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Quinta-feira, 5 de Setembro de 1996 II Série - RC - Número 17

VII LEGISLATURA 2.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1996-1997)

IV REVISÃO CONSTITUCIONAL

COMISSÃO EVENTUAL PARA A REVISÃO CONSTITUCIONAL

Reunião de 4 de Setembro de 1996

S U M Á R I O


O Sr. Presidente (Vital Moreira) deu início à reunião às 10 horas e 25 minutos.
Procedeu-se à discussão das propostas relativas aos artigos 8.º, 9.º, 10.º, 13.º, 15.º e 16.º constantes dos diversos projectos de revisão constitucional, tendo dado entrada um aditamento ao projecto de revisão constitucional n.º 1/VII, apresentado pelo CDS-PP.
Usaram da palavra, a diverso título, além do Sr. Presidente, que também interveio na qualidade de Deputado do PS, os Srs. Deputados Mota Amaral (PSD), José Magalhães (PS), Barbosa de Melo (PSD), Luís Sá (PCP), Luís Marques Guedes (PSD), Alberto Martins (PS), Jorge Ferreira (CDS-PP), Cláudio Monteiro e Elisa Damião (PS), Maria Eduarda Azevedo (PSD), Odete Santos (PCP), Heloísa Apolónia (Os Verdes), Calvão da Silva (PSD), Strecht Ribeiro (PS) e Guilherme Silva (PSD), e António Filipe (PCP).
O Sr. Presidente encerrou a reunião às 19 horas e 40 minutos.

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O Sr. Presidente (Vital Moreira): - Srs. Deputados, temos quórum, pelo que declaro aberta a reunião.

Eram 10 horas e 25 minutos.

Começo os nossos trabalhos por vos prestar algumas informações acerca da reunião da comissão coordenadora de ontem.
Por instâncias do PCP, apoiado pelo PSD e com a minha oposição, foram canceladas as reuniões de segunda-feira; na altura, apelei, e continuo a apelar, para, pelo menos, utilizarmos eficazmente o tempo das reuniões que irão ter lugar, sendo pontuais. Porém, não começámos bem, logo no dia seguinte, pelo que reitero esse apelo.
A reunião desta manhã terminará às 12 horas e 45 minutos.
Outras conclusões da comissão coordenadora de ontem são no seguinte sentido: foram reapreciadas as várias propostas oportunamente apresentadas relativamente a audiências da Comissão, tendo-se apurado, por consenso e sem a manifestação de qualquer discordância, a realização de três audiências, sendo a primeira a 12 de Setembro, quinta-feira, à tarde, com os autores das petições com propostas ou sugestões para a revisão constitucional. Ontem considerou-se que essa audição poderia ter lugar na Sala das Sessões, mas hoje proponho que ela se realize na Sala do Senado, porque talvez não seja bom inovar nessa área. Mas esta é uma questão em aberto que vou ainda pôr à vossa consideração.
Para essa reunião seriam convidados todos os peticionários e ela seria pública, ou seja, aberta à imprensa e ao público, como é óbvio, havendo uma grelha de tempos, de acordo com o âmbito e dimensão de cada proposta, de 15, 10 e 5 minutos, respectivamente, tendo eu classificado já as propostas. Na sua maior parte, elas são monotemáticas, e a essas caberiam 5 minutos, havendo tempo para resposta a eventuais perguntas ou comentários dos membros da Comissão.
Elaborei uma lista das petições existentes, quer das que constam da colectânea, quer das que entretanto foram apresentadas. São mais de 20, mas a sua grande maioria, talvez com excepção de quatro ou cinco, são pequeníssimas sugestões de revisão.
Mesmo que todos os peticionários viessem, penso que, durante a tarde, com esta grelha de tempos, poderíamos "dar conta do recado".
As propostas mais importantes, quer pela extensão, quer pelo prestígio dos seus autores, são a de Jorge Miranda, a de Henrique Medina Carreira, a da Associação Cívica Política XXI e a do GEOTA.
Vou mandar elaborar um dossier com todas as propostas, não por artigos, tal como está, mas por ordem de apresentação e com a petição inteira, o que servirá, inclusive, para os membros da Comissão puderem participar mais activamente nessa audição.
Já hoje pedi uma audiência com o Sr. Presidente da Assembleia da República para agenciar a sala e os meios logísticos necessários para a realização desta audição e já elaborei um projecto de carta-tipo, que acertarei com os restantes membros da comissão coordenadora. Já a mandei dactilografar e daqui a cerca de meia hora tê-la-ão, para poder ser enviada, ainda hoje ou amanhã, a tempo de chegar aos interessados antes do fim de semana, para que eles tenham pelo menos uma semana para prepararem a sua vinda.
Quanto à segunda audiência, que terá lugar a 19 de Setembro, será com os parceiros económicos e sociais. Está marcada para uma quinta-feira e foi escolhida esta data, assim como a seguinte, que passarei a anunciar, porque, apesar de reunir a Comissão Permanente da Assembleia da República, o que, à partida, poderia inviabilizar as reuniões da Comissão de Revisão Constitucional, foi-me garantido pelos membros da Comissão que nestas audiências estarão, pelo menos, além de mim, mais seis membros, ou seja, dois pelos dois grandes partidos e um por cada um dos outros dois, ou seja, pelo PCP e o CDS-PP. Este gentlemen's agreement tenho a certeza que não será desrespeitado. Naturalmente que se trata também de uma questão de respeito para com as pessoas e organizações que aqui virão.
A terceira audiência terá lugar a 3 de Outubro, também uma quinta-feira, à tarde, aqui na sala da Comissão de Revisão Constitucional, assim como a anterior. Serão ouvidas, numa primeira parte, associações de defesa de direitos fundamentais, que são umas três ou quatro, o Fórum Justiça e Liberdade, a Civitas, e mais uma ou duas; numa segunda parte serão ouvidas associações de profissões jurídicas, ou seja, a Ordem dos Advogados, a Associação Sindical dos Magistrados Judiciais e o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público.
Depois da reunião, quando elaborava esta lista, surgiu-me a questão da Câmara dos Solicitadores, que, ainda por cima, é uma associação pública e que não sei se será de acrescentar. Ontem só foram consideradas estas três que enunciei, mas, de qualquer modo, podemos considerá-la numa segunda reflexão sobre a questão.
Portanto, para as próximas semanas assentámos nestas três audiências, independentemente de outros pedidos de audiências de particulares que possam chegar e para as quais poderemos ver qual a solução, quer no sentido de poderem ser recebidos pela Mesa da Comissão ou pelo grupo coordenador, quer noutro sentido, conforme for achado melhor, consoante o objecto, a importância e o estatuto do peticionário.

Pausa.

Srs. Deputados, vamos entrar na ordem de trabalhos para hoje.
Tem a palavra o Sr. Deputado Mota Amaral.

O Sr. Mota Amaral (PSD): - Sr. Presidente, gostaria que me permitisse fazer um breve comentário acerca de um tema aqui debatido ontem, relativo ao artigo 6.º da Constituição.
O meu comentário será muito breve e tenho pena de não o ter podido fazer na altura, pelo que, sem entrar na discussão sobre as diversas propostas de alteração que estão presentes à Assembleia, gostava de deixar um apelo a uma reflexão por parte desta Comissão, que é a entidade competente para a fazer, acerca do problema de fundo das autonomias regionais.
A experiência das autonomias regionais dos Açores e da Madeira, que tem sido uma experiência feliz, com bons resultados, defronta-se com um problema muito melindroso, respeitante ao reconhecimento do poder legislativo regional. Em função da minha experiência como responsável na Região Autónoma dos Açores, estou convencido que é indispensável haver, neste artigo, ou num dos primeiros artigos da Constituição, onde se apresentam definições fundamentais sobre o Estado democrático, uma chave que permita interpretar em termos favoráveis à autonomia regional todos os preceitos da Constituição.
Nesta matéria do poder legislativo, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem sido de tal maneira restritiva

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que as assembleias legislativas regionais se encontram fortemente limitadas na sua capacidade, quase reduzidas a um papel que não é aquele que lhe pretendeu conferir o legislador constituinte de tomar as contas da região, de aprovar os orçamentos e os programas de actividades dos governos regionais.
Ora, se consideramos que a autonomia regional é uma resposta, no plano da organização do Estado, aos problemas específicos das regiões insulares, se partimos do princípio que as regiões insulares, pelas suas características geográficas, pela sua pequena dimensão, limitação territorial, dispersão e isolamento, têm problemas específicos que exigem soluções adequadas e se, depois, adoptamos a regra democrática que é de, para dar resposta adequada a estes problemas, que sejam os cidadãos que por lá estão que, organizados politicamente, através de órgãos representativos, tomem estas decisões e acertem essas soluções, a maneira mais palpável, mais evidente de garantir este direito à diferença é assegurar que os parlamentos regionais possam fazer leis regionais.
Na verdade, é esta declaração inicial do Estado como Estado unitário, que tem sido tomada como uma chave de interpretação da Constituição, e é-o manifestamente, que autoriza esta jurisprudência restritiva do Tribunal Constitucional.
Ao longo destes anos, tive muitas vezes ocasião de pensar sobre esta matéria, tentando encontrar uma solução, mas não a encontrei. Aliás, se ela fosse fácil de encontrar, a questão já estava resolvida.
Dizer-se que o Estado é unitário com regiões autónomas é repetir o que já está escrito e não tem sido suficiente para evitar este inconveniente. Em todo o caso, o que me parece que se torna necessário, na altura em que voltarmos a estes assuntos, é voltarmos a pô-los sobre a mesa. Julgo que eles hão-de ter oportunidade de ser bem abordados, com o aprofundamento necessário, muito naturalmente após as eleições regionais, pois agora o ambiente está um pouco perturbado e alguns dos membros desta Comissão especialmente ligados às regiões autónomas, possivelmente, não vão ter possibilidade de participar nos trabalhos com a intensidade que quereriam ao longo do mês de Setembro e até 13 de Outubro.
Assim, lanço aqui um apelo aos colegas da Comissão para que ajudem nesta reflexão e a encontrar a tal chave que permita às entidades que interpretam a Constituição uma interpretação favorável à autonomia e às assembleias regionais.
Parece-me que a experiência da autonomia, para ter toda a significação democrática, tem de valorizar o papel dos órgão representativos regionais, as assembleias regionais, e para isso é indispensável reconhecer a sua área específica de competência, a sua área legislativa.

O Sr. Presidente: - Fica registada a tomada de posição do Sr. Deputado Mota Amaral, que peço que não sirva de precedente para voltarmos a temas cuja discussão foi encerrada. Em todo o caso, voltaremos a ele quando discutirmos o capítulo sobre as regiões autónomas.
Vamos passar ao artigo 8.º, para o qual existe apenas uma proposta do Partido Socialista relativamente ao n.º 1.
Para a sua apresentação, tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Esta proposta visa operar uma correcção de carácter técnico. Importa que o artigo 8.º, no seu n.º 1, aluda a todas as normas e princípios de direito internacional vinculativos do Estado português e não apenas aos "princípios de direito internacional geral ou comum", como, actualmente, a norma dispõe.
Também nos parece preferível a cautela, que, naturalmente, consta da nossa proposta, de que essas normas e princípios vigoram, enquanto o forem na ordem internacional, segundo as regras próprias da sua definição, modelação e nascimento, e, obviamente, só podem ser aplicáveis de acordo com o seu conteúdo estatuível e estabelecível segundo as regras de hermenêutica aplicáveis e correctas.
Esta contribuição foi-nos sugerida, designadamente, por alguns especialistas de direito internacional que por esta matéria se têm interessado e que sobre ela têm escrito e parece-nos que, não sendo uma obra de fundo, é uma correcção virtuosa. Não adiantámos qualquer outra, embora, como sabem, o artigo 8.º coloque problemas, designadamente nos seus n.os 2 e 3, de hermenêutica bastante sensíveis mas que a doutrina e a jurisprudência têm vindo a examinar e a resolver em condições que, na nossa leitura, dispensam, nesta fase, obras de fundo.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, está aberta a discussão.
Tem a palavra o Sr. Deputado Barbosa de Melo, para pedir esclarecimentos.

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Sr. Presidente, o Sr. Deputado José Magalhães falou-nos da correcção técnica do n.º 1 do artigo 8.º, aludindo a opiniões expendidas na literatura a seu respeito, mas eu gostaria que especificasse as incorrecções de que esse n.º 1 actualmente sofre e que esta redacção visa acautelar e melhorar.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Deputado, não se refere a todas as fontes de direito internacional que podem ser vinculativas, designadamente ao costume internacional em certas circunstâncias. A nossa proposta dá abertura a esse aspecto, entre outros, e tem, naturalmente, as cautelas que constam da segunda e da terceira partes dos incisos que propomos.
Entre as pessoas que se têm manifestado no sentido desta correcção está o Professor Miguel Galvão Teles, entre outros, e estamos obviamente disponíveis para trocar as impressões de carácter técnico que...

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do Orador).

O Sr. José Magalhães (PS): - Exacto! O costume local e regional, designadamente, não era compreendido pela redacção...

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Como?!

O Sr. José Magalhães (PS): - O costume local e regional, que pode ser, eventualmente, relevante como fonte de direito internacional, era excluído ou, pelo menos, não era devidamente contemplado na redacção que consta do texto actualmente em vigor.
Portanto, não cremos que se deva manter fechado, nestes termos, um clausulado constitucional, embora, como sabem, a relevância do costume regional e local seja, hoje, fenecente ou declinante. No entanto, ainda é relevante.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Barbosa de Melo.

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O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Todos os textos deste tipo comportam, eventualmente, melhorias para cobrir aspectos que não estão directamente explicitados na fórmula acolhida. Em todo o caso, julgo que esta fórmula apresentada não corresponde bem à lógica matricial deste artigo 8.º. Há aqui uma questão de fundo importante, que é a atitude da ordem jurídica interna portuguesa relativamente àquele direito internacional que faz parte, digamos assim, do fundus da cultura jurídica universal. É um direito que vincula, numa certa óptica, que levou tempo a progredir no terreno, os estados, quer estes queiram quer não. Faz parte da civilização jurídica da humanidade deste tempo que há uns tantos princípios - cogentes ou dispositivos, mas não é essa a questão de que se trata aqui - que estão identificados com a civilização jurídica.
É isto o que vem dizer o n.º 1, quando refere que "as normas e os princípios de direito internacional geral (...)" - e depois discutiu-se muito na Constituinte e optou-se por colocar também este adjectivo 'comum' para deixar isto em aberto - "(...) e comum fazem parte integrante do direito português". Portugal vai a par e passo com a civilização universal, quer o Estado participe na formação dessas normas, quer não. É esta a ideia que está aqui acolhida no n.º 1 do artigo 8.º.
Penso que a vossa fórmula é uma regressão relativamente a esta posição que conseguimos estabilizar em 1976.
Claro que, se se arranjar uma fórmula... O costume local, como sabem, tem geralmente natureza pactícia, não é considerado uma fonte objectiva de direito internacional, e o costume regional tem um relevo mínimo, porque, normalmente, os Estados fazem convenções regionais.
Recordo aqui a base histórica, para pensarmos nisto. Com certeza que ninguém se lembrará directamente dos julgamentos de Nuremberga - eu serei talvez o único que se pode lembrar disso -, mas todos têm notícia deles. O que aí veio ao de cima foi que o direito interno do Estado, cujos representantes foram julgados, cobria, obviamente os seus actos, mas foi-lhes contra-argumentado que o Estado, quer quisesse quer não, estava sujeito a princípios determinantes, que fazem parte desse fundus cultural comum da humanidade e que, por isso mesmo, são vinculantes.
Este n.º 1 do artigo 8.º destina-se a dar acolhimento na ordem interna portuguesa e a dizer que esses princípios prevalecem sobre quaisquer determinações ocasionais do poder. Foi com esse objectivo que se redigiu assim o n.º 1 do artigo 8.º.
A fórmula apresentada pelo Partido Socialista, além de conter uma certa petição de princípio "(...) vinculativos do Estado Português, e, enquanto o forem, vigoram na ordem interna (...)" - de outro modo não faria sentido -, não é feliz. A fórmula vigente, se calhar, também precisa de obras, mas, em todo o caso, não serão estas, decerto, as que é preciso fazer.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Sá.

O Sr. Luís Sá (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Naturalmente que estamos abertos ao exame das questões técnicas colocadas por esta disposição.
Devo, no entanto, dizer que o artigo 8.º tinha uma determinada lógica: no n.º 1 era recebido o direito internacional geral e comum, com o sentido que acaba de ser referido pelo Sr. Deputado Barbosa de Melo, incluindo, naturalmente, o costume; no n.º 2 era recebido o direito convencional; e no n.º 3 era recebido o direito comunitário.
Creio que o problema que aqui se coloca é um pouco o de que, quando se afirma que "as normas e os princípios de direito internacional vinculativos do Estado português", passa-se ao lado de uma questão que é exactamente a de responder em que medida é que são vinculativas do Estado português. Isto é, mal ou bem, actualmente, afirma-se que as normas e princípios de direito internacional geral e comum vinculam o Estado português e, agora, vem dizer-se que as normas e os princípios que vincularem o Estado português vigoram na ordem interna, sendo aplicadas de harmonia com o seu conteúdo, desde que vinculem o Estado português.
Há, portanto, aqui uma regressão efectiva, independentemente das intenções de melhoria técnica que são sempre louváveis e que, naturalmente, nos sensibilizam.
Se o costume local e regional fosse tão relevante que implicasse alterações nesta matéria, creio que, então, era preferível encontrar a forma adequada de receber este tipo de costume local e regional e não propriamente alterar uma norma que, creio, teve um sentido histórico bastante relevante, mais ainda quando estamos face à Constituição de um regime que se sucede a outro, que era o regime do "orgulhosamente sós", um regime que negava exactamente este tipo de vinculação internacional do Estado português, designadamente em matéria de direitos, liberdades e garantias, que devem vincular todos os estados democráticos.
Portanto, a nossa posição é esta: toda a abertura em relação à consideração dos problemas técnicos que estão colocados por estas disposições, toda a abertura em relação a melhorias técnicas que aqui se colocam e alguma reserva, inclusive de apreensão, em relação às virtudes que poderiam resultar desta alteração proposta.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Penso que o essencial já foi dito de uma forma muito clara, quer pelo Sr. Professor Barbosa de Melo, quer pelo Sr. Deputado Luís Sá, e eu acrescentava apenas uma questão, um pouco também à laia de pedido de esclarecimento ao Partido Socialista, que é a seguinte: de facto, aquilo que resulta, na prática, do texto que nos é apresentado - pode não ter sido essa a intenção dos proponentes, e quero crer que não foi - vai no sentido de reduzir o conjunto de normas que, como disse o Sr. Professor Barbosa de Melo, fazem parte de todo um património civilizacional que Portugal acolheu claramente desde 1974, embora, historicamente, sempre tenha participado activamente, como todos sabemos, até na própria formatação do direito internacional desde os séc. XIV e XV.
Portanto, não conseguimos de deixar de ler no texto que nos é apresentado uma redução da abertura da ordem jurídica interna portuguesa a todo esse património jurídico.
Ora, se não é essa a intenção - e quero crer, como referi no início, que não -, que o Partido Socialista o diga claramente e, depois, então, tentemos, em conjunto, não retirando nada da aceitação do património jurídico que resulta da actual redacção, colmatar as tais eventuais lacunas, se chegarmos à conclusão de que elas, de facto, existem e merecem acolhimento. Porque, para nós, Partido Social Democrata, não faz qualquer sentido reduzir aquilo que resulta do actual texto nem queremos que isso aconteça.
Mas se a intenção é exactamente a oposta, pois, então, que isso fique claro, desde já, nesta primeira leitura e tentaremos, depois, encontrar uma redacção que possa atingir esse objectivo.

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O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: A ideia da proposta do Partido Socialista é, naturalmente, ajudar a resolver um problema técnico, e estamos disponíveis para encontrar as melhores soluções que o ajudem a resolver, sendo certo que, no nosso objectivo, não havia a ideia da redução de qualquer das potencialidades de incorporação e de recepção do internacional nesta norma.
Por isso, a sua ideia matricial da prevalência do direito internacional comum sobre o direito interno português mantém-se no nosso propósito e na norma, ainda que, eventualmente, ela tenha de ser precisada, sendo certo que, como aqui se diz, e de acordo, aliás, com as normas internacionais, que valem na ordem interna portuguesa independentemente de qualquer declaração pactícia, estamos consonantes com as regras fundamentais do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça, no sentido de que - e aplica-se este n.º 1 - o costume internacional vale como prova de uma prática geral aceite como sendo direito pelo Estado português, e naturalmente que os princípios gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas são reconhecidos por Portugal.
É apenas neste sentido de recepção e para resolver este problema de uma maior abrangência que fizemos a nossa proposta, sendo certo que, na doutrina, há quem aluda - e designadamente alguns autores que não são tidos propriamente como muito progressistas neste domínio, e poder-se-á dizer que até têm um sentido conservador - aos limites deste artigo, nomeadamente ao nível do direito internacional público, uma vez que foram pedidos alguns esclarecimentos, como é o caso do Professor Silva Cunha, que diz que neste artigo há uma cláusula de recepção semiplena e não automática do direito internacional, porque deixa de lado precisamente aquilo que o meu colega José Magalhães já apontou, ou seja, o costuma local e regional.
Digamos, portanto, que a abrangência maior desta norma pretenderia resolver algumas questões de doutrina e os constitucionalistas que citamos, ligados ao direito internacional, apontam também noutra ordem.
Mas estamos de acordo com as preocupações que foram aqui expressas, nomeadamente que o direito internacional é um valor civilizacional que ultrapassa os Estados e enquanto princípios gerais jurídicos reconhecidos pelas nações civilizadas são-no, naturalmente, por Portugal. E daí o bom acerto do exemplo dado, a propósito do caso de Nuremberga, contra a agressão aos direitos da humanidade, que se impuseram independentemente da vontade e dos direitos regionais ou nacionais dos Estados.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Jorge Ferreira, quer pronunciar-se sobre este assunto?

O Sr. Jorge Ferreira (CDS-PP): - Estou de acordo com as observações feitas.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, penso que a fórmula proposta não é a mais feliz para resolver o problema que se pretende e afasta-se, inclusivamente, da expressa razão de ser que a motivou. Portanto, julgo que ela precisa de "obras" antes de uma nova consideração.
Srs. Deputados, passamos agora ao artigo 9.º.
Vamos discutir, em primeiro lugar, as propostas de alteração ou de substituição de alíneas existentes e só depois consideraremos as propostas de aditamento de novas alíneas.
A primeira alínea em relação à qual há propostas de alteração é a alínea d), para a qual existem propostas de alteração do PP, do PSD e de Os Verdes. Por esta ordem, irei dar a palavra aos respectivos proponentes.
As propostas do PP e do PSD são, no fundamental, convergentes, embora com uma diferença quanto ao âmbito, e a proposta de Os Verdes, se bem li e comparei, limita-se apenas a substituir a palavra "portugueses" por "Portugueses".

O Sr. Luís Sá (PCP): - E acrescenta os direitos ambientais!

O Sr. Presidente: - É verdade! Devia ter desconfiado!

Risos.

Para apresentar a proposta do PP, tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Ferreira.

O Sr. Jorge Ferreira (CDS-PP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: A proposta que fazemos relativamente a esta alínea vai no sentido da eliminação da expressão "e a igualdade real entre os portugueses", isto como tarefa fundamental do Estado, uma vez que nos parece que esta expressão tem uma raiz totalitarizante, que nos desagrada profundamente.
Desde já, devo dizer que estamos abertos e concordantes com a substituição da expressão "do povo" pela expressão "e a igualdade de oportunidades para todos os portugueses" que, apesar de não constar da nossa proposta, consta da proposta do PSD, que é um conceito bem mais democrático, bem mais simpático, bem mais útil e bem mais realizável do que aquele que actualmente consta do texto desta alínea.
Por isso, estamos, desde já, abertos a aceitar a expressão proposta no projecto do PSD.

O Sr. Presidente: - Para apresentar a proposta do PSD, tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: A proposta do PSD vai também no sentido de retirar da alínea d) do artigo 9.º da Constituição aspectos que não fazem sentido politicamente, embora, com certeza, tenham a sua razão histórica, que teve a ver com as condições de redacção deste preceito aquando da sua aprovação.
De facto, não nos parece, minimamente, que seja uma tarefa fundamental do Estado...

O Sr. Presidente: - Já não é a versão originária, Sr. Deputado!

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - De qualquer maneira, obedeceu, com certeza, a circunstâncias políticas da altura em que foi revista.

O Sr. Presidente: - Digamos que é já uma versão soft da versão originária, mais radical.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - O problema da igualdade, tal como é colocado num Estado de direito democrático, que nós somos hoje em dia, é claramente o da igualdade de oportunidades. Penso que isto reconhecido por todos os partidos democráticos.

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Por outro lado, a parte final do artigo, que também propomos retirar, que tem a ver com a "transformação e modernização das estruturas económicas e sociais", inculca, desde logo, a ideia de que as estruturas económicas e sociais estão erradas. Se, eventualmente, pode ter sido assim num determinado momento histórico, pensamos que, hoje em dia, não só isso não é uma verdade em si mesmo como, eventualmente, não me parece minimamente que essa seja uma tarefa fundamental do Estado.
A transformação e a modernização das estruturas económicas serão, com certeza, incumbências do Estado, mas, talvez muito mais do que do Estado, são também incumbências fundamentais da sociedade, nomeadamente a transformação das estruturas económicas, e, portanto, parece-nos que é uma terminologia e um objectivo que já estão deslocados no tempo, 22 anos depois da revolução democrática em Portugal. Por isso, pensamos que já não faz sentido a Constituição erigir como tarefa fundamental do Estado a transformação das estruturas económicas e sociais portuguesas.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, estão em discussão as propostas apresentadas em relação à alínea d), incluindo a de Os Verdes.
Como viram, o PP apresentou a sua proposta e admitiu, desde logo, incorporar também a proposta do PSD, na parte em que existe divergência entre as duas, isto é, na parte em que o PSD, em vez de eliminar, substitui "igualdade real entre os portugueses" pela expressão "igualdade de oportunidades".
Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: O Partido Socialista não propôs qualquer alteração à alínea d) porque tem o entendimento de que o objectivo de promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses é um objectivo que continua a ser virtuoso e que deve ser lido não como igualdade de resultados, o que seria uma leitura menorizante do sentido mais profundo do texto constitucional, mas, sim, como uma igualdade real, não apenas jurídica, não formal.
É evidente que o ideário socialista democrático aponta para a igualdade de oportunidades e quando falamos em igualdade real é no sentido de igualdade de oportunidades, vincando esta ideia do Estado social de não distinção das discriminações.
Temos a ideia de que, na luta contra as desigualdades, estão do mesmo lado os que defendem a igualdade das oportunidades e a igualdade dos resultados, mas, em nosso entender, esta igualdade real é antinómica da igualdade formal, apenas jurídica, e por isso implica uma intervenção de combate às discriminações por parte do Estado, que é, naturalmente, uma referência básica do Estado social e da ideia matricial da solidariedade que está contida aqui neste propósito de igualdade real.
A igualdade real não é uma igualização absoluta, não é uma igualitarização, não é uma igualdade de resultados, é antes o propósito de uma igualdade não estritamente jurídica. Por isso, o Estado tem de ter, como seu propósito, nesta igualdade real, o mínimo de garantia de protecção das necessidades essenciais a todos os cidadãos.
É este o sentido da igualdade real, que é o propósito do nosso texto constitucional. Por isso, esta ideia da igualdade real implica duas ou três outras ideias, que são complementares dela e que não se esgotam na igualdade de oportunidades. A ideia da igualdade real implica a igualdade de oportunidades, implica um objectivo de coesão social do Estado e um objectivo de responsabilidade partilhada e solidária do próprio Estado e dos cidadãos. Portanto, a nossa leitura não é redutora, amputadora, totalitarizante, de igualitarismo fácil e de igualitarismo e de igualdade de resultados, tem outro objectivo.
Naturalmente, com este propósito, melhor se compreenderá o método e as soluções mediadoras que levam a esta garantia de condições mínimas de igualdade ou de não discriminação, ou até, se quiserem, em alguns casos, de discriminação positiva, que é a transformação e a modernização das estruturas económicas e sociais.
É este o propósito do artigo, é este o seu sentido e é esta a sua razão de ser, daí consideramos que o artigo incorpora algumas das preocupações e o seu ataque só pode ser feito numa base que limite o seu alcance mais profundo e, digamos, uma interpretação actualista do mesmo artigo.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, era apenas para fazer uma pergunta ao Sr. Deputado Alberto Martins.
Para já, não vou comentar aquilo que ele referiu, porque foi suficientemente claro, mas nada disse quanto à outra parte da proposta do Partido Social Democrata, ou seja, quanto à retirada da parte final, que ainda ganha mais actualidade depois daquilo que ele acabou de dizer.
Se o conceito que o Partido Socialista faz desta igualdade é tão abrangente assim, o facto de manter-se a expressão "mediante a transformação e a modernização das estruturas económicas e sociais" inculca, de facto, a ideia, uma vez que isso seria uma tarefa fundamental do Estado na economia deste artigo, de um intervencionismo desmesurado da parte do Estado ao nível das estruturas económicas, sistematicamente, para fazer prevalecer um determinado modelo de sociedade, que, eventualmente, será o modelo, conforme explicado, que o Partido Socialista entende que deve presidir às relações de igualdade entre os portugueses, e avaliza, legitima e impõe mesmo como tarefa fundamental uma intervenção sistemática por parte do Estado, com um objectivo claro de impor o modelo de sociedade socialista na sociedade portuguesa.
Uma vez que o Sr. Deputado Alberto Martins não se referiu a essa parte final da proposta do PSD, gostava que ele comentasse se o Partido Socialista entende manter também essa parte final, especialmente dado o contexto e a leitura que deu à questão da igualdade.

O Sr. Presidente: - Para responder, tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Sr. Presidente, Sr. Deputado Luís Marques Guedes, evidentemente que o Partido Socialista está, desde a primeira hora, disponível para encontrar as melhores soluções, ainda que terminológicas. Neste sentido, a expressão "transformação e modernização das estruturas económicas e sociais" não pode ser lida como manutenção ou defesa de uma ideia, que nunca foi nossa, de intervenção sistemática, excedentária, contínua e totalizante do Estado na vida social. Significa, sim, que, não sendo nosso propósito defender a ideia de um Estado mínimo, há a necessidade e a defesa da ideia de um Estado minimamente necessário para salvaguardar os direitos humanos em toda a sua

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plenitude, e alguns deles, como o Sr. Deputado bem sabe, dependem de uma intervenção positiva do Estado.
É nesse sentido que a salvaguarda de alguns dos direitos fundamentais e da igualdade, não apenas jurídica, implica acções de discriminação do Estado, que, a nosso ver, têm como ponto de partida, residual e central garantir a cada um dos cidadãos os meios necessários à salvaguarda das suas necessidades essenciais, desde logo de sobrevivência. Portanto, nesse sentido, há uma intervenção positiva do Estado. Ora, isso é feito mediante esta intervenção no plano económico e social.
Mas trata-se de uma intervenção naturalmente residual - com o contexto e com a conformação que lhe disse -, precisamente para salvaguardar a tal igualdade substancial, que é uma igualdade de oportunidades e não uma igualdade totalizante ou uma igualitarização absoluta, ou mesmo não absoluta.
De qualquer modo, estamos disponíveis para encontrar uma solução que vá ao encontro do espírito destas tarefas fundamentais do Estado, em relação às quais penso haver um grande consenso constitucional entre todos os grupos parlamentares.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Sá.

O Sr. Luís Sá (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Creio que o fundamental está dito e indiciado o destino das propostas.
Quero apenas chamar a atenção para o facto de esta polémica em torno da igualdade de oportunidades e da igualdade real ter tido, designadamente num período da história portuguesa - eu diria, na fase final do regime anterior -, um amplo curso. Recordo que a expressão igualdade de oportunidades foi amplamente utilizada pelo Ministro da Educação de então, Veiga Simão.
Houve um problema que esteve sempre em cima da mesa e que, independentemente de quaisquer leituras da proposta do PSD, continua a ser actual no plano da educação como em muitos outros, que é este: como é que, sem o mínimo de igualdade real, pode chegar-se à igualdade de oportunidades? Isto é, a igualdade de oportunidades pode, como é natural, gerar desigualdades no seu termo, mas se não houver o mínimo de igualdade real à partida, não há efectivamente igualdade de oportunidades.
Por exemplo, estudos dos sociólogos da educação mostram claramente que, independentemente dos génios, que sempre existem, um determinado nível de satisfação e de acesso prévio a direitos económicos, sociais e culturais é uma condição do êxito escolar, quer das crianças, quer de outros níveis de ensino. Este é um exemplo significativo, como poderiam existir outros.
Portanto, nesta matéria, o problema não está na ideia de um igualitarismo; daqui não resulta que todos devem ganharem o mesmo, não se trata disso, mas de responsabilizar, designadamente o Estado e outros níveis de decisão, por garantir um mínimo que permita, inclusive, assegurar a igualdade de oportunidades, porque há uma conexão efectiva nesta matéria.
Por outro lado, resulta daqui a legitimação de discriminações positivas, designadamente em relação a determinados sectores da sociedade, que, através dessas discriminações positivas do Estado (fiscais e muitas outras), podem garantir direitos económicos, sociais e culturais que, de outra forma, nunca garantiriam, independentemente de poderem estar consagrados no texto constitucional ou em qualquer outro.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Cláudio Monteiro.

O Sr. Cláudio Monteiro (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Vou intervir na qualidade de subscritor do projecto de revisão constitucional n.º 8/VII, para evitar que aquilo que vou dizer seja assacado ao Grupo Parlamentar do Partido Socialista.
No essencial, tenho alguma simpatia pela proposta do PSD, embora tenha alguma reserva quanto à expressão "igualdade de oportunidades", pelas mesmas razões por que tenho reservas quanto à expressão "igualdade real entre os portugueses". Isto é, julgo dispensável a qualificação nesta sede, dado que esta tarefa fundamental do Estado de promoção da igualdade não deixa de ser, de certa forma, o contraponto do direito à igualdade que mais tarde vem a ser consagrado no artigo 13.º.
A consubstanciação do que é que esse direito à igualdade representa julgo que há-de fazer-se por força da interpretação do artigo 13.º e não por força da interpretação do artigo 9.º. Portanto, parece-me que introduzir um qualificativo no artigo 9.º pode, de alguma maneira, prejudicar ou criar obstáculos à correcta interpretação do artigo 13.º, em relação ao qual julgo que a doutrina é mais ou menos pacífica quanto a tratar-se não da igualdade formal mas da igualdade substancial, o que resolve, por um lado, o problema da expressão "igualdade real" e, de certa forma, também o da "igualdade de oportunidades" ou da querela entre a igualdade à partida e igualdade à chegada.
Por essa razão, sendo favorável à proposta do PSD, no seu essencial, julgo que mais valeria pôr um ponto a seguir a igualdade e falar em igualdade tout court, deixando o conteúdo dessa igualdade para a interpretação conjugada com o artigo 13.º.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Barbosa de Melo.

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: O texto da proposta do PSD é mais dúctil, mais moderno, do que o texto vigente, mas a sugestão do Deputado Cláudio Monteiro, no sentido de retirar a expressão "de oportunidades", é de ponderar. Porém, quero chamar a atenção para a importância da mudança deste tópico que estamos a referir.
Já foi mencionado haver várias igualdades: a igualdade à partida, a igualdade à chegada, a igualdade de oportunidades, que são três coisas diferentes. A igualdade à partida tem a ver com a cultura calvinista: cada qual recebe os seus talentos à partida e seja Deus, o Estado ou quem exercer as funções de providência, dá a cada qual os seus talentos. "Agora, governai-vos. Deus abençoa os seus. Os que enriquecerem são os beati possidentes, os que não...", etc., por ali adiante. É a visão calvinista que aparece, por exemplo, em juristas americanos e não só. Trata-se da ideia de que a igualdade o é à partida e que, depois, é a dinâmica da história e de cada qual que faz as coisas.
A igualdade final, de resultado, como dizia o Deputado Alberto Martins, é que é normalmente coberta pela expressão "igualdade real".
A igualdade de oportunidades é outra coisa, é uma igualdade permanente, exige uma aferição permanente em relação a cada qual. Uma pessoa da terceira idade tem direito à igualdade de oportunidades para ter um trabalho adequado, uma diversão adequada, etc. A expressão igualdade de oportunidades é muito mais rica e liberta de

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milenarismos ou de calvinismos do que qualquer das outras e é este o objectivo da proposta.
Eventualmente, constar apenas "igualdade" é uma sugestão a ponderar.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Sr. Presidente, apenas para uma nota muito breve depois desta intervenção do Sr. Deputado Barbosa de Melo.
O nosso objectivo é a igualdade de oportunidades. No nosso entender, esta igualdade real comporta e vive da igualdade de oportunidades mas estamos receptivos para encontrar a melhor solução. Esta ideia da igualdade de oportunidades é-nos simpática à partida, mas pensamos que esta norma tem um objectivo mais amplo, pois comporta a igualdade de oportunidades, a coesão social e a solidariedade e não pode ser lido em termos de uma igualdade de acordo com as concepções individualisto-liberais.
Trata-se da igualdade no Estado-social, o que implica obrigações para o Estado, como, aliás, foi referido. A ideia da igualdade pode ter várias leituras e respostas e a resposta do Estado-liberal é uma, enquanto que o Estado-providência tem obrigações específicas.
Portanto, o qualificativo da igualdade, não sendo uma questão absolutamente necessária no quadro da disposição desta alínea, tem um sentido próprio. Trata-se das obrigações do Estado-social para a realização da igualdade e do seu contributo para a igualdade, que é naturalmente, à partida, uma igualdade de oportunidades e nisso estamos de acordo.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, pretendo apenas deixar uma nota ao Deputado Alberto Martins precisando que o Partido Social Democrata não se coloca de fora nem a sua proposta pretende inverter aquilo que acabou de dizer. Entendemos é que, com toda a clareza, tudo aquilo que o Deputado Alberto Martins acabou de dizer está já contido, enquanto tarefa fundamental do Estado, na primeira parte desta alínea, quando se diz que são tarefas fundamentais do Estado (é preciso ler a Constituição com o valor que ela tem) a promoção do bem-estar e da qualidade de vida.
Com isto também respondi, de certa maneira, aquilo que o Deputado Luís Sá há pouco referiu, ou seja, há condições mínimas de capacidade dos cidadãos que têm de pré-existir para que a igualdade de oportunidades funcione, mas, do nosso ponto de vista, essas condições mínimas estão perfeitamente salvaguardadas quando se diz, na primeira parte da alínea d) do artigo 9.º, que é tarefa fundamental do Estado, o que é anterior à igualdade de oportunidades, a promoção do bem-estar e da qualidade de vida.
É evidente que a promoção do bem-estar e da qualidade de vida como tarefa fundamental do Estado não pode ser outra coisa que não as tarefas essencialmente sociais que visam dotar os cidadãos desse tal mínimo que lhes possa permitir, depois, "cavalgar" a igualdade de oportunidades e atingir os resultados, as metas e os objectivos a que cada um, individualmente, se propõe.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Pedi a palavra apenas para exarar uma nota sobre este preceito e as propostas pendentes e para vos comunicar uma impressão que senti enquanto a matéria era debatida.
Singularmente - provavelmente, é o resultado dos tempos históricos e das alterações que se verificaram -, o debate fez-se prescindindo de um olhar sobre as origens. Este, porém, permitir-nos-ia perceber quão distantes estamos do momento inicial e como essa distância, no fundo, foi consagrada e legitimada através das revisões constitucionais que pacificaram aquilo que, no início, foi polémico e que hoje não gera particular dissenso. Não por convergências espúrias mas por um processo histórico bastante complexo e interessante que conduziu à superação de algumas antinomias, a norma em debate não tem hoje aquilo que foi motivo de polémica.
O preceito foi alterado em 1989 (provavelmente, disso lembramo-nos todos bem) no sentido de eliminar a parte final que rezava, se bem se lembram, o seguinte: "(...) efectivação dos direitos económicos, sociais e culturais, mediante a transformação das estruturas económicas e sociais, designadamente a socialização dos principais meios de produção e abolir a exploração e a opressão do homem pelo homem".
Essa obra foi feita, Srs. Deputados, com alcance exacto que isso teve e com a hermenêutica que permite. No preceito foi mantida a ideia de uma transformação, de um princípio transformador, ou seja, o Estado não deve ser indiferente à ideia de transformação social. No entanto, a Constituição é clara quanto aos meios, aos métodos, aos ritmos e às formas através das quais essa transformação económica e social, que não é apenas coisa do Estado nem coisa que nele possa assentar exclusivamente, deve fazer-se. Não haverá nenhum elemento transformador contra a vontade livremente expressa dos cidadãos e não haverá nenhum caminhar para a igualdade que desemboque em igualitarismo contra os indivíduos ou em opressão dos indivíduos. Esta filosofia é sufragável por muitas famílias políticas.
Creio, portanto, que as obras que há a fazer neste preceito não têm o alcance que, provavelmente, alguns lhe poderiam emprestar noutras circunstâncias. Temos, portanto, disponibilidade e abertura para ponderar as questões que foram colocadas dentro do espírito que resultou das nossas conjuntas intervenções.
Era isto que gostava de relembrar Sr. Presidente. Não resisti a essa tentação, que também entendi como um dever.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sr.a Deputada Elisa Damião.

A Sr.a Elisa Damião (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Simpatizo com a proposta do Sr. Deputado Cláudio Monteiro, mas gostava de questionar o Sr. Presidente, nomeadamente na sua qualidade de eminente jurista, sobre se a retirada da adjectivação não torna inconstitucionais quaisquer medidas de acção positiva, nomeadamente a favor das mulheres, ou mesmo referentes à exclusão social.

O Sr. Presidente: - Creio que posso tranquilizá-la, Sr.a Deputada. Penso que a adopção daquela forma, quando muito, retiraria intensidade ao actual preceito. Porém, numa fórmula que dissesse "promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade dos portugueses", essa ideia de promoção daria continuidade à cobertura, porventura com menos intensidade, de medidas de positive action do Estado e de discriminação positiva.

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Srs. Deputados, penso que esta discussão, a partir de agora, não trará muito de novo. As propostas foram feitas e os problemas estão identificados. O Partido Socialista parece manifestar alguma abertura a uma certa modelação do texto, tal como se encontra, mas podemos ficar por aqui.
Antes, porém, de passarmos à alínea e) do artigo 9.º, importa referir a proposta de Os Verdes para a alínea d), que acrescenta aos direitos económicos, sociais e culturais os ambientais.
Na Constituição só existem as três primeiras categorias, pois os direitos ambientais estão conglobados nos direitos económicos, sociais e culturais, pelo que este acréscimo da palavra "ambientais" acarretaria a introdução de uma categoria até agora não existente na Lei Fundamental.
Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Para além disso, Sr. Presidente, se me permite, entendemos não considerar como uma melhoria útil essa proposta de Os Verdes pela leitura conjugada da alínea d) com a alínea e) do artigo 9.º. Recordo que na alínea d) tem a ver, fundamentalmente, com as questões económicas e sociais e não propriamente com a trilogia que o Sr. Presidente agora referiu, embora se refiram também as culturais, enquanto que a alínea e), particularmente, toca no património cultural, onde integra também expressamente a defesa da natureza e do ambiente e a preservação dos recursos naturais.
Não querendo fazer interpretação autêntica para a qual não estou autorizado, parece-me que as preocupações dos proponentes ficam, do ponto de vista do Partido Social Democrata, actualmente salvaguardadas pela redacção da alínea e) e, nesse sentido, não haverá grande interesse no acrescento do termo "ambientais" no contexto da alínea d).

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Sá.

O Sr. Luís Sá (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Naturalmente que a proposta não poderá ser aceite sem maioria para tal, mas considero que não é possível promover o bem-estar e, sobretudo, a qualidade de vida, que é o que está em causa neste artigo, sem promover simultaneamente os direitos ambientais. No entanto, se a proposta não for aceite, é claro estar aqui implícito que o Estado português terá, exactamente para alcançar este objectivo, de promover direitos ambientais.
Independentemente de constar da alínea e), aquilo que está aqui considerado é a ideia de promover direitos económicos, sociais e culturais como instrumento para alcançar o objectivo do bem-estar e da qualidade de vida. A questão que se coloca é a de saber se se pode atingir este objectivo concreto sem garantir também direitos ambientais.
Recordo que as quatro primeiras alíneas constavam do texto inicial da Constituição, que as alíneas e) e f) foram acrescentadas ulteriormente e que, quando a alínea d) foi redigida, a questão dos direitos ambientais e o próprio problema do ambiente não tinham a acuidade e a incidência que tem hoje. Portanto, creio que as preocupações desta proposta têm razão de ser. Se não for acolhida, quero deixar muito claro que entendemos que os direitos ambientais, que efectivamente estão referidos noutros pontos da Constituição bem como na alínea e), terão de conduzir a este objectivo de promover o bem-estar e a qualidade de vida.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Luís Sá, se me é permitido insistir, os direitos ambientais estão actualmente consagrados, no essencial, no artigo 66.º da Constituição, que faz parte do capítulo dos direitos sociais. Portanto, a autonomização de uma nova categoria de direitos ambientais nesta sede implicaria uma extractação da categoria que, hoje, na conceptologia constitucional, está inserida nos direitos sociais.
Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Pensamos que não tem virtualidades uma nova categorização de direitos de uma nova geração, que ainda estão, em grande medida, por definir quanto ao seu objectivo, amplitude, oponibilidade, sanção. Por isso, embora adiramos à ideia de um ambiente de qualidade, pensamos que as nossas propostas e o próprio artigo 66.º matricial da Constituição têm uma abrangência suficientemente significativa para dispensarmos esta designação, que não corresponde ao catálogo dos direitos tal como estão cristalizados e, aliás, reconhecidos nas mais modernas Constituições.
Os direitos da terceira e da quarta geração, que são uma excelente matéria de discussão filosófica, ainda não estão cristalizados nos seus objectivos, nos seus contornos, na sua precisão, e este seria um deles. Desta forma, penso que não teria virtualidades a sua inclusão, sendo certo que a ideia matricial de um ambiente de qualidade consta do no nosso texto constitucional.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Sá.

O Sr. Luís Sá (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Naturalmente que adiro inteiramente à ideia da inclusão, por parte do texto constitucional, dos direitos ambientais como parte dos direitos sociais e creio que isso não oferece qualquer dúvida.
A questão que se coloca é a de saber se a dimensão dos problemas colocados ao país e à Humanidade no domínio do ambiente e a cada vez maior amplitude que assumiu o direito ambiental não justificará uma autonomização em relação aos outros direitos sociais. Esta é a questão que está efectivamente aqui colocada. Em todo o caso, creio que não vale a pena prolongar a discussão, pois é evidente o destino da proposta.

O Sr. Presidente: - Aliás, esse lugar especial está na alínea e), como o Sr. Deputado Luís Marques Guedes bem frisou.
Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Ferreira.

O Sr. Jorge Ferreira (CDS-PP): - Nada tenho a acrescentar, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vamos passar à alínea e) do artigo 9.º, para a qual Os Verdes propõem uma alteração. Já agora, dentro das iniciativas extra-parlamentares, chamo a atenção para a proposta do GEOTA, que é uma associação ambiental, que, para a alínea e), sugere a seguinte redacção: "Proteger os fundamentos naturais da vida, a natureza e o ambiente, independentemente da sua utilidade imediata para a humanidade, e assegurar um correcto ordenamento do território assumindo a responsabilidade perante as futuras gerações".
A proposta de Os Verdes consiste no acréscimo, na parte final da alínea, da expressão "(...) salvaguardando os direitos das gerações vindouras", no que coincide ou converge com a proposta do GEOTA. Ambas estão à discussão.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

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O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Apresentámos, em sede do artigo 66.º, uma proposta que visa, entre outras coisas, incorporar no texto constitucional o conceito de desenvolvimento sustentável. É para essa sede que remetemos a inserção de benfeitorias no texto constitucional, parecendo-nos que o artigo 9.º, alínea e), tem uma feição e um conteúdo larguissimamente abrangentes. Seria sempre possível saturá-lo de metalinguagem de carácter ou de pendor ecológico nas várias correntes possíveis existentes no panorama político português e mundial, incluindo incorporar a metalinguagem importada dos trabalhos da Conferência do Rio e de outras importantes conglomerações de reflexão sobre o futuro do ambiente, mas a verdade é que a doutrina que corresponde à hermenêutica correcta, de resto, e não particularmente polémica, nascida em torno do artigo 9.º, alínea e), tem virtualidades que não nos parecem exigir imperativamente correcções.
A alusão à protecção dos fundamentos naturais da vida ou o conceito que sugere o GEOTA, por exemplo, de medidas em que a protecção se deve fazer independentemente da utilidade imediata para a Humanidade - em certos casos, como se sabe, certas medidas são contrárias ao utilitarismo em qualquer dimensão, seja a do imediatismo ou a da vantagem económica saturante mas lesiva a longo prazo -, são declarações de carácter sobretudo doutrinário, extremamente virtuosas em manifestos e em documentos de explanação política de carácter pedagógico, e diria o mesmo sobre a ideia da assunção de responsabilidades perante futuras gerações. São, porém, num texto jurídico-constitucional, suscitadoras de algum melindre.
Acrescentam algo, sem dúvida, à carga retórica, dão à Constituição um pendor favorável, reforçando uma leitura em que correntes de cunho fortissimamente ecológico se reconhecerão. Em todo o caso, a questão é saber se acrescentam técnico-juridicamente o valor do património constitucional, que é enorme, tal qual resulta do artigo 9.º, alínea e).
Pela nossa parte, não o propusemos. A ideia de uma retórica constitucional que se oponha ao normativismo constitucional com as características de operatividade, vinculatividade e eficácia prática relevante não parece acarretar uma enorme vantagem e está talvez um pouco ao arrepio da desejável escrita constitucional, tal qual ela deve ser encarada neste fim de século.
Estamos naturalmente abertos a todos os trabalhos de burilamento mas remetê-los-íamos de preferência para o artigo 66.º. Vejo que o Sr. Deputado Barbosa de Melo se reconhece profundamente nesta filosofia...

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, não é apenas o Deputado Barbosa de Melo, também o PSD se reconhece totalmente naquilo que o Deputado José Magalhães acabou de dizer, só que talvez com mais clareza. Aquilo que o Dr. José Magalhães não quis dizer com toda a clareza o PSD di-lo: de facto, o que pode ser útil e significativo em termos de discurso político ou de intervenção por parte das organizações ambientalistas, e com o que estamos todos de acordo, não nos parece minimamente que faça falta no nosso texto constitucional.
Para o PSD é evidente que tudo o que está na alínea e) nunca pode ser entendido fora do contexto de também salvaguardar os direitos das gerações vindouras, de resto, dentro daquela lógica de que todos somos inquilinos deste planeta, por ele passamos e outros ficarão nele, para também o aproveitarem. Isso está fora de causa, não passa de discurso, claramente, em termos de intervenção; tem a sua importância enquanto discurso mas, em termos de texto constitucional, não nos parece minimamente necessário fazer essa alteração, até porque, desde logo, isso poderia inculcar a ideia errada, que causaria a maior perplexidade, de que, porventura, o actual texto não iria nesse sentido. Do nosso ponto de vista, vai claramente, foi com esse espírito que foi feita essa alínea e) e é esse o espírito que o PSD entende dever manter-se, não sofrendo qualquer alteração, para que não haja aqui interpretações duvidosas ou perplexidades.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Cláudio Monteiro.

O Sr. Cláudio Monteiro (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Gostava de deixar duas notas, sendo a primeira para dizer que, mesmo que se quisesse - não é o caso, como já se viu das intervenções anteriores - introduzir alguma carga ambiental no artigo 9.º, era possível fazê-lo com maior cuidado técnico-jurídico, designadamente como faz a proposta do GEOTA, que evita usar a expressão "direito das gerações vindouras", o que iria introduzir, com certeza, um debate muito interessante na Teoria Geral do Direito acerca da titularidade de direitos não apenas antes da existência legal como antes da própria existência física dos supostos titulares desses direitos.

O Sr. José Magalhães (PS): - A proposta do GEOTA diz: "(...) assumindo a responsabilidade perante as futuras gerações".

O Sr. Cláudio Monteiro (PS): - Por isso mesmo é que, apesar de tudo, evita a asneira técnico-jurídica que resultaria da utilização da expressão "direitos das gerações vindouras", porque esses direitos não teriam titulares enquanto as gerações não existissem e seriam sempre progressivamente remetidos para o futuro, pois seriam sempre vindouras as gerações que viessem a seguir e eles nunca valeriam para aquelas que, eventualmente, estivessem a interpretar o texto constitucional.
Por outro lado, a propósito da alínea d), no projecto que subscrevo evitei fazer qualquer proposta de alteração ao artigo 9.º para evitar trazer à revisão constitucional algum debate que é essencialmente doutrinário e, de certa forma, misturar as questões.
Mas há uma questão que eu não gostaria de deixar passar em claro, que tem a ver com a circunstância de eu ter para mim que o artigo 9.º fala de tarefas fundamentais do Estado no sentido de Estado-colectividade e não no de Estado-administração. Assim, o artigo 9.º não é propriamente uma norma de competência do Estado enquanto pessoa colectiva de direito público, como muitas vezes se quer fazer crer, porque essas normas de competência hão-de estar noutros artigos da Constituição, e no caso concreto do artigo 9.º, alínea e), elas estão nos artigos 65.º e 66.º, e não seguramente aqui, a propósito da previsão dos direitos ambientais e da sua efectivação.
Quero deixar esta nota para que não se continue a interpretar este artigo como referindo-se ao Estado enquanto pessoa colectiva de direito público, como sendo uma fonte de competência ele próprio, o que não me parece que seja. Em minha opinião, a interpretação correcta deverá ser a de que aqui estamos a falar do Estado colectividade, pois estamos a falar do Estado no exercício dos seus múltiplos poderes, não apenas no do poder administrativo

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mas também, obviamente, no dos poderes legislativo, político e judicial.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Sá.

O Sr. Luís Sá (PCP): - SR. Presidente, Srs. Deputados: Há pouco a dizer nesta matéria, porque, em meu entender, a situação está definida, pelo que apenas queria sublinhar um ponto.
Creio que está implícita nas várias intervenções a ideia de que a política de ambiente deve ser de longo prazo, deve ter em conta os objectivos a longo prazo, aspecto que, a meu ver, é de sublinhar. Terá sido, aliás, independentemente de incorrecções, um dos objectivos dos subscritores.
Quero também sublinhar a disponibilidade que foi manifestada, e esperemos que se concretize na altura própria, para beneficiar o artigo 66.º, por forma a enriquecer a constituição ambiental nesta e noutra matéria, e aí esperamos naturalmente que a contenção, que é inteiramente explicável a propósito do artigo 9.º, já que é de tarefas fundamentais do Estado que estamos a falar, pelo que se compreende o espírito de síntese e de rigor, seja igualmente aplicável em relação a outras disposições que vamos discutir.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Trata-se da questão dos direitos e isto seria uma singularidade, pois são direitos sem titulares, sem oponibilidade e sem sanção. Portanto, naturalmente, não se poderiam sancionar as gerações passadas, a menos que se pudessem rasgar as cartas ou as fotografias de família.

O Sr. Presidente: - Creio que a discussão sobre esta norma põe em relevo uma coisa que vamos encontrar, suponho eu, recorrentemente ao longo da discussão sobretudo dos direitos económicos, sociais e culturais. É que, para as organizações de defesa de interesses sectoriais, as organisations, tenham ou não estatuto de partido, a Constituição devia conter muito mais do que contém sobre cada uma dessas áreas. Só seria satisfatória quando tivesse um código inteiro, um código ambiental, um código dos direitos das crianças, um código dos consumidores, um código disto, um código daquilo. Bom, a nossa tarefa é mediar, em termos de Constituição, os grandes valores em relação a cada tema.
Ora, esta é uma norma lapidar e não vejo qualquer necessidade de a alterar, de a enriquecer.
As propostas das organizações de interesse sectorial, por mais meritórias que sejam - e são-no sem dúvida, pois não podemos pôr em causa a seriedade e a intencionalidade que motivou tanto a proposta de Os Verdes como a do GEOTA -, correm muitas vezes o risco do preciosismo ou da enxúndia retórica, e eu penso que devemos ter esse cuidado em relação a uma série de propostas com que nos vamos confrontar.
Srs. Deputados, passamos à proposta de alteração relativa à alínea f), apresentada pelo CDS-PP.
Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Ferreira, para a apresentar.

O Sr. Jorge Ferreira (CDS-PP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Esta proposta visa, do nosso ponto de vista, harmonizar, em função da economia de todo o artigo, a redacção desta alínea f).
Na prática, o que fazemos é suprir a primeira expressão da alínea, "assegurar o ensino", uma vez que, em nosso entender, isto se trata de uma especificação, aliás única no artigo, de entre o catálogo dos direitos económicos, sociais e culturais. Obviamente, não se pretende menosprezar a importância do ensino, se quisermos, a importância do papel que o Estado deve ter neste sector, pretende-se apenas harmonizar e equilibrar a redacção desta alínea face à economia geral do artigo, uma vez que, mantendo a expressão "assegurar o ensino", se poderia legitimamente questionar sobre a presença de outras realidades, que estão contempladas nos direitos económicos, sociais e culturais, neste próprio artigo, o que nos parece desnecessário e inútil.
Assim, o que aqui propomos é apenas uma questão de rearrumação de texto e não propriamente de discordância quanto ao fundo da própria alínea.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Jorge Ferreira, a proposta do PP causa-me alguma perplexidade. Em meu entender, ela provoca uma deslocação clara do espaço normativo deste preceito, porque o actual artigo da Constituição refere-se sempre à língua portuguesa. Ele diz: "Assegurar o ensino e a valorização permanente, defender o uso e promover a difusão internacional da língua portuguesa".
Portanto, quando o PP propõe "assegurar a valorização permanente dos cidadãos", há uma clara deslocação do espaço normativo do preceito.

O Sr. Jorge Ferreira (CDS-PP): - Sr. Presidente, se me permite, acresce que contemplamos numa outra proposta, relativamente a outro artigo, a matéria de fundo relativa ao ensino da língua portuguesa.
Por isso, quer na economia deste artigo, quer na do nosso projecto, trata-se apenas de, repito, do nosso ponto de vista, reequilibrar a redacção, e não mais do que isso.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, o Sr. Deputado Jorge Ferreira já adiantou uma explicação, mas essa explicação só pode consolidar e reforçar o nosso juízo negativo em relação à proposta do PP. Atribuímos a proposta a um lapso.
Esta norma visou, visa e visará aquilo que diz, escorreitamente lida, ou seja, o ensino da língua portuguesa, a valorização permanente da língua portuguesa, a defesa do uso da língua portuguesa e a promoção da difusão internacional da língua portuguesa. Correctamente lida, é isto que a norma pretende. Foi, aliás, aprovada por unanimidade na revisão constitucional de 1989 e corresponde a um importante objectivo, hoje em dia redobradamente importante, face à competição mundial de línguas.
A criação da CPLP, recentemente realizada, é um marco institucional, mas a acção do Estado português e as tarefas fundamentais do Estado, no sentido adequado, neste domínio, são hoje mais importantes do que nunca. O Estado deve, aliás, utilizar todos os meios possíveis, modernos e adequados, para que a presença dessa língua se faça em todos os domínios, designadamente naqueles em que hoje se trava uma luta poderosíssima pela afirmação mundial, para que não sejamos excluídos designadamente nas novas línguas e novas metodologias de comunicação que marcarão a transição para o próximo século. É com este sentido, aliás renovado, que esta norma hoje em dia deve ser lida, para o ser correctamente.

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A ideia, como o Sr. Presidente, aliás, já adiantou, de inserir na arquitectura das tarefas fundamentais do Estado uma alusão à obrigação ou à tarefa fundamental de assegurar aquilo a que passaria a chamar-se "a valorização permanente do cidadão", criaria provavelmente um campo de reflexão e um novo conceito, o de saber o que é a "valorização permanente do cidadão", sendo certo que é tarefa fundamental do Estado garantir que ele se valorize civicamente, tendo e exercendo direitos, liberdades e garantias. É tarefa fundamental do Estado que ele viva num Estado de Direito democrático e beneficie disso, que é uma coisa extraordinariamente "valorizadora" da nossa "valorização permanente". É tarefa fundamental do Estado garantir a democracia política, que é essencial para que o cidadão "respire" e se valorize como homem pleno, como cidadão e não como criatura acéfala e desprovida de respiração democrática. E poderia seguir com a enunciação de outros domínios, respeitantes aos direitos económicos, sociais e culturais, igualmente cruciais, como respeitantes ao património cultural, que são componentes essenciais da valorização permanente do homem.
Creio, portanto, que, a não ser lapso, esta proposta é pior.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, como referiu, de facto, a leitura desta proposta do PP…
O PP não só toca no aspecto referente à língua, como referiu o Sr. Deputado Jorge Ferreira, como lhe acrescenta, e na parte referente à língua, digamos, do nosso ponto de vista, a alteração acaba por ser redutora relativamente ao actual texto constitucional, porque, embora cotejando com outra proposta do PP, que penso ser a do artigo 5.º-A, que já foi discutida nesta Comissão, perde-se de facto a valência da incumbência do Estado de assegurar o ensino e a valorização permanente da língua. Isto porque o artigo 5.º-A, proposto pelo Partido Popular, apenas refere a obrigatoriedade da subsistência do português enquanto língua oficial da República, o que, digamos, do nosso ponto de vista, é menos do que a incumbência de assegurar o ensino e a sua valorização permanente.
Neste sentido, parece-nos de facto que desta redacção resulta uma redução, que acredito não ser desejável, obviamente, mas uma redução daquela que é a intenção de salvaguarda, enquanto tarefa fundamental do Estado, do património linguístico da língua portuguesa, e tudo o que isso comporta. Nesse sentido, não concordamos com essa redução.
Por outro lado, também resulta desta proposta do PP um acrescento, sobre o qual também gostaríamos de nos pronunciar, que é uma questão que tem a ver, como o Sr. Presidente referiu, com a primeira parte, quando se introduziu aqui a ideia da valorização permanente dos cidadãos. É um conceito, como dizia o Dr. José Magalhães, que não está totalmente densificado ou de uma forma clara, mas que, do ponto de vista do PSD, é tratado não nesta sede, dos direitos fundamentais, mas, sim, nos capítulos que têm a ver com os direitos económicos, sociais e culturais, onde se inscreve a valorização dos trabalhadores, através da formação profissional, que está salvaguardada no texto constitucional, onde se tem o direito ao ensino, no artigo 73.º ou 74.º, salvo erro. Portanto, toda a valorização permanente dos cidadãos, penso eu, resulta dos direitos económicos, sociais e culturais e é, do ponto de vista do PSD, assunto para ser tratado noutra sede da Constituição que não a do artigo 9.º.
Assim, também neste aspecto, que resultaria da proposta do PP, que seria o acrescento desta incumbência fundamental do Estado, "assegurar a valorização permanente dos cidadãos", não nos parece que tenha um correcto cabimento nesta sede. É aspecto que, do nosso ponto de vista, está já tratado na sede dos direitos económicos, sociais e culturais, e se não estiver correctamente tratado, a haver uma aperfeiçoamento constitucional, deverá sê-lo nessa sede e não nesta.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Sá.

O Sr. Luís Sá (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Creio que o fundamental está dito, pelo que vou apenas referir que há, por um lado, indefinição do conceito de valorização permanente dos cidadãos, sem dúvida, e, por outro, o empobrecimento das responsabilidades do Estado em relação à língua portuguesa. Neste sentido, a proposta não tem o nosso apoio.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Ferreira.

O Sr. Jorge Ferreira (CDS-PP): - Sr. Presidente, comentando aquilo que o Sr. Deputado Luís Marques Guedes disse, devo dizer que as nossas propostas relativamente à questão da língua no texto constitucional não se resumem à do artigo 5.º, há também alterações aos artigo 74.º, n.º 2, e era mais a esta que me referia, quando dizia que da nossa proposta não resultava qualquer empobrecimento da representação constitucional do problema da língua, do que propriamente à do artigo 5.º, que tem outros objectivos que não são concretamente o do ensino, da valorização e da difusão da língua portuguesa.
Neste sentido, reafirmo que, do nosso ponto de vista, ficará melhor arrumada a problemática da língua na Constituição tal como a apresentámos no nosso projecto, nas várias disposições em que tocámos o problema. Se o entendimento é o de que a supressão da expressão é redutora e pode indiciar juízos que não estão manifestamente comportados na intenção da nossa proposta, esta não é obviamente uma questão essencial ou de princípio para nós, uma vez que sobre o fundo da questão não há qualquer divergência, pelo menos ouvindo as intervenções feitas.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, em complemento desta intervenção do Sr. Deputado Jorge Ferreira, devo dizer que, de facto, também tenho presente, ou tinha já presente aquando da minha intervenção, a proposta de alteração do PP, no que respeita à língua, em sede do artigo 74.º. Ora, do meu ponto de vista, o artigo 74.º continua a não esgotar aquilo que resulta actualmente do "assegurar o ensino e valorização permanente", constante na alínea f) do artigo 9.º.
A título de exemplo, recordo ao Deputado Jorge Ferreira que enquanto o artigo 74.º tem a ver com o sistema de ensino, que é um direito dos cidadãos portugueses, ministrado aos cidadãos portugueses ou aos filhos dos emigrantes, como também lá se toca, é interpretação minha que da economia do texto actual da alínea f) do artigo 9.º resulta também a obrigatoriedade que leva o Estado português a abrir escolas e a promover o ensino do português no estrangeiro para cidadãos que não sejam portugueses.

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Portanto, o artigo 74.º trata dos direitos dos cidadãos portugueses em matéria de ensino. A incumbência que resulta da alínea f) do artigo 9.º é uma tarefa do Estado que vai para além dos direitos dos próprios cidadãos portugueses, é a defesa, salvaguarda e valorização da língua portuguesa enquanto património, estendendo-se para além da comunidade portuguesa, para além da comunidade nacional, à comunidade lusófona e até a comunidades que não falam actualmente a língua portuguesa.
Há aqui uma intenção clara de incumbir o Estado português de projectar para o exterior a língua portuguesa, o que, do meu ponto de vista, vai para além daquilo que resulta já do artigo 74.º, que, de facto, tem um contexto diferente, tendo a ver com a salvaguarda dos direitos dos cidadãos portugueses em matéria de ensino, e nesse aspecto tem um alcance e um âmbito de aplicação diferenciado, do meu ponto de vista, daquele que resulta da actual redacção da alínea f) do artigo 9.º.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Ferreira.

O Sr. Jorge Ferreira (CDS-PP): - Sr. Presidente, quero apenas dizer que discordo deste entendimento do artigo 74.º, nomeadamente do seu n.º 2, uma vez que, a meu ver, a redacção do n.º 2, ao descrever os objectivos finalísticos de todo o ensino no país, é muito mais vasto do que a mera descrição de uma tarefa fundamental do Estado, englobando, portanto, não apenas o Estado como todos os agentes culturais ou educativos. Por isso, temos aqui apenas uma questão de divergência quanto à interpretação do alcance das normas e não quanto às matérias que são tuteladas por essas normas. Mas eu mantenho a nossa interpretação e agora não apenas em relação a esta alínea do artigo 9.º mas, lateral e secundariamente, também em relação ao artigo 74.º, n.º 2.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, creio que não vale a pena estarmos aqui a tergiversar sobre este ponto.
Penso que a actual alínea f) visa de facto uma obrigação objectiva do Estado de promoção do ensino e valorização permanente do português, como património colectivo dos portugueses, e que a proposta do PP - claramente sem intenção mas que objectivamente o faria - implicaria o afastamento deste ponto. Não seria, portanto, uma melhoria, pelo contrário, da Constituição.
Srs. Deputados, vou ter de me ausentar por breves minutos e, em virtude de não ter vice-presidentes, peço ao Sr. Deputado Barbosa de Melo que assuma, durante a minha ausência, a direcção dos trabalhos.

Neste momento, assumiu a presidência o Sr. Deputado Barbosa de Melo.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vamos prosseguir os nossos trabalhos.
Vamos passar à análise de duas propostas de aditamento de uma nova alínea, a alínea g), que, no fundo, são praticamente a mesma coisa, pelo que, a meu ver, podem ser discutidas em conjunto, uma do PS e outra do Sr. Deputado António Trindade e outros, do PS.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães, para apresentar a proposta.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: A proposta do PS visa colmatar aquilo que é, creio que sem enorme dúvida, uma lacuna do artigo 9.º, pois não há nele qualquer alusão específica à componente regional já existente na nossa organização política democrática.
A proposta apresentada pelo Sr. Deputado António Trindade e outros Deputados eleitos pelas regiões autónomas e a proposta do Grupo Parlamentar do PS, enquanto tal, têm sentido idêntico, convergente e apresentam pequeníssimas variações de redacção. A especial atenção à situação das chamadas regiões ultraperiféricas, no contexto moderno europeu, parece perfeitamente justificada e a consagração do conceito não nos oferece rebuço ou não nos parece ter inconvenientes, pelo contrário, e por isso a subscrevemos.
Creio que num artigo, cuja arquitectura começa na independência nacional, passa pelas liberdades e direitos fundamentais, pela valorização da democracia política, pela valorização do bem-estar e da modernidade, pela modernização das estruturas económicas e sociais, a protecção do património cultural e a valorização da língua portuguesa, é estranho que não haja uma alusão sequer a esta componente. É estranho porque esta é, designadamente na sua expressão "autonomias regionais", uma componente pacífica, que todos os partidos políticos portugueses reconhecem certamente, e, portanto, a construção disso ou a inserção desses valores como tarefa fundamental do Estado parece-nos natural.
Era isto, Sr. Presidente, que eu queria dizer em abono desta proposta, cujos méritos me parecem dispensar um auto-elogio em boca própria.

O Sr. Presidente (Barbosa de Melo): - Est vituperio, diz o brocardo latino.
Sendo assim, vamos dar início à discussão.
Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Sá.

O Sr. Luís Sá (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Não vou, naturalmente, colocar em causa o problema de fundo que aqui está presente. Creio que não há qualquer força política nem Sr. Deputado que não pretenda, por um lado, a igualdade das regiões, o desenvolvimento regional equilibrado, e, por outro, que não tenha presente no seu espírito a problemática específica dos Açores e da Madeira.
A questão não é saber se estes objectivos são pacíficos mas, sim, se é pacífico acrescentá-los aqui.
Há pouco, a propósito da questão ambiental, foi referido o problema de a proposta já constar no artigo 66.º. Ora, estes objectivos também constam efectivamente numa outra parte, nas incumbências prioritárias do Estado, consagradas no artigo 81.º, onde está exactamente a questão de assegurar "um crescimento equilibrado de todos os sectores e regiões e eliminar progressivamente as diferenças económicas e sociais entre a cidade e o campo". E penso que caberia aqui, eventualmente, uma maior acentuação dos problemas do desenvolvimento regional equilibrado.
Compreendendo os objectivos, a interrogação que fica é a de saber se os direitos económicos e sociais, a própria transformação e modernização das estruturas económicas e sociais, que constam do artigo 9.º e outras normas que constam, aliás, noutros pontos da Constituição, não asseguram este objectivo. Se aqui for entendido que não, isto é, se esta interrogação, que é uma interrogação sem resposta definitiva, não for considerada, se houver receptividade, chamo a atenção para um aspecto que se coloca face a esta redacção, quer a do PS, quer a do Sr. Deputado António Trindade e outros, que é o conceito de regiões ultraperiféricas.

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Este é um conceito importado, como é sabido, da terminologia comunitária e tem vindo a ser contestado, porque é um conceito que engloba simultaneamente, em termos que, a meu ver, não são prestigiantes para as autonomias regionais, por um lado, os Açores e a Madeira e as regiões espanholas e, por outro, os départements d'outre-mer franceses, isto é, se se quiser, os resquícios do império colonial.
Tem surgido a proposta, que me parece interessante, de procurar uma categoria específica, que é exactamente "as ilhas atlânticas" ou "as regiões comunitárias do Atlântico", e, nesse sentido, creio que não deveríamos ser nós a consagrar na Constituição portuguesa uma terminologia comunitária, que, segundo creio, tem sido adequadamente posta em causa, mesmo no seio das nossas regiões autónomas, não apenas nas regiões autónomas mas também nas relações das regiões autónomas com outras, como, por exemplo, as Canárias, etc.
Assim, fica aqui a interrogação sobre esta matéria, com a abertura para a considerar e esperando que aquilo que está presente nesta proposta não seja propriamente um "míssil" em período pré-eleitoral.

O Sr. Presidente (Barbosa de Melo): - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Deputados: Há aqui vários aspectos que, em minha opinião, devem merecer uma ponderada reflexão para podermos analisar esta proposta, que, no fundo, são duas com sentido semelhante.
Desde logo, vale a pena ponderar o âmbito que se pretende com este texto, porque, como sabemos, o Deputado José Magalhães, ao apresentar, em nome do PS, o conteúdo útil da proposta, restringiu-o - pareceu-me, pelo menos, ser essa a interpretação - às regiões autónomas. No entanto, não é essa a terminologia utilizada na proposta do PS.
O termo regiões, no contexto desta Constituição da República, é utilizado para várias realidades e se a intenção do PS é apenas garantir o desenvolvimento das regiões autónomas, é bom que isso seja dito dessa forma, porque, a não ser assim, o âmbito e o alcance da proposta socialista vai para além daquilo que foi expresso pelo Deputado José Magalhães.
Este é o primeiro aspecto e desde logo, quanto a isto, gostaria de deixar também, com toda a clareza, da parte do PSD, a seguinte nota: nesta discussão não pode ser esquecido que, naquilo que tem a ver com um tipo de regiões, que são as regiões administrativas, também previstas e reguladas nesta Constituição, conforme de resto já foi discutido nos trabalhos desta Comissão Eventual de Revisão, é defendido pelo PSD - e foi, nesta primeira fase, desde já aceite por uma maioria qualificada, penso até que praticamente pela totalidade dos partidos - que a criação das regiões e o seu desenvolvimento, necessariamente, porque são coisas que estão intimamente ligadas, fica condicionado à existência de uma pronúncia, de uma consulta popular.
Neste sentido, se for essa - e que fique aqui desde já claro - a intenção, embora não expressa na apresentação do Deputado José Magalhães, vemos com alguma dificuldade a inclusão deste normativo na Constituição. Obviamente, não podemos deixar, nesta fase, desde já, de chamar a atenção para a dificuldade que poderia resultar de uma redacção menos clara deste preceito quanto ao que ficará salvaguardado, mais à frente, na Constituição e que tem a ver com a necessidade da existência de um referendo e de uma consulta popular favorável a nível nacional para a implantação das regiões administrativas.
Esta é a primeira nota que gostaria que fosse clarificada, num segundo momento, pelo Partido Socialista e que tem a ver com o alcance desta norma.
Repito: a terminologia utilizada pelo PS é equívoca. Na sua exposição inicial, o Deputado José Magalhães apenas se referiu às autonomias, às regiões autónomas, mas o termo "regiões" é utilizado ao longo do texto constitucional para outro tipo de realidades, nomeadamente no artigo 81.º, que tem uma alínea d) onde se coloca como incumbência prioritária do Estado, no âmbito da organização económica, "Orientar o desenvolvimento económico e social no sentido do crescimento equilibrado de todos os sectores e regiões e eliminar progressivamente as diferenças económicas entre a cidade e o campo".
Embora o artigo 81.º esteja inscrito na organização económica e possa ser entendido como um aspecto parcelar do desenvolvimento das regiões, chamo a atenção para o facto de o desenvolvimento económico e social ser tratado expressamente pela alínea d) do artigo 81.º. Portanto, também questionamos, se for esse, genericamente, o intuito desta proposta do PS, a sua necessidade, exactamente pela existência desta alínea d) do artigo 81.º.
Mas, para além dela e cingindo-me agora ao âmbito de aplicação da interpretação inicial do Deputado José Magalhães, que tem a ver com as autonomias regionais, chamo a atenção para o artigo 231.º, o qual, do meu ponto de vista, pode colocar uma dificuldade a esta redacção proposta, se ela se relacionar apenas com as regiões autónomas.
O artigo 231.º diz claramente que o desenvolvimento das regiões autónomas é uma tarefa conjunta, como não podia deixar de ser por causa do próprio conceito de autonomia, dos órgãos de soberania da República e dos órgãos de governo próprio das regiões.
Assim, se vier a prevalecer a intenção de incluir no artigo 9.º - Tarefas fundamentais do Estado a alínea que se destina a promover o desenvolvimento das regiões, temos de analisar e reflectir, desde logo, se isso é desejável e, se assim for, temos de acautelar, necessariamente, a sua eventual compatibilização com o artigo 231.º, não ferindo minimamente aquilo que resulta claramente deste artigo e do próprio conceito e fundamento da autonomia, ou seja, a necessidade de cooperação e de partilha de responsabilidades entre os órgãos de soberania e os órgãos de governo próprio regional na promoção e na salvaguarda do desenvolvimento económico e social das regiões autónomas.
Em conclusão, deixo aqui, por um lado, um pedido de esclarecimento no sentido da clarificação do âmbito exacto das expressões utilizadas, porque a terminologia é equívoca. Por outro, nesta primeira intervenção, deixo também estas cautelas, que devem ser reflectidas por nós todos, de modo a, depois, no decurso da reflexão em conjunto, o PSD poder averiguar mais em definitivo se concorda ou não com um qualquer tipo de melhoria, que não esta, ou não com esta redacção seguramente, para o artigo 9.º.

O Sr. Presidente (Barbosa de Melo): - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Agradeço as observações feitas, que são bastante estimulantes, e gostaria de clarificar algumas coisas, sendo que a primeira tem a ver com o rigoroso âmbito do preceito.

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Ao aludir-se ao fenómeno regional, pretende-se fazê-lo nas diversas acepções. Destaca-se especialmente a autonomia regional, mas não se excluem outras dimensões do fenómeno regional, com matizes e graduações diversas, as quais estão consagradas e claramente definidas na Constituição em termos bastante precisos, os quais, de resto, serão objecto de aperfeiçoamentos e alterações.
Em segundo lugar, esses aperfeiçoamentos e alterações não implicarão qualquer dúvida quanto aos deveres e ao estatuto constitucional das regiões administrativas, uma vez que o PS, no debate que tivemos ocasião de fazer oportunamente, não está disponível para alterar o quadro constitucional no tocante ao artigo 238.º - que estatui que as autarquias locais são, no continente, as freguesias, os municípios e as regiões administrativas -, designadamente em relação à obrigatoriedade da instituição de regiões administrativas através de um procedimento que implica consulta popular directa e consultas indirectas de vários tipos, em termos que estão, entre nós, indiciariamente acordados ou deliberados.
O facto de se aludir, no artigo 9.º, como nova tarefa fundamental do Estado, à garantia do desenvolvimento das regiões insere-se harmoniosamente no quadro que desenhamos para os artigos específicos respeitantes às regiões administrativas e no quadro específico que desenhamos para as regiões autónomas, o qual também gostaríamos de ver aperfeiçoado. Este aditamento deve ser lido assim, no seu todo, e não desgarradamente.
Passo à terceira questão: tudo isto deve fazer-se, no tocante às regiões administrativas, sem qualquer prejuízo do quadro constitucional sobre as repartições orgânicas e os regimes de competências, tanto dos órgãos de soberania como dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas, ou seja, quanto ao perfil e arquitectura autonómica constante da Constituição e que também desejamos ver melhorada.
Seria aberrante - e gostaria de tranquilizar o Sr. Deputado Luís Marques Guedes, em especial - ver na inserção de uma alusão, no artigo 9.º, à necessidade de garantir o desenvolvimento das regiões, nos seus diversos sentidos, um pilar ou uma caução para uma desnaturação centralista daquilo que só pode fazer-se e organizar-se no contexto exacto das normas de competências e de repartição orgânica que a Constituição prevê e continuará a prever.
Parece-nos, no entanto, que a omissão de qualquer alusão a esta componente...

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - O artigo 81.º não é suficiente?!

O Sr. José Magalhães (PS): - Não, o artigo 81.º não é suficiente. Pelo facto de no artigo 81.º haver alusões a diversas dimensões contidas no artigo 9.º, elas não deixam de estar, na sua feição específica, no artigo 9.º, que tem um papel próprio.
Gostaria de tranquilizar o Sr. Deputado Luís Sá quanto à importação de concepções de carácter eurocentrista e exclusionista e, nesse sentido, radicalmente contrário ao desenvolvimento harmonioso das diversas partes do território da União, eventual e putativamente assinaláveis ou assacáveis à expressão "ultraperiféricas". Mas, se há sugestões de uma expressão que tenha uma "ganga" menos chocante para todos os espíritos que estão à volta desta Mesa e que exprima a ideia básica que esteve no centro das nossas preocupações, seremos os últimos a impedir essa obra de "marcenaria" constitucional virtuosa, sendo certo que não nos reconhecemos nos espírito horrendo e tremendo que o Sr. Deputado aqui trouxe e que entrou na Sala para sair rapidamente, porque nunca esteve na nossa cabeça e é terrível que esteja na do Sr. Deputado.

O Sr. Presidente (Barbosa de Melo): - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Sá.

O Sr. Luís Sá (PCP): - Sr. Presidente, quero clarificar apenas o seguinte: o que está em causa é a introdução, na Constituição, de um conceito que em Direito Comunitário, na política comunitária, em todas as instituições comunitárias, abrange simultaneamente as regiões atlânticas portuguesas, as espanholas e os départements d'outre-mer franceses. Este aspecto é contestado pela generalidade das regiões, quer de um país, quer de outro, e tem vindo a ser crescentemente contestado. Por exemplo, a generalidade dos Deputados de todos os partidos, no Parlamento Europeu, tem procurado alterar esta terminologia e é neste sentido, ou seja, é por esta terminologia ter uma determinada conotação, que é evidente que, creio, seria infeliz a introdução do termo "regiões ultraperiféricas" na Constituição, quando ele tem vindo a ser posto em causa cada vez mais junto das próprias instituições comunitárias.
Era apenas isto que queria clarificar. O resto, a alusão aos propósitos pré-eleitorais, é apenas uma piada, porque, obviamente, está longe do espírito do PS...

O Sr. Presidente (Barbosa de Melo): - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, fico descansadíssimo e renovo a nossa disponibilidade não só para exorcizar o fantasma como também para encontrar a expressão candidata ao sufrágio unânime da Comissão. Está aberto o concurso de ideias, foi nosso prazer, e dever, aliás, abri-lo, mas reconhecer-nos-emos no resultado perfeito das nossas elucubrações comuns, expurgadas de todos os fantasmas e de todas as concepções colidentes e originadoras de polémica indesejável, que não queremos, de maneira alguma, importar para a realidade constitucional portuguesa.

O Sr. Presidente (Barbosa de Melo): - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Sá.

O Sr. Luís Sá (PCP): - Sr. Presidente, quero apenas fazer uma pergunta ao Sr. Deputado José Magalhães.
O que é que esta norma traria de mais-valia, de acréscimo, em relação ao que está previsto no artigo 81.º, alínea d), e no artigo 231.º, eventualmente com as melhorias que vierem a ser introduzidas?

O Sr. José Magalhães (PS): - Traria a inserção nas tarefas fundamentais do Estado de uma alusão à tarefa fundamental de garantia do desenvolvimento das regiões.

O Sr. Luís Sá (PCP): - Mas com que consequências práticas?

O Sr. José Magalhães (PS): - Com as mesmas que têm as expressões "garantir a independência nacional", "garantir os direitos e liberdades fundamentais", "promover o bem-estar e a qualidade de vida" e as demais. Enfim, é uma aula prática e basilar, um pouco elementar, sobre o artigo 9.º.
Não é pequena vantagem!

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O Sr. Presidente (Barbosa de Melo): - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, feitos os esclarecimentos, que agradeço ao Sr. Deputado José Magalhães, e que são cautelas necessárias, porque, de facto, as questões têm de ser tratadas com a devida profundidade e seriedade, especialmente nesta sede de revisão constitucional, a questão que se coloca agora é a referida pelo Sr. Deputado Luís Sá.
Mas eu acrescentaria mais uma coisa, que já foi mencionada, a propósito de outras propostas de eventuais alterações a este artigo 9.º, pelo Sr. Presidente desta Comissão.
O artigo 9.º tem uma determinada unidade, uma determinada lógica e uma determinada coerência. Não vamos mexer num aspecto tão relevante e fundamental da Constituição - estamos a tratar da parte inicial, dos princípios gerais e fundamentais, neste caso, das tarefas fundamentais do Estado - só por mexer. É para todos evidente que é importantíssima a garantia do desenvolvimento das regiões, tal como o são a garantia do desenvolvimento das autarquias locais, a garantia do direito ao trabalho e muitas das disposições e dos direitos que resultam da Constituição da República. Do que se trata é de verificar se o artigo 9.º, tal e qual ele está actualmente redigido, tem alguma lacuna, se necessita de alguma correcção, ou se tem alguma desactualização que obrigue ou aconselhe esta Assembleia da República, investida em poderes de revisão constitucional, a debruçar-se sobre esses aspectos, a introduzir as correcções e a promover as revisões necessárias.
É aqui que, do ponto de vista do PSD, subsistem as maiores dúvidas sobre esta proposta do Partido Socialista. Com toda a franqueza, não vemos, como referi desde logo na minha primeira intervenção, quando solicitei os esclarecimentos necessários ao Partido Socialista, que o artigo 9.º esteja carecido deste melhoramento e que haja uma lacuna grave nesse artigo quanto ao desenvolvimento das regiões. Pelo contrário, o artigo 9.º insere-se nos princípios fundamentais.
As autarquias, onde se incluem as regiões, como foi referido pelo Deputado José Magalhães - e bem -, estão referidas já lá atrás, também nos princípios fundamentais, e é evidente que essa referência não se deve apenas à sua simples existência mas, sim, a um contexto de promoção do desenvolvimento, que vem depois claramente especificado e desenvolvido pelo texto constitucional, quer no artigo 81.º, alínea d), quer no artigo 231.º, no que se refere especificamente às regiões autónomas, como normas gerais, para além de todo um conjunto de normas que se desenvolve ao longo dos capítulos e que tem a ver directamente com as realidades regionais, sejam elas as regiões autónomas, as regiões em termos espaciais, propriamente ditas, ou as regiões administrativas.
Portanto, feito o esclarecimento inicial, que nos parece necessário, pois a redacção que nos é presente poderia deixar alguns equívocos, e ainda bem que isso ficou esclarecido, subsistem, do ponto de vista do PSD, muitas dúvidas quanto à utilidade prática da alteração de um artigo tão importante como o artigo 9.º da Constituição, para aí incluir uma matéria que, aparentemente, está tratada de uma forma correcta ao longo da Constituição.
No entanto, se não for esse o caso, à partida, parecer-nos-ia que, se houver alguns acrescentos a fazer, estes deveriam ser feitos em sede do desenvolvimento subsequente dos capítulos da Constituição. Até agora não estamos ainda convencidos de que seja necessário fazê-los em sede do artigo 9.º.
De facto, parece-nos que falta aqui um argumento decisivo para uma alteração a um artigo tão importante como este.

O Sr. Presidente (Barbosa de Melo): - Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Sr. Presidente, quero apenas deixar uma nota atinente às clarificações que o meu colega José Magalhães já fez a respeito dos nossos propósitos.
Sem prejuízo da terminologia, que, já vimos, é susceptível de ser melhorada com os contributos que a Comissão certamente alcançará, quero deixar vincada uma ideia que me parece ser decisiva e é uma tarefa fundamental do Estado. É tarefa fundamental do Estado não só garantir a solidariedade entre os cidadãos, é também, seguramente, garantir a solidariedade entre as diversas parcelas do território nacional, em termos da garantia dessa solidariedade e coesão social entre todas as parcelas do território nacional.
Daí esta ideia matricial da solidariedade interterritorial, que apesar de não constar nas tarefas fundamentais do Estado, sem prejuízo da sua arrumação em termos constitucionais, constitui uma necessidade e uma tarefa central do Estado. Por isso, surge este acrescento, que, a nosso ver, é um acrescento moderno. Hoje, a ideia da solidariedade não tem a ver apenas com as pessoas mas também com os territórios onde vivem as pessoas.
Portanto, a ideia da solidariedade interterritorial e da coesão social entre as diversas parcelas não está aqui e, a nosso ver, constitui um valor acrescentado prevê-la, sem prejuízo de, ao referirmo-nos às regiões, termos em conta, deixando de lado o aspecto terminológico, como já disse o meu colega José Magalhães, que nos queremos referir às que estão tratadas na Constituição: as regiões autónomas e, naturalmente, as regiões administrativas.

O Sr. Presidente (Barbosa de Melo): - Suponho que está esgotada a discussão deste artigo, pelo que apenas me compete fazer um pequeno balanço final.
A questão que aqui discutimos é a de saber se o artigo 9.º tem uma lacuna e ficou provado que não há lacuna constitucional nesta matéria. Há um artigo, que foi logo invocado na primeira intervenção pelo Sr. Deputado Luís Sá e, depois, continuamente repisado, onde se fala do equilíbrio no desenvolvimento económico e social de todo o território.
A outra questão que ficou também em aberto foi o conceito de regiões periféricas ou ultraperiféricas. Tratava-se, na aparência, de um conceito moderno, mas as modernidades, às vezes, também têm os seus percalços e, pelos vistos, há um percalço na cultura europeia a este respeito.
Assim, o fantasma das dúvidas a respeito da utilidade desta transformação não ficou exorcizado. Mas, na segunda leitura, ficá-lo-á, seguramente.

O Sr. Vital Moreira (PS): - Sr. Presidente, para encerrarmos a discussão do artigo 9.º, falta apenas discutir a proposta de aditamento apresentada por Os Verdes e já agora pedia-lhe que concluísse a reunião.

O Sr. Presidente (Barbosa de Melo): - Uma vez que não está presente qualquer das Sr.as Deputadas de Os Verdes, sugiro que seja a Sr.ª Deputada Elisa Damião a apresentar esta proposta, pois trata-se de uma pessoa particularmente ligada a estes problemas.

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A Sr.ª Elisa Damião (PS): - Posso usar da palavra, mas não propriamente para apresentar a proposta.

O Sr. Presidente (Barbosa de Melo): - Então, a Sr.ª Deputada Elisa Damião vai fazer a primeira intervenção sobre a matéria.

A Sr.ª Elisa Damião (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Nesta primeira intervenção quero apenas dizer que a proposta põe em causa uma virtude fundamental: o direito à diferença. De algum modo, reduz a alínea d) do artigo 9.º, que enuncia as desigualdades que afectam as mulheres em particular e que estão aqui perfeitamente expressas. Não me parece oportuno incluir neste artigo uma norma que não tem sentido, uma vez que as desigualdades que interessa referir são de cariz económico, social e cultural. As outras são bem-vindas.

O Sr. Presidente (Barbosa de Melo): - Suponho que foi de bom conselho dar a palavra à Sr.ª Deputada Elisa Damião.
Tem a palavra a Sr.ª Deputada Maria Eduarda Azevedo.

A Sr.ª Maria Eduarda Azevedo (PSD): - Sr. Presidente e Srs. Deputados, afigura-se-me que esta promoção da igualdade entre mulheres e homens, aqui proposta por Os Verdes, deverá ser inserida mais adiante, ao nível do princípio da igualdade, e não propriamente neste artigo 9.º. Assim, deixo a sugestão de reportarmos para a análise do artigo 13.º esta questão, que terá muita pertinência, e na altura teremos oportunidade de tecer considerações quanto a ela, pois, em minha opinião, a sua inserção sistemática ao nível do artigo 9.º carece de sentido.

O Sr. Presidente (Barbosa de Melo): - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente e Srs. Deputados, concordo com o que foi dito pelas duas Sr.as Deputadas que falaram anteriormente.
Quero apenas fazer uma ligação com a discussão anterior sobre a alínea g). Independentemente das questões substantivas, também me parece de muito duvidosa utilidade a alteração do artigo 9.º com este conteúdo. Repito que acrescentar coisas deste tipo - e daí as nossas dúvidas quanto à proposta do PS a respeito da alínea g) - inculcaria sempre a ideia de que ou se trata de matérias que não estão devidamente acauteladas neste momento ou, em oposição a isso, há um privilegiar claro destas subintenções dentro do espaço mais alargado da promoção do desenvolvimento harmonioso de todo o território, que resulta do texto constitucional.
Já chamei a atenção para este aspecto e reitero: porquê as regiões e não, por exemplo, os municípios, que também são autarquias? Por que razão o artigo 9.º iria falar expressamente no desenvolvimento das regiões, deixando de fora, por exemplo, o desenvolvimento dos municípios?
Quanto a este aspecto da promoção da igualdade entre homens e mulheres, não quero deixar de referir que há outros tipos de igualdades entre outros grupos humanos que, do nosso ponto de vista, devem merecer igual prioridade de tratamento nas tarefas fundamentais do Estado.
Como disse a Sr.ª Deputada, quanto à alínea d), ao falar na promoção do bem-estar, da qualidade de vida e da igualdade, qualquer que venha a ser a formulação final, já ficou aqui acordado entre todos que a lógica da igualdade como tarefa fundamental do Estado tem de repousar neste artigo 9.º, pelo que nos parece de duvidosa utilidade individualizar numa alínea uma determinada sub-realidade dessa igualdade.

O Sr. Presidente (Barbosa de Melo): - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Sá.

O Sr. Luís Sá (PCP): - Sr. Presidente, creio que há uma opinião dominante fixada, em todo o caso, sublinho a concordância geral no sentido da necessidade de garantir os direitos das mulheres e o entendimento de que, em particular, a alínea d) compreende como uma das preocupações fundamentais exactamente a ideia de igualdade real entre homens e mulheres.
Também o princípio da igualdade, no artigo 13.º, n.º 2, refere especificamente a igualdade quanto ao sexo, havendo ainda normas específicas, como a do artigo 68.º, sobre a protecção das mulheres trabalhadoras em relação ao parto.
Assim, em minha opinião, a rejeição desta proposta de Os Verdes não deve ser entendida como uma indisponibilidade por parte da Comissão de enriquecer o texto constitucional nos lugares adequados nesta matéria.

O Sr. Presidente (Barbosa de Melo): - Não havendo mais inscrições, dou por encerrado o debate da alínea g) proposta por Os Verdes.
Srs. Deputados, vamos suspender os nossos trabalhos, para os retomarmos às 15 horas.
Está suspensa a reunião.

Eram 12 horas e 30 minutos.

Entretanto, reassumiu a presidência o Sr. Presidente, Vital Moreira.

O Sr. Presidente: - Está reaberta a reunião.

Eram 15 horas e 25 minutos.

Srs. Deputados, antes de mais, quero informar que falei com o Sr. Presidente da Assembleia da República e ficou agendada a audiência dos peticionários para o próximo dia 12, na Sala do Senado. O Sr. Presidente da Assembleia da República também foi de opinião de que esta seria a melhor solução.
Invocando o princípio da igualdade no exercício de direitos políticos, coloquei-lhe a questão dos peticionários que moram fora de Lisboa. Concordámos em que eu, como Presidente desta Comissão, pediria ao Presidente da Assembleia da República que a Assembleia reembolsasse os interessados dos encargos de transporte para estarem presentes nesta audiência pública, pelo que as cartas a convidar os interessados para esta audiência seguirão ainda hoje, se possível.
Ficou também esclarecida a questão do aditamento ao projecto de revisão constitucional do CDS-PP. Na verdade, concluiu-se que, tendo sido tudo despachado regularmente, não foi executada a ordem de publicação e que os serviços já se tinham "penitenciado" junto do Presidente da Assembleia da República. Assim, o Sr. Presidente despachou no sentido de ser imediatamente feita a publicação que atempadamente o não foi.
Entretanto, como tenho na minha posse o documento original, vou providenciar no sentido de ser imediatamente fotocopiado e distribuído aos membros desta Comissão o

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referido aditamento ao projecto de revisão constitucional do Partido Popular.
Srs. Deputados, vamos retomar os nossos trabalhos no artigo 10.º - Sufrágio universal e partidos políticos.
Em relação ao n.º 1, existem propostas de alteração subscritas pelo PP e pelo PSD. Como as propostas são convergentes e não estando presente o PP, o PSD defenderá a sua proposta e, com isso, fica também defendida a do PP.
Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Fica defendida nas palavras do Sr. Presidente, porque, pela minha parte,...

O Sr. Presidente: - Na medida em que é convergente.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Mas não sei se as motivações que levam o Partido Popular a apresentar esta alteração serão as mesmas que as nossas ou se serão diferentes. Presumo que não, mas não posso falar por ele.
Pela parte do PSD, a única alteração que propomos é a de acrescentar, no n.º 1, onde se diz quais são os meios de exercício do poder político pelo povo, o referendo.
De facto, o PSD entende que, depois de já consagrado o referendo em revisão anterior, mas fundamentalmente com o vasto aprofundamento que, pelo menos no projecto de revisão do PSD, nos aspectos em que é comum com os de outros partidos políticos, se faz também a este instituto nos actuais projectos de revisão constitucional, entende que, repito, de facto, faz falta neste artigo situar-se, à parte das questões que já cá estão, o referendo como um dos meios de exercício do poder político por parte do povo. No fundo, quanto ao n.º1, a proposta tem apenas esta intenção e este sentido.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, está em discussão a proposta de alteração do PSD, coincidente com outra do Partido Popular, no sentido de o n.º 1 do artigo 10.º passar a dizer: "O povo exerce o poder político através de sufrágio universal, igual, directo, secreto e periódico, do referendo e demais formas previstas na Constituição". A proposta do CDS-PP só difere na expressão "bem como através do referendo". Independentemente da questão verbal, o sentido é o mesmo.
Está em discussão.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, a proposta em discussão merece-nos simpatia, pelo que não vale a pena manifestar o apreço com abundância excessiva de palavras.
Fica registada a nossa disponibilidade. Trata-se de completar aquilo que já tem expressão na Constituição e vazar no sítio próprio aquilo que já decorria, de resto, do texto, mas com uma explicitação, que é uma clarificação, sem entorse de conteúdo.

O Sr. Presidente: - Exposta a opinião do PS, tem a palavra o Sr. Deputado Luís Sá.

O Sr. Luís Sá (PCP): - Sr. Presidente e Srs. Deputados, a questão que se coloca nesta matéria é a seguinte: recordo-me que, quando esta questão foi discutida na interrompida IV Comissão de Revisão Constitucional, houve uma proposta do Sr. Presidente da Comissão para a questão ser examinada depois de ser revisto o regime do referendo. E, na altura, não se tratava apenas da revisão do artigo 118.º, ao qual já demos uma primeira leitura, mas também do referendo regional e das consultas populares locais, que, adianto, nos termos em que estão actualmente consagradas, como, aliás, a prática bem o prova, inviabilizam praticamente a realização de referendos.
Na primeira leitura do artigo 118.º, como é sabido, foi estabelecido um regime, que, sem dúvida alguma, alarga as possibilidades do referendo, mas em termos que consideramos restritos. Portanto, a abertura para consagrar o recurso ao referendo como uma das formas de exercício do poder político é, naturalmente, óbvia. Simplesmente, chamaríamos a atenção para a necessidade de coerência do que for consagrado no artigo 10.º com aquilo que eventualmente vier a ser estabelecido, em segunda leitura, no artigo 118.º e em relação ao regime dos referendos regionais e locais.
É que é pacífico que, para além do sufrágio directo, universal e periódico, há toda uma série de outras formas, previstas na Constituição, de exercício do poder político. Assim, a autonomização do referendo implica, naturalmente, uma coerência que permita que, no futuro, haja uma possibilidade efectiva de recurso ao referendo como uma das formas de exercício do poder político pelo povo.

O Sr. Presidente: - Alguém mais quer pronunciar-se sobre este ponto?

Pausa.

Aparentemente, a alteração está adquirida não só porque o CDS-PP e o PSD são convergentes na proposta como porque o PS e o PCP lhe dão uma adesão de princípio.
Passamos, então, ao n.º 2 do artigo 10.º, para o qual existem também propostas convergentes do CDS-PP e do PSD.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - É só do PSD!

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, refiro-me ao actual n.º 2 do artigo 10.º da Constituição. Não estou a considerar o n.º 2 da vossa proposta, que é um aditamento - lá iremos. É o n.º 3 da vossa proposta que corresponde ao n.º 2 da Constituição.
Portanto, refiro-me às propostas para alterar o n.º 2 do artigo 10.º da Constituição, no sentido de acrescentar uma referência à "unidade nacional" (PP) e à "unidade do Estado" (PSD).
Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Muito bem. Não tinha percebido, Sr. Presidente. Agradeço-lhe a precisão.
Sr. Presidente, quanto ao n.º 3 do projecto do PSD, de alteração à redacção do actual n.º 2 do artigo 10.º da Constituição, a proposta do PSD é a de acrescentar, na referência ao respeito pelos princípios da independência nacional e da democracia política que deve reger a intervenção dos partidos políticos na sociedade portuguesa em expressão da vontade popular, a unidade do Estado.
Penso que é compreensível por todos. No fundo, o princípio da unidade do Estado, a característica unitária do Estado, decorre, no âmbito dos princípios fundamentais, até da própria organização do articulado desta parte da Constituição. Nesse sentido, pareceu-nos coerente com toda esta lógica acrescentar aqui nos princípios por que se deve reger a actividade dos partidos políticos em expressão da vontade popular, a par da independência nacional e da democracia política, a unidade do Estado.

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Não é propriamente uma inovação, na nossa maneira de ver as coisas, relativamente à situação actual; parece-nos é que é o preenchimento de uma eventual lacuna, face àquilo que são os artigos anteriores desta parte da Constituição, e, nesse sentido, parece-nos que o texto fica mais correcto e mais harmonioso com este acrescento.

O Sr. Presidente: - Está aberta a discussão para estas duas propostas convergentes do CDS-PP e do PSD, esta última já apresentada pelo Sr. Deputado Luís Marques Guedes.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, não dispomos de informação sobre o sentido exacto da proposta do PP, cuja filosofia pode inspirar-se em concepções um pouco distintas da que flui do texto constitucional em vigor, no qual nos reconhecemos. Inspira-se talvez em algumas teses da liderança actual quanto à articulação entre as soberanias e a construção do espaço europeu, tal qual ele se desenha. Portanto, não me pronunciarei sobre a proposta do PP, sem obter explicações complementares.
Porém, as explicações dadas pelo Sr. Deputado Luís Marques Guedes, exprimindo posições que, de resto, resultam claramente do próprio projecto do PSD, merecem-nos apreço e simpatia. Reforça-se, harmoniosa e coerentemente, a componente anti-separatista e a filosofia constante do texto constitucional nesta parte e em outras disposições. É positivo que isso seja feito. Não havendo um quadro de emergência de qualquer perigo separatista ou de ameaça com qualquer relevância em Portugal decorrente de actos contrários à unidade do Estado e, num clima de tranquilidade e de consenso autonómico, de estabilidade e de unidade do Estado, é uma correcção de coerência em quadro de estabilidade. Merece, pois, toda a nossa simpatia.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Sá.

O Sr. Luís Sá (PCP): - Sr. Presidente, não temos qualquer objecção de fundo à proposta.
A questão que pode eventualmente colocar-se é a da sua utilidade face à perspectiva de manutenção, que, julgo, existe, do artigo 51.º, n.º 4, designadamente a proibição de partidos de índole ou âmbito regional que possam eventualmente contribuir para objectivos de cariz separatista, que, creio, neste momento, não se colocam de uma forma significativa na sociedade portuguesa.
No entanto, se houver um consenso nesse sentido, não seremos nós que criaremos qualquer obstáculo.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, a proposta do PSD, convergente com a do CDS-PP, pode dar-se por adquirida, pois teve o apoio do PS e não teve objecção por parte do PCP.
Há ainda a proposta do PSD de aditamento de um novo número, um n.º 2, que ficaria entre os actuais n.os 1 e 2, que, no fundo, é a transposição do actual artigo 112.º da Constituição com uma pequena alteração literária, o qual, na proposta do PSD, coerentemente, seria eliminado no lugar em que está. Portanto, não se trata de um aditamento mas, na verdade, de uma transposição.
Vamos ouvir o Sr. Deputado Luís Marques Guedes para explicar as razões desta transposição e da pequena alteração literária que o seu projecto implica.
Tem a palavra.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, de facto, em termos gerais, de acordo com aquilo que o Sr. Presidente acabou de referir, a intenção do PSD não é especialmente inovatória ou não tem por intenção promover uma qualquer alteração substantiva ou qualitativa àquilo que é actualmente o texto constitucional.
No entanto, parece-nos que, na exacta medida em que, como referi relativamente à proposta do PSD para o n.º 1, há da parte do projecto de revisão constitucional do PSD - e nesse sentido também, repito, comungado por alguns outros projectos apresentados para a revisão da Constituição - uma intenção de significativo alargamento da participação directa e activa dos cidadãos na vida política, parece-nos que faz algum sentido chamar este aspecto para o primeiro capítulo dos princípios fundamentais. E da mesma maneira que propomos a inclusão no n.º 1 do referendo, dentro da mesma lógica, propúnhamos a inclusão deste n.º 2 precisamente no âmbito do artigo que trata do sufrágio universal e dos partidos políticos para enfatizar que a participação directa dos cidadãos não só não é substitutivo do regime de intervenção dos partidos enquanto expressão da vontade popular mas é um complemento que deve andar em conjunto com o funcionamento político dos partidos, constituindo, em conjunto, princípios fundamentais, no nosso ponto de vista, do mesmo sistema.
É nesse sentido, portanto, que vai a proposta de inclusão deste n.º 2 por parte do PSD, como disse, sem qualquer alteração substantiva de fundo, mas com um significado político que visa enfatizar, nos princípios fundamentais da Constituição, este reforço que se pretende dar ao longo do projecto do PSD, depois, em variadíssimos outros artigos, à participação dos cidadãos como instrumento fundamental da nossa democracia.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, está em discussão esta proposta do PSD, de transposição sistemática da norma do actual artigo 112.º, com uma pequena alteração literária, para o presente artigo 10.º.
Esta proposta, coerentemente, deve ser vista em conjunto com a proposta de eliminação do artigo 112.º do projecto do PSD.
Está aberta a discussão.

Pausa.

Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, comungamos completamente da perspectiva de reforço da participação directa e activa dos cidadãos na vida política. É mesmo um dos traços característicos do projecto de revisão constitucional que o PS acabou de apresentar e é seguramente um dos seis princípios para a reforma do sistema político que nós não só consubstanciamos no articulado como fundamentamos politicamente, de acordo, de resto, com a reflexões dos Estados Gerais para uma Nova Maioria e com os documentos programáticos a que estamos vinculados.
A operação jurídica concretamente proposta é, de facto, como o Sr. Presidente sublinhou, uma mera reinserção sistemática, com eliminação da inserção actual. A inserção actual é no Título I da Parte III da Constituição, sob a epígrafe "Princípios Gerais" e trata-se do artigo 112.º. A consequência da eliminação do artigo nessa sede seria apenas esta: o artigo 111.º passaria a dispor sobre a "Titularidade e exercício do poder"; saltar-se-ia, de

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imediato, para o artigo 113.º "Órgãos de soberania"; a seguir, para a organização interna e o relacionamento dos órgãos de soberania; depois, para a tipificação dos actos normativos; a seguir, para os princípios gerais de direito eleitoral; depois, para o regime geral dos partidos políticos e haveria uma omissão desse elemento normal, fisiológico e natural, que é a forma - de resto, diversificada e plural - como os cidadãos se podem manifestar, exprimir e participar, directa e activamente, na vida política.
Verdadeiramente, o Sr. Deputado não explicitou para quê criar aqui, nesta sede, digamos, um salto de narrativa jurídico-constitucional, sobretudo depois de essa narrativa ter estado cá, e estar, a benefício de uma inserção dessa norma nesta sede constitucional, depois do elencar das tarefas fundamentais do Estado e numa disposição que a Constituição dedica capitularmente, por um lado, à expressão política eleitoral e referendária - e através de todas as outras formas consentidas constitucionalmente - e, por outro, a uma das disposições sobre os partidos políticos.
Se o PSD desejasse fazer não uma transposição mas uma afirmação capitular, com o carácter principológico, semelhante à que consta aqui para o sufrágio universal e para os partidos políticos, que têm, depois, muito adequadamente, nos artigos 116.º e 117.º, entre outras coisas, explicitações, desenvolvimentos e densificações, provavelmente essa seria uma solução razoável. Dispor-se-ia sobre o sufrágio universal, sobre a participação cívica democrática, em outras modalidades, e sobre os partidos políticos e, provavelmente, aí teríamos uma narrativa que teria mimeticamente a mesma estrutura da que consta da Parte III "Organização do poder político": sufrágio, participação diversificada sujeita a outras formas, partidos políticos, como expressão estruturada de vontade popular, e organização qualificada na definição de metas, objectivos políticos e ritmos de decisão política. Provavelmente, haveria alguma simetria aí desejável. Uma ablação pura parece-nos que gera todos estes saltos e descontinuidades e, designadamente, cria este "buraco" que enunciei no Título I da Parte III, o que sinceramente não nos parece ter justificação, Sr. Deputado.
Naturalmente, a alteração da força jurídica não ocorre, uma vez que todos os direitos de participação consignados na Constituição se manteriam. Mas este salto narrativo, Sr. Deputado, francamente não me parece ter justificação.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Sá.

O Sr. Luís Sá (PCP): - Sr. Presidente, creio que está fora de causa o nosso empenhamento muito profundo em tudo o que na Constituição possa estimular a participação directa e activa dos cidadãos, a democracia participativa, etc.
Agora, a interrogação que se coloca no meu espírito é a seguinte: neste ponto que estamos a tratar, isto é, os princípios fundamentais da Constituição, nós temos, no artigo 2.º, a alusão ao aprofundamento da democracia participativa, como um objectivo fundamental do Estado democrático; temos, no artigo 9.ª, alínea c), a tarefa de incentivar a participação democrática dos cidadãos, como tarefa fundamental do Estado democrático. Isto é, neste ponto concreto, a questão está razoavelmente referida. Em compensação, a proposta do PSD levaria a que, nos princípios fundamentais do poder político, desaparecesse a alusão ao princípio da democracia participativa, exactamente como um elemento fundamental nessa matéria. Isto é, passaríamos a ter mais onde já temos alguma coisa e deixaríamos de ter no Título I da Parte III, nos princípios fundamentais da organização do poder político, em que este problema da participação política dos cidadãos tem importância particular.
Ora, isto significa o seguinte: a nossa inteira disponibilidade para tudo o que seja alargar mecanismos da democracia participativa, a afirmação da participação directa e activa dos cidadãos, mas temos algumas dúvidas que traga alguma mais-valia deslocar o artigo 112.º para o n.º 2 do artigo 10.º, além do mais com a epígrafe actualmente existente ("Sufrágio universal e partidos políticos"), em que uma norma com este conteúdo podia eventualmente ter uma inserção sistemática questionável.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, quero apenas reforçar que a intenção do PSD, como referi na apresentação inicial da proposta, não é propriamente a de promover qualquer alteração substantiva ou sequer qualitativa, mas tem um sentido mais profundo relativamente ao actual texto.
A intenção primordial é a de dar um relevo maior ao princípio da participação directa dos cidadãos como condição e instrumento fundamental da democracia, é, portanto, a de reforçar e de sobrelevar o significado dessa democracia participativa, da participação política dos cidadãos.
Aproveito igualmente para dizer, um pouco em resposta às observações do Sr. Deputado José Magalhães, que também nos pareceu - não sendo, no entanto, essa a razão fundamental, que é a primeira -, ao contrário daquilo que o Sr. Deputado disse, a inserção actual no artigo 112.º desta disposição menos ajustada.
É que o artigo 112.º tem a ver com a parte da organização do poder político e na organização do poder político, de facto, começa-se por descrever os órgãos de soberania e por aí fora... Portanto, este artigo, que, no fundo, é uma afirmação de princípios fundamentais do tipo de modelo democrático e de intervenção democrática por parte dos cidadãos, não é propriamente um aspecto pragmático do modelo de organização política; tem, sim, a ver com um princípio fundamental que está, digamos, a montante, em nossa opinião, desse modelo político. Assim, de certa maneira, o meu entendimento é um pouco diverso do do Sr. Deputado José Magalhães, no sentido de que também nos parece - embora não tenha sido essa, confesso-o, a razão fundamental - que "casa" melhor com a lógica do capítulo dos princípios fundamentais do que com aquele da organização do poder político, em que se está já a tratar de matérias organizativas, o que manifestamente não é o caso do conteúdo útil deste artigo, que, não tem uma lógica de um modelo próprio de organização política.
Para além disso e como último argumento, reforçava um pouco a ideia de que também esteve presente na nossa intenção de transportar para o artigo 10.º esta disposição, que, no artigo 10.º, ao se tratar no âmbito dos princípios fundamentais do sufrágio universal e dos partidos políticos, o "monopólio", passe a expressão, da manifestação da expressão da vontade popular não é obviamente dos partidos. O texto constitucional actual já diz que "os partidos concorrem para a organização (...)", mas pareceu-nos também ser importante deixar claro, no âmbito deste artigo, que a participação directa dos cidadãos é condição e instrumento fundamental e que os partidos concorrem para a expressão dessa mesma vontade popular. Portanto, também uma lógica de tentar dar algum equilíbrio

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à expressão daquilo que se pretende significar na Constituição com o conteúdo normativo deste artigo 10.º esteve presente nesta proposta do PSD.
Terminava dizendo apenas que, em qualquer circunstância, como comecei por referir, esta proposta do PSD não encerra qualquer alteração substantiva essencial relativamente ao actual texto. Parece-nos que era um sinal do reforço que pretendemos dar, através desta revisão, à importância e ao significado da participação dos cidadãos na vida política e era também um instrumento para deixar algum equilíbrio entre aquilo que é, no conteúdo deste artigo 10.º, a expressão da vontade popular, deixando claro que ela se exerce, desde logo, pelos cidadãos, que são condição e instrumento fundamental da existência da democracia, a par dos partidos políticos, que obviamente são uma peça fundamental na expressão da vontade popular.
O significado era apenas este. Se não for possível a aceitação, o PSD terá alguma pena, porque nos parece que, se for esta, como esperamos, a revisão da Constituição em que se dá um passo significativo no reforço da participação política dos cidadãos, também era importante que se transpusesse para um lugar de maior destaque na Constituição uma disposição que já lá existe, que não queremos alterar, mas à qual queremos dar um enfoque mais significativo. E pensamos que sem perda de unidade do actual texto constitucional - e, como referi, divirjo nisso da leitura do Sr. Deputado José Magalhães -, porque não me parece que se abra qualquer lacuna eliminando o artigo 112.º, a não ser em termos físicos, porque se tira de lá o conteúdo do artigo. Porém, em termos de organização e de estruturação da Constituição, não nos parece - e nisso não concordamos - que se gere qualquer tipo de lacuna.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Sr. Presidente, estamos de acordo com esta ideia de que esta alteração ao disposto no artigo 10.º, este novo n.º 2, não dá força jurídica acrescida ao que está disposto no artigo 112.º e no artigo 48.º. No entanto, como já foi dito pelo Sr. Deputado José Magalhães, temos disponibilidade para, sem qualquer ablação ou mutilação dos artigos 112.º e 48.º, dar uma força cumulativa referencial a este artigo 10.º, no sentido de que ele consagre o princípio democrático não só enquanto princípio de votações populares mas, ao mesmo tempo, como princípio de participação directa dos cidadãos e princípio de participação partidária.
Portanto, esta arquitectura de sufrágio universal, participação directa dos cidadãos e participação partidária corresponde, em grande medida, aos objectivos da participação política, da democracia política, que está em todo o nosso projecto e, já hoje, no texto constitucional e, nessa medida, temos disponibilidade para encarar numa segunda revisão este inciso, sendo certo que sem prejuízo do que já está estatuído nos artigos 112.º e 48.º.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, nessa questão, só estamos à procura de uma solução que satisfaça as preocupações enunciadas.
Ainda em matéria do artigo 10.º, nas iniciativas cívicas em matéria de revisão constitucional, há duas coincidentes, no sentido de, no n.º 2, se acrescentar aos partidos políticos "grupos de cidadãos". Portanto, onde a Constituição diz "Os partidos políticos concorrem para a organização e expressão da vontade popular, no respeito pelos princípios (...)", dir-se-ia "Os partidos políticos e grupos de cidadãos (...)".
Algum partido acha que isto merece alguma atenção particular?
Pessoalmente, penso que não, que a questão é descabida, mas não quero afastar liminarmente essas sugestões...

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Assim sendo, seriam incluídos partidos políticos, grupos de cidadãos, cidadãos individuais e os nascituros, etc.

O Sr. José Magalhães (PS): - E entidades públicas de diversos contornos!
Sr. Presidente, mas nós, nesta matéria, temos uma proposta concreta de participação de grupos de cidadãos, em condições eleitorais muito precisas e para efeitos concretamente limitados. Essa participação qualificada e para efeitos eleitorais, com cunho político nítido e notório... É que grupos de cidadãos há muitos, até há os que promovem motins de carácter xenófobo e actividades de carácter extraordinariamente negativo e perturbador e essas, seguramente, não são formas incentiváveis e com boa guarida constitucional.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, o próximo artigo para o qual há propostas de revisão é o 13.º, a saber: para o n.º 1, há propostas do PP e do PCP, pelas quais vamos começar.
A proposta do PP, que não está presente para a apresentar, é no sentido de que, onde a Constituição diz que "todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei", passaria a dizer "todos os cidadãos têm a mesma dignidade" - sem qualificativo - "e são iguais perante a lei". A proposta do PCP vai ser apresentada pelos proponentes, para o que tem a palavra o Sr. Deputado Luís Sá.

O Sr. Luís Sá (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Creio que é pacífico que o princípio da igualdade, tal como está consagrado na Constituição Portuguesa, implica não apenas a igualdade perante a lei, a igualdade no sentido de proibir qualquer forma de discriminação política, mas também a igualdade enquanto abolição de desigualdades sociais.
Ora, a nosso ver, haverá vantagem em responsabilizar o Estado no sentido de contribuir para remover os obstáculos de natureza económica, social e cultural à realização dos direitos fundamentais. Sublinho a expressão contribuir porque não é nossa ideia que a responsabilidade caiba exclusivamente ao Estado, mas julgamos que não pode deixar de ter um papel no sentido de remover as dificuldades que se coloquem, por forma a garantir efectivamente a igualdade.
Tal como debatemos esta manhã a propósito da dicotomia igualdade real ou igualdade de oportunidades, está em causa a ideia de que ao cidadão deve, na prática e não apenas através de proclamações jurídicas, ser assegurada a igualdade e, face a isso, os poderes públicos, com destaque para o Estado, não podem eximir-se ao respectivo papel.
Temos a ideia de que esta proposta pode ser polémica, pode ser controversa - conhecemos as concepções políticas e ideológicas dos outros partidos - mas, pela nossa parte, não deixámos de querer sublinhar este aspecto, naturalmente tendo em conta o conjunto de outras disposições constitucionais que já vão neste sentido noutros pontos da Constituição, mas entendendo também

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que, nesta disposição concreta, haveria vantagem em destacar este ponto.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Esta proposta reedita uma apresentada no quadro da II Revisão Constitucional, que deu origem, aliás, a um interessante debate, o qual culminou com a retirada da proposta por os proponentes terem sido persuadidos - e persuadidos com bons argumentos, que constam da Acta - de que o sentido útil da mesma resultava, e resultava solidamente, do facto de que a Constituição consagrar precisamente aquilo que se pretende obter. A discussão desta manhã, ao ser feita como foi, ajudou - creio eu, poderosamente - a iluminar esse resultado, porquanto, como tarefa fundamental do Estado, nos termos do artigo 9.º, alínea d), está precisamente a de promover a igualdade real entre os portugueses e a efectivação de uma panóplia elevada de direitos económicos, sociais e culturais dos quais depende o atingir-se dessa dignidade social e dessa igualdade desejada.
A razão que levou à não consagração de uma solução deste tipo, então como provavelmente agora, foi a de que, a estabelecer-se esta técnica constitucional, muito teríamos que escrever se optássemos por uma narrativa na qual a proclamação da igualdade fosse acompanhada de uma especificação das responsabilidades parciais, embora, como o Sr. Deputado Luís Sá agora sublinhou, em termos muito rasgados, essa responsabilidade, que é a de uma contribuição, exista a propósito de muitos outros direitos, de muitos outros princípios positivos de boa filosofia constitucional. A narrativa constitucional não obedece a essa técnica e parece-me uma razão poderosa.
A não consagração de uma solução deste tipo em nada prejudica o edifício constitucional quanto às obrigações do Estado na remoção de obstáculos - do Estado e das entidades que devam contribuir para isso, inclusivamente dos cidadãos, com a sua luta justa dentro dos limites constitucionais. As razões que foram invocadas com acerto e que geraram um consenso final em 1989 parecem-me válidas hoje ainda.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Não divirjo praticamente em nada daquilo que acabou de ser dito pelo Sr. Deputado José Magalhães. De facto, para além de tudo o que já foi dito, só acrescentaria o seguinte: há determinado tipo de propostas no âmbito da revisão constitucional relativamente às quais devemos sempre ter a cautela de não permitir que, pela sua adopção, se inculque a ideia de que a actual Constituição não contemplava já este tipo de situações ou que se está a propugnar, com esta alteração na Constituição, por alguma inovação fundamental, neste caso nas tarefas do Estado.
O PSD, neste caso concreto, não concorda nem com uma nem com outra das asserções, ou seja, nunca fizemos a leitura deste preceito da Constituição sem que nela incluíssemos os deveres que, para o Estado, daí decorrem e, por outro lado, não pensamos também que seja necessário aproveitar esta revisão constitucional para fazer acrescer ao Estado português algumas tarefas que redundem num intervencionismo mais acutilante, mais actuante sobre a actividade económica, social e cultural.
Pensamos, ao contrário, que a Constituição não só está equilibrada nesta matéria como o Estado detém já todos os instrumentos - e isso tem sido demonstrado à saciedade, nos últimos anos da nossa democracia - que lhe podem ser necessários para intervir quer no campo económico, quer social, quer cultural, no sentido de melhorar a vida dos cidadãos e contribuir para a sua dignificação e igualdade perante a lei.
Nesse sentido, não vemos qualquer interesse nesta versão, qualquer vantagem, pelo contrário, vemos, como digo, esses aspectos potencialmente perniciosos. E digo potencialmente porque não quero com isto significar que sejam necessariamente essas as intenções dos proponentes, mas achamos que é necessário ter este tipo de cautelas na análise destas propostas e parece-nos que, neste caso, essa leitura aconselha-nos, do nosso ponto de vista, a não optar pelo caminho proposto pelo PCP.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Sá.

O Sr. Luís Sá (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Há um elemento virtuoso nas intervenções do PS e do PSD, que é a afirmação de que o Estado, neste momento, já tem a obrigação de contribuir para a remoção dos obstáculos que existem à realização dos direitos fundamentais. Este é um aspecto que creio que merece ser sublinhado.
Também não era, de forma nenhuma, a nossa ideia, bem pelo contrário, que o facto de apresentarmos esta proposta correspondesse à ideia de que estas obrigações não existiam. Simplesmente, creio também que, de 1989 para cá, confirmaram-se ideias, práticas, etc., que correspondem a uma orientação predominantemente neoliberal demissionista do Estado face a obstáculos que se colocam à realização dos direitos fundamentais e, nesse sentido, é positivo que venha a ser dito, neste momento, que as obrigações de Estado existem, que o Estado não se pode demitir delas, que essa demissão, em última instância, contraria o espírito e a letra da lei fundamental.
Entretanto, há um aspecto que eu não gostaria de deixar de sublinhar, que é o seguinte: sem dúvida nenhuma que a propósito de todos e cada um dos direitos fundamentais e do respectivo tratamento - e isto diz respeito, designadamente, a uma observação do Sr. Deputado José Magalhães - se poderia pôr, e põe-se, a questão da obrigação do Estado contribuir para remover os obstáculos que se colocam à realização deste direito concreto. É exactamente por isso que, nesta formulação, aparece uma referência à realização dos direitos fundamentais, isto é, de todos e cada um dos direitos fundamentais.
O facto de esta questão ser inserida aqui, nos princípios gerias, naturalmente que valeria para todos e cada um dos direitos fundamentais. O facto de não ser aceite, como parece que é claro, não corresponde a uma ideia de que estas obrigações não existem, que não têm de ser acatadas; parece que sim e ainda bem que é consensual a ideia de que assim é.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, com isto, passamos à proposta do CDS-PP, relativamente ao mesmo número: onde se diz "a mesma dignidade social", passaria a dizer-se "a mesma dignidade".
Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Queria expressar alguma dificuldade do PSD em discutir essa proposta porque não

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compreendemos verdadeiramente o seu alcance e, com toda a franqueza, na ausência do CDS-PP para poder explicitar a razão de ser desta proposta, temos alguma dificuldade em especular sobre as intenções dos proponentes.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, em todo o caso, partindo de uma interpretação objectivista, a proposta parece clara: onde se diz "dignidade social", passa a dizer-se "dignidade". Portanto, abrange todos os planos - social, cultural, pessoal. Parece ser esse no sentido de não restringir o princípio da igualdade.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - É isso, Sr. Presidente. A nossa hesitação é exactamente esta: se a intenção é a de alargar o âmbito do actual preceito, no sentido de pretender abranger a dignidade em outras vertentes para além da dignidade social, parece-nos que a redacção é pouco clara nesse sentido, e tememos também, ou não podemos deixar de fora a hipótese - na ausência de uma explicitação pelos proponentes - de a intenção não ser essa e ser apenas a de afastar a lógica social, por alguma razão, eventualmente, que assistirá os proponentes. Hesitamos, de facto, na interpretação exacta e, por isso, não queríamos fazer mais comentários.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sr.ª Deputada Odete Santos.

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Sobre esta questão que o Sr. Deputado Luís Marques Guedes aqui levantou e até outras explicações dos proponentes, parece-me que a redacção proposta piora a actual redacção da Constituição, porque a dignidade, em nossa opinião, não é um conceito meramente formal, tem um determinado conteúdo concreto e é, de facto, a dignidade social que pode preencher esse conceito de dignidade. Parece-nos que a proposta piora a actual redacção do n.º 1 do artigo 13.º da Constituição porque nos parece que o actual artigo não restringe nada, bem pelo contrário, lança, com essa redacção, os verdadeiros fundamentos da dignidade.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Entendo que as preocupações eventuais dos autores quanto à dignidade da pessoa humana estão perfeitamente contempladas no artigo 1.º da Constituição, uma vez que o respeito pela dignidade da pessoa humana é um pilar basilar da nossa República e nenhuma dúvida existe quanto a ser devido a máxima protecção possível da dignidade das pessoas. O que está em causa aqui, neste artigo, é precisamente a afirmação "social" e uma forma específica de expressão dessa dignidade e a preocupação do legislador constituinte e dos legisladores nesta matéria está bem vazada nesta disposição e na disposição que a complementa, que se preocupa com os privilégios, com os benefícios, com aquilo que distingue os homens uns dos outros e as mulheres umas das outras.
Há aqui uma herança de transformação social e de afirmação de uma sociedade de iguais que importa preservar. Portanto, aquilo que é justo nas preocupações dos proponentes está contemplado na Constituição e aquilo que se abriria com a ablação é algo que faz parte de uma herança histórica a que somos inteiramente fiéis e que não gostaríamos de perturbar nem milimetricamente.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Barbosa de Melo.

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Creio que as intenções que presidem às propostas são coisas do mundo subjectivo e não devem ser consideradas, temos de atentar na objectividade do enunciado constitucional, porque é sobre isso que estamos a debruçar-nos.
Esta expressão, este atributo, "dignidade social" tem uma procedência, que é, tenho quase a certeza, da Constituição italiana, pois foi ela que esteve diante dos constituintes quando se deu este passo de formular pela primeira vez, com este alcance todo...

O Sr. Presidente: - Também a proposta do PCP tem a mesma origem.

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Tem. Tivemos a Constituição italiana à vista.
Ora bem, do que é que se trata no artigo 13.º? Trata-se de juízos de comparação. O que está aqui em causa não é a afirmação só do princípio da dignidade humana, o que está aqui em causa é a comparação das dignidades. E aqui, meus caros colegas Deputados, temos de ser muito cautos porque só é comparável o que for socialmente relevante.
É um monstro, que a História europeia também segregou, o Estado ético, o Estado que quer fazer ética ele próprio, que quer assumir um papel de ser o condutor da ética. Todos nós temos diante dos olhos experiências muito vivas e concretas do que é que dá essa pretensão, por exemplo, de fazer mensurações éticas entre as pessoas ou entre as raças, etc.
Portanto, quando pusemos aqui este atributo quisemos dizer o seguinte: nos juízos comparativos que o respeito pelo princípio da igualdade implica, só podem entrar qualidades socialmente relevantes, qualidades que têm a ver com as relações pessoa a pessoa na sociedade concreta em que estamos. Não são cabidas aqui distinções que relevem, eventualmente, de outros valores de que o Estado e ordem jurídica não têm de cuidar. Foi esta a ideia e eliminar o adjectivo "social" relativamente à dignidade seria uma regressão ôntica, pelo menos, senão ontológica. Portanto, eu não aceitaria que se fizesse este corte.

O Sr. Presidente: - Esta proposta não tem, pois, viabilidade, pelo que passamos às propostas relativamente ao n.º 2 do mesmo artigo 13.º, para o que existe apenas uma proposta de Os Verdes, que visa acrescentar entre os critérios proibidos de discriminação a "opção sexual", o "estado civil" e o "estado de saúde". Suponho que não há mais nenhum.
Para apresentação da proposta, tem a palavra a Sr.ª Deputada Heloísa Apolónia.

A Sr.ª Heloísa Apolónia (Os Verdes): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Esta proposta surge, naturalmente, com base naquele que foi o objectivo do Partido Ecologista Os Verdes aquando da apresentação deste projecto de revisão constitucional, que está primeiramente ligado à questão do reforço da garantia dos direitos na Constituição da República Portuguesa, cuja necessidade advém, na nossa perspectiva...
Sr. Presidente, assim não consigo continuar. Há muito barulho na sala! Não me importo de falar só para a gravação, mas...

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O Sr. Presidente: - Eu estou a ouvir, Sr.ª Deputada.

A Sr.ª Heloísa Apolónia (Os Verdes): - Mas há outros Deputados que não estão a ouvir e, nem que seja por uma questão de respeito, creio que podiam ouvir calados.

O Sr. Presidente: - Tem toda a razão de queixa, Sr.ª Deputada. Mas não posso fazer mais do que já fiz, que foi chamar a atenção dos nossos colegas.

A Sr.ª Heloísa Apolónia (Os Verdes): - Dizia eu que o primeiro objectivo tem a ver com o reforço de direitos e de garantia de direitos que estão na base e que advêm da evolução da nossa sociedade e, naturalmente também, da evolução de mentalidades, nomeadamente na nossa vivência colectiva e nas nossas relações colectivas que, obrigatoriamente, na perspectiva do Partido Ecologista Os Verdes, a Constituição da República Portuguesa deve reflectir porque são fenómenos generalizados.
Trata-se, na nossa perspectiva, de estabelecer no texto constitucional a garantia de algo que se traduz, na nossa proposta, na não discriminação, resumindo assim, em razão da opção sexual, do estado civil e do estado de saúde, factos ou fenómenos que, no dia a dia, são verdadeiramente objecto de discriminação e de práticas discriminatórias.
Entendemos, pois, que era importante acrescentar estas três propostas neste artigo 13.º da Constituição. Apesar de entendermos que o princípio da igualdade pode valer e pode englobá-los por si só, pensamos que o artigo 13.º faz uma discriminação e, de acordo com aquilo que referi, pela própria evolução social e aquela que é a realidade concreta e as práticas discriminatórias concretas, achámos por bem que a Constituição da República Portuguesa pudesse, expressamente, focar estes fenómenos. Parece-me que fica claro o objectivo da apresentação desta proposta.
Muito sumariamente, direi ainda que, relativamente a "opção sexual", faço aqui uma proposta, por escrito, no sentido de alterar a expressão para "orientação sexual" porque, com os contributos que obtivemos de algumas associações que colaboraram connosco nesta proposta e de algumas entidades e associações que ouvimos relativamente a esta matéria, concluímos que a expressão correcta seria orientação sexual e não opção sexual. Assim, apresentaremos por escrito esta alteração à nossa proposta.
A prática tem demonstrado uma efectiva discriminação em razão da orientação sexual, seja a nível do emprego, seja a nível do acesso à habitação, seja a nível do acompanhamento familiar, e dou um exemplo concreto que é o acompanhamento hospitalar. Enfim, há um conjunto de práticas diárias discriminatórias relativamente a esta questão, discriminação que consideramos que não faz sentido e que é, obviamente, violadora dos direitos mais elementares da pessoa humana.
Entendemos, e gostaria de deixá-lo aqui expresso, que a Constituição da República Portuguesa não "impinge" mudanças de mentalidades nem "impinge", ela própria, mentalidades, o que pode fazer, através da nossa proposta, é reconhecer na sociedade e na realidade uma discriminação concreta de direitos, direitos esses que devem ser, naturalmente, salvaguardados.
Relativamente ao estado civil, parece-nos também clara a proposta: a família tem as expressões mais diversas na nossa sociedade, a união de facto é uma delas e existe, efectivamente, uma discriminação por razão do estado civil e da situação familiar em razão a uma destas expressões de constituição de família, pelo que entendemos também consagrá-la directamente neste artigo 13.º. Trata-se, portanto, de garantir também que, em razão do estado civil, ninguém seja prejudicado.
Um dos exemplos que referi foi o da união de facto, mas não se trata apenas disso porque, como todos conhecerão, naturalmente, existem situações de práticas discriminatórias em termos de emprego que têm directamente a ver com a o estado civil, o que nos parece muito preocupante e constitui uma prática diária.
Sobre o estado de saúde, penso que a nossa proposta também é clara. Na nossa perspectiva, o estado de saúde não pode ser, ele próprio, uma razão de discriminação quando não é lesivo para outras pessoas.
É óbvia e é uma prática discriminatória aquilo que acontece diariamente em relação aos seropositivos - é um exemplo claro, que gostaria de frisar aqui -, que são discriminados em termos de emprego, de acesso à habitação e de um outro conjunto de situações que nos parece que há que salvaguardar a nível da Constituição e deste artigo.
Outros exemplos poderia aqui referir, como as discriminações directas relativamente aos deficientes e a outro conjunto de doenças transitórias também, porque nos parece que quem delas sofre tem direito a uma vivência normal, sempre possível, desde que não seja lesiva dos direitos dos outros cidadãos.
Globalmente, estas são as razões que nos levaram a apresentar o aditamento destas três situações em relação às quais não poderá haver discriminação e, resumindo a questão, entendemos por bem consagrar esta matéria no artigo 13.º.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, Sr.ª Deputada, há que apurar não tanto as intenções como as consequências jurídicas precisas das fórmulas propostas, na versão originária e na versão corrigida, e é nesses termos que gostaria de lhe endereçar algumas perguntas.
Em primeiro lugar, quanto ao estado de saúde, nenhuma dúvida pesa, como referiu na parte final da sua intervenção, de que a Constituição não apenas estima a saúde dos cidadãos (por isso mesmo a garante no artigo 64.º e outros) como tem especial atenção em relação àqueles que, por qualquer razão, sejam atingidos por qualquer tipo de deficiência (por isso, regula essa matéria no artigo 71.º e noutros) e é inteiramente arredia a qualquer noção de discriminação ou de tratamento não apenas desigual mas injusto ou que fira a dignidade da pessoa humana, designadamente da pessoa humana quando está atingida por alguma coisa que a debilite e torne menos capaz de responder, com pletora de exercício de direitos, a agressões que lhe sejam dirigidas.
Nenhuma dúvida pesa quanto a esse aspecto e, portanto, ao inserir uma norma como aquela que propõe, a Sr.ª Deputada pode arriscar-se, se não houver algum cuidado, a alguns efeitos perversos, dado que a norma visa proscrever privilégios e há determinados estados de saúde que exigem privilégios. "Ninguém pode ser privilegiado", não, é exactamente o contrário! Toda a gente deve ser privilegiada quando o seu estado de saúde é tal que requeira determinadas medidas.

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Por isso mesmo, devem ser investidos meios para salvar pessoas, gastando milhares de contos, retirando-as quiçá com helicópteros e fazendo-as vir do Algarve a Lisboa, coisa que ninguém, numa bicha infernal, pode fazer, bem como outras acções desse tipo ou bastante mais sofisticadas.
Quanto à isenção do serviço militar, a Constituição não impede que se estabeleçam outras medidas radicalmente desiguais e que instituem privilégios e benefícios geradores de uma desigualdade necessária, porque há uma situação que, ela própria, carece desse tipo de correctivo.
Curiosamente, a Sr.ª Deputada, nas suas alegações, teve o cuidado de aludir ao estado de saúde quando não é lesivo, porque o que a preocupa e nos preocupa a nós, aliás, são as consequências de determinados estados de saúde. A SIDA veio avivar a preocupação em relação a este tipo de situações, mas há outras doenças infecto-contagiosas para as quais foram encontradas soluções médicas, e outras, que estão a reacender-se hoje, infelizmente, e são geradoras de problemas sérios, designadamente no domínio laboral, no domínio do acesso ao crédito e no do relacionamento com o Estado.
No entanto, a questão que se coloca, Sr.ª Deputada, é a de saber se a Constituição actual, na sua base, legitima esse tipo de práticas. E parece-nos que a resposta é, clara e inequivocamente, não! Portanto, cuidado com a fórmula.
Gostava de saber até que ponto a Sr.ª Deputada é sensível a este tipo de dificuldades, designadamente as que enunciei em primeiro lugar, porque a Sr.ª Deputada complementou oralmente, com um inciso, o que não consta da sua proposta e, portanto, ela deve ler-se tendo sido ouvida atentamente a sua adenda: "estado de saúde quando não é lesivo". Mas esta segunda expressão coloca um problema terrível, que é o de saber, no caso de o estado de saúde ser lesivo, quid juris, que tipo de restrições é que a Sr.ª Deputada admite.
Em relação à questão suscitada da adopção e orientação sexual, o que interessa precisamente saber é o que é que não está coberto pelo texto actual. A verificar-se uma perseguição em função de escolhas, convicções e atitudes íntimas, uma punição jurídica, um juízo social ou um confronto de opiniões ou uma clivagem entre pessoas de crenças diferentes, o que é que não está coberto pela Constituição actual?
Não encontro, na Constituição, qualquer "sombra de pecado" em matéria de intolerância ou qualquer sombra de margem legal para a perseguição em função do sexo ou das escolhas sexuais de qualquer natureza. Aliás, não encontramos défice, a não ser que a Sr.ª Deputada pretenda introduzir aqui uma base constitucional, por exemplo, para o casamento entre pessoas do mesmo sexo, ou seja, para uma redefinição do conceito de casamento. A minha pergunta concreta, aliás, é essa: na leitura da Sr.ª Deputada, a sua proposta implicaria uma alteração jurídica da definição de casamento enquanto união entre pessoas de sexo diferente com união plena de vidas, na definição canónica?
Quanto ao mais, não retiraria daqui nenhuma interpretação debilitante do conteúdo, frontalmente tolerante e imune a escolhas sexuais livres, da Constituição actual, sem uma vírgula a mais, sem uma vírgula a menos.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Parece mais útil que a Sr.ª Deputada possa, depois, responder em conjunto, até porque as questões que tenho para colocar são, de algum modo, algo coincidentes com o que foi dito pelo Deputado José Magalhães. Permitia-me apenas acrescentar alguns aspectos que não foram citados pelo Deputado José Magalhães e que me parecem carecer de alguma reflexão por parte da Sr.ª Deputada e por parte de todos nós, uma vez que a proposta que está sobre a mesa trata da análise desta alteração.
Seguirei a ordem utilizada pelo Deputado José Magalhães e, assim, relativamente ao estado de saúde, acrescentaria uma questão muito complicada que temos de analisar: não se trata apenas da questão de ter de haver, necessariamente, uma discriminação positiva para determinados tipos de estado de saúde - e penso que aí, como o Deputado José Magalhães explicitou de forma muito clara, teremos de estar todos de acordo -, mas de haver também discriminações negativas.
Tenhamos a clarividência e a frontalidade de afastar, sem qualquer problema, o fantasma e a obsessão em que hoje em dia todos vivemos relativamente ao drama da SIDA, que não é chamado para o exemplo que vou dar: há discriminações negativas necessárias, em razões da saúde pública, que têm de ser feitas, e são-no actualmente pela ordem jurídica nacional, de há muitos e muitos anos, por exemplo, relativamente às doenças infecto-contagiosas nas escolas. Há diplomas legais, em vigor em Portugal há muito tempo, que proíbem a presença em estabelecimentos de ensino tanto de professores como de alunos quando afectados por determinado tipo de doenças, elenco no qual, obviamente, a SIDA não consta. Que fique afastado esse fantasma!
É evidente que o problema da SIDA é um drama à parte, que, erradamente, tem sido "metido ao barulho" com este problema - passe a expressão e peço desculpa pela expressão pouco ortodoxa -, mas o problema em si existe, ou seja, a necessidade de defesa da saúde pública face às doenças infecto-contagiosas, nomeadamente nos estabelecimentos de ensino, é real e não pode ser escamoteado, e o drama da SIDA não pode servir para esquecermos e deixarmos de parte a abordagem séria de questões como estas.
Quanto à questão do estado civil, acrescentava uma outra questão, também numa leitura de tratamento não de discriminações negativas mas da necessidade de discriminações positivas.
O PSD é claramente a favor e creio que muitos dos Deputados aqui presentes comungam connosco dessa visão política das coisas, de que deve haver um tratamento preferencial em determinado tipo de legislação, nomeadamente na legislação fiscal, por exemplo, no que diz respeito à família. A protecção da família, como o PSD entende e defende, deve privilegiar um tratamento fiscal, e estamos a falar de discriminações legais que defendemos que sejam constitucionais quer o estado civil seja um ou outro.
Se pretendemos políticas que possam defender e promover a constituição e o valor da família na sociedade, temos de permitir que o estado civil que decorre necessariamente daí possa... Isto para significar que, não deixando de concordar com o que a Sr.ª Deputada disse, parece-me ser uma visão demasiado parcelar das questões que são suscitadas por esta alteração. Nós até podemos concordar com as preocupações que a Sr.ª Deputada explicitou, que, obviamente, são muito meritórias, mas há o outro lado da questão que é suscitado igualmente por

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alterações deste tipo e que, do nosso ponto de vista, não podem ser aceites.
Portanto, não nos parece ser por acaso que, no elenco do n.º 2 do artigo 13.º, a Constituição actualmente não preveja o estado de saúde e o estado civil. Penso haver razões para tal e não tenho dúvidas de que não fui exaustivo nas razões que levaram os anteriores Deputados constituintes a deixar de fora neste elenco de situações o estado civil e o estado de saúde. No entanto, as razões que enunciei parecem-me questões que a Sr.ª Deputada terá de ponderar, pois não podemos utilizar este artigo apenas para combater um determinado tipo de injustiças, porque não podemos correr o risco de, com isso, deitar por terra um conjunto de valores que são fundamentais e que penso que todos nós temos o dever e a responsabilidade de acautelar quando mexemos em questões tão importantes como o texto da Constituição.

O Sr. Presidente: - Para responder, tem a palavra a Sr.ª Deputada Heloísa Apolónia.

A Sr.ª Heloísa Apolónia (Os Verdes): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Relativamente às questões concretas que me foram colocadas, especificamente quando ao estado de saúde e às preocupações que foram levantadas quanto aos privilégios ou aos benefícios necessários e inevitáveis decorrentes exactamente do estado de saúde, gostaria de referir aquilo que penso que este próprio artigo prevê, que é um conjunto de discriminações positivas que será necessário ter em conta - será necessário adoptar um conjunto de discriminações positivas - para se prosseguir exactamente o princípio da igualdade.
Isso tem-se verificado nalgumas áreas, nomeadamente na eventual discriminação em razão do sexo, e, portanto, naturalmente que para se prosseguir o princípio da igualdade há que tratar igualmente aquilo que é igual e diferentemente aquilo que é diferente e a discriminação positiva parece-me obviamente um princípio fundamental, se assim o posso dizer, para a prossecução do princípio da igualdade.
Portanto, não me parece que esse argumento seja viável para contrariar esta proposta que aqui é feita, uma vez que, naturalmente, partimos deste princípio quando fizemos a proposta.
Ainda quanto ao estado de saúde, gostaria de referir que creio que o privilégio, o benefício, o prejudicado, o privado, etc., todo este conjunto de expressões que aqui podemos encontrar têm implícito, na nossa perspectiva, que a liberdade de uns acaba quando começa a liberdade dos outros, se assim o posso dizer. Ou seja, a partir do momento em que uma determinada pessoa lesa, em razão do seu estado de saúde, outra pessoa, naturalmente que aí estamos a entrar em conflito com a liberdade da outra pessoa. Portanto, creio que é preciso ter também em conta essa questão, e tivemo-la naturalmente em conta na apresentação desta proposta.
Em relação à questão que me foi colocada directamente sobre a orientação sexual, vou repetir aquilo que referi. A nosso perspectiva é esta: a Constituição da República Portuguesa não "impinge" - perdoem-me novamente a expressão - mentalidades. Ou seja, é a realidade, são os factos e os fenómenos sociais ideários que nos levam a fazer a apresentação desta proposta. De facto, o conjunto de discriminações sentido é efectivamente real e é uma questão que tem sido, desde há algum tempo, bastante reivindicada pelas associações que têm defendido estas questões.
A pergunta que me fez directamente foi se esta questão implicaria ou não directamente o casamento e devo dizer-lhe que, na minha perspectiva pessoal e de acordo com aquilo que discutimos sobre esta questão e que está naturalmente na base desta nossa proposta, não me choca que esta proposta implique e traga em si a questão de abrir no nosso país a possibilidade de casamento entre homossexuais.

O Sr. José Magalhães (PS): - Não era essa a questão, Sr.ª Deputada, mas saber se da norma resultava a obrigação do legislador ordinário consagrar a alteração do artigo respectivo do Código Civil que define casamento como implicando obrigatoriamente uma diferença de sexo entre as pessoas contraentes.

A Sr. Heloísa Apolónia (Os Verdes): - Sr. Deputado, esta foi a base da nossa proposta: queremos que não passe daqui a obrigatoriedade para que, em termos de legislação ordinária, decorra daí a obrigatoriedade do casamento.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, está aberta a discussão
Antes de dar a palavra à Sr.ª Deputada Elisa Damião, quero chamar a vossa atenção para dois pontos: em primeiro lugar, como Presidente da Comissão, recebi e despachei no sentido de ser distribuída cópia aos representantes de cada partido várias petições de organizações gay - entre as quais a HILDA -, de organizações de lésbicas e de representações de interesses convergentes, defendendo propostas de alteração da Constituição neste sentido.
Em segundo lugar, no projecto de revisão apresentado à Assembleia da República pela Política XXI consta a proposta de aditar ao n.º 2 do artigo 13.º, entre os factores de não discriminação, o "sexo" ou "género" - suponho que é uma tradução de inglês de gender -, a "orientação sexual", a "identidade étnica" ou "deficiência". Esta proposta, em grande parte, é coincidente com a que estamos a discutir.
Tem a palavra a Sr.ª Deputada Elisa Damião.

A Sr.ª Elisa Damião (PS): - Sr. Presidente, lembrava ainda uma proposta da Associação das Mulheres Juristas, que propõe uma adenda para que se considere que não ofendem o princípio da igualdade as normas destinadas a promover a igualdade de oportunidades. Devo dizer que é uma norma com a qual simpatizo.
Gostaria ainda de dizer que os argumentos aduzidos pelos diversos Srs. Deputados em relação à opção orientação sexual e ao estado de saúde, na minha opinião, não se aplicam ao estado civil. Tratando-se da dignidade social, penso que o estado civil tem aqui todo o cabimento - aliás, em muitos países já foi retirado do bilhete de identidade, etc., porque prejudica socialmente nas relações de vizinhança, no emprego, etc. Assim sendo, apoio que o estado civil seja aqui incluído.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Calvão da Silva.

O Sr. Calvão da Silva (PSD): - Sr. Presidente, não vou repetir o que já foi dito.

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Relativamente à orientação sexual, para além de ser um assunto em constante evolução, em que a transexualidade está no início de uma grande caminhada, julgo que a expressão "sexo" já contida na Constituição dá resposta àquilo que é essencial para evitar discriminações, porque, uma vez feita a opção por um determinado sexo, obviamente que há um sexo e, nessa medida, não permite discriminações, apesar da orientação seguida livremente por quem entendeu tomar essa opção.
Já seria mais sensível a uma ideia que é cara às mulheres em geral de, em vez de misturar o sexo, no n.º 2, com tantas e tantas situações, passá-lo para o n.º 1. Em vez de se dizer, na esteira da Revolução Francesa, "todos os cidadãos", dir-se-ia: "todos os homens e mulheres têm a mesma dignidade e são iguais perante a lei". Eu seria mais sensível a este tipo de mudança, desaparecendo a palavra "sexo" do n.º 2, do que propriamente à transexualidade, porque a opção livremente feita por cada um já era contemplada na palavra sexo.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sr.ª Deputada Odete Santos.

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Queria dizer, muito rapidamente, que a proposta apresentada por Os Verdes contém algumas questões cuja acuidade se tem feito sentir na prática social. Não percebi e devo dizer que me admirei - se calhar, percebi mal - com as observações dos Srs. Deputados José Magalhães e Luís Marques Guedes, que referiram que a proposta de Os Verdes iria impedir situações a que chamavam de "privilégio", porque havia aqui a obrigação de uma igualdade de tratamento. E não percebi porque isto foi uma coisa largamente tratada quando se falou sobre as mulheres relativamente a determinados normativos legais, que, em relação a elas, previam um regime de excepção, tendo-se concluído que o artigo 13.º permitia as discriminações positivas em relação a categorias que fossem vítimas de discriminação.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Claramente!

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Portanto, a questão dos deficientes e do estado de saúde estar aqui não vai proibir que existam normas de discriminação positiva em relação a essas categorias. Devo dizer que, por isso, não percebi esse contra-argumento.
Quanto à segunda questão, nomeadamente em relação aos infecto-contagiosos, penso que a Constituição contém meios que permitem a limitação de certos direitos em razão de determinada situação. Portanto, também não entendo esse contra-argumento.
Em terceiro lugar, gostava de dizer, relativamente a uma intervenção da Sr.ª Deputada Elisa Damião, que creio que se referiu à proposta da Associação Portuguesa das Mulheres Juristas, que esta proposta, que parece formalmente muito convidativa - parece! -, para mim, padece do mesmo defeito que tenho notado quer em relação a várias propostas, como em relação à questão de liberalizar o trabalho nocturno para as mulheres e em relação à questão de igualar a idade da reforma das mulheres e homens, que partem de determinadas concepções, ou seja, de uma concepção da classe média relativamente à igualdade, esquecendo alguns enunciados das desigualdades sociais e que preenchem um conceito de dignidade, que, aliás, discutimos há pouco, que é uma dignidade apenas formal e que acaba por ser nada em relação às classes desfavorecidas, ou seja, equivale, efectivamente, a zero.
Referir-me-ei apenas ao de leve à questão da união de facto e à família porque me pareceu que o Sr. Deputado Luís Marques Guedes tinha falado sobre ela. Quanto às normas positivas em relação à família, este normativo, tal como está e mesmo com o que Os Verdes vêm propor, continua a permitir isso. Aliás, mais para diante, talvez se discuta isso, mas o certo é que uma união de facto constitui uma família.
Se determinadas pessoas se casam, obedecendo a um sistema jurídico de organização que o Estado criou, é evidente que, depois, terão de ter uma regulamentação diferente em relação às outras que optaram por uma outra situação. Mas o que aqui vem proposto em relação ao estado civil não é nada disso, não é igualizar tudo, porque as situações jurídicas são, apesar de tudo, diferentes. Portanto, o que não pode é haver discriminação por causa de uma pessoa estar em união de facto, embora o quadro jurídico regulamentador, depois, tenha de ser diferente - em minha opinião, muito parco - em relação às uniões de facto.
Assim, penso que tanto a questão do estado civil como a da orientação sexual não são daqui, ou seja, não é aqui que podemos discuti-las, nem o facto de se incluir aqui o estado civil e a orientação sexual implica uma obrigação de tomar uma definição de casamento de pessoas do mesmo sexo. Não me parece que seja assim, parece-me é que isto se pode pôr na prática, e tem-se posto, por exemplo, em relação a pais homossexuais ou mães lésbicas e na questão de confiar a criança, pois poderá muitas vezes, em função de preconceitos e sem ter em atenção o interesse da criança - porque isso é que é o fundamental -, tomar-se uma opção violadora do princípio da igualdade. Portanto, penso que não é a inclusão disso aqui que obriga, desde já, a dizer que isto implica que o casamento seja entre pessoas do mesmo sexo. Não implica nada disso!
Por último, devo dizer que há uma insensibilidade que se nota por parte do PS e por parte do PSD para a melhoria, de facto, deste artigo 13.º. No entanto, é claro e também me parece evidente - e os Srs. Deputados penso que o referiram - que a actual Constituição já proíbe as discriminações em função da orientação sexual, em função do estado civil,...

O Sr. José Magalhães (PS): - Inequivocamente!

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - ... o que não quer dizer que a redacção de preceitos da Constituição não possa ser melhorada, e o que tenho notado - é a segunda vez que isso é afirmado -, quanto às melhorias relativas à formulação, é que parece que os Srs. Deputados não admitem essas melhorias.

O Sr. José Magalhães (PS): - A Sr.ª Deputada também não propôs nenhuma!

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Desculpe, Sr. Deputado José Magalhães, nós fizemos uma proposta para o artigo 13.º.

O Sr. José Magalhães (PS): - Mas não sobre esta matéria!

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Sr. Deputado, isso não implica que não venhamos para aqui, para a Comissão, ouvir as propostas dos outros e dizer que uma está certa

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e outra errada. Não lhe conhecia esse espírito de abertura tão grande!

Risos.

O Sr. Presidente: - A Sr.ª Deputada tem toda a liberdade de perfilhar propostas alheias.
Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: A ideia que temos quanto a estas propostas é que o princípio da igualdade, naturalmente, remete para uma ideia de solidariedade e aspira à sua concretização em termos de direitos sociais que, naturalmente, implica uma acção positiva do Estado. Nesse sentido, ficamos com francas dúvidas quando, a respeito do estado de saúde, se diz que ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão do estado de saúde. Pelo contrário, há situações e estados de saúde que implicam discriminações positivas do Estado, tal como é dito no n.º 3 do artigo 64.º da Constituição.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Ou negativas!

O Sr. Alberto Martins (PS): - Ou negativas, é certo! Nesse artigo, há toda uma dimensão garantística para privilegiar e beneficiar quem tem uma situação de saúde débil. Por isso, pensamos que seria francamente empobrecedora esta fórmula apresentada por Os Verdes.
Relativamente à questão do sexo, em nosso entender - isto já foi dito e repetimo-lo -, não há quaisquer discriminações jurídicas em função da orientação sexual e do sexo na nossa Constituição. Questão diversa, sim, seria consagrar-se o princípio da liberdade da orientação sexual, que é uma questão complexa socialmente, que hoje começa a estar no debate cultural, social e político mas que é uma questão complexa, e se ficasse aqui consagrada teria, naturalmente, implicações jurídicas em termos de direito ordinário, não só para permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo, como para os direitos de sucessão, os direitos da herança, os bens do casal, etc. Seria, portanto, um salto que não está no texto constitucional nem na nossa consciência cultural colectiva.
Mas há um ponto que vale a pena repisar e reafirmar: não há quaisquer discriminações jurídicas em função do sexo e da orientação sexual no nosso texto constitucional, como não há também qualquer estímulo à liberdade de orientação sexual ou qualquer impulso a ela.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Não toquei, na minha intervenção anterior, nos aspectos que têm que ver com outra parte da proposta da Sr.ª Deputada do Partido Ecologista Os Verdes relativa à orientação sexual, mas nesse aspecto o entendimento do PSD é em tudo similar ao que foi agora explicitado pelo Deputado Alberto Martins.
De resto o Partido Social Democrata, no seu programa, desde o início, inscreveu em lugar de destaque aquilo que chamamos o direito à diferença, que tem múltiplas vertentes e onde é entendimento generalizado - pelo menos para mim é entendimento claro, no âmbito do Programa do PSD - que a liberdade de orientação sexual é um facto e que essa mesma orientação sexual não pode ser, não deve ser, não é admissível que seja, fonte de discriminações ou de privação de qualquer tipo de direitos e regalias.
Desse ponto de vista também sempre fiz a leitura e penso que é uma leitura generalizada da parte do PSD, de que não há na Constituição da República Portuguesa e nem nunca houve em nenhum dos textos constitucionais desde o 25 de Abril, qualquer norma nem qualquer orientação no sentido de diminuir ou de discriminar negativamente os cidadãos em função da liberdade que penso que é inerente à dignidade da pessoa humana na escolha da sua própria orientação sexual, quer pela positiva quer ela negativa, pois penso que devemos aqui entender orientação sexual como actividade sexual, porque se pode colocar o problema da abstinência sexual.
Do meu ponto de vista, nada disso esteve em causa, a Constituição da República Portuguesa, para mim, clarissimamente, não põe isso em causa. Quanto a mim, essas não são matérias que tenham que ver com este artigo mas com a própria dignidade da pessoa humana, que é afirmada, à cabeça, pela Constituição da República Portuguesa e repetidamente em vários outros artigos.
Portanto, para além das preocupações ou, digamos, das dúvidas a jusante que foram explicitadas pelo Deputado Alberto Martins, da nossa parte nem sequer há o entendimento que o problema esteja prejudicado pelo texto constitucional. No entanto, devo dizer que todos os aspectos colocados pelo Deputado Alberto Martins são aspectos importantes e devem merecer uma adequada reflexão. Diria até que é uma questão que tem de ser amadurecida pela própria sociedade e a ordem jurídica comum tem de evoluir dentro da sociedade, à semelhança do que tem acontecido em vários em outros países que são nossos parceiros e que connosco comungam muitos aspectos civilizacionais. Se isso se verificar na sociedade portuguesa e se por força dessa evolução se vier a colocar algum entrave constitucional, então, o PSD entende que, claramente e sem dúvida nenhuma, esses entraves constitucionais devem ser claramente afastados.
Todavia, no actual momento não entendemos que assim seja. Não nego que exista problema mas não é jurídico-constitucional, pode ser um problema cultural, civilizacional, no aspecto restrito que diz respeito à sociedade portuguesa ou a alguns sectores da sociedade portuguesa e isso, do nosso ponto de vista, não é combatido e nunca podemos pensar que problemas dessa natureza possam ser combatidos ou resolúveis através de alterações jurídico-constitucionais.
Repito, quanto a esta questão em particular, não me parece que o problema exista. Se houver uma evolução da ordem jurídica portuguesa no sentido de caminhar para determinados objectivos que têm sido prosseguidos por outros países nossos parceiros civilizacionais é possível que se venha, de hoje para amanhã, a detectar embaraços constitucionais que neste momento não vislumbramos.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Barbosa de Melo.

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Só queria chamar a atenção para um ponto que está implícito em muitas das intervenções mas que julgo que ainda não foi chamado directa e frontalmente. O conteúdo normativo do princípio da igualdade está no n.º 1 do artigo 13.º; o que está no n.º 2 são proibições de discriminação, para bem ou para mal, e abrange um sector muito mais restrito do princípio da igualdade. Tudo o que sejam práticas jurídicas, legais, oficiais, sociais que afectem a igual dignidade dos seres humanos são contrárias ao

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princípio da igualdade. Depois, o que se elenca no n.º 2 são proibições, que são as mais correntes na prática universal dos povos e não só na prática portuguesa.
Aliás, a proibição da discriminação em razão da ascendência parecia que ia morrer, ou seja, dizer-se que este é filho do duque e aquele é filho do cocheiro era causa de humilhação social há 100 ou há 200anos mas isto está arredado. Há outros mundos, com a genética, mas a ascendência continua a ter utilidade, sendo proibido discriminar em razão da ascendência da pessoa em concreto. Apesar da evolução social, o sexo é também factor de discriminação em muitas culturas e em muito maior grau do que na nossa.
Estas fórmulas estão na Declaração Universal dos Direitos do Homem, formulada na Assembleia das Nações Unidas, em 1948, e isto não é uma coisa da cultura portuguesa, é da cultura universal, mas são proibições, todas elas, muito claras, sendo indiscutível que é proibido discriminar por aqui.
Quanto ao que é exigido em função da igualdade, isso dependerá, ponto por ponto, situação por situação, do n.º 1 e não das proibições do n.º 2, pois são proibições que empobrecem o princípio da igualdade. Portanto, só deverá incluir-se aqui coisas que não tragam confusões, que sejam claras, e estas que ouvi aqui, muitas delas, confundem mais e mais atrasam do que adiantam.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sr.ª Deputada Heloísa Apolónia.

A Sr.ª Heloísa Apolónia (Os Verdes): - Sr. Presidente, desta pequena discussão que aqui se fez relativamente a esta matéria, foi-nos possível verificar que todos os partido partidos políticos - e mau seria que assim não fosse - entendem que, no que se refere a estas três questões concretas, existem efectivas discriminações no dia-a-dia. Contudo, não vi qualquer manifestação de vontade no sentido de que a Constituição da República Portuguesa reflectisse e garantisse ela própria a não discriminação em razão e em função destas três questões.
Nunca foi referido que a Constituição da República Portuguesa não discrimina em razão de nenhuma destas três questões mas na questão que aqui foquei, nunca referi que a Constituição da República Portuguesa fazia discriminações em relação a estas questões e mal seria se o fizesse.
No entanto, a questão que se põe é que a prática discriminatória corrente e diária existe, infelizmente. Aliás, quase que diria que, quer o Partido Socialista quer o Partido Social Democrata, continuam a minimizar este tipo de discriminações, o que me parece verdadeiramente complicado.
É verdade que por muitas bocas se diz que existe um direito à diferença, mas esse direito não existe quando a vida diária, a vida efectiva e o dia-a-dia não podem ser vividos com igualdade. Espero que me entendam. O direito à diferença existe de facto quando a vida diferente é permitida e isso não é permitido devido à prática discriminatória.
Assim, queria só deixar a ideia de que, pela nossa parte, a intenção com esta proposta é a de reforçar direitos e garantias de direitos e não de os reduzir.
Por último, lamento que nem o Partido Socialista nem o Partido Social Democrata estejam abertos a alterar e a melhorar este artigo que, de facto, discrimina ele próprio algumas questões em função das quais existe discriminação, que é naturalmente generalizada. Isso é que é preocupante e é preciso que, de uma vez por todas, tenhamos consciência dessa questão e que, de uma vez por todas também, consigamos perceber isso e agir sobre isso, porque há quem diariamente seja vítima dessas discriminações e, quanto a nós, a vida assim não vale a pena ser vivida.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, quem ler o registo deste debate poderá, provavelmente, apurar várias coisas. A primeira delas é que a bancada do Partido Socialista distinguiu as propostas apresentadas, designadamente o bloco respeitante ao estado de saúde e à orientação e opção sexuais e a proposta atinente ao estado civil. A segunda coisa notória é que de forma alguma minimizamos as discriminações sociais e aquilo que no terreno cultural e social existe nos domínios que foram apontados.
No entanto, recusamos e recusaremos duas coisas: primeiro, minimizar as virtualidades do quadro constitucional actual e desvalorizar o que nele protege a liberdade de expressão, a liberdade de orientação, as mais diferentes concepções do mundo e da identidade sexual; segundo, a Sr.ª Deputada não provou a bondade das propostas que apresentou e, portanto, não pode reclamar-se de virtudes que as propostas não têm, porque, pelo contrário, não respondeu a nenhuma das objecções em relação a questões concretas jurídico-constitucionais. É que não estamos a discutir um panfleto nem a discutir as boas vontades nem a impingir um discurso e uma retórica sem rigor conceptual - estamos na Comissão de Revisão Constitucional.
Portanto, não respondendo às perguntas e às objecções feitas, não podia colher aquilo que só podia ter granjeado se tivesse prestado as informações basilares. Mas isso em nada diminui o nosso empenhamento no combate às discriminações concretas e menos ainda em levarmos a cabo a realização da Constituição da República Portuguesa naquilo em que ela impede discriminações e distinções que ferem a dignidade do ser humano e que em nada serão prejudicadas pela não aprovação das duas propostas que o Partido Ecologista Os Verdes apresenta.
A Sr.ª Deputada, por último, releu a sua proposta quanto à orientação sexual e quanto às implicações para o legislador ordinário em matéria de casamento dizendo que a proposta não implica o que, numa leitura razoável, implica. Ainda terão tempo até ao Plenário para tomarem uma interpretação definitiva que assumam como tal; pela nossa parte ponderaremos com toda a abertura e com toda serenidade os aperfeiçoamentos - repito, aperfeiçoamentos - do quadro constitucional.
Desse ponto de vista, o Sr. Deputado Barbosa de Melo disse aquilo que com meridiano bom senso e razoabilidade se deve dizer no tocante aos aditamentos ao n.º 2 deste preceito constitucional, uma vez que ele tem a largueza que resulta do n.º 1 e do n.º 2. E nós em nenhum momento perderemos de vista esta largueza do n.º 1 e do n.º 2 e não é por uma proposta ser feita em determinados termos e não poder ser contemplada que tonsuraremos a Constituição da República Portuguesa, aí onde ela tem um sentido pleno e protectivo. É muito mau que se apresentem propostas ferindo, ao contrário daquilo que se pretende, o edifício que se diz querer respeitar. Isso nunca faremos!

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, em jeito de conclusão e para que não fique qualquer dúvida

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sobre a posição do PSD nesta matéria, direi que a nossa posição é diferenciada no que respeita à proposta de acrescento do estado de saúde e do estado civil.
Todavia, embora concordando com a proposta naquilo que ela tem de positivo, de benéfico, para a resolução de problemas que actualmente existem na sociedade, e foi nesse sentido que orientámos a expressão da nossa opinião nesta primeira discussão sobre o assunto, não podemos ignorar os efeitos perversos que, do nosso ponto de vista, a adopção no texto constitucional, sem mais, de disposições deste tipo de considerações poderiam acarretar. Não ficámos suficientemente convencidos de que esses perigos e esses efeitos prejudiciais não subsistam ou pelo menos não pensamos que os problemas que advêm dessa adopção possam ser suficientemente superiores às vantagens que dela advenham por forma a que o legislador constituinte possa tranquila e responsavelmente optar pela sua inserção.
Já quanto à orientação sexual a nossa posição é diferente. Não entendemos que o problema exista realmente em termos do texto constitucional actual; se existe é um problema cultural ou de moral social na sociedade portuguesa e rejeitamos a ideia de que isso possa ser resolvido por alguma alteração constitucional, pois esse é um mito errado com o qual não concordamos porque temos a consciência de que a Constituição da República Portuguesa não é equívoca quanto à liberdade de orientação sexual.
Quanto a nós, o que seria equívoco era criar a ideia de que a Constituição da República Portuguesa pode resolver um problema que é, concordamos com a Sr.ª Deputada, real em alguns sectores da nossa sociedade. Para além de, quando existe, ser lamentável, recusamos a ideia de que exista por causa da Constituição da República Portuguesa e, mais ainda, que possa ser resolvido por ela.
É com isso que o Partido Social Democrata não concorda e que fique claro que é essa a razão pela qual o PSD não vê vantagens na adopção sem mais deste tipo de alterações à Constituição da República Portuguesa. De resto, lembro apenas, porque isso vai ser tratado por nós mais à frente, que o problema, em alguns dos seus aspectos concretos que a Sr.ª Deputada aqui referiu, colocar-se-á e terá de ser debatido por nós próprios nesta sede quando discutirmos, por exemplo, o artigo 36.º naquilo que tem que ver com o direito e a igualdade de direitos de todos os cidadãos para contraírem matrimónio e tudo aquilo que daí decorre.
Aliás, muitos dos aspectos que foram por nós suscitados, nomeadamente pelo Deputado Alberto Martins, são problemas concretos que têm que ver, repito, apenas com uma parte do problema e que terão de ser tratados, uma vez que são aspectos parciais, não nesta sede de princípios fundamentais mas em aspectos mais concretos na economia da Constituição da República Portuguesa, a saber, no artigo 36.º. Aí trocaremos impressões e teremos que fazer uma reflexão profunda sobre alguns aspectos parciais que foram aqui levantados nesta discussão a propósito do artigo 13.º.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, seja-me permitido um comentário pessoal. Penso que as normas constitucionais têm duas áreas de eficácia: uma nas relações entre os poderes públicos e os cidadãos e outra nas relações intra-sociais.
Quanto à primeira área, penso que a proposta de aditamento de novos factores de não discriminação não acrescentaria muito, porque é óbvio que os poderes públicos não podem discriminar os cidadãos quanto a direitos ou deveres por razões de orientação sexual ou de estado civil. Portanto, por aí não se acrescentaria nada à Constituição.
No entanto, não foi explorada suficientemente ou nem sequer foi aventada, a vantagem que uma explicitação de factores de não discriminação teria sobre certos domínios do poder público onde a propensão para a discriminação fáctica impune é conhecida. Refiro-me às forças de segurança, às forças armadas, etc. Interessaria saber se o efeito pedagógico e simbólico desta efectivação não seria apesar de tudo benéfico.
Uma outra reflexão tem a ver com a eficácia indirecta que as normas constitucionais podem ter nas relações horizontais entre os cidadãos, já que os direitos fundamentais e os princípios fundamentais têm, ou podem ter, segundo a doutrina constitucional hoje praticamente unânime, um certo efeito indirecto nas relações jurídico-privadas - por exemplo, em matéria de direito ao arrendamento, de direito ao trabalho, etc. Ou seja, pergunto se o aditamento destas fórmulas não teria aí um efeito pedagógico clarificador e simbólico.
Pessoalmente, devo dizer, para que conste, que não teria as objecções que foram expostas nos termos em que o foram em relação ao aditamento dos pontos relativos à orientação sexual e ao estado civil. Abundo, porém, na ideia de que em relação ao estado de saúde seria um aditamento altamente perturbador, já que aí são múltiplas e conhecidas as discriminações positivas e negativas que as questões de saúde podem ter.
Antes de entramos no artigo 15.º, vamos fazer um pequeno intervalo de 15 minutos.
Está suspensa a reunião.

Eram 17 horas e 15 minutos.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, está reaberta a reunião.

Eram 17 horas e 35 minutos.

Srs. Deputados, passamos ao artigo 15.º (Estrangeiros, apátridas, cidadãos europeus).
Em relação ao n.º 1, que estabelece "Os estrangeiros e os apátridas que se encontrem ou residam em Portugal gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres do cidadão português", Os Verdes apresentam uma proposta com o seguinte inciso: "designadamente os cidadãos de países de língua portuguesa e os apátridas (…)". Portanto, trata-se do aditamento de uma menção expressa aos cidadãos de países de língua portuguesa.

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Sr. Presidente, permite-me que faça uma pequena observação em relação ao artigo, em geral?

O Sr. Presidente: - Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Sr. Presidente, queria apenas chamar a atenção da Comissão para, na altura própria (que não é esta), meditarmos sobre a ordem da epígrafe deste artigo. Quanto a mim, deveria constar "cidadãos europeus, estrangeiros e apátridas", por esta ordem, em vez de começar pelos estrangeiros, cidadãos de outro Estado, seguidos por aqueles que não têm Estado.
Aliás, já no Plenário chamei a atenção para o problema, mas na altura não foi possível dar a volta a esta

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formulação; não sei se não será agora tempo de o fazermos… Sei que a epígrafe corresponde à história do artigo: foram-se acrescentando elementos e, por último, apareceram os cidadãos europeus! Não sei se não será tempo, na altura própria, de se reordenar os vários números do artigo por forma a que a epígrafe seja consentânea com as densidades decrescentes da relação com Portugal.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, apesar de não ter sido apresentada uma proposta para alterar a epígrafe, mas se nisso convierem todos os Deputados da Comissão, certamente não haverá objecções a que o façamos. Fica feito o registo da sugestão do Sr. Deputado Barbosa de Melo, com a qual estou de acordo.
Alguém se quer pronunciar em relação à proposta de Os Verdes?
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, compreendemos a preocupação e a ênfase que se pretende através desta proposta mas, verdadeiramente, tudo o que é preocupação legítima está contemplado no texto constitucional por consenso, desde há bastantes anos.
A narrativa deste artigo 15.ºé consequente e parece bem estruturada. No n.º1 alude-se ao regime em geral aplicável aos estrangeiros e apátridas; no n.º 2 estabelecem-se as excepções; no n.º 3 enceta-se a definição de um regime normativo especial para os cidadãos de países de língua portuguesa e no n.º 4 precisa-se esse regime. E a esta narrativa assim consequentemente estruturada nada acrescenta o preceito apresentado pelo Partido Ecologista de Os Verdes, a não ser talvez o facto - e este aspecto já não se refere ao n.º 1 - de substituir a alusão contida no n.º 4, aditado por consenso em revisão constitucional, por uma proclamação de que os cidadãos dos países de língua portuguesa, em certas circunstâncias, teriam capacidade eleitoral, colocando como uma espécie de extensão a possibilidade dessa capacidade ser atribuída a outros cidadãos estrangeiros. Mas essa é uma opção cuja vantagem política e técnico-prática está por demonstrar.
Portanto, Sr. Presidente, embora compreendendo a preocupação dos proponentes, não vemos uma enorme vantagem em proceder a uma cirurgia reconstrutiva de algo cujo conteúdo normativo é já o mesmo desde há muitos anos.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, o PSD não vê qualquer tipo de vantagem nesta alteração. De facto, como disse o Deputado José Magalhães, também para nós é inequívoco, e nunca foi fonte de qualquer interpretação duvidosa, que os cidadãos de países de língua portuguesa são estrangeiros enquanto tal ou subsumem-se ao conceito genérico de estrangeiros.
Portanto, não descortinamos qualquer tipo de vantagem neste inciso que é proposto para o n.º 1 pelo Partido Ecologista de Os Verdes, nem tão pouco nos parece que ele releve numa lógica (como temos constatado em relação a alguns outros artigos e respectivas propostas de alteração) de procurar enfatizar algo que nos parece merecer uma preocupação especial, porque neste contexto não vemos que a enfatização resulte, dado que não há nenhum tratamento especial nem nenhuma chamada especial de atenção.
Não vemos, repito, qualquer tipo de vantagem neste acrescento que é proposto. Por nós, o n.º 1 do artigo 15.º, na redacção actual, é perfeitamente conseguido e não nos suscita qualquer reserva.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Filipe.

O Sr. António Filipe (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Gostaria de dizer que compreendemos o intuito constante desta proposta do Partido Ecologista de Os Verdes, no sentido de sinalizar, de alguma forma, uma especial relação de amizade e cooperação que deve existir entre o povo português e os povos dos países de língua oficial portuguesa. No entanto, também nos parece que há outras formas, com um maior sentido útil, de sinalizar esta questão em disposições constitucionais, designadamente numa que terei oportunidade de expor dentro em pouco (n.º 3 do artigo 15.º).
Portanto, sem deixar de manifestar a nossa compreensão relativamente à proposta de Os Verdes, parece-nos que há outras formas de expressar uma especial relação que deve existir entre Portugal e os povos dos países que integram a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, por isso avançamos com propostas nossas sobre a matéria.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, a proposta de Os Verdes não apresenta qualquer viabilidade.
Passamos à proposta do PCP, relativamente ao n.º 3, que visa acrescentar a seguinte expressão: "Aos cidadãos dos países de língua portuguesa podem ser concedidas especiais condições de acesso e permanência em Portugal", bem como atribuídos - e esta parte já consta do preceito - "(…), mediante convenção internacional e em condições de reciprocidade, direitos não conferidos a estrangeiros, salvo o acesso à titularidade dos órgãos de soberania e dos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas, o serviço nas forças armadas e a carreira diplomática".
Para apresentar a proposta, tem a palavra o Sr. Deputado António Filipe.

O Sr. António Filipe (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Como referi há pouco, a questão que se coloca tem a ver com a forma de consagrar, em diversos pontos da Constituição e a propósito de diversas matérias, o princípio especial de amizade e cooperação que consta do artigo 7.º da Constituição.
Parece-nos que, ao nível das condições de acesso e permanência em Portugal, há algo que poderia e deveria ser feito a fim de atribuir um sentido útil, muito concreto, a essa relação muito especial. Nós não pretendemos que, em Portugal, existam cidadãos estrangeiros de primeira e de segunda categorias, a questão não é essa. No entanto, há que reconhecer que a relação especial que temos com os países que integram a Comunidade de Países de Língua Portuguesa, as características que estas comunidades têm entre nós justificam que haja uma preocupação especial relativamente a eles e às suas condições de acesso e permanência em Portugal.
Esta questão coloca-se na medida em que em diversos países europeus, e também em Portugal, têm vindo a verificar-se alterações legislativas nas condições de acesso e permanência de estrangeiros num sentido claramente restritivo. Portugal tem acompanhado essa evolução, que decorre, nalguma medida, da assinatura dos acordos de Schengen e da respectiva Convenção de Aplicação.

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Preocupa-nos, pois, que se esteja a levar a cabo uma política de restrição do acesso e permanência de estrangeiros em Portugal que não tem em conta critérios que devem ser seguidos por Portugal no seu relacionamento com outros países. Concretamente, o que se verifica é que, nos últimos anos, Portugal tem assinado acordos de supressão de vistos relativamente a cidadãos de muitos países, situação que não contestamos e até temos votado favoravelmente. Por exemplo, quando a Assembleia da República, na anterior legislatura, suprimiu a exigência de vistos a cidadãos eslovenos, eslovacos e de outros países para entrada em Portugal, votámos sempre favoravelmente.
Todavia, injustificadamente, parece-nos que não há uma política de vistos seguida por Portugal que tenha em conta os nossos critérios específicos de relacionamento externo, com outros povos. Por exemplo, um cidadão de Cabo Verde que pretende obter um visto de entrada em Portugal é alvo de fortíssimas restrições e de práticas normalmente designadas como de "candonga"; custa muito dinheiro obter um lugar na fila, em Cabo Verde, para aquisição de um visto de entrada em Portugal.
Portanto, há aqui uma distorção: por um lado, há uma permissividade relativamente a cidadãos de vários países, com os quais não temos um relacionamento especial e, por outro lado, quanto a países relativamente aos quais se proclama - e bem! - a necessidade da existência de um relacionamento especial, aplica-se um critério muito restritivo no acesso a Portugal.
Justifica-se que as comunidades que existem entre nós de cidadãos de países de língua portuguesa tenham, de facto, um tratamento especial. São cidadãos que continuam a ser segregados a muitos níveis e continua a haver uma distância muito grande entre as comunidades destes cidadãos e o conjunto da sociedade portuguesa. Basta conhecer as condições em que se está a processar o actual processo de regularização extraordinária e as dificuldades com que este processo se depara no terreno para verificar que há muito a caminhar para que estes cidadãos possam integrar-se plenamente na sociedade portuguesa. Há, de facto, uma grande relação de desconfiança, de receio de apresentação às autoridades, de receio na convivência com os demais cidadãos, bem como uma grande incompreensão por parte, designadamente, das forças policiais quanto à situação específica que estes cidadãos vivem.
De facto, há muito que caminhar no sentido da aproximação, porque é inquestionável que, sendo Portugal ainda um país de emigração e havendo muito mais portugueses no estrangeiro do que cidadãos estrangeiros em Portugal, estas comunidades já adquiriram um peso muito significativo, particularmente nas zonas urbanas. Portanto, há que ter um especial cuidado no relacionamento com estes cidadãos.
Conceder especiais condições de acesso e permanência em Portugal, como propomos, tem muito que ver com o processo de regularização que está em curso. Esta proposta foi feita, pela primeira vez, para a revisão constitucional de 1994, altura em que tinha sido concluído um processo de regularização extraordinária mal realizado, no qual se verificou que muitos cidadãos tinham ficado por regularizar a sua situação quando o poderiam ter feito, nos termos da lei.
O processo de regularização iniciado e que está em curso contempla uma discriminação positiva dos cidadãos de países de língua oficial portuguesa, claramente no sentido que propomos, na medida em que se permite que os cidadãos de países de língua oficial portuguesa possam regularizar a sua situação em condições que não são permitidas aos restantes, sem que isso signifique a atribuição de deveres desproporcionados aos restantes cidadãos quanto à sua regularização. É importante que haja uma discriminação positiva a favor dos cidadãos originários dos países de língua oficial portuguesa.
Congratulamo-nos, pois, com o facto de a Assembleia da República, por unanimidade, ter aprovado esta disposição, na lei que, em concreto, rege este processo de regularização extraordinária. Todavia, o processo está em curso e não sabemos qual será o seu resultado final, se será ou não bem sucedido, por isso parece-nos que a consagração, em sede constitucional, de um princípio que permita ao Estado português atribuir condições especiais de acesso de permanência em Portugal a estes cidadãos, que os distinga positivamente relativamente a outros, é de toda a utilidade e importância para o relacionamento entre Portugal e esses povos.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputados Luís Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, da explicitação que acabámos de ouvir, por parte do Deputado António Filipe, sobre as razões que levaram o PCP a propor este texto, o próprio orador acabou por aduzir um argumento que, do nosso ponto de vista, milita a contrario da adopção deste dispositivo.
A saber, como o Deputado António Filipe referiu - e muito bem -, o que aparentemente seria preconizado por esta alteração constitucional já é perfeitamente admitido pela Constituição portuguesa. E tanto assim é que a prática legislativa nacional tem consagrado condições especiais de entrada e permanência em Portugal para os cidadãos dos países de língua portuguesa. Diria mesmo que é bom que, não no plano constitucional mas no plano da legislação comum, do legislador ordinário, este tratamento preferencial possa ser feito, porque não nos podemos, nunca, afastar da lógica de que as relações entre Estados devem sempre pressupor uma liberdade de actuação muito grande do Estado português, no plano de relações internacionais.
O tratamento preferencial aos cidadãos de países de língua portuguesa é uma prática que, como o Deputado António Filipe referiu, vem sendo adoptada pelo Estado português de uma forma perfeitamente constitucional, não foi preciso haver ou esperar-se por uma alteração deste tipo à Constituição para que tanto o Governo como a Assembleia da República pudessem adoptar, como o fizeram no passado e até recentemente, normas no sentido de criar condições especiais de entrada e permanência em Portugal para cidadãos de países de língua portuguesa.
Portanto, concordamos totalmente, como sempre concordámos, com a existência dessa possibilidade real da ordem jurídica nacional contemplar - e fazê-lo! - discriminações positivas para estes cidadãos. A sua consagração constitucional não é necessária - ficou provado, o próprio Partido Comunista reconheceu-o, implicitamente, na sua intervenção.
Assim, à semelhança do que referimos relativamente ao n.º 1, ainda que haja necessidade de, na prática (com a qual concordamos em absoluto), ao nível da actuação das autoridades portuguesas e no plano das organizações internacionais, dar um tratamento preferencial ao relacionamento com os países de língua portuguesa e um especial enfoque ao relacionamento dos portugueses com os cidadãos desses países, já não nos parece que tal se deva processar através destes mecanismos, porque estes

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preceitos não acrescentam rigorosamente nada e podem criar a ilusão, o que seria sempre um pouco hipócrita - e não é, seguramente, essa a intenção do PCP! - de que se deu um grande passo quando, no fundo, todos sabemos que tal não significa passo absolutamente nenhum!
Concluía dizendo que comungo, claramente, pelo que entendi das palavras do Deputado António Filipe, da motivação política desta proposta do PCP. O PSD comunga, em absoluto, dessa motivação mas, com toda a sinceridade, parece-me que da própria explicitação dessa motivação ficou claro algo que para o PSD é uma realidade, ou seja, esta alteração nada acrescenta à situação actual, não cria qualquer direito nem remove nenhum obstáculo constitucional àquele que vem sendo o tratamento preferencial das autoridades portuguesas a esses cidadãos. E não gostaríamos de criar a ilusão de que esta medida alteraria alguma coisa, porque isso poderia ser mal interpretado.

O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado Luís Sá.

O Sr. Luís Sá (PCP): - Sr. Presidente, Sr. Deputado Luís Marques Guedes, os dois processos de regularização da permanência de estrangeiros em Portugal dizem, inequivocamente, respeito a situações já consumadas e a situações ilegais, isto é, quem está em Portugal até um determinado prazo, em situação ilegal, com carácter absolutamente excepcional, tendo em conta estas situações consumadas.
Ora, gostaria de saber se o Sr. Deputado teme ou não que, fora destas situações, fora destes processos de regularização de situações ilegais, o processo Schengen e a perspectiva (que se pode verificar e que, com alta probabilidade, se verificará) de ser comunitarizado o terceiro pila - usando uma linguagem da gíria que é comum nesta matéria, designadamente na sequência das conferências intergovernamentais de 1996 e da revisão do Tratado da União Europeia - possam levar, em matéria de vistos, de direito de asilo e de direito de permanência, à fixação de um regime, a partir da Comunidade Europeia e dependente do seu controlo e que, na prática, inviabilize questões deste género, de relações especiais que desejaríamos criar no âmbito da comunidade dos países de língua portuguesa.
O problema que está em cima da mesa é este: se uma norma deste tipo for consagrada, então teremos cobertura constitucional para relações particulares, designadamente nas matérias que referi, com os cidadãos destes países; se, pelo contrário, esta norma não vingar, então, "é o reino Schengen", é a comunitarização do terceiro pilar, como eu referi, é a justiça e assuntos internos dependentes da Comunidade Europeia, inviabilizando as relações com estes países, a não ser com carácter relativamente platónico.

O Sr. Presidente: - Para responder, tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Deputado Luís Sá, com toda a franqueza, devo dizer-lhe que traçou um cenário perfeitamente compreensível, ao qual nenhum de nós, prudentemente, pode sequer negar alguma plausibilidade - não direi que vai acontecer, quero bem que não aconteça e todos esperamos que não aconteça! Mas, de facto, é um cenário plausível.

O Sr. Luís Sá (PCP): - É altamente provável!

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Não diria provável, Sr. Deputado, diria antes que é um cenário plausível, não uma ficção demasiado forçada. Mas, com toda a franqueza, respondo-lhe de forma muito directa: se esse cenário se viesse a verificar, ele nunca seria evitável por via desta proposta do PCP, com toda a franqueza!
Já seria diferente, Sr. Deputado, se o PCP tivesse proposto e estivéssemos a discutir uma proposta deste género: "Aos cidadãos dos países de língua portuguesa são concedidas especiais condições". Ora, não é isso que o Partido Comunista propõe! O PCP limita-se, como referi na minha intervenção, a propor algo que não acrescenta rigorosamente nada à situação actual, porque a situação actual permite que aos cidadãos dos países de língua portuguesa possam ser concedidas especiais condições de entrada e permanência em Portugal. Portanto, não é com esta proposta do PCP que esse cenário que o Sr. Deputado Luís Sá colocou na interpelação que me fez seria minimamente afastado!

O Sr. Luís Sá (PCP): - O Sr. Deputado aceitaria a outra proposta que adianta? Nós estaremos disponíveis!

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Se podemos estar de acordo em relação à possibilidade desse cenário, também temos de ser sérios e reconhecer que essa plausibilidade nunca seria afastada por esta proposta do PCP.

O Sr. Luís Sá (PCP): - Sr. Deputado, nesse caso, vamos fazer "obras" para a afastarmos, se estiver de acordo!

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Deputado, essa seria uma segunda questão, mas como não quero furtar-me a ela sempre lhe digo que, no plano das relações internacionais, nomeadamente no plano do aprofundamento da construção europeia, que está afirmada na Constituição, o princípio do envolvimento e do empenhamento de Portugal nessa construção é constitucional e, obviamente, tem de ser conjugado com outros interesses e outros valores da cultura e da civilização portuguesa. Não conte, pois, com o PSD para, no princípio da Constituição, tentar criar mecanismos e consagrar o princípio do empenhamento de Portugal na construção europeia e, mais à frente, "semear travões" ao longo do texto que, na prática, vão cerceando toda a capacidade de negociação e de manobra séria, da parte do Governo português, nos caminhos que essa integração deve cumprir.

O Sr. Luís Sá (PCP): - O que se pretende é conciliar a pertença a duas comunidades diferentes, Sr. Deputado!

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Deputado Luís Sá, espero bem (e não tenho razões absolutamente nenhumas para duvidar) que o Governo português, seja ele qual for, pelo menos enquanto persistir em Portugal o sistema democrático que hoje conhecemos, negoceie como, por exemplo, o actual está a negociar, em sede da CIG, alterações ao Tratado da União Europeia, velando de uma forma firme e convicta por aqueles que são, tais como estes, interesses históricos e culturais da República Portuguesa.
Não tenho dúvida alguma de que assim é, e não me parece que a capacidade negocial do Governo português ficasse minimamente enriquecida pelo facto de haver um "travão" constitucional não do tipo deste que aqui nos é apresentado, mas daquele que o Sr. Deputado agora sugeriu, de uma forma livre, que seria não o de permitir a

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concessão de especiais condições mas o de obrigar à existência de especiais condições.

O Sr. Luís Sá (PCP): - A sugestão foi sua!

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Deputado, penso que tal só limitaria a capacidade negocial do Governo português em sede da construção europeia. E não vejo que haja razões para termos essa desconfiança relativamente à defesa deste tipo de interesses por parte do Governo português.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vamos alargar a discussão.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, a discussão introduzida pelo Sr. Deputado António Filipe disse respeito não apenas à temática do artigo mas a temáticas que, estando embora com ele conexas, não têm directa relação com o conteúdo da proposta apresentada pelo PCP. Portanto, não vou discutir intensamente nem o processo em concreto e em curso sobre a regularização de estrangeiros nem a situação das comunidades imigrantes em Portugal, em relação às quais, como sabe, temos a maior preocupação e apresentámos propostas muito concretas, incluindo a criação de um Alto Comissário para as Minorias Étnicas, o que acontece pela primeira vez na história recente e remota portuguesa.
Deixarei de lado essas questões, não puxarei "galões" nem quererei, a propósito dessa matéria, fazer uma discussão substantiva que com ela não tem senão uma relação pertinente mas irrelevante, do ponto de vista da norma que estamos a desenhar.
Não deixa de ser surpreendente que sobre a natureza da norma se suscitem dúvidas como as que agora foram geradas na última intervenção do PCP, porque descrita como o foi pelo Sr. Deputado António Filipe, a norma vale o que vale, ou seja, não tem acrescento de valor normativo específico às possibilidades de actuação que o Estado português hoje tem ao seu alcance e que, de resto, já exerceu! Já agora, não se esqueça que a disposição sobre regularização de estrangeiros foi aprovada sob proposta do Governo da nova maioria, aprovada, aliás, por unanimidade, o que muito nos apraz, sem que alguém se tenha sequer interrogado sobre se havia uma base constitucional habilitante para tal cousa, porque a base constitucional habilitante era, muito obviamente, o n.º 3 do artigo 15.º, com a redacção que hoje tem.
Despida de qualquer adorno, que lhe foi colocado um tanto postiçamente pelo Sr. Deputado Luís Sá, a proposta do PCP tem os limites que resultaram já bastante evidentes do debate. Talvez tenha sido isso que levou o Sr. Deputado Luís Sá a querer encontrar-lhe um sentido totalmente diferente! Então, perante aquilo que imaginava ou imagina como sendo uma ofensiva ad terrorem, no sentido de dar a Schengen o conteúdo de um verdadeiro Apocalypse Now, de ofensiva selvagem contra os interesses relevantes de pessoas humanas, e de dar à comunitarização do terceiro pilar a verdadeira natureza de um terramoto, também devorador e fagocitador de direitos humanos, contra os quais este seria o Alkaseltzer plenipotente.
A norma é, de facto, o Alkaseltzer - e o Sr. Deputado estava a propor um remédio contra o cancro, só que não o propôs! A disposição não estabelece que o Estado português deve garantir a imigração regular e, porventura, o transbordo de massas populares situadas em Angola ou Moçambique para Portugal; o PCP não propôs nada disso, antes propôs uma cláusula que refere "podem", mas não acrescenta, em termos de valor normativo constrangente, rigorosamente nada ao actual normativo, tal como está escrito!
Não vale a pena jogar em ambiguidades nesta matéria. A Constituição permite tudo aquilo que está a ser feito e, porventura, até mais. Não há, pois, qualquer acrescento nesta matéria, a não ser de ênfase retórica, e talvez não valha a pena fazermos uma competição de ênfases retóricas! Em matéria de corridas com essa "camisola", vestimos orgulhosamente a que levou as medidas como aquelas que permitiram a legalização de estrangeiros, aprovada por unanimidade por esta Câmara.
Enfim, ponderaremos se há alguma vantagem, mas o debate produzido até agora não me pareceu evidenciar acrescentos normativos e não nos interessaria, a título algum, entrar numa discussão sobre os "fantasmas" de uma determinada política.
Por último, Sr. Presidente, custa muito conseguir um lugar na fila, na Cidade da Praia, para obter um visto, mas a norma constitucional proposta pelo PCP, naturalmente, não faria com que ninguém desse três pulos na fila para obter um visto mais depressa. Isso é um facto total! Portanto, não vale a pena fazermos demagogia nesse domínio…

O Sr. Luís Sá (PCP): - Podíamos pedir a abolição dos vistos e, portanto, a abolição da fila!

O Sr. José Magalhães (PS): - Com esta norma, Sr. Deputado Luís Sá?! Dou alvíssaras a quem faça prova jurídico-constitucional disso! Esta norma, tal qual está redigida? Nunca!

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Barbosa de Melo.

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Sr. Presidente, usando a metáfora de há pouco, a do Alkaseltzer, diria que é só para tomar um "cházinho de hipericão" sobre esta matéria!

Risos.

O que é que acontece? A proposta do PCP está cheia de boas intenções, como se viu! Mas há aqui uma questão que me parece terrível: o que é inovatório na vossa proposta é a expressão "podem ser concedidas especiais condições de acesso e permanência a esses cidadãos" e o que consta do texto vigente, e que é mantido, estabelece que podem ser conferidos direitos não conferidos a estrangeiros, mas mediante convenção, ou seja, no respeito para com as autoridades constituídas nos Estados aos quais nos ligam essas relações históricas especiais.
E a questão do visto na Cidade da Praia, a questão da densidade das relações? Pergunto-me: VV. Ex.as querem acabar com a legítima autoridade desses Estados sobre os seus nacionais? Esta é uma dificuldade da vossa proposta. Ela está cheia de boas intenções, mas "de boas intenções também está o inferno cheio", diz o povo português, e diz bem!

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado António Filipe, tem mais este elemento, este provocative element para rebater…

O Sr. António Filipe (PCP): - Sr. Presidente, gostava de tecer algumas considerações acerca do que aqui foi dito.

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Em primeiro lugar, quanto às objecções do Sr. Deputado José Magalhães, de que esta proposta nada acrescenta, lembro que a legislação relativa à regularização extraordinária de estrangeiros, cuja "camisola" o Sr. Deputado José Magalhães aqui quis vestir, suscitou dúvidas de constitucionalidade. Dentro da correspondência recebida, aquando desse processo legislativo, aliás, mais propriamente, após a conclusão desse processo legislativo, houve cidadãos que se dirigiram a esta Assembleia, a outros órgãos de soberania e à opinião pública, invocando a inconstitucionalidade dessa discriminação positiva, considerando que os demais cidadãos estrangeiros estavam a ser prejudicados por terem um regime de regularização menos favorável do que aquele que era consagrado para os cidadãos de países de língua oficial portuguesa. Embora entenda que eles não têm razão, creio que não se perderia nada em clarificar constitucionalmente a questão, de uma vez por todas.
Além do mais, esta proposta do PCP não se refere apenas a um processo de regularização, que é um processo que visa sanar situações irregulares que vêm de trás, mas tem a ver, sobretudo, com o regime vigente de acesso e permanência de estrangeiros, que, como se sabe, teve desenvolvimentos muito negativos nos últimos anos, em particular a partir da legislação aqui aprovada em 1993, que criou regimes diferentes para os cidadãos estrangeiros que são cidadãos da União Europeia e para os outros cidadãos estrangeiros, incluindo aqui os cidadãos originários de países de língua oficial portuguesa. Portanto, faria todo o sentido que pudesse não ser assim.
Por outro lado, os Srs. Deputados referiram-se, com alguma frequência, a um tratamento preferencial que existirá, na prática, relativamente aos cidadãos de países de língua oficial portuguesa. De facto, na legislação sobre regularização extraordinária existe essa discriminação positiva, tal como já referi, e cuja "camisola" o Sr. Deputado José Magalhães vestiu! Contudo, importa lembrar que foi do PCP que partiu essa proposta, embora ela tenha sido aprovada por unanimidade.

O Sr. José Magalhães (PS): - Qual proposta?

O Sr. António Filipe (PCP): - A proposta para que houvesse uma discriminação positiva…

O Sr. José Magalhães (PS): - Que é originária da proposta apresentada pelo Ministro Alberto Costa, na Assembleia da República. Este é um facto objectivo!

O Sr. António Filipe (PCP): - O Sr. Deputado está equivocado…

O Sr. José Magalhães (PS): - Não tenho nenhuma amnésia nessa matéria!

O Sr. António Filipe (PCP): - Creio que está com uma amnésia nessa matéria, mas a consulta do processo permitirá esclarecer esse ponto facilmente.

O Sr. José Magalhães (PS): - Então faça-se a consulta!

O Sr. António Filipe (PCP): - Em todo o caso, congratulo-me que vista essa "camisola", Sr. Deputado!

O Sr. José Magalhães (PS): - É tão natural como ter pele!

O Sr. António Filipe (PCP): - Mas, dizia, a realidade não demonstra que exista, de facto, um tratamento preferencial das autoridades portuguesas relativamente a cidadãos originários de outros países. Para tanto basta ter presente o que se passou com o ex-Presidente de Cabo Verde, Aristides Pereira, no Aeroporto de Lisboa, ou com os passaportes diplomáticos da República Popular de Angola, pertencentes a familiares do Presidente José Eduardo dos Santos, que foram rasgados por agentes de autoridade portugueses…

O Sr. José Magalhães (PS): - Após 1 de Outubro de 1995, Sr. Deputado?

O Sr. António Filipe (PCP): - Sr. Deputado José Magalhães, ia precisamente dizer que não estamos a fazer uma revisão constitucional para proteger o País daquilo a que o Sr. Deputado chama a nova maioria e que,…

O Sr. José Magalhães (PS): - Mas também não vale a pena prolongar o "cavaquismo", Sr. Deputado!

O Sr. António Filipe (PCP): - … aliás, já tem idade suficiente para não continuar a designar-se de "nova" a si própria!
Estamos a rever a Constituição para qualquer maioria conjuntural que se forme e, portanto, é bom que lembremos que, nos últimos anos, o comportamento adoptado pelas autoridades portuguesas perante cidadãos de países de língua oficial portuguesa que entram em Portugal ou cá permanecem é de molde a que o legislador constituinte procure, ele próprio, travar situações dessas que só nos entristecem e envergonham. Seria, pois, positiva a eventual consagração de disposições constitucionais que funcionassem, de alguma forma, no sentido do reforço dos laços de amizade e de cooperação entre Portugal e esses povos.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Sr. Presidente, após esta intervenção do Sr. Deputado António Filipe, fiquei com dúvidas sobre se esses comportamentos adoptados pelas autoridades policiais em Portugal tinham base constitucional. É essa a questão que lhe coloco.

O Sr. Presidente: - Já agora, Sr. Deputado António Filipe, em que medida é que a vossa proposta os impediria?

O Sr. José Magalhães (PS): - Exacto!

O Sr. Presidente: - Para responder, tem a palavra o Sr. Deputado António Filipe.

O Sr. António Filipe (PCP): - Sr. Presidente, vou responder a essa questão, mas antes gostaria de aduzir um outro aspecto. Creio que, de facto, esse comportamento não tem base constitucional,…

O Sr. José Magalhães (PS): - Ah!

O Sr. António Filipe (PCP): - … mas gostaria muito que a Constituição pudesse prever a possibilidade de um regime diferenciado e mais favorável para os cidadãos de países de língua oficial portuguesa quanto ao seu acesso e permanência em Portugal.

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Creio, aliás, que a situação que hoje se vive relativamente à política de vistos militaria nesse sentido. Devo dizer que me sinto um pouco chocado com o facto de cidadãos dos mais diversos países do centro da Europa, e não só países da União Europeia. Há pouco falei do exemplo da Eslovénia, relativamente à qual existe um acordo de supressão de vistos de entrada em Portugal, e presumo que os cidadãos da Eslováquia e da República Checa estejam em situação parecida, porque nos últimos anos aprovámos vários acordos de supressão de vistos relativamente a cidadãos de muitos países do centro da Europa, quando, em contrapartida, um cidadão da Guiné, de S. Tomé, de Angola ou de Cabo Verde enfrenta uma situação extremamente restritiva para entrar em Portugal!
Aliás, há pouco foi referido um problema de reciprocidade e, sobre este ponto, importa dizer que a situação…

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado António Filipe, peço-lhe que abrevie na resposta ao pedido de esclarecimento.

O Sr. António Filipe (PCP): - Termino já, Sr. Presidente.
Queria apenas referir que também me choca que nenhum de nós necessite de visto para entrar na República de Cabo Verde e um cidadão cabo-verdiano que pretenda entrar em Portugal tenha essa pretensão praticamente inviabilizada pela política de vistos que o Estado português tem seguido.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Strecht Ribeiro.

O Sr. Strecht Ribeiro (PS): - Sr. Presidente e Srs. Deputados, a alteração proposta não só não altera nada para melhor como cria uma situação contraditória no interior da própria norma. Esse é que é o problema, por isso não vejo qualquer hipótese de se poder avançar com essa alteração!
Vejamos: por um lado, prevê-se que "podem" ser concedidas especiais condições em situação de reciprocidade.

O Sr. José Magalhães (PS): - Ou não!

O Sr. Strecht Ribeiro (PS): - Exacto! E, por outro lado, mediante convenção e com reciprocidade essas condições especiais podem sempre existir: fui ao México e não precisei de visto, porque há um acordo entre Portugal e o México nesse sentido. Ora, também não haverá necessidade de visto em relação ao país tal ou tal de língua portuguesa caso existam acordos nesse sentido. Portanto, não vejo qualquer sentido…

Protestos do Deputado do PCP António Filipe.

O Sr. Strecht Ribeiro (PS): - Desculpe, Sr. Deputado António Filipe, mas este não é um problema constitucional! A questão de haver ou não vistos entre o país A e o país B tem a ver com o facto de existirem ou não acordos que fazem a supressão desses mesmos vistos.
Portanto, o que os senhores aqui avançam, do meu ponto de vista, é coisa nenhuma, com a desvantagem de colocar problemas de leitura delicados. Então como é? Podemos ou não conceder especiais condições de acesso em situação de não reciprocidade? É que a parte inicial do n.º 3 da proposta de alteração do PCP dá-nos a sensação de que isso é viável…

O Sr. António Filipe (PCP): - Mas actualmente há uma situação de não reciprocidade: nós não precisamos e eles precisam!

O Sr. Strecht Ribeiro (PS): - Desculpe, Sr. Deputado, mas o que lhe estou a perguntar é se os senhores pretendem, com esta alteração concreta, que se concedam especiais condições mesmo em situação de não reciprocidade.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Unilateralmente.

O Sr. Strecht Ribeiro (PS): - Admita que amanhã a República Popular de Angola não aceita determinadas condições e nós, ao contrário, magnanimamente, fazemos tal ou tal concessão. Este, sim, é o problema que aqui se põe. Ora, a primeira parte da norma parece não colocar quaisquer limites a uma situação de reciprocidade, porque prevê essas especiais condições mesmo que elas não nos sejam concedidas, mas mais à frente acrescenta: mediante convenção internacional e em situação de reciprocidade, o que até permite fazer uma leitura da primeira parte da norma que, se calhar, não é a vossa! Além do mais, esta norma nem está bem escrita: não traz nada de novo e está mal redigida, podendo gerar dificuldades.
Não creio, por isso, que esta proposta do PCP tenha qualquer cabimento.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Sá.

O Sr. Luís Sá (PCP): - Sr. Presidente, em primeiro lugar, é evidente que esta norma não inviabiliza comportamentos como aqueles que aqui foram referidos, mas creio que pode constituir um sinal - que terá o valor que tem - para as autoridades, designadamente policiais, no sentido de inviabilizar certos comportamentos.
Em segundo lugar, quanto à questão colocada pelo Sr. Deputado Barbosa de Melo, é evidente que não está no nosso espírito diminuir em nada a autoridade soberana dos países de língua oficial portuguesa nesta matéria.

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Permite-me que o interrompa, Sr. Deputado?

O Sr. Luís Sá (PCP): - Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Sr. Deputado, a alteração desta norma tem a ver com a relação entre dois Estados independentes, o Estado português e o de origem dos estrangeiros de língua oficial portuguesa…

O Sr. Luís Sá (PCP): - Sem dúvida, Sr. Deputado, mas o que se está a passar, neste momento, é que a política de vistos seguida por Portugal está condicionada pelos segundo e terceiro pilares, designadamente pela Política Externa e de Segurança Comum da União Europeia, e, no futuro, tudo se desenha - vide as posições dos vários países nos relatórios que foram apresentados - no sentido de esta questão se poder acentuar.
Mais, em relação a Cabo Verde, o que justifica a situação aqui descrita, isto é, a de o Estado português exigir um visto e a República de Cabo Verde não, tem a ver com os compromissos assumidos por Portugal no quadro da União Europeia. No fundo, a questão que se

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coloca é se queremos ou não, com esta ou qualquer outra redacção - estamos abertos a todos os aperfeiçoamentos que possam ser feitos neste domínio -, criar um quadro que nos permita estabelecer condições concretas no sentido de, para além de pertencermos à União Europeia, ponto que não colocamos em causa, também aprofundarmos as relações com os países africanos de língua oficial portuguesa, contornando designadamente dificuldades já criadas e que podem vir a criar-se no futuro.
É evidente que esta questão deve ser tratada, desejavelmente, a um nível bilateral, através da celebração de acordos, mas neste momento o problema não se coloca, por exemplo, em termos de disponibilidade em relação à política de vistos dos governos dos países de língua oficial portuguesa, no sentido da sua abolição; coloca-se, sim, da parte de Portugal, que tem dificuldades em estabelecer acordos nesta matéria em virtude daquilo que já está previsto no Tratado da União Europeia e do que se desenha no futuro em função das práticas criadas.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Guilherme Silva.

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Sr. Presidente, o Sr. Deputado Luís Sá colocou uma questão que, com o devido respeito, não se resolve através da nova redacção proposta pelo PCP, por uma razão muito simples. Com efeito, o problema que coloca é o das vinculações de Portugal no âmbito de convenções mais amplas, designadamente no quadro do terceiro pilar, e o de sabermos se face à redacção actual do artigo 15.º da Constituição é ou não possível consagrar essas excepções quanto a cidadãos originários de países de língua portuguesa.
Parece-me óbvio que a redacção actual já permite que essas situações sejam salvaguardadas, mas num momento prévio, o das negociações dessas convenções. É, pois, no âmbito da assinatura dessas convenções que Portugal poderá ou não - e resta saber se tem ou não margem para o fazer, mas só através de uma análise concreta de cada situação é que isso poderá ser apurado - salvaguardar ou criar uma situação de excepção para o relacionamento específico e especial que tem com estes países. Mas, se isso for possível, e eventualmente será, a redacção actual do artigo 15.º permite-o; já a redacção proposta pelo PCP não adianta nem atrasa nada no que respeita aos casos de que o Sr. Deputado Luís Sá falou.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Exactamente!

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vamos passar à proposta de alteração de Os Verdes, que adita um novo número - o n.º 4 - ao artigo 15.º, para conferir um regime especial quanto ao exercício de direitos eleitorais para a designação dos titulares dos órgãos das autarquias locais em relação aos cidadãos de países de língua portuguesa.
Actualmente, o texto da Constituição permite que a lei possa atribuir a estrangeiros residentes no território nacional, em condições de reciprocidade, capacidade eleitoral activa e passiva para a eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais.
Ora, o que o Grupo Parlamentar de Os Verdes propõe é que, em relação aos estrangeiros que sejam cidadãos de países de língua portuguesa, estes tenham, à partida, capacidade eleitoral activa e passiva para a eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais, independentemente das condições de reciprocidade. Portanto, aquilo que é hoje uma faculdade, mediante a exigência de reciprocidade, passaria a ser um imperativo constitucional, independentemente da existência de condições de reciprocidade em relação aos países de origem.
Esta é a proposta que está em causa. Como os autores da proposta não estão presentes, fiz a sua apresentação. Está aberta a discussão.
Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, esta é uma questão bem mais complexa do que pode aparentar o carácter singelo desta redacção. De resto, muitos dos Srs. Deputados que estão presentes nesta reunião, por integrarem também a 1.ª Comissão, estão recordados de que, ainda há pouco tempo, foi legislado nesta Câmara matérias que se prendem directamente com o problema que aqui está em causa.
Desde logo, há uma questão fundamental - e é pena que não esteja presente ninguém do partido proponente para responder - relacionada com aspectos de natureza temporal, ou seja, o texto da proposta de alteração refere-se, de uma forma singela, aos cidadãos de países de língua portuguesa residentes no território nacional sem colocar aqui, como é tradicional e típico na ordem jurídica portuguesa, quaisquer requisitos de natureza temporal para atestar essa residência no território nacional.

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Pelo menos, deveria remeter para a lei!

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Exactamente. Como diz o Sr. Deputado Guilherme Silva, e bem, o texto deveria, no mínimo, remeter para a lei ordinária ou coisa que o valha.
Nos termos da lei ordinária já é assim, e tanto assim é que, há um ou dois meses, esta Câmara legislou no sentido de dar aos cidadãos de países de língua portuguesa residentes no território nacional, em situações preferenciais, como todos sabemos, quando comparadas com aquelas de que gozam os cidadãos estrangeiros de outros países que não de língua portuguesa, capacidade eleitoral activa e passiva para a designação de titulares de órgãos de autarquias locais.
Portanto, do ponto de vista do PSD, esta questão tem vindo a ser tratada de uma forma adequada e prudente na legislação nacional, não nos parecendo que haja qualquer necessidade de dar um salto deste tipo, ainda por cima com os problemas da redacção proposta. Tratar-se-ia, pois, de um salto demasiado imprudente do nosso ponto de vista.
Com efeito, a situação actual tem vindo a merecer um tratamento legislativo com o qual o PSD tem estado de acordo e se congratula, pelo que não vê necessidade de mexer no texto constitucional. Tal criaria problemas numa perspectiva de relacionamento soberano entre Estados e de respeito pelas cidadanias, em termos preferenciais, com os cidadãos de países de língua portuguesa, pontos que a legislação nacional tem respeitado.
Em suma, não concordamos com o teor desta alteração.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Quando discutimos o n.º 1 do artigo 15.º

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tive ocasião de adiantar a posição que temos em relação a esta proposta. Gostaria apenas de acrescentar que a alteração aventada implicaria, entre outros aspectos, uma outorga, concessão ou definição de um direito, prescindindo da condição de reciprocidade que tanto o actual n.º 4 como o n.º 5 do citado preceito consideram como pressuposto deste acto do Estado português, o que não tem justificação. Não sei se não se tratará de um lapso - infelizmente não temos a possibilidade de discutir este ponto com os proponentes -, mas trate-se ou não de um lapso não há fundamento para tal.
Por outro lado, tudo aquilo que, desejavelmente, se deve fazer nesta matéria - o que, aliás, aconteceu recentemente, por unanimidade - pode ser feito sem mais. Não vejo por isso vantagem em operar esta alteração.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Guilherme Silva.

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Sr. Presidente, a minha intervenção visa reforçar esta ideia do Sr. Deputado José Magalhães. Como é óbvio, não me parece minimamente curial, designadamente em sede constitucional, que se entre num tratamento indirecto dos Estados de língua oficial portuguesa e dos cidadãos que a eles pertencem num processo com um certo renascer de paternalismo que não se justifica. O que se pretende é tratar esses Estados de igual para igual.
Apesar de não ter nada a ver com esta proposta, como é natural, aproveito para responder à dúvida levantada pelo Sr. Deputado José Magalhães sobre a possibilidade de haver ou não um lapso, porque parece-me óbvio que não se trata de um lapso, porque se assim fosse, para manter a reciprocidade não era preciso alterar a norma! A ideia é, realmente, inovar, prescindindo do princípio da reciprocidade, e essa supressão parece-nos de todo errada.
A reciprocidade é, exactamente, um problema de princípio e não prático, de execução. Naturalmente, se houver em Portugal mais cidadãos provenientes de países de língua oficial portuguesa em condições de acesso a esses cargos de órgãos autárquicos, eventualmente surgirá um maior número de cidadãos dessa origem nos órgãos autárquicos portugueses do que portugueses nos países de onde esses cidadãos são originários, mas esses são problemas conjunturais.
Ora, o que aqui está em causa é uma questão de princípio que, independentemente de ter maior ou menor aplicação concreta, deve manter-se na Constituição.

O Sr. Presidente: - Não havendo mais inscrições, passamos então ao artigo 16.º da Constituição.
Em relação a este preceito, o PSD apresentou uma proposta de alteração ao n.º 1. Actualmente, pode ler-se no n.º 1 o seguinte: "Os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional". E a proposta do PSD acrescenta, na parte final do citado preceito: "(...) ou decorrentes da dignidade e da inviolabilidade da pessoa humana".
Para fazer a apresentação da proposta de alteração, tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: A proposta do PSD deve ser analisada em conjunto com uma alteração que propomos, mais à frente, de aditamento de um novo artigo à Constituição, o artigo 25.º-A.
No fundo, esta proposta de alteração tem a ver com a necessidade de se prever sempre o respeito e a inviolabilidade da pessoa humana. De facto, no actual texto deste n.º 1 do artigo 16.º, ao definir-se o âmbito e sentido dos direitos fundamentais, pode ler-se que os direitos fundamentais expressamente consagrados na Constituição "(...) não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis ao direito internacional".
Ora, temos assistido, fruto da evolução das tecnologias, por vezes a ritmos dificilmente acompanháveis por nós, humanos, à abertura de novos campos onde, não poucas vezes, essa própria dignidade e inviolabilidade da pessoa humana, que deve ser garantida, é posta em causa. Há variadíssimos exemplos disso, nomeadamente nos anos mais recentes. Por essa razão, o PSD propõe o aditamento de um novo artigo (o artigo 25.º-A), relacionado com a consagração constitucional deste novo campo de direitos que têm de ser salvaguardados e que exigem uma resposta a uma nova realidade a que todos assistimos, a par e passo.
Nesse sentido, parece-nos que quando se define, no artigo 16.º, o âmbito e sentido dos direitos fundamentais, vale a pena acrescentar, porque nenhum de nós pode ter a pretensão de ser exaustivo nesta matéria - aliás, já o legislador constituinte do texto actualmente em vigor teve esse cuidado, ao dizer que os direitos fundamentais consagrados nesta Constituição não excluem quaisquer outros constantes "(...) das leis e das regras aplicáveis no direito internacional" -, uma ideia genérica, salvaguardando, no fundo, aquilo que está em causa nesta matéria, ou seja, a dignidade e a inviolabilidade da pessoa humana. Este é o sentido útil desta norma ou é assim que o sentido útil desta norma, no entender do PSD, ficará salvaguardado de uma forma mais conseguida.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, está aberta a discussão relativa à proposta de alteração ao n.º 1 do artigo 16.º, apresentada pelo PSD.
Para uma intervenção, tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: O n.º1 do artigo 16.º é, sem dúvida, uma disposição de grande importância na definição da malha jurídico-constitucional de protecção de direitos fundamentais, uma vez que é um espaço de liberdade e de articulação do quadro normativo constitucional com todos os outros espaços de garantia de direitos fundamentais. Nesse sentido, "abre" a Constituição e garante algo que é fundamental: a Constituição, não é um espaço fechado mas, sim, interligado com outros espaços. Mas esses espaços têm uma característica, porque a Constituição foi precisa ao remeter para instrumentos normativos definidos e sobre os quais as regras constitucionais são, elas próprias, claras: refere-se aos direitos fundamentais constantes das leis, estabelecendo assim um patamar de articulação entre direitos constitucionais e legais, e das regras aplicáveis de direito internacional.
Ora, coisa bem diferente e instrumento e realidade distinta é a alusão à dignidade ou inviolabilidade da pessoa humana, em geral.
Vejamos: quanto ao que seja a lei e os direitos fundamentais que a mesma define, nenhuma incerteza se coloca, porque as leis os definirá, nos termos e condições nela constantes, com a configuração e a arquitectura que deva ser acolhida ou aplicável; quanto ao direito internacional, qualquer que seja o seu regime e a sua configuração

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específica, também temos meios constitucionais de apurar os modos de revelação e de formação de direito internacional vinculativo e configurador de situações jurídicas subjectivas e de verdadeiros e próprios direitos fundamentais, como tais protectores dos cidadãos, das pessoas.
Tem natureza totalmente diferente a alusão à dignidade ou à inviolabilidade da pessoa humana invocada em abstracto, quase diria a se, sem recepção e vazamento em fonte normativa certa, concreta, espessa, densa e invocável, oponível ou criadora daquilo a que chamaríamos direitos fundamentais "extra-catálogo" ou extra-Constituição. Com isto, nasceria um espaço de incerteza, com contornos que, francamente, não sou capaz de definir - e suponho que ninguém é capaz de o fazer!
A alusão a esta fonte informe e imprecisa de direitos não oferece nenhum critério, nenhum princípio para uma definição ou densificação de contornos, a não ser que aquilo que se pretenda é o que decorre já do artigo 1.º da Constituição.
Com efeito, o artigo 1,º ao aludir à dignidade da pessoa humana como uma das características e um dos pilares da República portuguesa, tem algumas implicações, para as quais temos, aliás, modos de revelação e de definição de consequências jurídico-práticas para a esfera jurídico-individual. Se aquilo que se pretende é apelar ao mesmo, isso já consta do artigo 1.º e de outros artigos da Constituição, mas se o que se pretende é criar uma espécie de superfonte, informe e de contornos imprecisos e insondáveis, está por provar que tal não possa ter consequências perversas, porventura originadoras de espaços de confusão, e até, em alguns casos, de perturbação da protecção de determinados direitos de cidadãos, ou de conflitos com outros direitos - sérios conflitos de direitos, com dificuldades de compatibilização bastante difíceis de ultrapassar com êxito.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Sá.

O Sr. Luís Sá (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Em primeiro lugar, creio que há que louvar a persistência do PSD, que já apresentou esta proposta por ocasião das revisões da Constituição em 1982, 1989 e em 1994. Mas há que sublinhar, na sequência da verificação da posição de outros partidos sobre esta matéria, que foi reconhecido que com esta consagração ou sem ela a dignidade da pessoa humana é um critério fundamental para, por um lado, aferir do sentido de alcance dos direitos fundamentais na Constituição mas, por outro lado, que a Constituição contém um "catálogo" aberto nesta matéria, o que significa que, como todos reconheceremos, princípios como o que consta do artigo 1.º, que diz que a República portuguesa baseia-se na dignidade da pessoa humana, são inequivocamente fonte de novos direitos e, inclusivamente, um princípio aplicável na resolução de novos problemas como aqueles que vários partidos querem enfrentar quando propõem o enriquecimento do "catálogo" concreto de direitos fundamentais neste plano.
Portanto, a partir do momento em que há um "catálogo" aberto de direitos, na medida em que este "catálogo" é aberto, não apenas em função de outros direitos que a lei consagre, de outros direitos que decorram do direito internacional, mas também de princípios que constam da Constituição, nós não vemos razões decisivas para acrescentar nem vemos que benefícios concretos resultariam nesta matéria.
Ainda há pouco, colocava-se a questão de saber que benefícios concretos resultariam de uma proposta e pensamos que, neste momento, há que devolver a pergunta, independentemente de outras considerações que, eventualmente, viriam ao caso.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Barbosa de Melo.

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Esta questão é uma daquelas recorrências de todos os processos de revisão da nossa Constituição: o Partido Social Democrata sempre propõe a introdução desta norma aqui e sempre vê derrotado o seu ponto de vista.
O problema que se coloca tem uma origem histórica, que remonta a 1975, porque, como VV. Ex.as saberão, na acta final da Conferência de Helsínquia, a dignidade humana aparece como referente imediato para novos direitos fundamentais. Ora, é na linha dessa abertura antropológica a direitos fundamentais novos que o PSD, logo de princípio, teve a pretensão de ver figurar este aspecto na Constituição.
O problema que reside por trás de tudo isto é o de saber como se positiva a dignidade humana. VV. Ex.as dizem que são as leis,...

O Sr. Presidente: - E as convenções internacionais! E o direito internacional geral!

O Sr. José Magalhães (PS): - E o Direito Internacional Público! Eventualmente, o próprio costume!

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Exacto! E se for o costume interno? E se forem os comportamentos fácticos internos? E se forem as sentenças dos tribunais internos, a jurisprudência?
Há miríades de formas de positivação do direito. Hoje, todos sabemos disso e não vale a pena estar aqui a "chover no molhado". As formas de positivação do direito estão muito para além da lei e da convenção, passam por n tipos de acção social em que, digamos, pode coalhar-se uma ideia jurídica que há-de valer depois como critério de decisão normativo.
A ideia da dignidade humana, introduzida assim, como critério de referência para a formulação de novos direitos de decisão pública que hão-de ser positivados através de várias formas, nomeadamente as sentenças, sobretudo a jurisprudência interna, retira da mão dos detentores do poder político saber quem é que tem acesso à revelação do direito. São só os Deputados, os titulares do poder político, ou é também a comunidade jurídica no seu conjunto?
No fundo, a ideia que está aqui é a de que estamos perante dois tipos de mentalidade jurídica: a positivação tradicional do legalismo, que é a de VV. Ex.as - permitam-me este "baptismo" tão fácil -, e uma positivação aberta, um sistema aberto, onde são possíveis várias formas de positivação do direito. Eis a questão...

O Sr. José Magalhães (PS): - E o "alegalismo"!

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Exactamente!
Eis outras dimensões da ordem jurídica.

O Sr. José Magalhães (PS): - E o direito natural!

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Também o direito natural, obviamente!
Aliás, está aqui em causa uma ideia que transcende o poder político positivado através de formas de práticas

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sociais, repito. E o precedente é a acta final da Conferência de Helsínquia de 1975.

O Sr. Luís Sá (PCP): - A acta final da Conferência de Helsínquia está coberta pela referência ao direito internacional.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Martins.

O Sr. Alberto Martins (PS): - A nossa ideia é precisamente a de que os direitos fundamentais têm uma fonte, que é a constituinte, quer seja de forma directa, que é a Constituição, quer seja por remissão e incorporação das normas do direito internacional e convencional. Por isso, aderimos a uma ideia de um "catálogo" concretizado, aberto. Aliás, a própria Constituição o abre pela via do direito internacional e até pelos direitos análogos...

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Mas mais redutor, apesar de tudo.

O Sr. Alberto Martins (PS): - No entanto, consideramos que há que estabelecer uma destrinça clara entre direitos concretos, sancionáveis, oponíveis, com titulares, e princípios.
Estamos de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana. Aliás, na nossa proposta relativa ao artigo 26.º consagramos a ideia de que a lei garantirá a dignidade pessoal, a identidade genética e a integridade do ser humano - os objectivos que os senhores pretendem salvaguardar estão salvaguardados na nossa iniciativa legislativa. Mas, enquanto fonte geradora de direitos fundamentais, pensamos que tem de haver um valor que consideramos fundamental que é o da segurança jurídica. É que a remissão para uma invocação de princípio, que é justa, que é a dignidade da pessoa humana, tratada de certa forma, até na alusão que foi feita ao costume jurídico ou parajurídico, poderia levar a que a consolidação dos pareceres de eventuais comissões de ética, com a valoração que muitas vezes têm nalguns domínios, pudesse vir a ser aceite como fonte que, ao pretender ser uma fonte de abertura ao direito, era de fechamento de alguns direitos fundamentais e que poderiam até pôr em causa a dignidade da pessoa humana. Seria um risco muito grande, seria uma abertura quase sem princípios porque o cientismo, o fazer tudo o que pode ser feito na evocação de valores ditos como superiores, pode constituir, no limite, a negação absoluta desses valores. Portanto, a segurança da positividade dos direitos parece-nos um caminho mais consistente e seguro, até em termos de uma ideia mais propositiva, futurante e aberta.

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Sr. Presidente, peço a palavra para fazer um pedido de esclarecimentos.

O Sr. Presidente: - Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Há um passo da exposição do Sr. Deputado Alberto Martins que não entendi bem.
Entende o Sr. Deputado que os direitos constantes das leis, só das leis, sem convenções, sem costume internacional, como está explícito no n.º 1 do artigo 16.º vigente, isto é, que são positivados por via da lei, não podem ser direitos fundamentais?
Faço-lhe a pergunta porque, repito, perante a exposição que fez fiquei com esta dúvida e entrei em pânico.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Falo dos direitos constantes das leis e das regras aplicáveis do direito internacional...

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Mas é uma conjunção?

O Sr. Alberto Martins (PS): - Se for relativamente às leis, é no enquadramento constitucional.
Este texto pode ser lido de duas formas: ou leis na base do enquadramento constitucional e, portanto, o comando é constitucional, ou leis e regras aplicáveis do direito internacional - e é desta forma que entendo que deve ser lido. Portanto, extraio essa leitura que não permite...

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Portanto, é um produto lógico e...

O Sr. Alberto Martins (PS): - São as duas fontes, naturalmente.

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - É leis e...

O Sr. Alberto Martins (PS): - E regras, naturalmente.

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Se for só leis, já não...

O Sr. Alberto Martins (PS): - Pode também ser apenas leis aplicáveis no direito internacional, mas no quadro constitucional, naturalmente!
Não estou a ver que haja convenções que sejam supraconstitucionais.

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Mas eu refiro-me às leis. Só me interessa o problema das leis; quanto a isso é que fiquei confuso.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Então, o processo equitativo não é aplicável?

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - O problema que coloquei é outro.
Eu disse que manifestações especiais da dignidade humana podem ser positivadas pelas leis, pelas convenções internacionais, pelos costumes internos, pela jurisprudência dos tribunais, etc. Há n formas de positivação do direito que podem ser válidas para a formulação dos direitos fundamentais e reconhecidas como tais na ordem interna jurídica portuguesa. Foi isto que eu disse.
Ora, a forma como o argumento foi desenvolvido pareceu excluir daqui as leis como tais...

O Sr. Alberto Martins (PS): - Não, não!

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Tem de ser a Constituição? Então, nega-se o que está no n.º 1! Era esta a questão que queria ver esclarecida.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Não, não!

O Sr. José Magalhães (PS): - Pelo contrário!

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - O Sr. Deputado Alberto Martins insistiu de novo em que só admite novos direitos consagrados pela lei, decorrentes da lei, em conformidade com a Constituição.

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O Sr. Alberto Martins (PS): - Ora bem!

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - A ser assim, então, não é preciso a lei!
O que o artigo 16.º parece pretender consagrar é uma ideia de amplitude ou de maior ampliação dos direitos fundamentais. Ora, de acordo com a leitura que faço - penso que o Sr. Deputado Barbosa de Melo estará de acordo e se assim não for corrigir-me-á -, a Constituição admite que possam aparecer na lei, por evolução ou por qualquer outra razão, direitos que ela própria não consagra mas que acolhe e aceita...

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - E que vão ter o tratamento de direitos fundamentais!

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Exactamente!

O Sr. Alberto Martins (PS): - Mas que não a contrariam, naturalmente.

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Mas V. Ex.ª insiste em dizer "só aceita direitos fundamentais que a lei venha a consagrar em conformidade com a Constituição". Ora, os que estão na Constituição já estão consagrados! Isto é um "mais"...

O Sr. Alberto Martins (PS): - Estou de acordo com isso.

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - ... ou, eventualmente, será um "mais".

O Sr. Alberto Martins (PS): - Pode haver direitos fundamentais que não estão consagrados na Constituição mas que não estão à revelia dela, e todos nós já travámos conhecimento com isso. Essa é uma questão óbvia.
Por outro lado, há direitos fundamentais que estão consagrados em convenções, como, por exemplo, na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, em que está consagrada a proibição de trabalhos forçados, que não constam da nossa própria Constituição e que são aplicáveis pois, naturalmente, são direitos fundamentais.
Portanto, a menos que tenha sido menos feliz na exposição que acabei de fazer, a verdade é que o objectivo é este que acabei de dizer.

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Mas essa dúvida surgiu-nos, realmente.

O Sr. Alberto Martins (PS): - Então, é porque fui menos feliz na minha exposição.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, de acordo com a ordem de inscrições, é a minha vez de intervir.
Em primeiro lugar, devo dizer que a cláusula do n.º 1 do artigo 16.º é uma cláusula de abertura de direitos fundamentais praeter constitutionem, na observância da Constituição...

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Porque a própria Constituição o diz!

O Sr. Presidente: - Nem a lei nem as regras de direito internacional podem criar direitos fundamentais contra a Constituição, é praeter constitutionem. Mas o problema não é esse. O problema é o de saber se além das convenções internacionais e da lei, o juiz ou a administração podem invocar directamente, a partir da dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais mesmo contra a lei. Eu entendo que não e, por isso,...

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Mesmo para além da lei!

O Sr. Presidente: - Não, não! A partir do momento em que invoquem um direito fundamental directamente a partir da dignidade da pessoa humana, por efeito da Constituição, podem invocá-lo contra a lei.

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - E praeter legem?

O Sr. Presidente: - A mesma coisa!
O que eu entendo é que o juiz, o aplicador do direito, não pode ser ao mesmo tempo formador e criador do direito em matéria de direitos fundamentais, porque isso pode pôr em causa interesses públicos fundamentais.
Basta-me ver as posições, por exemplo, da Comissão de Ética para as Ciências da Vida, para verificar o que pode ser uma invocação directa da dignidade da pessoa humana nas mãos do julgador para, pura e simplesmente, considerar todo e qualquer interesse público como insusceptível de ser contraposto a uma interpretação conservadora ou reaccionária da dignidade da pessoa humana. Por exemplo, nenhum transplante de órgão que atentasse contra o parecer subjectivo do julgador poderia ser invocado sob o ponto de vista do interesse público. É esta discrição do aplicador, seja juiz seja administrador, que, a meu ver, é intolerável em termos de direitos fundamentais.
O que está aqui em causa é saber quem é que tem legitimidade de positivar direitos a partir da dignidade da pessoa humana. Ora, entendo que não é o aplicador, que está sujeito à Constituição e à lei. É que a admitir isso, as normas constitucionais, segundo as quais o juiz não está sujeito a outra coisa senão à Constituição e à lei, invertiam-se pura e simplesmente, isto é, o juiz poderia passar a invocar a dignidade da pessoa humana para se sobrepor à lei e, se calhar, também à própria Constituição. É que a partir do momento em que haja dois direitos fundamentais contrapostos tem de fazer-se um balanço entre eles. Portanto, bastaria o julgador invocar um direito fundamental que entendesse derivar da dignidade da pessoa humana para, imediatamente, estar habilitado a reduzir, comprimir, quiçá aniquilar, outro direito, esse expresso na Constituição. Essa prática e essa possibilidade é que, a meu ver, não nos habilitam a aprovar uma norma como a que o PSD pretende.
Prescindo de vos apresentar, Srs. Deputados, uma colectânea das reflexões da Comissão Nacional de Ética para verem até que ponto pode ir, em termos de pura discrição, o subjectivismo na interpretação do que é a dignidade da pessoa humana, do que podem valer os verdadeiros valores positivados na Constituição face à interpretação subjectivista, o que uma mentalidade retrógrada e reaccionária pode fazer a partir da dignidade da pessoa humana. Basta referir o que isto daria, por exemplo, a favor das teses antiabortistas, para além daquilo que os que defendem a inconstitucionalidade do aborto já retiram do actual texto da Constituição - a meu ver sem qualquer legitimidade, como, aliás, declarei quando tive de decidir isso como juíz do Tribunal Constitucional -, teriam agora mais um argumento, não despiciendo, para invocarem a favor dessa tese. Portanto,

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pela minha parte, penso que esta proposta não deve merecer o nosso apoio.
O princípio da dignidade da pessoa humana é, obviamente, uma referência incontornável em matéria de direitos fundamentais, mas é uma referência como princípio de interpretação, como princípio que compele o legislador, desde logo o legislador constituinte, o legislador ordinário, as convenções internacionais, que, aliás, são muitas, que apelam para a dignidade da pessoa humana para, daí, positivarem direitos. Agora, que isso seja gerador directo para o aplicador, recuso-me a aceitar isso.
Portanto, o Sr. Deputado Barbosa de Melo tem razão quando diz que a questão é exactamente a de saber quem é que positiva os direitos fundamentais decorrentes da dignidade da pessoa humana. É, de facto, essa a questão fundamental.

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Ganhou, mais uma vez, o legalismo!

O Sr. Presidente: - Não! Se eu apelo para o direito internacional comum, não só para a lei. Em todo o caso, apelo é para uma autoridade democraticamente legitimada e não para o subjectivismo do juiz. Qual é a legitimação de um juiz ou de um aplicador administrativo? Qual é a sua legitimidade para contrapor a sua concepção da dignidade da pessoa humana aos valores constitucionais, tal como transpostos pelo legislador democraticamente instituído?

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Para mim, é evidente que, ao raciocinar assim, o Sr. Deputado está a excluir do seu campo de observação o momento institucional das coisas.
Se um juiz de 1.ª instância diz uma coisa, se uma comissão algures diz uma coisa, há toda uma série de aproximações, de controlos, de recursos, etc., e essa estabilização normativa à margem do poder político mas com base noutro poder, no poder do direito, pode formular coisas que o jurista pode argumentativamente considerar como correctas para poder decidir depois. É esta a minha atitude.
Portanto, digo que triunfou uma perspectiva legalista, bem argumentada como sempre. Triunfou esta perspectiva, como sempre tem acontecido, mas a outra visão das coisas fica de pé.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Strecht Ribeiro.

O Sr. Strecht Ribeiro (PS): - No fundo, não vou repetir o que já foi dito nesta última intervenção e que aprovo integralmente.

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - A última intervenção foi a do Sr. Deputado Barbosa de Melo!

Risos.

O Sr. Strecht Ribeiro (PS): - Não! Essa foi um comentário. Refiro-me à intervenção do Sr. Presidente, Deputado Vital Moreira.
Aliás, não sou um jus-naturalista e, portanto, estou arredado claramente do comentário do Deputado Barbosa de Melo.
Apenas quero fazer dois comentários simples.
A defesa do texto actual e o rebater da posição avançada é simples. É que mil vezes as limitações, se é que diz que há, de um poder democrático, do poder sufragado, do que as do arbítrio eventual, do juízo de quem não é sufragado. Portanto, se já não tenho dúvidas, para não dizer que tenho certezas, sobre a questão do poder judicial e a forma como ele seria alterado com a introdução desta proposta de alteração do PSD, deixaria de ter qualquer dúvida no sentido de não aceitar o que propõem e de rebatê-lo integralmente.
A verdade é que não dou a ninguém o direito de constituir-se simultaneamente em legislador, sem estar democraticamente avalizado para o efeito, e em julgador. Acho até que alguma limitação teremos de considerar em relação ao poder judicial para evitar alguma distorção democrática por via jurisprudencial.
Sou advogado e tenho a noção exacta de que a realidade exposta na intervenção do Deputado Vital Moreira não é um discurso, é uma realidade que há que travar. Portanto, não tenho dúvidas em estar de acordo com as intervenções que, claramente, rejeitam a alteração proposta pelo PSD, ainda que conhecendo os seus bons propósitos personalistas.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, não há mais inscrições relativas a este ponto.
Ainda em relação a este artigo 16.º foram apresentadas duas propostas: uma de aditamento ao n.º 3, apresentada pelo PS, e uma outra, apresentada pelo PCP, de aditamento de um artigo 16.º-A, as quais são convergentes em grande parte. Trata-se de acrescentar uma norma constitucional sobre os parâmetros de criação de deveres ou obrigações para os cidadãos, naturalmente obrigações públicas, como está bem dito na proposta do PCP e deveria estar na do PS.
Para apresentar a proposta de aditamento do PS, tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Nesta matéria também tem havido um debate recorrente que culminou sempre com determinado resultado. Esperemos que consigamos agora uma espécie de ruptura ou de inversão de praxe.
É que, neste domínio, há, de facto, uma lacuna constitucional. A doutrina, habilmente e com esforço e mérito, tem vindo a procurar estear em outras versões da Constituição alguns limites concretos no tocante à criação de deveres e obrigações públicas para os cidadãos, mas a verdade é que, sendo um esforço hermenêutico, sem dúvida meritório, é extraordinariamente espinhoso devido a uma lacuna constitucional.
A Constituição gerou esta lacuna, por razões que os Srs. Deputados seguramente conhecerão melhor do que eu próprio, algumas das quais aparecem espelhadas sobretudo no n.º 1 do projecto do PCP mas também na própria versão do projecto do Partido Socialista. E têm falhado todas as versões até hoje adiantadas para colmatar esta omissão.
Quais são, então, os méritos da proposta que hoje adiantamos e que surge depurada em relação a alguns "antropopithecus" jurídicos anteriores, menos perfeitos e menos bem concebidos? A proposta tem o cuidado de sublinhar que há deveres previstos na Constituição e, quanto a esses, nenhuma dúvida existe. É a segunda parte, fundamentalmente, que releva para este efeito.

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Naturalmente, refiro-me à criação de deveres e obrigações públicas. Está no espírito e é suposto que esteja na letra do nosso projecto...

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Mas não está cá!

O Sr. José Magalhães (PS): - Mas deve estar. Portanto, faço aqui essa correcção oralmente.
Como dizia, de acordo com a nossa proposta, a criação de deveres e obrigações públicas pode fazer-se por via de lei, precisando-se mais adiante "ou mediante autorização legal", uma vez que é possível conceber regimes de autorização que impeçam ou que dispensem a criação casuística. Depois, define-se um regime material para a criação, ou seja, só na medida necessária - não se diz "estritamente necessária" mas apenas "necessária", portanto, há aí alguma flexibilidade adicional - para realizar interesses públicos, mas não quaisquer uns, isto é, interesses públicos que sejam conformes aos princípios constitucionais.
Esta é uma tentativa "herdeira" de outras tentativas e esforçadamente "aprendiza" ou acolhedora de debates pretéritos. Todavia, Srs. Deputados, está aberta a benfeitorias, a contribuições aperfeiçoadoras, que permitam acabar com essa estranha situação ainda hoje reinante neste domínio.
No caso da outra proposta atinente a esta matéria há uma restrição, mas comentaria esse aspecto em momento ulterior, uma vez que a proposta do PCP tem um critério material de definição das circunstâncias em que é possível introduzir e criar poderes públicos um pouco distinto e, aliás, mais limitativo.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes, para pedir esclarecimentos.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Deputado José Magalhães, com toda a franqueza, digo-lhe que fiquei sem perceber quais são, em termos objectivos, as realidades que o Partido Socialista pretende prevenir com esta proposta.
Reconheço que o Sr. Deputado já deu uma explicação acrescida na sua intervenção, o que foi muito importante pois, de facto, a redacção da proposta era insuficiente naquela parte...

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Deputado, uma é uma limitação de carácter formal - refere-se à via -, é uma imposição de lei habilitante; a segunda é uma limitação material para a criação de quaisquer deveres públicos para além dos previstos na Constituição.
O Estado e os órgãos respectivos são hoje livres de criar direitos sem essas duas limitações, nem a formal nem a substancial, o que, aliás, como sabem pela experiência, permite situações que podem ser um pouco bizarras.
Trata-se de uma matéria longamente estudada, assinalada, comentada, doutrinariamente estabelecida e com uma longa prática de proliferação das mais diversas espécies de deveres em circunstâncias que são gravosas para os cidadãos e que têm o aspecto incomodativo de carecerem de habilitação constitucional precisa.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Termino o pedido de esclarecimentos perguntando se, de facto, o Partido Socialista tem consciência de que, por esta via, pode estar a pôr em causa todo o funcionamento normal da Administração Pública, por exemplo, uma vez que restringiu já a nossa objecção, aquando da primeira leitura, que tinha, desde logo, a ver, digamos, com o próprio relacionamento no comércio jurídico privado. Mesmo tratando-se apenas de deveres e obrigações públicas, há toda uma prática que decorre da actividade administrativa do Estado, que, obviamente, numa sociedade organizada como a nossa, impõe o respeito, por parte dos cidadãos. Se se vai exigir a via de lei...

O Sr. José Magalhães (PS): - Ou a autorização legal!

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - ... ou a autorização legal...

O Sr. José Magalhães (PS): - A não ser que o Sr. Deputado esteja preocupado com o regulamento dos transportes públicos, com as regras de bom porte no Metropolitano de Lisboa, com as regras de atravessamento de passadeiras públicas e com a regra que proíbe cuspir no chão e que cria o dever de asseio, etc.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - São regulamentos policiais!

O Sr. José Magalhães (PS): - Exacto! É isso mesmo! É contra os regulamentos policiais, que são abusos sem base habilitadora!

O Sr. Presidente: - Exactamente! São, desde logo, os regulamentos policiais que criam autonomamente deveres públicos! Está a acertar na mouche!

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Mas os regulamentos autónomos são permitidos pelo artigo 115.º, como...

O Sr. Presidente: - Mas exactamente o que a proposta do PS quer impedir é deveres públicos criados por regulamentos autónomos, ou seja, só os podem criar se estiverem habilitados por lei! É exactamente isso!

O Sr. José Magalhães (PS): - É isso mesmo!

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Como se tratava de um pedido de esclarecimentos, para já, fiquei esclarecido!

O Sr. José Magalhães (PS): - E esperemos que confortado!

Risos.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Guilherme Silva.

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Deputado José Magalhães, sem esta norma, hoje, é possível a lei ou mesmo os regulamentos consagrarem deveres públicos inconstitucionais, contrários à Constituição?

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Deputado, há uma contradição na fórmula que está a usar. É quase como

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perguntar "de que cor é o cavalo branco de Napoleão?". A questão está mal colocada e, por isso, se o Sr. Deputado tiver o cuidado... Não quer colocar a questão depurada?!

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Sr. Deputado, não há forma de reagir a essas situações, se elas ocorrerem?

O Sr. José Magalhães (PS): - Quais situações, Sr. Deputado?

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - De criação, por via de regulamento, por via de lei, por via de decreto-lei, de deveres públicos inconstitucionais?

O Sr. Presidente: - O caso não está em deveres públicos inconstitucionais, porque deveres públicos que não atentem contra nenhum direito fundamental não são inconstitucionais.

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Aqui refere-se "para realizar interesses públicos conformes aos princípios constitucionais".

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, se me permite, vou tentar dar um primeiro contributo de resposta.
Sr. Deputado, tomemos o exemplo do regulamento policial, que é um bom exemplo e, aliás, foi inspirador, infelizmente, porque a experiência prática de produção de regulamentos policiais por governadores civis, no ciclo que acabou em 1 de Outubro, foi, desse ponto de vista, tenebrosa,...

O Sr. Presidente: - Mas parece que o PSD quer continuar a salvaguardar essa prática...

O Sr. José Magalhães (PS): - ... caracterizando-se pela proliferação das mais fantásticas proibições, das mais bizarras criações de deveres, das mais arbitrárias proibições de deveres. O problema é o seguinte: ultrapassados os limites decorrentes da violação de certos princípios, a criação não habilitada por lei ou não efectivada por via de lei não é, em si mesma, inconstitucional. Mas queremos que seja!

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - E o conteúdo normativo? É ou não inconstitucional?

O Sr. José Magalhães (PS): - Queremos que só uma lei ou um diploma legal, ou um diploma que resulte de uma autorização legal ou uma autorização legal plástica, mais flexível, permita a criação desse tipo de deveres. Isto resolve apenas uma primeira parte da questão, mas talvez a preocupação do Sr. Deputado seja acolhível e diga respeito a uma outra questão totalmente diferente.
Aceitemos um primeiro patamar de decisão: excluamos a criação de deveres públicos por regulamentos autónomos - a primeira componente da nossa démarche, da nossa diligência, da nossa proposta -, excluamos formas menores de criação de deveres dos cidadãos, obriguemo-nos, pelo menos, a garantir que essa fonte se situe a um nível superior, porque estamos a lidar com deveres públicos. Aceitemos um segundo patamar de reflexão: que regras materiais devem presidir à criação desses deveres? E, nessa matéria, há propostas candidatas à eleição de um critério material. Pela nossa parte, adiantámos uma e, como talvez seja isso que preocupa o Sr. Deputado, talvez nós possamos encontrar numa delimitação material de critérios que seja satisfatória.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Sá.

O Sr. Luís Sá (PCP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Em primeiro lugar, quero congratular-me pelo facto de algumas deslocações políticas terem permitido a importação desta norma para o projecto de revisão constitucional do PS, o que é, sem dúvida, importante.

Risos.

Há aspectos positivos que têm de ser assinalados, com espírito bem aberto, como nos cumpre e é nosso dever.
Em segundo lugar, independentemente do resultado deste debate, quero referir um aspecto, com um grande apelo à abertura do PSD quanto à discussão desta matéria: os debates anteriores e o próprio esforço doutrinário procuraram, de algum modo, colmatar as consequências práticas desta lacuna, mas a verdade é que há consequências práticas e há um reconhecimento dominante de que existe efectivamente uma lacuna.
Em termos práticos, quero, antes de mais, sublinhar um aspecto: com toda a abertura da nossa parte em relação à redacção que o PS propõe, procurando simultaneamente que sejam atendidos alguns aspectos que suscitamos, há algumas intenções específicas que estão na base de algumas diferenças entre a proposta do PS e a proposta do PCP.
Em primeiro lugar, para além da questão da referência aos deveres públicos, que já foi, aliás, sublinhada, e bem, há um outro aspecto, que é o seguinte: sem que isso seja, de forma alguma, fundamental, creio que teríamos vantagem em autonomizar este normativo num artigo próprio, atendendo, desde logo, ao facto de a epígrafe do artigo 16.º ser, como é sabido, "Âmbito e sentido dos direitos fundamentais". Julgo que acrescentar esta matéria num n.º 3 não corresponde, em rigor, à epígrafe actual do artigo e atribuímos importância suficiente ao objectivo de colmatar esta lacuna para justificar esta autonomização.
Por outro lado, para nós, também tem bastante importância o facto de, no n.º 2, se exigir expressamente que as leis que instituam deveres públicos tenham carácter geral e abstracto e não tenham efeito retroactivo. Ou seja, para além de resolver a questão de a imposição de deveres públicos dever constar de lei e não de regulamento, é também importante, a nosso ver, uma vez que se trata de uma matéria particularmente delicada, que se exija expressamente que assim seja.
Um outro aspecto que quero referir é o facto de o PS...

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Luís Sá, causa-me uma perplexidade: o Sr. Deputado entende que não deve ser admitido que um regulamento autónomo municipal crie deveres públicos, se a lei assim o habilitar? A vossa proposta impede esta situação? Parece-me um exagero!

O Sr. Luís Sá (PCP): - Não, de forma nenhuma!

O Sr. José Magalhães (PS): - Impede, impede!

O Sr. Luís Sá (PCP): - Não é essa, de forma nenhuma, a intenção...

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O Sr. Presidente: - Mas é o que está escrito! Só podem ser criados por lei e, por isso, a lei não pode autorizar o município a criar uma obrigação pública, como, por exemplo, a de pintar as fachadas das suas casas.
A lei pode ou não autorizar os municípios a consagrarem uma obrigação pública dos cidadãos para com a colectividade?

O Sr. Luís Sá (PCP): - Obviamente que sim!

O Sr. Presidente: - Proibir isso é uma solução exagerada!

O Sr. Luís Sá (PCP): - Sr. Presidente, obviamente, não é essa, de forma nenhuma, a intenção da redacção que é proposta e, naturalmente, estamos abertos a correcções que clarifiquem o nosso entendimento, pois admito que haja, eventualmente, alguma imperfeição nessa matéria.
Aquilo que creio que está aqui subjacente é o seguinte: não podem os municípios, autonomamente, sem estarem habilitados por lei, impor deveres públicos. Se os municípios impuserem deveres públicos terão de estar autorizados por lei. Se, em última instância, praticaram o acto administrativo ou aprovaram o regulamento, tem que ser com base numa lei habilitante. É o que queremos garantir. Ou seja, o município não pode ter "criatividade" nesta matéria, sem que essa "criatividade" resulte, no fim de contas, da permissão da lei. É esta intenção que está presente na nossa proposta. Se houver alguma dúvida, existe, da nossa parte, uma abertura total, que, aliás, já manifestei, para todos os aperfeiçoamentos possíveis nesta matéria, como em qualquer outra.

O Sr. Presidente: - Então, é convergente com o projecto do PS?!

O Sr. José Magalhães (PS): - Para não dizer idêntico!

O Sr. Luís Sá (PCP): - Se for essa a divergência e se for essa a forma de o PSD permitir colmatar esta lacuna, naturalmente, terá todo o nosso apoio e aplauso.
Outro aspecto para o qual quero chamar a vossa atenção é o seguinte: no projecto do PCP há uma referência a interesses constitucionalmente protegidos e não a interesses públicos. Creio que isto pode criar situações de alguma indefinição, mas o que se tem presente, acima de tudo, e tendo em conta, inclusive, as dificuldades que existem na doutrina a este nível, é a questão da existência de interesses difusos, sobretudo em matéria ambiental, pois pode ser complicado qualificá-los directamente como interesses públicos, não obstante a ampla protecção constitucional. Foi essa a nossa intenção e, naturalmente, também nessa matéria há toda a abertura da nossa parte. Não será por causa desta divergência que deixaremos de dar todo o nosso acordo a esta questão.
Outro aspecto que quero sublinhar relativamente a esta proposta é a referência que fazemos à exigência de um princípio de proporcionalidade na imposição de deveres públicos, que, de resto, consta dos princípios reguladores da actividade administrativa. Como é sabido, está aí expressamente consagrado o princípio da proporcionalidade e julgamos que teria interesse estabelecê-lo igualmente para a própria imposição de deveres públicos.
Por último, creio que as diferenças que existem são perfeitamente secundárias em relação àquilo que nos parece fundamental e às intenções convergentes entre o projecto do PS e o projecto do PCP.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Não resisto a fazer um comentário muito rápido, até porque me parece que a discussão desta matéria irá continuar amanhã.
De facto, como resultou mais ou menos claro da intervenção do Sr. Deputado Luís Sá, há alguma similitude entre as propostas do Partido Comunista e do PS, e, do ponto de vista do PSD, com toda a franqueza, ambas denotam uma cultura oposicionista que se deleita sempre em pôr em causa o funcionamento da autoridade do Estado.

O Sr. José Magalhães (PS): - Nem sempre!

O Sr. Presidente: - É submeter a Administração ao legislador! O PSD defende a Administração...

O Sr. Luís Sá (PCP): - Sr. Deputado, pode tratar-se de autarquias locais. Não deixo de dizer que foram referidos governadores civis...

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Autoridade pública, se quiser...

O Sr. Luís Sá (PCP): - Há n regulamentos, pelo País fora, de autarquias locais, perfeitamente absurdos!

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - É limitar a autoridade pública.

O Sr. José Magalhães (PS): - Também há quem tenha uma "incultura" da oposição!...

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Vejo que toquei num ponto sensível...

O Sr. José Magalhães (PS): - Não! Pelo contrário, revela alguma "incultura" da oposição, mais nada!

Risos.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Srs. Deputados, deixem-me concluir.
O Sr. Deputado Barbosa de Melo falará desta questão, com muito mais autoridade do que eu, para a explicitar bem, mas quero deixar claro que, como não comungamos desse tipo de cultura, como não temos esses fantasmas, é entendimento do PSD que, de facto, sempre houve uma lógica de reserva legal, em termos do nosso Estado de direito, para a criação de deveres e obrigações públicas.

O Sr. José Magalhães (PS): - De certeza que nunca leu certos regulamentos de transportes colectivos de Lisboa!

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sempre foi este o nosso entendimento e ainda há pouco, quando, à laia de esclarecimento, "atirei para o ar" os regulamentos

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policiais, dei-me por satisfeito com a resposta veemente da parte dos Deputados socialistas, por respeito pelo funcionamento destes debates, uma vez que se tratava de um pedido de esclarecimentos.
No entanto, recordo aos Srs. Deputados que sempre foi entendimento do PSD e já decorre da Constituição portuguesa - a prática tem ou não violações, mas isso já não é um problema constitucional, é um problema de outra sede -, do artigo 272.º, que a actividade policial e as medidas de polícia são as previstas na lei. Isso já é assim e o PSD sempre entendeu que era assim! Diferente, Sr. Deputado, é saber se há, houve ou haverá ou não, em determinado momento, práticas que ponham isso em causa. Mas o Estado de direito funciona para isso!
Para nós, não existe essa lacuna - utilizando a expressão do Deputado José Magalhães - e quem vê essa lacuna vê-a apenas porque tem a sua perspectiva ou a sua visão enformada da tal cultura quiçá oposicionista, que se esperaria que o PS, neste momento, já tivesse deixado de ter...

O Sr. José Magalhães (PS): - Mas de uma oposição ignorante juridicamente!...

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Se calhar, isso decorre de um projecto de revisão constitucional anterior, da parte do Partido Socialista, que não foi actualizado nos últimos 10 meses, mas, por essa razão, é que comecei por dizer que achava que, neste ponto, de facto, havia muita similitude entre as propostas do Partido Comunista e do PS.
Para já, fico-me por aqui, Sr. Presidente.

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Estou convencido de que o Ministro Jorge Coelho já não vê esta lacuna!

Risos.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Barbosa de Melo.

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Sr. Presidente, começo por confessar uma coisa: sinto-me mais à vontade a fazer derivações do princípio da dignidade humana do que a fazer limitações ou fundamentações do princípio da legalidade da administração, tal como VV. Ex.as o pretendem.
Em primeiro lugar, sempre parti do princípio de que, na nossa ordem jurídica, há uma reserva global de lei sobre a esfera jurídica dos cidadãos, quer para os favorecer, quer para os prejudicar. Só com base na lei é que a autoridade pública pode interferir na esfera jurídica dos cidadãos.
Parti sempre deste dado e VV. Ex.as hoje vêm dizer-me que isto não está consagrado na nossa Constituição, que há uma lacuna, o que me faz ficar surpreendido.
Em segundo lugar, existe o princípio da proporcionalidade, que vale como um princípio interno, um regulador interno da ordem jurídica portuguesa. Aliás, o artigo 272.º, que foi aqui invocado, tem, em si, o reflexo principal desse princípio.
Em terceiro lugar, relativamente aos regulamentos que VV. Ex.as referem e que vêem pendurados no metropolitano ou em qualquer outro sítio, se pensarmos bem, se calhar, cada um desses regulamentos existe com base na lei. Bene curris sed extram viam, ou seja, correm muito bem, mas fora do caminho! Se calhar, não é por aí que resolvem o problema, porque as normas constitutivas dessas empresas, concessionárias, em geral, os contratos de concessão, etc., têm fundamento na lei e conferem a essas autoridades competência regulamentar para disciplinarem o uso das coisas públicas.

O Sr. José Magalhães (PS): - Irrestrita e indelimitada?!...

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Portanto, fico surpreendido que venham apenas salvaguardar a reserva de lei no que diz respeito às limitações da esfera jurídica dos cidadãos e não ao seu alargamento, uma vez que também há favorecimentos e alargamentos que podem ser contrários ao princípio da igualdade, da correcta gestão das coisas públicas.
Pessoalmente, julgava que esta questão estaria sempre coberta pelo princípio da reserva de lei e, para além disso, VV. Ex.as vêm apenas suscitar o caso dos deveres, mas a questão é muito mais geral.
Por outro lado, se o problema que pretendem acautelar com esta norma é este, vão fazer uma pesquisa, por exemplo, ao regime global que é aplicável ao Metropolitano de Lisboa, porque, se calhar, vão encontrar bem e claramente fundamentado na lei aquilo que vêem e que vos escandaliza.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, eu próprio estou inscrito, para dizer duas coisas.
Em primeiro lugar, importa saber que há hoje uma corrente, aliás, sempre houve e continua a existir, mesmo depois da Constituição da República, que dá à Administração uma margem de autonomia e de autoridade praeter legem, inclusive para a criação de obrigações ou ónus que têm a ver com a esfera jurídica dos cidadãos. O PS propõe que não haja obrigações públicas sem lei.

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Sr. Presidente, leia a lei de autonomia universitária, porque, se calhar, encontra lá o tal fundamento legal... E foi feita nesta Casa!

O Sr. Presidente: - Em segundo lugar, esta norma propunha uma limitação material da criação de deveres públicos, de tal modo que eles só seriam lícitos se conformes aos princípios constitucionais. Na verdade, o que o PSD não quer é esta norma de limitação material da criação de deveres públicos, ou seja, quer manter a ideia da capacidade de criar deveres públicos sem limitações materiais que não a do princípio geral da proporcionalidade, que, aliás, é de pura origem doutrinal, nem sequer está expresso na Constituição, salvo em matéria policial e de limitação de direitos fundamentais.
O que o PS propõe é que se estenda explicitamente o princípio da proporcionalidade e da necessidade à criação de deveres públicos. Aquilo que está consagrado para a limitação de direitos fundamentais e para as medidas de policia deverá também ser consagrado para a criação de deveres públicos. É isto que está em causa! O PSD não quer isto, porque pretende manter a esfera de autonomia da Administração, a capacidade de a Administração os criar, sem necessidade de lei. Felizmente, não é esse o entendimento do Sr. Deputado Barbosa de Melo, faço-lhe a justiça de nunca entender que ele alguma vez tenha defendido esse ponto de vista. No entanto, há uma corrente doutrinária que defende a autonomia da Administração mesmo para a criação de deveres públicos.

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Além disso, há que saber se o próprio legislador é livre para criar deveres fundamentais. Invocou-se aqui o princípio da proporcionalidade, mas, para já, ele não está consagrado em lado algum ou, melhor, está constitucionalmente consagrado mas para outros efeitos, como, por exemplo, para as limitações de direitos fundamentais (artigo 18.º), para as medidas de polícia (artigo 272.º, n.º 2), mas não está consagrado para a criação de deveres fundamentais. Pela nossa parte, só propomos isso! Por que é que o PSD não aceita a explicitação de um princípio que não está explícito, que é o princípio da proporcionalidade na criação de deveres?

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Porque não quer que o Estado fique impossibilitado de cumprir os seus deveres!

O Sr. Presidente: - Não é o Estado! Quer é que a Administração mantenha um poder extra-democrático de criar e impor deveres aos cidadãos!

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Não, não!

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, permita-me que faça apenas um pedido de esclarecimento.
Começámos por ouvir neste debate, na exposição do Deputado José Magalhães, que aquilo que o PS pretendia não eram deveres ou obrigações, eram deveres ou obrigações públicas. Agora, o Sr. Presidente acrescentou deveres fundamentais, que nem sei bem o que significa.
Sr. Presidente, para o PSD, e era apenas esta nota que lhe queria deixar, o problema é o seguinte: dizer-se que só podem ser criados deveres públicos, porque, repito, com toda franqueza, não sei o que são deveres fundamentais,...

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, entenda-os como deveres públicos! Por favor, não faça quiproquós onde eles não existem!

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Como estava a referir, dizer-se que só podem ser criados deveres públicos, que vão desde o tal regulamento do metropolitano, etc., com toda a franqueza, para nós, não faz qualquer sentido, porque continua a estar presente...

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, posso interrompê-lo para lhe pedir um esclarecimento?

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Com certeza, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, hoje, em face da Constituição, o que é que impede um município de estabelecer que, a partir de agora, deixa de haver serviços municipais de limpeza e os cidadãos são obrigados a varrer a rua na frontaria das suas casas? É o princípio da proporcionalidade? Não está em lado algum! O que proponho é que este tipo de possibilidade deixe de existir! Este ou outro igual! O que proponho é que os cidadãos não sejam chamados, perante o Estado, as autoridades públicas ou a colectividade, a deveres que não podem ser legitimados à face de princípios constitucionais ou do princípio da proporcionalidade. O que é que leva o PSD a impedir isto?

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, com toda a franqueza, nunca vi isso acontecer!

O Sr. Presidente: - Ah! Nunca viu acontecer... Mas, Sr. Deputado, as soluções existem exactamente para impedir que essas coisas aconteçam!

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Mas há um determinado processo e os processos também são democráticos. Tem de ser fixado em regulamento, há regras para isso, etc. Isto obedece a uma dimensão institucional, não é linear!

O Sr. José Magalhães (PS): - E seria inconstitucional?!

O Sr. Presidente: - Em face de quê?

O Sr. José Magalhães (PS): - Que cada um varresse a sua...

O Sr. Presidente: - Seria inconstitucional em face da nossa norma, não em face do entendimento do PSD! E é exactamente porque os Srs. Deputados do PSD querem manter esta possibilidade de criação livre de deveres públicos que não aprovam esta norma! É, aliás, uma posição fundamentalista!

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - E se for ao contrário, Sr. Presidente? Se houver um regulamento que refira que cada cidadão que seja amigo do Presidente da Câmara recebe 50$ por dia? Pode acontecer!

O Sr. Presidente: - Isso viola o princípio da igualdade e, para já, não é um dever, é um privilégio!

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Exactamente! VV. Ex.as só atentam nos deveres e é essa a minha questão! Os direitos também só podem ser conferidos com base na igualdade, tal como os deveres!

O Sr. Presidente: - Mas isso já está na Constituição, Sr. Deputado, no artigo 16.º, n.º 1, e no princípio da igualdade! O que propomos é a aplicação do mesmo regime aos deveres!

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Então, e por que razão é que o princípio da igualdade não se aplica aos deveres?

O Sr. Presidente: - Mas não está em causa o princípio da igualdade, está em causa o meio de criar esses deveres!

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Sr. Presidente, o meio é um regulamento, de acordo com a regra geral da reserva de lei, como sucede no caso do artigo 242.º, que apenas permite o exercício dentro dos limites da lei e os regulamentos das autarquias de grau superior, que têm autonomia regulamentar. Fora disso tem de haver um fundamento legal! É a regra geral...

O Sr. Presidente: - Mas são os limites materiais da criação que estão em causa! Esse é que é o problema!

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Os limites materiais, V. Ex.ª nunca os pode definir e, ao fim e ao cabo, são sempre os direitos fundamentais.

O Sr. Presidente: - Não, Sr. Deputado! Onde é que o exemplo que dei viola algum direito fundamental?

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Desde logo, o dever de trabalhar! Alguém está obrigado a trabalhar?

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O Sr. Presidente: - Essa é boa!

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - O trabalho forçado, por decisão da autoridade pública?!... Ó Sr. Presidente...

O Sr. Presidente: - Não! É óbvio que não! Seria uma simples obrigação de resultado!

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Então, uma câmara municipal pode dizer-me "pega na vassoura e varre"? Isto não viola o princípio da liberdade? Isto tem de estar fundado na lei! É óbvio!

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - E viola o princípio da proporcionalidade!

O Sr. Presidente: - E onde é que está o princípio da proporcionalidade aplicado aos deveres públicos?!

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Dizer o contrário é fazer de conta que não existe a ordem jurídica democrática que temos em Portugal!

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, o artigo 266.º refere que os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios...

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, não confunda as coisas! Imagine um dever criado por lei! Não é a Administração que está em causa, é a lei!

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, primeiro vou a responder ao exemplo que o Sr. Presidente começou por colocar, que foi o de um regulamento camarário que manda varrer a rua em frente de minha casa, e eu digo que isso não é possível.

O Sr. Presidente: - Está bem, mas imagine que é a lei.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Se andamos de exemplo em exemplo até encontrarmos uma hipótese qualquer de massacrar o desgraçado do cidadão...

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, não saia desta questão, que é tão simples quanto isto: critério material para limitação da criação de deveres públicos. É esta a questão! O PS quer obtê-lo, o PSD não quer...

O Sr. Luís Sá (PCP): - A Administração Pública está sujeita ao princípio da proporcionalidade e a criação de deveres públicos por lei não está. Há pouco, na minha intervenção, levantei esta questão.

O Sr. Presidente: - Já desisti!

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - O legislador é democraticamente eleito!

O Sr. Luís Sá (PCP): - É democraticamente eleito mas o problema é saber se isso lhe permite arbitrariamente criar deveres públicos com limites e expressos por lei ...

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, chegámos à hora do termo da nossa reunião, pelo que a declaro encerrada.

Eram 19 horas e 40 minutos.

A DIVISÃO DE REDACÇÃO E APOIO AUDIOVISUAL

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