legalidade democrática", também estamos a pensar no fundamento da legalidade democrática, porque nos parece que uma referência, em termos com um certo ressaibo "rousseauniano", ao fundamento do Estado, em termos de legalidade democrática, é um pouco esdrúxulo, mas não é uma matéria que valha a pena estarmos, neste momento, a debater.
É evidente que não subscrevemos nenhuma das considerações que o Sr. Deputado José Magalhães fez acerca das intenções e sobretudo do juízo de que seria um retrocesso. Mas, enfim, isso é natural. V. Exa. considera que é um progresso esta expressão, nós achamos que ela é confusa e ainda é um ressaibo de um certo momento histórico. Não tem excessiva importância, apesar de tudo.
Vamos passar ao artigo 4.° "Cidadania portuguesa". Neste há apenas uma proposta de alteração e de aditamento por parte do CDS. Não podemos beneficiar da introdução por parte do CDS; assim, faríamos uma rápida rodada para avaliar das probabilidades que esta proposta tenha de vir a ser considerada susceptível do consenso.
No que diz respeito ao PSD, e para adiantar já, diria que preferimos, claramente, manter a redacção actual. Não nos parece, naturalmente, que aquilo que seja proposto pelo CDS seja mau; parece-nos que é correcto, mas o que não se nos afigura útil é estarmos, neste momento, a alterar a redacção actual, porque ela já diz, em última análise, quando convenientemente interpretada, que todos os cidadãos portugueses que residam em Portugal ou no estrangeiro - depende da maneira como a lei os define - pertencem ao povo português. E também é sabido, faz parte da tradição constitucional portuguesa, que as condições de aquisição e perda da nacionalidade portuguesa, que são objecto de outras considerações na Constituição, são obviamente uma matéria materialmente constitucional. Mas que são definidas, desde há várias Constituições, não como na Carta Constitucional, na lei fundamental, mas na legislação ordinária. Não parece útil estar a dizer uma coisa que é óbvio, isto é, que a lei terá de definir as condições de aquisição e perda da nacionalidade portuguesa.
Portanto, e sem estarmos contra a doutrina, não somos favoráveis à inclusão destas precisões, por nos parecerem desnecessárias, no artigo 4.° da Constituição.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Sobre essa proposta do CDS, muito sucintamente diríamos o seguinte: consideramos que ela não enriquece o texto constitucional. Percebemos que a Constituição deva dizer quem é cidadão português. Não percebemos já tão bem que deva definir um conceito de povo português, até porque, segundo um conceito restrito de cidadãos, ficam de fora as crianças. Acho que é uma maldade que não se deve fazer às crianças, que são, como se sabe, o melhor do mundo, não devendo por isso ficar fora do povo.
Também relativamente ao n.° 2 achamos que seria um erro constitucionalizar o princípio do jus sanguinis como base da atribuição da nacionalidade. Nunca felicitei a maioria que na altura apoiou esta consagração na lei ordinária. Acho que qualquer dia não teremos a mínima possibilidade de saber quem é e não é português, desde que o vínculo da nacionalidade se baseie no sangue e não no território. Pôr isto na Constituição é, na verdade, rigidificar a asneira, ou pelo menos consolidá-la, em termos que parecem perfeitamente inaceitáveis. Por isso mesmo não temos a menor abertura a aprovar a proposta do CDS. Quando muito, teríamos alguma abertura em pura sede semântica e por ter havido esta proposta para melhorarmos a redacção do artigo; por exemplo: "são cidadãos portugueses todos aqueles que como tal sejam considerados...." Acho que é possível escrever isto em termos mais escorreitos. Bastava, por exemplo, dizer: "são cidadãos portugueses todos os que como tal..." Mas, enfim, é um problema formal que não tem significado de maior. Poderíamos aproveitar para corrigir a forma, mas não o significado, que me parece perfeitamente correcto. A proposta não enriquece e a meu ver distorce.
O Sr. Presidente: - Mais algum Sr. Deputado deseja intervir?
Pausa.
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Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Pela parte do PCP não vemos igualmente vantagem na alteração do artigo. A sua correcção, puramente literária, não se nos afigura útil. Em todo o caso, creio que será necessário ponderar alguns problemas. Não sei se será esta a sede nem o momento mais adequado.
É evidente que a opção constitucional pela não definição de critérios para a atribuição da cidadania portuguesa é uma opção questionável, muito questionada, e deu origem também a uma evolução perniciosa, cuja consumação adiante ainda pode ser mais perniciosa do que é neste momento. Encaramos, como é público, com alguma preocupação as consequências da gestão proficiente da actual lei da nacionalidade, designadamente em relação à vertente da concessão da nacionalidade e ao regime da sua manutenção, que pode ter implicações que nenhum de nós é capaz de avaliar com rigor, designadamente se tivermos em conta a projecção de tudo isso no nosso universo político e no funcionamento das instituições democráticas. Esse é um aspecto fulcral.
A decisão para que aponta o CDS vem enformada por um determinado conceito e por um determinado desígnio. O CDS não tem grande peso no presente momento e espero que não o venha a ter no futuro. Porém, a conjugação desta proposta com as propostas que o PSD ousou formular, embora não tenham passado a acordo (até à data, pelo menos), seria nefasta. Nada disto é suscitado, em bom rigor, pelo quadro actual de vontade dos diversos partidos com assento na Comissão. A proposta parece excluída.
O que não parece excluído e merecerá alguma ponderação é o que decorre do facto de os membros da Comissão de Negócios Estrangeiros terem suscitado formalmente à Comissão em 20 de Julho deste ano...
O Sr. Almeida Santos (PS): - A que horas?
O Sr. José Magalhães (PCP): - A uma hora em que o PS estava bastante distraído, pois nessa altura estava a negociar, freneticamente, o acordo em busca de uma solução final, que no entanto não veio a ser elaborada em Julho, como se sabe.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Isso era uma piada para o Dr. Vitorino!...
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não era só para o Dr. Vitorino. Em todo o caso, a proposta merece alguma ponderação. Os Srs. Deputados da Comissão de Negócios Estrangeiros tiveram em atenção os trabalhos em curso na Constituinte Brasileira ainda antes da aprovação final do texto da Constituição. Tiveram em conta, designadamente, que numa das disposições dessa Contituição, no artigo 11.°, há uma norma que prevê que "aos portugueses com residência permanente no País, havendo reciprocidade em favor dos brasileiros, podem ser atribuídos os direitos inerentes ao brasileiro nato, salvo os casos que a Constituição Brasileira prevê". Isso teria que ter alguma implicação em relação às disposições da Constituição Portuguesa? Se se pretende considerar esta situação e se se pretende fazer o debate dessa matéria, a proposta do CDS pode
viabilizar a janela ou o pórtico para ao qual se imagina uma discussão constitucional correcta. Sobre o conteúdo dessa disposição constitucional devo dizer que teríamos necessidade de fazer alguma reflexão adicional, uma vez que não pudemos considerar todas as implicações da sugestão legislativa apresentada pela Comissão de Negócios Estrangeiros. Não gostaria, porém, Sr. Presidente, de deixar de fazer a menção na sede própria, que creio ser esta, e não tanto o artigo 15.°
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Sousa Lara.
O Sr. Sousa Lara (PSD): - É apenas para um esclarecimento. Faço parte da Comissão de Negócios Estrangeiros e sou um dos signatários da proposta, mas entretanto houve uma evolução no processo constituinte brasileiro, que convém ficar registada. É que já não se trata de uma proposta, mas sim de um artigo aprovado - dos poucos que foi aprovado por unanimidade - e daí pensar eu que este novo dado deve ser tido em consideração pela Comissão.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Já agora, se me permite, Sr. Presidente, sublinharia que o texto que foi sugerido, embora segundo uma técnica que introduzia este conteúdo normativo no artigo 15.° da Constituição, diz: "aos cidadãos dos países de língua portuguesa podem ser atribuídos, mediante convenção internacional e em condições de reciprocidade, direitos não atribuídos a estrangeiros, salvo o acesso à titularidade das presidências dos órgãos se soberania, das regiões autónomas, as funções de ministro de Estado, o serviço nas Forças Armadas e a carreira diplomática"; "a reciprocidade pode decorrer de instrumentos internacionais já celebrados e de direitos efectivamente consagrados nas constituições dos países contratantes". Não me pronuncio sobre a redacção em concreto.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.
O Sr. António Vitorino (PS): - Era para, simultaneamente, dar um esclarecimento ao Sr. Deputado José Magalhães e colocar uma questão. O esclarecimento é de que no dia 20 de Julho passei a manhã na Faculdade de Direito de Lisboa, à tarde tive uma reunião com a direcção do PCP entre as 15 horas e 30 minutos e as 17 horas e a partir dessa hora estive aqui na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Não vai referir certamente a noite?
O Sr. António Vitorino (PS): - Também está escrito na minha agenda: noite livre!
Risos.
O Sr. José Magalhães (PCP): - É que isso podia ser a parte menos picante.
O Sr. António Vitorino (PS): - Portanto, se estive a negociar nesse dia com alguém, foi com o PCP. Foi azar esse de escolher o dia 20 de Julho. É que podia ter escolhido outro dia da semana, esse foi o único...
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O Sr. José Magalhães (PCP): - O Sr. Deputado tem um enormíssimo inconveniente de guardar as agendas, o que no futuro se pode revelar absolutamente imprevidente...
O Sr. António Vitorino (PS): - É para quando for preso poder responder por todos os crimes e não só por alguns...
Agora quanto à pergunta que queria colocar é a de saber se o problema que é colocado pelo ofício da Comissão de Negócios Estrangeiros carece de consagração constitucional? Isto é, se não é matéria que não tenha já base constitucional suficiente e se, portanto, sequelas imagináveis de mecanismos desse tipo não devem ser ponderadas devidamente em sede de lei ordinária e não através de uma consagração constitucional algo proclamatória, mas que pode ter o defeito de excessiva rigidez.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Não tem muito sentido uma norma constitucional que diz: "as coisas serão aquilo que a lei disser que são". Mas já que cá está... Mas recomendava, sem tomada de posição, pois, que em saiba, o meu partido ainda não se pronunciou sobre esta matéria, aos meus queridos amigos - e a minha idade já me permite fazer recomendações, que é uma figura que só as pessoas da minha idade têm o direito de usar - muito cuidado e muita prudência na consagração dessa coisa sedutora (reconheço que o é) da dupla nacionalidade. É que é fácil a um país como o Brasil - e desde já declaro que a Constituição Brasileira, tanto quanto a conheço, não é uma Constituição que deva ser tomada como paradigma em todos os seus dispositivos, bem como, aliás, nenhuma Constituição -, uma vez que tem 150 milhões de habitantes, fazer esse "bonito" relativamente a uma espécie de mãe-pátria originária que tem apenas 10 milhões de habitantes, é fácil. Agora um país de 10 milhões de habitantes, que tem os problemas populacionais que nós temos, fazer o mesmo em relação a um país de 150 milhões de habitantes, que pode ter a qualquer momento uma crise grave na sua vida - e imaginemos o que pode acontecer no dia em que isso suceder -, parece-me uma questão que requer muita paciência.
Por outro lado, acontecendo isso em relação ao Brasil, é perfeitamente irrecusável que venha a acontecer em relação a todos os demais países de expressão portuguesa. Eu só recomendo prudência. Muita prudência, do ângulo de uma velha experiência e não mais do que isso. Nada de entusiasmos. Todas as cautelas são poucas. Portugal é um país pequenino, com muitas fragilidades, e não podemos dar-nos ao luxo de fazer todos os "bonitos" que apetecem à nossa inteligência e até à nossa alma. Neste caso, não tenho dúvida de que me apeteceria.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, há uma observação do Sr. Deputado António Vitorino - para além da natural predisposição cautelar que, numa matéria deste melindre, todos nós devemos ter e que foi lembrada pelo Sr. Deputado Almeida Santos - que gostaria que a Comissão tomasse em devida atenção.
É que, embora de um ponto de vista político compreendamos que possa ter um significado diferente a consignação no nível constitucional de uma norma, a verdade é que a legislação ordinária hoje já tem algumas normas que atendem a aspectos de ligações particulares com Estados que falam a língua portuguesa. Por outro lado, a consagração no texto constitucional implica um grau de rigidez que torna mais difícil, porque mais exigente, a formulação que venhamos a adoptar e que tem os inconvenientes da sua dificuldade de adaptação às circunstâncias futuras, ainda por cima com o significado político de qualquer alteração, caso venha a ter de ser feita e mesmo que seja apenas - como aliás é natural que aconteça - um puro afinamento do ponto de vista técnico. Por conseguinte, diria que devemos ponderar este problema.
O Sr. Deputado José Magalhães tem razão quando, de um ponto de vista puramente técnico, diz haver aqui uma abertura para resolver o problema - no caso de querermos introduzir uma norma constitucional -, visto que há uma proposta de alteração da Constituição formulada pelo CDS, e, muito embora uma eventual alteração ulterior pouco tenha a ver com aquilo que é o conteúdo material da proposta presente, temos a liberdade de considerar o problema.
As questões foram postas, não estamos neste momento ainda em condições de votar na segunda leitura - com o valor que essas votações terão aqui na Comissão - e a questão foi objecto de uma reflexão que me parece útil e que fica pró memória para considerarmos a possibilidade de haver um texto proposto que regule esta matéria.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, a ideia de suscitar esta questão resultou das razões que acabou de explicitar. Creio que o facto de termos tido de travar este debate foi em si mesmo útil. Em todo o caso, o quadro ficaria incompleto se não procurasse salientar dois ou três aspectos, designadamente o que diz respeito à problemática geral da Constituição e ao direito dos estrangeiros, tal qual pode resultar desta revisão constitucional.
As propostas do CDS nesta matéria são as mais radicais - radicais num sentido que entendo negativo. O CDS em relação ao artigo 15.° começa logo por propor que as actuais restrições ao acesso possível de cidadãos de países de língua portuguesa sejam diminuídas no sentido de deixarem de abranger as actualmente referentes ao serviço nas Forças Armadas e na carreira diplomática. É esta a primeira alteração e a mais relevante que está suscitada.
Por sua vez, o PS nesta matéria não é indemne à preocupação de abertura a cidadãos estrangeiros que me parecia decorrer das palavras do Sr. Deputado Almeida Santos que, revelando uma extrema preocupação em relação à "invasão brasileira" - à qual devemos, obviamente, estar atentos, como a toda a espécie de invasões -, prevê no n.° 4 do artigo 15.° a possibilidade de atribuição de capacidade eleitoral para a eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais, questão que também não consta do acordo nem está dirimida.
O Sr. António Vitorino (PS): - Mas isso não tem nada a ver com o alargamento do espectro dos estrangeiros susceptíveis de fixarem residência em Portugal.
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Tem a ver apenas com o acrescentamento de um direito cujo âmbito subjectivo é delimitado àqueles que já estão autorizados a residir em Portugal e nos termos em que o estiverem.
A questão é que no n.° 3 do artigo 15.° da Constituição, em meu entender, já hoje consome a preocupação suscitada pelo Sr. Deputado José Magalhães e em termos, aliás, percursores em relação à própria Constituição Brasileira, na medida em que a Constituição Portuguesa é de 1976 e a Brasileira é do corrente ano.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto. E eu não estava a procurar introduzir um nexo de identidade entre a proposta do PS e a do CDS ou entre a proposta do CDS, a do PS e esta sugestão da Comissão de Negócios Estrangeiros. Suponho é que numa reflexão sobre as propostas relevantes para esta problemática esta nota é obrigatória. Em todo o caso, creio que poderão ter alguma razão as considerações feitas no sentido - que, de resto, acaba de ser sublinhado de novo pelo Sr. Deputado António Vitorino - de considerar que as cláusulas constitucionais existentes poderão provavelmente dar vazão e satisfação aos anseios de abertura que surgem de vários quadrantes, sem a inserção na Constituição, com a máxima rigidez imaginável, de um preceito que teria obviamente de ser extremamente burilado para não permitir aquilo que se não deseja.
No fundo, a proposta que a Comissão de Negócios Estrangeiros apresenta significa um alargamento do actual artigo 15.° e a inclusão de uma cláusula cuja natureza me parece de difícil definição. O alargamento é o que decorre do n.° 3 do actual artigo 15.°, que reserva a cidadãos portugueses o acesso à titularidade dos órgãos de soberania e das regiões autónomas, ou seja, todos os órgãos de poder e em qualquer grau. Os Sr s. Deputados parecem inclinar-se para a ideia de que o acesso só deveria ser reservado quanto à titularidade das presidências dos mesmos órgãos de soberania e dos órgãos das regiões autónomas.
Aliás, aplicado à segunda das realidades, nem sei o que é que a norma possa significar, uma vez que a há presidências múltiplas - a presidência da Assembleia Regional e a do Governo Regional. Não há uma coisa chamada presidência da região, embora seja proposta por alguns sectores de alguns partidos, e a noção de ministro de Estado entre nós originaria toda uma infinita polémica, uma vez que as categorias ministeriais têm obedecido a diversas evoluções e que actualmente a própria noção de ministro de Estado tem uma configuração que decorre da lei, mas que é o que é constitucionalmente. Constitucionalmente, não se sabe o que é um ministro de Estado, embora se saiba o que é um vice-primeiro-ministro. É uma categoria puramente legal e dignificá-la Constitucionalmente originaria problemas imensíssimos. Temos entre nós, aliás, um ex-ministro de Estado, o que nos pode propiciar lúgubres reflexões sobre essa categoria!
Ora, aquilo que os Srs. Deputados propõem é um alargamento no sentido que acabei de definir, embora com as ambiguidades e dificuldades de definição que também decorrem daquilo que expus. Mas o que é mais original e motivou esta proposta é a cláusula contida no n.° 4, que coloca as dificuldades que o Sr. Deputado António Vitorino há pouco evidenciou. O que é
que significa dizer-se que "a reciprocidade pode decorrer de instrumentos internacionais já celebrados e" - parte mais intrigante - "de direitos efectivamente consagrados nas Constituições dos países contratantes"? Significa o quê? Que a produção dos efeitos em Portugal deveria ou poderia reportar-se à própria entrada em vigor numa ordem jurídica, outra, alheia, de uma disposição constitucional similar - o que, no caso concreto, seria legislar tendo em conta factos já verificados no caso da realidade jurídica brasileira, mas já não na realidade dos países africanos de expressão oficial portuguesa?
Esta cláusula é, sem dúvida, original e não sei se foram ponderadas todas as suas implicações do ponto de vista técnico-jurídico-constitucional e, designadamente, os seus efeitos na ordem jurídica portuguesa. Não creio que sem uma profundíssima reflexão., designadamente em termos de direito internacional público, se possa caminhar para qualquer coisa deste tipo, que, de resto, não sei se foi feito tendo em conta considerações como as que nós próprios aqui pudemos produzir.
Vozes.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, passaríamos agora ao artigo 5.°, relativo ao território. Para este artigo existe uma proposta de alteração da redacção do n.° 1, do CDS. O PCP e o PS propõem a eliminação do n.° 4. O PSD propõe uma alteração em relação ao mesmo n.°-4 e o PRD propõe também a sua supressão.
Poderíamos começar por pedir uma justificação sucinta ao PCP da sua proposta de supressão do n.° 4.
Pausa.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães,
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Esta proposta, embora seja extravagante e não conste do acordo, é uma proposta capaz de reunir um consenso alargadíssimo. Decorre de obrigações assumidas livremente pele Estado Português em tratado firmado com a República Popular da China, em consonância com uma orientação de política externa portuguesa largamente partilhada e que, pela nossa parte, consideramos altamente desejável. Não faria sentido, em nosso entender, que, estando neste momento o processo de transferência de todos os poderes que Portugal detém em relação ao território de Macau com calendarizações com implicações jurídico-constitucionais claras e, em matéria de direito internacional público, inclináveis, não projectássemos 10 texto constitucional, de forma inequívoca, o carácter transitório desta norma sobre o território de Macau. Incluída aqui, por razões de todos conhecidas, num determinado momento histórico da nossa própria vida após o 25 de Abril, esta norma tem a sua sede própria nas disposições transitórias da Constituição da República Portuguesa.
Neste ponto há uma discrepância entre a opção legislativa proposta pelo PCP e, de resto, pelo PS e pelo projecto n.° 9/V, por um lado, e a apresentada pelo PSD. Tivemos ocasião de discutir largamente esta matéria quando debatemos o estatuto aplicável ao território de Macau. Nessa altura não me pareceu que o PSD estivesse demasiado arredio à ideia de não adoptar esta técnica que aqui adiantou no seu projecto de revisão, aderindo à ideia de que a sede própria para
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o tratamento da matéria deva ser a das disposições transitórias. Creio que todos ganharíamos com isso, uma vez que não há nenhuma discrepância quanto à solução materialmente correcta para o actual momento histórico. Fazemos votos de que isso possa acontecer. Reservaria, Sr. Presidente, para outra circunstância as considerações sobre as implicações da proposta do CDS.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Presidente, quase não valeria a pena usar da palavra. Devo dizer que a nossa proposta se não traduz numa eliminação, mas numa transferência para as disposições transitórias, pelas razões enunciadas pelo Sr. Deputado José Magalhães, com as quais coincidimos, transferência essa que é pura e simples, na medida em que também nós usamos a expressão "enquanto se mantiver", advérbio de tempo. Há até alguma coincidência com o PSD, pois nós dizemos "enquanto se mantiver" e o PSD diz "enquanto tiver". Penso, portanto, que estamos de acordo sobre esta alteração e que não valerá a pena perder tempo com ela.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Pedro Roseta.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Julgo que estamos de acordo quanto à substância. Trata-se apenas de uma questão de localização, de sistemática, havendo ainda pequenas divergências de redacção que, diria, quase se resolverão por si. Julgo que os deputados do PSD podem concordar com a transferência desta disposição que é proposta por outros partidos, se possível mantendo a redacção que o PSD propõe.
Aliás, queria recordar que há já pelo menos um precedente. Por proposta do PSD, na revisão de 1982 transferiram-se para as "Disposições finais e transitórias" as disposições relativas a uma realidade que também estava destinada a ser transitória, ou seja, os distritos. Por consequência, julgo que neste caso também poderemos estar agora de acordo.
No que diz respeito à proposta do CDS relativa às ilhas Selvagens, julgo que se trata de um problema geográfico ou geológico, porque, geograficamente, estas ilhas poderão não fazer parte do arquipélago, mas não há dúvidas de que histórica e politicamente estão integradas na Região Autónoma da Madeira. Mas seria importante ouvir um deputado desta Região.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Guilherme da Silva.
O Sr. Guilherme da Silva (PSD): - Sr. Presidente, em relação a esta questão da proposta do CDS de incluir uma menção expressa às ilhas Selvagens, é evidente que há na geografia e na geologia, questões que se podem levantar numa aproximação das ilhas Selvagens ao arquipélago das Canárias. Penso que foi essa dúvida que levou o CDS a apresentar esta sua proposta, mas, no nosso entendimento, há já uma definição histórica do que é o arquipélago da Madeira. Dessa definição consta, desde sempre, a inclusão das ilhas Selvagens e parece-me que esta necessidade, agora, de última hora, no sentido de fazer exclusivamente esta menção de que o arquipélago da Madeira inclui também as ilhas Selvagens, sem nenhuma referência específica, por exemplo, às ilhas Desertas ou ao próprio Porto Santo, é um pau de dois gumes.
Assim sendo, no nosso entendimento, é perfeitamente dispensável e desnecessária esta menção, que, com boas intenções, o CDS propõe.
O Sr. António Vitorino (PS): - E há sempre o risco de o Dr. Alberto João Jardim fazer nessas ilhas um círculo eleitoral uninominal!
O Sr. Guilherme da Silva (PSD): - Nas ilhas Selvagens!
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, não julgo que a melhor maneira de prevenir ou, eventualmente, de dirimir algumas matérias geológicas ou de direito internacional seja a da sua consignação em termos constitucionais. Penso que Portugal tem uma posição muito clara nesta matéria, que já vem de há bastantes anos
- quase da altura da descoberta da Madeira -, e que o que poderia aparentemente significar um reforço dessa sua posição ou reiterá-la quereria era expressar que havia dúvidas. Ora acontece que nós não temos dúvidas sobre isso. Portanto, por estas circunstâncias parece-me pouco conveniente e curial vir a explicitar algo que para nós está já claramente expresso no texto constitucional actual.
Tem a palavra o Sr. Deputado Guilherme da Silva.
O Sr. Guilherme da Silva (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador.)... é mais um problema de patrulhamento do que propriamente uma necessidade de menção constitucional das ilhas Selvagens como incluídas no arquipélago da Madeira.
O Sr. Presidente: - E, como as patrulhas não fazem parte da Constituição, talvez não tenhamos, naturalmente, que as considerar.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, creio que também aqui haverá uma similitude de posições entre a generalidade dos partidos. Muito gostaria de ter ouvido a explicação do Sr. Deputado Nogueira de Brito ou de outro deputado do CDS sobre esta proposta, que consta, de resto, do texto apresentado pelo mesmo CDS antes de o Sr. Prof. Freitas do Amaral assumir a condução dos destinos do partido. Ignoramos por completo qual seja a posição actual do CDS ou, sequer, se mantém esta proposta, uma vez que ela, embora traduza - ou pareça traduzir - uma certa vontade de avivar a chama ou de lançar um alerta para uma questão de política externa, serve provavelmente essa causa de uma forma que não é a mais eficaz, que pode originar alguns equívocos e atear algumas chamas que, de outra forma, não estamos a ver no horizonte.
O CDS não se lembrou, felizmente, de lançar na Constituição a palavra de ordem afortunada e vigorosa: "Reconquistemos Olivença!" Em todo o caso, lembrou-se de lançar a palavra de ordem: "As Selvagens são
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Portugal." Creio que são realmente Portugal e que, se queremos que as ilhas Selvagens se mantenham portuguesas, temos de adoptar medidas concretas. Aliás, tivemos ocasião de discutir algumas dessas medidas na Assembleia da República, na altura em que aprovámos uma proposta oriunda da Região Autónoma da Madeira precisamente sobre a defesa e a protecção das ilhas Selvagens. Sucede que quando pensávamos na defesa e na protecção das ilhas Selvagens estávamos a pensar nos aspectos relacionados com a fauna e com a flora, que melindrosas, delicadas e ameaçadas são, mas pensávamos também em outras componentes, designadamente no mar territorial e na necessidade de garantir os meios financeiros e técnicos indispensáveis para que certas missões de soberania possam ser realizadas cabalmente pelas forças armadas portuguesas do ramo competente. Creio que nada disto se exorciza através do nomen júris e que este que aqui se consigna não é bastante para produzir o efeito que se invoca e poderá ser bastante para produzir um efeito simétrico ao desejado, qualquer que ele seja.
Ora, como não podemos saber qual o efeito desejado nem os argumentos que o sustentam, creio que teremos de adiar para outra circunstância umas núpcias mais afortunadas em relação à questão das ilhas Selvagens. Talvez seja o Plenário a altura própria para o fazer, ou então o regresso do Sr. Deputado Nogueira de Brito à Comissão. Em qualquer caso, receio bem que não seja este o momento.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vamos passar à discussão do artigo 6.°
Existem várias propostas de alteração sobre este artigo, que são as seguintes: uma apresentada pelo CDS, que reúne no mesmo número os actuais n.ºs 1 e 2; uma outra formulada pelo Sr. Deputado Sottomayor Cárdia; outra da autoria da Sra. Deputada Helena Roseta, e, finalmente, uma proposta de alteração apresentada por vários deputados do PSD da Madeira. . Entretanto, como estão somente presentes os subscritores da proposta que referi em último lugar, vou dar a palavra aos Srs. Deputados do PSD da Madeira para que possam justificá-la no respeitante à alteração da redacção n.° 1 do artigo 6.°
Tem, então, a palavra o Sr. Deputado Guilherme da Silva.
O Sr. Guilherme da Silva (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Estamos, de facto, num dos capítulos mais importantes da Constituição, exactamente subordinado ao título "Princípios fundamentais". Pensamos que não é secundária esta definição do Estado, parecendo-me, aliás, que é uma oportunidade que temos, ao rever a Constituição, de dar autenticidade à definição do Estado Português, que até agora se tem mantido, do nosso ponto de vista, pelo menos incompleta no artigo 6.°, na sua actual redacção.
Na verdade, ninguém ignora - e decorre, aliás, de outras disposições da Constituição - que o Estado Português tem hoje duas áreas completamente distintas do ponto de vista jurídico-político e sócio-político, que são as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira e o espaço continental. E, inserindo-se esta realidade no domínio da teoria geral do Estado, é óbvio que é incompleto definir hoje o Estado Português, particularmente em sede de Constituição, apenas e tão-só como Estado unitário. A realidade é a de que o Estado Português é de cariz unitário e regional. Portanto, é essa a alteração que propomos no nosso projecto de revisão da Constituição relativamente ao artigo 6.°
Se VV. Exas. repararem no n.° 1 do artigo 6.°, na redacção que propomos, apenas consagramos, a seguir à expressão "o Estado é unitário", o termo "regional". Aliás, fizemo-lo porque é esta a realidade do Estado Português. Parece-nos até que a Constituição não o pode ignorar, definindo o Estado - como o faz no n.° 1 do artigo 6.° - como um Estado unitário, e acrescentando depois a realidade que revela que ele não é apenas e tão-só um Estado unitário. É, por força do previsto nesse n.° 2, um Estado unitário regional.
Portanto, a nossa preocupação é a de introduzir essa correcção autenticante e mais tradutora da verdade da nossa realidade. Parece-nos que esta seria, aliás, uma boa oportunidade de conseguirmos o consenso partidário para uma proposta pertencente ao projecto de revisão constitucional dos deputados do PSD da Madeira. Julgamos que isto não teria qualquer consequência e traríamos à Constituição mais este elemento de verdade, que é, no âmbito da definição do Estado, fazer reconhecer esta tão rica realidade nacional de termos a circunstância de sermos um Estado unitário, mas também regional, ou seja, unitário-regional.
Como diz a Sra. Deputada Margarida Salema, em artigo que escreveu sobre as autonomias, nem as autonomias poderão ter o intuito de destruir o Estado unitário nem este deverá destruir as autonomias. E isto quer dizer, pura e simplesmente, que a definição correcta do Estado é a de Estado unitário e regional.
O Prof. Jorge Miranda também tem posição idêntica, ou seja, diz que estão na Constituição, mesmo noutras disposições, todos os elementos característicos do Estado regional. Parece-me, portanto, que, face a essa situação, prestaríamos um bom serviço nesta sede se aceitássemos e não tivéssemos medo das palavras, particularmente quando elas são para conformar o texto constitucional com a realidade.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Mário Maciel.
O Sr. Mário Maciel (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Desejo, obviamente, reiterar o meu apoio a esta proposta de alteração do n.° 1 do artigo 6.° constante do projecto de lei de revisão constitucional n.° 10/V.
De facto, pensamos que a unidade não deixa de ser unidade se as partes em que ela está repartida forem justapostas, ou seja, no Estado unitário, tomado à letra, a organização política é monolítica, é uma só. Não há, pois, variantes e fórmulas descentralizadas de competências políticas, financeiras e administrativas em favor de órgãos regionais, com uma componente legislativa e executiva, democraticamente eleitos por sufrágio directo e universal.
Como VV. Exas. sabem, isto não acontece no Portugal pós-25 de Abril, porque, alienadas que foram as possessões ultramarinas africanas, Portugal é hoje constituído por duas parcelas insulares regionalizadas sob a forma de duas regiões autónomas e o chamado Portugal continental, ainda por regionalizar.
As regiões insulares não o são só geograficamente, mas também o são no espírito da lei, o que está, aliás,
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imprimido nas páginas do nosso estatuto político-administrativo e consagrado também na lei fundamental através de um capítulo próprio. Portanto, pensamos que o valor sublime da unidade do Estado e as noções de pátria e de nação portuguesa não ficam ofendidas ou sequer ameaçadas se o conceito de Estado unitário regional ficar imprimido na lei fundamental, uma vez que não se trata de um factor de conflitualidade, mas sim de um factor de explicitação de uma realidade que é óbvia. E refiro-me também ao facto de que o Estado Português, sendo unitário, não tem estados dentro do próprio Estado e é regional por força de ter regiões autónomas dentro da sua organização. É, por isso, um esforço de explicitação e não de conflitualidade com o conceito de unidade nacional.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Vitorino.
O Sr. António Vitorino (PS): - Sr. Presidente, há pouco em aparte disse que quase valeria a pena dar por reproduzido o debate travado na primeira revisão sobre este artigo 6.° em matéria de alteração da definição do Estado Português, na medida em que esta questão já esteve presente quer na discussão da Assembleia Constituinte quer na revisão de 1982.
A verdade, Srs. Deputados Guilherme da Silva e Mário Maciel, é que não diria que a solução que propõem desde então até hoje tenha vindo a tornar-se mais consensual. Diria antes que tem vindo a perder alguma força relativa, na medida em que, enquanto na revisão de 1982 o projecto de revisão constitucional da AD propunha expressis verbis a consagração da noção de Estado unitário e regional, nesta revisão de 1988 nem o projecto de revisão do CDS nem o do PSD ressuscitam tal proposta. Não pretendo, porém, retirar deste facto nenhuma ilação política nem dizer que o Estado Português é menos regional hoje do que era em 1982 ou que as autonomias regionais têm estado a perder força política. Estou somente a dizer que a força emblemática desta questão tem vindo pacificamente a ser considerada como isso mesmo, ou seja, como uma mera discussão emblemática de que não resultam consequências nem ampliativas nem diminutivas do significado das autonomias regionais e que, como mera discussão emblemática, não vale a pena levá-la muito longe.
Creio, contudo, que valeria a pena deixar só duas notas: a primeira é que o Estado Português é um Estado unitário e só parcialmente, é regional. Poderíamos até dizer que só perifericamente é um Estado regional. Aliás, não vejo vantagens em se dizer, como foi o caso do Sr. Deputado Mário Maciel na parte final da sua intervenção, que há já uma regionalização feita e ainda se vai completar com uma outra. Penso que isso seria confundir duas realidades totalmente distintas. Além disso, seria subvalorizar o papel das autonomias regionais dos Açores e da Madeira, uma vez que têm uma amplitude e uma dimensão política e de auto-organização que nunca terão as meras regiões administrativas.
Portanto, considerar que a tendência é de regionalização global do Estado Português é perigoso, porque enfraquece o próprio significado das regiões autónomas dos Açores e da Madeira. E enquanto as regiões administrativas vêm consagradas no n.° 1 do artigo 6.°, a coberto do princípio da autonomia das autarquias locais, as autonomias dos Açores e da Madeira têm uma projecção muito maior na própria Constituição, que merecem neste título de "Princípios fundamentais", mais propriamente no n.° 2 do artigo 6.°, um tratamento autónomo. Beneficiam, pois, de um tratamento específico. E isto é apenas para dizer que não vejo vantagens em alterar a definição constitucional do Estado unitário, como também não vejo nisso nenhuma encoberta tentação de diminuir ou de restringir as autonomias regionais dos Açores e da Madeira ou sequer de coarctar o seu desenvolvimento natural.
Acontece somente que as definições para serem rigorosas têm de ser omnicompreensivas. E temos de reconhecer que, mesmo no actual estado de desenvolvimento da sociedade e da vida política portuguesa, o Estado Português não é um Estado unitário regional. É um Estado unitário com regiões autónomas, mas que são parciais, isto é, abrangendo parte do território nacional. Não abrangem, pois, o conjunto do território nacional. É por isso que a doutrina se lhe refere como um Estado parcialmente regional.
A proposta de que no artigo 6.° se consagrasse o conceito de Estado unitário e regional encerraria uma definição que também ela pecaria ou por excesso ou por defeito, dependendo do ponto de vista em que considerássemos o seu significado intrínseco.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados: Gostaria de explicar qual foi a razão que levou o PSD a não propor nesta matéria alterações.
Em primeiro lugar, devo referir que na altura, quando discutimos esta formulação, nem sequer conhecíamos a proposta dos nossos companheiros da Madeira e, por consequência, isso não significou nenhum acto de demissão ou de crítica em relação a ela. Parece-nos, de facto, que, sendo Portugal, como é, um Estado que só tem duas regiões autónomas e que, em princípio, não vai ter mais do que esse número, a generalização da adjectivação "Estado regional", ao contrário de robustecer a autonomia, pareceria vir a tratar da mesma maneira as futuras regiões administrativas e as autónomas.
Esta foi a consideração fundamental que nos levou a redigir como redigimos, pois não quereríamos indiciar que as regiões autónomas se venham a confundir com as futuras regiões administrativas. Entendemos que isso seria pernicioso, e esse tipo de adjectivação poderia facilitar essa espécie de confusões justamente no local onde o inciso seria colocado, ou seja, neste preceito nobre da Constituição, que é o artigo 6.°
Gostaria de acrescentar o seguinte: não pensamos que se deva emprestar a esta discussão um significado que ela não deve ter. Isto é, nós acompanhamos, de uma maneira inequívoca, o legítimo orgulho que os nossos colegas dos Açores e da Madeira têm na autonomia regional - e aqui, obviamente, é a autonomia regional dos Açores e da Madeira (vêem como às vezes a adjectivação necessita de precisões, para não se tornar equívoca...). Achamos que essa foi uma das conquistas mais importantes do ponto de vista da estrutura administrativa possibilitadas pelo 25 de Abril. Entendemos que, dentro dos limites naturais que existem quanto à região autónoma inserida num espaço geográfico e, sobretudo, político mais vasto que é o Estado unitário português, ela pode ser objecto de robus-
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tecimento. Mas não gostaríamos que, a propósito de um pequeno debate ou de uma pequena contenda de adjectivação, se pudesse entender que, de algum modo, estávamos a pôr em causa, a jogar ou até a manifestar posições contraditórias no que respeita ao problema da autonomia das regiões autónomas. Sublinho, mais uma vez, a necessidade que tenho de, ao falar em regionalismo e em regiões, ter de acrescentar as regiões autónomas, porque efectivamente, no quadro português, elas hão-de ser, quando as regiões administrativas forem instituídas, algo que tem qualitativamente uma natureza diferente. Essa foi a explicação. É evidente que também não temos dúvidas, se os nossos companheiros das regiões autónomas acharem que isso é um ponto extremamente importante, em lhes manifestar a nossa solidariedade votando a vossa proposta, mas não nos parece que ela acabe por ser extremamente conseguida no que diz respeito aos propósitos últimos que os animam e nos animam. Tem a palavra o Sr. Deputado Sousa Lara.
O Sr. Sousa Lara (PSD): - Sr. Presidente, também vou expressar, a título pessoal, a minha opinião. Penso, como V. Exa. acaba de dizer e, aliás, em concordância, de certa forma, com o que disse o Sr. Deputado António Vitorino, que o Estado Português não é um Estado regional. Mas também penso, seguindo o mesmo raciocínio, que é um Estado com regiões autónomas e que essa categoria é, de certa forma, uma subcategoria do Estado unitário. Não é que se possa perder muito nem ganhar com esta precisão, mas penso que também não era desvantajoso...
O Sr. Presidente: - Não estamos a fazer lições universitárias, não é?
O Sr. Sousa Lara (PSD): - Enfim, era uma hipótese que podia ficar à consideração de uma futura comissão de redacção, mas não creio que se adiante nem atrase muito com estes rigorismos politológicos. Mas era uma hipótese alternativa, fazendo minhas as palavras do Sr. Deputado António Vitorino, definir nesses termos o Estado Português não como unitário regional, que não o é (como V. Exa. acaba de referir), mas como Estado unitário com regiões autónomas, que é de facto uma categoria diferente, até oponível, em rigor, à do Estado regional.
O Sr. Presidente: - Estou um pouco perturbado quanto à prioridade das inscrições.
Vozes.
É o Sr. Deputado José Magalhães? Não é que o Sr. Deputado José Magalhães tenha uma prioridade natural tomada por usucapião, mas em todo o caso...
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
Vozes.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Seria desnecessário sublinhá-lo, Sr. Presidente. Em todo o caso, como se trata de me congratular, creio que o Sr. Presidente seguramente terá por bem-fazejas as observações que farei.
Em primeiro lugar, para me congratular com o estão do debate e com o facto de não serem transpostas para aqui certas campanhas e certas formas de argumentação (que só por gentileza se podem qualificar como tais, uma vez que assentam, nas mais das vezes, na força e no arbítrio) tendentes a inculcar a existência de uma qualquer forma de "colonialismo continental opressivo das autonomias regionais" e tendentes a arvorar em estandarte inefável e insubstituível de defesa dos interesses das populações que residem nas regiões autónomas a consignação, na mais alta norma do Estado de direito democrático português, de uma menção como aquela que vem proposta pelos Srs. Deputados signatários do projecto de lei de revisão constitucional n.° 10/V. Tem sido, na nossa história recente, pomo permanente de discórdia, estandarte permanente de divisão, a tentativa de arregimentação dos cidadãos portugueses em dois grupos que, supostamente, estariam em refrega permanente e contínua, vivaz e seguramente melodramática: o daqueles que, por amarem a autonomia regional, desejariam consagrar constitucionalmente este texto e aqueles outros que, seguramente por a odiarem, Se Oporiam â essa consagração. Nada de mais artificial e de mais detestável do que uma dicotomia tão distorcida e tão incorrectamente elaborada. Pela nossa parte, rejeitamo-la frontalmente!
Não vi aqui neste debate o afloramento desse tipo de argumentos e desse espírito, o que acho só por si positivo. Claro que outra coisa positiva é o facto assinalado pelo Sr. Deputado António Vitorino, com o significado que procurou não empolar, de o PSD ter entendido, ao contrário do que aconteceu na pretérita revisão constitucional, não formular qualquer proposta neste sentido, embora, segundo aquilo que pude depreender das palavras do Sr. Deputado Rui Machete, se disponha a votar em Plenário (ou a votar em Comissão, ou a indicar um voto favorável na sede própria) este texto subscrito pelos Srs. Deputados autores do projecto de lei de revisão constitucional n.° 10/V. Mas o facto de não ter adiantado, em sede de projecto apresentado em nome do partido como tal, uma proposta deste tipo é, apesar de tudo, um avanço no sentido de não criar factores de perturbação de um debate já por demais semeado de equívocos.
Creio que é importante que se tenha bem em conta o exacto significado deste debate: ele não pode ser a reclamação de um pluralismo estadual absolutamente proscrito constitucionalmente; não pode ser a criação de um pólo tendente a fundamentar pretensões de uma autonomia progressiva rumo a um zénite que nenhum de nós é capaz de situar no quadro de um Estado ainda unitário; não serve também de trampolim para aventuras que mergulhariam as autonomias regionais num estado bastante próximo de reclamações de certos sectores perfeitamente írritos na sociedade portuguesa quanto à organização do Estado democrático português. A exaltação da policracia também tem "água no bico", ainda que a policracia seja constitucionalmente assegurada e plasmada - não significa outra coisa o-reconhecimento da existência da autonomia regional como princípio constitucional e da existência de regiões autónomas como manifestação de um fenómeno limitado de descentralização política. Em todo o caso, quando se exalta a policracia que não há, está-se a sustentar que a policracia que ha é maior do que é - e
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isto creio que é indesejável. É, de resto, essa a dificuldade principal do discurso dos Srs. Deputados signatários do projecto n.° 10/V. É que se quisessem inculcar apenas aquilo que dizem, aquilo que dizem seria compreensível, só que incorrecto, seria bem intencionado, só que não exacto. Infelizmente, penetra nas linhas desse discurso uma outra insinuação, ou um outro conteúdo possível, que, pela nossa parte, rejeitamos.
Quanto às implicações da proposta, gostaria de, muito rapidamente, dizer o seguinte: é diferente uma proposta que diga o "Estado unitário regional" e uma proposta que diga o "Estado unitário e regional". Este é o primeiro aspecto (que foi também salientado pelo Sr. Deputado António Vitorino). Este aspecto é importante para que não se misture, designadamente, a autoridade externa de uma pessoa que, seguramente, é merecedora do nosso respeito, o Prof. Jorge Miranda, e argumentações e propostas que não são rigorosamente aquelas que, num determinado momento, enquanto membro de uma determinada força política, o Prof. Jorge Miranda sustentou!
Por outro lado, é essencial que não se inculque que a proposta que é apresentada não tem certas implicações que poderia ter ou, até mesmo, que tem um rigor de que é desprovida. Primeiro: pode-se inculcar com a proposta, tal qual está formulada, que a regionalização política seria um princípio geral da organização do Estado de direito democrático português - sucede que não é, não é um princípio geral. E isto não é susceptível de refutação. Na prática portuguesa tem-se vindo a verificar que estamos a funcionar um pouco como se Portugal fosse um conjunto de três regiões autónomas: os Açores, a Madeira e o continente. De certa forma, o facto de se estar, durante demasiado tempo, a não acatar sequer o princípio que impõe a regionalização (administrativa, claro) do continente contribui para a criação de uma estrutura tripolar que não corresponde ao modelo constitucional da estrutura vertical do poder político e que funciona como uma verdadeira deformação tendente a avantajar aquilo que deveria ter outra proporção constitucional e, simultaneamente, a dar ao continente (assim reduzido a uma dimensão quase metropolitana, indesejável) o papel de um vértice de um triângulo que poderá ser interessante em termos de paixão geoestratégica, mas que seguramente não é interessante em termos de conformação de um Estado unitário. E creio que este problema é bastante sério, até em termos de reflexão sobre os contornos e os desígnios da unidade nacional num contexto europeu, isto é, de Portugal como Estado unitário pertencente às Comunidades, e que é susceptível de desenvolver relações multilaterais difíceis de enquadrar na própria lógica do Estado democrático, se em certos movimentos (designadamente a Europa das regiões, as relações directas Bruxelas/regiões periféricas da Europa/regiões insulares da Europa, etc.) não acautelarmos suficientemente este aspecto basilar que é a nossa estrutura geográfica, este facto inteiramente acidental, que política e historicamente superámos, de, tendo o território espalhado por vários pontos do Atlântico, sermos, todavia, uma só Pátria. E creio que isto se perde um pouco quando se procura inculcar que Portugal seja um Estado regional. Os factos, a geografia e a historia são excessivamente cruéis nesta matéria: parcialmente regionalizados somos. E, tendo as regiões autónomas a importância que têm no contexto da nossa
organização estadual, são uma realidade parcial. Creio que disto é extremamente difícil sair. Chamar então ao Estado Português um "Estado unitário com uma componente regional" é bom para a doutrina, é correcto doutrinariamente, não é desejável constitucionalmente. Componente regional é óbvio que há, é o que é o Estado democrático português: um Estado unitário com uma componente regional.
O Sr. Almeida Santos (PS): - Isso já está no n.° 2!
O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto. Porquê dizê-lo, então, dessa forma? A componente regional é objecto de uma alusão específica no n.° 2. Alusão essa que é bastante e suficiente para inculcar que a autonomia regional é um princípio constitucional respeitável, princípio que, todavia, não é senão uma qualificação - não poderia entrar em contradição, é óbvio, com o princípio constitucional geral da unidade. Portanto, creio, Sr. Presidente, Srs. Deputados, que, fora das paixões e do erguer de estandartes que podem ser vantajosos para procurar menorizar as questões que verdadeiramente atinjem duramente as populações que vivem nas regiões autónomas, não tem sentido prolongar ou fazer uma polémica sobre este ponto.
Vozes.
O Sr. Presidente: - Sim, mas antes está inscrito o Sr. Deputado Pedro Roseta.
Vozes.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Não. Queria fazer uma intervenção exclusivamente a título pessoal, mas gostaria de ficar para o fim. Se o Sr. Deputado Almeida Santos quiser...
O Sr. Almeida Santos (PS): - Não tive o privilégio de ouvir tudo o que disse o Sr. Deputado António Vitorino. Sei que ele diz sempre o que é necessário e da melhor maneira. Mas esta expressão "unitário regional" "faz-me cócegas", mesmo do ponto de vista semântico, porque parece que o Estado é, ele próprio, uma região, porque senão teríamos de dizer regional no sentido de "regionalizado". E aí falta a terceira região que o continente não é (ou a quarta ou quinta, quando um dia pensássemos em dividir o País em regiões). Quer dizer, o facto de o País ter duas regiões torna-o a ele como Estado que não é "nacional", mas que é "regional"? Não, um Estado não é regional em si. É, em parte, regionalizado, mas não é todo ele regionalizado. Razão por que isso é confuso e não vejo que acrescente nada à glória de as actuais regiões serem elas próprias a parte que qualifica o todo. Bem sei que nalgumas Constituições, na Italiana, salvo erro, se fala em Estado regional, mas acho o qualificativo desajustado. Se me dissessem "um Estado regionalizado", muito bem. Ora, o nosso Estado tem por base uma nação, felizmente, das mais unitárias que se conhecem, quer na língua, quer nos costumes, quer na história. E creio que destruir esta imagem de um Estado que é um todo, mas que tem partes autónomas (que está, no n.° 2, dito de maneira bem enfática e bem clara), não acrescentava nada à glória das regiões e geravam algumas confusões ao nível da definição do próprio Estado.
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1878 II SÉRIE - NÚMERO 59-RC
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Pedro Roseta.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Sr. Presidente, gostaria de fazer uma intervenção exclusivamente a título pessoal e na sequência das intervenções dos Srs. Deputados das Regiões Autónomas, embora, como já ontem disse, seja daqueles que pensam que "mudam-se os tempos, mudam-se as vontades" - como o nosso grande poeta tão bem disse num soneto que devia ser meditado por muita gente. Mas, neste caso, ao contrário do que é hábito, não o sigo...
Vozes.
A vida toda é composta de mudança, é evidente.
O Sr. José Magalhães (PCP): - "Tomando sempre novas qualidades..."
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - E isso é inevitável, ninguém o pode travar, nem as concepções mais abs-trusas ou mais fixistas...
O Sr. Almeida Santos (PS): - "Não muda já como soía", muda muito mais.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Esse é outro poeta, mas é igualmente sensato e sábio.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Portanto, apesar dessa mudança acelerada de que ontem falei longamente, neste ponto mantenho a posição que sempre defendi, pelas razões que passo sumariamente a expor e que, no fundo, são aquelas que os deputados das regiões autónomas aqui trouxeram, excepto na comparação que um deles fez com uma eventual futura regionalização administrativa do continente que, efectivamente...
O Sr. Almeida Santos (PS): - Que era minimizar.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Que era minimizar, Sr. Deputado Almeida Santos. Eu corroboro às afirmações dos que disseram que esse é um argumento que joga contra... Um dos argumentos que queria explicitar adiantou-o o Sr. Deputado Almeida Santos - nem sequer estamos a inovar. Falou-se muito em doutrina, podia referir as posições do Prof. Rebelo de Sousa, do Prof. Jorge Miranda, da Dr.a Margarida Salema; mas há outro argumento: o da Constituição Italiana. Não se trata portanto de uma inovação estranha. Ao contrário do que o Sr. Deputado Almeida Santos acaba de afirmar o facto de se qualificar o Estado como regional não significa que deixe de ser unitário. Os conceitos de pátria, nação, etc.., em nada seriam tocados. Trata-se apenas de uma questão relativa à estrutura do Estado. Qual é a minha posição, para além da invocação da doutrina e da Constituição Italiana, que é um precedente a ter em conta, é uma Constituição muito respeitável, com mais de 40 anos, e que influenciou também noutras matérias a Constituição Portuguesa (ontem ouvi o Sr. Deputado Almeida Santos invocar essa mesma Constituição Italiana para introdução do valor trabalho no artigo 1.°, portanto permita-me que eu também invoque a Constituição Italiana para defender o Estado unitário regional)? Com base no precedente da Constituição Italiana, com base na doutrina, direi, como o Prof. Jorge Miranda - e aqui é que difiro da posição do Sr. Presidente, e meu querido amigo, Rui Machete, e de VV. Exas. que falaram noutro sentido -, que a questão não está na quantidade, a diferença é qualitativa. O facto de Portugal, pela primeira vez desde que existe constitucionalismo (tirando evidentemente o caso da União Real com o Brasil, que não está em causa, tirando portanto a Constituição de 1822), consagrar regiões dotadas de estatutos político-administrativos e de órgãos de governo próprio é, mais do que saber se é abrangida de uma pequena ou grande fracção do território, uma alteração qualitativa. De facto, o Estado unitário não está em causa, mantendo-se essa qualificação. Porém, dentro do Estado unitário há uma subespécie. Assim, a referida alteração qualitativa, como refere o Prof. Jorge Miranda, não se opera apenas na situação daqueles arquipélagos, mas também na própria estrutura do Estado Português; e conclui que, por conseguinte, Portugal é hoje um Estado unitário regional.
Espero que, como disse o Sr. Presidente, nós venhamos a manifestar a. nossa, solidariedade com os nossos companheiros e amigos das regiões autónomas votando esta sua proposta, mas para mim Portugal é já, na realidade, um Estado unitário regional. O problema que se coloca reside apenas, a meu ver, na questão da oportunidade da explicitação desta qualificação. Por tudo isto, não só por razões doutrinárias e para além das próprias razões de coerência pessoal, inclinar-me-ia para a consagração na Constituição daquilo que, em meu entender, o Estado Português na realidade é, ou seja, um Estado unitário regional.
O Sr. Presidente: - Apenas gostaria de fazer uma ligeiríssima observação, com o único objectivo de precisar o meu pensamento.
Se tivesse de elaborar lições universitárias, creio que explicitaria de uma maneira clara que o Estado Português tem hoje características de estado regional, precisando, porém, em que é que consistia esse regionalismo. O meu posicionamento ligeiramente diferente resulta do facto de a formulação teórica, sobre a qual não tenho dúvidas, se me afigurar algo diversa da sua explicitação num texto constitucional. Aqui trata-se de um significado político, ali é tão-só uma interpretação e um explicação.
No entanto, penso que as posições que serão adoptadas pelo meu partido estão suficientemente clarificadas e que os nossos colegas da Madeira compreenderão claramente as razões, os termos e a extensão em que estamos a seu lado.
Tem a palavra o Sr. Deputado Guilherme da Silva.
O Sr. Guilherme da Silva (PSD): - Sr. Presidente, ouvi com muita atenção as intervenções dos Srs. Deputados sobre a nossa proposta de alteração do artigo 6.° Como é óbvio, estou inteiramente de acordo com o Sr. Deputado Pedro Roseta e só lamento que a sua posição tenha de ser tomada a título meramente pessoal.
Os Srs. Deputados António Vitorino e Almeida Santos levantaram algumas questões que creio terem sido já em parte corrigidas ou, pelo menos, esclarecidas pelo Sr. Deputado Pedro Roseta. De facto, não é a circunstância de possuirmos apenas duas regiões autónomas que retira à realidade do Estado Português, neste mo-
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mento, essa componente regional. Assim, para que a definição "Estado unitário regional" possa ser considerada ,correcta não me parece ser exigível que todo o território português fosse constituído por diversas regiões autónomas. A circunstância de existirem duas regiões autónomas (e bastaria a existência de uma) era suficiente para que esta qualificação permitisse autenticar e precisar o conceito de Estado que pretendemos introduzir na Constituição ao definirmos o Estado Português.
Consequentemente, penso que a parte deve estar incluída na definição do todo e que ao mantermos a fórmula actualmente constante do artigo 6.°, que refere apenas o Estado unitário, estaremos, efectivamente, a fazer uma qualificação incompleta. E, como o Sr. Deputado Pedro Roseta dizia, isto não é uma inovação...
O Sr. Almeida Santos (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador.) Esta pedra tem incrustadas duas pepitas de ouro; logo, esta pedra é de ouro.
O Sr. Guilherme da Silva (PSD): - Não é, mas também é...
O Sr. Almeida Santos (PS): - O problema é esse...
O Sr. Guilherme da Silva (PSD): - Por isso mantemos a qualificação "unitário", acrescida de "regional".
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Está a fazer uma distinção sofista, porque o Estado é unitário...
O Sr. Almeida Santos (PS): - Eu não digo "as pedras" mas "a pedra".
Vozes.
O Sr. Guilherme da Silva (PSD): - Não pretendemos a substituição da referência ao Estado unitário por "Estado regional" mas, sim, o aditamento da expressão "regional" a "Estado unitário". Assim, parece-me que essa questão não se coloca.
O Sr. Guilherme da Silva (PSD): - É óbvio que o exemplo rodoviário do Sr. Deputado José Magalhães não pode ter uma equivalência em termos de teoria geral do Estado.
O Sr. José Magalhães (PCP): - É uma comezinha metáfora, claro! Pode ajudar-vos a elucubrar a complexa questão em que tropeçaram...
O Sr. Guilherme da Silva (PSD): - É óbvio que a intervenção do Sr. Deputado José Magalhães, e, por via dela, a posição do PCP, não nos surpreende em nada. Uma vez mais, como sempre que se trata de qualquer iniciativa vinda das regiões autónomas ou que com elas tenha conexão, o Sr. Deputado lança logo toda a suspeição das mil e uma intenções de que essas iniciativas são portadoras: é a soberania do Estado que está ameaçada e são milhões de dificuldades e de problemas para a unidade nacional que essas iniciativas trazem. Ficamos, portanto, a saber que a posição do PCP não tem nada a ver com a realidade e que essa sua posição contrária à nossa proposta baseia-se em razões, como sempre, imaginadas na mente dos representantes do PCP. Mais uma vez esta posição assim o confirma e, mais do que isso, revela que nesta revisão constitucional, se tivesse oportunidade, a disposição de V. Exa. não seria para discutir o aditamento da expressão "regional" à definição de Estado mas sim, e com todo o gosto, para que tudo aquilo que a Constituição contém sobre autonomia fosse, pura e simplesmente, eliminada, a fim de que a sua ideia de Estado unitário, e só unitário, não fosse minimamente afectada. É esta posição que encerra aquilo que o Sr. Deputado José Magalhães aqui trouxe à discussão sobre a introdução desta expressão "regional" no artigo 6.° da Constituição.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, chegámos ao fim da discussão do artigo 6.° Assim, encerraremos, por hoje, os nossos trabalhos, retomando-os na próxima quarta-feira, pelas 15 horas e 30 minutos, com a análise do artigo 7.°, relativo às relações internacionais.
Srs. Deputados, está encerrada a reunião.
Eram 13 horas e 10 minutos.
Vozes.
O Sr. José Magalhães (PCP): - Permitam-me que ajude a completar o raciocínio do Sr. Deputado Guilherme da Silva. Eu propunha-lhe a seguinte metáfora não geológica que, espero, não lhe repugne: é o facto de ter duas rodas que não permite qualificar a bicicleta como triciclo.
Risos.
E, todavia, tem rodas; é inequívoco que tem rodas, só que são duas! Não é um triciclo! Vocês querem qualificar uma bicicleta como triciclo à viva força! E, no entanto, move-se!
Vozes.
Comissão Eventual para a Revisão Constitucional
Presidente: Rui Manuel Chancerelle de Machete (PSD).
Vice-Presidente: António de Almeida Santos (PS).
Secretário: José Manuel Santos de Magalhães (PCP).
Secretário: Carlos Manuel de Sousa Encarnação (PSD).
António Costa de Albuquerque de Sousa Lara (PSD).
José Augusto Ferreira de Campos (PSD).
Licínio Moreira da Silva (PSD).
Luís Filipe Garrido Pais de Sousa (PSD).
Mário Jorge Belo Maciel (PSD).
Pedro Manuel Cruz Roseta (PSD).
Rui Manuel Lobo Gomes da Silva (PSD).
António Manuel de Carvalho Ferreira Vitorino (PS).