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Sábado, 22 de Outubro de 1988 II Série - Número 49-RC

DIÁRIO da Assembleia da República

V LEGISLATURA 2.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1988-1989)

II REVISÃO CONSTITUCIONAL

COMISSÃO EVENTUAL PARA A REVISÃO CONSTITUCIONAL

ACTA N.° 47

Reunião do dia 19 de Julho de 1988

SUMÁRIO

Finalizou-se a discussão do artigo 218. ° e respectivas propostas de alteração.

Procedeu-se à discussão do artigo 219. ° e respectivas propostas de alteração, da proposta de artigo novo - artigo 217. °-C - apresentada pelo PS, do artigo 220. ° e respectivas propostas de alteração, da proposta de artigo novo - artigo 220. °-A - da autoria do PS e dos artigos 221.° a 226. ° e respectivas propostas de alteração.

Durante o debate intervieram, a diverso título, para além do presidente, Rui Machete, pela ordem indicada, os Srs. Deputados Jorge Lacão (PS), Raul Castro (ID), Herculano Pombo (PEV), Miguel Galvão Teles (PRD), Alberto Martins (PS), Pais de Sousa (PSD), Carlos Encarnação (PSD), José Manuel Mendes (PCP), Vera Jardim (PS), José Magalhães (PCP), Maria da Assunção Esteves (PSD), Almeida Santos (PS) e António Vitorino (PS).

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O Sr. Presidente (José Magalhães): - Srs. Deputados, temos quorum, pelo que declaro aberta a reunião.

Eram 15 horas e 50 minutos.

Estávamos a debater o artigo 218.°, referente aos tribunais militares. Há propostas do PCP, no sentido da eliminação do n.° 2, do PS, no sentido de restringir as competências dos tribunais militares, dos projectos n.ºs 7/V e 8/V, no sentido da eliminação, no primeiro caso, do n.° 2, e eliminação absoluta, no caso do projecto n.° 8/V; quanto ao projecto n.° 9/V, suprime o n.° 2, exactamente como outros projectos, os n.ºs 2/V e 7/V. Daria a palavra aos Srs. Deputados que desejassem fazer a apresentação das propostas; o PCP já fez a apresentação da sua proposta na reunião anterior.

Pausa.

Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Como é fácil constatar, na proposta apresentada pelo PS tratava-se de suprimir o actual n.° 2 do artigo 218.°, reduzindo o âmbito de competência dos tribunais militares, dado que deixaria de haver a regra da inclusão no foro militar de crimes dolosos equiparáveis aos crimes essencialmente militares. E por aí poderia ficar, quanto a uma justificação linear desta proposta de supressão do n.° 2.

Ocorre, todavia, suscitar para debate um outro problema, que é o da natureza dos crimes essencialmente militares. A nossa Constituição, como é fácil verificar, não faz uma definição material do que sejam crimes essencialmente militares, remetendo para a lei ordinária essa definição. Daí que o foro dos tribunais militares, que são competentes em razão da matéria para este tipo de crimes, fique circunscrito ou alargado em função da definição material que essa mesma lei ordinária vier a fazer; a definição de crimes essencialmente militares faz-se hoje em função da categoria dos crimes e não propriamente em função da categoria dos agentes que pratiquem determinado tipo de ilícitos. Estamos perante uma definição em atenção ao objecto e não em atenção à pessoa do infractor - foi um avanço significativo o que se fez quanto à definição dos crimes essencialmente militares, mas ainda aí surge outro tipo de problemas que valeria a pena, nesta sede e nesta oportunidade, ponderar.

Um dos problemas é o de sabermos se, em atenção à natureza do crime, todos os indivíduos que incorram em dado tipo de crime devem ser julgados em tribunal militar, e também os funcionários civis do Estado que prestem serviço ao nível das Forças Armadas. Penso que este é um problema de grande actualidade, na medida em que caminhamos no sentido de fazer uma distinção quanto à natureza do regime estatutário dos funcionários civis e dos funcionários militares ou para militares. Já hoje, no que diz respeito, por exemplo, aos funcionários civis em prestação de serviço na Polícia de Segurança Pública, é pacífico o reconhecimento de que esses funcionários são abrangíveis pelo estatuto disciplinar dos funcionários civis do Estado e não pelas regras típicas do regulamento de disciplina militar. Outro tanto não ocorrerá ainda quanto ao pessoal civil a prestar serviço nas Forças Armadas.

Daí que valha a pena ponderarmos se valeria ou não a pena procurar soluções que tivessem como consequência o desaforamento do pessoal civil relativamente à sua inculpação em tribunais militares. É uma questão que, penso eu, deveria ser reflectida, em torno deste problema da qualificação dos crimes essencialmente militares, não só em atenção à natureza dos crimes, porventura também em atenção à natureza dos agentes. E por aqui me ficava, porque também eu próprio não tenho conclusões definitivas acerca do problema que acabei de referir.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.

O Sr. Raul Castro (ID): - A proposta que apresenta a ID, de eliminação do n.° 2, é uma proposta que se verifica ser apresentada simultaneamente pelo PS e pelo PRD. Isso traduz a preocupação de excluir do artigo 218.° a equiparação, embora por alegado motivo relevante, da jurisdição dos tribunais militares de crimes dolosos que possam ser considerados equiparáveis. Isto porque já no n.° 1 do artigo 218.°, ao estabelecer a regra que aparece aqui intocada nas várias propostas de alteração - embora o Sr. Deputado Jorge Lacão tenha feito algumas considerações pertinentes, mas também sem ter ainda uma ideia definida sobre aquilo que se poderia introduzir aqui como alteração -, o que salta à vista, contudo, é que este n.° 2 representa uma ampliação, a nosso ver injustificável, e também na opinião expressa pelas propostas do PS e do PRD, visto que as três propostas são coincidentes. Quer dizer: a eliminação do n.° 2 aparece não só na proposta do PS como na proposta da ID e na do PRD - por isso eu dizia, no início da minha intervenção, que, em relação a esta proposta da ID, há aqui um consenso alargado -, aliás, até mesmo na proposta do PEV, embora seja mais radical, porque elimina o artigo todo, o que significa que também elimina o n.° 2; portanto, há uma opinião por excesso em relação ao PEV, mas há uma opinião nos mesmos termos dos outros três partidos.

Parece-nos que é positivo que seja eliminado o n.° 2, na medida em que vem ampliar injustificadamente aquilo que é já um conceito discutível, no que diz respeito aos crimes essencialmente militares - o que resultou, até, daquilo que já foi referido pelo Sr. Deputado Jorge Lacão. Efectivamente, mesmo no que diz respeito aos crimes essencialmente militares, poder-se-á pôr a questão de uma melhor precisão do que são esses crimes, embora sobre isto não tenhamos feito nenhuma proposta, tal como o PS e o PRD. Mas o que sustentamos é que, pelo menos, deveria ser eliminado o n.° 2 - é esse o sentido da nossa proposta.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Herculano Pombo.

O Sr. Herculano Pombo (PEV): - Como é sabido, o PEV propõe a eliminação pura e simples do artigo 218.° da Constituição, o que, a ser aceite, traria o desaparecimento de uma realidade que constitui uma espécie de herança de outras épocas, de sociedades estruturadas de outra forma, e que, em nosso entender, na nossa sociedade democrática e no nosso Estado de direito aparece hoje como uma espécie de apêndice

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caudal de uma sociedade que evoluiu mas à qual resta ainda algo que é preciso extirpar. É sabido que este é um sentimento presente na generalidade das forças políticas com assento parlamentar, uma vez que há vários projectos que apontam, para já, nesta fase, para a restrição do âmbito das competências dos tribunais militares. Por outro lado, tal como referiu o Sr. Deputado Jorge Lacão, a Constituição de 1976 proporcionou a inversão da orientação seguida há cerca de 100 anos, ou seja, a jurisdição militar exercia-se sobre o foro pessoal e não sobre o foro material, como começou a ser feito depois da entrada em vigor do texto constitucional de 1976.

Pela nossa parte, pensamos ser chegada a altura de dar neste caso três passos - e não apenas um, conforme é proposto pela maioria dos grupos parlamentares. Entendemos que nesta fase, passados já alguns anos de consolidação democrática, até mesmo com a possibilidade de seguir o exemplo de outros países democráticos da Europa que já o fizeram, perderemos, se não o fizermos já, a oportunidade de eliminar este corpo estranho à nossa democracia, este esquema paralelo de administração da justiça, onde com frequência a justiça se confunde com a disciplina militar, onde resultam situações, na maior parte dos casos, de perfeita injustiça. Imaginemos a situação de um indivíduo que entra em litígio com a estrutura militar: jamais conseguirá que lhe dêem razão, uma vez que a própria estrutura militar é juiz em causa própria. Do nosso ponto de vista, tal não é admissível, de forma nenhuma! Aliás, este não é só o nosso ponto de vista: vários sectores da sociedade portuguesa têm manifestado o seu interesse em ver eliminados, ainda que progressivamente, os tribunais militares; fizeram-no já, designadamente, alguns sectores das Forças Armadas. Em contrapartida, deve dizer-se que há outros sectores que trabalham afanosamente no sentido do regresso à situação anterior à Constituição de 1976, ou seja, no sentido de que a jurisdição se exerça novamente sobre o foro pessoal. Mas deve dizer-se também que entidades como o sindicato dos magistrados se pronunciaram, em documento enviado a esta Comissão, inequivocamente a favor da extinção ou, pelo menos, da redução do âmbito das competências dos tribunais militares.

Esta discussão deve ser feita, no mínimo, à luz do objectivo (que, penso, começa a ficar claro para todos) de, nesta ou na próxima revisão, o mais tardar, este corpo estranho ou apêndice ser extirpado definitivamente, para que a nossa sociedade seja uma sociedade democrática, com a separação de poderes que a Constituição impõe, mas em que um dos órgãos de soberania não tenha uma estrutura paralela que, em nosso entender, ainda por cima, colide frontalmente com o disposto nos artigos 205.° e 208.° da Constituição. Colide com o artigo 205.°, que refere que os tribunais agem em nome do povo, porque este tribunal militar age em nome de uma parcela do povo. Colide com o artigo 208.°, que consagra a independência dos tribunais, porque, para nós, em caso nenhum se poderá invocar a independência de um tribunal militar, porquanto a nomeação dos juizes é feita pelas estruturas militares, com a excepção honrosa do território de Macau, onde os magistrados nomeados pelo Conselho Superior da Magistratura podem cumulativamente exercer funções nos tribunais militares - mas isto é apenas a excepção que confirma a regra.

Por todas estas razões, por causar mal-estar, muitas vezes, o facto de a justiça ser administrada por cidadãos que não têm qualquer tipo de preparação jurídica, aos quais apenas a sua qualidade de patentes militares lhes dá o direito de administrar justiça, esta situação é, quanto a nós, uma autêntica aberração, pelo que deve desaparecer do nosso texto constitucional e, como tal, desaparecer da sociedade.

Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Secretário Carlos Encarnação.

O Sr. Presidente (Carlos Encarnação): - Não propriamente a tratar do assunto "tribunais militares", enquanto existência de tribunais militares, mas mais precisamente da sua competência, já fizemos (ou já ouvi fazer) algumas referências, alguns artigos atrás, quando se tratou da alínea é) do artigo 212.° De modo que, nesta altura, o que estamos a ver é fundamentalmente a questão da competência.

O Sr. Herculano Pombo (PEV): - Porque não pude participar na discussão do artigo 212.°, aproveitei esta ocasião para referir o assunto.

O Sr. Presidente: - Penso que estamos a seguir a ordem de apresentação das várias propostas, portanto, nestes termos, a proposta a ser apresentada a seguir seria a do PRD.

Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - A propósito do artigo 212.°, já tive oportunidade de tentar justificar a proposta do PRD a este respeito, em termos que não são substancialmente diversos daqueles que foram agora formulados pelos Srs. Deputados Jorge Lacão e Raul Castro. Portanto, vou simplesmente aderir, no essencial, às justificações já apresentadas.

Queria apenas salientar, em relação ao comentário do Sr. Deputado Herculano Pombo, que o problema dos tribunais militares e da sua subsistência é um problema que existe, mas diria que não há condições políticas, a meu ver - embora ache muito bem que um partido como o PEV o proponha -, para suprimir os tribunais militares. Alguns passos se deram no sentido de cingir os tribunais militares a certo domínio, seja o que resultou da interpretação do Tribunal Constitucional, no sentido de que tinha, na revisão de 1982, sido impedido que os tribunais militares funcionassem como tribunais de contencioso administrativo, seja agora a exclusão do n.° 2, que, aliás, não alterará substancialmente o que está na prática, mas impedirá tentações que podem ser perigosas.

Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Secretário José Magalhães.

O Sr. Presidente (José Magalhães): - Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Fiquei um pouco perplexo com a chamada de atenção para a ordem de trabalhos. A minha intervenção é apenas uma pequena nota, mas estou tentado a faze-la, sem prejuízo de, eventualmente, repetir uma outra questão que terá sido referida. Mas serei breve, de qualquer forma. Queria fazer uma chamada de atenção para a composição do tribunal militar: já que a discussão incidiu no domínio

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do tribunal militar, eu faria uma chamada de atenção para a sua composição, levantando uma questão que hoje, na doutrina, começa a ser levantada e que é a da constitucionalidade da composição dos membros do tribunal militar, uma vez que este é um tribunal, de acordo com a disposição constitucional, e não há garantias, em função da natureza da designação dos juizes e da sua vinculação hierárquica, de que eles sejam independentes nos termos exigidos pela Constituição. Isto tem mais a ver não tanto com o que está dito na Constituição, mas com aquilo que é proclamado hoje em lei ordinária; contudo, esta chamada de atenção pode ser útil, se não foi já feita até agora, e pode, se não houver veleidades excessivas quanto ao propósito desta declaração, ter um efeito positivo, em termos de legislação a apurar no futuro.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Pais de Sousa.

O Sr. Pais de Sousa (PSD): - Também para deixar uma nota, e em nome do PSD, diria o seguinte: o artigo 218.°, agora em apreciação, omite a competência dos tribunais militares para lá dos chamados "crimes essencialmente militares". De facto, o n.° 2, que é objecto de várias propostas de eliminação, permite que sejam confiadas a esses tribunais diversas matérias, existindo tão-só o mito de se tratar de crimes dolosos, e não meramente culposos. Seguramente, não é fácil descortinar critérios de equiparação aos crimes contra a segurança do Estado. A ausência de critérios claros permitiria que os tribunais militares julgassem, por exemplo, os crimes políticos? O n.° 2, no fundo, refere-se a uma equiparação que não foi objecto, até hoje, de legislação regulamentadora. Sabe-se que se trata de uma autorização constitucional não utilizada. Há, todavia, o Decreto-Lei n.° 145-B/77, de 9 de Junho, diploma transitório, que equiparava aos crimes essencialmente militares os ilícitos a que se refere o Decreto-Lei n.° 207-A/75 e a que se referiam os artigos 167.° a 174.° do Código Penal então em vigor. No fundo, este n.° 2 refere-se ao alargamento da jurisdição dos tribunais militares, alargamento que teria sempre de assentar na equiparação material de crimes, sendo certo que tal equiparação só poderá ser feita pela própria Assembleia da República, dado que se trata de matéria da competência exclusiva deste órgão de soberania. É uma questão delicada. Sabe-se que, na prática, já foram abolidos do foro militar os chamados "crimes subjectivamente militares"; pensamos que isso também foi feito já em nome do próprio Estado de direito democrático. Dizia eu que é uma norma delicada, dado que há aqui um risco de utilização abusiva, mas que nunca foi de alguma forma utilizada; é uma norma instrumental e talvez não seja totalmente despicienda, se pensarmos na eventualidade do chamado "crime organizado". Penso que é este enfoque que interessa, neste momento, realçar - é o caso das chamadas "acções armadas contra a segurança do Estado". Dir-se-á que isto colide com os princípios do Estado de direito democrático? Todavia, é necessário ter em conta o seguinte: tal equiparação só será possível com o assentimento do legislador ordinário; é necessário que haja motivo relevante; no fundo, é uma faculdade não discricionária; por último, é necessário que haja interesse público, e contaremos sempre com a intervenção eventual do órgão de controle da constitucionalidade da lei. Diria que o problema é, em última análise, uma questão de natureza política.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Pensava eu que a componente militar da defesa nacional - e que isso já estivesse totalmente adquirido, em termos tanto de letra constitucional como de espírito constitucional - significasse que as Forças Armadas, à excepção única dos regimes do estado de sítio e de emergência, ou para meros efeitos de protecção civil, não teriam qualquer outra função no domínio da segurança interna.

Acabo de ouvir dizer ao Sr. Deputado Pais de Sousa que os tribunais militares, designadamente, poderiam conhecer no seu foro determinado tipo de crimes dolosos, designadamente aqueles que resultassem, pela sua especial perigosidade, na afectação da segurança do Estado, Isso significava revocacionar as Forças Armadas para os problemas da segurança interna e quero dizer ao Sr. Deputado Pais de Sousa que, ou ele não terá reflectido suficientemente sobre as implicações do que acabou de referir, ou é uma contradição a conclusão que estabeleceu relativamente aos pressupostos iniciais da sua própria argumentação.

O que fará sentido é procurar circunscrever a natureza dos crimes militares, por forma que, justamente, não caiba no foro militar tudo aquilo que tiver a ver com o julgamento de ilícitos, tenham a natureza que tiverem, desde que a afectação da segurança do Estado se relacione com a segurança interna e não com segurança ou agressão externas. Ora essa destrinça, que me parece essencial, não foi feita pelo Sr. Deputado Pais de Sousa, e daí que poderíamos reintroduzir pela janela aquilo que - pensava eu - já teríamos lançado definitivamente pela porta, ou seja, a possibilidade institucional de as Forças Armadas terem intervenção no domínio da segurança interna.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Pais de Sousa.

O Sr. Pais de Sousa (PSD): - Sr. Presidente, queria apenas dizer o seguinte: o debate situa-se num plano meramente teórico e formal e, consequentemente, tudo dependerá do legislador ordinário. A questão que o Sr. Deputado me colocou - se de questão se tratou - não foi formulada no condicional, por acaso...

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Mas, Sr. Deputado, a questão ainda se torna mais grave, uma vez que o Sr. Deputado, em resposta, me vem dizer que tudo dependerá da legislação ordinária. Então o Sr. Deputado admite que fique no domínio do legislador ordinário, numa lei que, ainda por cima, nem sequer teria qualquer estatuto reforçado, a possibilidade de revocacionar o papel das Forças Armadas não para a defesa militar da República, mas para garantir a segurança interna? É isso que o Sr. Deputado Pais de Sousa está a admitir como uma prerrogativa do legislador ordinário? Era bom que isso ficasse clarificado.

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O Sr. Pais de Sousa (PSD): - Não, Sr. Deputado. Se quer uma resposta, essa resposta é "não".

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Herculano Pombo.

O Sr. Herculano Pombo (PEV): - Sr. Presidente, queria apenas dirigir uma pergunta muito simples ao Sr. Deputado Pais de Sousa, porquanto da sua intervenção não ficou para mim minimamente claro qual a posição do PSD no que concerne à eliminação do n.° 2.

O PSD está ou não de acordo que é um terreno extremamente escorregadio deixar esta matéria ao legislador ordinário? É que, se o legislador ordinário estiver de férias, pode haver quem se aproveite! Parece-me, de facto, que é um terreno escorregadio e que, em matérias desta natureza, não deve ser deixado ao livre arbítrio do legislador ordinário decidir se certos crimes são equiparáveis aos crimes essencialmente militares, que, por outro lado, não estão bem tipificados. "Crime essencialmente militar" é uma expressão com alguma precisão jurídica mas demasiado vaga, porque pode abranger um elenco enormíssimo de crimes. Parece-me, portanto, que estar a equiparar uns crimes a outros, que, ainda por cima, não estão devidamente tipificados, é altamente perigoso. Admitiria isso em certo tipo de sociedades, mas não na nossa.

O que lhe pergunto, muito directamente, é se o PSD está ou não na disposição de dar acolhimento a alguma das propostas constantes destes cinco projectos de revisão constitucional.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, embora o Sr. Deputado Herculano Pombo tenha formulado perguntas, sugiro que o Sr. Deputado Pais de Sousa, ou outro Sr. Deputado do PSD, possa responder no fim para simplificar os trabalhos.

Tem a palavra o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sr. Presidente, devo confessar que a intervenção do Sr. Deputado Pais de Sousa me deixou um pouco assustado, porque nos assustamos sempre que passamos a tipificar os crimes que poderão ser equiparados aos crimes essencialmente militares. Aliás, percebo perfeitamente a intervenção do Sr. Deputado Pais de Sousa - quer manter espaço de liberdade -, mas não creio sinceramente que o PSD faça questão nesta matéria.

Em todo o caso, queria lembrar o seguinte: julgo que, se perguntarem por que é que isto ficou na revisão de 1982, talvez ninguém saiba, e, se bem me recordo, isto já existia na Constituição de 1933. Na altura revolucionária as circunstâncias não permitiam que se afastassem os tribunais militares, que tinham um papel relevante ou, melhor, que tinham sido arrastados pela própria relevância política das Forças Armadas, e creio que nestas matérias é um pouco o tempo que vai decantando. Por conseguinte, creio que, mais dia, menos dia - e eu gostaria que fosse nesta revisão -, esta norma do n.° 2 cairá.

Lembro também que - se bem me recordo - durante o regime de 1933 - o Sr. Deputado Raul Castro lembrará isso melhor do que eu -, antes de se ter criado - salvo erro em 1945 - o Plenário, foi através dos tribunais militares especiais que se começou a especialidade no julgamento dos crimes contra a segurança do Estado. É evidente que, em condições normais de democracia, esta faculdade não será usada, pelo menos nesse domínio, mas julgo que a função da Constituição é a de proteger o próprio legislador ordinário contra tentações perigosas e, nesse sentido, embora perceba que isto é um artigo que se explica por inércia, penso, até por isso, que seria bom acabar com este n.° 2. Quanto ao resto, diria que ainda é cedo.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: É evidente que a intervenção do Sr. Deputado Pais de Sousa é uma intervenção cheia de prudência, como não pode deixar de ser, bem como altamente prudente era a redacção desta norma, quer em relação às circunstâncias em que foi produzida, quer em relação às circunstâncias que apanhou pelo caminho. Por essa razão é que a redacção deste n.° 2 acabou por levar a que nunca chegasse a ser utilizado e, designadamente, a que nunca chegasse a ser utilizada a autorização constitucional que a Constituição confere à Assembleia da República neste domínio.

Penso, portanto, que a lei, dizendo que será por motivo relevante que poderão ser incluídos na jurisdição dos tribunais militares crimes dolosos equiparáveis aos previstos no n.° 1, quis, na verdade, delimitar o mais rigorosamente possível a aplicabilidade deste preceito. Assim, este n.° 2 é, em si mesmo, também um preceito cauteloso.

O Sr. Heculano Pombo (PEV): - Também os mísseis de longo alcance nunca foram utilizados!...

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Nós compreendemos perfeitamente a posição do Sr. Deputado Herculano Pombo. Também os pombos foram utilizados para enviar mensagens de guerra e são pombos!

Risos.

De qualquer maneira, o que queria dizer é que a posição do PSD neste domínio é uma posição de relativa reserva, mas que mostra alguma abertura à admissibilidade das propostas de supressão do n.° 2 deste artigo. Todavia, como é evidente, deixaremos a nossa posição final para a altura oportuna.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Pais de Sousa.

O Sr. Pais de Sousa (PSD): - Sr. Presidente, queria apenas declarar que coloquei a questão inicialmente em tese e que, efectivamente, alguns Srs. Deputados não souberam lê-la, a contrario que fosse.

Este n.° 2 permite muita coisa; chamei a atenção para os riscos de colisão com o Estado de direito democrático, e posso adiantar que em 1982, como sabem, o próprio deputado Jorge Miranda propôs a eliminação deste n.° 2, e o meu partido - e é isto que quero deixar bem claro - pondera neste momento a sua eliminação. Agora que das minhas declarações iniciais se tirem ilações que, efectivamente, não têm cabimento é que, de facto, não posso aceitar.

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O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Sr. Deputado, eu não quis tirar ilações e quando disse que fiquei preocupado não foi no sentido da argumentação, mas no sentido da exemplificação que deu de perigos, pois a exemplificação dos casos perigosos justifica o cuidado a ter com este artigo. Mas percebo exactamente a sua posição.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Manuel Mendes.

O Sr. José Manuel Mendes (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Independentemente da posição do PSD e até da posição do Sr. Deputado Pais de Sousa, é em torno de alguns exemplos particularmente frisantes, por infelizes ou por felizes, que melhor se vê da bondade ou da maldade de certas soluções.

Estava a ouvir toda a discussão em torno do artigo 218.° e a lembrar-me do incidente que, ainda há bem pouco tempo, andou nas mãos da 1.ª Comissão por causa da existência de uma reclusa na prisão de Leiria, inicialmente condenada a um ano e depois a seis meses de detenção pela simples circunstância de ter furtado, segundo a sentença final, menos de 3000$ de uma caixa de um supermercado de uma manutenção militar. Ora esta aberração não decorre da Constituição, mas de uma leitura bastarda da mesma, da aplicação totalmente indébita dos seus normativos, e prova que alguma coisa há a fazer no sentido de, em defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, evitar qualquer extensão interpretativa daquela que é hoje a malha constitucional. Isso leva-nos a ponderar os caminhos a seguir para pôr termo àquilo que se me afigura ser hoje já, de determinada forma, dificilmente defensável.

Reconheço alguma legitimidade e alguma razoabilidade a argumentos como aquele que há pouco o Sr. Deputado Miguel Galvão Teles expendia, mas a verdade é que, por exemplo, a experiência francesa revela como é possível ir por aqui com êxito e, naturalmente, de acordo com parâmetros que defendam todos e cada um face a arbitrariedades sempre viáveis ou, pelo menos, sempre hipotetizáveis.

Acontece que, no mínimo, se deveria transferir para tribunais de 1.ª instância de competência especializada para julgamentos de crimes essencialmente militares aquilo que hoje é consagrado como uma competência talvez um pouco difusa na órbita do estabelecido no artigo 218.° Que um cidadão, debaixo de um regime de estado de sítio ou de estado de emergência, possa, eventualmente, ser sujeito a decisões, atrabiliárias ou não, ditadas pelas circunstâncias, no quadro da lei marcial, ainda poderá, como circunstância última, afigurar-se minimamente defensável. O que não pode, de forma alguma, tolerar-se, num estado normal de funcionamento das instituições, é que casos do género daquele que há pouco apontei, da senhora de Leiria, ou similares, ocorram com o nosso beneplácito ou, pelo menos, com a nossa inércia.

Uma sugestão que deveríamos ponderar, com interesse, é a que vem proposta pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, que passo a ler. Para o artigo 218.° "Tribunais militares" sugere-se a seguinte redacção:

1 - A lei pode criar tribunais de 1.ª instância de competência especializada para o julgamento de crimes essencialmente militares.

2 - Consideram-se crimes essencialmente militares os factos que ofendam directamente a segurança e a disciplina das Forças Armadas, bem como interesses militares da defesa nacional.

3 - A lei pode atribuir aos tribunais referidos no n.° 1 competência para a aplicação de medidas disciplinares aos membros das Forças Armadas.

Assim se excluiriam, de modo justo e, quiçá, escorreito, um conjunto de procedimentos - repito - hipotetizáveis, que são extremamente nefastos e que se não compadecem com o funcionamento regular das instituições democráticas. Vale a pena, de facto, ter em cima da mesa esta proposta e trabalhá-la, porque creio que é uma positiva matriz de compromisso para as diferentes posições aqui expendidas.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Herculano Pombo.

O Sr. Herculano Pombo (PEV): - O Sr. Deputado José Manuel Mendes já aqui referiu o infeliz caso da funcionária civil do estabelecimento das Forças Arruadas, que é um caso de que sou relator na Comissão de Defesa e que tive oportunidade de conhecer nos seus pormenores mais maquiavélicos. Pela subtracção, ou seja, pelo não registo de 2700$, uma cidadã pacata deste país, que, ainda por cima, tem a seu cargo filhos menores, é penalizada com um ano de prisão efectiva, não remível, pena que depois, em tribunal de 2.a instância, é reduzida para seis meses. Ora, se tivermos em consideração a corrupção que vai pelo País fora, não haveria no calendário meses que chegassem para penalizar outros crimes!...

Queria referir também o que foi dito - creio que pelo Sr. Deputado José Manuel Mendes - quanto à extinção dos tribunais militares em França, o que aconteceu na mesma altura em que se extinguiu, também em França, o Tribunal da Segurança do Estado e se aboliu a pena de morte. São três medidas que terão alguma conexão na sua natureza.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, estão equacionados os termos em que os diversos partidos apresentam propostas nesta matéria: de um lado, adianta-se a hipótese da abolição e, no outro campo de hipótese, encontra-se a limitação de competências e a própria alteração, ou seja, um quantum de alteração do estatuto dos tribunais com a eventual inserção, como tribunais especializados, na ordem normal dos tribunais. Os argumentos de um lado e do outro estão, portanto, ponderados.

Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Presidente, queria apenas perguntar ao Sr. Deputado José Manuel Mendes se o documento do Ministério Público que referiu é um documento particular ou um documento remetido à Assembleia.

O Sr. Presidente: - Foi remetido à Comissão. Para ser mais preciso, o documento em referência foi transmitido às direcções partidárias antes da própria apresentação dos projectos de revisão constitucional e, ulteriormente, foi remetido formalmente à Comissão de Revisão Constitucional para ser ponderado.

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Há ainda algum dos Srs. Deputados que queira usar da palavra sobre os tribunais militares?

Pausa.

Não mencionei há pouco, por mero lapso, em relação a uma das observações do Sr. Deputado Miguel Galvão Teles, que, realmente, a Constituição de 1933 era omissa em relação aos tribunais militares. Tinha um artigo, de resto célebre, que rezava:

Não é permitida a criação de tribunais especiais com competência exclusiva para julgamento de determinadas categorias de crimes, excepto sendo estes fiscais, sociais ou contra a segurança do Estado.

A Constituição de 1976 fez-se precisamente contra isto (donde a exclusão de tribunais especiais) e tem uma norma que é a transcrição desta ao contrário, ou seja, invertida, com um sentido proscritivo típico.

Em todo o caso, a evolução que situou, com o alargamento das competências dos tribunais militares num sentido repressivo no tempo do fascismo, é, creio, historicamente rigorosa e lamentável. Portanto, a sua reedição, a qualquer título - e longe vá o agouro -, seria malfazeja. Creio estar fora de questão.

O Sr. Miguel Galvão Teles (PRD): - Penso que valeria a pena averiguar o ponto historicamente. A Constituição de 1933 não proibia isto; permitia-o e permitia mais. A fórmula aparece no texto inicial da Constituição de 1976 - se não estou em erro - e aparece, provavelmente, por causa do regime que se estabeleceu de competência dos tribunais militares no período revolucionário, que permitiu, por exemplo, que julgassem a rede bombista, etc.., etc.. Foi para salvaguardar a competência que tinha sido atribuída aos tribunais militares ou que tinha, porventura, sobrevivido. Mas, repito, penso que valeria a pena fazer uma investigação histórica nesse domínio - ou recordação.

O Sr. Presidente: - Creio que para isso temos ainda tempo. No quadro dos nossos trabalhos será possível formular um juízo rigoroso e fundamentado sobre a matéria.

Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Presidente, foi apenas para chamar a atenção para isto, não com a explicitação que lhe foi dada pelo Sr. Deputado Miguel Galvão Teles, que referi as circunstâncias históricas em que o preceito foi protegido.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, no que diz respeito ao artigo 219.°, apresentam propostas o CDS, o PCP e os PS.

O CDS propõe a redefinição das competências do Tribunal de Contas, por forma a dispor: "Compete ao Tribunal de Contas dar parecer sobre a Conta Geral do Estado, fiscalizar a legalidade das despesas públicas e julgar as contas das empresas públicas e outras que a lei mandar submeter-lhe."

O PCP propõe uma refundição global do preceito, com a alteração da técnica normativa e desenvolvimentos e densificações em direcções várias. Nos termos dessa proposta, o n.° 1 passaria a dispor: "1 - Compete ao Tribunal de Contas dar parecer sobre as contas gerais

do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais, fiscalizar a legalidade das despesas públicas, julgar as contas que a lei mandar submeter-lhe e assegurar a fiscalização externa independentemente das relações financeiras entre Portugal e as organizações internacionais de que faça parte." O n.° 2 teria a seguinte redacção: "2 - A lei prevê os casos em que cabe ao Tribunal fiscalizar preventivamente a legalidade dos documentos geradores de despesas para o Estado e dos subsídios, créditos, avales e outras formas de apoio por ele concedidos, bem como exercer formas de controle da gestão de organismos, serviços e outras entidades públicas." O n.° 3 é do seguinte teor: "3 - Haverá secções regionais do Tribunal de Contas." Finalmente, o n.° 4 teria a seguinte redacção: "4 - Sem prejuízo das disposições aplicáveis à nomeação do presidente do Tribunal de Contas, o recrutamento dos respectivos juizes faz-se por concurso curricular perante júri independente, nos termos que a lei determinar."

O PS propõe a eliminação do preceito nesta sede, com a sua reinserção numa outra ordem, como artigo 217.°-C, com o seguinte conteúdo: "1 - O Tribunal de Contas emite parecer sobre a Conta Geral do Estado, fiscaliza a legalidade financeira e a correcção económica da gestão financeira do Estado, incluindo os seus serviços, autónomos ou não, as regiões autónomas e as autarquias locais, bem como dos institutos e associações públicas, de capitais públicos ou com participação pública maioritária, e julga as contas que a lei manda submeter-lhe.

2 - O Tribunal de Contas pode funcionar descentralizadamente, por secções regionais, nos termos da lei."

No que diz respeito às propostas apresentadas pelo PCP, e na ausência do CDS, gostaria de fazer algumas observações.

Em primeiro lugar, entendemos, Srs. Deputados, que a situação criada no tocante à técnica normativa respeitante ao Tribunal de Contas é, realmente, indesejável e colocou, na nossa experiência, dificuldades substanciais à lei ordinária em todas as circunstâncias em que esta procurou avançar num sentido inovador para aprofundar e aperfeiçoar o estatuto do Tribunal de Contas. O Acórdão n.° 81/86 do Tribunal Constitucional, de 22 de Abril de 1986, demonstra exuberantemente as dificuldades do regime actual. A Assembleia da República tinha procurado, por unanimidade, de resto, alargar e aperfeiçoar o regime de fiscalização pelo Tribunal de Contas da legalidade das despesas públicas. No entanto, o Tribunal Constitucional, avaliando os limites da consagração constitucional das competências do Tribunal, que estão taxativa e absolutamente fixadas constitucionalmente, veio a entender que o espaço que exploratoriamente se tinha pretendido forcejar era vedado ao legislador ordinário. É recolhendo as lições dessa experiência de inovação e tendo em conta a necessidade de flexibilização do preceito - mas com simultânea densificação e enriquecimento - que o PCP apresenta a proposta de que vos acabei de dar conhecimento.

Em segundo lugar, gostaria de aditar à leitura já feita algumas observações muito curtas. O Sr. Presidente do Tribunal de Contas teve ocasião de remeter a todos os membros da CERC um ofício, datado de 31 de Maio de 1988, através do qual se pronuncia sobre as diversas

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propostas apresentadas. Nesse ofício considera-se (o que me apraz sublinhar) que a solução perfilhada pela Constituição no caso do Tribunal de Contas é, num plano de funcionalidade, a menos desejável. E o Sr. Presidente do Tribunal de Contas fundamenta esta consideração nos seguintes termos: "Dela resulta ou pode resultar um espartilhamento do âmbito de discricionariedade do legislador ordinário, como, aliás, bem evidenciado ficou no Acórdão n.° 461/87 do Tribunal Constitucional, a propósito da interpretação constitucional do conceito de legalidade das despesas públicas. Assim sendo e à luz dessa realidade, entende-se dever constituir objectivo prioritário da revisão do actual artigo 219.° a remissão para lei ordinária de parte das competências do Tribunal de Contas, sem prejuízo, é evidente, de desde logo se deixar delimitada a sua nuclearidade essencial." É isso que o PCP propõe, embora no que seja a definição da nuclearidade essencial apresente um projecto que procura recobrir, com carácter inovador, algumas das áreas em que a intervenção do Tribunal de Contas nos parece de maior utilidade, com vista à realização plena das finalidades que presidem à sua existência e funcionamento. É assim que elencamos as competências com carácter pormenorizado. Chamo a vossa atenção para a importância de que pode vir a revestir-se o segmento final da norma que propomos, isto é, a intervenção do Tribunal de Contas na fiscalização externa independente das relações financeiras entre Portugal e as organizações internacionais de que Portugal faz parte, em que obviamente se inclui a relação com as Comunidades Europeias.

Por outro lado, no n.° 2, em termos que me parecem igualmente interessantes e relevantes, refere-se a fiscalização preventiva, ou algumas das dimensões que essa fiscalização preventiva pode assumir, designadamente quanto aos subsídios, créditos, avales e outras formas de apoio concedidos pelo Estado e outras entidades públicas. Idem, aspas, em relação ao controle da gestão de organismos, serviços e entidades públicas.

Alerto, por outro lado, para a utilidade de (mas este é um ponto comum entre a proposta do PCP e a do PS) se mencionar o carácter descentralizado da organização do Tribunal Constitucional e, especificamente, a existência de secções regionais. As secções regionais são, como é óbvio, particularmente relevantes no caso das regiões autónomas, mas podem vir a adquirir relevo também aquando da criação de regiões administrativas no território do continente.

As normas respeitantes à composição do Tribunal de Contas e ao regime de recrutamento dos respectivos juizes poderão ter maior economia do que aquela que vem sugerida pelo PCP. Em todo o caso, creio que é fundamental que haja uma norma deste tipo. Os Srs. Deputados atentarão em que o Sr. Presidente do Tribunal de Contas nos remete uma sugestão legislativa (que atempadamente lerei) que é mais económica que esta proposta pelo PCP, mas convergente quanto às intenções.

Para apresentar a proposta do PS, tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - A nossa proposta em relação a esta tríplice função do Tribunal de Contas vem mais especificadamente detalhar, ou procurar detalhar, a função fiscalizadora do Tribunal de Contas. Se se atentar na nossa proposta, verificar-se-á que nela se mantém a referência ao parecer sobre a Conta Geral do Estado, bem como o inciso "julga as contas que a lei manda submeter-lhe", tal como hoje consta da Constituição, mas que se acrescenta, a fim de moldar o preceito constitucional ao âmbito que ele tem na realidade, a competência de fiscalização do Tribunal.

Pensamos que quer a nossa proposta quer a proposta do PCP, no que diz respeito à regionalização, têm o mesmo sentido, e um sentido que julgamos útil, sobretudo se tivermos em conta todo o processo de regionalização que, esperamos, venha rapidamente a caminho.

A nossa proposta explica-se por si própria e não suscita grandes dificuldades: a fiscalização é alargada às regiões autónomas e às autarquias locais, bem como aos institutos e associações públicas, de capitais públicos ou com participação pública maioritária e às empresas de capitais públicos.

Permitia-me fazer alguma "crítica" ao projecto do PCP. Se bem que nalgumas matérias se me afigure que o esforço tem o mesmo sentido que o nosso, parece, no entanto, salvo o devido respeito, ter-se ido longe de mais. Em primeiro lugar, não vejo (mas pode ser que esteja a ver erradamente, pois não sou um perito nesta matéria) que seja necessário concretizar a "fiscalização externa independente", visto que as relações financeiras entre Portugal e as organizações internacionais de que faça parte sempre encontrarão alguma concretização ao nível orçamental e ao nível da Conta Geral do Estado. É esta a minha opinião, mas pode não ser correcta, pode haver algum pormenor ou algum aspecto importante que me falhe e já fazer sentido aquilo que, a meu ver, poderá não o fazer. E o mesmo se diga relativamente aos "documentos geradores de despesas para o Estado" e aos "subsídios, créditos, avales". Penso que tudo isto já está incluído na fiscalização da gestão financeira do Estado. Valerá a pena, em sede de lei constitucional, que não de lei ordinária, chegar a este pormenor? Pode ser que sim - e coloco esta questão mais em jeito de pergunta do que de crítica.

Por outro lado - aqui, sim, trata-se de uma crítica -, parece-me que o n.° 4 contempla uma matéria que manifestamente cabe à lei ordinária. É evidente que se poderá dizer: "Atenção, por exemplo, ao Tribunal Constitucional, órgão relativamente ao qual a Constituição intervém quanto à sua composição, modo de recrutamento, etc..!" No entanto, penso que não estamos nesta matéria em situação de paridade com o Tribunal Constitucional ou mesmo com outros tribunais. Em meu entender, a questão do acesso à magistratura do Tribunal de Contas constitui manifestamente matéria de lei ordinária.

Finalmente, há um aspecto que não foi focado mas que, a nosso ver, se bem que não lhe atribuamos excessiva importância, tem, no entanto, alguma relevância. Refiro-me ao facto de na nossa sistemática termos colocado o Tribunal de Contas antes dos tribunais militares, que passaram para o fim. Isso tem algum sentido.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Vera Jardim, na descrição dos articulados em debate, tive ocasião de salientar a reinserção sistemática que propomos e, logo, o facto de a matéria do Tribunal de Contas, constante

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do artigo 217.°-C, estar prevista antes da matéria respeitante aos tribunais militares. É realmente uma das características do projecto do PS. Em todo o caso, entendo o sublinhado.

Gostaria de perguntar aos Srs. Deputados do PSD se desejam pronunciar-se sobre esta matéria, antes de poder dar resposta às interrogações do Sr. Deputado Vera Jardim. Poderia ser vantajoso que antes da generalização do debate, ou no início dessa generalização, os Srs. Deputados do PSD, que não apresentaram propostas sobre esta matéria, se assim entenderem, emitissem opinião. A não ser que desejem que a bancada do PCP responda às interrogações deixadas pelo Sr. Deputado Vera Jardim, o que seria uma forma de abrir o debate, podendo facilitá-lo, de resto.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador.)... tentou fazer no outro dia, que era de lançar também as dúvidas do PSD na sua boca. Não, não vai fazer isso!

Risos.

O Sr. Presidente: - Acho que, mesmo na qualidade momentânea, é inexigível que produza eu a apresentação e elogio das ideias do PSD nesta como nas demais matérias!

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Penso que o PSD se poderá pronunciar agora, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Pais de Sousa.

O Sr. Pais de Sousa (PSD): - Apenas pelo facto de não ter apresentado qualquer proposta de alteração, deve inferir-se desta não propositura que o PSD mantém a actual redacção.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.

O Sr. Raul Castro (ID): - Sr. Deputado Pais de Sousa, não percebi bem o sentido da sua intervenção. É no sentido de manter a redacção actual do preceito ou no de introduzir alguma modificação?

O Sr. Pais de Sousa (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)

O Sr. Raul Castro (ID): - É evidente que o PSD não apresentou qualquer proposta. Mas, relativamente às propostas do PCP e do PS, qual é a posição que têm nesta fase?

O Sr. Pais de Sousa (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Pretendia, antes de entrarmos na fase do debate, fazer, digamos, outra interpelação ao PCP, que diz respeito ao n.° 3 proposto por este partido em comparação com o nosso n.° 2.

Suponho - e já por várias vezes nos temos aqui defrontado com esse tipo de problema - que uma coisa é, como nós fazemos, deixar na Constituição uma linha aberta de evolução ao legislador ordinário, ou seja, o tribunal poder funcionar descentralizadamente, e outra coisa é, como faz o PCP, antever já uma descentralização, que não se sabe em que termos vai ser feita, quais serão as suas consequências, etc.., e que é feita pelo PCP em termos injuntivos, o que me parece também um pouco negativo.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, usando da palavra na qualidade de parte, gostaria de alertar para alguns aspectos.

Primeiro aspecto: temos um problema que ou é dirimido agora ou fica para a próxima revisão, como é óbvio. De facto, a redacção deste preceito é de tal forma absoluta e, nesse sentido, é de tal forma rígida - o que contrasta de tal forma com a redacção adoptada por outros preceitos respeitantes à competência de tribunais, designadamente o Tribunal Constitucional e os tribunais militares - que a margem de intervenção do legislador ordinário está neste momento seriamente prejudicada pela inflexibilidade que lhe está imposta. Essa inflexibilidade é, em nossa opinião, indesejável - aqui está um caso em que a inflexibilidade não é virtuosa -, sendo este o momento de introduzir as correcções adequadas. Isso pode fazer-se com mais economia, com menos economia, com exclusão deste ou daquele campo, mas importa que seja feito.

Há pouco, aludi à existência de uma sugestão- normativa apresentada pelo Sr. Presidente do Tribunal de Contas, adiando para este momento a leitura dessa sugestão. Creio que é boa altura para o fazer, porque ela seguramente corresponderá a preocupações que afloraram nas intervenções de alguns dos Srs. Deputados. A referida sugestão é a seguinte:

1 - Compete ao Tribunal de Contas fiscalizar a legalidade e boa gestão da actividade financeira do Estado e demais entidades públicas, nos termos da lei.

Esta redacção, sendo um enunciado genérico das competências do Tribunal, é uma redacção aberta, é uma cláusula aberta, o que tem apreciáveis vantagens.

O n.° 2 é uma especificação:

Para tal fim compete nomeadamente ao Tribunal de Contas:

a) Dar parecer sobre a Conta Geral do Estado, incluindo a da Segurança Social e das Regiões Autónomas;

b) Julgar ou apreciar as contas que a lei mandar submeter-lhe;

c) Fiscalizar preventivamente os actos que a lei determinar;

d) Efectivar as responsabilidades pelas infracções financeiras;

é) Inspeccionar a utilização de fundos públicos por entidades públicas ou privadas;

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3 - A nomeação dos juizes compete ao presidente do Tribunal de Contas, após concurso curricular, nos termos que a lei determinar.

Creio que é útil ter presente esta sugestão de alteração, porque, no fundo, ela insere-se em preocupações que nos levaram a adiantar o texto que há pouco vos apresentei.

Responderia, agora, directamente às quatro observações do Sr. Deputado Vera Jardim.

Primeira observação: "Porquê aludir à fiscalização externa? Não bastará a decorrente da inserção no Orçamento do Estado e na Conta Geral do Estado?" Numa visão muito malthusiana, basta. Numa visão de alargamento da intervenção do Tribunal de Contas a novas áreas de competência, não basta. Digamos que nesse aspecto fomos ambiciosos na nossa proposta. Não se trata aqui apenas de fiscalizar a legalidade das despesas: trata-se de permitir à lei ordinária que crie algum sistema que dê uma intervenção ao Tribunal de Contas no próprio controle não só na altura da Conta Geral do Estado, que é um controle, como sabemos, muito tardio, mas no próprio processamento e efectivação dos fluxos financeiros Comunidades/Portugal. Neste ponto, a experiência das relações entre Portugal e as Comunidades parece-nos ser de molde a justificar gritantemente uma actualização no sentido proposto.

Segunda observação: "Porquê inserir uma clausula como a contida no segmento intermédio do n.° 2 proposto pelo PCP, portanto, na parte alusiva aos subsídios, créditos, avales e outras formas de apoio público?" Sr. Deputado Vera Jardim, provavelmente pela mesma razão que levou o Tribunal de Contas a propor uma alínea e) do n.° 2, que visa cometer ao Tribunal poderes para inspeccionar a utilização de fundos públicos por entidades públicas ou privadas. É evidente que será a lei a especificar e a determinar quais os fundos objecto dessa forma de controle - há uma margem apreciável de decisão cometida ao legislador ordinário. Em todo o caso, creio que a menção a este aspecto é cada vez mais importante, na medida em que a experiência não só da atribuição de determinados subsídios para efeitos de apoio a trabalhadores ou a empresas em situação difícil, quer no âmbito do primeiro regime do Ministério do Trabalho quer no âmbito de outros regimes que lhe sucederam, e ulteriormente a experiência do Fundo Social Europeu, são concludentes quanto à importância de que se reveste o controle, dado o volume crescente de recursos públicos que são afectos a finalidades de apoio de entidades públicas e privadas, em condições que, sem esse acrescido controle, podem ter consequências graves. E nesta parte o controle pelo Tribunal de Contas é particularmente importante, sem prejuízo de outras formas, designadamente de formas de fiscalização interna, a cargo da própria Administração Pública.

Quanto ao n.° 4 apresentado pelo PCP, sobre a questão da nomeação dos juizes do Tribunal de Contas, é particularmente importante. De facto, sabe-se que, quanto a esta matéria (estatuto dos juizes, forma de nomeação), nunca foi cumprida a obrigação de revisão constante do artigo 301.°, n.° 1, da versão originária da Constituição. Sucessivas iniciativas legislativas, designadamente apresentadas pelo PCP, têm sido submetidas à Câmara, mas, em todo o caso, a revisão do regime jurídico do Tribunal de Contas marca passo.

Foi obrigação apontada em sucessivos orçamentos do Estado; o Governo em funções anunciou, em diversas ocasiões, que daria impulso à reforma necessária, mas a verdade é que ela está por fazer.

De todos os pontos a incluir na reforma do TC, seguramente o respeitante à forma de recrutamento dos juizes não é o menos importante. A Constituição consagra em relação à forma de recrutamento de juizes de outros tribunais. Ou consideramos que essas regras são de aplicação generalizável a este campo - o que também é uma solução - ou, se admitimos e mantemos um vazio constitucional neste ponto, permitimos soluções como, por exemplo, a que está em vigor. Creio que a situação é indesejável e que deveríamos apontar para um reforço do estatuto das condições de independência dos magistrados do Tribunal de Contas, o que tem garantia não despicienda na forma de nomeação. Temos uma proposta sobre essa matéria, se bem que, naturalmente, a nossa proposta no terreno da lei ordinária seja mais desenvolvida do que a apresentada nesta sede. Aqui apenas se sublinha a importância do concurso curricular perante júri independente, não se especificando a composição do júri. Como o Sr. Deputado Vera Jardim poderá reparar, a proposta apresentada pelo Tribunal de Contas reza mais singelamente que "a nomeação dos juizes compete ao presidente do Tribunal, após concurso curricular nos termos que a lei determinar". Não se deixa, no entanto, de apontar a imprescindibilidade de um concurso curricular, o que constitui um enriquecimento que, creio eu, não seria negativo.

A última observação prende-se com o regime das secções regionais. O regime das secções regionais não é uma invenção impositiva, visto já existirem secções regionais nas regiões autónomas. É inconcebível, devo dizer, que deixem de existir. Portanto, ao aprovar esta norma não estaremos fazendo sonho, mas, sim, acolhendo uma realidade já plasmada pela lei ordinária, sedimentada e, creio, dificilmente reversível. É, portanto, normal que a Constituição se enriqueça com normas que têm em conta realidades que repugna considerar amovíveis. É esse o sentido da nossa proposta. Claro que na parte aplicável às regiões administrativas do continente não decalcamos a realidade e a proposta se abre ao futuro. Mas isso é questão que não nos tolherá excessivamente na redacção da norma, que é suficientemente complacente.

Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Presidente, gostaria de fazer uma pequena intervenção e, ao mesmo tempo, uma ou duas perguntas dirigidas essencialmente ao Partido Socialista para compreender um pouco melhor a sua proposta.

Em relação à proposta do PCP, V. Exa. já teve ocasião de explicitar qual era o seu alcance, o seu conteúdo e o seu âmbito. Parece-nos, em termos gerais, que ela é um pouco excessiva em relação àquilo que nós estamos eventualmente dispostos a aceitar quanto à definição constitucional das competências do Tribunal de Contas.

A proposta do Partido Socialista é uma coisa que, penso, toda a gente verá com agrado. Nós sabemos qual é a sobrecarga, quais são os enormes problemas e as contrariedades que tem nesta altura o Tribunal

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de Contas em relação ao fluxo e à carga de processos a dirimir. Este n.° 2 parece-nos por si mesmo atractivo. Portanto, penso que será fortemente motivador da nossa concordância. Aliás, esta é uma proposta que também está subjacente no n.° 3 da proposta do Partido Comunista, relativo à criação das secções regionais.

Se for bem entendida, esta proposta propiciará um desenvolvimento positivo na actuação do Tribunal de Contas e uma melhoria qualitativa na sua actuação.

Por outro lado, o que nós gostaríamos de perguntar ao Partido Socialista era o seguinte: o que é que de substancial novidade traz o n.° 1 desse artigo? Parece-nos que a maioria das questões aí versadas já constam de uma interpretação correcta do que está estatuído no artigo 219.° da actual Constituição. Isto é, penso que o Partido Socialista faz uma interpretação da norma tal como ela deve ser feita e incluiu-a no n.° 1 do artigo. Se assim for, é evidente que, do nosso ponto de vista, a receptividade a esta nova formulação do artigo poderá ser total. Se assim não for, há que perguntar o seguinte: será que há alguma coisa de novo que VV. Exas. tenham visto e que não está subsequente no actual artigo 219.° da Constituição? Gostaria que me esclarecessem qual.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Deputado, não há aqui nada de novo. Em todo o caso, é uma matéria sobre a qual terei de consultar os meus colegas de bancada que dela se ocuparam, já que não sou especialista em finanças públicas. Mas suponho que não há aqui nada que não seja apenas uma sistematização daquilo que já hoje é abrangido pela actividade de fiscalização do Tribunal.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Deputado, é exactamente isso que penso do n.° 1 do artigo proposto. Foi por isso que suscitei esta aclaração.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, gostaria de alertar apenas para dois aspectos.

O n.° 1 da proposta do Partido Socialista implica uma ampliação das competências do Tribunal de Contas, designadamente uma alteração da natureza da sua intervenção, que deixa de se circunscrever às questões de legalidade para passar também a abranger as de correcção económica, ampliação não despicienda, que nos parece, aliás, de aplaudir.

Por outro lado, especifica-se e densifica-se o âmbito das entidades públicas sujeitas a fiscalização, designadamente no segmento final.

Gostaria, porém, de sublinhar que a norma não fica suficientemente aberta. Continua a fazer-se uma definição taxativa de competências, o que pode vir a ter inconvenientes na óptica para a qual o Tribunal de Contas nos vem alertando. É evidente que toda a matéria é susceptível de ser relida face, aliás, ao próprio saldo da discussão.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Presidente, nós nessa altura não tínhamos conhecimento - e suponho que foi elaborada posteriormente - da mensagem do Sr. Presidente do Tribunal de Contas. É óbvio que estamos abertos para ir ao encontro das preocupações do próprio Tribunal. E ninguém melhor do que o presidente do Tribunal de Contas conhece essas necessidades! Sabemos que neste momento está em preparação uma reorganização completa do Tribunal. Não queremos, de modo nenhum, por desconhecimento ou por descoordenação dessa actividade, fechar no quadro constitucional todas as possibilidades de abertura a que o presidente faz alusão. Temos toda a abertura para, neste quadro, encarar as propostas que vierem do Tribunal de Contas.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - O Sr. Deputado José Magalhães salientou na sua intervenção que a correcção económica da gestão financeira do Estado é uma área nova a acrescentar às competências do Tribunal de Contas. Se esta vertente for aceite pelo Partido Socialista, penso que irá ficar consagrado um manifesto excesso. Isto porque, na verdade, nem sequer na proposta ou na mensagem que nos foi enviada pelo Sr. Presidente do Tribunal de Contas ela vem inserida e considerada.

Penso que na proposta do Partido Socialista haveria que repensar esta matéria e este domínio. Creio que ela poderá ter este alcance. De resto, continuo a defender a posição que há pouco acabei de expender.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Presidente, como não sou especialista nesta matéria, não estou inteiramente à vontade para me pronunciar sobre ela. Em todo o caso, parece-me que o que se pretende em matéria de revisão constitucional está numa linha correcta. Pensamos que não chega apenas a fiscalização da estrita legalidade financeira, não chega apenas fazer do Tribunal de Contas um órgão mais ou menos burocrático que controle e fiscalize se a despesa é feita de acordo com a lei. Com esta proposta esse órgão passaria a actuar na própria correcção da despesa, agora já situada no plano de um juízo económico. Penso que tem de ser assim. Todas as intervenções do actual presidente do Tribunal de Contas vão um pouco no sentido de tornar o Tribunal de Contas num órgão actuante e verdadeiramente activo no quadro da fiscalização. Ora a fiscalização estrita da legalidade não é fiscalização completa. Há que tornar o Tribunal num órgão com competências mais amplas, para que aprecie da correcção económica da despesa e não apenas da sua correcção jurídica stricto sensu.

Repito: esta é uma opinião emitida a título meramente pessoal, visto que não estou a ver, de momento, todas as consequências que isto possa vir a ter. Estou, pois, aberto a discutir este assunto em fase posterior.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

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O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Presidente, o Sr. Deputado Vera Jardim considerará, com certeza, que são substancialmente diferentes os pressupostos num caso ou noutro. Aquilo a que eu me atinha era fundamentalmente à mensagem que foi enviada pelo Sr. Presidente do Tribunal de Contas e não propriamente às opiniões por ele expendidas. O que acontece é que na mensagem que ele enviou nem de perto nem de longe estão compendiados estes aspectos. Nesse documento não se refere qualquer outra dimensão da intervenção do Tribunal tal como está aqui entendida na proposta do Partido Socialista. Assim sendo, ela não é consentânea com aquilo que ele próprio pretende.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Carlos Encarnação, a proposta, embora seja concisa, é asisada e refere que "compete ao Tribunal de Contas fiscalizar a legalidade e boa gestão da actividade financeira do Estado". A proposta não é, pois, despida de preocupações em relação a essa vertente nova. Visa precisamente, ao contrário do que V. Exa. afirma, transcender o juízo da mera e pura legalidade, na esteira, de resto, daquilo que é preocupação do Tribunal, evidenciada em todos os documentos que publicamente têm sido anunciados e que, de resto, se traduziram já numa proposta de lei, numa sugestão legislativa transmitida à Comissão de Economia, Finanças e Plano que, neste momento, está a ser objecto de consideração. Deveríamos ter em atenção os projectos de lei existentes sobre essa matéria, as sugestões legislativas do Tribunal e o debate que os nosso colegas da Comissão de Economia, Finanças e Plano têm vindo a travar sobre esta matéria. Devo dizer que esse debate vem incidindo, com crescente interesse, sobre as dimensões de controle situadas para além da legalidade que a intervenção do Tribunal de Contas pode vir a assumir. Importará definir uma margem razoável de intervenção, que, de resto, permita uma transição entre o regime actual e um regime futuro mais alargado.

É preciso ter em conta os meios de que o Tribunal dispõe para exercer esse leque alargado de competências. Esses meios estão neste momento a ser alargados. Em todo o caso, se houver a transição de um regime clássico para um regime mais vasto, sobretudo se for alargado o controle ao universo empresarial público, conjugando-se o alargamento da bitola de apreciação da actividade da Administração Pública clássica e o alargamento das competências do Tribunal a outras entidades que se movem na esfera pública, o legislador ordinário terá de fazer uma ponderação muito cuidadosa das complexas soluções a adoptar.

Alguma solução tem de ser encontrada em sede de revisão constitucional. É mais fácil que no plano da lei ordinária, porque basta consagrar duas cláusulas que muito genericamente apontem caminhos e que depois devam ser concretizadas pelo legislador.

Era esta a informação que gostaria que pudesse ter em conta nas suas considerações.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Presidente, creio que aquilo que é dito na mensagem do Sr. Presidente do Tribunal de Contas é substancialmente diferente daquilo que acaba de ser verificado por comparação entre a proposta do Partido Socialista e aquilo que esta mensagem afirma. Na mensagem diz-se "boa gestão da actividade financeira do Estado". Aqui o que vem dito é "correcção económica da gestão financeira do Estado". São coisas diferentes, são coisas distintas.

De qualquer maneira, o grande problema é o de saber se, na verdade, a dimensão da actividade do Tribunal de Contas deverá ser ou não esta. Depois há que saber se o Tribunal de Contas está ou estará preparado para uma dimensão destas. De qualquer maneira, no primeiro e no segundo dos pontos a nossa posição é a de desacordo. Entendemos que não está nem deve estar. Estamos a tentar fazer uma coisa que é útil e sensivelmente boa, que é a de tentar criar secções regionais, dinamizar a actividade do Tribunal de Contas. O problema aqui é que, ao mesmo tempo, estamos a enchê-lo de competências duvidosas e complicadas, que, na verdade, são extremamente difíceis de exercer em termos hábeis.

São estas as razões que nos levam a afastar destes pontos concretos que detectámos na proposta do Partido Socialista e, eventualmente, na proposta do PCP.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Presidente, gostaria que o Sr. Deputado Carlos Encarnação me esclarecesse o seguinte: o PSD está na disposição de aderir à proposta do Sr. Presidente do Tribunal de Contas e, em vez de "correcção económica", introduzir "boa gestão da actividade financeira?"

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Carlos Encarnação.

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): - Sr. Deputado Vera Jardim, entendo que nem a uma nem a outra. De qualquer maneira, notamos que há uma diferenciação importante entre a proposta do Sr. Presidente do Tribunal de Contas e a do Partido Socialista. A nossa posição nesta área - e apenas nesta - é de reserva.

Em relação ao resto da proposta do Partido Socialista - e não quanto à do Sr. Presidente do Tribunal de Contas -, pensamos que ela tem bastantes virtualidades e que se limita a desenhar melhor aquilo que o próprio preceito constitucional já inculca, que a nosso ver está correcto e deve ser mantido.

O Sr. Presidente: - Se bem percebo, o Sr. Deputado Carlos Encarnação não adere às ideias sugeridas pelo Tribunal de Contas...

O Sr. Carlos Encarnação (PSD): não, Sr. Presidente.

Neste particular

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.

O Sr. Raul Castro (ID): - Sr. Presidente, afigura-se-nos que as propostas do PCP e do PS, que têm dois pontos semelhantes - a referência às regiões autónomas e às autarquias locais e a criação de secções regionais -, correspondem àquilo que é sentido como uma necessidade resultante da experiência do próprio Tribunal de Contas. O que se poderá discutir é se, efectivamente, as propostas vão além ou ficam aquém daquilo que o próprio Presidente do Tribunal de Con-

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tas sugere a esta Comissão que seja tido em consideração, na medida em que isso é fruto da própria experiência e das dificuldades com que o mesmo se debate.

Penso que está aqui aberto um debate muito importante e que a manutenção dos termos actuais do artigo 219.°, sem alterações, não só não corresponde à própria ambição fundamentada do Presidente do Tribunal de Contas como às propostas apresentadas. Daí que nos pareça que as propostas apresentadas pelo Sr. Presidente do Tribunal de Contas, pelo PCP e pelo PS são de considerar, no sentido de atribuir à competência do Tribunal de Contas um âmbito que neste momento não tem nem pode ter. Não poderá ter se se mantiver a actual redacção do corpo do artigo. Importa, por isso, alterá-la.

Para mim ficou um pouco confusa a última intervenção do Sr. Deputado Carlos Encarnação. Fiquei com a ideia de que ele defende que não se deve tocar no corpo do artigo, o que para mim é absurdo, na medida em que isso choca com o próprio desejo do Sr. Presidente do Tribunal de Contas.

Parece-me que o que está aqui em causa é introduzir modificações na competência do Tribunal de Contas. A proposta que mais profundamente as reflecte é a do PCP, embora na do PS também haja algumas propostas que devem ser apreciadas e tidas em consideração na nova redacção do artigo 219.°

Gostaria de solicitar ao Sr. Presidente que fizéssemos agora um intervalo de quinze minutos, visto que há vários Srs. Deputados que não estão neste momento presentes na sala.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, se depois do intervalo não houver oradores inscritos, iremos deixar a matéria do Tribunal de Contas.

Recomeçaremos os trabalhos às 17 horas e 55 minutos.

Srs. Deputados, está suspensa a reunião.

Eram 17 horas e 35 minutos.

Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Vice-Presidente, Almeida Santos.

O Sr. Presidente (Almeida Santos): - Srs. Deputados, está reaberta a reunião.

Eram 18 horas e 10 minutos.

Vamos começar a analisar o artigo 220.° Isto não andou nada!...

O Sr. José Magalhães (PCP): - Andou imenso. Já há consensos indiciados! E consensos bons, ao contrário de outros!

O Sr. Presidente: - O artigo 220.° é de extrema simplicidade? Ou é ilusão minha?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Exacto! É só rejeitar a proposta do CDS!

O Sr. Presidente: - O CDS, no seu projecto, prevê no n.° 4 do artigo 220.° o seguinte: "O acesso ao Supremo Tribunal de Justiça faz-se por concurso curricular aberto aos magistrados judiciais e a juristas de reconhecido mérito, nos termos que a lei determinar."

Corta a referência ao Ministério Público (MP), não é isso? Pela nossa parte, declaro já ser difícil concordarmos com uma proposta destas. Mas não sei qual é o vosso ponto de vista. Quem deseja usar da palavra?

Pausa.

Não está cá o CDS para justificar a proposta? Pausa.

Diga, Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, Sr. Presidente. O CDS, realmente, não nos tem acompanhado. Nesta matéria, o que nos propõe é, na verdade, um regresso, uma involução. Sabe-se que esta norma constitucional foi plasmada na lei ordinária, em condições que já dificultavam muito o efectivo acesso ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de magistrados do Ministério Público (MP). Sabe-se também quais sejam as razões que levaram a isso e que dificuldades concretas é que obstam ainda hoje a que a Constituição tenha um mínimo de efectivação prática neste domínio. Não será despiciendo que se realize este objectivo constitucional. O que não se justifica, em qualquer caso, é a eliminação da referência aos magistrados do MP, como possíveis candidatos ao concurso curricular de acesso ao STJ. Nesse sentido nos pronunciamos absolutamente contra a proposta apresentada pelo CDS.

O Sr. Presidente: - Também nós, já o disse, na medida em que o STJ é a cúpula de uma pirâmide a que se sobe pelos dois lados, a partir da separação das magistraturas. Aliás, é uma reforma de que eu sou o principal responsável. Pessoalmente seria contra isso. E penso que o meu partido também é.

Alguém deseja usar da palavra?

Pausa.

Sr. Deputado Pais de Sousa, tem a palavra.

O Sr. Pais de Sousa (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Pela nossa parte, não acompanhamos o CDS nesta sua proposta de eliminação da referência ao acesso dos magistrados do Ministério Público (MP) ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Pensamos, portanto, que tudo decorre, como já foi dito, da separação das magistraturas, e, como tal, além de inoportuna, esta proposta não tem efectivamente viabilidade.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, há um aditamento proposto pelo PS - o artigo 220.° -, decorrente da circunstância de termos autonomizado, como obrigatórios, os tribunais administrativos e fiscais. E é, digamos, a magistratura desses tribunais, visto que os juizes formam um corpo único e regem-se por um só estatuto, tal como acontece para os juizes dos restantes tribunais. Além disso, remete para a lei a determinação dos requisitos e das regras de recrutamento dos juizes dos tribunais administrativos e fiscais, incluindo o Supremo Tribunal Administrativo (STA).

Pela nossa parte, não nos parece que esta proposta careça de justificação. Decorre de tudo aquilo que propusemos na altura própria.

Algum dos Srs. Deputados deseja usar da palavra?

Pausa.

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Sr. Deputado José Magalhães, tem a palavra.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, gostaria de manifestar o nosso apreço pela proposta apresentada pelo PS. Insere-se dentro da preocupação de estabilizar e dignificar não só o contencioso administrativo e fiscal como os próprios magistrados. As duas coisas são realmente associáveis e dificilmente dissociáveis. Parece-nos ser uma norma concisa, visa estabelecer um paralelismo, é económica, não adianta excessivos normativos quanto ao regime de recrutamento dos juizes. Nesse sentido parece-nos perfeitamente susceptível de ser acolhida. Esperamos, aliás, que se faça um alargadíssimo consenso em torno desta matéria, a bem da dignificação e da estabilização da magistratura do contencioso e do próprio contencioso administrativo e fiscal!

O Sr. Presidente: - Mais algum dos Srs. Deputados deseja usar da palavra?

Pausa.

Sr. Deputado Pais de Sousa, tem a palavra.

O Sr. Pais de Sousa (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: A respeito desta proposta de alteração do PS, diríamos tão-só que ela é inseparável de um conjunto de propostas que o PS vem formulando nesta área dos tribunais administrativos e fiscais. Independentemente, portanto, da posição que seja encontrada eventualmente mais tarde, diríamos que - e isto queríamos deixar registado - nos preocupa um pouco a formação tal como é feita. Ou seja, será que nós estaremos também a cair numa situação de Constituição regulamento, criando normas sobre normas? Deixo só esta preocupação.

O Sr. Presidente: - Não vale a pena discutirmos isso, mas a verdade é que, considerar regulamento a composição do Supremo Tribunal Administrativo e Fiscal, era a mesma coisa que propor que se corte lá atrás tudo do que se diz sobre o STJ, não é verdade? Penso que o paralelismo é total, desde que se consagre também como obrigatório os tribunais administrativos e fiscais. Mas depois, na altura, discutiremos isso no conjunto destas propostas.

Passemos, Srs. Deputados, à discussão do artigo 221.°

O PCP propõe dois novos números: um n.° 5, consagrando que "os juizes em exercício não podem ser candidatos em eleições para qualquer órgão de soberania, das regiões autónomas ou do poder local", e um n.° 6, em que se diria que "a lei estabelece as garantias da independência, isenção e imparcialidade dos juizes e define o respectivo estatuto em condições que assegurem o tratamento não discriminatório dos magistrados das várias categorias de tribunais".

O PS altera o n.° 4, no sentido de fazer uma referência (como é natural) aos "tribunais administrativos e fiscais", uma vez que eles passam a ser constitucionalmente obrigatórios, e também, no fim deste número, uma referência ao "Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, respectivamente, nos termos da lei". Quer dizer: tudo decorrência e circunstância de lá atrás os tribunais administrativos e fiscais terem deixado de ser considerados facultativos, passando a constitucionalmente obrigatórios.

A ID apresenta uma proposta para que a expressão "consignadas na lei", prevista no actual n.° 2 do artigo 221.°, seja substituída por "consignadas na Constituição e na lei". De facto, o n.° 2 do artigo 221.° refere, na redacção actual, o seguinte: "Os juizes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões, salvo as excepções consignadas na lei." Ora não vejo que na Constituição exista alguma excepção, pelo que não sei se tem algum conteúdo esta referência à Constituição. De momento não estou a ver nada que possa dar corpo a esta excepção. Mas, se entretanto alguém se lembrar de qualquer restrição constitucional, faça favor de dizer. Ó PCP quer justificar a sua proposta?

Pausa.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: De duas coisas bastante diferentes se trata nestas propostas do PCP, embora, naturalmente, se justifique a sua inserção conjunta neste artigo sobre

comum objecto.

O primeiro problema foi já por nós abordado, quando discutimos o regime constitucional das inelegibilidades, na sede própria. E alertamos para a existência de problemas quanto às cláusulas constitucionais que legitimam a fixação pelo legislador ordinário de inelegibilidades. A norma que o PCP propõe nessa sede é uma norma genérica. Esta é uma norma específica, que tem em conta a situação própria dos juizes e estabelece ope constitutionis uma inelegibilidade para os juizes em exercício. Essa inelegibilidade é em relação a todos os tipos de eleições, quer a nível de órgãos de soberania, das regiões autónomas ou do poder local. Trata-se, em suma, de uma inelegibilidade abrangendo todos os juizes em exercício, em relação a todos os actos eleitorais. Parece-nos que assim se dá cobertura a disposições da lei ordinária e, por outro lado, se acautela um dos aspectos relevantes no estatuto dos próprios magistrados.

O n.° 6 adiantado pelo PCP é de um teor inteiramente diverso, embora tenha cabimento nesta sede, segundo nos parece. Trata-se de uma cláusula tendente a vincular o legislador ordinário a estabelecer, nos diversos planos, as garantias que se imponham de independência, isenção e imparcialidade dos juizes. Por outro lado, visa-se afirmar orientação quanto a um ponto particularmente relevante: o de que o estatuto deve assegurar o tratamento não discriminatório, designadamente do ponto de vista pecuniário, remuneratório, dos magistrados das diversas categorias de tribunais. Há efectivamente situações diferentes. Há, no entanto, discrepâncias que dificilmente se poderão ter por justificadas. Em nosso entender, o nivelamento não deveria fazer-se por baixo, nem deveria fazer-se através da criação ou promoção de magistraturas "regaladas", em detrimento das magistraturas prejudicadas ou punidas, em termos estatutários. É de caminhar, sim, para a aproximação de estatutos, de remuneração, de regalias, até de formas de apoio, para a aproximação de tudo aquilo que integra, em sentido muito lato, o estatuto dos diversos tipos de magistrados. Eles hão-de diferenciar-se em função do tipo de actividades que desempenhem; mas não já em função do facto de uns

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serem detentores de um conjunto apreciável de regalias e direitos estatutários e outros penalizados em termos pecuniários, quer em termos de cláusulas de expressão pecuniária directa, quer de expressão indirecta. A norma que aqui se propõe é uma norma de conteúdo muito genérico, no entanto. Visa ater-se dentro dos limites que nos parecem apropriados em sede constitucional.

Cremos que a criação de guerras fratricidas entre classes de magistrados em torno das disparidades de estatuto são de evitar a todo o custo. Pela nossa parte move-nos apenas o objectivo de firmar um elemento pacificador, consensualizador e aglutinador das diversas magistraturas, contrariando quaisquer tendências para fomentar disfunções ou diferenciações, que seriam indevidas constitucionalmente. Com a nossa proposta a todas as luzes se clarificaria que, pura e simplesmente não devem existir tais anomalias, devendo adoptar-se todas as providências para remover os obstáculos que existem neste momento.

O Sr. Presidente: - Da parte do PS, já disse que o que está aqui é de algum modo decorrência também da circunstância de termos proposto como obrigatórios os tribunais administrativos e fiscais. Por isso, enquanto na norma do n.° 4 hoje apenas se prevêem as comissões de serviço dos juizes dos tribunais judiciais, dependendo da autorização do Conselho Superior de Magistrados, com inteiro paralelismo dir-se-ia agora dos tribunais administrativos e fiscais, dependendo de autorização do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): -Na falta da justificação do projecto n.° 7/V, iria, em nome do PSD, dizer o que se nos afigura sobre as propostas em apreço.

Relativamente à proposta do PS, porque se afigura a mais simples e resulta meramente de uma adequação a propostas que se inserem noutros lugares da Constituição, devo dizer que não vê o PSD inconveniente nesta adaptação, obviamente condicionada à aceitação dos outros preceitos que dizem respeito, no fundo, à cristalização constitucional daquilo que se consagra na nova lei orgânica sobre os tribunais administrativos e fiscais. Portanto, o nosso assentimento e a consciência da oportunidade que é carreada por esta introdução na Constituição da nova configuração orgânica dos tribunais administrativos e fiscais, já existente na lei correspondente.

Quanto ao artigo 221.° proposto pelo PCP, e quanto ao artigo 221.° proposto pelo projecto n.° 7/V da ID, queria fazer as seguintes observações.

O que o projecto n.° 7/V pretende acrescentar no n.° 2 é despiciendo. As excepções consignadas na lei, tal como são descritas no n.° 2 da Constituição, parecem um termo mais que suficiente para salvaguardar aquilo que o mesmo número pretende. Isto é, não pode a lei consignar excepções que a Constituição lhe não permita. Por isso, desenvolver a expressão no sentido de substituir "as excepções consignadas na lei" por "excepções consignadas na Constituição e na lei" é inteiramente desnecessário.

Quanto à proposta apresentada pelo PCP, o PSD pretende fazer as seguintes observações: primeiro, a inserção de um novo n.° 5 é nem mais nem menos de que uma repetição do conteúdo do n.° 3 do texto actual. Ao falar-se na impossibilidade de os juizes em exercício desempenharem qualquer outra função pública, temos aqui o abarcar de um conjunto de hipóteses, que incluem, obviamente, o exercício de funções públicas, às quais o acesso é garantido por via colectiva. Portanto, parece desnecessário acrescentar um n.° 5, dada a existência do n.° 3 com a clareza suficiente. Quanto ao n.° 6, entende-se uma certa boa intenção de garantir, a nível constitucional, um conjunto de qualidades e, no fundo, obrigações, que são inerentes a todo o estatuto dos juizes e àquilo que é fundamental salvaguardar para efeitos de funcionamento dos tribunais e, portanto, de funcionamento dos próprios mecanismos do Estado de direito. Mas parece-me que no n.° 6 o PCP inverteu as prioridades, isto é, deixou em branco à lei o estabelecimento das garantias de independência, isenção e imparcialidade dos juizes, que são, portanto, qualidades fundamentais do exercício da função judicial, e deixando também para a lei a definição do respectivo estatuto. E fá-lo de modo condicionado e, digamos, um tanto espartilhado. Ou seja, a lei tem toda a liberdade de definição de garantias de independência, isenção e imparcialidade, qualidades fundamentais no desenvolvimento da função judicial, mas já tem condições constitucionalmente impostas no âmbito da definição do estatuto. Como eu digo, não há dúvida sobre a boa intenção do artigo, mas há aqui, digamos, a alteração, ou melhor, a inversão do essencial pelo acidental. Parece-me que, do ponto de vista de uma salutar política legislativa, não é aconselhável aquilo que resulta da interpretação do teor literal do n.° 6. Há aqui um problema de escalonamento de qualidades que está invertido e, por isso mesmo, dada a suficiência do artigo 221.° na actual redacção, entendemos que seria, portanto, de rejeitar em conjunto com o n.° 5, o n.° 6 proposto pelo PCP. E eram só estas considerações.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Quero apenas formular uma pergunta ao Sr. Deputado José Magalhães relativamente ao seguinte: no respeitante ao n.° 5 do artigo 221.° que o PCP propõe, gostaria que me esclarecesse como o compatibiliza, mantendo-se a redacção tal como ela está formulada neste n.° 5, com a possibilidade de eleição de juizes pela Assembleia da República para integrarem o Tribunal Constitucional. Se, com esta fórmula, isso não seria possível.

O Sr. Presidente: - Entretanto, já que o Sr. Deputado José Magalhães vai ter de responder à pergunta formulada, gostaria de lhe colocar as seguintes questões: uma era essa, ainda que formulada noutros termos. A segunda é a seguinte: não acha que as garantias da independência, isenção e imparcialidade dos juizes são matéria de estatuto? Que a matéria remuneratória é tipicamente de estatuto e terá que haver discriminação no vencimento dos vários magistrados?

Pausa.

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O Sr. Deputado José Magalhães quer usar da palavra, a ver se avançamos?

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, são de natureza bastante diversa as questões suscitadas. Responderei tendo em conta, aliás, a ordem por que foram produzidas.

Primeiro aspecto: em relação à proposta que o PCP apresenta, no que diz respeito ao n.° 5 deste artigo, creio que há um problema a enfrentar. Não se trata, realmente - ao contrário do que creio ter depreendido das palavras da Sra. Deputada Assunção Esteves -, de uma mera repetição do n.° 3. Se fosse seria redundante, ocioso, e, nesse sentido, confuso e de rejeitar. Na verdade, há uma distinção, como se sabe e é usualmente aceite, entre inelegibilidades e incompatibilidades. Aquilo que poderia decorrer do n.° 3, na leitura que a Sra. Deputada fez do dispositivo, seria uma mera incompatibilidade. Ora a lei hoje consagra, e justamente, uma inelegibilidade nessa matéria, por razões que são respeitáveis. A questão é saber qual é a cobertura para isso. A cobertura para isso só pode ser, aparentemente, para as eleições da Assembleia da República, o que prevê o artigo 153.° da Constituição: "São elegíveis os cidadãos portugueses eleitores, salvas as restrições que a Lei Eleitoral estabelecer por virtude de incompatibilidades locais ou de exercício de certos cargos." Ao abrigo disto se procedeu quando fizemos a lei. Só que, como pudemos apurar quando discutimos o artigo 50.°, não há cláusula geral que salvaguarde a possibilidade de a Lei Eleitoral estabelecer inelegibilidades por estas ou outras, igualmente respeitáveis, razões! Por isso, o PCP propôs, no artigo 50.°, a criação de um n.° 3 que estabeleça uma cláusula geral que permita ao legislador ordinário criar inelegibilidades, restringindo as condições em que essas inelegibilidades podem ser estabelecidas, delimitando-as em função de determinados critérios, teleológicos, designadamente.

O que é a nossa proposta do artigo 221.°, n.° 5? É uma explicitação, uma pontualização dessa orientação geral, concretamente aplicada aos magistrados. Com o que ficará delimitada, em sede constitucional, uma inelegibilidade em relação a uma categoria que, forçosamente, há-se ser abrangida por esse regime (obviamente podia sê-lo por força de lei ordinária, mas, em nosso entender, nada se perderia em incluir essa matéria em sede de Constituição).

Em relação ao n.° 6 proposto pelo PCP, é evidente que o escalonamento das qualidades desejadas - "independência", "insenção" e "imparcialidade" - pode ser este ou outro. Este parece-nos correcto. O fundamental é saber se há consenso em torno da ideia de reforçar a vinculação do legislador ordinário a assegurar tudo isto, que é o fundamental para que a função judicial possa ser adequadamente exercida.

Pergunta o Sr. Deputado Almeida Santos quanto à terceira questão em debate: "Mas então não pode haver diferenciações?" A questão não está na diferenciação, mas no tratamento não discriminatório dos magistrados. "Diferença fundamentada" e "discriminação" são conceitos distintos. Aquilo que nos preocupa mais é o fosso que pode tender a estabelecer-se entre determinadas magistraturas acarinhadas (quase diria hiperprotegidas) e outras maltratadas. Creio que introduzir a ideia de não discriminação seria extremamente positivo.

Depois as materializações desta ideia podem ser operadas através de mecanismos, de ritmos e de graduações diferentes. Em todo o caso, o princípio reitor deveria ser claramente especificado. Por exemplo, não vemos nenhum interesse em aprofundar o divórcio estatutário entre, por exemplo, a magistratura do contencioso administrativo e a magistratura judicial. Não vemos nenhum interesse em que se prolongue a atitude de competição entre os magistrados judiciais, que se sentem atingidos e feridos no seu estatuto, pelo facto de verem evoluir em termos díspares, e cada vez mais afastados, as regalias e os direitos dos membros da magistratura do contencioso administrativo e fiscal. Repito: não pomos termo às diferenciações, mas entendemos que seria relevante que se apontasse para um critério não discriminatório. É esta a razão da nossa proposta e não creio que possa aprofundar menos insatisfatoriamente as razões que nos levaram a apresentá-la.

Quanto à observação do Sr. Deputado Alberto Martins, creio que este preceito tem de ser interpretado tendo em conta o disposto no artigo 284.° da Constituição. Não pretendemos alterar o artigo 284.°! É evidente que a expressão que usamos pode ser aperfeiçoada e este desiderato - simpático que seja - pode ser objecto de clarificação para além de dúvida razoável. Estamos completamente disponíveis para isso, como é óbvio.

O Sr. Alberto Martins (PS): - O artigo 284.°, de facto, diz "designar", mas o artigo 166.° fala na competência da Assembleia da República para "eleger" - portanto, havia sempre essa dificuldade, mesmo em termos terminológicos,

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não, a dificuldade, se bem percebi, estaria no facto de que, falando a Constituição, designadamente no n.° 2 do artigo 284.°, de "juizes dos restantes tribunais", alguém poderia, por interpretação indébita, pressupor que teriam de ser juizes não em exercício, o que seria o supremo dos absurdos.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Julguei que estava a tentar uma saída em termos gramaticais, a procurar uma definição para "designar" e "eleger", expressões que são usadas em artigos distintos. Mas já percebi que não era esse o sentido.

O Sr. Presidente: - Mais algum dos Srs. Deputados deseja usar da palavra?

Pausa.

Damos, então, este artigo por discutido e entramos no artigo 222.°, tomando o Sr. Presidente, Rui Machete, a liderança dos trabalhos.

Neste momento assumiu a presidência o Sr. Presidente, Rui Machete.

O Sr. Presidente (Rui Machete): - Em relação ao artigo 222.° ("Nomeação, colocação, transferência e promoção de juizes"), há propostas de aditamento por parte do PCP, do PS e do PRD.

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Dava a palavra ao PCP para justificar, querendo, a sua proposta de aditamento de novo n.° 2, passando o actual n.° 2 a n.° 3.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr.. José Magalhães (PCP): - A nossa proposta visa definir nesta sede o regime de nomeação, colocação, transferência e promoção de juizes dos tribunais administrativos e fiscais.

Esta norma é similar à apresentada pelo PS como artigo 220.°-A, embora tenha alguma pormenorização adicional, designadamente quanto ao segmento final, que prevê que o Conselho Superior tenha uma determinada composição e, designadamente, que inclua "elementos de entre si eleitos pelos juizes". Parece-nos que a nossa formulação, neste ponto, deveria dar origem a reflexão útil, por forma a conseguir-se incorporar em qualquer novo artigo que sobre esta matéria se adopte algum conteúdo normativo quanto à composição do Conselho Superior, mas é omissa quanto à sua composição, quanto aos critérios para a sua formação. A parte verdadeiramente útil da nossa proposta é aquela em que se adianta um conteúdo normativo neste ponto, uma vez que, quanto à primeira parte, a norma visa decalcar, ao máximo, o conteúdo do actual 222.° transposto para o contencioso administrativo fiscal.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim, para a justificação da proposta do PS.

O Sr. Vera Jardim (PS): - A proposta do PS decorre, naturalmente, da necessidade de completar, à semelhança do que já existe para a magistratura comum (os tribunais judiciais), também para a magistratura dos tribunais administrativos e fiscais, através da competência atribuída ao Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais em termos idênticos, tudo o que diz respeito à nomeação, colocação, transferência e promoção desses juizes. A proposta explica-se por si só, sem necessidade de mais delongas.

O Sr. Presidente: - Podemos agora trocar algumas impressões sobre esta matéria.

Permitia-me fazer uma observação muito breve às propostas do PCP e do PS e também, de algum modo, à proposta do PRD. Julgo que, quanto à sua substância, no respeitante à proposta do PS e também à do PCP e do PRD, não há objecções de princípio a formular, há apenas uma dúvida sobre se se justifica, com esta pormenorização, estabelecer uma disciplina nas normas constitucionais. A observação, de resto, é mais destinada ao PCP que ao PS, na medida em que ele usa de maior parcimónia nessa consignação. Mas pensamos que é uma matéria em que justamente - uma vez que nós aceitámos em princípio, no respeitante aos tribunais administrativos e fiscais, que algumas regras se deveriam consagrar - se trata apenas de ver em que medida é necessário complementar essas regras com alguma outra norma, no nível constitucional, na matéria de nomeação, colocação, transferência e promoção de juizes. A nossa posição é a de, em princípio, aceitar que se se tornar necessária, por conexão e razões sistemáticas, essa consignação, pois fá-lo-emos nessa estrita medida. Não sabemos exactamente, por exemplo, se se justifica o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais ter uma consagração constitucional. Aceitamos que a ideia é boa (de resto, a mim é-me particularmente cara), mas temos algumas dúvidas de que seja conveniente fixar desde já, com esta designação, a existência de um conselho inteiramente paralelo ao Conselho Superior da Magistratura.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Já existe. É a constitucionalização.

O Sr. Presidente: - É. Mas é sobre isso que temos dúvidas. Em todo o caso, não é uma questão fundamental e nós admitimos que, a benefício de inventário resultante de análise posterior, na redacção final, quando procedermos à votação dos artigos pertinentes, nessa altura poderemos consignar ou não. Não se trata de uma questão de princípio nem de uma questão doutrinal importante.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não estamos, de forma alguma, amarrados à nossa formulação. Pode ser mais palavrosa que a do PS, que, de resto, transcreve, com adaptação, o constante do n.° 1 do artigo 222.° Tem esse defeito e esse mérito. O que quer dizer, pois, por vezes, que "na cópia está a virtude."

O Sr. Vera Jardim (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras iniciais do orador.)... para não ficar a repetição. Aceitamos a crítica. Realmente, dois artigos com a mesma redacção...

O Sr. Presidente: - Penso que é uma discussão que se poderá ter em sede ulterior de redacção.

Vozes.

O Sr. Almeida Santos (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)

O Sr. Presidente: - Poderíamos, se estivessem de acordo e se não houver mais comentários, passar ao artigo 223.° ("Conselho Superior da Magistratura"). Em relação a este artigo existem as seguintes propostas de alteração: do CDS, de alteração ao n.° 1; do PCP, de alteração ao n.° 2; do PS, de alteração a algumas alíneas do n.° 1 e do n.° 3; do PSD, de alteração à forma de designação do Conselho Superior da Magistratura e a algumas alíneas don.°2edon.°3, quanto às regras de funcionamento do Conselho Superior da Magistratura.

Começaria por perguntar ao PCP se quer fazer uma justificação sucinta da sua proposta.

Pausa.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, esta proposta é relevante, e é-o para resolver um problema que está pendente desde há longos meses e que foi suscitado por todos nós ao aprovarmos o Estatuto dos Magistrados Judiciais.

Se a Constituição estabelece que são aplicáveis a todos os vogais, incluindo os eleitos pela Assembleia da República, as regras sobre incompatibilidades, então

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está suscitada uma questão melindrosíssima. A lei actual não tem isso em conta, a lei actual "liberta" dessa incompatibilidade alguns dos membros do Conselho. E nós, ponderando a situação criada, entendemos que pode ter justificação uma certa diferenciação. De facto, pode justificar-se que vigore um regime diferente de incompatibilidades para os elementos eleitos pela Assembleia da República. Mais franca e directamente, está aqui em causa a constitucionalização do actual Estatuto dos Magistrados Judiciais, sob pena de se abrir uma melindrosa questão, que pode passar, um dia destes, por algum accionamento do sistema adequado e pela correspondente jurisprudência. Cremos que, numa matéria deste melindre, a solução deveria ser expedita e certeira, para podermos tirar todas as ilações, sob pena de alguma hipocrisia na manutenção de um status contrário à Constituição, por debilidade ou má confecção da correspondente norma constitucional.

Creio que hoje, após alguns anos de vigência do Conselho Superior da Magistratura e de um juízo já possível sobre a importância dos elementos eleitos pela Assembleia da República, estabelecer uma diferenciação é já só uma questão de bom senso. Espero, portanto, que seja também uma questão de consenso!

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Nós propomos apenas duas pequenas alterações. Uma - pareceu-nos mais equilibrada - consiste em retirar à Assembleia da República um dos actualmente sete elementos por ela eleitos para o Conselho Superior da Magistratura e atribuir ao Presidente da República a possibilidade de designar três. Tanto mais que mantemos a regra de que, dos três a designar pelo Presidente da República, um terá de ser magistrado. E pareceu-nos que não seria de mais retirar um dos sete eleitos pela Assembleia da República e atribuí-lo ao Presidente da República. Parece-nos que é mais equilibrado os "três-seis" que os "dois-sete". O que permitiria até que o número de membros eleitos pelos seus pares fosse idêntico ao designado pela Assembleia da República. Estes números, como sabemos, têm sido objecto de crítica, mas nós manteríamos sete para a magistratura, ou seja, mais um do que os que seriam eleitos pela Assembleia da República. Em contrapartida, atribuiríamos mais um elemento para ser designado pelo Presidente da República.

É evidente que sobre as incompatibilidades - há pouco o Sr. Deputado José Magalhães interveio nesse sentido - o estatuto não contém uma regra deste teor. Teremos de estar atentos a esse aspecto, visto que, se não retirarmos isto, corremos o risco de não poder dignificar o Conselho Superior da Magistratura com várias categorias (professores de Direito, advogados, etc..), que, evidentemente, não aceitarão ser eleitos ou designados pelo Presidente da República. Foi por isso mesmo que há pouco tentei interromper o Sr. Deputado José Magalhães, para ver se ele não estaria também de acordo que os dois não magistrados designados pelo Presidente da República (na nossa versão), ou um (na versão actual da Constituição), fossem também isentos dessas incompatibilidades, que ficariam apenas para os magistrados, pois, em matéria de vencimentos, sabemos que o magistrado continua com o seu vencimento, ao passo que exigir a um advogado, a um professor de Direito ou a um jurisconsulto que vá para o Conselho Superior da Magistratura em condições deste tipo não terá, evidentemente, acolhimento por parte daqueles.

No n.° 3 eliminamos o inciso "a lei poderá prever". A alteração que aí fizemos está, aliás, de acordo com a tradição, já de alguns anos, de que os funcionários de justiça façam parte também do Conselho Superior da Magistratura, embora limitados à "intervenção restrita à discussão e votação das matérias relativas à apreciação do mérito profissional e ao exercício da função disciplinar sobre os funcionários de justiça" (como já consta do actual n.° 3 do artigo).

São estas as duas alterações que propomos, sendo certo que também apoiamos (embora não faça parte da nossa proposta, devemos confessar que só posteriormente demos por isso) a eliminação, no n.° 2, do inciso "e incompatibilidades". De facto, pensamos que deve ser retirado do n.° 2 do artigo 223.° o inciso das "incompatibilidades", ou talvez substituído por outro que permita concluir que elas se aplicam apenas aos membros do Conselho Superior da Magistratura que sejam magistrados.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, em relação à proposta do PSD, tentaria sucintamente ser rápido na sua justificação.

Ora a proposta do PSD tem dois ou três pontos distintos e de grau de diferente importância. Ò primeiro respeita à composição do Conselho Superior da Magistratura, em que, de acordo com a nossa proposta, haveria uma inovação, que se traduziria no facto de serem dois membros do referido Conselho designados pelo Governo, embora seja um deles necessariamente magistrado, mantendo-se o número de dezasseis juizes. Haveria, pois, a redução de um membro no caso da eleição pela Assembleia da República e de um outro a eleger pelos seus pares. Portanto, tanto num caso como noutro, passariam a ser somente seis membros.

Dir-se-á, entretanto, que estaremos perante uma situação de governamentalização do Conselho Superior da Magistratura. O problema que tem de ser colocado com grande clareza é que, neste momento, não se trata de uma questão de independência do Conselho Superior da Magistratura, que tem de ser preservada, mas de sensibilização do dito Conselho como instituição que é basicamente de autogoverno, mas não pode deixar de atender à circunstância de se integrar dentro de um conjunto de instituições que prestam justiça. E é um facto que a experiência dele, se globalmente positiva - e é-o -, em todo o caso tem revelado alguma insensibilidade em certos casos ou uma menor sensibilidade a aspectos que não respeitam directamente ao estatuto dos juizes. Contudo, estes aspectos têm a ver com o exercício da função judicial.

Por outro lado, em termos de opinião pública e política não deixa curiosamente de ser o Governo responsabilizado por actos que não está obviamente na sua mão resolver. Por isso, é importante que se encontrem fórmulas que, reservando a independência do Conselho Superior da Magistratura, em todo o caso permitam sensibilizá-lo para aspectos que não estão puramente relacionados com o estatuto dos juizes no seu sentido mais estrito.

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Trata-se, aliás, de um problema que noutros países tem sido encarado. Todavia, as soluções são diversas, porventura nunca se foi para uma forma tão extrema de autogoverno como em Portugal, embora não possamos dizer que os seus resultados sejam negativos, mas não são também, em absoluto, um sucesso, pela circunstância que há pouco referi.

O segundo ponto diz respeito à questão de o Conselho Superior da Magistratura funcionar em plenário e em conselho permanente. Creio que o problema que se suscita é este: o Conselho Superior da Magistratura é um órgão relativamente amplo, com pessoas que, em alguns casos pela natureza das coisas, não podem dedicar-lhe a plenitude da sua actividade profissional, visto que não estão lá para esse efeito, mas, sim, para irem a uma reunião e considerarem os problemas que se colocam nela, de carácter geral, as grandes orientações. Não podem, pois, funcionar em regime de permanência.

No entanto, a necessidade de gerir um corpo como o da magistratura requer que haja, designadamente em casos relacionados com o seu estatuto e em questões de ordem disciplinar, pessoas que permanentemente cuidem dos problemas que se colocam nesta matéria. É, de facto, muito importante prestigiar o estatuto dos juizes. Estes tiveram em Portugal uma posição de pedestal, mas à margem da sociedade portuguesa. A evolução, graças ao 25 de Abril, da função judicial, que os colocou no centro dos conflitos sociais como aqueles que têm de oferecer a medicamentação jurídica para a solução desses conflitos, levou-os a enfrentar um conjunto muito vasto de problemas, dos quais alguns têm sido resolvidos, outros ainda não, e que afectou num ou noutro caso o posicionamente social da magistratura. Pensamos, assim, que isso é fundamental que seja recuperado, mas também é imprescindível que o seu Conselho Superior esteja em condições de, atentamente, seguir a actividade quotidiana dos juizes.

Daí a ideia de haver um conselho permanente que permita justamente que haja pessoas que em full-time se preocupem com estas matérias e hajam quotidianamente no exercício da sua função como membros do Conselho Superior da Magistratura.

A terceira questão respeita ao problema de estender aos membros do Conselho Superior da Magistratura os direitos e garantias e também as incompatibilidades de que gozam os magistrados enquanto sejam vogais do órgão citado.

Admitimos que a redacção dada ao artigo 223.° pelo PSD possa ir demasiado longe no sentido de que poderá haver alguns aspectos, designadamente em matéria de incompatibilidades, que, eventualmente, possam ser um pouco mais restringidos, desde que não seja funcionalmente exigível para a garantia da sua imparcialidade, àqueles que não forem membros do conselho permanente. Daí que esta matéria, que foi, aliás, focada pelo PS, pudesse justificar uma redacção mais restritiva, porque reconhecemos que pode ser difícil a um professor de Direito ou a um advogado ser membro do Conselho Superior da Magistratura, em termos de satisfazer plenamente todas as regras relativas às incompatibilidades que vigoram para os juizes. Porém, com esta ressalva parece-nos que é importante que o cargo de membro do Conselho Superior da Magistratura seja suficientemente salvaguardado para garantir a sua independência.

Suponho que poderíamos agora partir para a discussão das propostas relativas ao artigo 223.° Tem a palavra o Sr. Deputado Almeida Santos.

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sr. Presidente, Sr s. Deputados: Não me pronunciaria sobre a proposta do CDS, na medida em que é uma proposta em branco. Não me parece que a composição do Conselho Superior da Magistratura deva ser relegada para a lei ordinária.

Entretanto, já os meus camaradas Vera Jardim e Alberto Martins se pronunciaram sobre a proposta do PCP e a nossa.

Quanto à proposta do PSD, devo dizer que, ao contrário do que ela preceitua, dever-se-ia manter a tendência de não incluir o Governo na composição do Conselho Superior da Magistratura. E digo isto porque a preocupação é a de legitimar o mais possível a magistratura como órgão de soberania, ligando-a a uma representação popular. Já que não directa, ao menos através de magistrados designados por quem é directamente eleito: a Assembleia da República e o Presidente da República. Não é o caso do Governo.

Além disso, a proposta reduz o autogoverno da magistratura. Haveria como que um regresso a uma magistratura tutelada, que ainda está muito fresca na nossa memória para podermos voltar já a uma solução mitigada...

O Sr. Presidente: - Seria um oitavo!

O Sr. Almeida Santos (PS): - Exacto, Sr. Presidente.

Vozes.

O Sr. Almeida Santos: - Teríamos alguma relutância em, pelo menos sem mais alguma experiência neste domínio, voltarmos a uma redução do autogoverno da magistratura e a uma magistratura ainda que já parcialmente tutelada.

Quanto ao conselho permanente previsto no n.° 2 do artigo 212.°, na proposta do PSD, no sentido de ser uma espécie de Conselho Superior da Magistratura de via reduzida, a tendência nestes casos é que essa via se transforme em via principal. São os elementos permanentes da gestão do Conselho Superior da Magistratura. Os outros, que aparecem de vez em quando, acabam- por ser elementos decisórios.

O Sr. Presidente: - V. Exa. sabe como agora funciona esse conselho permanente que não é eliminado?

O Sr. Almeida Santos (PS): - Sei, Sr. Presidente. No entanto, a verdade é que constitucionalizá-lo, sobretudo com esta composição, ou seja, com um membro designado pelo Governo, não seria uma boa solução. Não estamos, todavia, fechados a discutir a necessidade de uma referência, talvez sem composição expressa, a um conselho de via reduzida que pudesse ser um elemento constante. Mas não gostaríamos que viesse a redundar na substituição do Conselho Superior da Magistratura qua tale, de molde a ser substituído por uma via reduzida que, na prática, já sabemos que se transforma no órgão principal, com o plenário apenas como órgão de chancela.

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Portanto, com algumas reservas, veríamos mal que o Governo passasse a designar dois elementos. Veríamos também com alguma reserva a possibilidade da menção da constituição de um conselho permanente do Conselho Superior da Magistratura, sem a porta ficar fechada, como é óbvio.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, com considerável expectativa, aguardava as explicações do PSD sobre esta proposta. Conhecíamos, e, infelizmente, conhecemos, o relacionamento tormentoso e difícil do governo do PSD com as diversas magistraturas. Conhecemos o relacionamento tormentoso, em particular, da actual gestão da pasta da Justiça com o Conselho Superior da Magistratura. Discutimos no quadro da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais alguns dos momentos em que se decompõe a aspiração governamental a colocar a mão nos tribunais. Vimos em que é que se traduziu essa aspiração e também como foi possível limitá-la; contê-la e reduzi-la a proporções razoáveis (ainda que não tenham ficado afastados todos os perigos). Sabemos igualmente que o Governo resolveu, a dada altura, começar a fazer críticas públicas à acção de magistrados e de tribunais. Fê-lo de forma espectacular por via televisiva, quanto ao Tribunal Constitucional, mas é um precedente, e o STJ não está imune, nem livre, de ouvir responso idêntico se a circunstância se propiciar e se assim for entendido pelo ministro de serviço ou mesmo por S. Exa. o Sr. Primeiro-Ministro em má hora. Quanto ao Sr. Ministro da Agricultura, Pescas e Alimentação, já aproveitou para, à hora de maior audiência de um telejornal, verberar aquilo a que chamou o "atraso incompreensível" (para S. Exa., na óptica dos agrários!) "do STA ao despacho dos processos respeitantes à reforma agrária".

Quer isto dizer, portanto, que o relacionamento do Governo com os tribunais não tem sido fácil, por razões compreensíveis (compreensíveis no que respeita, naturalmente, às razões dos tribunais!), e que em matéria de atitude quanto ao Conselho Superior da Magistratura o pranto governamental ficou imorredouramente lavrado pelo punho do legislador quando o Ministro Mário Raposo, no preâmbulo da proposta de lei n.° 51/I V, se não me falha a memória, descreveu em termos verdadeiramente melodramáticos e de requerem a importância governamental perante a intervenção e o autogoverno da magistratura expressos no Conselho Superior da Magistratura.

Risos.

Não diria eu em melhores palavras aquilo que nesse projecto de diploma foi dito junto do muro das lamentações. Esta proposta do PSD é, naturalmente, "a projecção" da aspiração a ultrapassar esse muro e conseguir aquilo que hoje é vedado.

Ora, aqui o que hoje é vedado - isto é, a presença governamental no Conselho Superior da Magistratura - não tem precedente no nosso regime democrático. O órgão começou em 1976 por ser composto exclusivamente por juizes. É verdade, também, que passou a ser um órgão de composição mista a partir de 1977. É verdade que, a partir da primeira revisão constitucional, o órgão passou a incluir elementos oriundos não da magistratura, mas eleitos pela Assembleia da República e designados pelo Presidente da República, ou seja, por elementos estranhos à magistratura. No entanto, o que nunca aconteceu é que o órgão contivesse elementos designados pelo Governo.

Importa sublinhar que com esta presença não haveria apenas uma redução da margem de autogoverno, mas também uma presença do executivo com uma projecção superior àquela que é indiciada por uma leitura mais ingénua e benevolente da proposta. De facto, tendo o PSD distinguido (corno o faz a lei, "mas hoje sem governo") entre o Conselho Superior da Magistratura e o seu conselho permanente, acautelou no n.° 2 do artigo 213.° da proposta do PSD que o Governo e o PSD tenham dois quintos desse conselho restrito. E noto que estou a dizer esse quociente, admitindo com generosidade e benevolência a natureza verdadeiramente apartidária de todos os demais componentes, como e óbvio e nos é exigível a todos.

No entanto, nessa estrita óptica, na qual me manterei até ao fim, como bem se compreende, a proporção do PSD é de dois quintos. Portanto, não se diga um oitavo, porque tal quociente é só para quem não saiba fazer contas!

O Sr. António Vitorino (PS): - Consequência da taxa da inflação.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Além disso, a tentativa de menorizar ou de minimizar o alcance desta proposta, referindo-se que se trata da "reprodução do que hoje existe" e de que "um conselho permanente terá sempre de haver", é verdadeiramente não levar em conta que este elemento altera radicalmente a função e a feição do órgão, tal qual ele se encontra constitucional e legalmente plasmado. Compreende-se a gula do PSD e a sua inserção em preocupações de colocar a mão nos tribunais, mas compreender-se-á, também, que esse nos pareça um aspecto acima de todos indesejável e que entendamos que a redução da margem de autogoverno da magistratura não deveria fazer-se a título nenhum.

Gostaria de perguntar ao PS se não seria possível fundamentar melhor a deslocação da correlação entre órgãos de soberania na nomeação e eleição de elementos não oriundos da magistratura e como é que se encara o impacte disso na forma de a Assembleia da República plasmar, na designação dos juizes eleitos, a sua própria composição, face às diversas realidades que podem ocorrer.

Finalmente, pergunto: não vos parece um tanto preocupante ou desequilibrante, no plano das relações de voto na Assembleia da República, essa alteração que propõem?

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Presidente, certamente por lapso ou desatenção, não ouvi V. Exa., na qualidade de apresentador da proposta do PSD, justificar o facto de não fazer parte desta última nada que se pareça com o actual n.° 3 do artigo 223.° Refiro-me à participação dos funcionários de justiça no Conselho Superior da Magistratura nos termos específicos que nesse preceito vêm gizados e que também aparecem na nossa proposta.

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O Sr. António Vitorino (PS): - Ou caducaram, o que, aliás, está mais na moda!

O Sr. Presidente: - Não foi por lapso de V. Exa. No entanto, a minha explicação sobre isso é simples: não pareceu ao PSD que houvesse necessidade de ficar constitucionalizado, mas também não é uma matéria que nos repugne a manutenção da redacção actual do n.° 3.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Isso tem um determinado sentido, não é, Sr. Presidente?

O Sr. Presidente: - Tem o sentido de deixar de estar constitucionalizado, podendo ser assim ou de outra maneira.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Só esse?

O Sr. Presidente: - Sim, Sr. Deputado.

Gostaria, entretanto, de fazer duas curtas observações em relação àquilo que disse o Sr. Deputado José Magalhães.

A primeira é que, se me é lícito invocar a experiência que eu próprio tive nas relações com o Conselho Superior da Magistratura, ela foi extremamente positiva. Nunca tive dificuldade de relacionamento e as coisas correram sempre muito bem graças à forma como os membros desse órgão compreendem as suas funções. Porém, é errado pensar, embora para fins políticos imediatos isso possa ser vantajoso, em termos de ministros que se dão bem e de ministros que se dão mal. A questão é, de facto, outra: o PSD pensa que na solução de autogoverno (e, de resto, o Sr. Deputado José Magalhães já citou alguma evolução registada nesta matéria) se foi demasiado longe, naturalmente por razões ligadas a uma certa inexperiência.

O Sr. Deputado Almeida Santos disse aqui - e é verdade - que se corre esse risco, ou seja, que ao consignar-se um conselho permanente se desvaloriza, na prática, de algum modo, os membros não permanentes ou os que não pertençam ao mesmo. Na verdade, conselho permanente já existe, só que está reduzido a duas ou três pessoas. É assim que as coisas são na prática. É claro que, por razões políticas ou outras, podemos fechar os olhos à realidade e pretender que as coisas se passem de acordo com o conteúdo normativo. No entanto, a verdade é que existe uma grande disparidade entre o conteúdo normativo e a realidade fáctica. Não quero dizer com isto que não haja um grande sacrifício, uma grande generosidade dessas pessoas que asseguram o funcionamento do conselho. Não é isso que está em causa! Não gostaria que ao serem lidas estas actas alguma coisa desse tipo se pudesse inferir. Não é nada disso! Não foi isso que pretendi dizer e nem sequer digo que foi a isso que o Sr. Deputado José Magalhães se referiu.

Julgo que é importante encontrar uma forma de sensibilização para os problemas que o Governo tem de enfrentar com o Conselho Superior da Magistratura. Essa sensibilização ou essa receptividade a esses problemas existe na base de relações pessoais. Devo dizer que durante o período de tempo em que exerci as funções de Ministro da Justiça sempre tive possibilidades de fazer sentir ao Conselho Superior da Magistratura quais eram as minhas preocupações e de encontrar a maior receptividade, naturalmente dentro da autonomia recíproca dos órgãos como pessoas que entendem perfeitamente os respectivos estatutos. No entanto, o problema não é esse, mas, sim, o de que, pela natureza institucional própria, há uma certa impermeabilidade a alguns tipos de preocupações, que nada tem a ver com a instrumentalização governamental.

Tal como disse o Sr. Deputado Almeida Santos, podemos dizer que talvez seja cedo, que isso pode ter um outro significado. Aceitamos isso e a fórmula proposta não é a única possível.

O que não gostaríamos era de deixar em claro observações que, efectivamente, não traduzem quais foram os nossos propósitos nem as nossas preocupações e que, por isso mesmo, têm de ser aqui contestadas.

Tem a palavra o Sr. Deputado Vera Jardim.

O Sr. Vera Jardim (PS): - Sr. Presidente, gostaria de responder ao Sr. Deputado José Magalhães. Compreendo a preocupação do Sr. Deputado com a conjuntura, mas também não podemos fazer dela o método ou o critério da revisão constitucional. Não podemos dizer que, dada a actual conjuntura, calham muito bem os sete eleitos pela Assembleia da República. É que um dos órgãos designa x membros, o segundo designa outros tantos e o outro designa y. É com este último que o Sr. Deputado José Magalhães está preocupado. Compreendo a sua preocupação, mas não deveremos rever a Constituição a pensar nos actuais equilíbrios da Assembleia da República, até porque somos da opinião de que eles são instáveis e susceptíveis de mudar. Não estamos a fazer uma Constituição para a Assembleia da República de hoje, mas, sim, para a do futuro. Penso que com isto respondi à questão que colocou de saber se tínhamos pensado na opção de diminuir de 7 para 6 os eleitos pela Assembleia da República.

Quanto à outra questão que referiu, gostaria de dizer o seguinte: até agora o Presidente da República designava apenas dois dos vogais, sendo um deles magistrado. Pensamos que aquele que poderá ajudar a uma composição mais equilibrada do Conselho é o órgão de soberania Presidente da República, que é um órgão despartidarizado, no qual não se reflecte aquilo que necessariamente acontece na Assembleia da República, ou seja, a partidarização. Tal órgão poderá permitir algo que só é dignificante para o Conselho Superior da Magistratura. Por outro lado, essas duas pessoas não deverão ser magistrados, o que desequilibraria o actual contexto de relativo equilíbrio entre os magistrados e os não magistrados. Optámos por aumentar um ao Presidente da República e tirar outro à Assembleia da República. É evidente que esta proposta não é uma porta fechada. Estamos abertos a críticas. O que não nos parece ser de criticar é o facto de não termos tido em linha de conta essa razão conjuntural actual e de, com essa diminuição de 7 para 6, podermos prejudicar, de alguma maneira, o encontro de soluções no quadro da Assembleia da República. Com toda a franqueza, esse aspecto não nos preocupou.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, nós não configurámos nenhum "princípio de não retorno", em matéria de representação de elementos eleitos pela

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Assembleia da República. Não estamos dominados por uma fúria contabilística susceptível de ser encarada como mercantil. Apenas quisemos que o PS pudesse explicitar melhor que razões é que fundavam a deslocação ou "reequilíbrio" que propõe. Tratava-se apenas de certificar que não assentava em qualquer consideração conjuntural sobre a titularidade do cargo de Presidente, o que, de resto, era bom de supor, e que faziam uma leitura perfeitamente desconjunturalizada e virada, no mínimo, para o século XXI, coisa de que ficámos, neste momento e por esta forma, inteiramente cientes. Cientes ficámos, também, das eventuais implicações da solução e da atitude do PS em relação às mesmas, que, evidentemente, também não são conjunturais, nem têm nada a ver com o universo em que nos movemos.

Vozes.

O Sr. José Magalhães (PCP): - São concepções de carácter abstracto, que o PS transpõe com uma preocupação e com um alto amor à ciência para este terreno que, só por mero acaso, é político e tem as consequências que tem!

Registamos o sentido "rigoroso" desse reequilíbrio e o seu carácter "eminentemente desconjunturalizado", fazendo votos para que a situação possa ainda ser reapreciada, tendo em conta todas as desconjunturalizações necessárias e possíveis numa óptica alargada, as várias conjunturas possíveis em relação a todos os órgãos de soberania e todo o conjunto de princípios gerais e abstractos que devem ser tidos em consideração nesta matéria, para evitar a lesão de respeitáveis valores políticos (e mesmo ético-políticos).

Por último, Sr. Presidente, em relação ao artigo 223.° e no que diz respeito à proposta do PSD, creio que será interessante que o PSD reconsidere a expurgação que faz da norma relativa à participação dos trabalhadores. Aliás, seria positivo que ela fosse revigorada no sentido que o Partido Socialista propõe e que, de resto, só não foi considerado na primeira revisão constitucional porque não houve consenso entre o PS e a AD para ir mais longe do que nessa altura se foi. Regozijamo-nos com o facto de o caminho perdido ser retomado uns anos depois. Essa estabilização será, portanto, positiva e terá o nosso apoio completo.

Em relação às preocupações do PSD quanto à participação do Governo no Conselho Superior da Magistratura, gostaria de dizer o seguinte: noto que são sinusos os caminhos que o Governo percorre para sensibilizar a magistratura para altas problemáticas que aqui ficam aludidas. Mesmo abstraindo da capacidade de sedução ou antipatia pessoal dos Ministros da Justiça (prova-se, por exemplo, que o bom relacionamento do Sr. Deputado Rui Machete não se transmitiu aos seus herdeiros e, em particular, ao último Ministro da Justiça), parece-me um pouco mesquinho imaginar a magistratura do Conselho Superior da Magistratura virada apenas para as questões de carácter estatutário e incapaz de abordar os grandes azimutes das reformas judiciais, da reforma da legislação e outras grandes questões que a todos nos preocupam. Creio que isso dependerá muito das próprias condições de trabalho que sejam fornecidas ao Conselho, que, como se sabe, não dispõe, sequer, de instalações dignas, não dispõe das estruturas de apoio adequadas, não dispõe do pessoal de apoio que seria imprescindível para poder funcionar eficazmente.

O Sr. Presidente: - Sobre isso estamos de acordo, Sr. Deputado.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Congratulo-me, Sr. Presidente, com o facto de estarmos de acordo! Apenas faço votos de que o Governo entre nesse acordo, para que o Conselho possa ter meios. É essa a fórmula mais apta para conseguir que o Conselho alargue os horizontes. Um tutor governamental sentado no Conselho Permanente, fiscalizando e intervindo na sua vida seria a pior das soluções! De resto, o Sr. Ministro pode sempre ir ao Conselho. Será seguramente bem vindo e tratado gentilmente se tiver, de resto, a mesma gentileza em relação aos membros do Conselho, o que, ao que me consta, não tem sucedido...

Assim sendo, creio que ainda que o Governo continue a ter sempre a possibilidade de ir à televisão insultar os tribunais superiores, esta possibilidade de estar permanentemente dentro do Conselho Superior não é benfazeja. Pelo contrário!

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, não sei se o artigo 223.°-A (Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscals) já foi discutido.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, a propósito dos artigos 217.°-A e 217.°-B foi abordada toda a problemática do contencioso administrativo e fical. Das opções a que se chegue nessa sede fica, evidentemente, dependente a consideração positiva desta proposta.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vamos passar, então, à análise do artigo 224.°, relativo ao capítulo IV (Ministério Público) e que tem por epígrafe "Funções e estatuto".

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, não sei se é intenção de V. Exa. fazer agora a censura ou mais adiante. Como está programada para dentro de segundos a deslocação imprescindível para votações, não sei se VV. Exas. desejam entrar já nesta matéria. Creio que a questão do estatuto do Ministério Público suscita três ou quatro problemas que exigem cuidado.

O Sr. Presidente: - As minhas actuais funções fiscalistas não me permitem invocar a tradição, mas até há três ou quatro reuniões atrás seguíamos a prática de, salvo havendo lancinantes apelos ao voto, prosseguirmos os nossos trabalhos.

Vozes.

O Sr. Presidente: - Se houver problemas de quorum, interromperemos os nossos trabalhos.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Não sei se existe acordo nesse sentido. Pelos vistos, existe.

O Sr. Presidente: - Suponho que é isso que temos feito, Sr. Deputado. A não ser que haja um motivo muito especial, não interrompemos os nossos trabalhos. Vamos prosseguir, então, os nossos trabalhos.

Vozes.

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O Sr. Presidente: - Em relação ao artigo 224.° há uma proposta de alteração do CDS para o n.° 1.

O PCP tem uma proposta de alteração para os n.ºs 1 e 2 e de aditamento de um novo n.° 3.

O PRD também tem uma proposta de alteração e uma outra de aditamento.

O CDS não está presente para justificar a sua proposta.

Assim sendo, tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, esta é uma matéria em que nos parece fundamental que se consiga algum aperfeiçoamento ou melhoria do texto da Constituição.

Não farei aqui um balanço daquilo que tem vindo a ser o exercício das atribuições e competências do Ministério Público na sequência das medidas legislativas que têm vindo a presidir ao seu enquadramento e na sequência do quadro criado pela entrada em vigor do novo Código de Processo Civil. Toda esta matéria foi objecto de aprofundada reflexão, designadamente pelo próprios magistrados do Ministério Público aquando do IV Encontro Internacional de Magistrados realizado em Novembro de 1987, em Lisboa, cujos trabalhos acabam de ser editados pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público no volume V do respectivo Boletim de Junho de 1988. Aí se lança um olhar detalhado e extremamente fecundo sobre a situação da magistratura, com relevantes reflexões sobre o que tem vindo a ser o exercício das competências do Ministério Público, quer quanto à avaliação do seu perfil quer quanto à forma como essas competências têm vindo a ser exercidas a propósito das diversas áreas fundamentais de actuação, tanto no que diz respeito ao processo penal como no que diz respeito à jurisdição civil, como ainda no que diz respeito à defesa dos direitos sindicais, à jurisdição laboral, ao próprio Tribunal de Contas junto do Tribunal Constitucional. Essa avaliação, feita com rigor e desenvolvimento e abundante cópia de exemplos concretos, é do maior relevo para podermos fazer um juízo sobre qual seja o sentido e as perspectivas de futuro do Ministério Público em Portugal.

No que concretamente diz respeito a propostas de alteração, parece-nos extremamente relevante que se melhore a redacção do artigo 224.° Nesse sentido apresentámos uma proposta. Nessa proposta tem-se muito em conta a elencagem das atribuições do Ministério Público tal qual é hoje feita na lei, suprimindo ou alterando, apenas, alguns aspectos.

A proposta fala por si. Gostaria de sublinhar que entendemos que é tempo de pôr fim à defesa pelo Ministério Público dos chamados interesses privados do Estado. A nossa proposta tem conteúdo bastante para assegurar essa finalidade, que nos parece extremamente relevante para que o Ministério Público possa encontrar tempo e condições para exercer as suas outras missões, que, essas sim, são particularmente relevantes, sobretudo no presente quadro, em que se assiste a uma verdadeira invasão decorrente da reforma processual penal. É evidente que a solução pressuposta no nosso projecto de revidsão constitucional é a decorrente da leitura que fazemos da Constituição. É isso que decorre da alínea a) do n.° 1. Em todo o caso, é óbvio que o texto é susceptível de ser lido em outros termos. De qualquer forma, creio que o artigo 224.° precisaria de uma reformulação que o melhorasse.

Sabe-se também que o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público aventa uma redacção que se inspira na formulação do n.° 1 do artigo 124.° da Constituição espanhola de 1978. Esse dispositivo refere: "sem prejuízo das funções cometidas a outros órgãos, o Ministério Fiscal tem por omissão promover a acção da justiça em defesa da legalidade, os direitos dos cidadãos, os interesses públicos tutelados pela lei, oficiosamente ou a pedido dos interessados, bem como velar pela independência dos tribunais e procurar perante eles a satisfação do interesse social". É um pouco essa a formulação que o PRD transpõe na redacção que propõe. A nossa formulação está mais próxima da lei portuguesa e tem, de resto, a pretensão de ter essa virtude.

No n.° 2 proclamamos a autonomia do Ministério Público. Parece-nos fundamental que haja uma transposição desse princípio hoje constante do n.° 1 do artigo 2.° da Lei Orgânica do Ministério Público, Lei n.° 47/86, de 15 de Outubro, que assume particular importância se tivermos em conta a leitura que muitos dos Srs. Deputados fazem das funções que a lei ordinária cometeu ao Ministério Público no quadro do processo penal. É particularmente importante que o Ministério Público tenha assegurada a sua autonomia, com todas as implicações.

Por último, no n.° 3 prevê-se que haja uma possibilidade de recorrer para o Conselho Superior do Ministério Público dos actos do Ministério Público que mandem arquivar qualquer procedimento criminal. É uma forma de garantia adicional dos cidadãos num quadro em que ao Ministério Público passam a competir poderes de particular importância para a defesa da legalidade democrática em matéria de processo penal. É uma disposição inovadora, que visa estabelecer um elemento de controle externo da própria actividade do Ministério Público, por forma a impedir o bloqueamento ou, pelo menos, a não transparência em certas decisões do Ministério Público quanto ao arquivamento de processos.

Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Vice-Presidente, Almeida Santos.

O Sr. Presidente (Almeida Santos): - A proposta do PCP, que na sua intenção tem alguns elementos positivos, é demasiado pormenorizada, repetitiva e, em muitos casos, de duvidosa justificação. Quanto à alínea a) ("exercer a acção penal e intervir, dentro dos limites da Constituição, no processo penal, nos termos da lei", não há problema, mas acho que a actual fórmula do n.° 1 é uma fórmula bastante sábia, no sentido de dizer que "exerce a acção penal, defende a legalidade democrática e os interesses que a lei determinar", porque são vários, são os menores, são os incapazes, etc.. "Desencadear as acções ou recursos necessários para protecção do património público e da legalidade das finanças públicas, dos interesses difusos ou colectivos, nomeadamente os relativos ao meio ambiente, ao património cultural e aos direitos dos consumidores" [alínea b)] pode ser de mais e pode ser de menos, na medida em que, procedendo a uma discriminação prolongada e esmiuçada, pode parecer que é só isto e que não é mais do que isto, quando a actual

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expressão - "os interesses que a lei determinar" - é, a meu ver, uma formulação bastante elástica, que não fechando nenhuma porta também não deixa de contemplar o que já está. Até porque parte destes interesses estão cobertos pelas nossas propostas de extensão da acção popular. A alínea c) parece-me uma repetição do actual n.° 1. Este diz "os interesses que a lei determinar", e agora dir-se-ia "nos termos da lei, quando exista interesse público ou social relevante". Mas, como não se diz o que é um interesse público ou social relevante, terá de dize-lo a lei, portanto isto equivale ao actual n.° 1. O mesmo se pode dizer da alínea d) - "exercer outras atribuições de defesa de interesses públicos compatíveis com a sua função constitucional que lhe sejam cometidos por lei". Como não se define o que é compatível com a função constitucional, acaba por se remeter para a lei. As alíneas á) e d) não trazem novidade em relação ao n.° l, a alínea á) também não traz, mas a alínea b) merece, em meu entender, e salvo o devido respeito, a crítica que lhe dirigi. Quanto ao n.° 2, não sou, como se calcula, contra porque fui eu que defini no novo estatuto orgânico do Ministério Público o seu actual grau de autonomia. Antes, estava na dependência da tutela do Ministério da Justiça. Mas alguma diferenciação tem de haver entre os magistrados judiciais e os do Ministério Público. É essa uma das razões por que as magistraturas são separadas. Enquanto os juizes dos tribunais judiciais são irresponsáveis e não subordinados hierarquicamente, os agentes do Ministério Público são magistrados responsáveis e hierarquicamente subordinados. Não pode deixar de ser assim, sob pena de criarmos mais problemas do que os que resolvemos. O Ministério Público deve ter um grau de autonomia compatível com o exercício eficaz das suas funções, mas não nos esqueçamos que ele representa o Estado nos tribunais e portanto é justo que algum cordão umbilical, por mais ténue, fique a ligar o representante e o representado. O que agora se propõe é a total autonomia em relação aos órgãos do poder central, regional e local e exclusiva vinculação a critérios de legalidade e objectividade. Isto está na lei; salvo erro, isso é uma formulação que já vem da lei orgânica do Ministério Público de que fui responsável. Isso não impede que nesse mesmo estatuto se diga que eles são magistrados responsáveis e hierarquicamente subordinados. Gozam, no entanto, das garantias de inamovibilidade, etc.. Mas sempre com uma ponte a ligar o representante ao representado.

Quanto ao n. ° 3 do PCP, penso que poderia ser perigoso. "A lei regula os casos e termos em que os cidadãos podem recorrer, para o Conselho Superior do Ministério Público, de acto do Ministério Público que mande arquivar qualquer procedimento criminal." E pode ser perigoso porque o Ministério Público já traz, do regime anterior, um forte pendor acusatório. A inovação vinha de algum modo reforçar este pendor. Sabendo que os cidadãos podiam recorrer do arquivamento de um processo, podia estimular a acusação, em caso de dúvida. Não devemos, a meu ver, estimular a acusação. Bem basta que o Ministério Público chame a si, por vezes com excessivo fervor, essa missão. E suponhamos que a parte ganhava o recurso, o magistrado corrigia o seu critério e o grau da sua severidade.

Quanto à proposta do PRD, como não está cá o seu representante, não diria nada.

Quanto à do CDS passa-se o mesmo, embora me pareça que a representação do Estado junto dos tribunais é uma precisão, de algo que já é assim. Mas não tenho a certeza que não possa haver algum grau de representação que não seja só junto dos tribunais.

Portanto, deixaria ficar o actual artigo, que é um artigo a meu ver bem concebido.

Era esta a nossa posição, sem prejuízo de entender que as preocupações que estão na base desta proposta do PCP são preocupações saudáveis.

Tem a palavra a Sra. Deputada Maria da Assunção Esteves.

A Sra. Maria da Assunção Esteves (PSD): - Só, também, para em breves palavras dizer o que o PSD pensa desta proposta do PCP. Não queria alongar-me muito, porquanto todas as observações feitas pelo Sr. Deputado Almeida Santos são consideradas, da nossa parte, extremamente pertinentes e, portanto, subscrevo-as desde já. Queria, no entanto, fazer algumas referências ainda a esta proposta, nomeadamente quanto a um certo sentido perverso nos acrescentamentos que aqui se inserem. É que, ao estabelecer, a proposta do PCP, um elenco de atribuições do Ministério Público que desenvolve a fórmula mais lacónica, nem por isso menos feliz, do actual texto constitucional, está, no fundo - mesmo para efeitos de interpretação, no plano comparativo, entre o actual texto e aquele que porventura daqui resultaria com esta proposta -, a mutilar mais as atribuições do Ministério Público do que a desenvolvê-las. É que esta descrição tem um pendor taxativo que prejudica as virtualidades de intervenção do Ministério Público nas funções que lhe são constitucionalmente assinaladas e algumas alíneas têm mesmo um teor razoavelmente caricato. Não faz sentido, por exemplo, a alínea d), quando não há aqui nada, de facto, a acrescentar ao dito anteriormente, e sobretudo à abrangência do texto actual, designadamente com a expressão "e os interesses que a lei determinar". Em relação à alínea c) não há também nada que se adiante, há aqui até uma afirmação constitucional de um certo pendor difuso da função do Ministério Público que de certo modo o desvitaliza e descaracteriza. Portanto, entendemos que o texto actual é razoavelmente incisivo, é razoavelmente abrangente, não cria buracos que nenhuma proposta tenha de superar.

Por outro lado, queria ainda referir-me ao n.° 3 que o PCP propõe, em aditamento. Não faz sentido que haja uma iniciativa, por parte dos cidadãos, no sentido de condicionar a actuação do Ministério Público; assim, as observações do Sr. Deputado Almeida Santos sobre a tendência, incrustada na história, de acusação, por parte deste órgão da magistratura, ser já bastante forte e não vir a Constituição recriar essa tendência ou reforçá-la parecem-me positivas. Portanto, que não haja aqui uma espécie de impulso de cariz disciplinar propulsionado pelas pessoas de fora do processo, de fora dos órgãos normais que exercem a justiça, para efeitos de condicionar os actos do Ministério Público. De tudo isto resulta, obviamente, que o PSD vê os máximos inconvenientes na alteração do artigo 224.°, sobretudo no sentido em que ela é proposta pelo

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PCP, com efeitos desnecessários, com efeitos inadequados, do ponto de vista de uma boa política de legislação, e com efeitos perversos, designadamente, ao nível do que se consagra no n.° 3 desta proposta.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Raul Castro.

O Sr. Raul Castro (ID): - Penso que, em relação à proposta do PCP, há que distinguir as várias partes que ela contém. Na realidade, e em relação ao n.° 1, é algo discutível se a fórmula actual, que é uma fórmula explícita e desdobrada numa série de alíneas, é uma fórmula melhor que a actual fórmula do n.° 1 do artigo 224.° Ficámos com alguma dúvida se será realmente melhor do que ela.

Em relação ao n.° 2, parece-nos que, efectivamente, já se justifica o acento tónico que se põe no n.° 2, quanto à autonomia do Ministério Público em relação aos órgãos do poder central, regional e local.

Em relação ao n.° 3, tenderíamos, talvez, a eliminar a última parte e estabelecer apenas a possibilidade de recurso para o Conselho Superior do Ministério Público, visto que esse recurso pode abranger não só o acto que aqui se refere, mas outros aspectos da actuação do Ministério Público. Quer dizer, contemplar a possibilidade de recurso parece-me até um incentivo para a garantia de direitos porventura violados em qualquer acto do Ministério Público, mas não acrescentar a última parte.

Em relação às outras duas propostas, não foram aqui defendidas; por isso nada teríamos a dizer.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Era apenas para fazer curtas alegações de defesa em relação a algumas das críticas feitas.

A Sra. Deputada Assunção Esteves teve a gentileza de fazer contrato de adesão em relação às declarações do Sr. Deputado Almeida Santos, mas, verdadeiramente, verdadeiramente, não se manteve dentro dos limites de uma adesão, pois fez uma ampliação do clausulado crítico, com larga cópia de bombardas. Tudo isso fez aludindo à "amputação" (sic), à "mutilação" (sic), à "desvitalização" (sic) praticada pelo PCP. Teve mesmo o cuidado de aludir à existência de alíneas "de teor razoavelmente caricato" (sic) na proposta do PCP: referia-se à alínea £) apresentada pelo PCP.

Tudo estaria bem, Srs. Deputados, se o PSD não estivesse associado à redacção destas alíneas "caricatas" (sic), sucede que está, porque nós nos limitamos a extractar conteúdos legais! Dir-se-á que para o PSD há, como nas histórias de cinderelas, o antes e o depois da meia-noite, o terreno legal e o terreno constitucional. No terreno legal tudo é permitido, no terreno constitucional eis que o que é sóbrio na lei se transforma em caricato e aquilo que é desejável se transforma em horripilante. São critérios! Não são seguramente os nossos, pois mantemos a mesma cara antes e depois da meia-noite, isto é, no terreno da lei ordinária e no terreno da Constituição. Para nós a Cinderela não se transforma em monstro pela razão simples de mudar a hora e o terreno.

Tudo isto vem a propósito de ser grandíssimo exagero alegar o que foi alegado. É uma atitude que traduz apenas uma menor consideração daquilo que são já hoje atribuições e competências do Ministério Público. Parece-nos que, tudo ouvido, teria sido prudente manter, na nossa proposta, uma fórmula genérica alusiva às funções do Ministério Público, designadamente não suprimir a alusão à defesa da legalidade democrática em geral, fazendo depois alguma especificação. Estamos inteiramente disponíveis, nesse sentido, para considerar as acusações feitas. O que procurámos foi alguma margem de enriquecimento (que tomámos à partida como devendo ser, desejavelmente, largo) do próprio conteúdo constitucional.

Foi nesse sentido que nos preocupámos com a alusão às diversas áreas em que a intervenção do Ministério Público pode ser relevante. Designadamente, parece-nos que a sua intervenção em relação à protecção do património público, da legalidade das finanças públicas, dos interesses difusos ou colectivos ou outros similares (são os tais normativos "caricatos" constantes da alínea b) do n.° 1 do projecto do PCP) pode ser extremamente relevante nos momentos que vivemos, sobretudo porque é particularmente mau que se encare (um tanto esdruxulamente, não direi caricatamente, é o que faz o PSD!) como normal que o Ministério Público português seja o único, e sublinho o único, na Europa que trata da representação perante os tribunais dos interesses privados do Estado. Isto gera a situação, essa sim verdadeiramente caricata, aí a palavra é rigorosa, de o Ministério Público ter de acusar o Estado (por exemplo, um veiculozinho conduzido por condutor do Estado), ter de defender o Estado (em relação à indemnizaçãozinha competente para as vítimas) e em certos casos ter de pedir, ao abrigo do artigo 76.°, n.° 1, do actual Código de Processo Penal, a pedido de algum terceiro, de algum lesado, a competente indemnização civil relativamente ao lesado que lho requeira. Aí está o Ministério Público actuando em três vestes, no nosso processo penal, defendendo interesses privados. Isto é verdadeiramente absurdo e urgiria que tomássemos alguma medida, que também pudesse ter projecção aqui, em sede de Constituição, por forma a libertar o Ministério Público de tarefas que realmente não lhe devem caber e que em bom rigor deveriam caber a um corpo de advogados do Estado, deixando o MP livre para exercer as tarefas que deve exercer em defesa da legalidade democrática, nas suas diversas vertentes. É uma questão relevante, é uma questão séria e creio que o PSD não pode furtar-se a essa questão com tanta, tanta facilidade.

Em relação ao ponto 2, não encontrei da parte do Sr. Deputado Almeida Santos nenhuma disponibilidade para considerar o problema que ele equaciona. É que todos nos lembramos de qual foi a trajectória constitucional que conduziu à elaboração destes artigos que estamos agora a discutir. Os projectos, à partida, não eram excessivamente ricos nesta matéria e o desenvolvimento que se conseguiu em sede da primeira revisão constitucional foi também escasso. As dúvidas sobre a autonomia do Ministério Público e os contornos desta autonomia têm pairado, indesejavelmente, no horizonte das discussões sobre esta matéria. Embora a lei ordinária consagre, em termos que nós procurámos transpor, essa autonomia, a clara afirmação constitucional de uma autonomia, devidamente entendida, parece-me

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um ponto capital. O facto de não ter constado do projecto original do PS apenas significa que não foi contemplado no momento originário. Esperemos que não signifique mais nada! Nesta matéria, creio que um empenhamento na alteração do silêncio constitucional nesta matéria (que obviamente não proíbe a lei ordinária de ser generosa, mas simultaneamente não estabelece garantia bastante) era obviamente desejável. Nesse sentido apelamos.

Em relação à última proposta apresentada, creio que os Srs. Deputados deveriam ter presentes as soluções inovadoras constantes do Código de Processo Penal, cometendo ao Ministério Público vastas competências para aquilo que se pode chamar uma "justiça negociada". Nesta, na sequência de jurisprudência do Tribunal Constitucional, veio a não ser arredada a intervenção da magistratura judicial. No entanto, o Ministério Público dispõe, ainda, de amplos poderes, cujo exercício deve ser objecto de alguma fiscalização, introduzida por via de um instituto que nós, aqui, procuramos estabelecer.

O receio do Sr. Deputado Almeida Santos de que a acção popular aqui introduzida seja perigosa é um receio que respeitamos, mas nós alertamos o PS para o nosso receio em relação à situação contrária. É que, face a um determinado enquadramento legal dos poderes do Ministério Público, este fica com margem latíssima para interromper o normal desenvolvimento de acção penal, com um controle limitado. O alargamento desse controle (em moldes que a lei teria de definir, evidentemente) poderia funcionar como contraveneno para um problema que nós esperamos não venha a ter de ser enfrentado, bastante mais tarde, em condições piores, por meios que terão nessa altura de ser mais drásticos.

O Sr. Presidente: - A parte interessada pode sempre fazê-lo. A nossa grande discordância é "os cidadãos" em geral. Porque a parte interessada já hoje tem legitimidade para recorrer de um despacho de arquivamento. O problema é "os cidadãos". É uma espécie de acção popular, a meu ver perigosa, porque podia forçar o critério acusatório do Ministério Público, que ainda hoje existe, por deformação antiga.

Por outro lado, queria dizer o seguinte: esta querela entre o grau de autonomia do Ministério Público é uma querela que se instalou a partir do momento da lei em vigor, da autoria do governo em que eu fui ministro da justiça. Dentro desse mesmo governo, o grau de autonomia do Ministério Público então consagrado encontrou resistências, as mais vivas, da parte, até, de antigos ministros da justiça. Nessa altura, encontrei-me exactamente na posição de V. Exa., a defender o grau de autonomia do Ministério Público, consagrado na minha proposta de lei, contra aqueles que queriam uma maior vinculação aos órgãos de soberania - que, normalmente, seria o ministro da justiça. Penso que o equilíbrio que se encontrou e a maneira como as coisas têm corrido, desde então, prova que a dosagem está certa. Tenho dúvidas sobre se o reforço da autonomia, sobretudo se consagrado nos termos que aqui se propõem, não viria a transformar o Ministério Público numa magistratura semelhante à magistratura judicial, o que a descaracterizava como representante dos interesses do Estado e seu representante na acção penal.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Creio que V. Exa. está a raciocinar com base num equívoco. Terá particularmente viva a memória da reflexão sobre a Lei n.° 39/78. Sucede que a lei foi substituída pela Lei n.° 47/86, que, de resto, foi aprovada por consenso nesse bom dia do mês de Outubro do ano referido e consagra no seu artigo 2.° precisamente esta redacção: "o Ministério Público goza de autonomia em relação aos demais órgãos de poder central, regional e local, sendo a autonomia caracterizada pela sua vinculação a critérios de legalidade e objectividade e com exclusiva sujeição dos magistrados e agentes do Ministério Público às directivas, ordens e disposições previstas na lei".

O Sr. Presidente: - Eu próprio disse isso, mas reconheça V. Exa. que ainda não temos experiência do comportamento dessa novidade para estarmos a consagrá-la na Constituição. É uma porta que eu não gostaria de fechar, sinceramente. Acho que essa experiência se vai fazer, veremos o que dá. E se, daqui a algum tempo, verificarmos que podemos consagrar na Constituição essa regra, consagrá-la-emos.

O problema é o de fecharmos a porta a partir de uma experiência que ainda não temos.

E eu, sinceramente, não ia tão longe, neste momento. Nem tudo o que está na lei deve estar na Constituição.

Lembro mais uma vez que se trata de uma magistratura responsável e hierarquicamente subordinada, portanto, a própria Constituição ainda hoje - VV. Exas. nem sequer propõem nada sobre isso, e muito bem - quer que estes magistrados sejam diferentes dos judiciais. Assim, não podemos consagrar aqui uma autonomia em pé de igualdade com a dos magistrados judiciais.

Essa regra na lei ordinária está muito bem, vamos ver o resultado que dá. Se virmos que podemos dar esse passo mais tarde, dê-se esse passo. Neste momento, acho que era arriscado - é o meu ponto de vista. Claro que estou sempre aberto para admitir que possa estar errado.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Apenas faço votos de que esse reconhecimento tenha lugar em tempo apropriado, isto é, em tempo útil, neste caso concreto.

O Sr. Presidente: - Esperemos que sim.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sob pena de a Sra. Deputada Assunção Esteves poder limitar-se a aderir a essa declaração de conformidade.

O Sr. Presidente: - Infelizmente para si, a Sra. Deputada Assunção Esteves é um "bocadinho" mais nova do que eu - ela cá estará, na altura em que eu faltar, para defender os meus pontos de vista.

Vozes.

O Sr. Presidente: - Vamos passar ao artigo 225.°, em relação ao qual há uma proposta do PCP de alteração do n.° 2, no sentido de que a acção disciplinar, que hoje compete à Procuradoria Geral da República, passaria concretamente a competir ao Conselho Superior do Ministério Público, nos termos da lei. O n.° 3 (que é um número novo) diria que "o Procurador-

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Geral da República participa nas reuniões dos conselhos superiores das magistraturas quando estes apreciem a designação de magistrados para os tribunais superiores". Como sabem, também podem concorrer elementos do Ministério Público, razão por que, suponho, está aqui esta proposta.

O PRD também faz a mesma proposta, no sentido de competir ao Conselho Superior do Ministério Público a nomeação, colocação, transferência, etc.., tal como faz o PCP.

Para justificar a proposta do PCP, tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - O PCP não propõe alteração do n.° 1 do artigo 225.°, embora, em bom rigor, nos pareça razoavelmente ultrapassada a querela sobre a distinção entre a inamovibilidade dos magistrados judiciais e a alegada amovibilidade dos magistrados do Ministério Público. Em bom rigor, em ambas essas categorias os magistrados não podem ser transferidos, suspensos, aposentados ou demitidos senão nos casos previstos na lei, e apenas nesses. Continuar a falar-se da amovibilidade é, de certa forma, uma homenagem mais ao passado do que à realidade e ao futuro. Poderia, evidentemente, fazer-se uma correcção nesse sentido.

A nossa proposta visa consagrar a existência de garantias adicionais para os magistrados do Ministério Público, instituindo e dando consagração constitucional ao Conselho Superior do Ministério Público, cuja organização e funcionamento é remetida para a lei, e, por outro lado, assegurando ao procurador-geral da República um direito de intervenção, tanto no Conselho Superior da Magistratura como no Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, quando se aprecie a designação de magistrados para os tribunais superiores, uma vez que - como o Sr. Deputado Almeida Santos, já teve ocasião de sublinhar - os magistrados do Ministério Público são também susceptíveis de ser providos nesse cargo ou de ter acesso a esse cargo.

A nossa proposta, em matéria do Conselho Superior do Ministério Público, não é excessivamente ambiciosa. O Sindicato dos Magistrados do Ministério Público teve ocasião de fornecer à Assembleia da República uma sugestão legislativa que visa um verdadeiro paralelismo com o Conselho Superior de Magistratura, tendo um número introdutório em que se estabelece uma regra geral sobre a nomeação, colocação, transferência e promoção; um n.° 2, que regularia a composição do Conselho, especificando que este deve ser presidido pelo procurador-geral da República e composto por um determinado número de vogais, três eleitos pela Assembleia, os procuradores-gerais-adjuntos nos distritos judiciais, um procurador-geral-adjunto, dois procuradores da República, quatro delegados do procurador da República eleitos pelos seus pares, prevendo no n.° 4 a possibilidade de fazerem parte do Conselho funcionários de justiça eleitos pelos seus pares, em condições em tudo similares às aplicáveis ao Conselho Superior da Magistratura. A ser acolhida essa sugestão, teria de se eliminar a parte final do n.° 2 do actual artigo 226.°

Consideramos que, aqui, a margem de ganho a adquirir deveria ser consistente numa não omissão da existência deste Conselho Superior do Ministério Público, que é uma realidade pacífica, em condições que poderiam resultar dignificadas de qualquer solução: a que nós propomos ou, mais desejavelmente ainda, alguma que fosse mais explícita e com conteúdo ainda mais preciso!

Creio que o PRD navegou nas mesmas águas, embora com a omissão da segunda das propostas que o PCP - e apenas o PCP - apresenta. Não gostaríamos nada, naturalmente, de ter o monopólio nesta matéria: gostaríamos, sim, que se estabelecesse um consenso alargado, como é óbvio.

O Sr. Presidente: - Pela parte que toca ao PS, vemos com alguma abertura a consagração de propostas deste género, porque também nós propomos que se constitucionalize o Conselho Superior do Ministério Público. A Procuradoria-Geral da República está sem "cabeça", ao contrário do que acontece com a magistratura judicial.

Também propomos que a lei determine as regras de organização e de competência - não fixaríamos a regra de competência que está aqui, mas isso é um problema a resolver. Quanto à composição do que já se diz hoje, que é "um órgão colegial que inclui membros entre si eleitos pelos magistrados do Ministério Público", nós diríamos: "que inclui membros eleitos pela Assembleia da República", também por paralelismo com o que acontece com a magistratura judicial. Portanto, veríamos com alguma abertura as duas propostas do PCP, no sentido da consagração do que aqui se propõe. Achamos também razoável que o procurador-geral da República participe nas reuniões dos conselhos superiores da magistratura, quando estes apreciem a designação de magistrados para os tribunais superiores, na medida em que o Ministério Público também concorre aos tribunais superiores. As duas propostas, nesta formulação ou noutra semelhante, têm a nossa simpatia.

A proposta do PRD não traz nada de novo em relação à do PCP, desde já dou por justificada a nossa proposta, que é mais modesta, no sentido de que se remeta para a lei a competência e se defina, apenas em parte, a composição, incluindo esta, além de membros entre si eleitos pelos magistrados do Ministério Público, tal como acontece hoje, também membros eleitos pela Assembleia da República, como acontece com o Conselho Superior da Magistratura. A nossa preocupação foi a de acentuar um certo paralelismo nos órgãos de cúpula da magistratura judicial e do Ministério Público.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Creio que, embora a opção seja melindrosa, o PSD não deixará, seguramente, de manifestar uma opinião. O interesse do debate está precisamente em saber se há consenso alargado...

O Sr. Presidente: - A Sra. Deputada Assunção Esteves esteve a "provocar" V. Exa., mas não se deixou "provocar" - agora, parece que reagiu.

Tem a palavra o Sr. Deputado Pais de Sousa.

O Sr. Pais de Sousa (PSD): - Muito brevemente, queria dizer que as propostas do PCP são ponderáveis, mas temos dúvidas quanto à sua suficiente estabilidade para as situar, desde já, no plano constitucional.

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O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Deputado, não estará a transpor excessivamente a argumentação do Sr. Deputado Almeida Santos, em relação à matéria anterior? Apesar de tudo, a estabilização do Conselho Superior do Ministério Público deveria colocar-se em termos distintos daqueles que o Sr. Deputado Almeida Santos aplicou a uma matéria que é, realmente, ela própria, também distinta. Por mais dúvidas que se possam exprimir em relação a essa argumentação, em todo o caso, não sou capaz de transpô-la nos mesmos termos! Suponho, aliás, que o PS não o fará. Não o fez, já para esta matéria, porque o Conselho Superior do Ministério Público existe, com atribuições e competências que a lei figura e que, de resto, seriam ligeiramente alteradas por esta norma, num sentido que me parece razoável. Mas nenhuma dúvida subsiste sobre a sua existência! É absurdo, é impensável o regresso a qualquer sistema em que não haja esta margem de auto-organização e de gestão dos magistrados do Ministério Público!

O Sr. Presidente: - É o órgão colegial que está referido no artigo 226.° Só que a Constituição não o baptiza e nós estamos a dar-lhe o nome que a lei ordinária lhe deu. Mais nada.

O Sr. José Magalhães (PCP): - É que este pudor, traduzido e não baptizado, que foi o resultado das dúvidas existentes na primeira revisão constitucional, muitos anos depois é ainda mais infundamentado. A instituição está verdadeiramente sedimentada e em condições plenas de ser constitucionalizada. Nesta matéria, francamente, não vejo que as reservas do PSD possam dever-se a outra coisa que não a uma consideração, pejada de preconceitos, da própria realidade - realidade que foi, de resto, obra comum inter-partidária!

O Sr. António Vitorino (PS): - Há uma solução intermédia, que é a de retirar o nome - não veríamos objecção a isso, apesar de tudo: "o qual compreende um órgão colegial, que inclui membros eleitos pela Assembleia da República e membros de entre si eleitos pelos magistrados do Ministério Público".

O Sr. Presidente: - Penso que, como está na lei para o Conselho Superior da Magistratura, por que não aqui? A experiência já consagrou o Conselho Superior do Ministério Público. Entre o Conselho Superior da Magistratura e o Conselho Superior do Ministério Público o paralelismo é total. Acho que podíamos consagrar esta realidade na Constituição. Não tem sentido dizer, num caso, Conselho Superior do Ministério Público com a seguinte composição e, no outro, um órgão colegial.

O PRD faz ainda uma proposta, no sentido de que as polícias de investigação criminal dependam funcionalmente das autoridades judiciárias competentes. Nenhum de nós tem nada contra isso. O problema é de saber se se deve ou não constitucionalizar. Mas talvez fosse uma salvaguarda importante. Pela parte do PS, temos abertura.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, o Sr. Deputado Costa Andrade, quando debatemos esta matéria a propósito de uma proposta similar do PCP inserida noutra sede, teve ocasião de manifestar aquilo que é uma evidência: trata-se, aqui, de consagrar alguma coisa que está legalmente consagrada. As dificuldades de execução prática não têm a ver com o questionar do princípio, mas têm a ver, precisamente, com a complexidade da transposição para o real.

O Sr. Presidente: - O problema é só se se deve constitucionalizar ou não. Não está em causa o princípio, como é óbvio.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Mas essa abertura foi manifestada e, na altura, tive ocasião de a sublinhar, porque me parece extremamente importante.

O Sr. Presidente: - O PS também tem abertura. Passamos agora ao artigo 229.° - poderes das regiões autónomas.

O Sr. José Magalhães (PCP): - Sr. Presidente, esse era o ponto onde se fazia o "separar de águas", embora não em homenagem ao Atlântico.

O Sr. Presidente: - Muito bem, então. Nesse caso, suspenderíamos agora os trabalhos. Srs. Deputados, está encerrada a reunião.

Eram 20 horas e 5 minutos.

Comissão Eventual para a Revisão da Constituição

Reunião do dia 19 de Julho de 1988

Relação das presenças dos Srs. Deputados:

Carlos Manuel de Sousa Encarnação (PSD).
Carlos Manuel Oliveira e Silva (PSD).
António Costa de Sousa Lara (PSD).
Valdemar Cardoso Alves (PSD).
José Augusto Ferreira de Campos (PSD).
Licínio Moreira da Silva (PSD).
Luís Filipe Garrido Pais de Sousa (PSD).
Maria da Assunção Andrade Esteves (PSD).
Manuel da Costa Andrade (PSD).
Mário Jorge Belo Maciel (PSD).
Miguel Bento de Macedo e Silva (PSD).
Rui Alberto Limpo Salvada (PSD).
Rui Manuel Lobo Gomes da Silva (PSD).
António de Almeida Santos (PS).
Alberto de Sousa Martins (PS).
António Manuel Ferreira Vitorino (PS).
Jorge Lacão Costa (PS).
José Eduardo Vera Cruz Jardim (PS).
José Manuel Santos Magalhães (PCP).
José Manuel Mendes (PCP).
Miguel Galvão Teles (PRD).
Raul Fernandes de Morais e Castro (ID).

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