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Sexta-feira, 4 de Outubro de 1996 II Série - RC - Número 33
VII LEGISLATURA 2.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1996-1997)
IV REVISÃO CONSTITUCIONAL
COMISSÃO EVENTUAL PARA A REVISÃO CONSTITUCIONAL
Reunião de 3 de Outubro de 1996
S U M Á R I O
O Sr. Presidente (Vital Moreira) deu início à reunião às 15 horas e 50 minutos.
Procedeu-se à audição dos autores de petições que integram propostas ou sugestões de revisão constitucional: Dr. Garcia Pereira (Associação Portuguesa de Direitos dos Cidadãos); Dr. José António Pinto Ribeiro (Fórum Justiça e Liberdades); Dr. Júlio Castro Caldas (Ordem dos Advogados); Drs. Orlando Viegas Martins Afonso, João Ataíde das Neves e Antero Luís (Associação Sindical dos Juízes Portugueses); Drs. António Cluny, João Paulo Rodrigues e Paulo Mesquita (Sindicato dos Magistrados do Ministério Público).
Durante o debate, usaram da palavra, a diverso título, além do Sr. Presidente (Vital Moreira), que também interveio na qualidade de Deputado do PS, os Srs. Deputados José Magalhães (PS), Barbosa de Melo (PSD), Luís Sá (PCP), Calvão da Silva (PSD), Francisco José Martins (PSD) e Odete Santos (PCP).
O Sr. Presidente encerrou a reunião eram 20 horas e 20 minutos.
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O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, temos quórum, pelo que está aberta a reunião.
Eram 15 horas e 50 minutos.
O Sr. Presidente: - Para dar início a uma série de encontros com associações profissionais da comunidade jurídica, vamos começar por ouvir a Associação Portuguesa de Direitos dos Cidadãos. Connosco está o Sr. Dr. Garcia Pereira, Secretário-Geral desta Associação, que, como é óbvio, dada a notoriedade da sua acção, não necessita de apresentação.
O propósito destes encontros é proporcionar à Comissão em geral os pontos de vista das diversas associações sobre as propostas da revisão constitucional e em particular sobre aquelas que têm que ver com os direitos fundamentais e com a organização judiciária, sem prejuízo, obviamente, de os nossos convidados poderem pronunciar-se sobre todas as questões que entendam relevantes do ponto de vista das atribuições das respectivas associações.
Portanto, darei a palavra ao representante da Associação, utilizando o seguinte esquema: teremos um período inicial para exposição das questões, de cerca de 10 ou 15 minutos; depois, haverá um período para os membros da Comissão, se o desejarem, fazerem perguntas ou comentários e, depois, daria a palavra outra vez à Associação, para responder ou contra-comentar aquilo que for dito. Estabeleceríamos assim um período de cerca meia-hora, até 40 minutos, dado que temos ainda mais audições durante a tarde de hoje. O esquema que adoptei para esta reunião é semelhante ao que temos tido com outro tipo de associações, nomeadamente com os parceiros sociais, com quem já tivemos uma audiência com este formato.
Tem a palavra o Sr. Dr. Garcia Pereira, Secretário-Geral da Associação Portuguesa de Direitos dos Cidadãos.
O Sr. Dr. Garcia Pereira (Secretário-Geral da Associação Portuguesa de Direitos dos Cidadãos): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: A Associação queria começar por saudar esta iniciativa no sentido de conhecerem as suas opiniões, à semelhança das suas congéneres, o que nos parece ser um método bastante correcto e enriquecedor da discussão em torno destes problemas da revisão constitucional.
A nossa Associação fez um exame bastante cuidadoso dos diferentes projectos apresentados e queríamos exprimir aquilo que constituem as nossas principais preocupações na perspectiva dos direitos dos cidadãos, sobretudo.
Um primeiro ponto que nos chamou imediatamente a atenção, até pela actualidade do tema, foi o das diferentes questões suscitadas pelas possíveis alterações a introduzir ao actual artigo 33.º da Constituição, em particular no que respeita à extradição e expulsão de cidadãos portugueses.
É entendimento da Associação que alguns dos projectos apresentados, designadamente e a título de exemplo, o projecto apresentado pelo próprio PS, contêm, salvo melhor opinião e melhor interpretação do próprio texto, possíveis alterações de grande gravidade, do ponto de vista dos direitos dos cidadãos. A primeira coisa é que não se percebe como é que se admite a possibilidade de expulsão de cidadãos portugueses do território nacional, tanto mais que são conhecidos os compromissos que foram assumidos na base dos Acordos de Schengen e outros instrumentos semelhantes e tememos que o que isto queira dizer seja, amanhã, a facilitação da extradição por meios, enfim, não jurisdicionalizados, ou pelo menos em que não haja garantias de defesa dos cidadãos abrangidos. Aliás, foi com algum espanto que ouvimos o Sr. Ministro da Justiça fazer declarações públicas, recentemente, sobre a extradição de cidadãos ao abrigo de políticas conjuntas de segurança a nível europeu que nos parecem completamente ao arrepio dos textos constitucionais e legais já actualmente em vigor. Obviamente que nos parece que seria de consagrar que um cidadão português nunca poderá ser expulso do território nacional e que a extradição só pode ser admitida em condições, digamos, de completa defesa dos seus direitos, com uma proibição - aqui sim, parece-nos que é correcto assinalar - de que não haja extradição para Estados em que haja pena de morte ou outras penas, como a prisão perpétua, cruéis, degradantes ou desumanas.
Depois, há um outro ponto que tem a ver com as garantias de defesa dos cidadãos. Saudamos o facto de, em alguns dos projectos, estar consagrado expressamente o papel do advogado na administração da justiça. Não há tribunais nem justiça sem advogados e é espantoso que se tenha de ter chegado a 20 anos depois do 25 de Abril para, finalmente, segundo parece, haver hipótese de vir a ser consagrado expressamente, no texto constitucional, o papel insubstituível do advogado. E, atenção, trata-se de advogado e não de defensor, repito, não é defensor. Defensor, aliás, é uma inovação jurídica do Código de Processo Penal que tem servido para toda a sorte de abusos relativamente aos direitos dos cidadãos e até são conhecidos casos, onde, inclusivamente, há arguidos presos em que até já o próprio guarda captor foi designado como defensor por ser a única pessoa que estava ali à mão.
Portanto, trata-se de consagrar, quer na Constituição quer, depois, naturalmente, em obediência a este princípio, nos textos da lei ordinária, designadamente no Código de Processo Penal, o direito do cidadão a ter o seu defensor.
Há uma outra questão, que não deixa de ser polémica mas que eu creio que não poderia deixar de ser examinada pelos Srs. Deputados, que é a questão da constitucionalidade ou inconstitucionalidade da actual forma de inquérito em processo penal.
Há um princípio básico, consagrado na Constituição, que é o de toda a instrução deve ser presidida por um juiz. Ora, esse é um princípio que está, pelo menos segundo algumas opiniões, bastante subvertido no actual processo penal, na medida em que actualmente, sob o pretexto de que a seguir ao inquérito poderá sempre haver instrução a requerimento do arguido ou do assistente, estaria salva a constitucionalidade da forma processual actual. A verdade é que os processos-crime têm toda uma primeira fase que é dirigida e orientada por um sujeito processual que tem óbvio interesse no desfecho da acção. O Ministério Público é um sujeito processual, tem óbvio interesse no desfecho do processo e é de mais do que duvidosa a constitucionalidade de que ele o possa dirigir, ainda por cima com o entendimento que está neste momento largamente consagrado e aplicado nos tribunais a propósito do segredo de justiça.
Chamo a atenção para que, nos nossos tribunais, em 99,99% dos casos em instrução - atrever-me-ia a dizer que, na fase de inquérito, em 99,999999% dos casos -, o segredo de justiça é entendido como uma verdadeira instrução preparatória, que é o que ele é, sendo o inquérito secreto. Portanto, aquele princípio, e chamo a atenção para isso, aquele direito que vem consagrado no Código de Processo Penal de o arguido estar presente em todo os actos que directamente lhe digam respeito, ser totalmente torpedeado pela simples razão de que ele não tem nenhum
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conhecimento dos actos em que se desdobra o inquérito. Este é um outro ponto.
Quanto aos tribunais militares, a Associação defende, pura e simplesmente e sem nenhuma espécie de equívoco, a sua abolição. Portanto, a nossa Associação manifesta a sua discordância relativamente a alguns dos projectos onde a manutenção dos tribunais militares é admitida ainda que só para julgar certo tipo de feitos.
Entendemos também que a não retroactividade das leis fiscais, que vem consagrada pelo menos num dos projectos, devia ser expressamente consagrada e sem tergiversações. Isto é, devia ser inequívoco o princípio, o artigo 106.º da Constituição deveria dizer claramente que as leis fiscais não são retroactivas, sem sequer nenhuma espécie de restrição, como a de, sem prejuízo de uma determinada lei vir a alterar as condições de tributação dos rendimentos auferidos no ano anterior e ainda, eventualmente, correspondentes ao imposto ainda não liquidado. Estamos contra isso, pois haveria aí retroactividade das leis fiscais.
Depois, entendemos ainda, a propósito do direito fiscal, que a criação de impostos, regimes de taxas e sistemas fiscais devia ser, de facto, da reserva absoluta de competência da Assembleia da República. Portanto, devia ser consagrada no artigo 167.º da Constituição.
Permitimo-nos também chamar a atenção para o facto de, em nosso entender, ainda que essa já não seja uma das questões que se ponha tão directamente em relação aos objectivos da nossa Associação, o número mínimo de cidadãos eleitores subscritores de uma petição a ser dirigida para solicitar uma iniciativa de referendo, 100 000, nos parecer pura e simplesmente destinado a evitar que os cidadãos que não estejam integrados em máquinas partidárias possam lançar mão desta iniciativa. Obviamente que pôr-se como condição, nos termos do artigo 118.º, salvo erro, que a petição tenha de ser subscrita por 100 000 eleitores, leva a que só as máquinas organizadas é que conseguem obter este número de assinaturas. Portanto, se há uma massa inorgânica de cidadãos bastante expressiva mas que não tem por trás nenhuma organização político-partidária, é evidente que jamais o conseguirá obter, pelo menos em tempo útil, e, portanto, esta é uma forma de inutilizar este direito.
Entendemos também que, salvo melhor opinião, a regulamentação do direito de petição e do direito de acção popular deveria ser de tal maneira precisa no texto constitucional, no artigo 52.º, que não deixasse margem praticamente nenhuma ao legislador ordinário para continuar a não regulamentar de uma forma precisa o exercício destes direitos, que estão neste momento, enfim, largamente desfasados da prática em virtude disso mesmo.
O problema da legitimidade das associações para intervir em processos onde estejam em causa direitos ou interesses por elas representados tem sido visto até hoje, apenas e praticamente, na perspectiva nos direitos do ambiente e a nossa Associação reivindica que deveria ser claramente estabelecida também a legitimidade para uma associação de defesa de direitos humanos intervir em processos de natureza cível ou criminal, administrativa ou outra, em que estivessem em causa direitos ou interesses dessa natureza, individuais, isto é, de uma determinada pessoa em concreto ou de uma comunidade mais ou menos difusa de cidadãos.
Aliás, gostaríamos de obter também algum esclarecimento da parte do Sr. Deputado Luís Sá, que creio que está em representação do PCP, acerca do objectivo do projecto de revisão do PCP relativamente a um artigo novo, o 283.º-A, sobre a inconstitucionalidade por actos políticos. Ou seja, gostaríamos de saber o que se pretenderia exactamente com isso e como é que isso poderia, efectivamente, funcionar.
Mas não era a isso que nos estávamos a referir, estávamos a referir-nos à responsabilidade do Estado, artigo 22.º, salvo erro, da Constituição, exactamente quanto à necessidade de estabelecer regras muito mais amplas do que aquelas que actualmente existem em sede de lei ordinária quanto à responsabilidade objectiva do Estado.
Todos os Srs. Deputados sabem as dificuldades que sempre houve e a forma como o Estado sempre procurou fugir às suas próprias responsabilidades. Lembro os recentes casos de hemofílicos, exactamente por a apreciação dessa questão ser feita à luz de um decreto-lei já com muitos anos e publicado ao abrigo de um edifício jurídico-constitucional completamente diferente daquele que temos hoje em vigor e com uma concepção, pelo menos aparentemente, na letra do diploma, fortissimamente restritiva da responsabilidade objectiva do Estado e demais entes públicos. Em termos práticos, é um exemplo clássico o dos paióis, com uma certa actualização para as instalações nucleares, que abrangem os casos de responsabilidade objectiva, deixando de fora, por exemplo, dentro dessa concepção, a situação dos cidadãos que entraram bem num estabelecimento de saúde e que, sem qualquer responsabilidade da sua parte, saíram infectados.
Também nos preocupámos com a questão do serviço militar obrigatório porque, independentemente das diferentes opiniões que se cruzam no interior da Associação sobre o serviço militar obrigatório e o papel do exército, a Associação vê com grande preocupação a substituição de um exército formado por cidadãos que são chamados a prestar o serviço militar por um corpo profissionalizado. Como já dissemos mais do que uma vez, isso é bastante preocupante porque transformará o exército num corpo profissionalizado muito próximo da polícia e interrogamo-nos se alguma vez, antes do 25 de Abril, este princípio tivesse aplicado, o 25 de Abril teria sido possível.
O Sr. Conselheiro Octávio Castelo Paulo estava aqui chamando a atenção, e com toda a razão, para que nos termos do n.º 3 de uma nova alínea g) do artigo 27.º da Constituição se prevê uma coisa, que são os conceitos indeterminados, que, no âmbito do direito criminal, a Associação entende que os princípios elementares do Estado de direito democrático e da certeza e segurança do cidadão proíbem. Portanto, "detenção de suspeitos para efeitos de identificação nos casos e pelo tempo estritamente necessário e nos termos previstos na lei" é algo que fica ao sabor do chefe da esquadra. Para um, serão estritamente necessários 15 minutos; para outro, serão 15 horas e, se calhar, para outro, serão vários dias.
Ora, como os Srs. Deputados certamente assistiram ao espectáculo recente do Sr. Ministro da Administração Interna a asseverar - e correctamente em nosso entender - que as forças policiais não podem proceder a interrogatório a não ser em sede de inquérito e mediante delegação de determinados actos de inquérito por parte do Ministério Público e sob a direcção deste, e logo a seguir o Comandante Geral da GNR a dizer rigorosamente o contrário, ou seja, que é absolutamente evidente que as forças de segurança podem fazer interrogatórios nos respectivos postos policiais, o estabelecimento de uma coisa destas, de um conceito indeterminado como este no texto constitucional,
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é evidente que, primeiro, daria largueza ao legislador ordinário para estabelecer porventura um prazo demasiado longo e, segundo, se não ficasse estabelecido na legislação ordinária, então, pior ainda, ficava inteiramente ao arbítrio das forças policiais.
O Sr. Presidente: - Os Srs. Deputados acabaram de ouvir os pontos de vista seleccionados pela Associação para comentar os projectos de revisão constitucional, pelo que, em seguida, darei a palavra aos Srs. Deputados, para efeitos de pedidos de esclarecimento ou comentários, que queiram dirigir aos nossos convidados.
Em relação aos pontos levantados pelo Dr. Garcia Pereira, sobre a alteração proposta pelo Partido Socialista, cabe-me dizer que os próprios proponentes esclareceram, na Comissão, que a redacção não deixaria margem para dúvidas sobre a aplicação dessa abertura apenas quanto à extradição. Portanto, a proposta, tal como foi finalmente apresentada, dizia "excepto quanto à extradição nos casos de terrorismo".
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães!
O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, foi de grande vantagem a troca de impressões sobre as duas propostas que foram apresentadas e que agora foram comentadas, e também, como, aliás, acaba de fazer e na esteira do que acaba de fazer, sobre alguns pontos que podemos dar como adquiridos e que representam inovação em 100% dos casos, creio eu, e melhoria dos textos originais dos partidos. Isso acontece em relação a vários pontos que o Sr. Dr. Garcia Pereira levantou e, por outro lado, gostaria de colocar algumas perguntas em relação a observações que sugerem contribuições porque gostaria de ver mais pormenorizadas as sugestões de redacção.
Sobre o primeiro ponto, quanto ao regime da extradição em concreto, o quadro do debate conduz a uma solução que provavelmente, se bem percebi e creio que sim, excede a vossa bitola, merecerá a vossa crítica, mas gostaria de saber até que ponto, porque no quadro do debate chegámos à conclusão de que era importante alterar o n.º 3 do artigo 33.º da Constituição, o mesmo que proíbe a extradição para países a que corresponde a pena de morte, segundo o direito do Estado requerente, no sentido de introduzir uma excepção, excepção que autoriza a extradição quando o Estado requerente dê garantias consideradas suficientes pelo Estado português de que a pena de prisão perpétua ou a pena de morte será comutada ou substituída por pena de duração limitada ou por qualquer outra forma não executável.
Conhecemos bem quais são as dificuldades que o actual quadro constitucional tem originado. Os Ministros dos Negócios Estrangeiros e da Justiça da União Europeia acabaram de chegar a um acordo, na passada semana, aliás, sobre a nova convenção de extradição e na nossa proposta pretendemos viabilizar que não haja impedimento constitucional a que Portugal participe nesse processo, com garantias.
Creio que é de sublinhar, em primeiro lugar, que não propomos que se altere em nada o n.º 4 do artigo 33.º, ou seja, a extradição só pode ser determinada por autoridade judicial e esse é um ponto absolutamente básico; em segundo lugar, as regras do process of law mantêm-se integralmente e, portanto, desse ponto de vista, não há nenhuma quebra, não pode haver nenhuma entorse nem isso está acordado no plano europeu.
Quanto à questão do equívoco resultante da redacção quanto à extradição, que o Sr. Presidente também já esclareceu, provavelmente temos aqui um ponto de divergência, ou seja, ou se está de acordo com a ideia de que se deve quebrar regras que até agora foram absolutas, que proíbem extradição de portugueses, ou não.
No actual estado da construção europeia, em igualdade e reciprocidade de condições, com garantias jurisdicionais e num quadro de internacionalização da gravidade da criminalidade, não vemos razão para que um berlinense que faça explodir uma bomba e fuja para Berlim, não possa ser objecto de extradição de Berlim para Portugal. A mesma coisa, naturalmente em relação a um português que, desgraçadamente, faça o mesmo em Berlim e fuja para Portugal. É uma das características do tempo presente e a nossa preocupação, igual à vossa, aliás, é que não sejam feridos os direitos fundamentais.
Portanto, há muitas zonas de coincidência, Sr. Presidente, e dispenso-me de as exaltar, embora sejam óbvias e nos seja aprazível que elas se verifiquem quanto ao papel do advogado, quanto aos impostos, quanto à abolição dos tribunais militares, etc., etc.
Em relação ao número mínimo de cidadãos para obter o referendo, o debate foi feito em termos muito interessantes. Durante o primeiro ciclo da revisão constitucional, na altura em que se discutiu tanto o referendo nacional como a questão da regionalização, verdadeiramente houve um progresso ou uma alteração nessa matéria. É que o referendo que nós propúnhamos, e propomos, na versão originária do nosso projecto de revisão constitucional, é um referendo com características que permitiriam que os cidadãos, em certos casos, se dirigissem directamente ao Presidente da República pedindo um referendo. Porém, não há uma inclinação maioritária da Comissão no sentido de convergir nos 2/3, no sentido de que essa propositura directa seja aceitável.
Portanto, o que verdadeiramente haverá é propostas de referendo dirigidas aos órgãos de soberania, nas áreas das suas competência, Assembleia da República ou Governo, que serão, depois, veiculadas ao Presidente da República, para desencadear ou ignorar o pedido de referendo. Nessas circunstâncias, o número que nós imaginávamos, assim significativo, pode, e deve, ser proporcional e proporcionadamente reduzido. Não fixámos ainda o número mas gostaria de dar esta nova.
Sr. Presidente, para não me alongar, penso que seria interessante ver um pouco densificada a observação da Associação em relação ao referendo, ao direito de petição e de acção popular. Temos algumas propostas, o debate conduziu a algum consenso quanto ao alargamento do direito de acção popular, designadamente, mas gostaria de ver mais especificamente a vossa proposta.
Sr. Presidente, em relação ao artigo 27.º, n.º 3, alínea g), esqueci-me de mencionar que propomos, de facto, a clarificação constitucional dos casos em que pode haver identificação do suspeitos. Há, de facto, uma opção a tomar e o nosso mérito terá sido, talvez, o de colocarmos a questão. Parece-nos melhor que haja uma zona de clareza constitucional em relação à identificação de suspeitos do que haja zonas de penumbra, que gerem soluções legais dúbias ou dúvidas justas quanto à constitucionalidade de soluções legais.
Quanto à formulação, ela procura, por um lado, acautelar que não se admite a identificação de qualquer cidadão, só de "suspeito", expressão que tem, como sabem, um
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significado preciso na meta-linguagem do processual-criminal, e, por outro lado, é precisável, ou seja, "suspeito" não é qualquer um. Por outro lado, não é fácil chegar-se a uma solução muito precisa quanto à questão da delimitação temporal e por isso pedia a vossa ajuda. Nós escolhemos uma expressão que, no quadro constitucional, tem o significado "de tempo estritamente necessário", sendo a solução alternativa uma duração concreta, ou seja um prazo não superior a x horas, por exemplo. É uma solução, mas não gostaríamos que houvesse qualquer dúvida e faremos tudo por isso, sobretudo não gostaríamos que aumentasse a margem de manobra, a decisão incondicionada das autoridades administrativas e policiais, o que nunca aconteceria, aliás, na medida exacta em que todos os controlos de carácter judicial, do Ministério Público e tudo mais, são propostos. Eram estas as questões que gostava de deixar.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Barbosa de Melo, tem a palavra.
O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Sr. Presidente, a primeira nota é apenas para cumprimentar os membros presentes da Associação Portuguesa de Direitos dos Cidadãos, manifestando da parte do Grupo Parlamentar do Partido Social Democrata grande prazer em vos ver aqui.
Quero ser muito preciso e muito concreto na pergunta que vou fazer. Ao longo dos tempos, tem havido uma luta permanente dos advogados em congresso, nomeadamente em congresso - e digo ao longo dos tempos incluindo aqui os tempos de Salazar e de Caetano - para que o advogado que estivesse presente, se assim o entendesse qualquer cidadão, em qualquer contacto com autoridades. Uma das surpresas que se seguiu no âmbito desta Constituição foi o parecer ter-se esquecido esta situação, mas, finalmente, volta a haver projectos que tocam de novo neste tema.
Este tema tem a ver com a vossa Associação, que é de defesa dos direitos do cidadão, nomeadamente com as garantias do cidadão, mas tem a ver também com um outro, sobre o qual queria ouvir mais coisas e mais específicas.
Disse o Sr. Dr. Garcia Pereira, Secretário-Geral da Associação, que o inquérito preliminar, dado que é acompanhado de um segredo - que lembra no fundo, o velho sistema que o Sr. D. João III cá meteu e por cá ficou -, tem hoje a função de uma instrução preparatória. Eu gostava de o ouvir "descer à terra" e que me dissesse coisas muitas concretas como argumentos dessa sua afirmação.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Sá.
O Sr. Luís Sá (PCP): - Sr. Presidente, em primeiro lugar, queria pedir desculpa aos caros colegas e à Associação por ter chegado tarde, infelizmente, por problemas pessoais. Contava que estivesse aqui a Deputada Odete Santos, que me iria substituir nesse período. Vou procurar tomar conhecimento, através das actas, de tudo aquilo que foi dito antes de aqui chegar e naturalmente que o farei com o maior interesse e com o maior proveito, tendo em conta o trabalho da Associação e a grande consideração pelos membros aqui presentes.
Quanto à questão que foi especificamente colocada pelo Dr. Garcia Pereira, queria dizer o seguinte: esta é uma questão que não é nova, nem sequer esta proposta é nova no projecto de revisão constitucional do PCP. De resto, queria lembrar que o próprio CDS, na revisão de 1989, não nesta sede mas na do artigo 213.º, levantou exactamente esta questão, o problema da fiscalização da inconstitucionalidade de actos políticos, o que, de facto, deu origem, designadamente no âmbito da comissão eventual de revisão constitucional de então, a um extenso debate sobre esta matéria.
A nossa preocupação resulta deste problema básico: como é que se resolve, no plano jurídico-constitucional, o problema de actos políticos inconstitucionais? Para dar um exemplo concreto, que, aliás, o Sr. Deputado José Magalhães refere no seu dicionário de revisão constitucional e foi um dos exemplos, entre muitos, que esteve presente, na época, no debate, se o Presidente da República dissolve a Assembleia da República fora dos termos e prazos previstos, como é que isto se resolve?
Naturalmente que há meios políticos, há a opinião pública, há associações como a vossa, mas num caso deste tipo não há meios de fiscalização directa. E quem dá este exemplo pode, naturalmente, referir outras situações de actos políticos. A questão será de referir na altura própria, de resto na sequência do debate de 89. Tendo em conta que o debate então travado não resolveu o problema, que a questão continua de pé e que boa parte da doutrina continua a levantar - e bem, a nosso ver - a questão, voltámos ao problema, esperando naturalmente encontrar uma abertura que infelizmente não foi encontrada no passado.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Dr. Garcia Pereira, para responder.
O Sr. Dr. Garcia Pereira: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Gostaria de começar por dizer que a Associação saúda a introdução nalguns dos projectos da figura do recurso de amparo ou acção para defesa da Constituição. Aliás, uma das coisas que tem preocupado a Associação é que o actual sistema de recursos para o Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização sucessiva, determina que se possam apenas interpor recursos referentes à aplicação de normas, ficando de fora os actos, mesmo sem ser de natureza política, que claramente violam a Constituição. O Tribunal Constitucional tem desenvolvido uma teoria porventura ainda mais restritiva do que a que já resultava dos textos constitucionais, que todos os profissionais do foro conhecem, no sentido de o primeiro assunto que o Tribunal Constitucional neste momento aborda ser o de saber se está perante um caso de aplicação da norma ou não. Enfim, esse é um ponto que nos levaria porventura demasiado longe, inclusivamente a própria teoria, mas não posso deixar escapar a ocasião para chamar a atenção dos Srs. Deputados para isso.
O actual regime legal determina que o Tribunal Constitucional tenha entendido sobre si próprio que só há recurso para o pleno em questões de fundo. Portanto, quando o Tribunal Constitucional tem acórdãos completamente contrários entre si quanto a questões processuais, designadamente quanto à célebre teoria do abandono da inconstitucionalidade porque o recorrente não a alegou na 2.ª instância, que é aquela em que lhe vem a ser negada razão, e depois quer recorrer, tendo-lhe sido dito que "como não contra-alegou, você desinteressou-se da questão da inconstitucionalidade e, portanto, não pode agora suscitá-la em sede de recurso para o Tribunal Constitucional". Isto é assim entendido por uma secção, mas outra entende completamente
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o contrário e este assunto não pode ser resolvido em termos de uniformização de jurisprudência porque o Tribunal Constitucional entende que recurso para o pleno só há em questões de fundo e isto é uma questão de processo, pelo que o que os recorrentes e os seus mandatários, se forem religiosos, rezam para que os respectivos recursos caiam numa secção e não outra. Os outros, como é o meu caso, que não são crentes, encomendam-se a qualquer outra entidade à espera que aquilo caia na secção certa.
Mas, independentemente disso, de facto, a introdução da figura do recurso de amparo e a possibilidade do ataque a actos, e não estamos agora a falar nos actos políticos, creio que o esclarecimento dado pelo Sr. Deputado Luís Sá foi importante, porque nós estávamos a analisar isto numa perspectiva bastante mais ampla. Portanto, aqui estarão sobretudo em causa actos praticados por órgãos do poder político que claramente estão em contradição com a Constituição. Ainda que, provavelmente, isso chegue a um determinado ponto em que o direito se mostra incapaz de resolver esse conflito, porque é óbvio que se o Presidente da República dissolve a Assembleia haverá recurso para o Tribunal Constitucional e se o Tribunal Constitucional declara a inconstitucionalidade desse acto político, pergunta-se: e depois como é que essa decisão é executável? O Tribunal Constitucional manda avançar as prestimosas forças da ordem na direcção do Palácio de Belém para impor a manutenção do Parlamento em funções? Há um limite a partir do qual o direito, mesmo constitucional, já não consegue resolver.
Mas foi importante esse esclarecimento e percebemos agora o sentido disso.
Quanto a algumas das questões que foram colocadas, discordamos dessa teoria de que "suspeito" é um conceito preciso e densificado. Pelo contrário, a expressão "suspeito" é também qualquer coisa como aquele lugar habitualmente frequentado por delinquentes, que era também uma expressão da lei e que as forças policiais sempre interpretaram. Porque quem é que diz que é habitualmente frequentado por delinquentes? E como é que se consegue chegar à precisão desse conceito? Portanto, a noção de suspeito e o facto de estar escrito no projecto, quanto ao artigo 27.º, referindo-se o conceito de suspeito, em nada confere certeza e segurança a este regime.
Por outro lado, a Associação não vê que obstáculo é que possa existir a que esteja consagrada na Constituição, numa questão tão importante como é a dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos em sede de presença face às forças policiais, um prazo específico. Quanto à prisão preventiva, a lei também tem lá um prazo de 48 horas, porque se entendeu que isso não era uma questão para ficar para o legislador ordinário; esta também não e, portanto, entendemos que isso não ressalva, digamos, a indeterminação que resultaria daí.
Ainda a propósito disto, salientamos também que nos parecem bastante positivas as soluções que vêm consagradas a propósito do artigo 33.º, agora voltando à questão da extradição, expulsão e direito de asilo, no projecto do PCP, designadamente quanto à precisão a respeito da expulsão de quem tenha entrado no território nacional sem ter obtido autorização de residência.
No que respeita a este artigo, o que nos parece é que se está a pretender que "o carro ande à frente dos bois", e era importante que o partido do Governo esclarecesse isso nesta sede, pois estamos num processo sede de revisão constitucional. O Estado português está ou não já amarrado por compromissos internacionais que o obrigam a ter de alterar as regras constitucionais quanto à extradição? Esse é um problema importante, porque não deixa de ser estranho que a alteração disto - a menos que tenhamos visto mal - apareça no projecto do PS e não apareça em mais nenhum dos projectos dos outros partidos; no do PCP e no do PP tenho a certeza que não aparece e creio que no do PSD também não, pelo que é estranho que isto surja colocado dessa forma.
Mas era melhor, primeiro, discutirem-se e adoptarem-se medidas, em termos do país, e depois haver os compromissos. Ao que parece, o que acontece é que o Estado português já está amarrado por compromissos e agora trata-se de mudar a lei constitucional para a adequar esses compromissos. Nós continuamos a entender que, não obstante todas as razões que estão invocadas, o princípio da proibição de extradição de cidadãos portugueses tal como está agora consagrado na Constituição tem, de facto, uma razão histórica, cultural e humanitária que importa preservar.
No que respeita ainda à questão do advogado, o Sr. Deputado Barbosa de Melo chamou a atenção, e muito bem, de que a questão até é mais ampla do que o simples processo-crime. O que, em rigor, a Constituição deveria consagrar era o sagrado direito que está num artigo da Ordem dos Advogados e que é todos os dias violado neste país, de uma forma impune, porque nunca nenhum governo nem nenhuma assembleia da república fez um artigo no Código Penal que garantisse eficácia a esse dispositivo, que é o sagrado direito de todo o cidadão estar representado por advogado, perante qualquer autoridade, em qualquer forma de processo e face a qualquer jurisdição. Isto está permanentemente impedido.
Uma voz do PSD: - Na proposta do PSD para o artigo 20.º, n.º 2, diz-se que é direito de todos fazer-se acompanhar de advogado perante qualquer autoridade.
O Sr. Dr. Garcia Pereira: - Mas até aqui não tem estado consagrado!
No que respeita à questão do processo penal, devo salientar que essa é uma posição que não é unânime no interior da Associação. No entanto, Sr. Deputado, ao colocar a questão no sentido de pretender que fosse mais explicitada a natureza de verdadeira instrução preparatória, direi que o inquérito, tal como ele está organizado neste momento, é totalmente dirigido pelo Ministério Público, a não ser em casos especialíssimos quanto a determinado número de medidas. Um inquérito comum, em que não haja necessidade de fazer intercepção de comunicações telefónicas - aliás, como sabem, essa faz-se mesmo sem despacho judicial -, é feito pelo Ministério Público sem nenhuma intervenção do juiz de instrução, sem nenhuma espécie de intervenção de um juiz. Todas as provas indiciárias são obtidas e até se chegar ao juiz, na fase da acusação e, portanto, à própria acusação que, se o arguido não requerer a abertura da instrução, o manda directamente para o banco dos réus, digamos, não é jurisdicionalizada porque é feita pelo próprio sujeito processual do Ministério Público. Portanto, isto assume, claramente, uma natureza talvez ainda pior do que uma instrução preparatória, porque é um inquérito administrativo dirigido por uma Magistratura, inequivocamente, mas uma Magistratura hierarquizada e que, repito, tem a natureza do sujeito processual
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interessado no desfecho final do processo. E isto é um drama!
O arguido comum, em processo penal, em Portugal, está completamente desarmado de uma forma geral, exactamente devido a isto, e está, de uma forma geral também, automaticamente sentado no banco dos réus. Se é isto o processo criminal ter as máximas garantias de defesa, conforme diz o n.º 1 do artigo 32.º, estamos conversados!
Portanto, o problema não se resolve sequer pelo alargamento das formas de intervenção do juiz. Aliás, ainda hoje se suscitam questões quando, em sede de inquérito, um arguido levanta problemas de nulidade. Ainda hoje isso é considerado, nos nossos tribunais criminais, qualquer coisa de estranho, porque o Código de Processo Penal não é claro a esse respeito. Por exemplo, perante uma omissão de uma diligência considerada essencial para a descoberta da verdade, ainda na fase de inquérito, quando o arguido a vem suscitar junto do juiz de instrução, há inúmeros despachos de juízes a dizer: "não tenho que intervir agora, nesta fase; o senhor espera que haja uma acusação e depois, ao requerer a abertura da instrução, levanta esses problemas".
De facto, temos uma fase administrativizada, digamos, contra a pessoa do arguido, repito, em que o segredo de justiça é também um problema quer nos deve preocupar, porque o segredo de justiça não significa que o processo seja secreto. Significa que quem tem acesso a actos ou a autos de um processo está obrigado a não os divulgar, que é uma coisa completamente diferente. Aqueles que são advogados já passaram seguramente pela situação, na qualidade de defensores de vítimas, de terem de requerer a abertura de instrução perante um despacho de arquivamento ou deduzirem um pedido cível de acusação ou uma acusação como assistente, ou ainda, na qualidade de mandatários de arguidos, terem de requerer a abertura de instrução sendo-lhes negado o acesso ao processo, porque, como ainda não foi proferido despacho de pronúncia ou não pronúncia, ainda está em segredo de justiça. Isto é uma coisa completamente kafkiana! E, meus senhores, isto não é uma questão académica, isto é aquilo por que passa o cidadão que é arguido, em cada momento.
Finalmente, quanto à questão do direito de acção popular, o Sr. Deputado José Magalhães pedia que a Associação concretizasse mais o que é que pretendia a esse respeito. O que nós entendemos a esse respeito é que, em vez de se ter a afirmação de um princípio, com uma referência depois muito ampla para a legislação ordinária, houvesse balizas muito mais precisas do ponto de vista do legislador ordinário que conferissem imediata eficácia a esse princípio, que como se sabe está muito longe de estar garantido em toda a sua amplitude, actualmente. Ou o Sr. Deputado acha que a acção popular é uma coisa que está neste momento perfeitamente garantida e ao alcance de qualquer cidadão ou grupo de cidadãos?
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PS): - Não, claro que não! Mas não seguramente só por défice de densidade constitucional. Esta Comissão é altamente favorável, nesse domínio, a que acção legislativa seja eficaz. É verdade que a lei tem tido aplicação incipiente e titubiante, mas obviamente que há limites para aquilo que o legislador pode fazer. É suposto que o legislador faça uma boa lei e que ela seja usada por aqueles que a possam usar, ou que detecte nela deficiências para se poder fazer, digamos, uma correcção legislativa.
Agora, em termos de solução constitucional é que era interessante medir qual é a prótese constitucional que é possível fazer para densificar mais a norma. Nós tivemos a ideia de a alargar, designadamente sublinhando bem e mais a questão da componente ambiental, mas ela já contém outros cambiantes. Aditar-lhe o quê? Normas que já constam da lei ordinária e que assim seriam revertidas para a densificarem? Aí é uma questão de medida e não encontrámos até agora sugestões concretas que permitissem fazer esse trabalho com virtude. É óbvio que é sempre possível transformar a Constituição num código, até num regulamento, mas não é desejável.
Sr. Presidente, quanto à outra questão suscitada, será este momento adequado para dar uma informação ou...
O Sr. Presidente: - A saber?
O Sr. José Magalhães (PS): - Sobre a extradição.
O Sr. Presidente: - Peço-lhe que seja breve.
O Sr. José Magalhães (PS): - Em relação à autorização sobre a correcção do procedimento, eu creio que estamos a procurar, e obtivemos até um consenso na Comissão, harmonizar dois processos. É uma questão, de facto, delicada, pois conhecemos todos o alarme que há a nível internacional, e especialmente europeu, em relação a determinados tipos de criminalidade e aquilo que se nos afigura correcto fazer é harmonizar dois processos. Desejavelmente, teremos a revisão constitucional pronta na altura em que o Parlamento for chamado a apreciar o acordo, vinculando o Estado português a normas sobre extradição do tipo daquelas que constam nessa convenção. Portanto, ao que tudo indica, terminaremos a revisão constitucional e poderemos, então, apreciar o quadro que está negociado ou em processo de negociação, mas há pressa nesta matéria. Todos somos sensíveis a isso, dada a gravidade das situações.
Em segundo lugar, sem repetir que a tradição já não é o que era, a verdade é que só em casos extremos é que se usará este princípio. Refiro-me à proibição de extradição de nacionais para o espaço da União Europeia, ou seja, para Estados democráticos semelhantes aos nosso e tendencialmente harmonizados deste ponto de vista. Só em casos de crimes de terrorismo e com garantias judiciais e garantias de defesa...
O Sr. Dr. Garcia Pereira: - De terrorismo ou de criminalidade organizada, que é uma coisa que ninguém sabe o que é!
O Sr. José Magalhães (PS): - São casos extremos!
O Sr. Dr. Garcia Pereira: - Criminalidade organizada é toda ela!
O Sr. José Magalhães (PS): - São situações em que é obviamente necessário reservar algum espaço de determinação e é difícil fazer uma definição...
O Sr. Presidente: - Não havendo mais oradores inscritos, quero agradecer à Associação Portuguesa de Direitos
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dos Cidadãos a disponibilidade para vir aqui expor as suas opiniões e responder às nossas questões. Não será necessário dizer que, por qualquer meio que entendam utilizar, mesmo por escrito, podem aditar outros comentários ou outras informações, como as que acabaram de trazer, à discussão da revisão constitucional. Mais uma vez, muito obrigado.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, temos connosco agora os representantes do Fórum Justiça e Liberdades, na pessoa do seu Presidente e de uma das suas Directoras, o Dr. José António Pinto Ribeiro e a Dr.ª Ema Falcão. Bem-vindos e obrigado por terem acedido ao nosso convite para nos virem transmitirem a opinião do Fórum sobre as propostas de revisão constitucional que temos perante nós.
O esquema adoptado para este tipo de encontro é dar-vos a palavra por um período, que julgamos suficiente, de 10 ou 15 minutos; depois, haverá perguntas dos Srs. Deputados membros da Comissão e, depois, uma intervenção final, para responderem às observações ou perguntas que forem feitas.
Tem a palavra o Sr. Dr. José António Pinto Ribeiro, Presidente do Fórum Justiça e Liberdade.
O Sr. Dr. José António Pinto Ribeiro (Presidente do Fórum Justiça e Liberdades): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Nós centrámos a nossa atenção essencialmente em partes gerais: por um lado, nos direitos fundamentais e, depois, num pequeno aspecto que tem a ver com a organização do sistema judiciário.
Relativamente aos princípios gerais, o Fórum considera que seria de extrema utilidade que se reforçasse na Constituição portuguesa o princípio da separação de poderes. O princípio da separação de poderes encontra-se afirmado no artigo 114.º da Constituição de uma forma que parece ao Fórum ser particularmente frágil ou, digamos, pouco categórica - "Os órgãos de soberania devem observar a separação e a interdependência estabelecidos na Constituição".
Nenhum pedido de alteração foi feito a este artigo 114.º, mas ao artigo 2º foram apresentadas duas propostas de alteração, uma pelo CDS/PP e outra pelo PSD, e na proposta do PSD refere-se expressamente a divisão e o equilíbrio de poderes. E ao referir-se a divisão e o equilíbrio de poderes não se refere a separação de poderes, apenas a divisão e o equilíbrio de poderes. O artigo 114.º refere-se, sim, aos órgãos de soberania e pensamos que seria de toda a utilidade, porque existem casos frequentes de deficiente funcionamento dos órgãos constitucionais, nomeadamente dos órgãos de soberania, por não haver uma observância mais rigorosa do princípio de separação de poderes que no próprio artigo 2º, onde se estabelecem os princípios do estado de direito democrático, estabelecesse algo sobre a separação de poderes que fosse mais forte do que aquilo que aparece no 114.º relativamente aos órgãos de soberania.
Portanto, aproveitando as propostas de alteração ao artigo 2.º, seria bom que isso fosse feito. Poderíamos dizer quais seriam, para nós, alguns aspectos e algumas vantagens decorrentes disto, desta mais estrita observância de um princípio de separação. Se vier a talhe de foice, poderemos dizê-lo depois.
Relativamente ao artigo 13.º, aquele que trata do princípio da igualdade, eu diria que foi com interesse que o Fórum viu algumas propostas no sentido de ficar mais claramente salvaguardado aquilo que é um campo nebuloso, sobre o qual, aliás, a Professora Teresa Beleza se tem pronunciado, sobre problemas de opção sexual, em vez de sexo, vendo-se isto alargado da forma que Os Verdes sugerem. Não temos a noção de que esta proposta de Os Verdes seja formulada da forma mais adequada e sobretudo preocupa-nos, na proposta de Os Verdes, outra coisa que não sabemos o que é, o estado de saúde, e que vem referido expressamente na proposta de alteração.
No princípio da igualmente, considerámos que tinha interesse, para além do sexo, fazer uma referência...
O Sr. Presidente: - Numa primeira discussão a que já procedeu na Comissão, Os Verdes mencionaram que queriam referir a não discriminação dos doentes da SIDA, por exemplo.
O Sr. Dr. José António Pinto Ribeiro: - Ah! Sobre isso eu não sei se vale a pena o Fórum... não tem nenhuma ideia sobre isso, as opiniões dividem-se sobre se valeria a pena, ou não, constitucionalizar um princípio de obrigatoriedade de informação das pessoas quando lhes são feitas colheitas de sangue para saber a que é que elas se destinam. Concretamente, é prática corrente nos concursos de admissão de pessoas para empresas, e julgo que não só, que lhes sejam feitas análises de sangue, que essas análises de sangue sejam utilizadas para saber coisas que não são reveladas aos candidatos e que são directamente enviadas para as entidades empregadoras, ou potenciais empregadores, sem delas darem conhecimento aos candidatos. Isto aconteceu, e acontece, em várias empresas, nomeadamente empresas de televisão, por exemplo, em que as pessoas foram...
Uma voz não identificada: - Que televisão?
O Sr. Dr. José António Pinto Ribeiro: - Nas empresas de televisão, quando foram feitos recrutamentos, as pessoas eram mandadas fazer análises para saber se tinham doenças infecto-contagiosas, doenças evolutivas, se tinham a robustez física, na mesma lógica em que o Estado exige, quando se concorre a funcionário público, um atestado de robustez física, que é o que isto queria dizer. Mas, na mesma lógica, as empresas exigem que seja feita uma análise às pessoas e quando é recolhido o sangue ele depois é também utilizado para fazer análises de outras coisas, cujos resultados são mandados directamente para os empregadores potenciais, independentemente de os concorrentes terem ou não conhecimento disso.
Relativamente ao artigo 20.º, temos uma dúvida sobre se valeria a pena, ou não, aproveitando os projectos que existem e, se calhar, indo um pouco mais longe, estabelecer um n.º 3 neste artigo 20.º que fosse, no fundo, a transposição para este sítio daquilo que está no artigo 52.º actual, que tem a ver com o direito de petição e direito à acção popular. Não faria sentido se este n.º 3 fosse alargado à generalidade dos direitos fundamentais, se calhar não à generalidade dos direitos fundamentais mas pelo menos a alguns outros direitos fundamentais, para além destes que aqui estão mencionados? Esta proposta está feita relativamente ao artigo 52.º, expressamente, por parte do PS e também do PCP, e a questão que nós temos é saber
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se valia a pena, porque isto é alargado, transpor isto para o acesso ao direito e aos tribunais e, portanto, estabelecer aqui um n.º 3 com um âmbito mais geral, que passasse a conter o que está hoje vertido no n.º 3 do artigo 52.º, com esta formulação um pouco mais ampla.
Relativamente às questões gerais, e ainda que este do artigo 20.º já esteja na parte relativamente aos direitos fundamentais, são sobretudo estas as preocupações e que gostávamos de expressar.
Temos preocupações de outra natureza, no que diz respeito ao direito processual penal e, digamos, ao direito processual penal constitucional. Preocupa-nos, por um lado, o que consta do artigo 27.º, quanto ao direito à liberdade e à segurança, nomeadamente a evolução que se tem vindo a verificar desde a Constituição de 76 no sentido do alargamento sistemático das alíneas que permitem uma privação da liberdade nos termos do n.º 3. Se bem me lembro, na Constituição de 76 eram duas, neste momento são cinco e há uma proposta do PS para que venham a ser sete, o que nos preocupa.
Por outro lado, preocupa-nos o alargamento do âmbito destas alíneas, nomeadamente da própria alínea b), na medida em que este regime de prisão ou detenção de pessoa que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional nos parece por vezes desproporcionado, ou seja, parece-nos desproporcionada a sanção de privação da liberdade para uma mera penetração ou permanência irregular no território nacional.
Portanto, à prisão por flagrante delito ou por fortes indícios de prática de crime doloso corresponde a pena de prisão cujo limite máximo seja superior a 3 anos; todos os outros casos em que a pena não seja superior a 3 anos e não seja crime doloso não justificam que se retire ou se restrinja a liberdade ao ponto de permitir a prisão preventiva ou a detenção da pessoa, pelo que nos parece que aquilo que está previsto na alínea b) é, além de excessivo, desproporcionado.
Acontece também com alguma frequência que é ao abrigo desta norma constitucional que se procede à detenção, figura que se não compreende muito bem, não está densificada constitucionalmente; não se percebe o que é que isto é em termos de processo penal, o que é isto de deter, o que é a detenção versus a prisão, nomeadamente a prisão preventiva, e também não se percebe rigorosamente o que é que seja esta irregularidade, porque aparentemente, então, qualquer irregularidade permite a prisão ou detenção de qualquer pessoa, e, nomeadamente, ela pode ter entrado irregularmente no território nacional por uma formalidade qualquer ter sido violada. Talvez valesse a pena encontrar uma forma de qualificação desta irregularidade que fizesse com que não se estivesse numa situação de semelhante arbítrio no que diz respeito à prisão ou detenção pela mera entrada no território nacional.
Vale a pena chamar a atenção para isto, que tem algumas consequências práticas, julgo eu. Nas situações de prisão ou detenção pela Polícia de Estrangeiros e Fronteiras, esta recusa-se a usar qualquer destas duas expressões, dizendo que as pessoas estão retidas e falando de uma figura de retenção, que não é nem a detenção nem a prisão: as pessoas estão retidas no aeroporto, estão retidas em dado sítio quando desembarcam de algum avião e não vêm munidas dos documentos legais necessários, não estão numa situação de entrada regular ou não satisfazem todas as condições para a sua entrada, isto com os poderes discricionais ou de arbítrio que essa polícia ainda tem na apreciação sobre se as pessoas têm meios de subsistência suficientes para poderem entrar na qualidade de turistas, ou não, sobre se não preenchem essas condições e, portanto, são consideradas em situação de irregularidade e são retidas. Enfim, retidas, detidas, presas, não se percebe bem...
Talvez valesse a pena estabelecer aqui alguma coisa que assegurasse, nomeadamente, que estas pessoas também fossem necessariamente presentes a algum juiz para que ele, no mínimo dos mínimos, confirmasse esta decisão de prisão ou detenção, o que lhe queiram chamar, face à irregularidade e à gravidade da irregularidade.
Temos alguma preocupação com a proposta de alínea g), do PS, proposta esta que, nos termos em que está redigida, nos pareceu assustadora, profundamente assustadora, porque nos fez lembrar algumas coisas de um artigo famigerado artigo 8.º de uma constituição, também relativo aos direitos fundamentais, famigerado, na medida em que dizia "detenção de suspeitos para efeitos de identificação nos casos e pelo tempo estritamente necessário e nos termos previstos na lei". Isto porque nos pareceu que, depois, amanhã, a lei ordinária poderia vir a dispor, sem infracção a este princípio constitucional, que se os casos fossem muito mais amplos, o tempo estritamente necessário fosse para isto ou para aquilo, eventualmente, e as condições e os tempos previstos na lei fossem também alargados.
Isto é, pensamos que deixar a porta aberta à lei ordinária neste domínio, domínio que levou a tanta conflitualidade durante os últimos anos, nomeadamente quanto à lei de segurança nacional, quanto à lei de identificação das pessoas que foi ao Tribunal Constitucional e que aí foi "chumbada", que voltou ao Tribunal Constitucional e tem aquela forma limitativa das 6 horas,... Parece-nos que esta alínea visa permitir a declaração de constitucionalidade da norma dessa lei quando ela vier a ser de novo apresentada, ou se vier de novo a ser apresentada em termos diferentes. Parece-nos excessivamente amplo, excessivamente indefinido para isso e, assim, gostaríamos que esta alínea g) fosse claramente reformulada no sentido de só permitir a situação de detenção de suspeitos em condições muito mais estritas.
Por outro lado, valia a pena aqui fazer uma outra coisa... Não sei se vale a pena constitucionalizar, porque de facto não é possível transformar a Constituição num regulamento ou na solução de todas as questões que existem, como é evidente, mas põe-se um problema frequente na relação com as autoridades policias, que é o de saber se as pessoas têm que declinar a sua identidade ou se têm que fazer prova da sua identidade. E, quais são os meios necessários para fazer a prova da sua identidade? O código de processo penal francês, por exemplo, permite a prova de identidade por declarações de quaisquer outras pessoas que sejam identificadas. Isto significa que se a pessoa for apanhada na rua, num dos locais habitualmente frequentados por delinquentes, etc., nos termos dos artigos 250.º e 251.º do Código de Processo Penal, se se encontrar nessa situação, ela poderá fazer a prova da sua identidade através de declarações de outras pessoas que tenham outro meio de identificação, outro meio de fazer prova da sua identidade. Ou seja, a declaração de terceiros é um meio de prova suficiente para a identificação da pessoa. Julgo que aqui não vale a pena fazer isso, mas era só para chamar a atenção dos Srs. Deputados para o risco interpretativo que nesta matéria existe e as eventuais interpretações
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alargantes, enfim, as várias coisas que podem decorrer daqui.
Temos depois algumas questões que, para nós, são particularmente sensíveis, no que diz respeito ao artigo 31.º e ao artigo 32.º.
No que diz respeito ao artigo 31.º, temos dúvidas sobre se no n.º 2 não valia a pena dizer que esta providência de habeas corpus pode ser requerida por qualquer pessoa que se encontre no território nacional. E refiro-me a isto porque a referência a qualquer cidadão sempre podia ser defendida como sendo aplicável aos não cidadãos, por força do disposto no artigo 15.º, salvo erro, que manda aplicar aos não cidadãos, aos estrangeiros, as mesmas regras, o que não é claro na medida em que aqui se exige que o cidadão esteja no gozo dos seus direitos políticos.
Não se percebe porque é que o cidadão que requer o habeas corpus há-de estar necessariamente no gozo dos seus direitos políticos. Sobretudo exigindo-se que ele esteja no gozo dos seus direitos políticos e, portanto, no fundo, entendendo-se que isto talvez seja um direito político, daqui talvez decorra que isto seja uma coisa só aplicável aos cidadãos portugueses e não a qualquer pessoa que aqui resida.
Para nós, a questão central prende-se com o artigo 32.º da Constituição portuguesa. O artigo 32.º tem, a nosso ver, uma coisa grave, que é aquela que se encontra prevista no n.º 4. Se me permitem, gostava de lembrar não só o Dr. Francisco Salgado Zenha como o Dr. Francisco Sá Carneiro, que tiveram uma posição clara sobre esta matéria, o que levou o Dr. Francisco Sá Carneiro, no seu projecto de constituição para os anos 80, a dizer uma coisa que depois se transformou em letra morta.
No n.º 4 do artigo 31.º que ele propôs dizia-se que "toda a actividade material de instrução será da competência de um juiz", precisamente para evitar que se fizesse aquele "truque" que se fez no Código de Processo Penal, "truque" esse que consistiu em pegar na instrução... Havia a instrução e a instrução contraditória, ou instrução preparatória-contraditória, tudo era instrução, tudo estava abrangido pelo n.º 4 do artigo 32.º, na altura no artigo 31.º. Ora, o legislador ordinário fez uma coisa genial, que foi à instrução preparatória chamar inquérito, à instrução contraditória chamar instrução e, portanto, passou só a ser instrução a 2ª fase, fase que nem sequer tem de existir e que, além de não ter que existir, curiosamente, tem tendência para não existir nos crimes mais graves.
É que nos crimes mais graves há réus presos e, se os réus vão presos e se consideram inocentes, querem ir é para a fase de julgamento imediatamente e, portanto, não querem mais 8 meses de prisão preventiva nem instrução contraditória. Assim, aquela fase que devia ser a mais digna, que era a da instrução, foi completamente destruída pelo Código de Processo Penal. Julgo que esta parte não foi objecto de pedido de apreciação constitucional ou de apreciação constitucional preventiva, passou e...
O Sr. Presidente: - Foi!
O Sr. Dr. José António Pinto Ribeiro: - Então foi, e foi votada favoravelmente.
O Sr. Presidente: - Tenho 10 páginas de veemente declaração de voto, meu caro Dr. Pinto Ribeiro.
O Sr. Dr. José António Pinto Ribeiro: - Peço desculpa.
O Sr. Presidente: - Isto é, não utilizei a palavra truque mas utilizei outra...
O Sr. Dr. José António Pinto Ribeiro: - O que quero dizer é que não vejo razão, sendo isto quase um adquirido pelos dois maiores partidos da Assembleia da República, quer pelo PSD, quer pelo PS, sendo uma proposta que foi feita sistematicamente pelo Dr. Francisco Salgado Zenha, que foi defendida e feita pelo Dr. Francisco Sá Carneiro no seu projecto de revisão constitucional, para que não se diga aqui toda... Eu gostava de chamar a atenção para o facto de, no livro do Dr. Sá Carneiro, se dizer esta coisa curiosa, concretizando o n.º 4: a definição material de actividade instrutória para evitar a subtracção a este preceito constitucional do inquérito preliminar, instituído pelo Decreto-Lei n.º 605/75, de 3 de Novembro, na redacção do Decreto-Lei n.º 377/77. Isto é, ele tinha a clara noção disto e disse que era preciso acabar com isto do inquérito preliminar e da subtracção do inquérito preliminar à competência do juiz.
Isto não passou na revisão de 82; o Dr. Sá Carneiro já cá não estava, na revisão subsequente também não, e depois veio o Código de Processo Penal de 87 e deram esta "machadada" na instrução, fazendo o inquérito preliminar. Quanto ao inquérito preliminar, estamos naquela fase, que também foi discutida na legislatura anterior, em que o governo propunha, enfim, uma situação em que a Polícia Judiciária podia fazer uma averiguação, um pré-inquérito, uma averiguação que essa nem sequer ficava sujeita ao Ministério Público. Portanto, tínhamos um pré-inquérito, um inquérito, uma instrução... Acho que se nós continuarmos a reduzir isto já não temos instrução nenhuma nem juiz de instrução criminal.
Queria dizer que não vale a pena jurisdicionalizar a instrução e, depois, não dar meios ao juiz de instrução. Aquilo que se fez durante toda esta fase e que justificou a destruição da instrução foi criar o juiz de instrução criminal sem quaisquer meios. E porque não tinha quaisquer meios, aquilo não funcionava, e, porque não funcionava, disse-se: "não funciona a instrução jurisdicionalizada, é preciso a lógica de um inquérito, uma instrução feita por outros".
Finalmente, gostaríamos de chamar a atenção para a necessidade de todas as decisões judiciais serem fundamentadas e serem pelo menos tão fundamentadas como as decisões hoje proferidas ou com a exigência de fundamentação das decisões judiciais feita no Código de Procedimento Administrativo. Não faz sentido que no Código de Procedimento Administrativo haja necessidade de uma fundamentação para as decisões administrativas, que é hoje extremamente mais exaustiva, mais profunda do que aquela que é feita para as decisões judiciais. As decisões judiciais, muitas vezes, não são fundamentadas de todo, sendo a fundamentação uma remissão para declarações, e parecia-nos absolutamente indispensável que essa fundamentação fosse feita e com exigência.
Por outro lado, gostaríamos também de defender com veemência que se introduzisse, em Portugal, no que diz respeito à reforma judicial, o sistema de júri, como forma de funcionamento e completamente diferente do sistema judicial.
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Ainda ontem, no Porto, numa conferência, o ex-Ministro de Economia, Dr. Daniel Bessa, se queixava e dizia que por melhores que sejam as reformas em matéria empresarial elas não serão eficazes enquanto o sistema judicial não funcionar. Portanto, a questão está na reforma do sistema judicial, está na eficácia dessas decisões judiciais, e nós entendemos que isso também poderia ser aprofundado ou acelerado através da introdução do sistema do júri.
Por último, pensamos que era necessário reformular completamente, na lógica do aprofundamento da separação de poderes, o Conselho Superior da Magistratura. E por aqui nos ficamos.
O Sr. Presidente: - E em que sentido, em particular?
O Sr. Dr. José António Pinto Ribeiro: - Num sentido do auto-governo dos juízes, mas de um auto-governo completamente responsabilizado e responsabilizante. Isto é, essa responsabilização pressuporia uma separação funcional e uma responsabilização política daqueles que estão no Conselho Superior da Magistratura perante o órgão electivo que é a Assembleia da República.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, acabamos de ouvir o Sr. Dr. Pinto Ribeiro, Presidente do Fórum Justiça e Liberdades. Segue-se um período de perguntas, esclarecimentos, comentários ou contestações, se for caso disso.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PS): - Tal como fizemos em relação ao nosso interlocutor anterior, seria importante dar alguma ideia do que já foi realizado. Não sei se desejará fazer algumas perguntas a algum dos sete Deputados...
O Sr. Dr. José António Pinto Ribeiro: - Não, prefiro que isso seja feito pelos proponentes das propostas que foram consideradas e que foram objecto de uma primeira discussão na Comissão.
O Sr. José Magalhães (PS): - Então, talvez possa passar à acção, já que a situação é desigual em relação aos pontos e nem todos os proponentes estão presentes, designadamente o referente ao artigo 13.º e seu foro. Mas, Sr. Presidente, se me permite, gostaria de continuar.
O Sr. Presidente: - Faça favor.
O Sr. José Magalhães (PS): - Creio que estas contribuições são de extrema utilidade para o nosso trabalho. Gostaria de cumprimentar o Fórum Justiça e Liberdades e os seus representantes por essa mesma contribuição, que é e será ouvida.
Em relação a uma eventual transposição das normas sobre a acção popular para o artigo 5.º, a questão foi apreciada, viu-se que a vantagem da "cirurgia operatória" poderia ser limitada segundo o entendimento económico da revisão constitucional, pareceu-nos interessante reforçar a norma e também a inserção sistemática e foi adquirido algum consenso para reforçar a norma, com que nos congratulamos. Refiro-me à alusão aos direitos ambientais, designadamente, o que já não seria mau, creio eu, a acrescentar uma alusão aos consumidores e, aliás, quanto aos consumidores, aditar na sede própria, no artigo próprio que a Constituição lhes dedica, uma menção à acção colectiva e acções em defesa dos direitos dos interesses dos associados.
O Sr. Dr. José António Pinto Ribeiro: - Posso fazer uma pergunta? "Direitos fundamentais" desaparece?
O Sr. José Magalhães (PS): - Desapareceu e essa foi a crítica que nos foi dirigida pelos nossos colegas, porque a expressão que foi proposta pelo PS seria "abrangente", e, logo, "total", "atómica". Disseram-nos que deveria ser, enfim, reduzida, selectiva, mais selectiva, sem no entanto esquecer que o legislador tem sempre liberdade para, no terreno da lei ordinária, acrescentar o espaço da acção popular. Portanto, uma função mais económica, mais limitada constitucionalmente, à partida, não impede funções mais generosas no terreno da lei ordinária. A densificação a fazer deveria ser selectiva, entendeu-se. E nós reconhecemo-nos nessa posição e parece que isso será acolhido.
Em relação ao artigo 27.º, n.º 3, alínea g), do PS, longe vá o agouro de qualquer semelhança em relação a conceitos indeterminados, com construções pretéritas do nosso sistema ou de outro. Mas, enfim, tida nos seus termos, a preocupação de precisar tem, do nosso lado, todo o eco. O debate que fizemos sobre a lei da identificação não foi inútil nem caiu em cesto roto. Pela nossa parte propusemos, como é sabido, as soluções que considerámos constitucionais, o resultado final expurgou as normas inconstitucionais, a lei que foi para promulgação pelo Presidente da República não era, de facto, aquilo que tinha sido objecto de censura pelo Tribunal Constitucional e que tinha sido objecto de aceso debate cá. Gostaríamos de pacificar precisamente isso. Para pacificar precisamente isso é necessário aclarar, desde logo, que os cidadãos, quaisquer cidadãos, em quaisquer circunstâncias, não podem ser incomodados para os efeitos que aqui estão referidos. Só a "suspeitos" tal coisa se aplicará, com as densificações que a lei ordinária há-de ter de fazer.
Quanto à definição da circunstância temporal, não é por acaso que as críticas surgem e surgem em relação a conceitos indeterminados, talvez seja de facto vantajoso fixar uma hora. O meu problema é que cristalizaremos essa hora no sentido de fixar um topo superior. O legislador, nessa matéria, ficará, desse ponto de vista, limitado por essa cristalização, que aparentemente terá mais vantagens que a solução relativamente indeterminada que tínhamos apresentado. Obviamente, as interpretações alargantes, abrangentes e outras são ilegítimas neste foro em que se trata de restringir a liberdade e portanto hermenêuticas dessas serão sempre deficientes. Não gostaríamos era de gizar a solução em função da pior interpretação possível, mas é preciso fazê-lo com cuidado, estamos de acordo.
Em relação ao artigo 31.º, sobre habeas corpus, a norma constitucional não será alterada a não ser no sentido de suprimir abusos, e é essa a nossa proposta, sendo que o próprio poderá sempre requerê-la.
Do que se trata quanto à alusão a cidadãos no pelo gozo de direitos políticos, etc., etc., é de qualificar uma modalidade de acção popular que pressupõe cidadão. Mas mantém-se a possibilidade de ser deduzida pelo próprio nas condições generosas que a Constituição actualmente prevê e isso não será alterado.
Quanto ao "truque de passe-passe", a questão que está colocada é uma questão melindrosa - e, enfim, teremos de a discutir seguramente, sempre e em todas as ocasiões -, é saber se alguém da circunstância pública portuguesa quer
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reabrir o dossier da instrução. A Constituição, na sua redacção actual, comporta a interpretação que o então Conselheiro Vital Moreira sustentou, que eu sustentei e muita gente sustentou?
O Sr. Presidente: - Não comporta ...
O Sr. José Magalhães (PS): - A questão é saber se vamos reabrir a questão na actual circunstância e de olhos postos na lei ordinária, portanto. Não é tanto um debate de realidade constitucional ou de normas constitucionais, como um debate de orientação do júri ordinário, pura e simplesmente. Portanto, separando fóruns, se quisermos, separando terrenos, a questão é uma grande questão de legislação ordinária, não é uma grande questão no terreno da hermenêutica constitucional. Portanto, não vale a pena transpor para o terreno da batalha constitucional aquilo que deve ser dirimido no terreno da lei ordinária.
Quanto a isso, é preciso saber se é este o momento de o fazer. Curiosamente, no terreno político-partidário ninguém abriu essa batalha. Não há nenhum projecto de lei, nenhuma iniciativa tendente a opor ou a propor qualquer modelo alternativo para dar resposta a esta questão. Talvez haja nisso uma certa lógica. Talvez seja uma lógica de maximizar possibilidades de tornar o sistema eficaz e de não propor constantemente o regresso ao ponto zero ou o regresso a paradigmas nunca ensaiados, como é o caso dos JIC, que nunca houve. Infelizmente, fazemos sempre o regresso a algo que nunca houve, uma vez que os JIC foram assassinados da forma histórica que se sabe, através da asfixia da falta de condições. Quando falamos do regresso aos JIC estamos a falar do regresso a alguma coisa que nunca houve.
Sr. Presidente, por razões de brevidade, ficaria por aqui. Quanto a reformular o Conselho Superior de Magistratura, gostaríamos de saber em que termos, porque responsabilizar, dar auto-governo e responsabilizar os auto-governados perante o Parlamento, teria, em condições não específicas, condições de terramoto, com consequências de terramoto. Portanto, seria interessante sabermos melhor como é que configura esse paradigma.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Sá.
O Sr. Luís Sá (PCP): - Sr. Presidente, em primeiro lugar queria saudar o Fórum Justiça e Liberdades e a qualidade da intervenção que fez, a que, aliás, nos habituou há muito.
Em relação ao artigo 13.º, creio que a formulação de Os Verdes é efectivamente infeliz na parte e nos termos em que se refere à saúde, na medida em que diz mais do que pretendeu, designadamente numa certa leitura poderia levar a tornar difíceis discriminações positivas a favor de doentes, em particular. Esse ponto, aliás, foi reconhecido pelos próprios, que manifestaram abertura em relação à respectiva reformulação. No entanto, em relação ao problema da orientação sexual e das uniões de facto, creio que haveria efectivamente vantagens.
Gostaria de sublinhar, entretanto, que a falta de abertura que foi manifestada foi acompanhada de uma declaração, que, nas circunstâncias, creio que é de sublinhar, de que o princípio de igualdade já comporta, tal como está, a proibição de quaisquer discriminações nesta matéria. Naturalmente que é pouco, pela nossa parte gostaríamos de mais, mas, nas circunstâncias em que estamos, creio que este sublinhado não deixa de ter importância.
Em relação ao artigo 27.º, acompanhamos a preocupação do Fórum Justiça e Liberdades com uma nota: é que o acrescento de alíneas teve uma preocupação que justamente contida é virtuosa: é a de não manter à margem da Constituição situações de facto, que todos aceitam mas que a Constituição, cumprida à letra, contraria. Nesse sentido, há aqui referências, por exemplo, à situação de menores e outras, que não são de todo em todo compreensíveis. Quem diz isto, diz, por exemplo, as medidas relativas aos militares, medidas que ao longo do tempo vieram a constitucionalizar situações de facto que existiam independentemente e à margem da Constituição.
Creio que, de algum modo, a situação da alínea g) é diferente. Nos termos em que está redigida pode, efectivamente, compreender leituras que vão para além de propósitos compreensíveis que houve no passado.
Queria formular duas questões concretas no sentido de conhecer a opinião do Fórum Justiça e Liberdades sobre dois tipos de medidas que adiantamos e aos quais damos bastante importância, sendo uma a da criação de procedimentos judiciais de emergência semelhantes ao habeas corpus para defesa de direitos fundamentais. Refiro-me em particular a situações como liberdade de manifestação, liberdade de reunião, liberdade de expressão, que, não havendo estes procedimentos judiciais de emergência, podem ficar esvaziadas de sentido prático.
A segunda questão que eu queria colocar era no sentido de conhecer a posição do Fórum Justiça e Liberdades sobre uma proposta que fizemos e a que igualmente atribuímos importância, o artigo 16.º-A, que é no sentido de consagrar uma norma relativa a deveres públicos que estabeleça em que condições concretas é que estes deveres públicos podem ser criados, em primeiro lugar, e a salvaguarda dos direitos fundamentais ou interesses constitucionalmente protegidos, para não permitir naturalmente a criação arbitrária destes deveres, em segundo lugar, estabelecendo o princípio de que as leis que os criem têm carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo. São normas a que atribuímos importância e que gostaríamos de ver comentadas.
Quanto ao artigo 52.º, queria chamar a atenção para um facto: em relação à proposta do PS, foi feita uma crítica dizendo que ela era excessiva, era uma bomba atómica, era terrorista; creio que este facto não justifica, entretanto, que não possa haver o direito à acção popular para alguns direitos fundamentais devidamente tipificados. Pela nossa parte, fizemos uma tentativa e creio que talvez pudesse ser esse o caminho. Também gostaria de ver isso comentado.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Calvão da Silva.
O Sr. Calvão da Silva (PSD): - Sr. Presidente, em primeiro lugar, em nome do PSD, queria também saudar o Fórum Justiça e Liberdades pela exposição que fez e pelas achegas que nos trouxe. Em segundo lugar, gostaria de insistir um pouco, uma vez que o que disseram é coincidente com o que disse o Sr. Dr. Garcia Pereira, que há pouco daqui saiu, quanto à fase do inquérito preliminar. Vejo que há, por quem acompanha o dia-a-dia, na prática, alguma sensibilidade para este problema, o que significa
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que a acuidade de que ele está revestido, porventura, é maior do que aquela que alguns teóricos imaginarão.
Nessa medida, gostaria de perceber se lhe parece - de acordo com o que ouvi talvez seja essa a sua ideia - que, onde a Constituição diz "toda a instrução", devia constar "todo o inquérito e instrução criminal deve ser competência de um juiz". Há uma proposta, por acaso do Deputado Guilherme Silva, do PSD, onde, em vez de constar "toda a instrução", está "todo o inquérito". Mantendo-se, como está, a Constituição, considera que propostas do género de aumentar o poder de investigação do próprio Ministério Público, retirando-o da Polícia Judiciária, melhoram ou pioram essa situação, se se mantiver o actual texto constitucional tal qual está nessa parte?
O Sr. Presidente: - Sr. Dr. Pinto Ribeiro, tem a palavra.
O Sr. Dr. José António Pinto Ribeiro: - Em primeiro lugar, queria agradecer a possibilidade de estarmos aqui, e agradecer veementemente. Consideramos que é excelente que a Comissão de Direitos, Liberdades e Garantias já o tenha feito noutras instâncias e que esta Comissão de revisão da Constituição o faça agora, pois julgamos que esta abertura, esta possibilidade que é concedida aos cidadãos de apresentarem "ao vivo" o direito de petição, sendo isso divulgado e dito e de serem feitas sessões mesmo com quem não apresentou proposta nenhuma, como é o nosso caso e o de algumas outras associações, é extremamente rico e positivo do ponto de vista do trabalho constitucional.
Gostava agora de dizer o que é que nos preocupa e o que parece resultar das intervenções e dos comentários que foram feitos.
Relativamente ao artigo 52.º, admito que a formulação que existia, e que nos levou a não tecer nenhum comentário especial sobre ela, seja, do ponto de vista constitucional, excessiva. Isto é, de facto, percebemos que, nos termos em que está redigido o n.º 3 do artigo 52.º, é conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de defesa de direitos fundamentais, mas a certa altura poderia haver, digamos, um "cavalgar" do interesse do lesado pela associação, podendo a própria associação, no fundo, estar a fazer coisas que ele não queria que fossem feitas.
O Sr. José Magalhães (PS): - Em relação a qualquer cidadão ou qualquer um cidadão. Qualquer cidadão sozinho pode ser actor popular...
O Sr. Dr. José António Pinto Ribeiro: - Exacto! É duvidoso que não pudesse ser feita aqui uma interpretação de que é conferido a todos, pessoalmente ou através das associações de defesa dos interesses em causa, uma interpretação algo restritiva disto. Mas não vale a pena porque, se era para ser restringido, então, era melhor fazê-lo formal e claramente.
Aquilo que nos preocupa é isto: a Constituição consagra o direito de intervenção de associações e de qualquer cidadão, para defesa da saúde pública, do património cultural, do ambiente, etc.; se for para defesa da vida e da integridade física, não. Porquê? A vida e a integridade física é um valor inferior ao ambiente, à saúde pública, ao património cultural? Há uma pessoa cuja vida está ameaçada ou pode vir a ser ameaçada, cuja liberdade pode ser ameaçada. Não pode uma associação fazer nada para o defender? Não tem legitimidade processual, não pode intervir no processo de defesa dele, não pode intervir no processo penal, não pode intervir sequer. Ao contrário do que acontece no Tribunal Constitucional alemão, não há essa figura entre nós, não se pode fazer nada, não pode alegar nada em defesa dele, não pode defendê-lo. Ele não tem meios para se defender, ele não sabe defender-se!
Imaginem o que é o problema da liberdade das pessoas, por exemplo, dos doentes mentais. Quem é que defende o doente mental? É o Ministério Público. Posso dizer, relativamente aos doentes mentais, que não há nenhum caso de decisão judicial de autorização para o internamento forçado de doentes mentais, em Portugal. Não há! No entanto, são internados, são privados da liberdade, são atados a camas, são presos a camas, não saem. A associação de defesa onde é que está?
Não, não se trata de ambiente. De facto, não é! O ambiente é péssimo, mas não é ambiente, não é saúde pública, é saúde individual, daquelas pessoas, é saúde mental. Como é que é possível não estabelecer algo que permita estas associações intervirem judicialmente?
Querem dois casos? Eu digo: violação da liberdade, da integridade física da vida. Restrinjam-se só a estes casos, onde não há o problema de liberdade religiosa, não há o problema de liberdade de expressão, não é nenhuma das liberdades, nenhum dos direitos, nenhuma das outras garantias que aqui estão. A violação da liberdade, a violação da integridade física da vida, parece-nos, são valores mínimos fundamentais, mais fundamentais do que esses.
É evidente que o artigo 52.º resulta de uma confusão entre o interesse difuso e a acção popular, e a maneira como está redigido baralha isto um pouco, porque o que se quer, de facto, é a tutela, não devida à acção popular na tradição do direito administrativo, nem propriamente a do interesse difuso, é poder intervir na tutela do interesse individual de pessoas e também, eventual e marginalmente, o do interesse difuso de pessoas que não estão. Por isso mesmo é que se põe o problema de saber se, nestes casos em que há valores essenciais da sociedade que estão em causa, se deve ou não permitir a intervenção destas entidades. Pode ser de associações, pode ser de associações só para associados, pode ser de associações só com o consentimento do próprio associado! Nós não podemos intervir em processo judicial nenhum, neste momento.
Há pessoas que escrevem ao Fórum, há pessoas que vêm ter com o Fórum a dizer "por favor", pessoas cujo marido foi morto, enfim, pessoas... Não podemos fazer nada! Que vão ter com um advogado, que eles é que podem patrocinar isso; tem de ser representação oficial, pode ser com um advogado. Dizem-nos: "Mas o senhor podia indicar-nos um advogado". Nem isso podemos fazer! Não temos a possibilidade de indicar A, B e C. Não podemos! Não podemos fazer nada. Isto é a legitimidade processual nenhuma, legitimidade para intervir...
Achávamos que era importante, e por isso é que se isto saísse do âmbito estrito e claro da acção popular e do interesse da tutela e passasse para o artigo 20.º poderia haver alguma vantagem de deslocalização, também teórica, também institucional, isto é, o instituto talvez não fosse exactamente o mesmo e não padecesse dos vícios que decorrem da origem.
Não sei, mas, no fundo, quando o Deputado José Magalhães nos disse o que disse, nós dizemos: "não, não pode ser!". Mas não fizemos nenhum comentário porque achámos,
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quando muito, que era excessivo, mas não tínhamos nada contra; na medida em que estávamos protegidos por esta, não nos passou pela cabeça foi que ficássemos na mesma, com a densificação do ambiente, mas ficássemos na mesma. E isso é o que nos parece grave, porque não haverá - já o pedimos aos membros dos governos anteriores e já o pedimos a este Governo - lei ordinária se isto não estiver previsto constitucionalmente, consagrado e permitido constitucionalmente. Não é previsível que haja, isto é não é previsível, nem isto aconteceu por parte do PS, nem aconteceu por parte do PSD. Foi pedido aos...
O Sr. José Magalhães (PS): - Não percebo! Mas tem alguma indicação nesse sentido? Nós acabamos de alargar o direito de acção, por exemplo, para os termos racistas e de xenofobia. Alargámos tanto quanto quisemos e a tendência para o fazer na lei ordinária é enorme!
O Sr. Dr. José António Pinto Ribeiro: - Pode ter sido um pretexto, porque havia a revisão constitucional em curso. Não sei, estou a dizer só o que nos foi dito, não estou a dizer mais do que isso.
Depois, relativamente ao artigo 27.º alínea g), e continuo com a intervenção do Sr. Deputado Sr. José Magalhães, temos duas coisas. Também temos um limite das 48 horas para a preventiva, para a submissão ao juiz, também temos um limite máximo. Também cristalizámos. Por que é que aí não tivemos medo de cristalizar? Porque só podia ser pior que 48 horas; porque a prática, a legislação ordinária, só poderia ser, obviamente, mais de 48 horas. Mas porque é que aqui não se põe, eventualmente, 6 horas de dia e 3 horas de noite, no limite máximo?!
O Sr. José Magalhães (PS): - Portanto, estaria de acordo que a quantificação e a concretização fosse de 6 horas, de prazo máximo?
O Sr. Dr. José António Pinto Ribeiro: - Exactamente. E acho que os casos, estes próprios casos, carecem de alguma clarificação, uma vez que se está a fazer... Não sei, existe grande dúvida sobre o 250.º do Código de Processo Penal, ninguém se entende sobre aquilo. Eu diria que as polícias têm um entendimento, a doutrina e os tribunais, por vezes, o Ministério Público, têm outro. Mas as polícias têm um, claro.
Voltando ao artigo 52.º, e agora na ligação do 52.º com o 31.º, portanto, com o habeas corpus, foi dito pelo Deputado José Magalhães que, no fundo, se trata de um alargamento do direito à acção popular. O artigo 52.º, n.º 3, diz "a todos". A todos não quer dizer que sejam os cidadãos...
O Sr. José Magalhães (PS): - Peço desculpa... O 31.º, n.º 2, e o 52.º, n.º 3...
O Sr. Presidente: - Quando o artigo 52.º, n.º 3, diz a todos, a cada cidadão, não têm de ser cidadãos, podem ser estrangeiros que residam cá; uma pessoa que está cá, membro da Comunidade Europeia, não é cidadão português.
O Sr. José Magalhães (PS): - Eu estou a compreender a observação. É que a minha observação é paralela a essa. Eu recordava apenas que a prudência pode ser recolhida pelo próprio.
O Sr. Dr. José António Pinto Ribeiro: - Mas o próprio está detido ou o próprio está preso! O que é isso, Sr. Deputado Magalhães? Se, no caso, está detido, como é que faz alguma coisa? Era um problema de alargar...
O Sr. Presidente: - Há aqui uma dificuldade! É que não tendo havido propostas, isto exige um consenso generalizado.
Pausa.
Ah, não há nenhuma proposta para o 31.º?... Peço desculpa, julguei que o limite era de artigos, não era de números. Percebe?
O Sr. José Magalhães (PS): - Não, o limite é de questões. Questões/preceitos.
O Sr. Presidente: - Claro que há maneira de ultrapassar. Não havendo consenso no sentido de mexer nesta norma, pode agir-se inserindo a alteração numa sede em que haja propostas de mudança de texto, se houver uma abertura generalizada nesse sentido.
O Sr. Dr. José António Pinto Ribeiro: - Finalmente, se aquilo que foi dito é verdade quanto ao número de alíneas e ao crescimento de alíneas do 27.º, então, porque é que não estão cá os doentes mentais?
Relativamente à proposta do PS para a alínea e), eu gostaria só que, em vez de ser qualificado pelo Tribunal Judicial, o fosse por sentença judicial.
O Sr. José Magalhães (PS): - Durante o debate, todos aventaram que uma formulação alternativa pudesse ser decretada pelo Tribunal Judicial competente.
O Sr. Dr. José António Pinto Ribeiro: - Já está, pois... Bom, eu gosto mais de sentenças judiciais.
O Sr. José Magalhães (PS): - Exacto! O que eu acho justíssimo...
O Sr. Dr. José António Pinto Ribeiro: - Voltando agora ao problema dos procedimentos judiciais de emergência, nós não temos nada contra eles, pelo contrário, estamos a favor da figura dos procedimentos judiciais de emergência. Aquilo que nós gostaríamos era que o sistema judicial fosse eficaz temporalmente e, portanto, as propostas que existem de estabelecer que todos têm direito, em tempo útil, a uma decisão judicial, obviamente, não significa que os mecanismos procedimentais estejam instituídos. Portanto, as pessoas têm direito a uma decisão em tempo útil mas, depois, não há os mecanismos procedimentais para ter uma decisão em tempo útil. Nessa medida, se os mecanismos procedimentais de emergência permitirem a introdução de mecanismos, tudo bem. Acho é que isso é, mais uma vez, o reconhecimento da falência do funcionamento do aparelho judicial em tempo útil. Portanto, vamos criar mecanismos procedimentais especiais para ter uma decisão em tempo útil para este caso, para aquele caso, para o outro caso. Mas é óbvio que, se não temos para nenhum, é melhor ter para algum do que para nenhum.
Quanto ao artigo 16.º-A, a única coisa com que nos preocupámos foi com o âmbito, o significado disto dos
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deveres fundamentais, pois não conseguimos perceber exactamente o que é que se queria com isto. Isto é, percebemos que só pode criar deveres públicos dos cidadãos, mas não conseguimos perceber quais eram estes deveres públicos que estariam na mente do legislador proponente para serem criados.
O Sr. Luís Sá (PCP): - Bem, eu creio que o Sr. Presidente teria uma particular autoridade, designadamente doutrinal, para intervir sobre esta matéria, e não apenas doutrinal também política, porque se tem batido exactamente para que a Administração Pública e outras entidades públicas não possam criar, arbitrariamente, deveres aos cidadãos sem ser nos termos exactos que a Constituição estabelece. Portanto, trata-se de, também por esta via, impedir o arbítrio e conseguir dessa forma proteger direitos fundamentais do cidadão. É uma proposta, de resto,...
O Sr. José Magalhães (PS): - E uma reserva...
O Sr. Luís Sá (PCP): - ... e uma reserva da lei, portanto. Este é um ponto que é fundamental e que, aliás, foi amplamente abordado no debate já na Comissão de Revisão Constitucional. O problema de, por exemplo, por via regulamentar, as autoridades administrativas - por exemplo, câmaras municipais - não poderem introduzir deveres públicos sem ser como uma lei de habilitação prévia. É um dos pontos fundamentais que naturalmente reforçariam os direitos dos cidadãos.
O Sr. Dr. José António Pinto Ribeiro: - A nossa dúvida era saber o que é que, na epígrafe do artigo, eram deveres fundamentais por contraposição a deveres públicos, quais eram os deveres que eram fundamentais, e foi isto que nos fez alguma perplexidade. Isto é problema...
O Sr. Luís Sá (PCP): - Creio que a explicação é exactamente esta. Só são deveres públicos, isto é, só é permitido criar deveres públicos quando tal for fundamental para defender a ordem constitucional e os direitos fundamentais. Fora disto, a Administração não pode nem deve criar estes deveres, independentemente, agora, da questão de terminologia...
O Sr. Dr. José António Pinto Ribeiro: - Bom, quanto ao artigo 32.º, voltando lá rapidamente, põem-se problemas complicados. Falando quer para o Deputado Calvão da Silva, quer para o Deputado José Magalhães, põem-se problemas complicados no que diz respeito a isto do artigo 32.º e da instrução.
Não estamos nada de acordo, e isto tem sido debatido longamente entre nós, em que esta questão não seja uma questão constitucional. Esta é uma questão típica e estritamente constitucional, puramente constitucional. Trata-se exactamente de saber se a violação da Constituição passa impune ou não passa impune, porque o entendimento é de que isto é uma questão constitucional. "Já passou impune, óptimo!" Já passou o impune, mas há uma maneira de evitar que ela continue a passar impune, que é reforçar o texto constitucional de maneira que seja inequivocamente inconstitucional aquilo que passou impune da primeira vez. É um problema puramente constitucional.
Podem dizer: "mas passou impune porque toda a gente quis que passasse impune". Não foi toda a gente, mas todos os grupos parlamentares representados na Assembleia da República, hoje, querem que tenha passado impune e, no fundo, estão a ratificar a passagem impune daquilo uns anos depois. Mas, se assim for, tudo bem! É uma questão de fazerem a declaração política nesse sentido e as pessoas ficam a saber que é assim. Assumem a responsabilidade política de o fazer e nós estamos completamente de acordo, quer dizer, são os nossos eleitos, são os nossos representantes e têm toda a legitimidade para o fazer. Aquilo que nos parece é que era útil codificar. Querem ou não querem? Não vale a pena deixar que a prática nos resolva os problemas e os problemas de consciência constitucional.
A questão que aqui se coloca é importante, uma vez percebido que isto é um problema constitucional e eventualmente um problema constitucional central, porque não há nada que garanta mais os direitos dos cidadãos do que o direito processual penal. De facto, é aqui que se garantem os direitos dos cidadãos, nomeadamente o direito à liberdade, referência que talvez venha a tempo, mas penso que não é possível o quadro constitucional fazê-lo - não vejo onde, não há nenhuma proposta nesse sentido - estabelecendo uma espécie de cláusula sobre a self-incrimination, o princípio da recusa da auto-incriminação. Portanto, ninguém seria obrigado a prestar declarações, seja em que condições for, desde que com isso possa auto-incriminar-se.
Temos o caso que se passou com o processo relativo àquele caso da saúde, que envolvia e envolve a ex-Ministra da Saúde Leonor Beleza, que envolveu o Sr. Chefe de Gabinete Silveira Botelho, que foi ouvido e, interrogado enquanto declarante, foram-lhe colocadas questões a que ele respondeu: "não respondo porque isso me incrimina". O interrogador disse-lhe: "o senhor está aqui como declarante; como declarante tem de responder com verdade às perguntas que lhe são feitas, não pode recusar-se a responder; não é arguido, não foi constituído arguido, responda." Ele não respondeu, foi acusado de crime de desobediência, foi preso, tribunal de polícia! Tem de haver um direito a dizer "eu não respondo a isso porque me posso auto-incriminar". Portanto, esta reserva de recusa de declaração, porque auto-incrimina, por tem risco de auto-incriminação, tem de existir. Desculpem este comentário, ou seja, o direito processual penal é um direito que garante essencialmente o prioritário e especial direito, nas sociedades políticas, que é o direito à liberdade.
O direito à liberdade é mais bem garantido pelo Ministério Público; é mais bem garantido pelo juiz do que pelo Ministério Público, e assim sucessivamente. O que me podem perguntar é: "que meio está esta sociedade disposta a despender para assegurar aquilo que o artigo 32.º, n.º 1, diz, ou seja, que o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa. É um problema que o Dworkin levanta com muita graça: por que é que vamos agora despender não sei quantos milhões de contos a ter juízes de instrução criminal em vez de despender os não sei quantos milhões de contos a termos melhor saúde, melhor educação, melhor uma coisa qualquer? Com certeza que é um problema de escolha. Mas há quem entenda que o problema das garantias de defesa em processo criminal é um esteio basilar prévio a qualquer outra coisa, e prévio, digamos, basilar, na essência de uma sociedade política. Portanto, prévio a qualquer problema de direitos fundamentais de conteúdo social, ou conteúdo individual e social.
A questão que se põe é o que se faz ao Ministério Público, o que se faz à Polícia Judiciária. Aquilo que tenta
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o Ministério Público é ser uma magistratura, uma magistratura para-judicial, no quadro judicial. A lógica da equiparação das magistraturas tem vindo a ser abandonada mas continua a subsistir e põe-se o problema de saber o que é que se faz disto.
Pessoalmente, aquilo que o Fórum entende é que um juiz, um juiz independente, um juiz do poder judicial, um juiz da Magistratura que corresponde ao poder judicial, assegura mais perfeitamente a tutela dos interesses e dos direitos dos cidadãos do que um magistrado do Ministério Público, e que um magistrado do Ministério Público assegura mais do que a Polícia Judiciária. Mas por esta ordem. Como a Polícia Judiciária, entendemos, assegura mais do que a GNR ou a PSP.
Houve também o risco, a certa altura, de a instrução ou o inquérito ser atribuído à PSP. Entendemos que isso é uma degradação.
Mas a formulação que existe é a formulação de toda a actividade material de instrução. A proposta do Dr. Sá Carneiro, que era "toda a actividade de material de instrução é da competência do juiz", significa que actividade material de instrução faz com que grande parte do inquérito seja considerada actividade material de instrução e, portanto, já por aqui chumba.
Mas, se não houver vontade de reabrirem este problema, ele está encerrado pelos factos.
O Sr. Presidente: - A nível das propostas, houve dois enfoques, dois approaches muito diferentes. Um, que já foi aqui citado, pelo Deputado Guilherme Silva, no sentido pôr a norma a dizer aquilo que ela originariamente dizia antes da reinterpretação do Tribunal Constitucional, a saber: "todo o inquérito e instrução criminal é da competência do juiz". E há outra, para a qual não temos consenso, que diz "...todos os actos susceptíveis de violar direitos e liberdades e garantias do arguido são da competência de um juiz". Isto já está mais próximo da proposta do Dr. Sá Carneiro.
O Sr. Dr. José António Pinto Ribeiro: - O que o Dr. Sá Carneiro queria era assegurar essa versão.
O Sr. Presidente: - O inquérito...
O Sr. Dr. José António Pinto Ribeiro: - Não, a primeira, tudo... Tudo era competência do juiz. Mas percebo que, descontextualizado isso, não há juiz de instrução criminal, coisa que havia na altura, que se ponha, de facto, o problema de como é que se assegura isso. Mas talvez essa formulação do Dr. Sá Carneiro, no sentido de toda a actividade material de instrução, por exemplo, e depois os tribunais hão-de decidir o que é actividade material de instrução e o que não é....
O Sr. Presidente: - Sr. Dr. Pinto Ribeiro e Sr.ª Dr.ª Ema Falcão, obrigado pela vossa disponibilidade. Obviamente, a Comissão estará disponível para todas as opiniões que nos queiram transmitir, mesmo por escrito, além desta oportunidade de encontro que aqui tivemos e que queremos agradecer, manifestando a nossa disponibilidade para levar em boa conta as opiniões que nos trouxeram.
Srs. Deputados, vamos agora suspender a nossa reunião por meia hora, após o que teremos connosco o Sr. Bastonário da Ordem dos Advogados.
Eram 17 horas e 40 minutos.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vamos reiniciar os nossos trabalhos.
Eram 18 horas e 20 minutos.
Temos connosco o Bastonário da Ordem dos Advogados, Dr. Castro Caldas, a quem agradeço por ter respondido à nossa solicitação para trocar de impressões connosco, transmitindo-nos as preocupações da Ordem, ou pelo menos do Sr. Bastonário, em relação à revisão constitucional e as opiniões sobre as propostas de revisão constitucional, sobretudo naquilo que, obviamente, interessa aos profissionais do foro.
Em primeiro lugar, darei a palavra ao Sr. Bastonário da Ordem dos Advogados, após o que os membros da Comissão poderão usar da palavra para pedirem esclarecimentos ou fazerem perguntas; no final, o Sr. Bastonário terá novamente a palavra para as comentar.
Tem a palavra o Sr. Dr. Castro Caldas.
O Sr. Dr. Júlio Castro Caldas (Bastonário da Ordem dos Advogados): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: É sempre com imenso agrado que venho à Assembleia da República participar nesta obrigação, que é a obrigação da Ordem dos Advogados, de contribuir para a melhoria do processo legislativo, sobretudo neste domínio constitucional.
A Ordem dos Advogados teve em tempos oportunidade de fazer circular pelos grupos parlamentares e pelos Srs. Deputados um conjunto de sugestões do que entendia que poderia ser considerado no âmbito da revisão, na estrita medida da sua obrigação e do seu dever de intervir em matéria de organização judiciária, poder judicial, direitos, liberdades e garantias básicas.
Tenho que pedir desculpa pelo facto de me apresentar hoje não suficientemente preparado nem estruturado para vos poder apresentar aquilo que poderá ser, digamos, uma versão de síntese depois de conhecer este bom trabalho que a Assembleia fez de compaginação dos diversos projectos, mas limitar-me-ia a expor os tópicos essenciais daquilo que nós, advogados, julgamos como necessário introduzir como modificação na revisão constitucional.
Começaria por uma questão controversa, que é a do recurso de amparo. A formulação do Partido Socialista e a formulação do Partido Comunista divergem substancialmente e tornar-se-ia, na óptica da Ordem dos Advogados, necessário meditar na actual realidade jurisdicional dos recursos interpostos das decisões do Supremo Tribunal de Justiça para o Tribunal Constitucional, que estão, no entender da Ordem dos Advogados, a criar aquilo a que na gíria forense americana se chama um "Deep DIP" constitucional. E constatamos que nenhum dos projectos que estão sobre a mesa resolve ou aborda criteriosamente esta questão de contradição de julgados entre o Tribunal Constitucional e o Supremo Tribunal de Justiça e a incapacidade do sistema, sempre que isso acontece, de ver uma decisão transitada em julgado.
É do conhecimento da Ordem dos Advogados que existem neste momento quatro casos nessas circunstâncias e que se tornaria necessário encontrar, com imaginação, uma mecânica para obviar a que situações desse tipo se possam desenvolver perniciosamente.
Poderia dizer que, eventualmente, não será fácil encontrar uma solução neste domínio, que, eventualmente, a lei ordinária poderia resolver, por devolução da norma constitucional,
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o tipo de recursos e a forma de subida dos recursos em separado ao Tribunal Constitucional das questões constitucionais, obviando a que, porventura, uma decisão do Supremo nunca pudesse ser considerada e colocada em crise por uma decisão do Tribunal Constitucional.
Porventura, a solução encontrada por outras constituições, designadamente a Constituição brasileira, que faz de sede de acordo constitucional uma Câmara do Supremo Tribunal Justiça, seja o tipo de estrutura de resposta para que episódios como estes que a ordem jurídica portuguesa vive possam não acontecer. Não é esta a solução portuguesa, não é isso que está em debate nas diversas propostas que estão sobre a mesa para discutirmos. Essa questão nunca foi levantada por nenhuma força política, a formulação encontrada para o Tribunal Constitucional é objecto do consenso político muito vasto, porventura não haveria condições objectivas para regressar a esse debate que se encontra, digamos, sedimentado na ordem jurídica portuguesa.
Mas, para esse facto, o alerta da Ordem é que é preciso encontrar solução processual para a contribuição de julgados, na ordem jurídica portuguesa.
Julgo que esse debate e a constatação de que esse vício processual existe, está vivo e é uma questão que tem de ser resolvida, poderá porventura encontrar-se no enquadramento que é feito pelas forças políticas no que é considerada acção constitucional de defesa.
A Ordem dos Advogados não tem uma posição definida nesta matéria, limita-se a alertar o legislador para uma realidade que existe. A Ordem dos Advogados já tomou uma posição francamente interventora no que diz respeito à formulação do artigo 32.º; na formulação do artigo 32.º que encontramos em todas as propostas que estão sobre a mesa a que mais se aproxima daquilo que foi sugerido pela Ordem é a que consta da proposta do Sr. Deputado Guilherme Silva e, julgo eu, do grupo parlamentar de Deputados da Madeira, designadamente.
Apoiamos, porque essa tem sido a posição que tem sido definida pela Ordem dos Advogados, obviamente, a formulação que deixa ao arbítrio a escolha de advogado seu defensor. É muito importante dizer "advogado seu defensor" e não pura e simplesmente seu defensor, para ser por ele assistido em todos os actos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência é obrigatória. E apoiamos inequivocamente, a formulação dada ao n.º 4 de que todo o inquérito e instrução criminal é da competência do juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática de actos que não se prendem directamente com direitos fundamentais.
Julgamos que esta formulação é aquela que foi meditada e pensada por aqueles que julgamos serem os founding fathers do artigo 32.º, na versão inicial, e que a isso correspondeu também um grande leque consensual de todos os advogados que estiveram presentes nessa fase constituinte e da experiência que muitos deles traziam do que tinha sido o inquérito policial, o chamado "inquérito preliminar" no domínio da antiga legislação, conduzido por autoridades de polícia. Portanto, não temos nenhuma dúvida em considerar que esta formulação é a que corresponde àquilo que a Ordem gostaria de ver, na continuidade de uma tradição judiciária que, no fundo, foi interrompida durante as reformas penais do domínio do regime anterior.
A formulação do artigo 210.º apresentada pela Ordem dos Advogados só tem de acolhimento integral na proposta que é apresentada pelo Sr. Deputado Corregedor da Fonseca. Obviamente que consideramos que essa formulação é importante e que a frase que nós utilizámos - "os advogados gozam de imunidade, nos limites consagrados na lei, em todos os actos necessários ao desempenho do seu mandato" - é, no fundo, mais adequada do que a que está consagrada na proposta do Partido Socialista, no que diz respeito ao patrocínio forense.
Sobre este articulado, eu não deixaria também de trazer ao conhecimento dos Srs. Deputados que existem, neste momento, múltiplos contenciosos inter-profissionais entre advogados e magistrados, em que os advogados que porventura escrevem nas suas peças processuais comentários um pouco mais ásperos, um pouco mais agressivos para a Magistratura, mas que consideram que essas expressões são adequadas ou necessários ao patrocínio que exercem, estão a ver-se confrontados com a formulação de acusações por crime de injúria. Há uma estrutura, sendo que não existe nenhum mecanismo arbitral que possa dirimir esse contenciosos e a apreciação do eventual enquadramento penal do que deve ser considerado crime de injúrias à Magistratura. A Constituição brasileira resolve também esta questão de uma maneira muito mais favorável para a advocacia do que mesmo a formulação do Sr. Deputado Corregedor da Fonseca.
Não nos parece que, nessa formulação do crime de injúrias à Magistratura perpetrado por advogado, não se possa reconhecer existir um estado de espírito muito mais aberto a aceitar a posição do magistrado ofendido do que a ponderação dos argumentos do advogado acusado de ser o ofensor.
Pareceu-nos muito importante a introdução da expressão "imunidade, nos limites consagrados na lei". Por outro lado, gostaríamos, como é óbvio, que ficasse constitucionalmente consagrado que a regulação do acesso à advocacia, a disciplina do seu exercício, o patrocínio forense, em conformidade com a lei, competiria à Ordem dos Advogados.
Julgo que, sob o ponto de vista da profissão, isto é o que se considera mais determinante, sufragando também a Ordem a introdução dos normativos que dizem respeito ao plural de jurisdição e matéria de facto, no que constitui também já uma tradição da primeira versão constitucional. Creio que estes são os pontos sobre os quais em devido tempo nos pronunciámos.
Formulámos também a pretensão, à semelhança da Constituição brasileira, de ser dado ao Bastonário da Ordem dos Advogados, com deliberação do Conselho Geral da Ordem, um poder equivalente ao do Sr. Procurador-Geral da República e do Sr. Provedor de Justiça, o poder de suscitar a verificação abstracta da constitucionalidade das leis. Podemos verificar que nenhuma força política acolheu essa sugestão. Parece mal ser o Bastonário voltar a falar nela, mas falo nela porque, efectivamente, os advogados entenderam que eu devia fazê-lo. Julgo que se esse poder não estivesse na Constituição brasileira não teria existido impeachment do Presidente Color de Mello, e acho que essa experiência histórica deve ser ponderada pelos Deputados, nessa devolução de poderes que a Constituição queira dar às organizações da sociedade civil com delegação de poderes e de autoridade.
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O Sr. Presidente: - Sr. Bastonário, obrigado pela sua intervenção e pela criteriosa selecção dos termos que nos trouxe. Em seguida darei a palavra os Srs. Deputados membros da Comissão, para comentarem ou pedirem os esclarecimentos que entenderem por bem.
O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, duas observações apenas: a primeira em relação a uma das sugestões da revisão constitucional feitas pelo Sr. Bastonário e a outra em relação a uma omissão, a não análise de uma questão que hoje em dia tende a ser considerada cada vez com mais relevo. Refiro-me ao regime da extradição.
Há propostas pendentes relativamente ao artigo 33.º que têm vindo a ser objecto de consideração e quanto às quais se prevêem duas flexibilizações: a primeira quanto à possibilidade de extradição de cidadãos portugueses em certas condições e em certos casos limite e para territórios da União Europeia; a segunda em relação à flexibilização dos casos em que é autorizada a extradição, quando o Estado requisitante tem, no direito abstracto, direito vigente, apenas o modo de prisão perpétua e em que no decurso da nossa discussão surgiu a ideia de que a flexibilização se fizesse desde que o Estado requerente desse garantias consideradas suficientes pelo Estado português de que a pena de prisão perpétua será comutada ou substituída por pena de duração limitada ou por qualquer outra forma não executada.
São dois aspectos cruciais, este último, da pena de morte e de prisão perpétua, por força de questões concretas que têm vindo a suscitar. Os nossos objectivos humanitários relevantes podem ser prosseguidos, tudo indica, através de uma formulação deste tipo, que todavia a flexibiliza no primeiro caso. É que está, como sabem, em processo de discussão e de aprovação, nos termos constitucionais dos 15 Estados-membros, uma convenção europeia sobre extradição, crucial para o combate à criminalidade nas novas condições europeias.
O segundo aspecto é este: temos simpatia por muitas das propostas que proferiu, algumas das quais têm seguimento no nosso projecto de revisão constitucional, e outras merecem a nossa inclinação favorável. Veremos também qual é a reacção dos nossos colegas nesta posição.
A minha pergunta concreta é em relação às consequências de qualquer alteração ao artigo 32.º. Quais seriam as consequências da reintrodução da solução consagrada no Código de Processo Penal?
Quais seriam as consequências, sendo certo que a leitura que a Constituição comporta - uma leitura, e outra ainda, incluindo a feita pelo o Sr. Presidente, na actual qualidade e na pretérita, de Juiz Conselheiro, etc. - vai precisamente neste sentido? Mas a verdade é que a questão está pacificada numa certa acepção. Se essa atitude se invertesse e se quebrasse, quais seriam as consequências? Como é que conjectura um regresso dos JIC ou uma palavra de ordem dada pelos operadores políticos: reapreciamos esta questão e façamos instrução conduzidas por juiz nesta dimensão? Quais seriam as implicações estratégicas, logísticas e de funcionamento sistémico que daí resultariam?
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Francisco José Martins.
O Sr. Francisco José Martins (PSD): - Sr. Presidente, antes de mais, queria saudar, em nome do PSD, a presença do Sr. Bastonário e agradecer naturalmente os contributos que nos trouxe, que, de resto, já tinham sido objecto de uma carta, como referiu, dizendo desde logo que, pessoalmente, partilho de muito, ou de quase tudo, daquilo que disse. São questões essenciais ao exercício da advocacia, que eu compreendo até porque sou também advogado. Porém, queria situar-me em dois pontos, que penso serem fundamentais.
O artigo 32.º, no que concerne ao seu ponto 3, é realmente uma injustiça, algo que eu de resto já sublinhei em sede de revisão constitucional e com que importa realmente, de uma vez por todas, acabar, que tem a ver com a defesa do arguido. Essa defesa tem de ser feita, inevitavelmente, ser por um advogado, por um profissional que possa efectivamente defender o arguido; não podemos, como já hoje tivemos oportunidade de ouvir nesta Comissão, chegar ao caricato de, numa situação concreta, o defensor ter sido o próprio polícia que fez a detenção do arguido. Isso não pode ser, não pode realmente acontecer e é, porventura, um dos aspectos mais essenciais.
Mas eu colocava aqui uma outra questão ao Sr. Bastonário, que tem a ver com o seguinte: o PSD, no seu projecto, sobre o artigo 20.º, acesso ao direito, vai mais longe na defesa do princípio que terá de ser o advogado a defender o arguido, e vai mais longe no sentido de dizer que todos têm direito, nos termos da lei, a informação e consulta jurídicas, à protecção do segredo de justiça, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar de advogado perante qualquer autoridade. Isto é mais do que a defesa do arguido, é o advogado ter um papel determinante, indispensável e fundamental, sendo que qualquer cidadão, quando presente a qualquer autoridade, pode, por tutela constitucional, como direito que a Constituição prevê, fazer-se acompanhar de advogado. Gostaria realmente que, o Sr. Bastonário emitisse um comentário sobre esta proposta.
Quanto à questão do patrocínio forense, o Sr. Bastonário referiu que há uma proposta que está muito próxima daquilo que é a ideia da Ordem dos Advogados, proposta essa formulada pelo Sr. Deputado Corregedor da Fonseca. Queria também referir que no projecto do Sr. Deputado Guilherme Silva, concretamente no artigo 222.º-A, página 615, também aqui está formulada essa proposta, que, de resto, vai mais longe, conferindo competência à própria Ordem dos Advogados para, naturalmente, regular o acesso à advocacia, disciplinar o exercício do patrocínio forense, em conformidade com a lei e com o estatuto. Portanto, penso que esta proposta vai mais longe e vai mais longe no sentido de conferir à própria Ordem competências que me parecem, realmente, corresponder ao sentimento daquilo que deve ser, tendo em conta o papel nobre que a Ordem dos Advogados efectivamente exerce.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sr.ª Deputada Odete Santos.
A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Sr. Presidente, é claro que penso que todos nós, na Assembleia, lemos as propostas da Ordem dos Advogados e, assim, creio que há algumas coincidências em várias propostas, nomeadamente em relação ao direito de constituir advogado. Na nossa proposta não está que "será defensor", mas penso que isso está subjacente. Mas não só, até porque o Sr. Deputado Corregedor da Fonseca fez a proposta mas nós também, e o Grupo Parlamentar do PCP tem um projecto, como grupo
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parlamentar, no 207.º-A, em que também o adoptamos, com outra redacção é certo. De qualquer maneira, penso que não tem o inconveniente de um ponto final no meio e tem também em consideração a questão das imunidades.
As questões que eu queria colocar são muito poucas, mas, já agora, abordo também o problema da extradição dos nacionais que o Sr. Deputado José Magalhães referiu, que é um problema que nós estamos a estudar. Levantámos algumas objecções porque mesmo a Convenção Europeia sobre extradição estabelece a obrigação de os estados julgarem mesmo factos por fraude e esses crimes altamente organizados ocorridos fora do seu país. Portanto, penso que não haveria lugar a uma impunidade através dessa Convenção. Porém, não sei, tenho dúvidas e está a ser objecto de reflexão se, de facto, face a isso, a essa convenção e à Constituição, existindo mecanismos para não haver impunidades, se justificará abdicarmos de alguns princípios que vêm no artigo 5.º, suponho eu, do Código Penal em relação à questão dos nacionais. Estou muito interessada em ouvir a opinião da Ordem dos Advogados sobre isto.
A outra questão é sobre o duplo grau de jurisdição. O Partido Socialista tem essa proposta mas é nas garantias do processo criminal, aliás, como o próprio Partido Socialista reconheceu, necessitando de alguma correcção, porque estava só no caso de condenação e, portanto, haverá que garantir também o duplo grau de jurisdição. A acusação, no caso de absolvição... mas eu pergunto em relação a isto, ao duplo grau de jurisdição, se não se deveria alargar esse princípio também em relação à matéria cível, ao administrativo, e assim consagramos isso no artigo 20.º, no acesso ao direito e aos tribunais.
A outra questão em que gostaríamos de uma ajuda, de facto - nós, enfim, eu em particular, pessoalmente, pois é uma matéria que terei que estudar - é em relação a uma proposta do Partido Socialista que aparece sustentada por factos que creio que têm ocorrido em relação a doentes mentais, em que se estará "a actuar à margem da legalidade", porque correspondem a tratamentos, digamos, e são impostas detenções. Então, seria necessário, nos termos da Constituição, vir consagrada expressamente essa possibilidade.
De qualquer forma, a Convenção Europeia não fala em doentes mentais, fala em alienados mentais e talvez haja alguma diferença. Tivemos esta conversa, no outro dia, no Supremo Tribunal de Justiça e eu gostaria, portanto, de ouvir a opinião do Sr. Bastonário sobre isto.
O Sr. Presidente: - Sr. Bastonário, tem a palavra.
O Sr. Dr. Júlio Castro Caldas: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Começaria por pedir desculpa por não ter mencionado as propostas do Deputado Guilherme Silva, designadamente a de aditamento do artigo 222.º-A. De facto, isso corresponde a uma consagração, corresponde inteiramente àquilo que a Ordem desejaria em matéria de patrocínio forense e de patrocínio forense oficioso, sendo certo que esta matéria do patrocínio forense oficioso é uma das situações em que se torna necessário um empenhamento institucional muito sério, para que a defesa oficiosa seja efectiva defesa e não um simulacro de defesa.
Faz parte das preocupações prioritárias da Ordem melhorar a legislação neste domínio e essa foi até uma das razões porque, na última vinda da Ordem à Comissão de Justiça, tivemos oportunidade de apresentar uma sugestão de legislação nesta matéria.
O Sr. Deputado José Magalhães coloca a questão da extradição. A questão da extradição, no domínio dos princípios, para os advogados, é muito simples de resolver. Há uma tradição na advocacia portuguesa, uma tradição judiciária, que vemos hoje confrontada na comunicação social, a meu ver - e permitam-me que use a palavra -, "calhordamente", pretendendo reeditar temas de discussão que não o são na consciência dos portugueses, no que diz respeito à prisão perpétua, à pena de morte, no que diz respeito a temas que não são sequer temas recorrentes nem prioritários. Julgo que devemos ser suficientemente firmes para considerar que existe uma aquisição de civilização nesse domínio e que as penas portuguesas estão adaptadas àquilo que são direitos individuais básicos de todos os cidadãos portugueses. Portanto, nós estaremos de acordo em que a diminuição da nossa soberania, por via de tratados internacionais e designadamente do Tratado da União, possa permitir que ceda aos portugueses que se vejam despojados desses direitos, que correspondem a direitos históricos, inalienáveis, de aperfeiçoamento da ordem jurídica portuguesa. E, portanto, batermo-nos-emos sempre contra,...
O Sr. José Magalhães (PS): - Julgo que do que se está a tratar a nível da União Europeia é de fazer uma convenção que reveja a que existe em alguns dos Estados e que tenha em conta casos extremos de criminalidade e terrorismo, de criminalidade altamente organizada, que a liberdade de circulação acarreta como consequência necessária e infeliz para todos nós - por exemplo, o facto de poder haver um cidadão italiano que cometeu um crime aqui, em Lisboa, e fugiu para o seu território -, e assegurando que seja julgado nas mesmas e exactas condições que os que agiram ao lado dele e com as consequências, em Estados de direito democrático, que são comuns a todos os Estados nessa matéria, onde, de resto, tenderá a haver um tratamento tendencialmente similar, por razões óbvias, para situações extremas. É só isso, sempre com garantia de defesa e, naturalmente, com garantia de que a decisão pertence sempre a um juiz, uma vez que não se pretende alterar o n.º 4 do artigo 93.º.
O Sr. Dr. Júlio Castro Caldas: - Nesse domínio, não teria tanta confiança, visto que em alguns países europeus vigoram regimes de excepção que não seriam tolerados na ordem jurídica portuguesa, designadamente. Portanto, julgo que seria prudente que essas circunstâncias fossem também examinadas e, em qualquer caso, não me parece possível regulamentar uma diminuição de soberania de Portugal neste domínio judiciário se não se partir, pelo menos, do trabalho de harmonização das medidas das penas, porque não me parece possível que um cidadão que pretenda preservar o direito a uma determinada medida da pena menor do que a medida da pena que seja aplicada no país onde está a ser efectuado o julgamento com outras nacionalidades, não viole também preceitos constitucionais desse próprio país se, porventura, ao mesmo crime forem aplicadas medidas da pena divergentes só em função da nacionalidade do arguido ou do réu.
Admito que se torne necessário fazer um esforço de harmonização penal no interior da União para que as medidas das penas e seus critérios, designadamente os critérios de efectuar cúmulos jurídicos, sejam harmonizadas.
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Não me parece que se possa partir para um tratado que retire essas prerrogativas da soberania nacional sem que esta matéria tenha sido previamente debatida e realizada.
Os sistemas de contagens de prazos e os sistemas processuais necessitam, provavelmente, previamente da harmonização dos códigos de processo a nível da União Europeia.
Devo dizer que a Ordem, neste momento, não está confrontada com a necessidade de emitir parecer sobre esta matéria, mas porventura terá de o ser quando a Assembleia for confrontada com a necessidade de um tratado deste tipo.
Questão muito mais complicada é levantada pela Sr.ª Deputada Odete Santos, e agradeço-lhe que tenha levantado esse problema porque estamos também confrontados por uma omissão de conceptualização de qual é a entidade a quem cumpre suprir a iniciativa de aplicação de um regime privativo de liberdade a um doente mental, porque pode haver vários graus de doença mental. Pode haver necessidade de internamento mesmo em caso de doença mental em que o doente não esteja privado da consciência, do conhecimento e da sua capacidade de reger os seus bens episodicamente, o que é característico no caso de esquizoides com perfil esquizofrénico, que têm momentos em que o internamento não se justifica e têm outros momentos em que o internamento se justifica.
Devo dizer que esse debate é um dos mais difíceis de fazer, porque não poucas vezes somos confrontados com casos em que as famílias, para resolver um problema de internamento de um doente nestas situações, utilizam subterfúgios típicos para, mediante fraude, obterem o internamento em estabelecimentos psiquiátricos, onde são encontradas algumas situações típicas de um romance de Camilo Castelo Branco. Às vezes ficam lá, são doentes mentais terminais, mas às vezes não são e estão lá, e não há nenhum mecanismo interventor.
Por outro lado, os magistrados do Ministério Público estão confrontados muitíssimas vezes com situações de exclusão social gravíssimas, designadamente nos grandes centros urbanos; a toxicodependência é geradora, em muitas circunstâncias, de situações em que as pessoas necessitam de internamento e eles não têm mecanismo nem poder próprio para determinarem o internamento, não têm legitimidade para iniciativas de esse tipo.
A sugestão que me parecia adequada devia ser legislada no domínio da curatela, para que possam existir regimes provisórios de curatela ou regimes de pedidos de curatela ou de instituição de curatela, como providência cautelar a um regime definitivo de definição de tutela, e que nesses sistemas de mecanismos de providência cautelar, de curatela, pudesse ser dado à magistratura do Ministério Público ou ao próprio advogado com patrocínio forense de um familiar qualquer a que se reconheça legitimidade, a possibilidade de desencadear os mecanismos de curatela provisória, com sentença judicial homologatória da medida de curatela provisória que determinou o internamento.
Dir-me-á a Sr.ª Deputada que, da experiência que tem como advogada, não se consegue obter de um juiz português uma decisão em 24 horas para o efeito, o que é verdade. Mas isso, digamos, não é a tradição judiciária portuguesa mais louvável, provavelmente teremos de convencer a nossa tradição judiciária que é preciso haver tribunais de turno, é preciso haver juízes de turno e haver decisões em 24 horas, quando direitos individuais básicos estão em causa. Isso toca na segunda questão, da representação forense em todos os domínios de patrocínio de direitos de cidadãos, que foi levantada pelo Sr. Deputado Francisco José Martins e que é também objecto de preocupação da Ordem.
Entendemos que o patrocínio forense deve ser levado em conta sempre que o cidadão esteja em confronto com a Administração e as competentes autoridades de polícia; o patrocínio forense deve ser levado às esquadras de polícia. Devo dizer que, nas presentes circunstâncias, isso não é fácil nem é exequível, nem as autoridades de polícia estão preparadas para aceitarem esse tipo de postura, e devo dizer também que um dos mais graves incidentes internacionais que neste momento a Ordem dos Advogados tem entre mãos para resolver é um incidente com um advogado brasileiro que, na tradição brasileira de patrocínio forense, quis defender um cidadão detido numa esquadra de polícia de Cascais e provocou uma acusação de intromissão em área protegida, à qual o advogado não tinha acesso. Essa acusação foi levada para a frente, a acusação foi deduzida, está arguido em processo do Tribunal de Cascais por intromissão em área vedada de acesso ao público e injúrias à autoridade policial, pelas palavras proferidas no patrocínio do seu cliente, o que levará, julgo eu, a Seccão do Rio de Janeiro a emitir uma decisão de protesto que não será muito laudatória para as nossas instituições policiais.
Enfim, "Roma e Pavia não se fizeram num dia" e temos muito que fazer ao nível do judiciário. É muito importante que todas estas alterações tenham consagração, em sede constitucional, no que diz respeito ao judiciário propriamente dito, visto que no domínio do administrativo e do policial a lei ordinária poderá com muito mais simplicidade legislar nessa matéria.
O Sr. Presidente: - Sr. Bastonário, muito obrigado pela cooperação. Esta Comissão certamente levará em boa conta as muitas opiniões que nos trouxe e ela está aberta a que lhe façam chegar, sempre que seja necessário, as opiniões, mesmo por escrito, que entendam sobre outras matérias.
Pausa.
Srs. Deputados, vamos agora proceder à audição da Associação Sindical dos Juízes Portugueses. Quando marcámos esta audiência não estava previsto ouvirmos a Associação Sindical dos Juízes Portugueses e, assim, queria começar por apresentar o nosso agradecimento por terem correspondido à nossa solicitação para nos virem expor as opiniões sobre as propostas de revisão constitucional que temos em mão.
Tem a palavra o Sr. Dr. Orlando Viegas Martins Afonso, Presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses.
O Sr. Dr. Juiz Orlando Viegas Martins Afonso (Associação Sindical dos Juízes Portugueses): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Agradecemos também a disponibilidade da Comissão, em especial do Professor Vital Moreira, retribuindo esses agradecimentos.
A Associação, já antes da reabertura dos trabalhos judicias, tinha feito uma ronda, chamemo-lhe assim, pelos
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vários partidos políticos, onde fizemos algumas sugestões e algumas críticas em relação à revisão constitucional.
No tocante aos tribunais, vou falar de uma forma genérica, pois os meus colegas poderão talvez completar a minha exposição num ou noutro pormenor que os Srs. Deputados queiram conhecer.
Em relação a cada uma das propostas, referirei, para já, aquelas duas que mais impacto têm - porque mais alterações têm, embora não sejam de grande volume, chamemo-lhe assim -, a proposta do PS e a proposta do PSD.
Na altura em que estivemos com o PS, manifestámos o nosso acordo básico em relação a muitas das soluções encontradas na revisão constitucional e deixámos um senão em relação a um dos artigos sobre a composição do Conselho, que dizia respeito aos membros designados pelo Presidente da República, porque entendemos que não devia acabar na vírgula, que devia continuar. O texto constitucional, que diz que pelo menos um deles deve ser juiz, deveria continuar, e explicámos a razão de fundo disso. Não por ter mais ou menos juízes, pois para nós não era uma questão de paridade, ou não, dos juízes, era uma questão que se prendia com uma certa lógica, chamemo-lhe assim, do problema constitucional.
Entendendo-se que o Conselho Superior da Magistratura deveria ter três componentes básicas, chamemos-lhe assim, ou três extractos componenciais, uns advindos do próprio corpo de magistrados, outros advindos da Assembleia da República, do Parlamento, e um terceiro advindo do próprio Presidente da República, havendo uma equiparação de cada uma desses extractos, nomeadamente no que diz respeito ao legislativo e ao poder judicial, parece-nos que o Presidente da República, como o mais alto magistrado e como aquele deveria dirimir, de alguma maneira, qualquer equívoco dentro do Conselho, não se devia, ele próprio, pronunciar nem para um lado nem para o outro, mantendo um certo equilíbrio na balança de poderes, deixando na mesma a designação de pelo menos um magistrado judicial e outro que fosse membro do Parlamento, ou não magistrado.
Daí a nossa divergência em relação a esse artigo, por uma questão que nos parecia lógica, racional e de política constitucional, na medida em que, por essa forma, haveria um perfeito equilíbrio dos poderes do Estado em presença.
Pensámos que, de qualquer forma, poderia tentar-se dizer que isso seria uma forma de se andar a esgrimir com maiorias ou minorias que não teria grande sentido, até porque as maiorias formadas dentro do Conselho, na prática, não se formam por maiorias de magistrados por um lado e não-magistrados por outro; as maiorias dentro do Conselho têm outras razões que não exactamente defesas corporativas de determinados interesses de magistrados e de não-magistrados, que defenderiam outros interesses.
Esta foi a nossa experiência, enquanto fui membro do Conselho; por outro lado, também nos baseámos um pouco nos textos das associações europeias, que apontam para que os conselhos, a existirem, devem, pelo menos, ter uma paridade entre magistrados e não-magistrados.
Como é sabido, o nosso tem uma maioria de juízes, embora tenha uma minoria de juízes eleitos e, portanto, as paridades fazem-se de formas diferentes; e daí a nossa questão com a vírgula que está.
Vou referir-me, em primeiro lugar, a um dos projectos, de uma forma genérica, para depois passarmos aos outros; em seguida, os meus colegas, ou o Dr. João Ataíde ou o Dr. Antero, poderão completar.
Há uma outra questão, que diz respeito à selecção dos juízes para o Supremo, relativamente à qual a Associação também disse, em sede de reunião com o Partido Socialista, que era contra essa forma inovadora da selecção dos juízes para o Supremo. Recebemos algumas explicações do Partido Socialista, na altura, mas considerámos que é uma forma perigosa. Há perigos muitos grandes aí.
Em primeiro lugar, se se quiser uma renovação do Supremo, e penso que é isso que se pretende, poder-se-á abrir um caminho a determinado tipo de pessoas, mesmo dentro dos quadros da Magistratura, que não nos parece que estejam aptas a vir a ser juízes do Supremo, havendo um conjunto de oportunismos que aí conduzem.
Há uma forma de ultrapassar isto, penso eu, o que até foi sugerido por um dos membros da Direcção e foi hoje discutido, que seria abrir o leque dos chamados. Ou seja, em vez do leque dos chamados que vão ao concurso para o Supremo ser de 40, 50, 60, poder ser - estou a referir os juízes, não estou a referir nem aos juristas de mérito, nem aos do Ministério Público - o terço superior dos desembargadores. Ora bem, o terço superior já é um leque muito alargado, o que permitirá ao Conselho fazer uma escolha muito mais alargada, portanto, entrando desembargadores mais novos. Esta seria uma das formas. Nesta, alguns dos pontos mais críticos...
De resto, concordamos com a solução apontada para a extinção dos tribunais militares, enfim, concordamos com toda uma série de outras soluções para que o projecto aponta.
Passando ao projecto do PSD, estamos de acordo, e dissemo-lo também, com aquele apontar para a extinção do Conselho dos Tribunais Administrativos e Fiscais, sendo o Conselho Superior da Magistratura um único conselho, ainda que se mantendo a diferenciação das jurisdições, se fosse caso disso, porque, enfim, nós temos outras ideias sobre essa questão das jurisdições administrativas e tributárias. Mas pensamos que a existência de um único conselho seria por nós bem aceite, bem visto.
É claro que isso obrigaria a algumas modificações na composição do Conselho. Se se introduz o Presidente do Supremo Tribunal Administrativo no Conselho e se ele fosse também um conselho representativo dos tribunais administrativos e fiscais, isso obrigaria que o número de juízes eleitos também teria de ser aumentado - não poderiam ser sete e tínhamos apontado para um número, por exemplo, de nove, porque um seria para os tribunais administrativos, outro para os tribunais fiscais, o que também levaria a aumentar o número de representantes da Assembleia da República, como é evidente. Portanto, para a mesma paridade, passaria o número de representantes da Assembleia da República, por hipótese, também para 9, o que levaria a que um conselho de 17 membros passasse a ser de 22 membros.
Perguntaram-nos na altura se isto não seria muito; eu disse que não, porque o conselho funciona ou em plenário ou em conselho restrito e, como uma grande parte das questões são resolvidas em conselho restrito, só o plenário é que teria os 22 membros e esse aumento não seria significativo. Isto é o que nos parece em relação à proposta do Partido Social Democrata.
Havia uma questão, em relação à proposta do Partido Social Democrata, em que não estávamos de acordo, sobre o recrutamento para a relação, e eu peço ao Dr. João Ataíde que me ajude nesse aspecto.
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O Sr. Presidente: - Faça favor, Sr. Dr. Ataíde das Neves
O Sr. Dr. Juiz Ataíde das Neves (Vice-Presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses): - (Por não ter falado para microfone, não é possível reproduzir as palavras iniciais do Orador.)
... e 17, n.º 3, mas na proposta apresentada pelo PSD exclui-se o concurso curricular e acaba "entre os juízes da 1.ª instância". E, portanto, sugeriu a expressão...
O Sr. Presidente: - Muito obrigado por essa achega.
Srs. Deputados, têm a palavra, para comentar, questionar ou pedir explicações em relação a estas preocupações que nos foram trazidas por parte da Associação Sindical dos Juízes Portugueses.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.
O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, gostaria de cumprimentar o Sr. Magistrado e de saudar a possibilidade de continuarmos este diálogo, que, aliás, prosseguiremos sob outras formas. Não fizeram nenhuma referência à questão da justiça constitucional e das propostas pendentes sobre essa matéria. Creio que seria interessante que o pudessem fazer. Estamos cientes das observações feitas em relação à questão da composição do Conselho e à proposta que apresentámos e depois tivemos de votar. Estamos a ponderar a vossa objecção, sendo certo que não se quis introduzir nenhuma mudança de sinal ou qualquer perturbação de equilíbrio nesta matéria, tão-só dar ao Presidente da República uma pequena margem de ampliação de poder de escolha. Mais nada.
Em relação à questão da proposta adiantada pelo PSD que os Srs. Magistrados comentaram, de extinção do Conselho Superior de dos Tribunais Administrativos e Fiscais, creio que foi muito importante a precisão que agora fizeram porque, tanto quanto percebi, a vossa preocupação, ao mesmo tempo que admitem essa solução como razoável, era que nesse cenário se mantivesse um elevado grau de autonomia do Conselho restrito ou da dimensão ou da componente, o que me leva a ter esta interrogação: não vai esta operação, circunscrita a isso, abrir uma querela, pelo menos uma guerra de aparências, entre Magistrados para, no fundo, conduzir a um super-conselho, grande, acotovelando-se os 22 membros, com todo o respeito pelos seus ilustres membros, a funcionar em plenário de vez em quando e a funcionar restritamente, ou seja, em condições equiparadas aos dois conselhos separados no resto do tempo? Vale a pena empreender esse tipo de operações susceptíveis de introduzirem algum equívoco entre magistraturas, sendo certo que, na prática, ninguém propõe a supressão da jurisdição e menos ainda a supressão de uma certa especificidade?
O Sr. Presidente: - Talvez seja preferível colher primeiro as observações em geral e depois obter uma resposta conjunta.
Tem a palavra o Sr. Deputado Francisco José Martins.
O Sr. Francisco José Martins (PSD): - Sr. Presidente, em primeiro lugar, queria agradecer naturalmente o contributo que a Associação Sindical dos Juízes Portugueses nos deu.
Queria apenas colocar duas questões, muito simples, mais em termos até de esclarecimento. Naturalmente que notei o sentimento e a aceitação da proposta da inclusão no Conselho Superior de Magistratura, do Presidente do Supremo Tribunal Administrativo e a questão que eu tinha para colocar era esta: essa inclusão teria como pressuposto o alargamento desse mesmo Conselho, como inevitável, digamos, sugerindo que deveriam passar de sete para nove os membros eleitos, pelo que pergunto se isso é mesmo inevitável e porquê. Agradecia-lhe esse esclarecimento.
A segunda questão tem a ver com o acesso dos juízes à 2.ª instância, portanto com a proposta do PSD quando retira a referência "entre os juízes de 1.ª instância". Mas não constando realmente esta referência, poderia esta selecção abarcar ou abranger o Ministério Público?
O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sr.ª Deputada Odete Santos.
A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Queria apenas fazer uma ligeira reflexão em torno desta questão da constituição do Conselho, só para dizer que, perante as propostas em presença, apesar de tudo, continuo a preferir o actual artigo 220.º da Constituição.
Primeiro, em relação à proposta do PSD, é interessante a fusão dos dois conselhos. Porém, não há dúvida nenhuma - e a própria redacção desta proposta causa até alguma perplexidade - quanto ao lugar que reservam ao Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, porque toda a gente sabe que quem preside é o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, havendo depois os vogais, mas o Presidente do Supremo Tribunal Administrativo aparece ali na proposta sem se saber, de facto, em que lugar. É Vice-Presidente, de facto, mas, sendo esta uma ideia interessante, creio que não foi apurada até ao fim, porque talvez tenha a ver com a própria questão que o Sr. Dr. Orlando Afonso ali chegou a colocar de a questão da jurisdição administrativa ser ou não como está na actual Constituição; enfim, o quadro vai continuar, não houve propostas de alteração.
Em relação à própria proposta do PSD, penso que é pior do que a da actual Constituição. A actual Constituição não consagra o auto-governo porque, apesar de um dos nomeados pelo Presidente da República ter de ser juiz, ele está lá em representação de políticos e não da magistratura e a proposta do PSD tem 9/9, o que é alguma indefinição nesta matéria, que é muito importante, que tem a ver com questões muito discutidas sobre de onde vem a legitimidade à justiça, etc., que foram e continuarão a ser muito discutidas na sociedade portuguesa e não só.
É claro que a proposta do PS mantém o 9/8 - 9 para o poder político, 8 para a representação dos juízes -, mas tem uma diferença: é que na proposta actual haveria um dos elementos que era juiz e, portanto, estava dentro dos problemas, mas eu creio que é vantajosa a redacção actual e foi por isso que nós não mexemos no artigo 220.º da Constituição.
O Sr. Presidente: - Pela minha parte, gostaria de me pronunciar sobre um tema que está incluído na pergunta do Sr. Deputado José Magalhães, isto é, sobre os comentários da Associação relativos às propostas referentes à justiça constitucional. Em particular e especificamente, gostaria de conhecer a vossa opinião e saber se ela está formada, sobre a questão do recurso de amparo, os termos em que está composto, isto é, sobre a possibilidade
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de se recorrer para o Tribunal Constitucional das decisões de qualquer outro tribunal por inconformidade de actos, pela decisão em si mesma, não por aplicação de norma acusada de ser abuso constitucional mas, sim, da decisão em si mesma. Eu próprio, numa primeira discussão que houve na Comissão, tive a oportunidade de manifestar as minhas objecções e, para a minha própria posição, gostaria de saber qual é o enquadramento da Associação Sindical dos Juízes Portugueses e dos juízes por ela representados em relação a esta matéria.
Sr. Presidente da Associação, tem a palavra para responder e comentar os esclarecimentos que foram pedidos.
O Sr. Dr. Juiz Orlando Viegas Martins Afonso: - Em relação à matéria constitucional, temos algumas críticas e algumas questões a colocar. Não as trazíamos elencadas por não nos parecer que houvesse grandes modificações a nível da revisão constitucional
O Sr. Presidente: - As propostas que estão feitas implicam grandes...
O Sr. Dr. Juiz Orlando Viegas Martins Afonso: - Aquelas que tínhamos visto pareceram-nos, enfim... Agora, há uma questão que podemos desde já abordar: as críticas que ao longo dos tempos se têm vindo a formar entre os juízes, até pelo respeito que o Tribunal Constitucional nos merece e que não está em causa, não está em causa, para nós, uma guerrilha institucional entre a existência ou não do Tribunal Constitucional, entre se o Tribunal Constitucional deve ter mais ou menos poderes do que os tribunais da jurisdição comum. O que nos parece, e isso tem sido discutido durante muito tempo, é que o Tribunal Constitucional está-se a transformar paulatinamente num tribunal de cassação.
O Supremo Tribunal de Justiça, por virtude do próprio recurso penal e daquilo que se prevê no recurso civil, sendo numa instância de recurso não só para um tribunal de revista, ou de revista alargada, mas passando a ser um tribunal de apreciação do facto, é mais uma Relação com outro nome, enfim, de categoria superior, e o Tribunal Constitucional, embora a sua matéria seja restrita à apreciação da constitucionalidade que lhe é suscitada, quer da norma, quer da interpretação que um outro tribunal faz, acaba por se transformar num tribunal de cassação. Manda descer para os tribunais, seja da Relação seja para o Supremo Tribunal de Justiça, e acaba por dizer "e agora julgue desta forma". Isto tem suscitado alguns problemas e algum mal estar, porque se tem entendido que o Tribunal Constitucional não pode ter esse tido de atributo. Daí que se tenha apontado para várias soluções.
Estando nós de acordo com o controlo difuso da constitucionalidade que nós fazemos, ao contrário daquilo que se faz em França ou em Itália, e entendendo que cada juiz, cada tribunal, tem a possibilidade, ele próprio, de suscitar a inconstitucionalidade, de a resolver, de a controlar e depois ela, por via de recurso, poder chegar até ao Tribunal Constitucional, como é que se pode dirimir isto de tal forma que, quando chega ao Supremo Tribunal de Justiça, aí,... então, tem de se pensar que o suscitar da inconstitucionalidade deve ser feito antes de chegar ao Supremo Tribunal de Justiça. Todas as questões de inconstitucionalidade que devam ser suscitadas, devem-no ser à partida, nas instâncias até à Relação, de forma que, quando chegar ao Supremo Tribunal de Justiça, já não haja questões de inconstitucionalidade a serem suscitadas. A única que nos restaria seria a própria inconstitucionalidade da interpretação que o próprio Supremo Tribunal de Justiça poderia, eventualmente, fazer. E essa, enfim, de duas, uma: ou continuaria o Tribunal Constitucional a resolver - mas, em relação ao Supremo Tribunal de Justiça, restritamente, só para esse caso e não já a inconstitucionalidade de nenhuma norma ou de qualquer outro tipo de interpretação, porque essa já devia ter sido suscitada antes, ab initio - ou, para esses casos, seria o próprio Supremo Tribunal de Justiça a resolver, numa secção alargada, o próprio problema da inconstitucionalidade da sua interpretação.
Portanto, tratava-se de dar interpretação; era dar ao Supremo Tribunal de Justiça, também e para casos muito restritos, a possibilidade de ele próprio ter a sua interpretação. Isto tem sido um debate que a Associação tem feito a respeito da inconstitucionalidade e do problema do Tribunal Constitucional.
Por outro lado, em relação ao Tribunal Constitucional, temos sempre defendido que deve ser cada vez mais jurisdicionalizado, ou seja, não quer dizer que Tribunal Constitucional tenha de ser composto por juízes de carreira, necessariamente, mas que a forma de selecção dos juízes do Tribunal Constitucional deve ser uma forma de selecção cada vez mais jurisdicionalizada - jurisdicionalizada neste sentido, por exemplo: por que é que a designação de alguns dos juízes não passa pelo aval do Conselho Superior da Magistratura, ainda que o Parlamento possa... ou mesmo os que são cooptados pelo próprio Tribunal Constitucional, por que se não passar também por uma audição prévia do próprio Conselho Superior da Magistratura... Enfim, deve haver uma maior judicialização, chamemos-lhe assim, será este o termo correcto.
Quanto ao recurso de amparo, tínhamos algumas dúvidas; isso não foi muito levantado na Associação porque apareceu há relativamente pouco tempo, mas temos algumas dúvidas porque o recurso de amparo poderá ser a morte do Tribunal Constitucional a breve trecho e o bloqueio dos tribunais. Esta é a nossa ideia. Mas creio que o Dr. João Ataíde também queria dizer qualquer coisa.
O Sr. Presidente: - Faça favor, Sr. Dr. João Ataíde das Neves.
O Sr. Dr. Juiz João Ataíde das Neves: - Em resposta à questão colocada, o Conselho Superior de Magistratura e Conselho Superior Administrativo, há, de facto, na nossa perspectiva razões de eficácia a considerar, tendo em conta as soluções específicas dentro dos conselhos: colocação, análise de mérito, recrutamento dos próprios juízes, reconhecendo-se que a grande quota deles é recrutada de entre os juízes da Magistratura e que a fusão é louvável, também por uma questão de operacionalidade, porque várias vezes o Conselho Superior de Magistratura é esvaziado dos seus quadros para preencher vagas no âmbito dos tribunais administrativos. Portanto, continuamos a aplaudir esta proposta.
O facto de o alargamento ser ou não ser inevitável, nós entendemos que sim, porque é necessária também a participação activa de juízes, vogais, que sejam recrutados no âmbito dos tribunais administrativos e, como tal, tendo em conta a proporção dos juízes que há nos tribunais judiciais e nos tribunais administrativos, julgamos que, passando de sete para nove, é um número
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bastante razoável, é um número que, mantendo a proporção actual, vai, portanto, absorver a quota.
Havia mais uma questão. Quanto ao lugar do Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, é evidente que a redacção falhou, porque o Presidente fica ali sem saber onde é que se vai meter. Nós discutimos isso e entendemos que, neste caso, como é para o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Judiciais, ou Judiciais e Administrativos, poderia ser competência deste presidente do Supremo Tribunal Administrativo presidir ao Conselho estrito - depois de tudo ir para a lei ordinária, como é óbvio - onde só estivesse em causa a apreciação de questões concernentes aos tribunais administrativos. Em princípio, isto é tudo um problema de lei ordinária e, em princípio, temos o lugar de Vice-Presidente garantido.
Finalmente e para não demorar mais, gostaria de dar uma achega àquilo que o meu colega disse em relação ao processo no âmbito do direito constitucional. Pensamos que o processo é, no todo, um pouco parecido com a questão prejudicial do Tribunal das Comunidades, pode tornar mais eficaz o sistema, mas isso é tudo uma questão prejudicial, foi mais ou menos a proposta do...
O Sr. José Magalhães (PS): - Do Tribunal Constitucional?
O Sr. Dr. Juiz João Ataíde das Neves: - Do Tribunal Constitucional.
Portanto, como o meu colega dizia, logo que a questão seja colocada é remetida de imediato ao Tribunal Constitucional, com as limitações depois previstas na lei, por forma a que não possa entorpecer o normal desenrolar do processo.
O Sr. José Magalhães (PS): - Pois, mas com uma nuance. Sempre que se suscita a inconstitucionalidade, ela pode ser apreciada pelos juízes de 1ª instância, pelos juízes da Relação. Ela continua a suscitar-se e, então, quando chega à Relação, antes de o processo subir ao Supremo, aí, então, haveria a questão prejudicial. Subiria ao Tribunal Constitucional se a questão continuasse a suscitar-se - então, aí subiria -, não é exactamente o acabar com o controlo difuso da Constituição ...
O Sr. Dr. Juiz João Ataíde das Neves: - Só mais uma questão: porque actualmente defendemos que o quadro dos juízes está completo e não pode ser minorado nas suas resoluções, aplaudimos a proposta do PS de criar julgados de paz para questões que não tenham a dignidade jurisdicional que mereça a intervenção do tribunal.
Não sei se deixámos alguma das questões...
O Sr. Presidente: - Creio que não, que foram todas abordadas...
O Sr. Dr. Juiz Antero Luís (Secretário-Geral da Associação Sindical dos Juízes Portugueses): - Se me permite, há uma outra questão...
O Sr. Presidente: - Faça favor, Sr. Dr. Antero Luís.
O Sr. Dr. Juiz Antero Luís: - Nós tínhamos discutido uma outra questão, que é a do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que gostaríamos que ficasse consignado que é eleito pelos juízes do Supremo Tribunal de Justiça, de entre eles, e hoje é um bocado duvidoso porque há juízes do... (Por motivos técnicos, não é possível transcrever as palavras que concluem a frase).
Enfim, esta questão pode pôr-se, curiosamente, por uma razão simples: é que há juízes que estão em comissão de serviço, como se sabe, no Administrativo e, portanto, pode suscitar-se a questão de saber se esses juízes votam ou não votam, podem ou não podem ser eleitos. Portanto, essa questão está...
O Sr. Dr. Juiz Orlando Viegas Martins Afonso: - É uma disparidade entre a eleição...
O Sr. José Magalhães (PS): - Mesmo a nível constitucional?
O Sr. Dr. Juiz João Ataíde das Neves: - Hoje, na Constituição, diz-se que "o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça é eleito pelos respectivos juízes", não diz que até pode ser um juiz de 1ª instância que é eleito pelos respectivos juízes, não dizendo quem é que pode ser presidente.
O Sr. Presidente: - Muito obrigado pela vossa presença e pelas vossas opiniões, que obviamente serão levadas em conta pelos membros da Comissão, a qual se mantém à vossa disposição para ulteriores contactos.
Pausa.
Temos agora connosco o Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, Dr. António Cluny. É a associação que encerra esta série de audiências com as associações representativas da comunidade jurídica e proponho o seguinte esquema de trabalho: em primeiro lugar, daria a palavra ao Sindicato, ao seu Presidente, para fazer uma exposição inicial; em seguida, haveria as perguntas ou comentários dos Deputados e, finalmente o Sr. Dr. António Cluny faria uma intervenção final.
Peço imensa desculpa pelo atraso com que estamos a iniciar esta audição, mas a razão é simples: quando esta audiência foi marcada ainda a sessão legislativa não se tinha iniciado e, portanto, os Deputados estavam todos livres; hoje, houve sessão plenária em que houve votações e tivemos que fazer uma interrupção; daí esta demora.
Feito este pedido de desculpa e dada esta explicação, agradeço a vossa disponibilidade, em meu nome e da Comissão, e dou a palavra ao Sr. Dr. António Cluny.
O Sr. Dr. António Cluny (Presidente Sindicato dos Magistrados do Ministério Público): - Sr. Presidente, muito obrigado pelo convite que nos fizeram. Para nós, é uma satisfação poder contribuir para estes trabalhos.
Muito sucintamente, passo a indicar os objectivos que o Sindicato pensa serem fundamentais para a revisão da Constituição, designadamente, na parte relativa aos Magistrados do Ministério Público, e depois daria a palavra aos meus colegas Dr. João Paulo Rodrigues e Dr. Paulo Mesquita, para cada um, respectivamente, desenvolver mais a questão do Magistério Público e para desenvolver um pouco os nossos comentários às diversas propostas.
O Sindicato entende como objectivo que gostaria de ver alcançar pela revisão, fundamentalmente na área do Ministério Público, a clarificação do estatuto de autonomia, a definição das funções e composição do Conselho Superior
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do Ministério Público, a explicitação de alguns dos aspectos essenciais do estatuto do Ministério Público e a delimitação das suas funções.
Partindo do estatuto de autonomia, creio que esta nossa proposta não faz mais do que pretender importar para o texto constitucional alguns dos conceitos que já existem na actual lei orgânica do Ministério Público mas que são, por vezes, postos em causa, e são-no quando, para nós, em certa medida, são dados adquiridos.
Quanto à estrutura do Conselho, no fundo, é um pouco a mesma ideia. Nós entendemos que a Constituição tem uma determinada filosofia que não vemos consagrada claramente na lei ordinária, por um lado, quanto à composição e, por outro lado, entendemos que não estão também suficientemente explicitadas, relativamente à Comissão, as funções. Neste aspecto, a nossa proposta vai um pouco mais longe do que a própria lei ordinária consagra.
Quanto a alguns aspectos essenciais do estatuto, a nossa proposta orienta-se também no sentido de fazer consagrar um pouco mais precisamente aquilo que a lei ordinária já diz. Portanto, achamos que era altura de transpor para a Constituição esses aspectos, que são fundamentais, de um estatuto de uma magistratura, designadamente tudo o que diz respeito ao conceito de autonomia e ao paralelismo das magistraturas, que tanto têm motivado discussões até de carácter de jurisprudência e doutrinal. Assim, julgamos que era de facto altura de a fazer funcionar.
No que diz respeito à limitação das funções também há um aspecto inovador: nós retiraríamos a representação do Estado, dada a confusão que tem provocado tanto na doutrina como na jurisprudência, o que é que essa representação quer dizer, se é a representação dos interesses privados da Administração se é uma representação mais geral do Estado. Pense-se num acidente de percurso como é, por exemplo, a falência de um empreiteiro ou de um projecto por razões que, enfim, algumas vezes são genuínas outras vezes são meras vicissitudes de uma coisa que eu friso muitas vezes.
Vamos falar agora dos artigos 221.º e 222.º, que são os artigos da Constituição relativos ao Ministério Público.
O Sr. Dr. Paulo Mesquita (Representante do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público): - Relativamente ao n.º 1, apenas retiramos essa função de representar o Estado, pelas razões já apontadas. A função de representação do Estado é vasta e retiramos isso da Constituição porque entendemos que a lei ordinária poderá prever alguma representação do Estado; se isso sair da Constituição, vem a dar uma forma à lei ordinária de ser mais restritiva e nós há muito que reivindicamos que sejamos aliviados da função de representação dos interesses privados do Estado. É relativamente isso que, desde há anos, vimos reclamando e entendemos que isso é poderá ser entregue a outra estrutura do Estado.
Mas não vamos agora, aqui, discutir isso. Apenas queremos frisar que, com o "corte" deste artigo dessa função de representação do Estado, ela terá de ser explicitada pela lei ordinária e, portanto, deve ser retirada da Constituição.
Em relação ao n.º 2, que é um número essencial, onde se refere que o Ministério Público goza de estatuto próprio e de autonomia, limitamo-nos a incluir aqui, praticamente, o conteúdo do que já vem no artigo 2.º, n.º 2 da lei orgânica do Ministério Público, dizendo-se, portanto, o que é autonomia. Assim, define-se autonomia em relação aos níveis regional e local e a sua exclusiva vinculação nos aspectos da objectividade, da legalidade, da imparcialidade, que na altura vinha no aspecto orgânico e no aspecto material. Portanto, é uma constitucionalização da lei ordinária, talvez com um ligeiro correctivo, mas, no fundo, é uma constitucionalização.
Quanto ao n.º 3, trata-se da mesma coisa; é o n.º 3 do artigo 54.º, paralelo à Magistratura jurisdicional independente. Nós pensamos que isto é um princípio essencial do sistema judicial português e, portanto, como princípio judicial, deve realmente constar da Constituição.
Relativamente ao n.º 4, realmente propomos que seja o actual n.º 3, que é o princípio da responsabilidade, da hierarquia e da estabilidade, portanto já
O n.º 5 é um princípio que consta também da lei ordinária, sobre as incompatibilidades; é um princípio que consta da lei ordinária, do artigo dos estatutos e do artigo 218.º, n.º 3, da Constituição. Pensamos que isto deve constar dos estatutos das duas magistraturas, precisamente, dotadas também de um princípio fundamental da incompatibilidade. Portanto, cremos que se justifica inteiramente a inclusão deste preceito.
Finalmente, o n.º 6 é uma reelaboração do actual n.º 4; onde agora se diz que "a nomeação, colocação, transferência e promoção dos agentes do Ministério Público e o exercício da acção disciplinar competem à Procuradoria-Geral da República", creio que queremos explicitar que é do Conselho Superior do Ministério Público. De facto, assim é e ninguém tem dúvidas, é o que está na lei ordinária e, com o devido respeito, não se percebe porque é que a Constituição tem tido sempre esta hipocrisia. Julgo que a Constituição deve dizer claramente, sem quaisquer dúvidas, que esta competência é do Conselho.
Relativamente ao artigo 222.º, há uma alteração quanto ao n.º 1, que se manteria; quanto ao n.º 2, também não há nenhuma alteração substancial, porque se diz que compreende o Conselho Superior do Ministério Público. Tal como fizemos anteriormente, a parte final do n.º 2 passa para um n.º 3, porque entendemos que a Constituição deve dizer, também por paralelismo com o que acontece com os juízes e com o Conselho Superior de Magistratura, qual é a composição do Conselho Superior do Ministério Público. Em vez de deixar rolar isso para a lei ordinária, deve dizê-lo concretamente, até porque isso vai evitar os tais problemas de interpretação da Constituição que houve, para se saber quais são e se pode haver membros designados pelo governo ou não, enfim, aquelas dúvidas que suscitava e suscitaram um comentário do Dr. Canotilho.
Portanto, propomos aqui que a Constituição o diga e propomos uma alteração, que é diferente, efectivamente, da composição actualmente prevista na lei ordinária, porque limitamos a composição, além do Procurador-Geral da República, a membros eleitos pela Assembleia e membros eleitos pelos seus pares. Agora, a lei ordinária prevê os membros natos, que são os corpos distritais e membros designados pelo governo. Mas esta solução é possivelmente inconstitucional e, portanto, talvez fosse melhor a Constituição dizer bem o que quer e esta parece que é mais...
Finalmente, propomos o aditamento de um número, que é o que está na lei ordinária, que diz qual é o princípio da eleição dos membros eleitos pelos magistrados, por sufrágio secreto e universal, segundo o princípio da representação profissional. Parece-me que isto é uma medida de cautela, porque pode aparecer - sabe-se lá! - alguma revisão ordinária que venha dizer que o princípio maioritário que seria um princípio profundamente anti-democrático.
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Portanto, é uma reprodução da lei ordinária por razões de mera cautela e, como sabem, a mera cautela muitas vezes é importante. Todos nós sabemos isso.
O Sr. Dr. João Paulo Rodrigues (Representante do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público): - Eu iria só referir alguns tópicos essenciais dos nossos comentários aos projectos, começando referir três aspectos entre os vários analisados.
Parece-nos extremamente saudável a inclusão de um novo n.º 5 no artigo 205.º, proposto pelo Sr. Presidente António Cluny, relativo à constitucionalização da dependência funcional relativamente às autoridades judiciais. O tema também tem dado lugar a discussão no âmbito da legislação ordinária, apesar de aparentemente o nosso sistema processual penal depender exactamente deste princípio. Por outro lado, a extinção dos tribunais militares ou a limitação da sua existência para o chamado tempo de guerra, também nos parece um dos aspectos, da forma como funcionam os tribunais militares, que levanta algumas dúvidas quanto à sua constitucionalidade, designadamente quanto à representação do Ministério Público nesses tribunais.
Parece-nos também ser meritória, entre outras propostas, a inclusão de eventuais provas públicas no concurso de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça. Como é destacado em documentos comunitários da legislação actual, é muito duvidosa a constitucionalidade da lei ordinária, os tribunais sociais, nesta matéria, designadamente uma ideia de prevalência do mérito como único critério. Não obstante outros requisitos, na verdade, na prática e mesmo na lei, o critério essencial que tem vigorado é a antiguidade e, no fundo, a ideia de o Supremo Tribunal de Justiça ser um lugar de carreira e não tanto um topo da organização judiciária. Daí que, na nossa perspectiva, seria saudável, além da inclusão de provas públicas, pelo menos a um nível, a inclusão de outros princípios que resolvessem algumas dúvidas que têm sido colocadas designadamente na interpretação da lei ordinária. Depois, deveria ser explicitado que a selecção deve ser baseada exclusivamente no mérito. A ideia seria a do concurso curricular com provas públicas, como já expliquei, e, eventualmente, a da possibilidade de um júri que não seja tão corporativo como, na prática tem existido, mas que possa envolver o conjunto dos mundos judiciário e universitário, para evitar qualquer neo-corporativismo.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, têm a palavra para comentar esta pequena proposta de revolução da Constituição judiciária.
Sr. Deputado José de Magalhães, faça favor.
O Sr. José Magalhães (PS): - Se o Sr, Presidente nos permite, vamos, agradecemos desde logo as contribuições que são trazidas e vamos considerar cuidadosamente as que dirigem ao projecto de revisão constitucional que apresentamos, às propostas concretas que são analisadas uma a uma no texto bem elaborado que nos foi dirigido por escrito e agora complementadas pelas soluções orais.
Nas circunstâncias em que estamos a fazer esta discussão, eu iria, por um lado, registar que a linha de revisão constitucional quanto ao estatuto do Ministério Público se distingue tecnicamente da que apresentamos, mas não na filosofia, ou seja, usamos uma atitude de prudente omissão de alterações que pudessem ser interpretadas por uma transposição para o terreno da revisão constitucional de uma atitude de conflito entre magistraturas contrária à ideia de paz constitucional e paz entre magistraturas, que deve preconizar por todos os meios e que queremos assegurar na parte que nos cabe, naturalmente.
Por isso mesmo não cuidamos, por exemplo, de reformular o conceito de autonomia, que, aliás, impulsionamos e que ficou consagrada na segunda revisão constitucional em termos que, do ponto vista da exacta formulação constitucional, poderia ter encontrado outras formulações mas que naquela que ficou consagrada permitiu boas e positivas concretizações no terreno da legislação ordinário. Outra coisa é saber se se deve aditar, por exemplo, qualificações, elementos de densificação como aqueles que aludem à exclusiva vinculação da Magistratura a critérios de legalidade, objectividade e imparcialidade, por considerar essa hipótese de densificação parcial quanto a outras projecções que procuram corporizar conquistas do terreno da legislação ordinária mas que fluem de soluções constitucionais já, inequívocas. Suponho que é preciso ter um prudente cuidado e uma prudente medida, não vá a eventual ausência de consenso nessa matéria criar perturbações, ou dúvidas, ainda que eu entenda que é legítimo extrair ilações negativas da não aprovação de certas propostas. Estou a referir-me à que adiantou agora em relação ao n.º 3, ao eventual n.º 3 ou n.º 4.
Outra coisa diferente é, no que respeita a obras de cirurgia arquitectónica que visem precisar a Constituição no que diz respeito à forma de organização interna dessa entidade que tem a designação de Procurador-Geral da República ou, como dizia o Sindicato, quebrar a não referência ao Conselho Superior do Ministério Público como entidade a quem compete o exercício de acção disciplinar, solução cujas origens é de todos muitíssimo bem conhecida e dos magistrados em particular.
A mesma razão nos levou a não propor obras de fundo em relação à composição do Conselho Superior do Ministério Público. Veremos que impacto é que a vossa proposta granjeia junto dos nossos colegas igualmente e, em função disso, teremos ocasião de definir oportunamente uma posição.
Gostaria de vos perguntar como é que encaram duas questões, sendo a primeira a seguinte: o PSD adianta uma proposta, a propósito do artigo 221.º, que vejo criticada no vosso documento, tendente a aditar um inciso em matéria de definição das competências do Ministério Público à participação da instrução da política criminal definida pelos órgãos de soberania. É esta a expressão do PSD, mas é mais a vossa análise do que a proposta do PSD que me merece este pedido de declaração.
No vosso documento refere-se o seguinte: "a expressão pode vir a ser objecto de interpretações no sentido de envolver o Ministério Público na execução do pedido de segurança do governo, o que se afigura incompatível com a função do Ministério Público como órgão de justiça." E depois diz-se: "é necessário clarificar o regime de definição dos crimes, penas", etc. - remeto para o documento por brevidade. Ora, isto coloca-me alguma interrogação sobre o lugar que imaginam que deva ter cada uma das estruturas.
Como costuma dizer o Prof. Gomes Canotilho nesta matéria, "há aqui um problema constitucional". Há um problema constitucional porque, não sobrando dúvidas que o Ministério Público goza de autonomia, não sobrando dúvidas que o governo tem determinadas competências e
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que só ao Parlamento cabe legislar, há que precisar como é que definem as estratégias de combate ao crime e como é que se define uma prioridade de combate a um determinado tipo de crime. Por exemplo, em função de uma análise das perspectivas do uso do território nacional para relações criminosas, informações que vêm de várias fontes de órgãos do Estado sobre riscos potenciais, ameaças e vulnerabilidades. Como é que é possível articular os diversos órgãos que é preciso envolver, com respeito pelas autonomias, com respeito pela vontade política dos eleitores, com vontade pela capacidade, com respeito pela capacidade legislativa da Assembleia da República, com respeito pelo poder promulgatório do Presidente da República, com respeito pelas competências que só o governo pode exercer? Como é que imaginam que isso se possa fazer adequadamente, que bem benfeitoria constitucional é excluída pelo PSD? O que é que acham que se pode fazer para introduzir uma clarificação? É que, obviamente, sempre é possível deixar tudo como está, que foi o que nós fizemos. Portanto, esta pergunta é, obviamente, uma pergunta de clarificação construtiva fora do nosso catálogo.
A segunda questão é quanto à aplicação da lei criminal. Como sabem, há propostas pendentes, apresentadas designadamente quanto ao artigo 32.º, que implicariam uma deliberada vontade ruptura com o actual modelo consignado no Código de Processo Penal. Deste lado, a discussão constitucional foi feita na altura própria sobre esta matéria, sendo sempre susceptível de ser reaberta, mas que impacto e qual a vossa posição em relação a esta matéria?
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Francisco José Martins.
O Sr. Francisco José Martins (PSD): - Sr. Presidente, antes de mais, quero agradecer os contributo e os esclarecimentos que nos foram dados pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público.
Quanto à questão da proposta do PSD, o Sr. Deputado José Magalhães cuidou já de suscitar aquilo que, naturalmente, é uma clarificação importante a fazer, sobre o conteúdo da proposta que nos é apresentada pelo Sindicato quanto ao artigo 221.º. Creio que ainda há alguns pontos, nomeadamente o ponto 5, sobre incompatibilidades, que são matéria específica da lei ordinária, pensamos nós, e, portanto, essa será a sede própria. Mas a grande inovação, a grande questão que realmente aqui se coloca e que eu gostaria que fosse mais aprofundada, porque penso que, apesar de tudo, foi abordada de forma um pouco superficial, é realmente o retirar do texto constitucional a representação do Estado. A questão é esta: como criar alternativas e que alternativas? Como penso que ouvi falar em qualquer forma de advocacia do Estado - não sei se foi o termo correcto -, pergunto qual a fórmula que o Sindicato entende que poderia ser uma alternativa e que o subtraia, realmente, a esta representação do Estado?
O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sr.ª Deputada Odete Santos, que, aliás, propôs exactamente a retirada da representação do Estado ao Ministério Público.
A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Exactamente, porque isso é uma coisa... Aliás, em termos constitucionais, não sei se alguma vez propusemos isto, mas em termos de legislação ordinária já tínhamos proposto, na lei orgânica do Ministério Público.
O Sr. Presidente: - Contra a Constituição!
A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Não. Tem a ver com a questão da interpretação do termo constitucional "representação do Estado". Portanto, temos algumas propostas que são coincidentes com as que o Sindicato apresenta, que têm a ver, nomeadamente, com a consagração constitucional da forma como se constitui este Conselho Superior do Ministério Público. Não vemos por que, contendo a Constituição, em relação ao Conselho Superior da Magistratura, a sua composição, neste aspecto há-de discriminar o Ministério Público. Não entendemos, enfim, que possa haver oposição a uma proposta destas.
Efectivamente, não tenho nenhuma questão a colocar, mas gostaria de sublinhar a pergunta que o Sr. Deputado José Magalhães fez em relação ao que foi proposto, não por nós, no âmbito artigo 32.º e que tem a ver com as questões da instrução, do inquérito.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Dr. António Cluny.
O Sr. Dr. António Cluny: - Sr. Presidente, gostaria de dar algumas explicações, concretamente a uma observação do Deputado José Magalhães sobre a paz entre as magistraturas.
O problema da autonomia e do paralelismo das magistraturas penso que não suscitará nenhuma guerra ou nenhuma interrupção da paz entre as magistraturas, na medida em que quer o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, quer a Associação Sindical dos Juízes Portugueses são subscritores de oito documentos internacionais consagrando princípios quer sobre a autonomia do Ministério Público, quer quanto ao paralelismo das magistraturas.
Por acaso e por azar meu, não estão incluídos nesta documentação que trouxe - mas fá-los-ei chegar o mais depressa possível a esta Comissão - dois documentos recentes, elaborados na Associação Internacional de Magistrados, a que o Sindicado e a Associação Sindical dos Juízes pertencem, que referem taxativamente o princípio da autonomia e o princípio do paralelismo. Esta a primeira observação que queria fazer.
Portanto, penso que isso não é obstáculo à inclusão desses princípios, porque as duas associações, que são amplamente representativas - senão não estariam aqui a ser ouvidas -, convergem nesses princípios.
Quanto à questão do artigo 221.º e a proposta do PSD, a nossa preocupação tem a ver com o conceito que é usado de política criminal, designadamente na doutrina francesa, que contende, em nosso entender, com o tradicional princípio da legalidade que existe em subtracção penal em Portugal. Não interessa a política criminal entendida como uma forma de gestão do princípio da oportunidade e subtracção penal; a introdução desta expressão que tem um conteúdo processual penal bem claro, pode efectivamente trazer e introduzir por esta via um desvirtuamento de todo o sistema português. O princípio da legalidade no exercício da acção penal é um princípio próprio do nosso sistema. Portanto, creio que na nossa observação fica mais claramente explicitado o porquê de acharmos perigosa a
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inclusão desta potência, dado o conteúdo específico que a doutrina tem atribuído a este princípio.
Relativamente ao princípio da participação na execução da política criminal, do projecto do PSD,...
O Sr. José Magalhães (PS): - A questão é saber se a expressão, tal como se encontra formulada, é susceptível de comportar essa leitura ou se é susceptível de comportar a ideia de uma outra forma de associação entre o Ministério Público como tal e os órgãos de soberania, o que significa, naturalmente, com o governo apenas, e formas diferentes de actuação e de intervenção na definição da política e, depois, do processo de execução. Estou apenas a tentar apurar se há alguma leitura que não seja polémica, no sentido que aduziu, ou se é forçoso chegarmos a essa conclusão.
O Sr. Dr. António Cluny: - Por acaso, não está aqui referida a outra observação que o projecto do PSD tinha - agora não me recordo exactamente qual -, relativa à atribuição das funções do governo de fiscalização da legalidade democrática. Penso que isto fazia parte. Tinha um conceito múltiplo, um conceito ambivalente, em que, por um lado, se atribuía funções neste momento atribuídas quer ao Ministério Público quer à Magistratura Judicial e, por outro lado, se pretendia atribuir ao Ministério Público uma participação em funções que são, em nosso entender, exclusivamente de natureza executiva.
A ideia que temos relativamente a isso é que estes conceitos irão baralhar - ou poderão vir a permitir baralhar - uma tradição antiga quanto ao princípio da legalidade da acção penal e também entendemos que a própria estrutura e o desenho constitucional dos órgãos que compõem o Ministério Público permite só por si, tal como estão neste aspecto, esse intercâmbio de posições e opiniões para uma execução de uma política criminal que não tenha efectivamente esse conteúdo que a doutrina francesa sempre emprestou a esta expressão.
Portanto, acho que um procurador-geral, que é eleito, que é designado pelo Presidente da República sob proposta do governo, com um Conselho Superior de Ministério Público com membros eleitos pelo parlamento eleito, tem todos os canais suficientes para permitir uma coordenação de actuações dentro dos princípios que cabem e que devem reger a actuação das magistraturas, por um lado, e dos órgãos do governo, por outro. Penso que não será o que mais diferencia a actuação do poder judicial, do qual nós entendemos fazer parte, do Ministério Público tal como está previsto na Constituição; é que o poder judicial só intervém a partir do momento em que houve uma infracção, em que está constatada uma infracção à lei e não tem uma intervenção anterior no sentido da prevenção. Noutras áreas do processo criminal tem outros mecanismos de actuação que não têm a ver, efectivamente, com o Ministério Público, do poder judicial.
Quanto à questão da representação do Estado, que o Sr. Deputado tinha referido, pensamos que, na nossa proposta, o simples facto de se continuar a prever que o Ministério Público representará os interesses que a lei determinar é suficiente, porque mesmo que não haja possibilidade, neste momento, de retirar de uma vez por todas e desde já a representação dos interesses privados da Administração ao Ministério Público, pelo menos não serve como argumento o facto de estar previsto na Constituição que o Ministério Público representa o Estado, como argumento constitucional de impossibilidade de retirar essa conotação no futuro.
Ora bem, o que sabemos é que neste momento Portugal é o único país da Europa onde os interesses privados da Administração são representados pelo Ministério Público; a leitura que tem sido feita da Constituição tem sido no sentido de que tem de ser assim porque a Constituição impõe essa atribuição ao Ministério Público. Ao retirar essa referência, permitindo, no entanto, que a lei, neste momento, continue, circunstancialmente, a cometer essa função ao Ministério Público enquanto não se encontra outra solução que talvez seja mais adequada, não estamos a criar uma situação de vazio, mas estamos a permitir uma abertura ao sistema.
Não sei se terá ficado alguma questão por responder...
O Sr. Presidente: - Há uma pergunta que não foi respondida, que é a questão da instrução criminal.
O Sr. Dr. António Cluny: - Eu gostaria de referir que essas propostas vão à revelia, neste momento, da orientação europeia nesta matéria, de todas as conferências europeias e das próprias Nações Unidas, sobre a separação clara dos papéis das magistraturas.
Há uma orientação já bem definida, há jurisprudência do tribunal europeu nessa matéria, quanto à separação clara do que deve ser o papel e a função do Ministério Público e a função do juiz. Portanto, creio que essas propostas neste momento não têm sido, de facto, eco da evolução da doutrina e de uma evolução da jurisprudência europeia, uma evolução das concepções mais avançadas nesta matéria, e podem pôr em causa - já punham em causa no sistema anterior, com alguma confusão que havia entre o exercício efectivo da acção penal e a condução da investigação. Portanto, creio que a experiência que temos tido é positiva, tem-se revelado frutuosa, não têm sido constatados nenhum obstáculo nem nenhum perigo quanto à independência com que o Ministério Público tem exercido a acção penal e, portanto, parece-me incorrecto reverter um sistema que está em vigor há alguns anos com algum sucesso.
Creio que o Dr. Mesquita pretendia ainda acrescentar alguma coisa.
O Sr. Presidente: - Sr. Dr. Paulo Mesquita, tem a palavra.
O Sr. Dr. Paulo Mesquita: - Sr. Presidente, neste ponto, penso que também é preciso conjugar qualquer proposta acerca da direcção do inquérito de instrução ser referido ao juiz com um princípio que continua a ter garantia constitucional, que é o princípio do acusatório. Penso que o que justifica, na essência, o acusatório, e até a sua consagração constitucional, é a ideia de um processo penal garantista, em que a entidade que investiga e a entidade que decida acusar não é aquela que prende, para além da entidade que julga. Aliás, mesmo na vizinha Espanha são conhecidos alguns problemas de legitimidade quando numa mesma entidade se conjugam esses dois papéis. O papel da investigação, em relação à moderna criminalidade, envolve até algo que não é compatível totalmente com certos aspectos do estatuto do juiz; envolve, designadamente, a coordenação e, nalguns casos, a necessidade de conjugação com as autoridades de polícia criminal. Conjugar isto e ainda essa mesma entidade ter também o papel de,
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designadamente, prender preventivamente, afectar direitos fundamentais das pessoas durante o processo de inquérito ou de investigação, é na nossa óptica extremamente perigoso, sobretudo para um processo penal garantista que aparentemente é o princípio essencial desta matéria do artigo 32.º.
O Sr. Dr. António Cluny: - Eu gostaria só de acrescentar, se me fosse permitido, que mesmo em França, onde a figura do juiz de instrução nasceu, por assim dizer, neste momento, o juiz de instrução, segundo os últimos estudos da Professora Delma Martin, já só intervem em cerca de 5% dos processos, e, de qualquer forma, todas as propostas de revisão do código de processo penal francês apontam para uma atribuição ao Ministério Público da fase de inquérito ou instrução, com a alteração necessária do próprio estatuto, que já teve uma pequena alteração constitucional na ultima revisão constitucional francesa. As propostas de revisão do estatuto do Ministério Público Fiscal espanhol avançaram ainda na fase final do governo anterior. Aliás, nós apresentamos alguns estudos espanhóis e franceses sobre essa matéria onde o sentido seria no do texto português, do código processual português, no sentido da estrutura constitucional portuguesa actual para esta matéria.
Portanto, parece-nos que se, designadamente a Europa, se orienta neste sentido, estarmos nós a fazer uma inversão de caminho era, no mínimo, sui generis.
O Sr. Presidente: - Terminamos aqui as nossas audições programadas para hoje.
Quero agradecer-vos a vossa presença mais uma vez e, obviamente manifestar a abertura da Comissão para, a todo o tempo, receber e tomar em boa conta as posições que entendam remeter-nos, por escrito.
Está encerrada a reunião.
Eram 20 horas e 20 minutos.
A DIVISÃO DE REDACÇÃO E APOIO AUDIOVISUAL
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