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Sexta-feira, 16 de Outubro de 1992 II Série - Número 8-RC

DIÁRIO da Assembleia da República

VI LEGISLATURA 2.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1992-1993)

III REVISÃO CONSTITUCIONAL

COMISSÃO EVENTUAL PARA A REVISÃO CONSTITUCIONAL

ACTA N.º 8

Reunião do dia 15 de Outubro de 1992

SUMÁRIO

O Sr. Presidente (Rui Machete) deu início à reunião às 17 horas e 30 minutos.

O Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda foi ouvido pela Comissão sobre a problemática jurídico-política da revisão constitucional em curso, tendo respondido a perguntas dos Srs. Deputados Luís Pais de Sousa (PSD), Alberto Costa, José Magalhães e Jorge Lacão (PS), António Filipe (PCP), Ana Paula Barros (PSD), Nogueira de Brito (CDS), Guilherme Oliveira Martins (PS) e Mário Tomé (Indep.).

O Sr. Presidente encerrou a reunião eram 20 horas e 5 minutos.

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O Sr. Presidente (Rui Machete): - Srs. Deputados, temos quorum, pelo que declaro aberta a reunião.

Eram 17 horas e 30 minutos.

Estavam presentes os seguintes Srs. Deputados:

Rui Manuel Parente Chancerelle de Machete (PSD), presidente.
Ana Paula Matos Baixos (PSD).
Fernando Marques Andrade (PSD).
João José Pedreira de Matos (PSD).
Luís Filipe Garrido País de Sousa (PSD).
Alberto Bernardes Costa (PS).
Guilherme Waldemar P. de Oliveira Martins (PS).
Jorge Lacão Costa (PS).
José Manuel Santos de Magalhães (PS).
António Filipe Gaião Rodrigues (PCP).
José Luís Nogueira de Brito (CDS).
Manuel Sérgio Vieira e Cunha (PSN).

Srs. Deputados, nesta sessão de trabalho sobre a problemática jurídico-política da revisão constitucional, destinada a ouvir e a dialogar com especialistas que foram expressamente convidados para virem à Comissão expressar as suas opiniões, houve alguns desses nossos convidados que oportunamente nos explicaram as razões por que estavam impedidos de aceitar, para este dia e a esta hora, o convite.

Estão nesse caso os Profs. Doutores Rogério Ehrhardt Soares, Joaquim Gomes Canotilho, Manuel Moura Ramos, José Carlos Vieira de Andrade, André Gonçalves Pereira, Diogo Freitas do Amaral, Marcelo Rebelo de Sousa e José Sérvulo Correia. Ou porque se encontram neste momento no estrangeiro ou por outro motivo de serviço público, estão impedidos de comparecer.

Os Profs. Gomes Canotilho e Vieira de Andrade, para além das cartas em que explicam os motivos do seu impedimento, tiveram a bondade de nos enviar sucintos apontamentos, que, pela sua importância, passo a ler.

Na sua carta, o Prof. Gomes Canotilho refere o seguinte:

Exmo. Sr. Presidente da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional:

Cumpre-me agradecer o convite da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional para uma sessão de trabalho sobre a problemática jurídico-política em curso.

Como não me é possível estar em Lisboa nesse dia - vou ausentar-me nos próximos 15 dias -, não gostaria, porém, de deixar de registar algumas breves ideias sobre o assunto.

Parece-me haver consenso quanto ao carácter minimalista da revisão. Penso ser a via correcta, devendo remeter-se para a futura revisão ordinária as alterações que, sob o ponto de vista da política constituinte, se mostrem ser então aconselháveis.

Passemos a um breve comentário das alterações propostas.

Quanto ao artigo 7.°, julgo que o problema da "partilha de poder" no âmbito comunitário não devia ser remetido directamente para um número adicional ao artigo 7.° É que não se trata apenas de relações internacionais; trata-se de um momento constituinte sui generis, pelo que prefiro a solução do projecto do CDS, mas com a redacção económica do projecto do PSD.

Em relação ao artigo 15.°, prefiro o desdobramento proposto nos n.°s 1, 4 e 5 do projecto do PS. Uma coisa é a capacidade eleitoral activa e passiva para eleições locais e outra o direito de eleger e ser eleito Deputado no Parlamento Europeu. Embora se trate do alargamento de direitos políticos a estrangeiros residentes, o alcance político das normas é diferente.

No artigo 105.° nada há a objectar. Basta a supressão da expressão "exclusivo".

Relativamente ao artigo 118.°, como é público e notório, fui subscritor de uma proposta de referendo. A admitir-se esta hipótese, ela devia consagrar-se numa norma provisória que estabelecesse um regime excepcional em relação ao disposto no artigo 118.° Deixaria, porém, inalterado o artigo 118.°, não obstante algumas mudanças que se nos afiguram necessárias em futura revisão.

Quanto ao artigo 164.°, compreende-se o realce dado pelos projectos do PS e CDS à competência de fiscalização da Assembleia da República relativamente a propostas de actos comunitários. Todavia, quer num quer noutro projecto, o sentido normativo é bastante vago ("acompanhasse", "apreciasse" "pronunciasse"?).

Em relação à alínea m) do artigo 167.°, não compreendo bem o sentido deste artigo nos projectos do PS e CDS, pois inclinamo-nos para considerar a designação dos membros de órgãos institucionais como "reserva do Governo", a não ser que outra coisa resulte do direito comunitário.

Na alínea i) do artigo Í68.°, seria favorável a introdução de uma norma com o teor da constante do projecto do CDS.

No artigo 200.°, a fim de se evitar uma "automovimentação" do Governo em assuntos comunitários, tal como tem acontecido até agora, parece-me oportuna a sugestão dos projectos do PS e CDS.

Tendo em conta as actuais alíneas s), t) e u) do artigo 229.° e a Carta Europeia das Regiões, justifica-se a proposta do PS.

Relativamente ao artigo 284.°, compreende-se a salvaguarda do lapso das revisões ordinárias.

O Prof. Vieira de Andrade também nos enviou uma carta, que passo a ler:

Algumas reflexões sobre os projectos de revisão constitucional de 1992:

Quanto à extensão, a opção por um âmbito maior ou menor é uma opção política. Necessária será a revisão dos artigos 15.° e 105.° As outras alterações serão apenas convenientes -e são-no seguramente as que se referem à previsão dos poderes do Parlamento em matérias europeias -, embora alguns projectos pareçam exceder num ou noutro aspecto a oportunidade medida pela relação com o Tratado de Maastricht.

Parece-me claramente justificada a autonomização de um artigo relativo à Comunidade Europeia, não estando em causa apenas uma situação especial no contexto das relações internacionais.

A consagração do princípio da subsidiariedade, ainda que conveniente, não terá grande alcance

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garantístico, já que esta só poderá ser avaliada de um ponto de vista central e de modo uniforme, cabendo às instâncias comunitárias, designadamente ao Tribunal de Justiça, as decisões concretas sobre o efectivo conteúdo do princípio.

Decisiva é, no meu entender, a consideração de que o Tratado de Maastricht regula matéria constitucional, visto que, ao atribuir competências legislativas, políticas e administrativas a órgãos comunitários, está a intervir directamente na divisão de poderes públicos, que é mesmo uma das matérias constitucionais por excelência, associada à estrutura do Estado.

Por outras palavras, a ratificação do Tratado contém, em si, uma alteração jurídica da Constituição portuguesa.

Sob pena de se subverter o sistema de estabilidade (ou rigidez) constitucional, tal alteração só deveria ser possível se fosse aprovada, pelo menos, por uma maioria semelhante à exigida para a revisão constitucional (para além de se deverem salvaguardar, no plano processual, poderes efectivos do Parlamento na negociação e na conformação do conteúdo do Tratado).

Julgo, pois, que:

a) Tendo em vista alterações posteriores, se deveria consagrar uma nova categoria de tratados com valor reforçado ("tratados orgânicos"?), abrangendo os tratados que impliquem a atribuição de poderes de soberania a entidades ou autoridades supranacionais com regime próprio: por exemplo, um processo especial de negociação (com participação parlamentar) e uma aprovação por maioria de dois terços ou por referendo (pelo menos quando tal maioria de dois terços não fosse conseguida);

b) Quanto ao presente Tratado, no caso de não haver renegociação, se deveria exigir a aprovação por maioria de dois terços e o referendo, pelo menos se não se alcançasse esta maioria.

Tenho algumas dúvidas sobre a bondade, em abstracto, da consagração constitucional da diferença entre "revisões ordinárias" e "revisões extraordinárias": tendo em conta a estabilidade constitucional, todas as revisões são ordinárias e todas são extraordinárias. Penso que será preferível utilizar o meio das disposições transitórias se se quiser que esta revisão não conte para a determinação do prazo de cinco anos, embora não dê valor à necessidade da alteração em face da possibilidade de assunção de poderes constitucionais a qualquer momento por maioria de quatro quintos.

Srs. Deputados, vamos interromper agora os nossos trabalhos, enquanto aguardamos a chegada do Prof. Jorge Miranda.

Eram 17 horas e 40 minutos.

Srs. Deputados, está reaberta a reunião.

Eram 18 horas e 5 minutos.

Sr. Prof. Jorge Miranda, em nome da Comissão, quero começar por agradecer-lhe o facto de ter acedido ao nosso convite para estar aqui hoje, a fim de trocar algumas impressões sobre a revisão constitucional em curso!

Sugeria-lhe que nos fizesse uma exposição sumária daquilo que, em seu entender, são os aspectos mais relevantes a ter em consideração nos diferentes projectos de revisão constitucional que já foram apresentados, sem prejuízo de qualquer outra consideração que queira fazer. Depois disso, poderíamos fazer algumas observações ou ouvir a sua opinião sobre alguns pontos.

Tem, então, a palavra o Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda.

O Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Antes de mais, quero agradecer o convite para estar aqui presente, o que é para mim uma grande honra e prazer, sendo certo que já fui Deputado da Assembleia da República. É sempre com muita alegria que aqui regresso.

Também gostaria de dizer que considero extremamente útil esta iniciativa de abertura a personalidades extraparlamentares, universitários, técnicos, peritos em assuntos atinentes a matérias que a Assembleia está a discutir. Aliás, já por mais de uma vez dei a sugestão de que a Assembleia complemente os seus trabalhos e os seus estudos através de protocolos com instituições universitárias e, assim, venha a melhorar e a aperfeiçoar a sua legislação.

Já me tenho pronunciado sobre a presente revisão constitucional, quer através da imprensa e da televisão, quer através de conferências e de intervenções que tenho produzido. Por conseguinte, aquilo que vou dizer não é novidade nenhuma para os Srs. Deputados. Creio, de qualquer forma, que é muito honroso ter as minhas palavras registadas no Diário.

Porque é assim, irei muito resumidamente expor aquilo que penso.

Não vou referir-me ao Tratado de Maastricht e àquilo que ele representa. Não vou fazer essa análise, porque isso está para além da intervenção que vou fazer. No entanto, não posso deixar de tomar como ponto de referência, numa primeira parte da minha intervenção, as normas principais do Tratado na medida em que elas implicam com a nossa Constituição.

Desde logo, há um problema genérico extremamente delicado, porventura metajurídico - mas talvez não - e que é o de saber até que ponto o Tratado de Maastricht, interpretado de certa maneira (e digo isto porque para mim uma das suas grandes fraquezas é a de admitir várias interpretações), é compatível com a Constituição. Até que ponto é que a consagração das implicações decorrentes do Tratado de Maastricht vai ou não ser compatível com a subsistência da nossa Constituição? E o que digo a respeito de Portugal já tem sido dito, em outros países, a respeito das respectivas Constituições.

Ou seja: até que ponto existe compatibilidade entre uma Constituição material, assente numa ideia de soberania (ainda que a soberania do século XX não possa ser entendida como a dos séculos XVII, XVIII e XIX ou antes de 1950) e um Tratado que parece apontar para um federalismo europeu? E não poderá perguntar-se se, em vez da revisão da Constituição, não se estará antes a fazer um verdadeiro e próprio exercício de poder constituinte originário, ainda que sob a forma de revisão constitucional? Não estará, na realidade, em Portugal e em outros países, a fazer-se o exercício do poder constituinte originário? Será

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o Estado Português o mesmo depois da ratificação do Tratado de Maastricht, se for entendido nessa perspectiva federativa, como é até agora? Será a Constituição de qualquer Estado a mesma, mesmo que no plano meramente formal não haja alterações de vulto? Eis a grande pergunta que tem sido feita um pouco por toda a parte.

Ainda recentemente estive numa mesa-redonda internacional promovida pela Universidade de Aix - Marselha, em que este tema foi discutido e houve relatórios apresentados por professores de diversos países, nomeadamente da França e da Alemanha. Aliás, no caso português, há ainda uma dificuldade maior, derivada do artigo 288.° da Constituição, cuja alínea a) inclui, entre os limites materiais da revisão constitucional, a "independência nacional". E, mesmo que se entenda - como tenho entendido - que ele não traduz um conceito meramente jurídico-formal da soberania, o problema existe e não pode ser escamoteado.

Para além desse problema de carácter geral e que poderia tomar-se como prévio, há numerosos problemas de carácter específico, que tenho distinguido em problemas materiais e problemas orgânicos.

Vou considerar, o mais rapidamente possível, esses problemas materiais - que se suscitam em face dos "Princípios fundamentais" e das partes tendo nosso texto constitucional- e depois esses problemas orgânicos - decorrentes das partes III e IV da Constituição.

Uma primeira opção a fazer é esta. Deverá constitucionalizar-se a União Europeia (ou a Comunidade Europeia, visto que o Tratado de Maastricht emprega expressões não unívocas)? Deverá constitucionalizar-se a União Europeia, como se fez em França e se vai fazer na Alemanha? Deverá, na linha, de resto, do que a Assembleia da República fez, em 1989, com a constitucionalização do Parlamento Europeu, consagrar-se formalmente na Constituição a nossa participação na União Europeia ou na Comunidade Europeia? Deverá fazer-se essa constitucionalização? E como é que ela se deverá fazer: num artigo autónomo (que, eventualmente, seria o artigo 7.°-A, ou 8.°, ou ainda no artigo 7.°, respeitante às relações internacionais)?

Mesmo que não se considere que estamos diante de uma opção federativa, a enorme importância e a diferença qualitativa da União Europeia, tal como foi concebida em Maastricht, em confronto com outras organizações, justifica-se perguntar se não deverá fazer-se essa constitucionalização para daí se extraírem todas as consequências.

De todo o modo, parece-me que a norma do artigo 7.°, n.° 5 - aliás, introduzida também em 1989 -, é insatisfatória para o efeito, pois é demasiado genérica, não possui grande alcance prático e é repetitiva, em parte, relativamente a outras do mesmo artigo 7.° (perdoem-me a crítica os que participaram na revisão constitucional de 1989).

Há países, como sabem, cujas Constituições consagram expressamente cláusulas gerais de transferências ou de restrições de faculdades de soberania ou de competências, mas, como nós não temos isso, talvez fosse de aproveitar esta revisão constitucional para, com extremo cuidado, fazer algo nesse sentido.

Já, pelo contrário, quanto ao artigo 8.° (respeitante às relações entre a ordem interna portuguesa e a ordem internacional) me parece que a norma do n.° 3 é suficiente para atender às necessidades: ela tem sido entendida no sentido da recepção automática, da prevalência do direito internacional sobre o direito interno ordinário e, no tocante ao direito comunitário, do seu efeito directo, do direito comunitário. A única observação que, eventualmente, poderia fazer seria, na hipótese de se abrir um artigo sobre a União Europeia, para ele transplantar esse n.° 3. Na parte I da Constituição, de direitos e deveres fundamentais, o único preceito que requer uma pequena alteração, um pequeno aditamento, é o n.° 4 do artigo 15.° Toda a gente está de acordo, segundo tenho visto.

Em 1989, a segunda revisão constitucional veio admitir a possibilidade de atribuição de capacidade eleitoral para a eleição dos titulares de órgãos das autarquias locais a estrangeiros que não fossem cidadãos de países de língua portuguesa (estes já abrangidos pelo n.° 3). Fê-lo sem distinguir entre capacidade activa e passiva e sem circunscrever o seu âmbito aos países comunitários, mas, decerto, tendo-os em vista. No entanto, como se constitucionalizou o Parlamento Europeu (ou se lhe deu relevância constitucional), para que os cidadãos desses países possam votar ou ser eleitos para o Parlamento Europeu, na base do Tratado de Maastricht, é, ou será, necessário que se faça aí uma referência às eleições para o Parlamento Europeu.

Em alguns juristas estrangeiros tenho encontrado reticências relativamente ao n.° 3 do artigo 15.°. por causa da atribuição de direitos políticos a cidadãos de países de língua portuguesa. Eles perguntam assim: mas então os Brasileiros poderão votar para a eleição de Deputados portugueses ao Parlamento Europeu ou poderão mesmo ser, eventualmente, candidatos a Deputados por Portugal ao Parlamento Europeu? E a resposta só pode ser uma: a Constituição permite-o e o Tratado de Maastricht não o pode impedir. De resto, os cidadãos brasileiros com estatuto de igualdade de direitos políticos já votaram nas eleições para o Parlamento Europeu que se realizaram até agora. Este, para mim, é um ponto fundamental, um interesse fundamental do nosso país: manter relações pessoais especiais com os países de língua portuguesa.

Ainda na parte i há um artigo, o artigo 33.° (respeitante à extradição, à expulsão e ao direito de asilo), sobre o qual já se tem dito que poderia levantar dificuldades. Mas não me parece. O que o Tratado prevê são determinadas competências, através de determinadas formas, dos órgãos comunitários, sem pôr em causa o conteúdo essencial dos direitos consignados nesse artigo. Nem se poderia aceitar que o pusesse em causa.

Na parte n da Constituição, toda a gente está de acordo em que é necessário alterar o artigo 105.°, respeitante ao Banco de Portugal. Talvez até pudesse ser suprimido pura e simplesmente, porquanto não vejo grande necessidade em existir na Constituição um artigo relativo a esta matéria ou, não se querendo fazê-lo, não será difícil achar uma fórmula que permita a conjugação do nosso Banco com o futuro instituto monetário europeu.

Ainda na parte n, o n.° 2 do artigo 108.° (sobre elaboração do Orçamento) deveria ser completado com uma referência a tratado internacional ou a normas de direito internacional. Assim se ressalvariam, desde logo, as obrigações resultantes do Tratado de Maastricht.

Passo agora às normas orgânicas. Aqui, na parte m, os problemas têm a ver, por um lado, com as competências da Assembleia da República nas suas relações com o Governo e, por outro, com os poderes das Regiões Autónomas. O que até este momento se tem verificado é que a participação de Portugal nas Comunidades se faz, como, de resto, acontece em qualquer organização internacional, essencialmente, através do Governo, por via directa ou indirecta. Existe uma lei respeitante à participação, ou ao

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acompanhamento da Assembleia da República na vida das Comunidades, mas é uma lei ordinária e, na minha opinião pessoal, bastante platónica. Ao mesmo tempo, a nível comunitário, os verdadeiros órgãos legislativos (se podemos empregar a expressão "órgãos legislativos") são órgãos que estão directa ou indirectamente dependentes do Governo ou formados na base de designações governamentais; e isso tanto no que toca a Portugal como aos outros Estados.

O Parlamento Europeu tem um papel de pouco ou nenhum relevo no domínio normativo. Claro está, este papel poderá ser alargado, mas, numa perspectiva nacional, talvez não convenha reforçar muito o papel do Parlamento Europeu, na medida em que nele nós temos um peso muito pequeno - 24 Deputados portugueses em quinhentos e tal - e, com a entrada próxima de novos Estados nas Comunidades, o nosso peso será cada vez menor.

Assim, o que importará será reforçar os poderes dos Parlamentos nacionais na base do princípio da separação de poderes e, mais do que reforçar, fazer que eles recuperem aquilo que têm perdido ao longo dos anos. Aquilo que se tem verificado é que as matérias de reserva de competência da Assembleia da República, quando postas a nível comunitário, são objecto de decisão pelo Governo ou por pessoas designadas por ele; e esta actuação traduz-se num desapossamento da Assembleia da República, numa diminuição efectiva das suas faculdades, que será cada vez maior à medida que for aumentando a área de intervenção dos órgãos comunitários, dos órgãos da União.

Ocupando-se hoje o Tratado de Maastricht de praticamente todas as matérias - pois não há nenhuma matéria politicamente relevante que fique fora do Tratado, desde a economia até à protecção do consumidor, à cultura, à investigação científica, ao ambiente -, corre-se o risco de os Parlamentos nacionais ficarem reduzidos a pouco mais que assembleias regionais ou locais e de não terem uma verdadeira intervenção no exercício da função legislativa. Para atalhar este risco, ensaiaram-se, recentemente, por exemplo, na França e na Alemanha, soluções a nível de revisão constitucional.

No caso da França, a Lei Constitucional n.° 92/554, de 25 de Junho, estabelece, no novo título sobre as Comunidades Europeias e a União Europeia, o seguinte preceito:

O Governo submete à Assembleia Nacional e ao Senado, a partir da sua transmissão ao Conselho das Comunidades, as propostas de actos comunitários que comportem disposições de natureza legislativa. Durante as sessões ou fora delas podem ser votadas resoluções no âmbito do presente artigo segundo as modalidades a determinar pelo regimento de cada Assembleia.

Portanto, prevê-se expressamente na Constituição francesa uma fórmula de comunicação entre o Governo e as duas Câmaras do Parlamento, com vista, pelo menos, à informação a respeito dos actos comunitários. Estas resoluções, segundo a doutrina - e ainda ontem estive a ler um artigo/revue do eminente constitucionalista François Lu Chaire na Revue du droit public -, não terão eventualmente força jurídica vinculativa, mas terão, por certo, um grande significado político.

No caso da Alemanha, onde a revisão constitucional ainda (tanto quanto sei) não está concluída, prevê-se, em conjugação com o problema da participação dos Lander dos Estados federados, nas decisões comunitárias, uma intervenção tanto do Bundestag como do Bundesrat relativamente aos assuntos da União Europeia. Vai passar a dizer-se, no novo artigo 23.°, n.° 2, que o Bundestag e os Lander através do Bundesrat concorrem e participam nos assuntos da União Europeia. E a seguir desenvolve-se a intervenção do Bundesrat: o Bundesrat deve participar na formação da vontade da Federação, quando haja medidas que interessem aos Lander ou de que os Lander sejam competentes na ordem interna. Se bem que sejam fórmulas atinentes à estrutura federal do Estado Alemão, elas mostram também a preocupação em prever uma participação do Parlamento nas decisões comunitárias.

Parece-me, pois, que este é um ponto de grande importância na revisão constitucional. Não se tratará tanto de aumentar os poderes da Assembleia da República quanto de o Parlamento recuperar aqueles poderes de que na prática tem sido afastado, permitam-me insistir. Tendo em conta a importância da União Europeia, tendo em conta que cada vez mais se situarão a nível europeu grandes medidas e grandes decisões que afectam a vida de todos nós, se não for adoptada uma solução nesta linha, tudo conduzirá a um sensível enfraquecimento da posição constitucional e política da Assembleia da República.

Com isto não se põe em causa o equilíbrio entre os órgãos de soberania. Pelo contrário, restabelece-se um equilíbrio que, tendo sido pensado em 1976, ou em 1982 ou em 1989 num determinado contexto, foi alterado em face das vicissitudes já ocorridas e das que vão ocorrer nos próximos tempos em consequência da ratificação do Tratado de Maastricht ou, como quer que seja, do desenvolvimento da integração europeia.

O mesmo se diga relativamente às Regiões Autónomas. As Regiões Autónomas têm, por força do artigo 229.°, um direito de participação nas negociações de tratados que as afectem especificamente. Logo, também deveria ser consagrado na Constituição um direito de participação na formação de actos comunitários em condições idênticas. Aliás, na prática, suponho que já isso se tem verificado ao abrigo da cláusula geral do artigo 231.° (e só assim se compreende que até agora os governos regionais, sempre tão zelosos na defesa da autonomia, não tenham vindo reivindicar modificações constitucionais neste domínio).

Estas são as considerações que se me oferece fazer no que diz respeito à organização do poder político. Restaria perguntar se no tocante à fiscalização da constitucionalidade - título I da parte IV da Constituição - não deveria haver alterações, para ir ao encontro do problema das relações entre direito comunitário e direito interno e, nomeadamente, entre direito comunitário e direito constitucional. A doutrina entende, à face dos princípios constitucionais (ou da Constituição como Constituição de um Estado soberano), que o direito comunitário prevalece sobre o direito ordinário, mas não prima sobre o direito constitucional. Portanto, pode haver problemas de inconstitucionalidade de normas comunitárias.

Contudo, esses problemas, a porem-se, poderão levantar muitas dificuldades e graves melindres. Como é sabido, a jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades tem-se pronunciado sempre no sentido da prevalência do direito comunitário, mesmo do direito comunitário derivado, sobre o direito constitucional. Penso que não devemos aceitar essa tese - perigosa e exorbitante -, mas também aceitar a possibilidade de tribunais portugueses, designadamente o Tribunal Constitucional, virem a declarar a inconstitucionalidade de normas comunitárias, o que poderia ter consequências inconve-

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nientes. Não sei se a melhor solução aqui será não fazer nada, não tocar na Constituição e admitir que se venha formar um costume constitucional no sentido de os órgãos de fiscalização da constitucionalidade não intervirem nessa matéria. Ou então, eventualmente, adoptar uma fórmula semelhante à que aparece no artigo 277.°, n.° 2, relativa à inconstitucionalidade orgânica e formal de tratados - uma fórmula que reconduza a inconstitucionalidade a mera irregularidade.

Eis, Sr. Presidente e Srs. Deputados, o que, em termos gerais, diria a respeito da questão da revisão constitucional em curso. Deliberadamente, não me pronunciei sobre os seis projectos apresentados, mas estou pronto a responder às perguntas que sobre eles ou sobre outras matérias me queiram formular. Estou agora à disposição de VV. Exas.

O Sr. Presidente: - Muito obrigado, Sr. Prof. Jorge Miranda. Acho que foi muito útil esta exposição introdutória, que correspondeu a posições que já explanara, mas que foram agora objecto de uma síntese, o que facilita muito o nosso trabalho.

Inscreveu-se, para formular algumas, questões o Sr. Deputado Luís Pais de Sousa, a quem concedo a palavra.

O Sr. Luís Pais de Sousa (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Cumpre-me agradecer, em nome do Grupo Parlamentar do PSD, a presença e a exposição, aliás, notável, do Sr. Prof. Jorge Miranda nesta Comissão.

Apresentou o Sr. Professor várias soluções, mas continua a parecer-nos que não defende uma revisão minimalista, ou seja, do nosso ponto de vista, uma revisão que passasse por alterações de dois, três artigos, e por isso pergunto-lhe o que entende por revisão constitucional extraordinária.

Já agora, desejava também saber o que pensa acerca de outra questão - se entender que deve pronunciar-se sobre ela, uma vez que poderá, eventualmente, co-envolver um juízo substantivo ou político -, a qual formulo da seguinte forma: referendo, quid júris? De facto, como não ventilou essa problemática, seria interessante ouvi-lo pronunciar-se sobre ela.

O Sr. Presidente: - Para responder, tem a palavra o Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda.

O Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda: - Sr. Deputado, em relação à primeira pergunta, tenho a dizer-lhe que não existe esse conceito de revisão constitucional extraordinária.

Um dos projectos de revisão constitucional, aquele que foi apresentado pelos Deputados do Partido Socialista, introduz esse conceito, distinguindo entre revisões constitucionais ordinárias e extraordinárias. A meu ver, mal.

Segundo a Constituição, qualquer revisão constitucional realiza-se ao fim de cinco anos sobre a última revisão. Todavia, a todo o tempo, pode a Assembleia da República assumir poderes de revisão por uma maioria qualificada de quatro quintos dos Deputados em efectividade de funções. Assumidos esses poderes, a revisão constitucional não tem um regime diferente do de qualquer outra revisão, podendo ter toda a amplitude possível, o que dependerá da vontade dos Deputados que apresentem projectos de revisão constitucional.

Em 1982 e em 1989 compreende-se que tenham sido feitas revisões extremamente vastas. Foi, primeiro, a extinção do Conselho da Revolução e a consequente reformulação de todo o sistema de órgãos de soberania. Foi depois, sobretudo, a Constituição económica a ser alterada, tendo em conta as transformações da realidade constitucional.

É de supor que, doravante, as revisões constitucionais, como acontece na maior parte dos países e como aconteceu em Portugal ao longo das Constituições anteriores, sejam relativamente delimitadas no seu objecto, que se circunscrevam a três, quatro ou cinco artigos. Mas isso depende dos Deputados à Assembleia da República. Ou seja, o âmbito de cada revisão é definido pelos Deputados.

Em suma: nem pelo processo, nem pelo objecto, não existe - nem vejo necessidade de que exista - um conceito de revisão constitucional extraordinária.

Quanto à questão do referendo, não lhe fiz qualquer alusão, porque tudo parece indicar que está prejudicada em face das posições dos dois principais partidos aqui representados. Todavia, na altura própria, pronunciei-me a favor n que implicaria uma alteração prévia da Constituição, embora não criasse dificuldades insuperáveis.

Aproveito a pergunta para esclarecer a minha posição, para evitar quaisquer dúvidas ou equívocos. É sabido que, em 1980, me opus à realização de um referendo para a primeira revisão constitucional, mas não há incoerência, porque as situações nesse ano e hoje são completamente diferentes. Em 1980, a Constituição não previa o referendo, e, portanto, qualquer referendo que se fizesse para a primeira revisão da Constituição seria uma ruptura, e não uma revisão; por outro lado, o sistema político português ainda não estava consolidado e é sabido que os institutos da democracia directa ou semidirecta só devem ser postos em prática quando a democracia representativa estiver consagrada.

Nada disso se verifica agora. A Constituição, desde 1989, prevê o referendo a nível nacional e a democracia está, felizmente, consolidada. Além disso, nunca defendi um referendo sobre Maastricht ou para uma revisão constitucional sobre Maastricht sem modificação constitucional. Para haver o referendo que defendi teria, primeiramente, de haver revisão constitucional; e nisto está também uma diferença relativamente àqueles que em 1980 defenderam o referendo, à margem da revisão constitucional.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Costa.

O Sr. Alberto Costa (PS): - Sr. Presidente, Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda: Quero saudar a sua presença na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, bem como a sua valiosa contribuição e ainda a concepção que aqui apresentou acerca da fecundidade do encontro entre o saber científico e trabalhos desta natureza, que é, aliás, a concepção que preconizámos aqui e que esteve na base da proposta que deu origem a este conjunto de audições. Apraz-me muito saudar esta convergência de pontos de vista.

Queria começar por dizer que grande parte das preocupações que apresentou coincidem com as que estão por detrás das soluções que o Partido Socialista propõe no seu projecto. Em particular, vou concentrar-me sobre dois ou três pontos para formular depois algumas questões.

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O primeiro ponto tem a ver com o chamado reforço dos poderes da Assembleia nesta matéria, se bem que pareça ser mais correcta a expressão que V. Exa. também empregou, ao dizer que se trata, no fundo, de reequilibrar algo que ficará mais desequilibrado se a entrada em vigor do Tratado não for acompanhada de disposições que compensem a Assembleia da República dos efeitos desse fenómeno de desapossamento que o Sr. Professor aqui referiu.

Quanto a esta questão, que, por um lado, se baseia na evolução do sistema político português e, por outro, nas experiências de direito comparado que referiu, infelizmente não pôde alcançar-se ainda a necessária convergência, nomeadamente em relação à oportunidade da sua incorporação nesta altura no ordenamento constitucional português.

As perguntas que quero colocar-lhe têm a ver, nomeadamente, com os argumentos de oportunidade que podem ser mobilizados no sentido de contrariar tal incorporação, nesta revisão, no nosso ordenamento constitucional.

Em primeiro lugar, considera o Sr. Professor que o efeito compensador do processo de desapossamento da Assembleia, certamente muito estimulado e agravado pelo novo ordenamento decorrente do Tratado de Maastricht, poderá ser alcançado satisfatoriamente com uma simples melhor utilização da legislação ordinária existente nesta matéria, a Lei n.° 111/88?

O segundo argumento sobre o qual gostava de ouvir a opinião de V. Exa. tem a ver com o facto de poder dizer-se que há algo de exorbitante numa revisão europeia da Constituição, que visa ajustar o ordenamento constitucional português à actualidade da construção europeia, ao enxertar-se algo que tem a ver com as relações entre órgãos de soberania e, portanto, com a introdução de inovações num domínio, à primeira vista, não abrangido por esse ajustamento do ordenamento constitucional português ao Tratado de Maastricht.

Sr. Professor, consideraria equilibrado que, neste ajustamento que a actualidade da construção europeia ora nos pede, nos ficássemos por uma simples remoção de obstáculos e por uma autorização de transferência de competências, sem nada de novo a compensar este efeito?

Nomeadamente, pedir-lhe-ia que classificasse os efeitos previsíveis sobre o sistema constitucional português de uma operação que se saldasse apenas por essas remoções e pela autorização de transferências ou de exercício em comum de competências.

A outra pergunta que desejo colocar a V. Exa. tem a ver com uma matéria que não referiu, que é a da inclusão do princípio da subsidiariedade no texto constitucional, presente num certo número de projectos apresentados. Gostava de ouvir o comentário de V. Exa. acerca das implicações e do alcance que terá a incorporação no direito constitucional português, pela primeira vez ao que julgo, deste conceito e que aspectos é que V. Ex.a entende que deveriam ser especialmente tidos em conta na ponderação desta inovação no plano da decisão constitucional.

Por último, quero dizer ao Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda que os argumentos que aqui apresentou no sentido de concluir que o artigo 33.° da Constituição não mereceria qualquer alteração são inteiramente coincidentes com aqueles - como aliás já tive a ocasião de expressar noutra altura - que levaram o Partido Socialista a não propor qualquer espécie de modificação em tal sede.

O Sr. Presidente: - Para responder, tem a palavra o Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda.

O Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda: - Em relação às três primeiras perguntas que o Sr. Deputado formulou, julgo que da minha exposição já se depreenderá a posição que adopto, ou seja, a resposta que lhes posso dar.

A meu ver, não se trata de um aumento de poderes - volto a dizer - da Assembleia da República, mas de um reequilíbrio. Não se tratará de bulir com o sistema de órgãos de soberania tal como se encontra desenhado na Constituição, mas de - tendo em conta a nova realidade existente desde 1986 e os desenvolvimentos previsíveis dos próximos anos, sobretudo com Maastricht - proceder a um reequilíbrio, sem esquecer os desenvolvimentos que vão fluir do Tratado de Maastricht e daquilo que se prevê que venha a ser a União Europeia.

Insisto: não está em causa aumentar os poderes de um órgão em detrimento dos de outro, mas em reequilibrá-los ou em proceder, como na França e na Alemanha, à adaptação a uma nova realidade. O Governo não é minimamente posto em causa nas suas competências, mas, se se quisesse ultrapassar qualquer dúvida, poderia, no artigo 200.° da Constituição, estabelecer-se uma norma ou alínea relativa à competência exclusiva do Governo de definição da orientação política de Portugal nos órgãos da União Europeia ou de organizações internacionais.

Neste momento, a matéria consta da Lei n.° 111/88. Mas, além de insuficiente, é uma lei ordinária e a matéria tem dignidade constitucional. Ora, desde que se vai fazer uma revisão constitucional a consagrar expressamente a integração europeia, desde que temos já na Constituição a referência ao Parlamento Europeu, não vejo como é que a Constituição, a respeito das competências da Assembleia da República, pode continuar omissa e lacunosa, deve silenciar ou fazer de conta que tudo se passa como se fosse a Assembleia da República de 1976.

A segunda pergunta tem uma resposta imediatamente nessa linha. Com efeito, não vejo como, hoje, em Portugal, ou em qualquer país integrado nas Comunidades, as relações entre órgãos de soberania possam ser pensadas à margem das Comunidades Europeias, porque se sabe que as Comunidades - seja qual for o qualificativo que lhe dermos, seja qual for o progresso que venha a haver - têm uma importância determinante em toda a vida política, económica e social, quer queiramos quer não.

Quanto ao princípio da subsidiariedade, ele consta do Tratado de Maastricht, mas ninguém ainda sabe muito bem o que é que significa. Por mim, tenho muitas dúvidas e alguns temores.

O princípio da subsidiariedade foi formulado pela doutrina social da Igreja no sentido de uma limitação do poder do Estado, mas partindo da ideia de que o poder determinante é o poder do Estado. O Estado é que é a entidade central, a entidade dotada de poder e que, em princípio, pode fazer tudo menos aquilo que possa ser feito melhor ou mais proximamente pelas sociedades ditas menores: as famílias, as autarquias locais, as associações, etc.

Transpondo para a perspectiva europeia, poderá, então, dizer-se que já se está a assumir a ideia de que a Comunidade está a nível do Estado, que é equivalente ao Estado, e os Estados são postos no mesmo pé das autarquias locais, das famílias, de sindicatos ou de universidades, etc. Por isso, receio que o princípio da subsidiariedade possa ser entendido neste sentido. È receio tanto mais quanto é certo que, amanhã, ele será interpretado pelos órgãos

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jurísdicionais comunitários, os quais têm tendência para uma interpretação expansiva das atribuições e competências comunitárias.

Um Estado que ainda se afirma soberano no artigo 1.° da Constituição vai admitir que uma entidade supra-estadual, exterior ou superior a ele, possa fazer tudo menos aquilo que esse Estado possa fazer melhor. No fundo, é isto. Ora, há uma certa contradição entre manter-se no artigo 1.° a declaração de que Portugal é uma República soberana e, no artigo 7.°, vir dizer-se que há transferência ou exercício em comum de competências, salvaguardado o princípio da subsidiariedade.

Estou, portanto, a expor dúvidas, pois não tenho certezas a este propósito. Haverá, provavelmente, quem as tenha, mas estas observações parecem-me pertinentes.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado José Magalhães, tem a palavra.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, Sr. Professor Dr. Jorge Miranda: Permita-me que lhe exprima também o prazer que tive em ouvir a sua exposição sistematizada. Nela enunciou o mapa das questões que, de facto, temos estado a discutir e que a Assembleia da República tem diante de si para apreciar e deliberar.

Permita-me só pedir-lhe um aprofundamento, aprofundamento que o vai conduzir, inevitavelmente, a uma análise de articulados ou, pelo menos, de ideias que têm estado aqui a ser discutidas.

A primeira questão relaciona-se com a famosa cláusula de habilitação. É ponto comum que é impossível que o Tratado de Maastricht seja aprovado para ratificação se não for criada, no quadro constitucional, uma cláusula de habilitação. Porém, os limites, o sentido ou a definição rigorosa dessa cláusula é um ponto em aberto. Não é uma questão simples ou fácil.

Pareceu-me que, de facto, nesta matéria, o Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda entendia que a cláusula que a revisão constitucional de 1989 introduziu, com os limites que tem, deveria ser mantida na sua redacção originária e que haveria que construir, em aditamento, uma outra cláusula. No entanto, mesmo que se adopte essa solução, nem tudo fica resolvido, pelo que gostava de lhe colocar duas questões.

Por um lado, é adepto do conceito de "exercício em comum de competências" ou prefere a expressão - que o PSD, aliás, adianta - de "compartilhar o exercício de poderes"?

Mas, por outro lado e sobretudo, o debate da revisão constitucional francesa e o debate agora na Alemanha vêm chamar a atenção para o duplo sentido de uma cláusula deste género. Uma cláusula destas habilita, mas não habilita infinita ou indefinidamente. Ao mesmo tempo que se proclama que Portugal pode compartilhar o exercício de poderes, suponho que a norma não pode ser interpretada - pelo menos eu não interpreto, mas tenho, de facto, uma genuína curiosidade científica em conhecer a opinião do Sr. Professor Jorge Miranda - como permitindo toda a espécie de vinculações. Antes se preserva, em certa medida, a soberania. Há limites infrangíveis de soberania, mesmo com uma cláusula habilitante deste tipo. Gostava que o Sr. Professor pudesse abordar este aspecto.

Em segundo lugar, quanto à Assembleia de República, não posso estar mais de acordo com as observações que fez sobre o enquadramento geral da questão. A dificuldade é também encontrar aqui uma fórmula.

Durante um colóquio que o Sr. Professor teve a ocasião de promover na Aula Magna da nossa Universidade, este ano, houve o cuidado de procurar adiantar o que deveria ser uma boa cláusula. Lembro-me de que fiquei impressionado com o delimitar dessa "boa cláusula". À data, estavam apresentados vários projectos de revisão constitucional e, face a essa bitola, traçada com escrúpulo científico, os projectos eram todos péssimos. A cláusula adiantada durante esse colóquio era extremamente exigente: pressupunha cumulativamente uma norma de carácter programático, um elenco de competências em que a Assembleia da República tivesse de ter uma intervenção ponto a ponto desenhada, preconizava um contraponto em deveres do Governo, etc.

Nada disso foi proposto à Assembleia da República, mas a Assembleia, neste momento, face aos projectos, pode burilar uma boa cláusula. Posto isto, gostava de lhe fazer uma pergunta relativamente ingrata mas franca, que é a seguinte: que juízo é que faz sobre as propostas pendentes? Não vou ao ponto de lhe perguntar como é que redigiria a cláusula, embora, como é óbvio, a pergunta me esteja nos lábios.

Risos.

Gostava sobretudo, de saber se concentrava a cláusula ou se a repartia pelas competências do Governo e da Assembleia. Em terceiro lugar, considera interessante, positiva ou, pelo contrário, acha de desprezar a ideia de que a Assembleia da Repúlica deva fazer uma legislação de enquadramento das designações de membros de órgãos institucionais. Deve isso ser considerado uma reserva do Governo decorrente do actual quadro constitucional e a respeitar no futuro?

Permita-me, por último, que observe que achei e registei como dignas de toda a ponderação as observações que fez sobre o princípio da subsidiariedade. Creio que estamos todos a acompanhar com interesse o debate na Alemanha e, evidentemente, o debate das Comunidades. O debate na Alemanha é particularmente interessante devido à experiência da doutrina alemã em relação ao princípio da subsidiariedade na aplicação da organização interna do Estado Federal e, por outro lado, porque, precisamente, aí é possível reivindicar outras inspirações que não a da doutrina social da Igreja para tomar o conceito de subsidiariedade num conceito aberto quanto às origens, partilhado por várias famílias políticas, não identificado e neutro neste sentido e, portanto, porventura, operativo.

Mas, gostava de perguntar se, de facto, entende que o princípio da subsidiariedade tem mesmo, na leitura interna que façamos dela na sede de revisão constitucional, de ser interpretado como significando que a União pode fazer tudo, excepto aquilo que os Estados e autarquias locais - colocadas ao mesmo nível - possam fazer melhor. É que, parece-me que é possível uma outra leitura, em que o princípio funcione como um tradutor universal por fora do qual Comunidade, Estados e autarquias locais possam fazer aquilo que lhes cabe melhor, sendo certo que nem todos os dias esta repartição será a mesma que foi no passado. De facto, pode ser dinâmica: em certo momento, a Comunidade até pode ter poderes que perca no futuro. Penso que esta visão dinâmica é, talvez, possível e segura.

Registei, e para terminar, as considerações que fez sobre a fiscalização da constitucionalidade, que não tinham sido introduzidas durante o debate de revisão constitucio-

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nal por ninguém e que me parecem extremamente interessantes, designadamente quanto à sugestão, a ponderar num próximo momento de reflexão constitucional.

O Sr. Presidente: - Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda, tem a palavra.

O Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda: - O Sr. Deputado José Magalhães fez uma série de perguntas todas ligadas e algumas complexas.

Começarei pelo ponto mais fácil. Não defendo a conservação do n.° 5 do artigo 7.° introduzido na revisão constitucional de 1989. Nunca gostei deste n.° 5. Sei o que é a identidade portuguesa, mas não sei o que é a identidade europeia, e julgo que até é perigoso falar em identidade europeia aqui na Constituição, pois pode ser a porta aberta para coisas mais graves. Pelo contrário, devemos é reafirmar, mesmo que porventura até se chegue ao federalismo, a identidade nacional portuguesa.

Depois, também as referências feitas neste número a "paz" ou a "progresso" já constam de números anteriores. Aliás, é pena que não aproveite a presente revisão constitucional para depurar o artigo 7.°, que bem podia ficar muito mais enxuto, eliminando coisas que até já não fazem sentido depois da queda do muro de Berlim; bem podia ficar reduzido a uma ou duas normas.

Portanto, penso que não se justifica de modo algum o n.° 5 do artigo 7.° da Constituição e será até, de certa maneira, redundante, uma vez que haverá, agora, um novo número ou artigo sobre a União Europeia. Julgo, pois, que aqui se deveria fazer a supressão desse n.° 5.

Mais difícil é o problema da cláusula geral de habilitação. Existem cláusulas desse género na maior parte das Constituições dos países comunitários (ou normas que têm sido interpretadas como tal) e penso que nós também a deveríamos ter. As fórmulas, porém, variam bastante, umas mais favoráveis do que outras ao desenvolvimento da integração.

Eu próprio, em 1975 e em 1980, avancei com certas propostas, e o mesmo fizeram o CDS no seu projecto de Constituição e o Dr. Francisco Sá Carneiro no seu projecto de revisão constitucional de 1979. Mas reconheço hoje que nenhuma destas fórmulas era satisfatória.

Relativamente às cláusulas que aparecem agora nos projectos de revisão, talvez prefira a que consta do projecto do PSD, tirando a referência a subsidiariedade... "Compartilhar o exercício dos poderes necessários à construção da unidade europeia." Acho prudente que se diga "compartilhar o exercício de poderes", que se fale em exercício, e não em titularidade.

No projecto do Partido Socialista também se fala em exercício, embora "exercício de competências", o que é menos correcto, porque as competências são de órgãos, não de entidades ou pessoas colectivas. Passando agora aos limites, gostaria de citar o que se estabeleceu ou vai estabelecer na França e na Alemanha.

No novo texto da Constituição francesa diz-se:

A República participa nas Comunidades Europeias e na União Europeia constituídas por Estados que escolheram livremente nos tratados que constituíram exercer em comum algumas das suas competências.

E depois:

Sob reserva de reciprocidade e segundo as modalidades previstas no Tratado sobre a União Europeia, assinado em 7 de Fevereiro de 1992, a França consente nas transferências das competências necessárias ao estabelecimento da união económica e monetária europeia, assim como à determinação das regras relativas à circulação através das fronteiras exteriores dos Estados membros das Comunidades Europeias.

Como se vê, fala-se em transferência de competências, porque é mais do que do exercício que se trata. Ao mesmo tempo, faz-se uma restrição em função das matérias consignadas no Tratado: as respeitantes à união económica e monetária e às fronteiras. Noutras áreas parece que não poderá haver transferência de competências ou exercício em comum de competências sem nova revisão constitucional.

No texto alemão diz-se o seguinte:

A fim de realizar uma Europa unida, a República Federal da Alemanha contribui para o desenvolvimento da União Europeia dentro do respeito dos princípios do Estado de direito democrático, social e federal, assim como do princípio da subsidiariedade e da garantia de uma protecção dos direitos fundamentais substancialmente comparável à da presente Lei Fundamental.

Aqui os limites têm a ver com certa ordem de valores.

O princípio da reciprocidade traduz igualmente uma ideia de limitação de poderes comunitários c cie aparece nos projectos apresentados pelo Partido Social-Democrata, pelo Partido Socialista e pelo Centro Democrático Social. Também me agradaria uma referência à igualdade entre os diversos Estados parecida com a que vem na Constituição italiana. Será possível?

Em qualquer caso, entendo que certas zonas não poderão ser, em caso algum, atingidas pelo processo de integração. E vou mais além: seguindo uma sugestão lançada no colóquio da Associação Portuguesa de direito Constitucional pela Dr. Maria Luísa Duarte (que é uma especialista destas questões), seria ainda de desejar a consagração de uma regra de maioria de dois terços. Seria a seguinte essa regra: sempre que se estabelecesse num tratado uma qualquer transferência de poderes ou um qualquer exercício em comum de poderes, esse tratado teria de ser aprovado por uma maioria de dois terços. A Constituição exige já para certas leis a aprovação por maioria de dois terços. Ora, tendo em conta a particularíssima relevância destas matérias, o Tratado deveria também ser aprovado por maioria de dois terços.

O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - Sempre que haja transferência?

O Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda: - Sim. Sempre que se concretizasse uma cláusula de transferência ou do exercício em comum de competência, teria de se ter a aprovação por maioria de dois terços. E isso valeria já para o Tratado de Maastricht.

Quanto à fórmula destinada a consagrar os poderes de intervenção do Parlamento, devo dizer que não tive tempo para a redigir com rigor. Num artigo publicado há meses no Diário de Notícias preconizava que se falasse na competência da Assembleia para se pronunciar "sobre projectos de actos normativos de organizações internacionais de que Portugal faça parte [...]", ou "de projectos de

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actos normativos da União Europeia, das Comunidades Europeias [...]" Portanto, no mínimo, pronunciar-se. Não seria a Assembleia a aprovar, mas, pelo menos, a pronunciar-se; se o resultado dessa votação eventualmente fosse negativo, então o Governo não poderia dar a sua concordância ao acto nas instâncias comunitárias; em se aqui se exigisse a unanimidade, o acto comunitário não poderia concluir-se. Haveria uma espécie de direito de veto do Parlamento.

Quanto ao regime de designação dos titulares de órgãos comunitários, já não me repugna que essa matéria seja deixada ao Governo. Pelo menos, que não se inscreva na reserva de competência parlamentar. Poderia ser regime concorrencial. Muito mais importante é a questão dos actos normativos comunitários.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, queria também acompanhar a congratulação dos meus colegas relativamente a esta oportunidade que o Sr. Prof. Jorge de Miranda nos dá de com ele podermos dialogar construtivamente para o apuramento da vontade da Assembleia da República numa matéria tão importante como é a da consagração do ordenamento constitucional.

Depois, beneficiando já do diálogo que houve até ao momento, queria debruçar-me apenas num caso muito específico e a que V. Exa. acabou de aludir. Trata-se da oportunidade ou da pertinência da consagração de uma disposição específica em matéria de reserva da competência absoluta por parte da Assembleia quanto ao modo de designação de titulares de órgãos comunitários, cujo processo não estivesse estabelecido no direito dos tratados.

O Sr. Professor acabou de referir que, porventura, tal cláusula não seria de concretizar no ordenamento constitucional. Resta-me depois uma dúvida sobre isso e que é a seguinte: sendo já da competência exclusiva da Assembleia o regime relativo ao estatuto dos titulares, particularmente das autarquias locais - é nessa perspectiva que a questão se coloca -, a não consagração de uma clausula específica não deixaria à mesma de permitir a conclusão, que sempre essa competência seria da Assembleia quanto à definição do regime de designação de representantes das colectividades regionais e locais para o futuro Comité Europeu das Regiões? Colocando a questão de outra maneira: do ponto de vista do Prof. Jorge Miranda, admite que pudesse ser o Governo a definir, ao abrigo de uma competência concorrencial, esse regime?

O Sr. Presidente: - Para responder, tem a palavra o Prof. Doutor Jorge Miranda.

O Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda: - A Constituição fala em estatuto e isto não é uma Questão de estatuto, é um regime de designação. Não sei ... Ninguém mais do que eu defende um alargamento dos poderes da Assembleia - sempre o tenho feito. Mas aqui a Constituição fala, no artigo 167.°, alínea l), em "estatuto dos titulares dos órgãos de soberania e do poder local [...]". Já hoje, tanto quanto sei, existe, a nível do Conselho da Europa, um Comité dos Poderes Locais e Regionais. Não sei muito bem como é que se faz a designação dos representantes do nosso país nesse Comité, ...

O Sr. Jorge Lacão (PS): - É através da Associação Nacional de Municípios Portugueses.

O Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda: - ... mas não há uma lei da Assembleia. Portanto, não vejo que esta questão seja de grande importância. E, admitindo que se entenda que tem de haver aí uma intervenção das regiões, mesmo assim, não vejo que a contrario se pudesse dizer que não poderia ser da Assembleia. Portanto, deixaria esta questão em aberto. Desculpe-me, porque estou a pensar um pouco em voz alta e esta não é uma posição definitiva, mas não me parece que seja essencial.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, apesar de limitado, ainda dispomos de algum tempo.

Tem a palavra o Sr. Deputado António Filipe.

O Sr. António Filipe (PCP): - Em primeiro lugar, gostaria de dizer que me é particularmente grato ouvir o Sr. Prof. Jorge Miranda nesta matéria, porque ele foi meu professor de Direito Constitucional, precisamente há 10 anos.

Sr. Professor, a questão que quero colocar-lhe é obviamente acerca do referendo, mas não vou pedir-ihe que faça um juízo político sobre o referendo. Quero, sim, colocar-lhe a seguinte questão: o Sr. Professor considerou a questão prejudicada, creio que de forma indiciaria, conhecendo as posições que têm sido expressas pelos diversos partidos. Contudo, esta é uma presunção ilidível e, assim, gostaria que admitisse, pelo menos como hipótese, que dois terços dos Deputados desta Assembleia optariam por permitir, em sede de revisão constitucional, a possibilidade da realização de um referendo sobre o Tratado da União Europeia. E a questão que coloco é quanto à solução técnica que considera mais adequada para a realização desse referendo, considerando até que há varias hipóteses nos projectos de revisão que adoptam a solução do referendo, que vão desde a proposta de uma norma transitória e excepcional até à alteração do artigo 118.°

A segunda questão relacionada com esta é se considera que há uma relação lógica entre a realização desse eventual referendo e o processo de revisão constitucional, isto é, se a Assembleia, ao adoptar essa solução, deveria suster o processo de revisão constitucional e prossegui-lo depois, após a resposta do eleitorado e de acordo com essa resposta, ou se considera que isso é indiferente e que, a optar-se pelo referendo, poderia adoptar-se qualquer uma das soluções.

O Sr. Presidente: - Para responder, tem a palavra o Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda.

O Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda: - É com muito gosto que respondo e que vejo antigos alunos meus exercendo funções importantes no nosso país.

Relativamente ao referendo, aquilo que me parece - e já tive ocasião de dizê-lo - é que, a haver referendo, teria de haver duas revisões constitucionais. Vejo com muita dificuldade a realização de um referendo sem haver duas revisões constitucionais. Antes de mais, teria de alterar-se o artigo 118.°; depois, na base deste artigo, ir-se-ia eventualmente submeter a referendo uma alteração à Constituição e só depois se faria a aprovação do Tratado de Maastricht. A primeira revisão seria circunscrita ao artigo 118.° - aliás, tal como está, é bastante confuso e contraditório, obrigando a uma interpretação correctiva, porque

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à letra nunca haveria referendo -, admitindo o referendo sobre alterações à Constituição. A seguir, nada impediria que os mesmos quatro quintos de Deputados que, em Junho, deliberaram assumir poderes de revisão viessem a assumir esses poderes. E, nesta segunda revisão, o processo compreenderia duas fases: a de elaboração de um projecto de revisão constitucional ou da definição das perguntas a submeter a referendo e a da votação popular.

De resto, o próprio sistema do artigo 118.° poderia ser modificado nessa primeira revisão. Tanto poderia manter-se o sistema actual - que é de não ser o povo a aprovar as leis, mas sim a definir as orientações que hão-de ser traduzidas nas leis -, como poderia adoptar-se um sistema de lei referendaria, como existe em França.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sr.a Deputada Ana Paula Barros.

A Sra. Ana Paula Barros (PSD): - Sr. Prof. Jorge Miranda, quero fazer-lhe uma pergunta muito sintética, de resto, atendendo ao apelo feito pelo Sr. Presidente. O Sr. Professor, quando interveio, referiu-se ao artigo 105.° da Constituição como sendo um artigo cujo desaparecimento poderia ser defensável. Gostaria que o Sr. Professor desenvolvesse um pouco mais esta ideia, tendo em conta, nomeadamente, a carga simbólica que teria uma eventual retirada da Constituição da referência ao banco central e, consequentemente, da matéria referente à emissão de moeda.

O Sr. Presidente: - Para responder, tem a palavra o Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda.

O Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda: - Tanto quanto me recordo, a única Constituição portuguesa que faz referência ao banco central é a de 1976. As outras Constituições não o mencionavam e nunca ninguém pôs em causa, tanto quanto sei, o papel do Banco de Portugal. O Banco de Portugal foi nacionalizado em 1974, mas, mesmo antes de o ser, na prática, desempenhava funções equivalentes àquelas que vem desempenhando. E são poucas as Constituições que fazem referência aos bancos centrais.

É evidente que o retirar a norma depois de ela constar da Constituição tem sempre algum significado. Mas, justamente, o significado agora seria o de se avançar no sentido da União Europeia, ou também o de não nos comprometermos com as soluções futuras que venham a ser adoptadas no tocante às relações entre o banco central português e o banco central europeu. Agora, o Tratado de Maastricht aponta para determinada orientação, mas não sei se, amanhã, dentro de 5 ou 10 anos, será uma melhor orientação. Assim sendo, julgo que esse é um dos artigos que menos falta faz na Constituição.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Nogueira de Brito.

O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - Sr. Professor, muito obrigado por ter-se dignado vir aqui dar-nos a sua contribuição, que muito enriquece o nosso trabalho.

Gostaria de colocar-lhe algumas questões relacionadas com os projectos em discussão. Em primeiro lugar, quero insistir numa questão a que o Sr. Professor de certo modo já respondeu. Quando, no início, falou na necessidade de rever os poderes do Parlamento relativamente às matérias versadas no Tratado, referiu a necessidade de o fazer por razões de reequilibrar os poderes do Parlamento num contexto em que, por força do Tratado das Comunidades, estavam a transferir-se para o Governo, pela sua actuação nos órgãos comunitários, muitos dos poderes que efectivamente estão definidos como sendo do Parlamento, e até como reservas de competência absoluta em alguns casos.

Também animados por essa preocupação, fizemos uma proposta, em que atribuímos ao Parlamento nacional um poder consultivo, que poderá depois ter uma influência política muito grande, mas que também poderá não a ter. E a minha dúvida é esta: é se, ao fazê-lo - como nós, e também o PS -, ao incluir uma norma deste tipo na revisão, nós não estaremos, no fundo, a perpetuar o desequilíbrio. É, que, em matérias que eram da competência porventura reservada da Assembleia, agora íamos, tentando reequilibrar, dar apenas poderes consultivos à Assembleia da República.

Mas o Sr. Professor, a certa altura, falou na possibilidade de veto, ideia que porventura devíamos explorar. Isto é, em relação a algumas das matérias sobre as quais a Assembleia terá de se pronunciar obrigatoriamente, matérias que decorrem e que são decididas no âmbito comunitário, não haveria uma competência puramente consultiva, mas mais do que isso. Suponho que é esta a sua ideia e julgo que devemos insistir nela, senão não há reequilíbrio, mas o sublinhar do desequilíbrio. Quer dizer, a Assembleia fica ao nível do Parlamento Europeu, ou seja, dá parecer sobre os projectos legislativos. Gostaria que nos esclarecesse a sua ideia e nos ajudasse na respectiva concretização.

Quanto à questão da norma habilitante, suponho que o Sr. Professor se inclina claramente para a conveniência em isolar esta norma. O Dr. Gomes Canotilho, por exemplo, numa carta que nos enviou, diz que não é apenas um problema de relações internacionais que estafem causa, mas mais do que isso. Portanto, manter esta norma ligada ao artigo 7.° será uma solução imperfeita; devíamos, sim, caminhar no sentido de redigir uma norma autónoma.

Quanto às limitações, inclinou-se fundamentalmente para um método especial de aprovação das alterações ao Tratado. Creio que não há uma ideia completa de União Europeia, neste momento; há uma União Europeia que está bem definida no Tratado, que é a união económica e monetária, o resto...

Transferirmos as competências respeitantes à união económica e monetária parece-me que seria um compromisso: seria, por um lado, limitar e, por outro, seria um compromisso inconveniente.

Quanto à ideia dos dois terços, parece-me uma boa ideia, que se deveria enxertar nesta ou noutra norma da Constituição. De qualquer forma, na perspectiva do CDS, ela enxertar-se-ia na nossa norma sobre o referendo e poderia, em relação a tratados que impliquem transferência de competências - e esse foi o conceito que V. Ex.a utilizou e que foi usado na Faculdade de Direito, ou seja, transferência de poderes -,...

O Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda: - Exercício em comum de poderes.

O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - ... ter a aprovação de dois terços dos Deputados. É claro que agora podemos ligar isto a fórmulas mais complexas de aprovação, mas suponho que foi esta a sua ideia, ou seja, uma ideia de limitação que, em seu entender, deveria ser introduzida.

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Uma outra questão que gostaria de colocar é a seguinte: não querendo chamar a atenção para o nosso projecto...

Risos.

... gostaria de sublinhar que nele reafirmamos a ideia - aliás, defendida pelo Sr. Prof. Jorge Miranda na Assembleia Constituinte -, com o valor simbólico de que ela se reveste neste momento, embora não esteja em causa a língua oficial da República Portuguesa, de definir a língua portuguesa como língua oficial.

Gostaríamos de saber qual a opinião do Sr. Prof. Jorge Miranda sobre esta matéria, uma vez que também defendeu esta ideia nos trabalhos preparatórios da Constituinte, como já disse, e suponho que também na discussão em Plenário.

Na verdade, arriscamo-nos a que a língua portuguesa seja eliminada como língua de trabalho das Comunidades, porque o alargamento coloca este risco como sendo de verificação muito provável. Portanto, a circunstância de ela ser eliminada como língua de trabalho pode constituir uma ameaça e um risco para a própria utilização do português como língua oficial.

O Sr. Presidente: - Para responder as questões colocadas pelo Sr. Deputado Nogueira de Brito, dou a palavra ao Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda.

O Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda: - Relativamente à primeira pergunta, sobre os actos comunitários, gostaria de fazer aqui uma distinção que há pouco não fiz e que me parece ser importante.

A própria circunstância de se colocar na Constituição a obrigatoriedade de o Governo comunicar, mesmo que fosse meramente a título consultivo, à Assembleia da República já seria um passo muito positivo. Tem havido uma grande deficiência de informação e, por isso, justifica-se, a todos os títulos, introduzir na lei fundamental, pelo menos, uma norma a isso especificamente dirigida.

Mas a distinção que eu faria era a seguinte: distinguiria entre actos normativos comunitários sobre matérias reservadas à Assembleia e actos normativos comunitários sobre outras matérias, um pouco na linha daquilo que já acontece relativamente aos tratados.

Quando fossem actos sobre matérias não reservadas à Assembleia, haveria apenas a comunicação, a informação e, eventualmente, a pronúncia da Assembleia, a qual não teria um efeito jurídico vinculativo. Pelo contrário, quando se tratasse de actos sobre matérias da reserva de competência da Assembleia (no âmbito dos artigos 167.° e 168.°), aí o Governo não poderia vincular o Estado Português a esses actos se a Assembleia votasse contra, ou seja, se houvesse uma maioria de rejeição na Assembleia.

Durante a intervenção do Sr. Deputado Nogueira de Brito estive a pensar numa fórmula que poderia ser talvez assim redigida: artigo 164.°, nova alínea a seguir à alínea j):

Compete à Assembleia da República [...] pronunciar-se sobre projectos de actos normativos emanados dos órgãos próprios das Comunidades, os quais, quando versarem sobre matérias reservadas à Assembleia da República, não poderão vincular o Estado Português se a Assembleia da República se pronunciar desfavoravelmente.

Quer dizer, sendo matéria da reserva de competência da Assembleia da República, se esta se pronunciasse contra, o Estado Português não poderia vincular-se (ou melhor, porque há casos em que a unanimidade não é requerida a nível comunitário, o acto não poderia receber a aprovação do Governo português). Com isto não fugiríamos às nossas obrigações internacionais, apenas estabeleceríamos uma articulação entre Parlamento e Governo para certos efeitos.

O Sr. Presidente: - Qual é o efeito útil disso?

O Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda: - Se se exigisse a unanimidade, a Assembleia teria um verdadeiro poder de veto; se não, pelo menos, a Assembleia assumiria uma posição e talvez a posição do Governo nas relações com os outros governos saísse reforçada.

O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - Bom, mas isso pode vir a ter alguma influência no artigo 8.° no que respeita ao direito privado, porque um acto reprovado pela Assembleia como é que, depois, poderia entrar?...

O Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda: - Bom, ter-se-á de fazer uma interpretação tendo em conta todo o contexto do artigo.

A minha ideia é a de fazer uma distinção entre matérias de reserva de competência e matérias que não entram na reserva de competência da Assembleia da República. De forma que, tal como os tratados sobre matérias de reserva de competência da Assembleia têm de ser aprovados pela Asssembleia, também os actos normativos comunitários deverão ser por ela votados e receber, pelo menos, uma posição não desfavorável da Assembleia. Isto é perfeitamente lógico.

Quanto a referência à União Europeia ficar ou não no artigo 7.°, sobre relações internacionais, essa é uma questão a que aludi já. A haver um artigo autónomo sobre a União Europeia, teria de ser um artigo 7.°-A ou 8.°-A. Mas não sei se ficaria bem num plano de estética constitucional...

Aproveito esta oportunidade para fazer um apelo aos Srs. Deputados no sentido de que alterem o menos possível a ordem dos artigos, porque para o jurista teórico e prático é um horror ter de andar a dizer: "artigo 15.°, ex-artigo 14.°, artigo 15.°, que depois foi o artigo 14.° e depois artigo 13.°...".

Por outro lado, tendo em conta uma certa indefinição da União Europeia, tendo em conta que não será ainda um Estado federal ou uma federação, ao contrário daquilo que alguns defendem, tendo em conta que será uma entidade muito ambígua, ainda com contornos muito indefinidos, talvez, apesar de tudo, fosse melhor acrescentar, em vez do actual n.° 5 do artigo 7.°, um número autónomo sobre a União Europeia.

Quanto aos limites, o Sr. Deputado Nogueira de Brito adoptou uma fórmula na linha daquela que consta da Constituição francesa, da união monetária e económica, mas julgo que aqui quer ir-se mais além.

Quanto à língua, ninguém mais do que eu defende a língua portuguesa. Todavia, salvo o devido respeito, não me lembro de ter defendido na Assembleia Constituinte que a língua portuguesa fosse declarada língua oficial. Mas alguém duvida de que ela é a língua oficial do nosso país? Só assim, aliás, se compreendeu o artigo 15.°, sobre cidadãos de países de língua portuguesa, ou o artigo 9.°, ali-

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nea b), sobre tarefas do Estado quanto à língua portuguesa.

Creio que em Portugal ninguém vai ao ponto de defender que haja outra língua oficial a par ou em vez do português. O importante é salvaguardar a língua portuguesa como língua das Comunidades. Se se quer essa preocupação, então ponha-se isso na Constituição, mas não dizendo que a língua do Estado Português é o português. Poderá, eventualmente, falar-se disso numa norma qualquer sobre os representantes de Portugal em organizações internacionais, mas, então, seria no tal artigo autónomo sobre a União Europeia.

O uso da língua portuguesa não depende da Constituição, mas, sim, da vontade que tenhamos de a defender e valorizar. Criticável é ouvir titulares de órgãos de soberania usarem outra língua. Ainda há dias ouvi o Ministro das Finanças falar em inglês numa reunião com banqueiros; e também em universidades públicas vejo pessoas com textos em línguas estrangeiros... portanto, creio que é aí que deve haver todo o cuidado.

O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - Aliás, o Banco de Portugal publica todos os seus estudos em inglês.

O Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda: - Mas devia também publicar em português.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Oliveira Martins.

O Sr. Guilherme Oliveira Martins (PS): - Sr. Prof. Jorge Miranda, foi muito importante e profícua a intervenção e os esclarecimentos que deu, em todo o caso gostaria, ainda, de colocar-lhe duas questões.

A primeira é relativa aos poderes do Parlamento. Uma das preocupações que estiveram presentes na elaboração do texto do projecto do PS quanto aos poderes do Parlamento visa abranger não apenas actos de natureza legislativa, mas também actos do tipo Programa de Convergência QUANTUM, que vão condicionar o exercício de competências esclusivas do Parlamento ligadas à matéria orçamental.

Ora, gostaria de ouvir o Sr. Prof. Jorge Miranda relativamente a este assunto, uma vez que referimo-nos não apenas aos actos com implicações de natureza legislativa, mas também aos actos de conteúdo financeiro condicionadores dos poderes do Parlamento no tocante à aprovação do Orçamento.

A segunda questão prende-se ainda com o princípio da subsidiariedade. Este é um tema melindroso sobre o qual tenho dúvidas, ainda que, tanto quanto julgo saber, a orientação geral do documento que irá ser apresentado em Birmingham pelo Presidente da Comissão, Sr. Jacques Delors, aponta no sentido, que não é o de considerar como centro das competências a Comunidade, mas sim o de encarar vários níveis. E vários níveis ascendentes, onde se colocam a infra-estadualidade, a estadualidade e a supra-estadualidade. Sendo que tudo aquilo que está expressamente confiado à Comunidade corresponde à sua esfera própria, mas tudo o que não está expressamente previsto tem de ser cometido ao Estado membro e depois naturalmente ver-se-á (e daí a dificuldade da questão, designadamente na doutrina alemã) qual a distribuição entre o Estado, as regiões (no caso em que estas existam) e os Estados federados no caso em que se verifique uma organização federal - como é justamente o caso da República Federal Alemã, que tem os Laender. Portanto, a questão, neste momento, colocar-se-á quanto à subsidiariedade. Não em termos de dar à Comunidade a função central ou matricial dos poderes, mas sim uma posição subsidiária. Isto é, só tem aquelas que expressamente lhe estão confiadas.

O Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda: - Tenho o maior gosto em responder às suas perguntas. E realmente não é apenas em relação a actos normativos que se pode colocar o problema que estivemos a discutir há pouco, também se pode colocar relativamente a actos não normativos. E, portanto, poderia falar-se em projectos ou propostas de actos dos órgãos próprios das Comunidades. Em todo o caso, a necessidade de não votação desfavorável para que Portugal pudesse aprovar esses actos seria relativamente a actos normativos. Teríamos de encontrar uma fórmula, que tentei rascunhar, mas que não cheguei a concluir.

Era mais ou menos assim: "projectos e propostas de actos comunitários, os quais, quando versam matérias da sua competência, não poderão receber aprovação por parte de Portugal quando a Assembleia se pronuncie desfavoravelmente", por exemplo!

Relativamente ao princípio da subsidiariedade, vamos ver, não conheço ainda esse texto da Comissão de Jacques Delors. Há vários níveis. A ideia de subsidiariedade, tal como ele a tem entendido, é a partir de uma entidade superior para uma inferior. Isto agora seria um pouco ao contrário...

O Sr. Guilherme Oliveira Martins (PS): - Seria ao contrário tal como está formulada. E na doutrina da Comunidade quem a primeiro formulou foi o Deputado do Parlamento Europeu Altiero Spinelli. E Altiero Spinelli, no texto de 1982 sobre esta matéria, diz: "Tudo aquilo que pode ser resolvido mais próximo do cidadão deve ser resolvido mais próximo do cidadão." E depois: "O que, de facto, não puder ser resolvido mais próximo do cidadão vai ser resolvido nas Comunidades, que lhe estão imediatamente superiores."

O Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda: - O que é que "possa ser resolvido"? Nunca se sabe o que é. Isso é uma fórmula extremamente vaga!

O Sr. Guilherme Oliveira Martins (PS): - Com certeza!

O Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda: - Também toda a gente sabe que nos Estados federais o princípio é o da especialidade das atribuições federais: os Estados federais só podem fazer aquilo que as suas Constituições estabelecem. Mas através do princípio dos poderes implícitos, por exemplo, as uniões têm absorvido constantemente poderes dos Estados federados.

O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - O nosso Ministro dos Negócios Estrangeiros deu-nos ontem uma versão de que o que o Estado Português irá defender é que nas matérias de competência exclusiva da Comunidade a competência é da Comunidade e só desta; nas matérias cuja competência é repartida entre os Estados membros e a Comunidade funcionaria o princípio da subsidiariedade. Isto é, ela caberia aos Estados membros sempre que eles pudessem resolver as matérias satisfatoriamente e só caberiam à Comunidade quando realmente isso não aconte-

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144 II SÉRIE - NÚMERO 8-RC

cesse. Nas matérias que não são efectivamente de exercício comum, mas, como o disse o Sr. Prof. Jorge Miranda, agora passam a ser muito poucas, porque a referência, o alargamento da enumeração das políticas que vêm no Tratado, é muito grande, aí não haveria sequer princípio da subsidiariedade. Elas eram só, efectivamente, do Estado.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, peço-lhes desculpa, mas o Prof. Jorge Miranda tem um limite de tempo e ainda temos uma questão do Sr. Deputado Mário Tomé, pelo que não nos poderemos alongar. É uma discussão muito interessante, mas já lá vão duas horas!

Tem a palavra o Sr. Deputado Mário Tomé.

O Sr. Mário Tomé (Indep.): - Sr. Professor, queria também agradecer-lhe, tal como os meus colegas o fizeram, a sua disponibilidade e a ajuda que nos está a dar. Tenho muita pena de não ter sido seu aluno. Os meus conhecimentos cingem-se ao estudo do RDM (Regulamento de Disciplina Militar),...

Risos.

... pelo que vou resvalar mais para c lado político.

E começo logo mal porque lhe vou fazer uma observação. O Sr. Professor, em resposta ao Sr. Deputado Luís Pais de Sousa, disse que o problema do referendo, do ponto de. vista jurídico, estava ultrapassado, manter-se-ia a questão apenas do ponto de vista político. Penso que é exactamente o contrário. Do ponto de vista jurídico não está ultrapassado, ainda não há nenhuma votação, não há uma resposta de sim ou não. Do ponto de vista político é que não estará, porque há um acordo entre os dois partidos que se opõem ao referendo, mas isso também poderá mudar. Portanto, a questão do referendo ainda se mantém.

E é nessa base que lhe quero colocar uma questão simples. De qualquer modo, gostava de o ouvir porque se trata de um assunto que tem sido esgrimido como argumento contra o referendo - os prazos de ratificação. Isto é, pergunto-lhe se há algum prazo definido, se tem de ser até 31 de Dezembro ou 1 de Janeiro. E também até que ponto o "não" da Dinamarca, não pôs em causa o próprio Tratado de Maastricht. De facto, o que sinto nisto tudo é mais a questão política do que a questão jurídica. Aquando do "não" da Dinamarca toda a gente dizia que o Tratado não estava posto em causa, mas, quando se estava apreensivo com o hipotético "não" da França, isso já poderia estar em causa. Ora bem, parece que o jurídico anda aqui um pouco a nadar cm função dos interesses políticos dos mais poderosos. Isto está ligado àquilo que o Sr. Professor disse há pouco, de que o Tratado não é unívoco, mas sim até muito vago em questões importantíssimas, o que me leva a estar muito apreensivo e a pensar até, talvez, que esta revisão constitucional melhor faria em nos defender face àquilo que o Tratado poderá implicar do que acolhê-lo. Acolhendo-o (contra a minha vontade, mas se assim tiver que ser, será), tem de se defender disso.

E, se me permite, sem que pretenda ser presunçoso, quero saudá-lo por todas as cautelas importantíssimas que retirei da sua intervenção.

O Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda: - Sr. Deputado Mário Tomé, quero agradecer as suas perguntas e dizer-lhe que tem uma certa razão quanto à primeira observação que fez. Na verdade, juridicamente ainda não há votação. Aliás, esta não se efectuará aqui em sede de comissão, mas no Plenário, e, portanto, até lá poderão verificar-se quaisquer vicissitudes, quaisquer circunstâncias que permitam, inclusive, a realização do referendo. Em todo o caso, politicamente parece-me difícil, se não impossível.

Quanto ao prazo de ratificação, enfim, de acordo com o artigo R do Tratado de Maastricht, se um dós Estados membros não ratificar o Tratado, este não poderá entrar em vigor. E não vejo como isso poderá acontecer até 31 de Dezembro.

De todo o modo, suponho que o Tratado acabará por ser ratificado, embora com estas ou aquelas alterações, mesmo se se diz que não vai haver renegociação, nem que alguma coisa irá ser feita. Mas ainda ontem vi o Sr. Jacques Delors afirmar no Parlamento Europeu que ia haver umas declarações interpretativas... E isso já representará alguma coisa.

O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - Falou até em novos protocolos!

O Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda: - Já agora, um ponto que para mim é muito importante (e penso que deveria ser importante para Portugal) é ressalvar a posição dos cidadãos de países de língua portuguesa. Parece-me que é um dos aspectos fundamentais, porque tenho visto muitos europeus de além-Pirenéus com interrogações do seguinte tipo: "Mas então, Portugal, como é? Depois vêm os Brasileiros, a seguir os Africanos e depois os de Macau!", entre outras coisas. Pelo que aí estamos perante uma situação que temos de salvaguardar a todo o custo. Não podemos admitir que haja qualquer tipo de interferência.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Nogueira de Brito.

O Sr. Nogueira de Brito (CDS): - A questão que vou colocar é relativa ao referendo. A intervenção do Sr. Deputado Mário Tomé chamou-me a atenção para isso novamente.

O Sr. Professor tem um calendário de referendo que começaria com um referendo sobre a revisão da Constituição, depois revisão da Constituição e a seguir ratificação do Tratado, que poderia ter referendo ou não. Se houver um referendo para a ratificação do Tratado, ele não resolverá em si tudo? Isto é, não poderia haver um calendário com um referendo para ratificação do Tratado, que seria seguido da revisão constitucional necessária, se o referendo tivesse tido esse resultado, e depois a ratificação?

O Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda: - Com respeito pela Constituição isso não poderia ser. Submeter a referendo um projecto que envolve modificação da Constituição não seria possível hoje, insisto.

Deveria, sim, começar por se fazer uma revisão sobre o artigo 118.° da Constituição, de maneira a alargar o âmbito possível de matérias do referendo; e só num segundo momento, num segundo processo de revisão, se iria submeter a referendo o Tratado ou o conjunto de alterações constitucionais por ele pressupostas. Estes dois momentos são indispensáveis, como disse há pouco.

Já agora, Sr. Presidente, se me permite e para terminar, vou avançar uma fórmula para a tal alínea do artigo 164.°, como me pediram:

Compete à Assembleia da República [...] pronunciar-se sobre os projectos ou propostas de actos co-

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munitários (ou de actos a emanar de órgãos próprios das Comunidades Europeias), os quais, quando versarem sobre matérias da sua competência reservada, não poderão receber aprovação por parte de Portugal se a Assembleia os votar desfavoravelmente.

O Sr. Presidente: - Penso que temos de agradecer este contributo importante para a nossa discussão.

Srs. Deputados, chegamos ao fim desta sessão de trabalho. Quero agradecer ao Sr. Prof. Jorge Miranda, e meu grande amigo, as contribuições que deu à discussão e o facto de ter disponibilizado o seu tempo para tão longamente debater connosco estas matérias.

Está encerrada a reunião.

Faltaram à sessão os seguintes Srs. Deputados:

António de Almeida Santos (PS), vice-presidente.
João António Gonçalves do Amaral (PCP), secretário.
Luís Carlos David Nobre (PSD), secretário.
Guilherme Henrique V. R. da Silva (PSD).
João Álvaro Poças Santos (PSD).
Manuel Castro de Almeida (PSD).
Manuel da Costa Andrade (PSD).
Mário Jorge Belo Maciel (PSD).
Miguel Bento M. da C. Marcelo e Silva (PSD).
Rui Manuel Lobo Gomes da Silva (PSD).
José Alberto R. dos Reis Lamego (PS).
José Eduardo Vera Cruz Jardim (PS).
André Valente Martins (PEV).

Eram 20 horas e 5 minutos.

A DIVISÃO DE REDACÇÃO DA ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA.

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