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Quinta-feira, 14 de Novembro de 1996 II Série - RC - Número 53
VII LEGISLATURA 2.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1996-1997)
IV REVISÃO CONSTITUCIONAL
COMISSÃO EVENTUAL PARA A REVISÃO CONSTITUCIONAL
Reunião de 13 de Novembro de 1996
S U M Á R I O
O Sr. Presidente (Vital Moreira) deu início à reunião às 12 horas e 05 minutos.
Procedeu-se à audição dos autores da petição que integra propostas ou sugestões de revisão constitucional: Drs. Jorge Costa, António Leones Dantas, Maria João Antunes, Francisco Santos Costa, Jaime Milheiro e Jorge Costa Santos, (Grupo
de Trabalho Para a Revisão da Lei de Saúde Mental).
Durante o debate usaram da palavra, além do Sr. Presidente, os Srs. Deputados Maria Eduarda Azevedo (PSD), Osvaldo Castro (PS), Jorge Roque Cunha e Barbosa de Melo (PSD).
O Sr. Presidente encerrou a reunião às 13 horas.
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O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, temos quórum pelo que declaro aberta a reunião.
Eram 12 horas e 5 minutos.
Srs. Deputados, temos connosco o Grupo de Trabalho para a Revisão da Lei de Saúde Mental, constituído por iniciativa conjunta do Ministro da Justiça e da Ministra da Saúde, que manifestou o seu interesse em expor-nos os seus pontos de vista sobre, em particular, uma proposta do PS para o artigo 27.º, na parte em que prevê o internamento do doente mental como tal qualificado por tribunal judicial e nos termos por este definidos, e outras questões correlacionadas com esta mesma proposta.
Estão connosco o Presidente do Grupo de Trabalho, o Dr. Jorge Costa, e outros membros do mesmo, a quem agradeço a vossa vinda, e é com todo o gosto que esta Comissão procede a esta troca de impressões, o que temos feito com todas as organizações sociais e também públicas que têm manifestado interesse em nos transmitir os seus pontos de vista sobre matérias atinentes à revisão constitucional, pelo que este Grupo de Trabalho não é excepção. Procederemos como habitualmente nestas circunstâncias. Ou seja, darei a palavra às pessoas que estamos a ouvir para exporem os seus pontos de vista; numa segunda fase, dá-la-ei aos Srs. Deputados para pedirem esclarecimentos ou fazerem comentários e, no fim, darei novamente a oportunidade aos membros do Grupo de Trabalho de responderem, se o desejarem ou entenderem necessário, às perguntas ou comentários que, entretanto, forem feitos.
Dito isto, tem a palavra ao Sr. Dr. Jorge Costa.
O Sr. Dr. Jorge Costa (Grupo de Trabalho para a Revisão da Lei de Saúde Mental): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: É com enorme satisfação que, em nome deste Grupo de Trabalho, apresento os cumprimentos aos membros da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional. Da mesma forma, agradeço a concessão da presente audiência.
Este Grupo de Trabalho foi constituído no âmbito dos Ministérios da Justiça e da Saúde e visa, em última análise, a apresentação de um anteprojecto de diploma relativo à revisão da Lei de Saúde Mental, mas, especificamente, nas matérias do internamento e tratamento compulsivo.
Sentiu-se, na primeira reunião de trabalho, a necessidade de reflectir sobre a adequação ou conformação da lei ordinária ao texto constitucional, por um lado, e, por outro, achou-se por conveniente acompanhar o que, neste ponto específico, fosse reflectido pela Comissão Eventual para a Revisão Constitucional.
Assim, e conhecido um projecto que aborda esta matéria, o Grupo de Trabalho deliberou, desde logo, formular uma alteração ao conceito utilizado: em vez de "doente mental", passaria a ser "portador de anomalia psíquica". E também deliberou analisar em conjunto com esta Comissão a proposta de modelo-base, a construir, no concernente ao internamento compulsivo, maxime nos casos de urgência, modelo judicial versus modelo administrativo com confirmação judicial.
Vem o Grupo reflectindo nas vantagens da adopção do modelo judicial, restando, porém, a vexata quaestio dos internamentos de urgência. Mas, para ser exposta, por um lado, a perspectiva jurídica e, por outro, a explicação psiquiátrica sobre os conceitos, se a tanto se não opuserem, quer o Sr. Presidente, quer os demais Srs. Deputados, gostaria que usassem da palavra os Srs. Drs. António Leones Dantas e, posteriormente, Francisco Santos Costa, para os devidos efeitos.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Dr. António Leones Dantas.
O Sr. Dr. António Leones Dantas (Grupo de Trabalho para a Revisão da Lei de Saúde Mental): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Ora, a questão de fundo que atravessa todo o debate, e penso que é a grande preocupação que aqui nos reúne, é a necessidade de existir na Constituição uma norma que sirva de suporte expresso à privação da liberdade nas situações em que esta é o único meio para garantir o tratamento a doentes afectados de anomalia psíquica.
A Constituição parte do pressuposto (e disso sabem os senhores melhor do que eu) da tipicidade das medidas restritivas da liberdade.
No entanto, há situações - e penso que é necessário que se forme um consenso sobre isto - em que indivíduos portadores de anomalia psíquica, por força dessa mesma anomalia, colocam em causa bens jurídicos relevantes para a generalidade dos cidadãos. Em minha opinião, vale a pena termos consciência da existência de cidadãos deste país com a vida transformada num inferno por força de terem de conviver quotidianamente com pessoas afectadas por problemas destes. Logo, há aqui um espaço em que se torna necessário privar os cidadãos da sua liberdade, para, dessa forma, garantir a efectividade de um tratamento médico, tratamento esse que afaste o perigo para outros bens jurídicos, que, ao fim e ao cabo, são relevantes e que devem ser acautelados pelo ordenamento jurídico.
Há situações em que o direito à vida, o direito à integridade física, o direito ao património são colocados em causa por pessoas afectadas por problemas psiquiátricos e impõe-se que o seu direito à liberdade seja restringido na medida estritamente necessária para afastar essas situações derivadas das anomalias psíquicas de que eles são vítimas.
Assente que se torna necessário restringir o direito à liberdade, como é que a Lei da Saúde Mental, que está em vigor (e é um diploma de 1963), resolveria este problema? A Lei de Saúde Mental corporiza uma forma de internamento, o chamado internamento em regime aberto, em que os cidadãos afectados de anomalia psíquica são privados da sua liberdade, são internados compulsivamente em estabelecimentos hospitalares e sujeitos ao tratamento médico necessário à correcção das suas situações derivadas da anomalia psíquica. O modelo de internamento que aí está previsto é, basicamente, de natureza administrativa, embora a própria lei, quando o internamento ocorra em estabelecimentos médicos de natureza particular, não oficiais, exija já que esse internamento seja objecto de uma autorização judicial prévia. Ou seja, a própria lei de 1963 é uma lei que se preocupa, de uma maneira muito clara, com os controlos judiciais das privações do direito à liberdade, porque, por um lado, quando prevê o internamento em estabelecimentos oficiais de saúde, exige a confirmação do internamento posterior à privação da liberdade e ao internamento, e, por outro lado, relativamente a internamentos em estabelecimento particulares, a lei exige desde já que, para o internamento ser efectivado, haja uma autorização judicial à efectivação desse mesmo internamento.
Em todas as recomendações internacionais que atravessam esta matéria a situação de internamento por via administrativa ou por via judicial existe. Há ordenamentos jurídicos que consagram soluções de natureza administrativa, embora sujeitas a confirmação judicial - penso que a solução da lei de saúde mental francesa é paradigmática disso - e há países que adoptaram declaradamente o modelo de internamento por via judicial, e a solução da lei belga relativa a esta matéria é paradigmática disso. Mesmo nos casos em que o internamento se verifica por via administrativa, ele também está sujeito a uma série de controlos, judiciais, e não só, que, no fundo, visam evitar quaisquer abusos na privação e restrições do direito à liberdade.
A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que, no fundo, terá influenciado, de certa forma, o artigo 27.º
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da Constituição, previa já expressamente a possibilidade de internamento de pessoas afectadas por problemas do foro psiquiátrico, embora não impusesse nenhum modelo. A Constituição e, aliás, as recomendações internacionais que surgem nesta matéria admitem a privação da liberdade quer por via judicial quer por via administrativa, embora também aí sujeita - e as recomendações internacionais são explícitas nisto - à confirmação judicial a posteriori.
O nosso Grupo de Trabalho reflectiu sobre isto e temos aqui, para entregar à Comissão, uma proposta, em que se opta, declaradamente, por um modelo judicial de privação da liberdade com este fundamento, ou seja, nas situações em que há necessidade de internar compulsivamente alguém.
O modelo judicial será o modelo normal, o modelo-regra, embora não dê resposta às situações de descontrolo - mas, aqui, os membros do Grupo de Trabalho com formação na área da psiquiatria poderão explicar isto melhor a esta Comissão. No entanto, há situações em que há uma necessidade de assistência imediata, há uma necessidade de privação imediata da liberdade, e, nestes casos, não se pode estar à espera de uma decisão judicial prévia que corporize essa privação de liberdade - são os chamados internamentos de urgência. A lei de saúde mental, de 1963, já os previa, eles existem em todos os ordenamentos jurídicos em termos de direito comparado e penso que é necessário que também passem a existir entre nós para que se dê resposta às carências de tutela jurídica que se verificam nesta área.
Portanto, basicamente, por um lado, há necessidade de um suporte constitucional que sirva de fundamento à restrição à liberdade com este fundamento - a restrição à liberdade, como é óbvio, terá, depois, de ser regulamentada ao nível da legislação ordinária, e será um pouco este o espaço em que estamos a trabalhar, sempre condicionados pelos parâmetros constitucionais relativos às leis que corporizam restrições aos direitos, onde os princípios constitucionais relativos à restrição aos direitos terão declaradamente de se exprimir.
Penso que é este o pano de fundo das considerações que se me importa oferecer, mas a Sr.ª Dr.ª Maria João pode fazer o favor de esclarecer alguma coisa que eu tenha deixado de fora, porque terá melhores condições para falar do que eu.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sr.ª Dr.ª Maria João Antunes.
A Sr.ª Dr.ª Maria João Antunes (Grupo de Trabalho para a Revisão da Lei de Saúde Mental): - Sr. Presidente, quero só chamar a atenção para o facto de a lei de 1963, que, teoricamente, ainda está em vigor, ter sido questionada relativamente à sua conformidade com a Constituição de 1976, concretamente, ao artigo 27.º da Constituição. E, portanto, tem-se invocado este artigo da Constituição para, no fundo, não se aplicar a Lei de Saúde Mental, que é de 1963 e que já prevê este internamento compulsivo de portadores de anomalia psíquica.
Daí, a nossa vontade de que o artigo 27.º da Constituição contemple, de forma expressa, essa possibilidade para que a futura lei de saúde mental possa ter aplicação e não seja, desde logo e antes disso mesmo, ferida de um juízo de inconstitucionalidade por referência ao artigo 27.º. Era só isto que eu queria referir.
O Sr. Presidente: - Permitam-me, Srs. Deputados, que eu e o Sr. Deputado Barbosa de Melo felicitemos a nossa querida colega e amiga Dr.ª Maria João Antunes por a termos aqui, no Grupo de Trabalho.
Tem a palavra o Sr. Dr. António Leones Dantas.
O Sr. Dr. António Leones Dantas: - Sr. Presidente, Srs. Deputados: É claro que a Dr.ª Maria João introduziu, e muito bem, no debate o tema da conformação constitucional da Lei de Saúde Mental, de 1963.
Ora, basicamente, este debate parte do seguinte facto: se a lei é omissa relativamente à restrição à liberdade com este fundamento, com a necessidade de dar assistência médica a alguém, uma das primeiras reacções possíveis é a de não ser possível, face à Constituição da República, internar compulsivamente ninguém - uma das correntes que está aí, com grande expressão no terreno, defende precisamente isto. Agora, pensemos nas situações de carência de tutela de direitos que são colocados em crise nestas situações e que não encontram aí capacidade de resposta.
Por outro lado, avançou-se com outra corrente de interpretação do artigo 27.º, que defenderia a recondução desta medida às medidas de segurança, que, ao fim e ao cabo, aparecem nesse artigo 27.º. Importa dizer que o que está em causa - mas, aqui, provavelmente, a Sr.ª Dr.ª Maria João tem melhores condições do que eu para falar sobre isto - são situações em que não há ainda a prática de um facto recondutível ao Código Penal. Ou seja, não há ainda a prática de um crime.
Nas situações em que alguém pratica um facto que pode ser considerado um crime, este é o espaço penal das medidas de segurança, o ordenamento jurídico português já dá resposta através das medidas de segurança, do Código de Processo Penal e da regulamentação da aplicação das medidas de segurança.
No entanto, estamos num terreno em que uma pessoa afectada de anomalias psíquicas coloca em causa bens jurídicos, mas ainda não entrou no espaço de preencher, com a sua conduta, normas incriminadoras. Ou seja, estamos num terreno em que ainda não entrámos no espaço de Direito Penal, estamos num espaço que se pode considerar pré-penal, pré-delitual e, depois, num debate doutrinário muito vasto sobre a configuração disto.
É exactamente esta dificuldade de reconduzir os internamentos às medidas de segurança, diria mesmo a impossibilidade, de acordo com vozes autorizadas da doutrina portuguesa, de reconduzir o internamento às medidas de segurança que cria o problema de fundo, o de se saber o que se faz, qual é a resposta que o ordenamento jurídico português dá a este tipo de situações.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Dr. Francisco Santos Costa.
O Sr. Dr. Francisco Santos Costa (Grupo de Trabalho para a Revisão da Lei de Saúde Mental): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Começo por cumprimentar os Srs. Deputados.
Do ponto de vista psiquiátrico, estou acompanhado pelos Srs. Drs. Jaime Milheiro e Jorge Costa Santos que, a seguir, também poderão dar a sua opinião, mas penso que, nesta discussão e no seio deste Grupo de Trabalho para a revisão da Lei de Saúde Mental, provavelmente, será uma das áreas, nesta interface saúde mental/justiça, onde a psiquiatria tem a tarefa facilitada. Esta discussão é, prioritariamente, jurídica e aquilo que cabe à psiquiatria - e, neste contexto, penso que é importante dar este testemunho - é procurar, e penso que há, um consenso muito alargado, independentemente até das escolas e das correntes que estejam por trás da nossa formação enquanto médicos psiquiatras, quanto à necessidade de elaboração de uma lei de saúde mental que regulamente e trate de facto deste assunto dos internamentos compulsivos. Esta é uma situação que se nos coloca com muita frequência e com uma pertinência muito grande na nossa actuação prática, quer seja em termos de urgência, quer por aquilo que,
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em termos de ambulatório ou da nossa ligação às instituições psiquiátricas, vamos tendo conhecimento da descompensação psicopatológica de determinados doentes, cuja necessidade de pôr em prática um tratamento é, de facto, porventura, uma das formas de defesa da própria situação desses doentes. Lembro aqui casos que são conhecidos e que, publicamente, têm sido divulgados do desfecho fatal quer para terceiros, relativamente a indivíduos perturbados do ponto de vista psicopatológico, quer inclusive daquilo que são as agressões de que eles próprios são vítimas - e este caso de Quebradas, do linchamento daquele doente mental, é exemplo paradigmático desta situação.
A psiquiatria tem tido, e penso que todos nós, os que aqui estamos, de uma forma ou de outra, relativamente a estes trabalhos, desta relação com a justiça, alguma prudência no sentido de, perante a necessidade, essa lei ter de acautelar, por um lado, esta defesa dos direitos e das liberdades individuais e, por outro, a protecção do todo social. Penso que os psiquiatras, ao defenderem também esta necessidade da lei, não perderam de vista a prudência das cautelas que hão-de ser necessárias nesse texto legal que possa vir a tratar deste assunto. O que, a meu ver, há - e reforço esta ideia - é um consenso quanto à grande necessidade de haver uma lei de saúde mental entre nós, e penso que somos dos poucos países da Comunidade que não temos uma lei de saúde mental. A Lei n.º 2118, de 3 de Abril de 1963, era uma boa lei, penso até que tem sido, no seio deste Grupo de Trabalho, uma boa base, um bom ponto de partida para as discussões que temos tido, mas é verdade que, quanto aos conceitos, e cabe-me também aqui, nesta intervenção, dizê-lo, há alguma coisa que está desactualizada.
Também gostaria de deixar aqui este testemunho: hoje, felizmente, a psiquiatria não é a psiquiatria dos anos 50 ou dos anos 60, mesmo aquela que é feita em hospitais psiquiátricos. Hoje, temos um leque de opções, em termos de intervenção terapêutica, que nos permite lidar com a doença mental, principalmente naquilo que era convencionalmente designado por psicoses e que poderíamos traduzir aqui por doenças da realidade, onde a nossa intervenção, seja ela do ponto de vista psicofarmacológico, seja ela no sentido psicoterapêutico e na perspectiva da reintegração desses doentes, tem mecanismos que são bem diferentes daquilo que se passava há uns anos atrás.
Perante esta proposta, que também foi discutida e consensualmente aceite no seio deste Grupo de Trabalho, reforço esta designação de portador de anomalia psíquica para fugirmos a este estigma, a este rótulo de doente mental. É, aliás, uma terminologia adoptada noutros ordenamentos jurídicos entre nós - e, a meu ver, bem -, porque é suficientemente amplo. E, permitam-me este parêntesis, é preciso que haja esta discussão, este confronto, o que, em minha opinião, tem faltado, entre médicos e psiquiatras e os juristas no sentido de darmos conta das nossas angústias, das nossas dificuldades, no lidar com determinado tipo de situações, que estão, enfim, a necessitar deste fundamento legal.
O conceito de portador de anomalia psíquica definido à luz daquilo que são as classificações internacionais, seja a classificação internacional das doenças da Organização Mundial de Saúde, seja a classificação americana, que, de alguma forma, utilizamos (são textos que utilizamos na nossa prática clínica), permite-nos falar quer dos transtornos quer dos distúrbios e não tanto de doença, que é uma designação que hoje, na prática, tem menos sentido do ponto de vista classificativo.
Para já, era isto que eu pretendia dizer, e termino com o reforço da ideia com que o Sr. Dr. Dantas terminou a sua intervenção a propósito desta "perigosidade" pré-delitual, que não colhe para efeitos de aplicação de medidas de segurança, e da necessidade urgente de podermos, do ponto de vista da intervenção, na tal perspectiva do tratamento, seja ele em regime de internamento, seja ele em regime ambulatório, dar também resposta a essas situações.
Se o Sr. Presidente o permitir, gostaria de pedir aos Srs. Drs. Jaime Milheiro e Jorge Costa Santos para completarem aquilo que eu disse.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Dr. Jaime Milheiro.
O Sr. Dr. Jaime Milheiro (Grupo de Trabalho para a Revisão da Lei de Saúde Mental): - Sr. Presidente, não sei se vale a pena nesta altura, talvez depois, se houver algum tipo de debate ou discussão. Nessa altura, gostaria de intervir, naturalmente, mas, agora, creio que já foi dito o fundamental.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Dr. Jorge Costa Santos.
O Sr. Dr. Jorge Costa Santos (Grupo de Trabalho para a Revisão da Lei de Saúde Mental): - Sr. Presidente, não quero de forma alguma repetir aquilo que foi dito pelos oradores que me antecederam, e estou rigorosamente de acordo com o essencial do que foi dito.
Ainda assim, gostaria de enfatizar este aspecto, que é importante: o drama (não direi que se trate, necessariamente, de um drama quotidiano mas que, ainda assim, tem o seu quê de drama) de situações que, com muita frequência, acontecem nos serviços de urgência hospitalares, nomeadamente naqueles que têm urgência psiquiátrica, em que os médicos se vêem perante um doente portador de uma anomalia psíquica grave, que está desrealizado, que está numa situação de corte ou de ruptura com o real, que não tem consciência do seu estado, que recusa o internamento, e, para nós, médicos, é evidente que ele não reúne condições, capacidade de discernimento, juízo crítico para decidir - todavia, recusa-o -, e eu diria que a atitude do médico perante uma situação destas passa muito pelo médico e pelo estabelecimento hospitalar. Por outras palavras, nesta área reina uma discricionariedade que me parece claramente indesejável, perturbadora do funcionamento das instituições, lesiva da responsabilidade dos médicos e também da comunidade. Existem casos, que eu diria suficientemente elucidativos e que foram largamente divulgados pela imprensa, de doentes mentais que, nestas situações de descompensação ou de surto, foram tratados no contexto da urgência, que, por terem recusado o internamento, foi-lhes concedida alta e cometeram crimes graves, alguns de homicídio, na sequência imediata deste tipo de situações.
Usei da palavra apenas para colocar esta tónica e, de alguma forma, reforçar aquilo que foi dito, pondo-vos perante situações concretas do quase quotidiano ou que, pelo menos, com alguma frequência ocorrem no contexto de urgência, não apenas no contexto de urgência hospitalar, porque estas situações podem configurar-se fora das urgências hospitalares.
Era esta a mensagem que eu queria deixar.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, acabam de ouvir os membros do Grupo de Trabalho para a Revisão da Lei de Saúde Mental. Como se aperceberam, é um Grupo composto por juristas, o Dr. Jorge Costa, o Dr. António Leones Dantas e a Dr.ª Maria João Antunes, e por psiquiatras, o Dr. Francisco Santos Costa, o Dr. Jaime Milheiro e o Dr. Jorge Costa Santos, todos de institutos de psiquiatria e de instituições de saúde públicas, e, tal como anunciaram, fazem uma formulação alternativa para a proposta que o PS apresentou para a alínea f) do artigo 27.º. Assim, onde o PS propõe "o internamento de doente mental
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como tal qualificado por tribunal judicial, nos termos por este definidos", o Grupo de Trabalho propõe "o internamento de portador de anomalia psíquica…", primeira diferença conceptual, e, depois, "… decretado ou confirmado por autoridade judicial competente", segunda alteração, para prevenir exactamente os casos de urgência, em que o internamento não é decidido pela autoridade judicial mas, sim, confirmado pela autoridade judicial.
Recordo que, nesta primeira leitura da proposta do PS, o PSD manifestou abertura à sua consagração, reservando, porém, a posição quanto à formulação concreta da alínea. Portanto, temos agora uma oportunidade para reavaliarmos a formulação desta proposta.
Tem a palavra a Sr.ª Deputada Maria Eduarda Azevedo.
A Sr.ª Maria Eduarda Azevedo (PSD): - Sr. Presidente, começo por agradecer os esclarecimentos que nos deram sobre esta dramática questão, indiscutivelmente. Penso que a formulação que acabam de sugerir para a alínea f) do artigo 27.º é perfeitamente razoável - e nós iremos reflectir sobre ela - quanto à intervenção do tribunal, e, portanto, à chancela, passe a expressão, do tribunal, face a uma questão de perigosidade quer imediata quer possível, que, no fundo, foi o cenário que aqui foi traçado.
Quando pedi a palavra, para lá de fazer esta afirmação, tinha apenas a intenção de colocar uma questão que não pretendo que seja complementar, porque é inclusive uma matéria que me escapa em termos técnicos. Mas, como, nas vossas exposições, não ouvi falar no papel da família, ouvi falar no doente e no relacionamento doente/médico, gostava de saber qual é o papel da família, pois todos terão família, mais próxima ou mais longínqua. Que papel esta pode ter? E não falo nas situações em que o portador de anomalia psíquica - e, certamente, esta será uma versão mais soft e menos estigmatizante do que "doente mental", para lá do aspecto técnico, que os Srs. Doutores conhecem melhor do que eu -… Mas, enquanto cidadã, tão simplesmente, gostaria de perceber, na tal situação em que ainda não houve uma infracção temível à luz do direito criminal, um comportamento desviante, qual é o papel da família no aspecto da prevenção - porquanto, vejo sempre o binómio doente/médico, e ainda por cima um doente que não pode tomar uma decisão quanto ao seu destino.
Era esta a questão que eu queria colocar, para saber qual é a vossa opinião e como vêem este problema.
O Sr. Presidente: - De acordo com a nossa metodologia de trabalho, haverá uma primeira ronda de perguntas, para permitir uma resposta conjunta.
Assim, tem a palavra o Sr. Deputado Osvaldo Castro.
O Sr. Osvaldo Castro (PS): - Sr. Presidente, em primeiro lugar, quero, em nome do PS, saudar a vossa presença aqui e o contributo que nos parece muito relevante para o afinamento, no fundo, da lei de saúde mental.
Esta proposta - como, certamente, já a terão interpretado e, do meu ponto de vista, correctamente - visa tentar pôr cobro a uma omissão que existia nesta sede e que, por vezes, dava azo a dificuldades de interpretação e a entendimentos divergentes.
De facto, suponho que, em sede de Direito Civil, a expressão utilizada é "portador de anomalia psíquica" - tenho ideia de que, no Código de Processo Civil, é essa a expressão. Portanto, nós não teremos qualquer objecção e, enfim, parece-nos até cientificamente, como já o disseram, muito mais correcto do que a ideia de doente mental. Pensamos que é uma alteração facilmente acolhível, tanto mais que o PSD, como tudo indica, também a irá acolher.
Para nós, houve apenas a preocupação - e, de algum modo, a comissão que está a rever a Lei de Saúde Mental também a tem - de procurar acautelar a situação da intervenção judicial no decretar de quaisquer medidas de internamento compulsivo. Parece-nos que, do texto que está gizado, ainda que em primeira leitura e de que o Sr. Presidente deu conta, é possível também ter em conta a solicitação de internamento compulsivo. Obviamente que, em sede de lei ordinária, com toda a probabilidade, irá ter até um prazo para a confirmação do juiz, mas pensamos que isso, aqui, estará contemplado.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Osvaldo Castro, também dá abertura à segunda alteração sugerida?
O Sr. Osvaldo Castro (PS): - Sim, sim.
O Sr. Presidente: - Que é para os casos de urgência.
O Sr. Osvaldo Castro (PS): - Exacto. Foi isso o que eu disse, Sr. Presidente. Na leitura que fez, parece-me que podemos perfeitamente acolher essa ideia para o internamento compulsivo de urgência.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Roque Cunha.
O Sr. Jorge Roque Cunha (PSD): - Sr. Presidente, de facto, não sou da área do direito, sou o responsável, do PSD, pela área da saúde,…
O Sr. Presidente: - Ainda bem!
O Sr. Jorge Roque Cunha (PSD): - …e, portanto, perdoem-me se as questões que coloco forem, em termos jurídicos, alguns disparates - reconheço as minhas limitações nessa área.
Quanto ao internamento compulsivo ou, mais especificamente, à questão das penas alternativas, por exemplo, em relação à lei da toxicodependência, isto já existe na lei de 1993. Pelas sentenças que me vão chegando, por alguns números, é perfeitamente evidente a grande limitação de uma coisa destas, em termos objectivos, particularmente em relação aos toxicodependentes.
Sei que se tem feito alguma reflexão sobre isto, mas, em minha opinião, reforçando um pouco aquilo que a Sr.ª Deputada Eduarda Azevedo referiu, a família poderá ter aqui um papel importante. É evidente que sabemos que, na prática, muitas vezes, a família leva os doentes ao serviço de urgência para lá ficarem. Portanto, em princípio, essa questão da autorização familiar, quando necessária, normalmente não é muito complicada - pelo menos, é esta a impressão que tenho. No entanto, gostaria que me dissessem alguma coisa sobre isto.
Por outro lado, sabendo de alguma morosidade do nosso sistema judicial, gostaria de saber se, neste processo, entre a confirmação judicial, o internamento propriamente dito e o eventual dolo que essas pessoas poderiam causar a propriedades ou a terceiros, a tal peritagem psiquiátrica não deveria ser configurada. Isto é, não se deveria tipificar as situações em que, nos casos de urgência, o processo poderia ser confirmado?
Por outras palavras, não sei se seria possível haver um conclave de peritos a nível da psiquiatria ou a nível jurídico que dissesse, por exemplo, que, em relação a determinadas situações clínicas, como esquizofrenia ou, enfim, A, B, C ou D, seria aplicável esse tipo de situação quase administrativamente, porque, a meu ver, não se deveria deixar esta decisão exclusivamente ao arbítrio ou à opinião da pessoa que, naquele momento e naquele serviço de urgência, está a tomá-la, pois é uma decisão complicada e que, em termos da própria instituição, também causa
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alguma perturbação. Assim, pergunto: de que forma seria possível agilizar toda esta relação entre peritos, tribunal e decisor, termos de urgência?
Finalmente, em termos objectivos, gostaria de saber se a formulação "portador de anomalia psíquica" será suficientemente abrangente para não deixar de fora eventuais situações que também causem alguns problemas nesta área.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Barbosa de Melo.
O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Sr. Presidente, antes de mais, cumprimento os membros do Grupo de Trabalho para a Revisão da Lei de Saúde Mental e a excelência da apresentação inicial que fizeram. Não vou fazer perguntas que tenham relevância no plano da Constituição, pois parece-me que a proposta que trazem, desde logo pelo seu carácter lapidar e pela abertura às muitas soluções possíveis, é uma boa proposta. Aliás, viu-se já pela reacção dos Deputados que se pronunciaram sobre esta proposta.
Contudo, gostava, se vos for possível, que um de vós fosse ao encontro da preocupação do Deputado Jorge Roque Cunha, no sentido de explicar quais os modelos infraconstitucionais de direito ordinário que se aplicam aí. Que tipos de soluções encontram VV. Ex.as nas leis a que já fizeram referência, nas leis dos países nossos parceiros da União Europeia? Muito rapidamente, que modelos é que se aplicam? Esta é uma matéria que está fora desta discussão, porque é para a lei propriamente dita, mas talvez seja útil para também percebermos bem a importância de mexermos no texto constitucional para cobrir soluções que o bom senso e a prudência legislativa aconselham.
Era este o pedido que vos fazia.
O Sr. Presidente: - Não havendo mais inscrições por parte dos Srs. Deputados, e antes de dar a palavra aos membros do Grupo de Trabalho para responderem às questões colocadas, informo que o Dr. Jorge Costa me pede para precisar que não é presidente do Grupo, porque o mesmo não tem presidente, mas, sim, segundo o despacho conjunto, o coordenador do Grupo de Trabalho para a Revisão da Lei de Saúde Mental, competindo-lhe o acompanhamento e o apoio do mesmo.
O Sr. Dr. Jorge Costa: - Exactamente.
O Sr. Presidente: - Feita esta rectificação, tem a palavra o Sr. Dr. Jorge Costa.
O Sr. Dr. Jorge Costa: - Sr. Presidente, já agora, gostava de complementar as palavras do Dr. Francisco Santos Costa relativamente ao conceito de portador de anomalia psíquica, até porque, se não me falha a memória, o actual artigo 30.º da Constituição fala também em portador de anomalia psíquica. Portanto, até por uma coerência dos textos legais, haveria toda a conveniência, por esta perspectiva jurídica, que não já psiquiátrica, em substituir a expressão "doente mental" por "portador de anomalia psíquica".
Dito isto, pela minha parte, passaria a palavra a outro membro do Grupo de Trabalho.
O Sr. Presidente: - Podemos começar, então, pelos problemas de índole psiquiátrica e depois passaríamos aos problemas de índole jurídica.
Tem a palavra o Sr. Dr. Jaime Milheiro.
O Sr. Dr. Jaime Milheiro: - Sr. Presidente, é com muito gosto que vou dar algumas opiniões minhas, que têm a ver com algumas questões que já tratámos neste Grupo de Trabalho.
Começo por dizer que este Grupo de Trabalho ainda não encontrou a sua fórmula exacta - nós viemos aqui, à Comissão Eventual de Revisão Constitucional, solicitar esta parte, porque ela permite-nos avançar, e também avançar em linhas de direito comparado, conforme o Sr. Deputado Barbosa de Melo há pouco sugeriu. Não temos ainda um texto que seja apresentável, vamos tratando ideias, vamos apresentando algumas, vamos discutindo outras, porque o assunto é, de facto, delicado. E é delicado por duas razões, que, segundo me parece, foram afloradas em algumas intervenções dos Srs. Deputados.
Quando se fala da família e de como isso se passa nas situações de urgência, o que, no fundo, no fundo, se está a temer são as situações de abuso, aquelas em que, não havendo um parecer técnico suficientemente fundamentado, ou não havendo um técnico suficientemente fundamentado para trabalhar naquela situação, ou faltando qualquer coisa, as pessoas possam ser encaminhadas de uma forma abusiva, e a história dá-nos exemplos de muitas situações destas. Logo, temos de pensar, de reflectir e de prever profundamente para não cair em textos que possam não ter, digamos assim, as válvulas de controlo suficientes para isto. Este é um aspecto fundamental para o psiquiatra, porque o psiquiatra está, naturalmente, talvez mais do que outras pessoas, na defesa do doente. E muitas vezes, a questão da família coloca-se em vários ângulos, e, muitas vezes, é uma questão de pura rejeição de uma pessoa que não faz mal a ninguém, cuja perturbação não é suficientemente perigosa para ele ou para a família. É, afinal, apenas vítima de um acto de rejeição de alguém; é alguém que está em casa e que não produz, por exemplo.
Ora bom, quero lembrar aqui que este Grupo de Trabalho começou a pensar nisto, mas vai pensar mais ainda - é a minha leitura - nas "válvulas" de segurança e de controlo de tudo isto.
Em relação, por exemplo, ao direito comparado, lembro desde já que, em todas as legislações dos nossos parceiros europeus, existe este tipo de lei ou este tipo de internamento com designações diversas, ao abrigo das recomendações do Conselho Europeu, recomendações últimas de 1994. Mas todos os países nossos comuns estão a trabalhar nesta área e alguns já têm legislação que se adapta bastante bem a isto, mas é sempre referido que tudo isto que estamos aqui a falar são zonas e situações clínicas e judiciais absolutamente de excepção - e isso também tem de estar registado nas alíneas da lei. Tratam-se de situações muito de excepção, porque há todos os outros processos de internamento dos doentes com anomalias psíquicas que não passam por este crivo, que não passam por uma situação compulsiva para o seu internamento.
Lembro ainda, por exemplo, que até em Inglaterra, numa lei muito recente, de 1983, que é o Acto de Saúde Mental, como eles lhe chamam, se vai ao ponto de, em determinadas circunstâncias, perante um doente que foi internando pelo processo normal, por um registo voluntário - voluntário ou, enfim, acompanhado pela família, que é o que, muitas vezes, acontece na prática -, e que quer requerer alta naquela hora, naquele minuto, e tem esse direito (são os direitos dos cidadãos, apesar de doentes mentais), a enfermeira psiquiátrica de uma enfermaria de psiquiatria ter o direito, ao abrigo desse Acto de Saúde Mental, de o reter durante seis horas, até à chegada de peritos psiquiátricos que possam, através do seu relatório, da sua opinião técnica e administrativa, fazer com que a situação de internamento ordinário, situação em que se encontrava, passe a internamento compulsivo.
Isto é apenas para lembrar que os psiquiatras, quando pensam nestas questões - e ainda é necessário haver internamentos compulsivos; são cada vez mais raros, mas ainda são necessários -, pensam também em todas as válvulas de
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controlo que possa haver, no sentido de evitar o abuso e de, em minha opinião, evitar uma excessiva judicialização (desculpem-me se o termo não é correcto) destas questões. Esta é uma questão técnica, uma questão administrativa, uma questão judicial, mas para nós, médicos, é também uma questão da defesa do doente e da defesa da família, obviamente.
O Sr. Presidente: - Mas há também uma questão de liberdade, e, portanto, uma questão de garantias.
O Sr. Dr. Jaime Milheiro: - Claro. Foi por isso que cá viemos.
O Sr. Presidente: - Antes de dar a palavra ao Sr. Dr. Francisco Santos Costa, peço-vos para serem breves, porque tenho o compromisso, para com alguns Srs. Deputados, de terminar esta reunião às 13 horas.
Tem a palavra, Sr. Dr. Francisco Santos Costa.
O Sr. Dr. Francisco Santos Costa: - Sr. Presidente, vou ser muito rápido.
Sr. Deputado Jorge Roque Cunha, o conceito de anomalia psíquica é, de facto, abrangente, e nele cabe toda a vasta gama de patologia psiquiátrica.
Vou ser breve, mas não posso deixar passar em claro o apontamento que a Sr.ª Deputada Maria Eduarda Azevedo nos traz, relativamente à família. Sr.ª Deputada, quem lida com estas situações na prática, no dia-a-dia, não tem tanto a noção, a não ser que sejam casos de alguma debilidade mental ou situações de gerontopsiquiatria, casos demenciais, por exemplo, do que é a família para este tipo de doente. Até mesmo quando se fala no paradigma que é a esquizofrenia no conjunto da patologia mental, mesmo nestes casos, costumo dizer que o esquizofrénico não é um marciano, ele mantém a afectividade e a própria família mantém, relativamente a ele, uma afectividade muito grande. Jamais estas famílias trazem o doente no sentido de o despejar, de o deixar ficar ao cuidado do médico ou metê-lo no hospital psiquiátrico, nesta noção de asilo, que, enfim, alguns ainda têm, como resquício dessa realidade asilar que foram no seu passado.
Esta família, quando nos chega ou quando, sem o doente, vem ter connosco, está a viver um verdadeiro drama, porque, em muitos desses casos, são os de casa, por via da sua descompensação, no tal corte com a realidade, aqueles que estão mais próximos, aqueles que, muitas vezes, estão envolvidos na sua actividade delirante - seja a mãe, seja o pai. Tanto mais que são estes que, depois, são as vítimas, quando o indivíduo passa ao acto. E aquilo que se passa, quando vêm ter connosco, é darem-nos conta do drama, dizendo-nos: "Sr. Doutor, o que é que podemos fazer? Fui à GNR, fui ao Ministério Público e não me deram resposta!". E nós, médicos, também temos de dizer a essa família, angustiada perante o problema daquele seu familiar, com quem têm uma ligação, apesar de tudo, afectiva, no sentido de o tratarmos: "Provavelmente, temos resposta para ele…". Mas a verdade é que eu não o posso ir buscar, para efeitos de tratamento. Agora, o que podemos fazer, Sr.ª Deputada, é, apesar de tudo, com bom senso, com estas cautelas - e estou inteiramente de acordo com aquilo que o Dr. Jaime Milheiro aqui disse, tanto mais que a própria Lei n.º 2118 já tinha essas "válvulas" de segurança, de controlo -, dar as bases e a forma (e penso que o Sr. Dr. Dantas terá oportunidade de também dar conta disto, que é uma preocupação deste Grupo de Trabalho) como acautelar, fiscalizar, relativamente ao diagnóstico, à situação de anomalia, aquilo que, depois, é a situação em termos da evolução do próprio tratamento e da sua validade, da importância desse tratamento.
De qualquer modo, gostaria de dizer que a família, quando vem ter connosco, vem com esta angustia muito grande, vive este drama, e nós tentamos, na prática, mais do que nada fazer, porque também muitas vezes o facto de não haver diplomas legais que suportem a nossa actuação relativamente ao tratamento cria fantasmas que vêm contaminar esta discussão a propósito do consentimento do doente - o doente está incapaz de consentir, mas pergunto se ele está incapaz só de consentir ou de dissentir, e a situação coloca-se nos dois casos, até porque, se o quadro é psicopatológico, é esta situação que está em causa -, e deixar que, depois, aconteçam os tais desfechos, os tais actos ilícitos que permitem a aplicação de medidas de segurança por via penal, apesar de tudo com bom senso, conseguir, através da relação terapêutica, desde logo na actuação, tanto quanto for possível, com a nossa equipa de serviço social, etc., que aquele doente venha falar connosco e, eventualmente, aceite a nossa proposta de tratamento.
Por último, felizmente, no nosso País também já existem associações de familiares e de doentes, que são parceiros extremamente importantes e que temos de ouvir nesta discussão.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Dr. António Leones Dantas.
O Sr. Dr. António Leones Dantas: - Sr. Presidente, no que se refere à intervenção da família, penso que o Sr. Dr. Santos Costa já disse aquilo que é fundamental.
Em termos de estruturação da lei, pois é óbvio que à família e aos familiares mais directos, aos herdeiros, no fundo, terá de se encontrar um conjunto de pessoas que tenham, ao fim e ao cabo, legitimidade para recorrer ao tribunal e pedir que seja aplicada este tipo de medidas.
Portanto, a família é a grande vítima destas situações, não há dúvidas algumas sobre isto, e tem um papel decisivo, a meu ver, no acompanhamento da situação médica do doente - este é um terreno que é mais para os médicos abordarem do que para a perspectiva jurídica. E enquanto esse papel de acompanhamento da família funcionar não é sequer a altura de entrar o Direito. O Direito só entra na altura em que a família já perdeu o controlo de levar o doente a recorrer aos serviços médicos e à assistência; ou seja, o papel do tribunal vai aparecer na altura em que o papel da família acaba. Da mesma forma, sempre que seja possível que a família intervenha e esteja em condições de garantir o tratamento, é óbvio que o papel da instância formal desaparece outra vez - essa já será a altura de cessar o internamento compulsivo e de o doente regressar ao seu ambiente familiar.
Quanto a isto, penso que o fundamental está dito.
Relativamente aos modelos em termos de direito comparado, que abordam esta matéria, basicamente, estão em causa dois modelos: um de tipo administrativo, em que são as autoridades administrativas - no fundo, os presidentes de câmaras municipais, os comandantes da polícia - que têm competência para aplicar este tipo de medida, sempre, nas situações normais, com base em perícia psiquiátrica, no parecer, no apoio do estudo da situação concreta feito pelos médicos psiquiatras. Aliás, todas as recomendações internacionais são explícitas neste sentido.
Nas situações onde a privação da liberdade ocorre sem a intervenção do psiquiatra, que são os casos de urgência, também há recomendações internacionais explícitas. Por exemplo, tenho aqui a recomendação do Conselho da Europa de 1983 sobre esta matéria, que diz, expressamente, no seu artigo 4.º, que, em caso de urgência, o paciente pode ser admitido e retido num estabelecimento com base na decisão do médico, que, mesmo assim, deverá comunicar de imediato à autoridade judiciária ou administrativa competente - esta recomendação admite as duas soluções -, para que essas autoridades decidam se, efectivamente, o internamento se mantém ou não.
Em termos de abordagem e de soluções de fundo para isto, não há dúvidas nenhumas de que, nas situações normais,
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seja uma autoridade judicial - e é neste sentido que aponta a nossa proposta e, por várias razões que ainda não foram aqui abordadas, penso que é a melhor solução.
Mas, enfim, seja o modelo judicial, seja o modelo administrativo, sempre, o parecer do médico psiquiatra tem de aparecer como suporte da decisão.
Nas situações de urgência, a pessoa poderá ser conduzida a um estabelecimento hospitalar e aí retida, seja como for - é o terreno da confirmação, da detenção. No fundo, a privação da liberdade só se manterá se quem for competente, no caso concreto e de acordo com a proposta que apresentámos são os tribunais, entender que há motivo para se manter aquela privação da liberdade. Porém, o tribunal, para decidir, é óbvio, tem de se apoiar - independentemente do resto, da integração nas circunstâncias do facto, de todos os elementos necessários para formular a sua decisão - no parecer do psiquiatra. Não vamos exigir aos magistrados deste país que sejam médicos psiquiatras e que dominem os princípios fundamentais da psiquiatria.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sr.ª Dr.ª Maria João Antunes.
A Sr.ª Dr.ª Maria João Antunes: - Sr. Presidente, vou utilizar só um minuto, apenas para destacar duas coisas: também no Direito Penal o conceito usado é o de anomalia psíquica. O Sr. Deputado Osvaldo Castro falou no Direito Civil, o Sr. Dr. Jorge Costa relembrou o artigo 30.º da Constituição, mas também em Direito Penal o conceito usado é o de anomalia psíquica, nomeadamente para o efeito da declaração de inimputabilidade. É, portanto, mais um argumento no sentido de dever ser utilizada a expressão "anomalia psíquica".
Ora, o que está aqui em causa - e chamo a atenção para isto - é o facto de, hoje, no nosso país, por falta de lei ou de não aplicação da lei, por, enfim, todos os problemas que se colocam relativamente à lei de 1963, estarmos perante uma situação absolutamente caricata, que é a de esperar pela prática de um facto ilícito típico, que, como se sabe, lesa bens jurídicos, para, então, termos legitimidade, nos termos do artigo 27.º da Constituição, para internar compulsivamente um indivíduo, porque lhe ter sido aplicada, se ele for criminalmente perigoso, uma medida de segurança de internamento.
No fundo, o objectivo da nossa lei, da lei que pretendemos fazer, é o de acabar com esta situação absolutamente caricata e que realmente não existe em nenhum dos países que nos são próximos, pois em todos esses países se permite uma forma de fazer face a essas situações, uma forma preventiva, não se espera pela prática do facto ilícito típico para intervir.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Dr. António Leones Dantas.
O Sr. António Leones Dantas: - Sr. Presidente, quero referir-me à questão do prazo para a confirmação, que o Sr. Deputado Osvaldo Castro avançou.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Quando se fala de internamentos normais, por via judicial, a questão não se coloca. No entanto, relativamente às situações de urgência, vai colocar-se o problema do prazo; terá de se saber se o prazo é o do artigo 28.º, ou não, e se o artigo 28.º não terá eventualmente de ser adequado para também salvaguardar esta situação. Uma coisa é certa, o internamento não é "recondutível" ao conceito de prisão sem culpa formada, que se encontra no n.º 1 do artigo 28.º.
A Convenção Europeia dos Direitos do Homem diz, mais ou menos, isto: qualquer pessoa privada da sua liberdade, por decisão ou detenção, tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal. O curto prazo de tempo, de acordo com a jurisprudência do Tribunal para os Direitos do Homem, tem sido cinco dias. Portanto, se a Comissão entender que o prazo é de cinco dias, que o prazo é de 48 horas, conforme está no artigo 29.º, os fundamentos são diversos, isso é um problema menor.
Nós, ao nível do Grupo de Trabalho, não nos debruçámos sobre essa questão, mas é uma questão que a Comissão Eventual para a Revisão Constitucional vai ter de ponderar.
O Sr. Presidente: - Agradeço aos Srs. Deputados e aos Srs. Membros do Grupo de Trabalho para a Revisão da Lei de Saúde Mental a vossa presença e a cooperação prestada.
Antes de dar por encerrada a reunião, lembro que a proposta que a Comissão tinha discutido, por iniciativa do projecto de revisão constitucional do PS, adoptava claramente o modelo judicial. É gratificante vermos que esta opção tem o apoio do Grupo de Trabalho.
Quanto à reformulação concreta da lei, não nos podemos esquecer que ela é matéria da competência reservada da Assembleia da República, pelo que nós, Deputados, acabaremos sempre por ter de voltar ao desenho concreto que o Grupo de Trabalho proponha e que o Governo adopte como proposta de lei à Assembleia da República.
Srs. Deputados, está encerrada a reunião.
Eram 13 horas.
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