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Quarta-feira, 30 de Abril de 1997 II Série - RC - Número 82

VII LEGISLATURA 2.ª SESSÃO LEGISLATIVA (1996-1997)

IV REVISÃO CONSTITUCIONAL

COMISSÃO EVENTUAL PARA A REVISÃO CONSTITUCIONAL

Reunião de 29 de Abril de 1997

S U M Á R I O


O Sr. Presidente (Jorge Lacão) deu início à reunião às 15 horas e 50 minutos.
Relativamente à problemática da extradição (artigo 33.º) intervieram, a diverso título, além dos Srs. Ministros da Justiça (José Vera Jardim) da Presidência e da Defesa (António Vitorino), do Sr. Procurador-Geral da República (Cunha Rodrigues), do Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (Sousa Macedo) e do Sr. Presidente do Tribunal Constitucional (Cardoso da Costa), os Srs. Deputados Barbosa de Melo (PSD), José Magalhães (PS), Guilherme Silva e Moreira da Silva (PSD), António Filipe (PCP), Medeiros Ferreira (PS), ), Luís Marques Guedes (PSD), Odete Santos (PCP), e Calvão da Silva (PSD).
O Sr. Presidente encerrou a reunião eram 20 horas e 55 minutos.

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O Sr. Presidente (Jorge Lacão): - Srs. Deputados, temos quórum, pelo que declaro aberta a reunião.

Eram 15 horas e 50 minutos.

Como todos sabemos, estão previstas para hoje audições ao Sr. Ministro da Justiça, ao Sr. Ministro da Presidência e da Defesa Nacional, ao Sr. Procurador-Geral da República e aos Srs. Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional em torno da matéria relativa ao artigo 33.º da Constituição e, particularmente, à problemática da extradição.
Aproveito para cumprimentar e agradecer a presença dos Srs. Ministros da Presidência e da Defesa Nacional e da Justiça, que foram, por entendimento unânime da Comissão, convidados a partilhar connosco algumas reflexões sobre o tema, com a finalidade de procurarmos, na sequência, aliás, de uma reflexão alargada tida na fase da primeira leitura dos projectos da revisão constitucional, ponderar o alcance da norma actualmente em vigor na Constituição Portuguesa sobre a proibição da extradição por crimes a que corresponda a pena de morte, a possibilidade de rever este dispositivo, designadamente tendo em vista outras realidades, como sejam as da prisão perpétua, e também as possibilidades de actualização da norma face àqueles que são os compromissos externos do Estado português no domínio do combate ou da prevenção do crime. Nessa medida, a presença dos Srs. Ministros da Presidência e da Defesa Nacional e da Justiça é particularmente importante para ajudar a Comissão neste processo de reflexão.
Os Srs. Ministros usarão da palavra, se assim o entenderem, para um depoimento inicial sobre a matéria e, depois, seguir-se-ão os pedidos de esclarecimento que os Srs. Deputados tenham por convenientes.
Tem a palavra o Sr. Ministro da Justiça.

O Sr. Ministro da Justiça (José Vera Jardim): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: É com muito prazer que aqui estou neste Parlamento, como sempre, agora a propósito dos trabalhos da revisão constitucional e mais especificamente, como o Sr. Presidente disse, das matérias da extradição.
Penso que o meu depoimento poderá, porventura, ter mais utilidade para os Srs. Deputados se eu puder dar uma visão dos trabalhos que têm estado a ser seguidos no âmbito da União Europeia, designadamente em matéria de cooperação judiciária de natureza penal e em matéria de extradição.
Há relativamente pouco tempo, tiveram VV. Ex.as oportunidade de discutir e votar, neste Parlamento, uma convenção da União Europeia, que é a Convenção relativa ao Processo Simplificado de Extradição, convenção já assinada por Portugal em 1995, como, aliás, pelos restantes Estados-membros, e que não tem directamente a ver com este problema.
Pouco tempo depois da assinatura desta Convenção, terminaram os trabalhos sobre uma convenção genérica, entre os Estados-membros da União Europeia, relativa à extradição, não apenas ao processo simplificado de extradição, que foi o que já veio ao Parlamento, mas sobre a extradição em geral. É a chamada Convenção de Dublin, que, dentro de pouco tempo, penso que até ao fim do ano, virá aqui ao Parlamento para os Srs. Deputados a poderem discutir e votar.
A propósito dessa Convenção, precisamente porque a sua assinatura foi posterior a um acórdão do Tribunal Constitucional, que veio, digamos, de certo modo, criar doutrina sobre alguma problemática da extradição, Portugal teve de fazer reservas no quadro da discussão dessa Convenção, porque tinha um conjunto de limitações advindas desse acórdão do Tribunal Constitucional, que é vulgarmente conhecido por "Acórdão Varizo".
Efectivamente, nesse "Acórdão Varizo", discutia-se um problema de extradição para os Estados Unidos da América por um crime a que poderia caber, em abstracto, uma pena de prisão perpétua. Se confrontarem o texto desse acórdão, a verdade é que, perante um conjunto de garantias dadas quer pelo Ministério Público quer pelo magistrado judicial, verificarão que o acórdão acabou por se inclinar para negar a extradição, visto que, embora existissem essas garantias, era sempre teoricamente possível que a prisão perpétua fosse aplicada.
Não vou, obviamente, maçar os Srs. Deputados com leituras longas do acórdão, mas dele se deduz, com clareza, que, desde que seja teoricamente possível a aplicação de uma pena de prisão perpétua, a verdade é que, mesmo com as garantias, que, neste caso, eram dadas quer pelo acusador público - o Ministério Público - quer pelo juiz do processo - e apesar de, neste caso, haver outros co-réus, porventura com responsabilidades agravadas em relação a esse arguido, que não tinham sofrido penas de prisão perpétua, tendo o juiz condenado a multas até vinte anos e dito que não condenaria -, mesmo assim, é evidente que era juridicamente possível e admissível que acabasse por haver uma pena de prisão perpétua, no entender do Tribunal Constitucional.
Este acórdão do Tribunal Constitucional veio, pouco tempo depois, a dar lugar a um outro acórdão, esse do Tribunal da Relação de Lisboa, em que os Srs. Magistrados partiram do mesmo princípio, seguindo o acórdão do Tribunal Constitucional, dizendo: "Perante a hipótese de uma pena aplicável em abstracto, no fundo, este acórdão chega à conclusão de que, por mais garantias que sejam dadas, não poderá haver extradição". Aliás, o acórdão é até crítico em relação à doutrina do Tribunal Constitucional, mas a verdade é que, mesmo criticando-a, não consegue furtar-se a ela.
A partir destas decisões, começámos a ser confrontados, no quadro da União Europeia, com uma situação difícil. Efectivamente, vários países levantaram o problema de, a ser assim, Portugal não estar em condições de assegurar o cumprimento da Convenção de Aplicação do Acordo Schengen. Efectivamente, em relação ao artigo 5.º da Convenção de Aplicação do Acordo Schengen, Portugal fez uma reserva que diz o seguinte: "A República Portuguesa não concederá a extradição de pessoas quando reclamadas por infracções a que corresponda pena ou medida de segurança com carácter perpétuo. Todavia, a extradição será concedida sempre que o Estado requerente assegure promover, nos termos da sua legislação e da sua prática, em matéria de execução das penas, as medidas de alteração de que poderia beneficiar a pessoa reclamada".
Ora, tendo esta Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen sido assinada e ratificada por Portugal, nas reuniões, quer dos Conselhos JAI, quer, sobretudo, de Peritos,

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começámos a ver serem-nos levantadas dúvidas sobre se Portugal estaria, então, em condições de assegurar que cumpriria aquilo que tinha assinado há três anos, ou seja, a Convenção de Aplicação de Schengen.
Este, porventura, é o problema mais visível e aquele que mais interessa aos Srs. Deputados.
Por isso mesmo, em relação a essa Convenção Europeia, a que chamarei agora, por facilidade de exposição, a Convenção de Dublin, fizemos uma reserva, que vou ler a VV. Ex.as, que diz o seguinte: "Tendo formulado uma reserva à Convenção de Extradição de 1957,…" - que é a antiga convenção europeia de extradição - "… segundo a qual não concederá a extradição de pessoas reclamadas por um crime a que corresponde a uma pena ou uma medida de segurança com carácter perpétuo, Portugal declara que, nos casos em que o pedido de extradição se baseie numa infracção a que corresponde a tal pena ou medida de segurança, apenas concederá extradição respeitadas as disposições pertinentes da sua Constituição, conforme interpretadas pelo seu Tribunal Constitucional, se considerar suficientes as garantias prestadas pelo Estado-membro requerente de que aplicará, de acordo com a sua legislação e a sua prática em matéria de execução de penas, as medidas de alteração de que a pessoa reclamada possa beneficiar". Ou seja: tivemos de acrescentar nesta reserva uma referência à interpretação do Tribunal Constitucional acerca do texto constitucional.
Perante isto, todos os Estados da União Europeia, unanimemente, nos pediram que fizéssemos uma declaração adicional quanto aos compromissos que Portugal tinha assumido no quadro de outras convenções, o que fizemos, e reza assim: "Portugal reitera a validade dos compromissos subscritos nos acordos internacionais a que está vinculado e em particular com base no artigo 5.º da Convenção da Adesão de Portugal à Convenção de Aplicação de Schengen". Esta declaração justificou-se por se ter levantado, em muitos Estados, a dúvida sobre se Portugal, face à jurisprudência do Tribunal Constitucional, estaria em condições de continuar a cumprir ou mesmo de cumprir a Convenção de Aplicação de Schengen.
Este é, portanto, o problema com que estamos confrontados, que é o problema da extradição para países da União Europeia no quadro dos acordos convencionais já assinados e ratificados por Portugal e dos assinados mas não ratificados, e que VV. Ex.as terão oportunidade de apreciar quando vos forem apresentados, e respeitam à última convenção de extradição, que é esta de que acabei de ler a reserva que fizemos.
Esta situação é complexa. E recordo o caso de um cidadão jugoslavo que foi condenado na Alemanha a uma pena de prisão perpétua e que, meses depois, foi encontrado em Portugal, que, não lhe tendo sido concedida a extradição - é o acórdão do Tribunal da Relação que já referi -, teve de ser solto. Este caso, como VV. Ex.as estarão, porventura, recordados, deu algum brado, sobretudo na Alemanha, e foi a partir daí que alguns jornais escreveram - o que é, manifestamente, falso - que Portugal se tornaria um asilo para criminosos na União Europeia. Obviamente que não se trata disso, mas, naturalmente, a imprensa de alguns países explorou essa situação.
Se os Srs. Deputados assim o entenderem, penso que a revisão constitucional poderia ser uma boa oportunidade para podermos clarificar as coisas, indo ao encontro daquilo que é a nossa tradição, a nossa cultura jurídica nesta matéria, ou seja, continuando a não admitir a extradição para países onde seja aplicada a pena de prisão perpétua, a não ser que nos sejam dadas garantias de que essa pena será comutada ou alterada para outro tipo de pena.
O segundo problema que se nos tem posto a propósito da extradição é o que se refere à extradição de cidadãos portugueses. Como sabem, consta do nosso texto constitucional a proibição de extradição de cidadãos portugueses.
Quais os fundamentos? E será que esses fundamentos se mantêm ainda na sua integralidade, face a um quadro novo de inserção de Portugal num espaço aberto sem fronteiras, na Europa?
Esta norma, tal como a interpreto, não tem a ver com direitos, liberdades e garantias, porque esses estão assegurados, na própria lei da extradição, por um conjunto de condições para que a ela se possa dar, e tem o seu fundamento, naturalmente, numa concepção do direito punitivo relativo aos nacionais que sejam encontrados no Estado de que são nacionais, independentemente do local da prática do crime.
Penso que é de perguntar se, neste momento, este princípio continuará num contexto novo de combate a formas de criminalidade altamente organizada e que obedecem, em muitos casos, a estratégias de dimensão internacional, europeia ou ainda mais ampla.
Será que esta norma dá resposta aos objectivos de responsabilização penal dos agentes de crimes? Refiro-me, em especial, àquilo que hoje se conhece pela criminalidade organizada, que engloba um conjunto de crimes: tráfico de estupefacientes, tráfico de pessoas, armas, corrupção e fraude, terrorismo, etc.
Penso que devemos ter em atenção - e deixo isto à consideração dos Srs. Deputados - um princípio, que é o princípio do exercício da competência pelo Estado que está em melhores condições para o exercício da acção penal em criminalidade deste tipo.
Trata-se, nestes casos - refiro-me sempre a estes casos de criminalidade organizada -, de processos que englobam, muitas vezes, cidadãos de vários Estados e redes que se entendem em vários países, podendo a recusa da extradição de nacionais colocar em causa o próprio poder punitivo.
Não me parece que seja suficiente, como alguns podem defender, o julgamento e condenação por cada Estado onde o agente do crime seja encontrado, visto que, como é sabido, nestes crimes que trazem consigo geralmente a associação criminosa - crimes organizados -, é importante, para várias matérias, mas sobretudo para a da matéria de prova, que o julgamento se efectue ao mesmo tempo e no mesmo local. Não chega julgar estas várias pessoas em vários países e em ocasiões diferentes, podendo até, em certos casos, violar-se com isso um princípio penal ne bis in idem, que também é aceite pelo nosso sistema jurídico.
Por outro lado, pergunto-me se este princípio da proibição da extradição de nacionais - que, diga-se de passagem, pelo menos um outro Estado da União Europeia, a Alemanha, também tem na sua Constituição, e talvez tenha sido essa Constituição que influenciou a portuguesa

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estará hoje em plena sintonia com o desenvolvimento do conceito de cidadania europeia, que não se dirige apenas a um conceito cheio de direitos, mas também de deveres, ou seja, trata-se de um conjunto de direitos e deveres que importa salvaguardar.
Pergunto-me ainda se este princípio poderá fazer face a problemas cada vez mais existentes, sobretudo num país como o nosso, com um conjunto de cidadãos emigrados noutros países, com princípios de dupla nacionalidade, em relação aos quais vários Estados poderão reclamar, face ao mesmo princípio da nacionalidade, o exercício do seu próprio poder ou direito punitivo.
Trata-se de um conjunto de reflexões que deixo à consideração dos Srs. Deputados.
Precisamente por isso, a propósito desta Convenção, Portugal discutiu, naturalmente, com os outros Estados da União Europeia, tendo ficado prevista na Convenção a possibilidade de não extradição de nacionais, mas ficou também previsto um sistema em que, de cinco em cinco anos, se procederá a uma informação à União por parte dos vários Estados que não extraditam nacionais, para que se possa fazer - é essa a intenção dos vários Estados, a começar pela Alemanha, que, repito, tem também na sua Constituição um princípio de não extradição de nacionais -…
Consta no artigo 7.º dessa Convenção, que é a última convenção europeia, que já assinámos, mas que ainda não foi ratificada, que as reservas têm um prazo de validade de cinco anos, a contar do primeiro dia de aplicação da convenção, embora possam ser renovadas por períodos sucessivos com a mesma duração.
Foi esta a solução de compromisso que se encontrou, no quadro de discussão desta Convenção, para salvaguardar a posição de Estados, como Portugal, Alemanha e outros, que têm no seu ordenamento jurídico interno ou até mesmo no seu texto constitucional a proibição de extradição de nacionais.
Portanto, a posição de Portugal em relação a este problema ficou defendida e, por isso, temos possibilidade de fazer uma reserva quando houver a discussão e a ratificação desta Convenção, e teremos de a fazer, obviamente, no quadro do nosso direito constitucional actual, mas o problema ficará em aberto para, no futuro, haver esta possibilidade de, de 5 em 5 anos, a reserva ser renovada ou ser retirada.
Isto não retira, penso eu, o valor às considerações que já fiz sobre a justificação e os fundamentos da proibição de extradição de nacionais.
Penso, naturalmente, que há várias soluções para esta matéria, mas sobre isso não quereria adiantar algo, a não ser que os Srs. Deputados me peçam, visto que não quero, o0bviamente, entrar no vosso trabalho, que é a discussão e o encontrar de soluções para estes problemas, se assim o entenderem.
Finalmente, fui também informado de que se discutiu a possibilidade de, juntamente com a extradição para países que tenham a pena de prisão perpétua, no quadro das garantias de que falei e que teriam de ser aprofundadas ao nível da lei ordinária, desde que a Constituição contivesse alguma "chancela" para isso, se discutir também a extradição para países que tenham a pena de morte. Este problema da pena de morte não se levantou no quadro da União Europeia, nem penso que se levante no quadro de outros sistemas convencionais que Portugal tenha assinado.
Quanto a isso, poderia também fazer algumas considerações, mas a minha opinião pessoal é a de que o problema da aceitação da extradição para países onde se aplique abstractamente a pena de morte ao crime concreto considerado tem, naturalmente, um peso diverso da aceitação da extradição para países onde se aplique a prisão perpétua.
É certo que o quadro de garantias é o mesmo, visto que Portugal só extraditaria - se tivéssemos esse quadro interno bem definido - no caso de ter garantias suficientes de que a pena não seria aplicada. No entanto, pessoalmente não posso desconhecer - e estou aqui a dar o meu depoimento - que o peso ideológico e filosófico da aplicação da pena de morte é, em geral, e em especial em Portugal, bem diverso daquele que se refere à prisão perpétua. E com isto suponho que, pelo menos para início do meu depoimento, não necessito de dizer mais nada.
Repito que este não foi um problema que tivesse sido enquadrado, levantado ou discutido no quadro da União Europeia, onde, de momento, ele não se põe, porque alguns países em que este problema se punha, felizmente, aboliram a pena de morte nos anos mais recentes, mas não penso que a solução tenha de ser, necessariamente, a mesma para os dois casos. Em todo o caso, nestas matérias, naturalmente que os Srs. Deputados é que decidirão a final.
Não sei se o Ministro da Presidência e da Defesa Nacional quer acrescentar alguma coisa, designadamente quanto à jurisprudência do Tribunal Constitucional, que domina melhor do que eu, dada a sua experiência longa e aprofundada nesse órgão jurisdicional.
Fico à disposição de VV. Ex.as para qualquer esclarecimento e para fornecer alguns elementos que julguem de utilidade, designadamente o texto das nossas reservas. Suponho que têm acesso a eles, obviamente, mas posso fornecê-los, se julgarem útil. Se quiserem, também podem tirar fotocópias do texto dos dois acórdãos recentes que motivaram estas nossas dificuldades últimas.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vamos passar a um período de pedidos de esclarecimento sobre este depoimento inicial do Sr. Ministro da Justiça. Inscreveram-se, para esse efeito, os Srs. Deputados Barbosa de Melo e José Magalhães.
Posteriormente, o Sr. Deputado Guilherme Silva usará da palavra para uma intervenção.
Darei, obviamente, a palavra a todos os Srs. Deputados que se inscreverem mas peço-lhes, em todo o caso, a diligência de, na medida das vossas disponibilidades intelectuais, reservarem para momento mais oportuno a realização de intervenções, na medida em que o que está agora em causa são pedidos de esclarecimento, do ponto de vista dos nossos interlocutores, e temos, para esta tarde, um calendário com alguma exigência.
Tem a palavra o Sr. Deputado Barbosa de Melo.

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Sr. Presidente, de forma sintética, gostaria de fazer um pedido de esclarecimento ao Sr. Ministro da Justiça.
Somos uma Comissão para a revisão da Constituição, temos textos lapidares sobre a matéria da extradição, que

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se inscrevem, aliás, no mais lídimo que há na tradição humanista portuguesa, e há um texto que foi negociado e está, agora, em discussão.
Sr. Ministro, ouvi-o com muita atenção e considero que distinguiu bem os dois problemas que se colocam: a extradição de nacionais, como questão própria e autónoma, e a questão de saber quais são as penas comináveis que justificam a recusa da extradição por parte do Estado português. E, em relação a esta última, importa saber se é só a pena de morte, como estabelece, hoje, a Constituição, e, do meu ponto de vista, bem, ou se também se incluem outras penas, porque elas entram, por exemplo, na piedade do Tribunal Constitucional.
São, portanto, questões diferentes. A extradição de nacionais não se faz - diz a nossa Constituição - quando está cominada a pena de morte. Porém, fazem-se duas afirmações absolutas: que, antes da Constituição, já havia leis que diziam que, no caso de prisão perpétua, também não havia extradição e que havia até compromissos internacionais nesse sentido, sendo certo que, quando elaborámos a Constituição, tivemos esses textos presentes.
A verdade é que o nosso problema não é o de saber como se redigem - e o Estado português, nesta sede, faz as suas convenções - mas, sim, como vamos ter a nossa Constituição.
Fiquei sem saber - e eis o meu pedido de esclarecimento - se V. Ex.ª concorda ou discorda e, neste caso, até onde discorda do texto que foi negociado, pois era para isso que tínhamos pretendido ouvir a sua opinião.

O Sr. Presidente: - Desejo esclarecer o Sr. Deputado Barbosa de Melo e os demais Srs. Deputados que, em segunda leitura, não foi ainda apresentada à Comissão qualquer proposta de alteração do artigo 33.º.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, não sei se não haveria vantagem em o Sr. Ministro poder já responder, o que provavelmente condicionará a minha própria pergunta.

O Sr. Presidente: - O Sr. Ministro deseja responder já ao Sr. Deputado Barbosa de Melo?

O Sr. Ministro da Justiça: - Sim! Talvez seja melhor, Sr. Presidente, uma vez que o Sr. Deputado me fez uma pergunta.

O Sr. Presidente: - Então, faça favor, Sr. Ministro.

O Sr. Ministro da Justiça: - Sr. Deputado, quando fui aqui chamado, vim com muito gosto mas entendi que tinha uma tarefa e não quis extravasar dela. Com efeito, a minha tarefa era prestar um depoimento sobre os problemas que, no quadro das obrigações contratuais internacionais de Portugal, em especial, da União Europeia, se estão a pôr hoje relativamente a algumas interpretações, repito, algumas interpretações do Tribunal Constitucional e a uma disposição da Constituição que não permite a extradição de nacionais. Era tão-só isso!
Porém, V. Ex.ª, agora, fez-me uma pergunta que aumenta, digamos assim, a minha tarefa e eu, obviamente, se os Srs. Deputados assim o entenderem, poderei, sobre ela,…

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - É por causa do texto que estamos a discutir!

O Sr. Ministro da Justiça: - Mas não conheço o texto, Sr. Deputado!

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Julguei que conhecia, Sr. Ministro. Peço desculpa.

O Sr. Ministro da Justiça: - Em matéria de extradição, só conheço o que se tem passado por algumas notícias que tenho tido, mas não conheço exactamente o texto.

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Mas o texto não é secreto, Sr. Ministro!

O Sr. Ministro da Justiça: - Não estou a dizer que é secreto. Mas penso que não é a posição de um membro do Governo vir aqui dar opinião sobre como deve ou não ficar o texto, até porque essa é uma tarefa só de VV. Ex.as e não minha, apesar da pena que sinto em não estar aqui, como já estive, nos trabalhos da revisão da Constituição. Portanto, sinto que tenho aqui alguma dificuldade.
Em todo o caso, penso, Sr. Deputado - e isto para V. Ex.ª se não sentir frustrado -, que já dei a entender, na minha intervenção - e por mais objectivas que sejam as intervenções há sempre um aspecto que deixamos cair sobre o que pensamos ou sentimos ser a nosso posição perante determinados textos -, o meu pensamento, que passo a repetir: penso que, hoje, a proibição, em absoluto, da extradição de nacionais, não se justifica; justificava-se, talvez, num mundo completamente diverso e também num mundo da criminalidade muito diferente daquele com que nos confrontamos hoje.
É que não estamos livres de nacionais portugueses estarem envolvidos em associações criminosas, que têm actuação na Alemanha, na França, na Suécia ou em outros países do mundo, e haver toda a vantagem em que esses nacionais portugueses sejam julgados em conjunto com os restantes membros da associação criminosa.
Por isso, referi-me ao terrorismo e às várias formas de crime organizado.
Penso, portanto, e muito sinceramente, que a proibição, em absoluto, da extradição de nacionais é uma posição que hoje já se não justifica. Se as fronteiras se abriram, se a cidadania europeia é hoje uma realidade, então, temos de tirar algumas conclusões dessa abertura de fronteiras e dessa cidadania europeia. Não podemos só ficar com os direitos, temos de afirmar também que há deveres face a uma cooperação judiciária internacional importante, ao nível da União Europeia.
Naturalmente que se poderá dizer: mas, então, porquê só para a União Europeia? E por que não para outros países do mundo? A resposta implica, de facto, uma discussão mais filosófica sobre os sistemas jurídico-penais em que nos inserimos e a possível dificuldade que teremos, se inseridos noutros sistemas jurídico-penais, em admitir a extradição de nacionais. Compreendo a objecção. Com efeito, o crime organizado não é próprio da Europa. Temos, por exemplo, crime organizado no tráfico de droga da Colômbia para a Europa.

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Mas, permitam-me VV. Ex.as, agora, que volte à pergunta: extraditaremos com tanta facilidade um nacional português para a Colômbia, como o faremos para a França ou para a Alemanha? É uma questão que deixo em aberto e VV. Ex.as terão ocasião de a discutir, com mais profundidade.
Quanto à pena de morte, suponho que fui claro e não queria adiantar muito mais sobre isso. O que Sr. Deputado disse foi, embora por palavras como só V. Ex.ª sabe dizer, o que eu quis dizer: a abolição da pena de morte faz parte do nosso património cultural há mais de um século e não estando hoje, felizmente, confrontados com esse problema, ao nível dos nossos compromissos internacionais, não vejo necessidade de abrirmos mão desse princípio, mesmo com as garantias, obviamente. E isto porque também se tem feito - e desculpem que vos diga - alguma petit démagogie à volta disso. E digo petit porque, infelizmente, Sr. Deputado, às vezes até os nossos amigos fazem demagogia e, por isso, a demagogia classifico-a sempre como "petit".

Risos.

Quer dizer, por vezes, gritam: vão extraditar portugueses para serem mortos! Não, não se trata de nada disso. Trata-se, sim, de extraditar nos casos em que, sendo aplicada, em abstracto, a pena de morte, houvesse a garantia de que, naquele caso, não o era.
Apesar de tudo, admito que o nosso quadro constitucional tem de reflectir, de alguma forma, estes princípios de que, há muito tempo, comungámos e admito que possa haver aí uma distinção entre as duas hipóteses.
Já no que diz respeito à pena de prisão perpétua - é claro que o Sr. Deputado, constitucionalista ilustre como é, referiu que a nossa Constituição apenas proibia a extradição em casos de pena de morte -, o que é certo, como já disse, e V. Ex.ª muito bem sabe, e que repito, o Tribunal Constitucional - e aí suponho que bem - tem feito a interpretação de que "a proibição de penas restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou duração ilimitada ou indefinida" do artigo 30.º da Constituição, imporá também a proibição constitucional de extradição para países onde, no caso concreto, possa ser aplicada a pena de prisão perpétua.
É essa a doutrina do Tribunal Constitucional e temos de viver com ela.

O Sr. José Magalhães (PS): - Não, não temos!

O Sr. Ministro da Justiça: - Ó Sr. Deputado, esse encargo deixo-o a V. Ex.ª que terá, certamente, muito mais poder junto do Tribunal Constitucional do que eu ou do que o Sr. Ministro da Presidência. Da minha parte, não assumiria esse encargo.
A verdade é que esta é a doutrina e é com ela que temos de nos confrontar.

O Sr. Presidente: - Muito obrigado, Sr. Ministro.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, o Sr. Ministro da Justiça colocou três questões, mas há ainda uma quarta que gostava que pudesse abordar, embora em outra fase dos trabalhos, que é a suscitada pela proposta do Governo espanhol de proibição do direito de asilo a nível da União Europeia. Ou seja, sabemos que estão pendentes, no âmbito da Conferência Intergovernamental, propostas do Governo do presidente Aznar no sentido de proibir, em relação a cidadãos da União Europeia, que seja invocado o direito de asilo por se partir do princípio que estamos em democracias em que não é concebível uma situação de perseguição.
Essa posição tem a crítica coerente e muito intensa da ACNUR e de outras organizações de defesa dos direitos do homem. Portanto, seria interessante abordar, se pudéssemos, essa questão e saber que posição tem sustentado o Governo português nessa matéria, sendo certo que não há qualquer proposta, em sede de revisão constitucional, no sentido de alterar, no que quer que seja, o enquadramento constitucional do direito de asilo em Portugal, que o tem consagrado inequivocamente - e ainda bem.
Em relação às questões que colocou, gostaria de lhe certificar de que entendemos correctamente aquilo que nos pretende transmitir.
Assim, quanto à questão da extradição de portugueses, creio que a razão que levou a que, na primeira leitura desta revisão constitucional, tivéssemos concluído que era imprescindível abrir uma excepção ao princípio da não extradição, essa ratio é corroborada pelo Sr. Ministro, sendo certo que, na nossa intenção, se exigiriam, primeiro, condições de reciprocidade e, em segundo lugar, que só se verificasse em determinados casos, tais como os de terrorismo e de criminalidade altamente organizada e não em outros, e, por outro lado, é exigível que a extradição se não faça para Estado que não assegure o respeito devido pelos direitos humanos.
São estas condições, todas juntas e a julgar em concreto que, segundo a nossa leitura, é preciso garantir. Se um terrorista alemão lançar uma bomba em Lisboa e fugir para a Alemanha, não há qualquer razão para não poder ser julgado aqui, em Portugal, onde cometeu o crime; por sua vez, um terrorista português que rebente uma bomba em Berlim deve poder ser julgado e condenado, se for caso disso, em Berlim, nos termos iguais aos seus cúmplices e participantes nessa acção.
É uma consequência, como sublinhou, da internacionalização do crime, que implica regras novas.
Em relação à questão que referiu em último lugar, gostaria de sublinhar que nunca consideramos, quer na primeira leitura, quer depois dela, empurrar quem quer que seja para morte certa num país cuja lei preveja, em abstracto, a aplicação da pena de morte.

O Sr. Ministro da Justiça: - Também referi isso!

O Sr. José Magalhães (PS): - Sem dúvida, mas, frequentemente, no debate público, isso é um pouco obnubilado e percebemos porquê, embora não, obviamente, no caso do Sr. Ministro!
Pelo contrário, o que está subjacente a esta proposta é instituir um sistema que implique uma salvaguarda de que nunca possa ser aplicada pena de morte.
Mas, a não se considerar esta solução, coloca-se um problema, dado que não desejamos transformar Portugal num país santuário. Porém, se alguém rebenta uma bomba no World Trade Center e foge para Portugal, sendo esse

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crime punido, na lei norte-americana, com pena de morte, quid juris? Nessa circunstância, supõe o Sr. Ministro que o Governo tem uma proposta mas essa proposta, estando excluídas por definição operações de tipo Rambo, que permitam aprisionar as pessoas que fugiram para Portugal, levanta a questão de saber qual a resposta do direito português para essas situações. E qual é a resposta do direito português?
A proposta de Código Penal, que o Governo apresentou, parece antecipar uma certa linha de resposta - e gostaria que o Sr. Ministro pudesse discuti-la connosco - no sentido de estender a jurisdição do Estado português a esses casos e garantir que, em hipóteses desse tipo, a pessoa que praticou, ou alegadamente praticou, a infracção, seja julgada e, se for caso disso, condenada em território nacional, por tribunal nacional, o que significa que, nesse cenário, Portugal não seria santuário de impunidade mas, pelo contrário, um Estado que participaria no combate à criminalidade internacional, mas com uma larguíssima extensão da sua jurisdição.
Quais são as consequências de uma solução desse tipo? Isso para nós é absolutamente crucial.
Quanto à terceira questão que colocou, francamente, estamos em sede de revisão constitucional e, portanto, se é momento de alguma coisa, é-o, desde logo, de clarificar o alcance das disposições constitucionais.
Portanto, se em relação à proibição de extradição, em caso de pena de prisão perpétua, está na nossa mão alguma coisa, é precisamente a de estabelecer, de uma maneira inequívoca, o que deve e o que não deve estar protegido, sendo certo que, do ponto de vista exterior, vozes de constitucionalistas, como Prof. Jorge Miranda e outros, têm vindo a sublinhar que, na sua redacção actual, a Constituição já não comporta a proibição de extradição, nessas circunstâncias.
Sabemos, todavia, que há uma interpretação uniforme do Tribunal Constitucional em sentido contrário. Parece-nos - e foi nessa base que fizemos a leitura toda como está documentado, abundantemente, nas actas - que é altura de clarificar - e isso está nas nossas mãos - que, nessas circunstâncias, deve poder haver extradição desde que haja garantias bastantes de que não haverá execução, mas sim comutação, ou substituição ou alguma coisa que satisfaz aquilo que são os melhores princípios da Constituição da República Portuguesa, que assim se pretende manter e preservar.
Esta é a solução que está entre mãos e que foi difundida publicamente, no dia 17 de Março, no acordo político de revisão constitucional, na redacção exacta que resultava da primeira leitura e que parece equilibrar estes valores.
Portanto, gostaríamos de ter a certeza que entendemos rigorosamente aquilo que nos transmitiu e que, nessa matéria, não há qualquer compromisso do Estado português que não seja satisfeito, rigorosamente, por esta leitura que pretenderíamos consagrar.

O Sr. Presidente: - Sr. Ministro, se concordasse, dava, primeiramente, a palavra aos restantes Srs. Deputados, que a pediram, deixando, para final, os comentários que o Sr. Ministro entendesse fazer, globalmente.

O Sr. Ministro da Justiça: - Com certeza, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Guilherme Silva.

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Ministros: queria, em meu nome pessoal e do PSD, agradecer a disponibilidade de VV. Ex.as para virem a esta Comissão reflectir connosco sobre uma matéria com incidência directa nesta revisão constitucional e com a delicadeza, melindre e implicações que ficaram já levantadas nas diversas intervenções.
Desejando fazer um pouco o ponto da situação sobre a forma como a questão se levanta nesta revisão constitucional, começava por lembrar que o PSD não tinha, neste ponto particular do artigo 33.º, qualquer proposta de revisão, ou seja, à partida tinha uma posição que entendia como boas e bastantes as soluções que a Constituição hoje consagra.
Não era o caso de outros partidos, designadamente do Partido Socialista, e vê-se pelas proposta que foram apresentadas, quer inicialmente, quer já no debate da primeira leitura, que havia preocupações que inspiravam já a vertente externa do Estado português e que, naturalmente, o projecto do Partido Socialista reflectia, pelo menos, parte das preocupações que o Governo, através dos seus responsáveis, terá veiculado para essa sede. Era, por exemplo, o problema de se admitir já a extradição e a expulsão de cidadãos do território nacional, nos casos de terrorismo e de criminalidade organizada, para Estado membro da União Europeia, quando exista reciprocidade.
Essa posição evoluiu para uma forma mais ampla e, na primeira leitura, foi apresentada uma proposta pelo Srs. Deputados José Magalhães e António Reis que diz o seguinte: "Não há extradição por crimes a que corresponda pena de morte, prisão perpétua ou outra pena cruel, degradante ou desumana, segundo o direito do Estado requisitante, salvo se este der ao Estado português garantias suficientes de que a pena será comutada, substituída por outra de duração limitada ou, por qualquer outra forma, não executada".
Portanto, aparece, pela primeira vez, a questão da pena de morte, por esta iniciativa do Partido Socialista, na primeira leitura.
Quero lembrar que estas questões, em sede de negociação entre o Partido Socialista e o PSD, foram postas em cima da mesa. O Sr. Ministro António Vitorino, naturalmente, melhor colocado nessa matéria por ser membro do Governo, insistiu muito nestas preocupações, que os seus colegas de Governo, em particular os Srs. Ministros da Justiça e da Administração Interna, têm em mãos, por serem os que têm mais responsabilidades, nesta área, no quadro da União Europeia, lembrando que havia necessidade de mexer nestas questões que, aliás, correspondem aos problemas que acabam de ser aqui trazidos e esclarecidos pelo Sr. Ministro da Justiça.
Também não quero deixar de lhe dizer, Sr. Ministro, porque o conheço, que sei que, nesta matéria, tem e teve uma atitude de respeito pelos espaços instituições - aliás, outra coisa não se esperava -, mas quero também dizer que tenho dificuldade em crer que V. Ex.ª não conheça o texto do articulado que o PS e o PSD fizeram sobre esta matéria.

O Sr. Ministro da Justiça: - Ah, esse conheço! Mas isso não é um articulado, Sr. Deputado!

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O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Há, de facto, um articulado que não se afasta muito da redacção que o Sr. Deputado José Magalhães propôs. E dessa, que já tinha esta inspiração governamental, rezam as actas da primeira leitura. Portanto, V. Ex.ª não estaria alheio a esse texto. Aliás, é o tal em que já se falava na pena de morte, na prisão perpétua, etc., etc..
Desejo ainda lembrar que, já na Convenção Europeia de 77, que Portugal ratificou em 1989...

O Sr. Ministro da Justiça: - Já se fizeram estas reservas!

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Exactamente. Já se fizeram estas reservas. Já havia, de facto, a reserva de que "quando reclamada por infracção a que corresponda pena ou medida de segurança com carácter perpétuo, Portugal reservava-se o direito de não conceder a extradição".
Isto já vem dessa época, como também consta de texto dessa convenção que as partes contratantes terão a faculdade de recusar a extradição dos seus nacionais.
Face ao exposto, já ficamos com uma panorâmica dos problemas que se levantam nesta sede. Para o PSD, o que está acordado é um dado adquirido, mas, obviamente, não nos recusamos à reflexão e ao debate, que quereríamos com outra clareza.
O Sr. Deputado Barbosa de Melo foi muito claro nas questões que pôs e, confesso, também queria mais clareza. Com efeito, o que está em causa não é o problema de fazermos uma redacção adequada a este artigo mas, sim, o de, numa tentativa de conciliação da tradição humanística de Portugal nesta matéria, ter garantias gerais e também de garantir a nossa própria segurança e o cumprimento dos compromissos do Estado português, nestas áreas da cooperação ao combate à criminalidade e à segurança, particularmente no quadro da União Europeia, que nos preocupa.
Aí, sim, queremos a sua colaboração, enquanto Ministro do Governo, responsável por esta área, sobre preocupações que, aliás, foram veiculadas, ao longo das negociações - e digo-o na presença de V. Ex.ª -, pelo seu colega de Governo, Ministro António Vitorino, que se desincumbiu bem dessa tarefa, no seio da conversação e da negociação.
Ouvimos, há pouco, um conjunto de razões, que V. Ex.ª invoca e que parecem pertinentes, no sentido de que já não se justifica manter, de uma forma radical, a proibição da extradição de nacionais.
Colocando a pergunta ao contrário, perguntava ao Sr. Ministro se Portugal ficará em situação de incumprimento, no quadro das suas obrigações já assumidas ou em vias de assumir, se mantiver essa salvaguarda.
Esta era uma questão concreta que lhe queria pôr. Isto é, pretendia saber se Portugal fica ou não numa situação de incumprimento ou se, não ficando ainda em incumprimento formal, do ponto de vista daquilo que decorre das convenções e de acordos internacionais, em todo caso, a atitude de Portugal se poderá repercutir, de forma gravosa, na nossa própria segurança e naquilo que deve ser a nossa atitude de cooperação, nessas áreas, com os nossos parceiros da União Europeia.
Finalmente, queria colocar ainda uma outra questão, que tem sido muito levantada, mais agudamente em relação ao problema da pena de morte, mas que se poderá pôr também em relação à pena de prisão perpétua, embora com uma maior acuidade em relação à primeira, no âmbito real do funcionamento dos Estados e, designadamente, do princípio da separação de poderes e, portanto, de uma intervenção judicial que se presume independente dos executivos.
Se preconizamos uma solução no sentido de Portugal permitir a extradição, desde que o Estado requisitante garanta a não execução da pena de morte, se for caso disso, ou de prisão perpétua, pergunto se há, à partida, uma garantia efectiva dessa salvaguarda ou se corremos, aqui, riscos de esse requisito, na estrutura do nosso processo judicial, decorrente daquilo que, na Constituição, seja reserva nesse particular, poder ou não vir a ser, realmente letra morta.
Eram estas as questões que lhe queria colocar e, recapitulando o percurso, dizer que não tivemos qualquer iniciativa nesta matéria e que nos mostrámos abertos a argumentos que foram veiculados como sendo preocupações do Governo, particularmente do Sr. Ministro da Justiça, no que diz respeito às obrigações e aos compromissos de Portugal, no âmbito da União Europeia.

O Sr. Presidente: - De seguida, vou ainda dar a palavra, pela ordem indicada, aos Srs. Deputados Moreira da Silva, António Filipe e Medeiros Ferreira, a quem peço que tenham em atenção que, em princípio, neste momento, o Sr. Procurador-Geral da República já deve estar no edifício da Assembleia, aguardando o momento de vir à Comissão.
Tem a palavra o Sr. Deputado Moreira da Silva.

O Sr. Moreira da Silva (PSD): - Sr. Presidente, desejo, apenas, formular um pedido de esclarecimento, muito breve, ao Sr. Ministro, acerca da possibilidade de abertura deste normativo constitucional e da "garantia suficiente", questão que me preocupa..
O Sr. Ministro, na sua intervenção, manifestou-se também disponível para essa abertura, com a reserva da "garantia suficiente". E, na argumentação que apresentou relativamente à abertura deste normativo constitucional, referiu argumentos que tinham por base a nossa integração europeia, embora também já tenha referido que a abertura desta norma, eventualmente, não será apenas para a União Europeia mas para todo o mundo.
Porém, poderemos, claramente, configurar casos em que esta abertura será de aplicação extraordinariamente perigosa. E, por isso mesmo, a garantia teria, eventualmente, de acompanhar também essa abertura.
Portanto, a pergunta concreta que dirigia ao Sr. Ministro é no sentido de nos dizer algo sobre a sua posição, ou seja, sobre como poderia ser configurada a "garantia suficiente" para acompanhar a abertura desta norma constitucional.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Filipe.

O Sr. António Filipe (PCP): - Sr. Presidente, Sr. Ministro, naturalmente que compete a nós discutir, na devida altura e em profundidade, as opções a tomar sobre esta matéria mas, neste caso, como é natural, a opinião do

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Sr. Ministro e a de outras entidades, que a Comissão convidou a pronunciarem-se, tem, de facto, importância para nós.
Creio que o Sr. Ministro fez bem em referir "que tem havido alguma demagogia em torno desta matéria e a necessidade de a evitarmos, nesta nossa discussão". Considero que não vale a pena invocar a favor das alterações ao regime constitucional da extradição ideias de que Portugal se poderia tornar um santuário de criminosos, o que não é verdade. Com efeito, isso pode, numa ou noutra situação, ser referido por algum órgão de comunicação social de um ou outro país, mas creio que isso vale o que vale e, de facto, não são vozes isoladas como essas que nos podem influenciar no sentido negativo e dar-nos uma ideia diferente da realidade que temos. De facto, não é essa a situação. Felizmente - aliás, o mais recente relatório de Segurança Interna demonstra-o cabalmente -, não há acções terroristas visíveis ou registadas entre portugueses, quer em Portugal quer, creio, em qualquer outra parte do mundo.
Por outro lado, creio que essa realidade também não será verdadeira na medida em que, em casos de negação de extradição, existem mecanismos legais portugueses que permitem que, relativamente aos casos mais graves e que são aqueles que justificariam, eventualmente, uma alteração do quadro constitucional, haja soluções legais no sentido de que esses julgamentos se façam em Portugal. Portanto, não estaríamos perante situações de impunidade, a coberto de um regime constitucional que não permitisse a extradição.
Assim, creio que estamos em condições de apreciar esta matéria com serenidade e as questões que gostaria de colocar dizem respeito aos dois aspectos que estão aqui referidos, sendo o primeiro sobre a extradição de nacionais e o segundo sobre a extradição de outros cidadãos para países onde existe a pena morte e penas de carácter perpétuo.
Quanto ao primeiro aspecto e aos regimes tradicionais, creio que a questão colocada pelo Sr. Deputado Guilherme Silva, relativamente aos países que não acompanham esta tendência, é pertinente, pois os países que admitem a extradição dos respectivos nacionais são ainda muito minoritários, quer a nível mundial, quer a nível da União Europeia. Na primeira leitura, os exemplos que foram dados referem-se apenas a três países que, na altura - e não foi há muitos meses! - admitiam a extradição dos respectivos nacionais. Portanto, creio que o facto de Portugal não acompanhar a posição desses três países não nos colocará, por isso, numa situação de qualquer isolamento internacional.
Mas, concretamente, a questão que queria colocar é a seguinte: o Sr. Ministro, tal como a proposta inicial do Partido Socialista, justificou a possibilidade de extradição de nacionais na base da cidadania europeia. Por conseguinte, isso seria admitido, como na proposta inicial do Partido Socialista, apenas para países da União Europeia. Claro que podemos discutir, e discuti-lo-emos na altura, se a cidadania europeia, tal como existe actualmente, justificaria esta excepção. É que, naturalmente, a chamada cidadania europeia mais não é do que um conjunto de direitos dos cidadãos, mas, inequivocamente, o vínculo de cidadania de cada cidadão ainda é relativamente ao seu Estado de origem. Portanto, o cidadão português é fundamentalmente um cidadão de cidadania portuguesa e só muito secundariamente, em relação a alguns direitos, se poderá falar em "alguma cidadania europeia".
Fundamentalmente, a questão é a de que, na primeira leitura, era defendido pelo Partido Socialista que só em nome dessa cidadania europeia e só para a União Europeia se admitiria a extradição de cidadãos nacionais. Porém, no texto que foi divulgado da posição comum a que terão chegado o PS e o PSD não é isso que consta, mas, sim, "que se admitem excepções ao princípio para Estado que assegure o respeito dos direitos humanos".
Ora, eu não sei o que é isto. Sei o que são países da União Europeia, embora se possa discutir se todos eles respeitam os direitos humanos, mas, manifestamente, não sei o que são "países que respeitem os direitos humanos" e também não sei qual é a solução - e isso é o que mais me preocupa -, pois posso ajuizar, com alguma precisão, países que, do meu ponto de vista, respeitam os direitos humanos, todavia, não consigo "assegurar" o mecanismo pelo qual o Estado português vai determinar, em cada momento concreto, quais são os países que respeitam os direitos humanos, para efeito de admissão de extradição de nacionais.
O Sr. Deputado Guilherme Silva diz que o PSD não tomou nenhuma iniciativa nesta matéria e, como a proposta inicial do Partido Socialista não é a que consta aqui do acordo, já não sei, afinal, determinar a paternidade desta solução.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - É ler as actas!

O Sr. Luís Sá (PCP): - As actas estão revogadas pelo acordo!

O Sr. António Filipe (PCP): - Exacto. Aliás, as actas não apontavam para aqui. Portanto, a questão concreta relativamente a esta matéria é a de saber, numa situação como a que nos é configurada pelo acordo de revisão constitucional entre o PS e o PSD, como é que será possível determinar quais são os países que asseguram o respeito dos direitos humanos para efeito de permitir que haja uma extradição de cidadãos nacionais para esses mesmos países. Poder-se-á, por exemplo, perguntar se o Peru é um país respeitador dos direitos humanos e o mesmo se pode colocar em relação a qualquer outro país do mundo.
A segunda questão diz respeito à extradição de cidadãos para países a cujo crime corresponda, abstractamente, a pena de prisão perpétua ou a pena de morte. Neste caso, também há uma evolução a registar: a proposta inicial do Partido Socialista não continha a referência a prisão perpétua, embora depois, no final da primeira leitura, tenha admitido incluir também a pena de prisão perpétua na sua proposta...

Voz não identificada: - Pena de morte?!

O Sr. António Filipe (PCP): - Pena de morte e prisão perpétua... Mas, na versão do acordo, decaiu de uma parte, que era a referência a penas cruéis...

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - V. Ex.ª até já não tem...

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O Sr. António Filipe (PCP): - Tenho o que foi divulgado.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado António Filipe, peço-lhe que se atenha ao apelo que o Presidente há pouco lhe fez.

O Sr. António Filipe (PCP): - Com certeza, Sr. Presidente, mas os Srs. Deputados interrompem-me e, portanto, isso, de alguma forma, prejudica o fio da conversa.

O Sr. Presidente: - Não se deixe interromper, Sr. Deputado.

O Sr. António Filipe (PCP): - Portanto, a questão que, muito concretamente, me parece fundamental nesta matéria é a das garantias que possam ser dadas. Isto é, a Constituição, actualmente, prevê uma proibição absoluta de extradição para países onde exista a pena de morte ou em situações a que, no caso abstractamente aplicável, corresponda pena de morte e o acordo que foi tornado público refere que possa ser admitida, a título excepcional, se ao Estado português forem dadas garantias consideradas suficientes de que a pena ou a medida de segurança será comutada, substituída por outra de duração limitada ou, por qualquer outra forma, não será executada.
Ora, a minha dificuldade é que não consigo vislumbrar que garantias possam ser dadas de que será assim. Ou seja, pondo as coisas ao contrário, imaginemos, por exemplo, que Portugal ainda não tinha abolido a prisão perpétua ou a pena de morte e que recebíamos um pedido de extradição de outro Estado. Neste caso, pergunto: que garantias é que alguma entidade portuguesa poderia dar de que aquela pena, constante da legislação portuguesa, não seria aplicada? Isto é, seria possível, por exemplo, ao Ministro da Justiça dar garantias a outro Estado de que o tribunal português competente não iria aplicar a pena de prisão perpétua naquele caso, quando legalmente o podia fazer? Ou melhor, seria possível a uma entidade judiciária qualquer dar garantia a um Estado estrangeiro de que podia ficar descansado porque, apesar de termos esta possibilidade legal, o juiz não a irá aplicar? Creio que esta é uma dificuldade concreta. Isto é, que garantias poderiam ser consideradas suficientes para que o Estado português aceitasse, de facto, extraditar um cidadão que se sujeitaria a uma aplicação da pena de morte noutro país?

O Sr. Presidente: - Antes de passar a palavra ao Sr. Deputado Medeiros Ferreira, desejava esclarecer que, até este momento, não foi apresentada, em segunda leitura, qualquer proposta para alteração do artigo 33.º.
O Sr. Deputado António Filipe costuma fazer - e bem - apelo a que os deputados possam apresentar, com antecedência relativamente as discussões, propostas de substituição que eventualmente possam ser apresentadas. Como sabe, não foi ainda o caso. Mas, como se referiu a acordo interpartidário, permita-se que, nesse ponto, o esclareça sobre o seguinte: é público e notório e resulta do texto desse acordo que as partes que o subscreveram admitem poder clarificar as suas próprias propostas e, eventualmente, melhorá-las, a todo o tempo. Se, porventura, ainda as não apresentaram e se ambos concordaram que era pertinente a sessão que estamos a realizar neste momento, o Sr. Deputado António Filipe deve retirar daí a devida ilação. E essa ilação será a de que não têm, neste momento, qualquer proposta em concreto sobre a qual seja razoável que haja uma pronúncia por parte da Comissão.
Para sintetizar o meu esclarecimento, dir-lhe-ei, Sr. Deputado, que estamos a reflectir de acordo com as actas resultantes da primeira leitura e daquilo que daí resultou sobre a posição dos vários partidos. Aliás, Sr. Deputado, quanto a essa matéria, se se recorda, a posição do Partido Comunista, na primeira leitura, foi claramente de impugnar a possibilidade de se entrar em linha de conta com a previsão da questão da extradição de cidadãos nacionais, embora circunscrita apenas à realidade da cidadania europeia.
Tem agora a palavra o Sr. Deputado Medeiros Ferreira.

O Sr. Medeiros Ferreira (PS): - A minha intervenção será muito curta. Em primeiro lugar, quero agradecer ao Sr. Ministro da Justiça não só a sua presença mas também a forma muito serena e muito esclarecedora como colocou as questões referentes à questão que, neste momento, é discutida e que é, exactamente, a questão da extradição. E começo por aqui exactamente porque, como foram colocadas outras questões relacionadas com o terceiro pilar da União Europeia como seja a questão do direito de asilo, eu quase que lhe faria um apelo ao Sr. Ministro para que não respondesse a essas questões que, embora sendo importantes, parece-me que extravasam propriamente a questão que estamos a debater. A não ser que, no seu entendimento, essas questões possam ter relevância para o acto constituinte desta Comissão. Tanto mais que, amanhã, a Comissão dos Assuntos Europeus terá o prazer de o ver de novo nesta Assembleia para discutir os assuntos relacionados com a criação de um espaço judicial europeu.
Portanto, a minha pergunta ou comentário, no seguimento, aliás, de outras intervenções, era no sentido de saber se, do seu ponto de vista, este afinamento, digamos, do ponto três do artigo 33.º se deve exclusivamente a questões de ordem dos nossos compromissos internacionais, nomeadamente europeus, ou se, no seu entendimento de Ministro do Governo português e também de emérito jurista, há algo a fazer relacionado com a aplicação do instituto da extradição. E isto porque também há aqui uma metodologia de negociação internacional que, acho, mereceria uma reflexão, embora também não seja este o quadro própria para a fazer. É que, além da revisão constitucional, em Portugal, estamos a assistir a um processo de revisão, que não é constitucional mas, sim, de um tratado internacional, ou seja, do Tratado da União Europeia. Mas, paralelamente à revisão do Tratado da União Europeia, nota-se, por parte do Conselho de Ministros dessa mesma Comunidade Europeia - para dar a sua expressão jurídica a quem existe - uma "fabricação" de convenções que antecedem o final da revisão do Tratado da União Europeia. E é para isso que chamaria a atenção dos membros do Executivo português, para esse paralelismo entre a fabricação de convenções e o pedido de ratificação rápido dessas convenções ao mesmo tempo que ainda se discutem aspectos relacionados com a

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revisão do Tratado da União Europeia, que também irão necessitar de ratificação por parte dos parlamentos nacionais. E é tudo.

O Sr. Presidente: - Tem novamente a palavra o Sr. Ministro da Justiça.

O Sr. Ministro da Justiça: - Não sei se o Sr. Ministro da Presidência também quereria tomar a palavra... Mas, talvez depois, se assim o entender.
Tenho presente um conjunto de questões e, se me permitissem, não iria responder individualmente a cada Sr. Deputado uma vez que há questões comuns, que há questões dependentes de outras, etc., etc.. Portanto, iria tentar dar uma resposta, que farei o possível por ser satisfatória, a todos os Srs. Deputados, mas sem preocupações de ordenação das perguntas.
A pergunta muito concreta que me foi posta por alguns Srs. Deputados, e designadamente pelo Sr. Deputado Guilherme Silva, é se ficaremos em incumprimento de algum compromisso internacional se continuarmos a proibir a extradição de nacionais. A resposta, muito clara, é não. E "não" porque, recordo ao Sr. Deputado, a última Convenção de Extradição, que, aliás, ainda não veio a ratificação deste Parlamento, contém uma norma que, precisamente, dá uns prazos de cinco anos renováveis porque, como sabe, há vários Estados da União Europeia que têm nas suas legislações internas e até nas suas Constituições, como é o caso, pelo menos, da Alemanha, a proibição da extradição de nacionais. Agora, o que há, Sr. Deputado, é um caminho a fazer, que está claramente iniciado, porque se não não aparecia na Convenção este processo das reservas serem feitas por cinco anos e poderem ser depois renovadas. Portanto, há uma intenção clara dos Estados da União de caminhar no sentido de permitir essa extradição de nacionais, o que acompanha, naturalmente, aquilo que nós sabemos ser a tal criação de um espaço judicial europeu. Esta será uma das medidas e não a única pois muitas outras há.
Portanto, a resposta é clara: não, não ficaremos em incumprimento.
Mas, já agora, uma vez que tive tantos apelos para avançar um pouco mais e sentindo-me, por isso, um pouco mais à vontade do que no início, diria que, porventura antecedendo e antecipando aquilo que é o caminho dos Estados da União Europeia, o desconstitucionalizar esta norma e continuar a afirmá-la na lei ordinária... - porventura até já estarei a avançar de mais e, quando assim for, VV. Ex.as chamar-me-ão a atenção! -, isto é, fazendo isso, dizendo que sim..., que extraditaremos nacionais..., mas como a reserva é de que eles terão de cumprir a pena em Portugal, depois de julgados no respectivo país... Há Estados que estão a pensar fazer esta reserva, por razões óbvias, sobretudo porque a reinserção das pessoas, nos casos em que tiverem residência em Portugal, dar-se-á, obviamente, muito melhor no seu país de origem do que no país em que, porventura, se encontravam no momento do cometimento do crime.
Portanto, não há, mas se continuarmos a afirmar na Constituição este princípio qua tale, sem nenhuma abertura, poder-nos-á colocar, daqui a uns anos - se adivinho bem o caminho que as coisas seguem quanto à criação desse tal espaço judiciário europeu -, na "obrigação" de rever então a Constituição só por causa disso.
Deixo, por conseguinte, à consideração dos Srs. Deputados esta possibilidade porque, repito, não estaremos em incumprimento mas continuará a constar da nossa Constituição este princípio da proibição. Porventura, seria talvez o momento - os Srs. Deputados, obviamente, é que decidirão -, de o desconstitucionalizar, mantendo, por mais uns tempos, aquilo que a Assembleia julgasse mais adequado, na lei ordinária.
Outro problema que transpareceu foi o das garantias. Vários Srs. Deputados o puseram. Mas que garantias? Srs. Deputados, o único conselho que posso dar a VV. Ex.as é o de que leiam as garantias que eram dadas no "caso Variso" em que o juiz dizia que não ia aplicar, o promotor público não pediu, os outros co-réus não foram condenados a prisão perpétua... Bem, isto são garantias, a meu ver, salvo o enormíssimo respeito que tenho pelo Tribunal Constitucional. São garantias que poderiam ser aceites. Mas, dou o exemplo de outro acórdão. É sabido que a Alemanha não aplica a prisão perpétua há dezenas de anos, embora, na prática condene. Mas, de facto, não aplica tal pena há dezenas de anos. E porquê? Porque passados 15 anos faz uma revisão da situação e, depois, passados outros tantos anos, faz outra revisão, e todas essas revisões têm levado a que as pessoas não cumpram a prisão perpétua. E o mesmo se passa na França e noutros Estados europeus. Se a Alemanha nos assegurasse que essa revisão seria feita no sentido de adaptar a pena e de não haver prisão perpétua... Aqui está outro tipo de garantias.
Dirão VV. Ex.as: "não são garantias absolutas". Bom, esse é o raciocínio do Tribunal Constitucional. E, de facto, "garantias absolutas" não existem. Basta, para o confirmar, pensar, por exemplo, que, num país desses, há uma alteração da ordem constitucional e, de repente, vemo-nos confrontados com outra estrutura jurídica, outra estrutura política ou outra estrutura penal. Bem, mas garantias absolutas nesta matéria... Esse é o raciocínio do Tribunal Constitucional. Só que, aí, caímos noutra coisa: nunca há extradição por este tipo de penas. E, confesso a VV. Ex.as, mais garantias do que eram dadas no "caso Variso", não sei quais são. De facto, o Ministério Público dava-as; o juiz dava-as. Dir-se-á: mas o juiz pode ser mudado. Bem, mas é que o juiz já tinha dado, digamos, aquilo que corresponde à acusação e esta já tinha transitado. Dir-se-á também: mas o promotor podia mudar. Mas, também já tinha transitado.
Em suma: se vamos pedir garantias absolutíssimas, que correspondam a um grau zero de possibilidade dessa pena não ser aplicada, então não há garantias nunca. Temos de ter garantias razoáveis, sérias. E mais: garantias
vindas de um Estado no qual possamos acreditar, obviamente. E isto porque, aqui, desculparão, também há que fazer algumas distinções. É óbvio que não vou entrar em distinções dessas nem vou citar exemplos porque isso - por amor de Deus! - seria totalmente deslocado. Porém, todos nós sabemos do que estamos a falar! Por isso, às vezes, dizemos que há um universo jurídico comum que compartilha de valores comuns, de ideias comuns, que é o universo da União Europeia. Mas, poderão VV. Ex.as dizer: "não, alto aí! E com o alargamento? É que, com o alargamento, as coisas já não serão bem assim." E eu direi:

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penso que não porque esses Estados, em relação aos quais vai existir alargamento, já são todos - penso que todos - membros do Conselho da Europa e, naturalmente, o processo de alargamento vai ter, ele próprio, as suas garantias. Agora, se me começarem a falar noutros países... Bem, aí as coisas já são diversas! Mas, por isso mesmo, é que o Estado português tem, neste caso, inteira liberdade.
Agora, repito, garantias absolutas não há. E dou como exemplo, porventura exemplo limite, a alteração da ordem constitucional. É que, entretanto, a ordem constitucional altera-se... e pronto! E quando falo em "alterações da ordem constitucional" não falo de "alterações da Constituição", como é óbvio, pois trata-se de conceitos bem distintos. Naturalmente que, quando falamos da União Europeia, não estamos a pensar que as mesmas possam ocorrer. Mas, quanto a outros países, já as coisas são diferentes.
Pergunta-me o Sr. Deputado Medeiros Ferreira: "Mas, nós estamos a fazer só isto por compromissos internacionais?" Ao que respondo: não, Sr. Deputado, nós estamos a fazer isto por compromissos internacionais passados porque assinámos a Convenção de Schengen. E - aqui só para nós, Sr. Deputado -, se esta interpretação do Tribunal Constitucional se mantiver, não estamos em situação de cumprir a Convenção de Schengen por inteiro. Disso não tenhamos dúvidas. Falemos claro, por uma vez: compromissos passados.

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Em que aspecto concreto, Sr. Ministro?

O Sr. Ministro da Justiça: - Ó Sr. Deputado, no aspecto em que, no Acordo da Convenção de Schengen, fizemos a seguinte reserva: "A República Portuguesa não concederá a extradição de pessoas quando reclamadas por infracções a que corresponde a pena ou a medida de segurança com carácter perpétuo. Todavia, a extradição será concedida sempre que o Estado requerente assegure promover, nos termos da sua legislação e da sua prática, em matéria de execução das penas, as medidas de alteração de que poderia beneficiar a pessoa reclamada".
Ora, isto foi-nos garantido pela Alemanha e também pelos Estados Unidos, embora não sejam da Convenção de Schengen. Mas, suponhamos que era um membro da Convenção de Schengen e nós não extraditamos!
Recomendo a todos VV. Ex.as que leiam o acórdão do "caso Variso" e que leiam o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa relativo ao cidadão jugoslavo Safet Agemat. Verificarão que ele contém a teoria do Tribunal Constitucional. Repito: é fácil dizer aqui, mas é, contudo, difícil dizer lá fora. A verdade é que nós, hoje, estamos em condições pouco boas de cumprir o Acordo de Schengen. E foi por isso que os outros Estados nos "obrigaram", ou melhor, desconfiando que isso era assim, nos disseram para acrescentarmos à nossa declaração "que Portugal cumpre os compromissos assumidos".
Portanto, VV. Ex.as têm aqui "pano" para poderem discutir esta matéria.
Quanto à "fabricação de convenções" a que se referiu o Sr. Deputado Medeiros Ferreira, só o termo "fabricação" já indica, obviamente, a opinião do Sr. Deputado sobre esta corrida convencional dos últimos tempos. Amanhã teremos ocasião de conversar mais aprofundadamente sobre esse tema.
Não resta dúvida de que, hoje, há, na União Europeia, uma preocupação dominante com o terceiro pilar. E, perante V. Ex.ª, que é um perito nessas matérias, em que eu não sou, até arriscaria a opinião de que aquilo que, de mais visível, se poderá esperar das negociações será, porventura, em relação ao terceiro pilar do Tratado.

O Sr. Medeiros Ferreira (PS): - Então, mais vale esperar por elas!

O Sr. Ministro da Justiça: - Sr. Deputado, sinceramente, não vejo... Não sei se V. Ex.ª se refere, por exemplo, à EUROPOL. Mas, pode referir-se, efectivamente. Também não sei se V. Ex.ª se refere ao relatório do Grupo de Alto Nível sobre o Crime Organizado que, efectivamente, contém algumas coisas que podem "condicionar" (este condicionar com aspas, apesar de tudo, e se quiser até só com uma aspa para ficarmos a meio!) os trabalhos da Conferência Intergovernamental.
A verdade, porém, é que há alguma coisa a que podemos chamar "a pressão dos povos", que também não podemos esquecer. E essa "pressão dos povos" tem sido, naturalmente, muitas vezes, invocada no quadro dos trabalhos dos Ministros da Justiça e da Administração Interna, como exigindo medidas urgentes dos Estados, pondo no terreno um aparelho de luta contra a criminalidade organizada. E é verdade que isso pode, de alguma forma, não direi condicionar mas, talvez, encaminhar os trabalhos da Conferência Intergovernamental. Sobre isso, amanhã, teremos certamente ocasião de tratar.
Quanto à pergunta sobre a pena de morte, antes de mais, Sr. Deputado António Filipe, devo dizer-lhe que quando falei em demagogia, não foi em relação a essa "demagogia" a que V. Ex.ª se referia, mas, sim, à demagogia de algumas pessoas que dizem: "Pena de morte! Vamos agora extraditar para que as pessoas sejam mortas!". Ora, não é isso que consta do texto que conheço. E já agora, para que fique gravado, devo dizer que conheço o texto do acordo da revisão constitucional que foi assinado. A minha hesitação deu-se quando o Sr. Deputado me perguntou sobre o articulado. É que, talvez por deformação profissional, eu só vejo articulados quando numerados e, dado que aqui não há bem uma numeração, não considerei, portanto, isto como articulado mas como exposição do acordo a que chegaram.
Claro que, nesta matéria da pena de morte, admito perfeitamente o raciocínio que refere. Mas se, para a prisão perpétua, vamos exigir garantias, boa garantias, sérias garantias, vindas de Estados sérios, então porque não aceitá-las também para o caso da pena de morte, a fim de ficarmos seguros e garantidos de que a pena de morte não será aplicada?
Srs. Deputados, da minha parte, direi, naturalmente, que assim é. Contudo, há aqui também outros factores que poderão influenciar e que já referi. Naturalmente que não há em Portugal nem em outros países uma posição militante contra a pena de prisão perpétua, há, sim, a negação da pena de prisão perpétua. Porém, os problemas, na pena de prisão perpétua, não se põem, digamos, no terreno da militância contra, mas, sim, no terreno da rejeição ou da admissão.

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Porém, em relação à pena de morte, há ordens jurídicas que a rejeitam em absoluto e, consequentemente, rejeitam poder admitir sequer que se vai extraditar alguém para um país em que, em abstracto, aplica àquele caso a pena de morte.
Dirão VV. Ex.as: "Mas a gente tem garantias de que não será assim". Pois bem, mas não é nesse ponto que as coisas se põem mas noutro anterior, ou seja, na posição filosófica de fundo que nega a existência da própria pena de morte como um desvalor. Admito perfeitamente e, por isso, se me perguntarem se este texto é admissível ou não, direi que é perfeitamente admissível; se, porém, me perguntarem se era o texto exacto que eu escreveria, direi que talvez não fosse, ou que não sei porque não fui confrontado com essa possibilidade.
Não quero, contudo, que daqui se extraia alguma crítica a quem o escreveu porque acho que está escrito de uma forma que tem lógica, que tem fundamento, que tem racionalidade, até porque a racionalidade é a mesma: "Não extraditamos porque temos garantias de que não será aplicada". Portanto, isto tanto se aplica à pena de morte como à pena de prisão perpétua.
Quanto à questão do asilo, uma vez que não tem relação directa com o que estamos a discutir, preferia, realmente, que o assunto passasse para amanhã. Em todo o caso, e, já agora, para vossa informação, direi que, no quadro da União Europeia, isto não permite naturalmente tirar qualquer conclusão. Mas, o que terá, porventura, levado a essa discussão é o facto de termos de admitir que, hoje, no estado actual das coisas, não há crimes políticos na União Europeia. Isso está escrito. Porém, repito e sublinho "no estado actual das coisas", porque as coisas podem alterar-se em algum dos Estados da União Europeia.
Na última convenção, que os países membros da União Europeia assinaram, consta um artigo que diz que "não há crimes políticos, crimes de opinião, na União Europeia". Entendamos. O que há, isso sim, é crimes de terrorismo na União Europeia, o que é diferente. Não há, portanto, crimes de opinião política e isso, penso, todos aceitamos que não haja. Talvez daí alguém possa querer tirar, imediatamente, a ilação de que, não havendo, então alguma consequência tem de ser tirada em relação ao asilo. Mas isso, penso que amanhã será talvez a boa ocasião de o discutirmos. Pela nossa parte, não temos aderido a essa tese.
Penso que respondi a tudo, mas, se deixei alguma coisa por responder, peço aos Srs. Deputados para me lembrarem.
Quanto ao artigo 5.º, como sabem, já foi presente à Assembleia uma alteração a alguns artigos do Código Penal, e, dentre eles, precisamente, o do âmbito de aplicação local do Direito Penal. O Governo tomou essa decisão na medida em que, como sabem, houve uma acção comum, aprovada no âmbito da União Europeia, relativamente à pedofilia e a crimes de natureza sexual contra crianças, no sentido de que esses crimes deveriam ser perseguidos quando cometidos por nacionais fora do território nacional. É o caso daquilo que, mais vulgarmente, se chama o turismo sexual. Alguém que vai a um outro país fazer turismo sexual, cometendo, enfim, crimes de natureza sexual em crianças.
Pensei muito na introdução de uma simples cláusula deste tipo no artigo 5.º do Código Penal. Achei, no entanto, que não havia razões que justificassem a limitação a este tipo de crimes e, então, alteramos o Código Penal para algo de mais vasto: "Crimes cometidos por residentes em Portugal, fora de Portugal, que não sejam perseguidos nesses países, podem ser perseguidos em Portugal". Crimes, em especial, contra as pessoas, que constituem a nossa preocupação fundamental. Foi essa a questão que me pôs o Sr. Deputado José Magalhães e que, no fundo, penso, a pôs no sentido de comprovar, como de facto comprova, que as coisas, no que diz respeito ao âmbito local do poder punitivo do Estado, estão também a mudar e tem que mudar, sobretudo numa sociedade como a nossa, de fronteiras abertas, de movimentações, de comunicação e, enfim, sem pretender afrontar o Sr. Deputado José Magalhães, obviamente, até, dentro de algum tempo, temos de pensar em crimes cometidos através de meios em que até, há pouco tempo, nem sequer pensávamos. Não é, obviamente, repito, para atacar o Sr. Deputado José Magalhães, sabido como é ser um cultor da Internet.

O Sr. José Magalhães (PS): - Da Internet sim, mas não da pirataria informática!

O Sr. Ministro da Justiça: - Mas, aí, há algumas coisas sobre que temos de começar a pensar.

O Sr. Presidente: - Sr. Ministro e Srs. Deputados, o Sr. Procurador-Geral da República já se encontra a aguardar a disponibilidade da Comissão. Contudo, o Sr. Deputado Marques Guedes tinha pedido a palavra, suponho, ainda para interpelar o Sr. Ministro da Justiça. Também tenho de dar ainda a palavra ao Sr. Ministro da Presidência e dos Assuntos Parlamentares.
Portanto, e um pouco já a título excepcional no diálogo com o Sr. Ministro da Justiça, neste segundo momento de interpelação, daria a palavra, primeiro, ao Sr. Deputado Marques Guedes, de seguida, ao Sr. Ministro da Justiça e, depois, ao Sr. Ministro da Presidência e dos Assuntos Parlamentares.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, começo por agradecer ao Sr. Ministro da Justiça as explicações que nos tem vindo a dar sobre uma série de questões e, com ressalto das afirmações desta segunda intervenção do Sr. Ministro da Justiça, o aspecto que me parece extremamente importante e significativo para aquilo que, neste momento, em boa verdade, preocupa esta Comissão - o que não quer dizer que todas as outras questões não sejam importantes também - é o que tem a ver com a declaração "formal" que o Sr. Ministro fez, na parte final da sua intervenção, quando disse que, do seu ponto de vista - e, penso, de acordo com a experiência que o Sr. Ministro tem, nomeadamente do estado actual da cooperação judiciária internacional -, entende que é possível corroborar que há garantias, consideradas suficientes entre Estados sérios, que podem perfeitamente acautelar as obrigações a que cada um se deseje comprometer.
No entanto, queria colocar ao Sr. Ministro uma questão pontual, mas que me parece de bastante significado, pelo menos na parte que ao PSD diz respeito, relativamente ao

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projecto da revisão constitucional que temos sobre a mesa e que, enfim, é um texto que, como é do conhecimento público, resultou do acordo entre o Partido Social-Democrata e o Partido Socialista e que é a seguinte: o Sr. Ministro deu a entender claramente - e concordo com o Sr. Ministro nesse sentido - que, em última instância, é demagogia, ou seja, não é verdade que uma formulação como aquela que está sobre a mesa esteja a importar, ainda que indirectamente, para a ordem jurídica portuguesa, a possibilidade da aplicação da pena de morte a qualquer cidadão, português ou não.
Assim, no sentido daquilo que o Sr. Ministro disse, desejava perguntar se não considera que, para além desse lado da medalha, que é profundamente importante e que aqui registamos, há um outro lado, esse extremamente positivo, do ponto de vista do PSD, no texto que resulta do acordo que temos sobre a mesa e que é o seguinte: não considera o Sr. Ministro, repito, que, ao contrário de estar a importar para a ordem jurídica portuguesa a certeza de que não acontece o tal sancionamento de pena de morte, nós - e quando digo "nós" refiro-me a Portugal e a outros Estados que tenham normas desse tipo - poderemos, com normas deste tipo, estar a exportar para países em cujas ordens jurídicas se inscreve actualmente a pena de morte, mas que, ao subscreverem e se comprometerem formal e seriamente a mecanismos deste tipo - até pela lógica que o Sr. Ministro ilustrou, penso que de uma forma bastante feliz aplicando a este caso, a propósito, salvo erro, o exemplo do cidadão Safet, jugoslavo, isto é, pela lógica da aplicação do princípio da igualdade internamente -, venham esses mesmos Estados, que embora tendo inscritas, na suas ordens jurídicas, normas perfeitamente desumanas como a da aplicação da pena de morte, por força deste tipo de mecanismos, a que se comprometem internacionalmente, venham esses mesmos Estados, dizia, importar mecanismos, através de compromissos internacionais, mediante os quais comecem, por eles próprios, a deixar, na prática, de aplicar a pena de morte? Digamos, finalmente, que há um efeito pedagógico que, não necessariamente mas também, pode advir de uma norma como esta.
É este o outro lado da questão que queria colocar ao Sr. Ministro porque me parece que, uma vez esclarecida, com frontalidade, com racionalidade e com clareza, como o Sr. Ministro o fez, tirando a pequena demagogia que se pode fazer, o outro perigo não está, efectivamente, em termos práticos, sobre a mesa.
Portanto, perguntava se o Sr. Ministro considera ou não que este outro efeito, a que, por comodidade, poderemos chamar pedagógico, que não é menor até pelo exemplo do caso concreto que o Sr. Ministro aqui citou, se pode reproduzir e aplicar indirectamente, no plano internacional, sempre que haja este tipo de soluções de comprometimento dos vários Estados.

O Sr. Presidente: - Para responder, se o desejar, tem a palavra o Sr. Ministro da Justiça.

O Sr. Ministro da Justiça: - Sr. Deputado, estou de acordo consigo e é evidente que é outra forma de encarar o problema. Sobre a questão colocada até lhe vou dar o seguinte exemplo concreto, pensando que não vou desvendar segredo algum visto que até me não foi pedido: quando se tratou da extradição desse cidadão jugoslavo, recebi uma carta do Ministro da Justiça do Land respectivo, em que começava por elogiar Portugal por ser um país que se opunha frontalmente à pena de prisão perpétua e depois dizia que "a Alemanha ainda não tinha dado esse passo mas que ele esperava que o mesmo fosse dado em breve" e, ao mesmo tempo, assegurava e dava-me até quadros e informações sobre a sua não aplicação na Alemanha, apesar de ainda constar da lei.
Aliás, como o Sr. Deputado sabe, também tivemos a pena de morte, até há bem poucos anos, no Código de Justiça Militar, e, no entanto, não era aplicada, até porque só poderia sê-lo em teatro de guerra e, segundo a ordem jurídica portuguesa, não estávamos em guerra nas ex-colónias.
Portanto, penso que se trata de uma outra visão que faz de contraponto em relação àquela que dei. Isto é, segundo uma visão, nós diríamos: "vocês têm a pena de morte e, portanto, não extraditamos porque, apesar das garantias que nos possam dar, repugna-nos a pena de morte"; segundo a outra visão, diríamos: "não, vocês têm a pena de morte e, por isso, só extraditamos se derem garantias de que não aplicam a pena de morte".
Acho que as duas coisas são perfeitamente aceitáveis e se me perguntar qual delas tem mais peso, devo dizer, sinceramente, que não sei, que nunca pensei nisso. Considero, contudo, que o seu raciocínio é também perfeitamente aceitável.

O Sr. Presidente: - Muito obrigado, Sr. Ministro da Justiça.
Tem a palavra o Sr. Ministro da Presidência e da Defesa.

O Sr. Ministro da Presidência e da Defesa (Dr. António Vitorino): - Sr. Presidente e Srs. Deputados, porque entendo que o Sr. Ministro da Justiça deu, melhor do que eu conseguiria, as explicações pertinentes sobre esta matéria, apenas pedi a palavra porque o Sr. Deputado Guilherme Silva, com aquela elegância que sempre o caracteriza, não quis deixar e sublinhar, pelo menos, a cumplicidade, senão mesmo a co-autoria moral ou material da proposta, para dizer, com toda a galhardia que "se é preciso um autor moral e se ninguém se acusar, sou eu!".

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Foi só para frisar que o que pedíamos era de todo pertinente!

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Guilherme Silva, queira desculpar, mas, agora, não é o seu tempo.

O Sr. Ministro da Presidência e da Defesa: - E também para dizer que corroboro, inteiramente, a interpretação que foi feita pelo Sr. Ministro da Justiça, que esteve, aliás, na base das várias intervenções que, de facto, fiz sobre esta matéria, e da preocupação que ela representa. E, ainda, para dizer que me parece ser de desdramatizar qualquer debate que queira tornar a alteração do artigo 33.º num conflito entre poderes e órgãos do Estado. Essa é a dinâmica natural do sistema democrático.
Há aqui uma interpretação jurídico-constitucional feita pelo órgão com competência própria, que é o Tribunal Constitucional, que mantém um diálogo com o órgão de

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soberania detentor do poder constituinte originário, que é a Assembleia da República. E, nesse sentido, é perfeitamente normal em democracia que esse diálogo entre a instância de controlo e fiscalizadora e a instância que tem a responsabilidade de elaborar a Constituição que vai ser aplicada, se traduza, exactamente, em situações como estas.
É manifestamente evidente que há uma interpretação do Tribunal Constitucional que, pelos vistos e no entendimento de uma maioria especialmente qualificada da Assembleia da República, vai para além daquilo que é a interpretação que deveria ser consagrada no texto constitucional. E a alteração da Constituição, por contraponto com uma interpretação constitucional, não é um factor de crise, antes pelo contrário, é um factor de vitalidade do sistema político-constitucional. É exactamente assim que as coisas se devem fazer.
Por outro lado, acho que nos devemos orgulhar pelo facto de termos uma democracia consolidada onde esse diálogo entre os poderes do Estado existe e onde é possível que cada um assuma a sua responsabilidade. Nem cabe à Assembleia da República pedir ao Tribunal Constitucional que assuma a responsabilidade de fazer leituras correctivas da Constituição, nem cabe também ao Tribunal Constitucional nenhum poder de se sobrepor à interpretação do que é o sentido do programa normativo constitucional, o que cabe, em exclusivo, à Assembleia da República.
O segundo apontamento, que quase me dispensaria de fazer em virtude de o Sr. Deputado Medeiros Ferreira ter saído da sala, mas que me parece importante ser feito, tem a ver com o facto de se saber se esta alteração constitucional é ou não ditada por compromissos na ordem externa.
Entendo que ela não é ditada exclusivamente por compromissos na ordem externa, não é um diktat exterior, mas é algo que tem a ver com a racionalidade do desenvolvimento do nosso próprio sistema jurídico-constitucional e dos valores a que somos fiéis e a que, em meu entender, nos mantemos fiéis, mesmo com uma alteração deste tipo. Mas, como disse o Sr. Ministro da Justiça e é particularmente proeminente, devo dizer, com sinceridade, que temos de antecipar um juízo de prognose sobre a evolução da situação no espaço europeu onde nos inserimos, designadamente no domínio da Justiça e dos Assuntos Internos, espaços vitais de integração política.
É que, quando falamos muito da visão funcionalista ou económico-social da integração europeia, por vezes, deixamos para trás as perspectivas da integração política e um dos elementos essenciais desta integração é, precisamente, o da cidadania europeia que se traduz em liberdade acrescida mas também tem de se traduzir em segurança acrescida. E estas duas faces da mesma moeda são indissociáveis.
De facto, parece-me preferível, com toda a sinceridade, que a estratégia do Estado português que é, por posição política, favorável ao reforço da integração política e ao aprofundamento da cidadania europeia, se faça mais por antecipação, através de uma estratégia preventiva, do que através de uma estratégia que nos obrigasse, depois, a introduzir alterações na Constituição ex post factum, isto é, cominados por decisões tomadas previamente no âmbito europeu e que pudessem ser suspeitas de inconstitucionalidade.
Portanto, a estratégia preventiva, em meu entender, é a mais correcta, no sentido não só de ser mais vantajoso, para um Estado como Portugal, que as alterações, no domínio da Justiça e dos Assuntos Europeus e da dinâmica de criação de um espaço judiciário europeu, sejam feitas no âmbito de convenções intergovernamentais, que concitam a vontade de todos os Estados e para as quais, previamente, preparamos o nosso ordenamento jurídico-constitucional, do que, amanhã, através da comunitarização de faixas desse terceiro pilar que estejam dotadas de carácter supranacional e que se imponham aos ordenamentos internos suscitando, inelutavelmente, difíceis e complexas questões de compatibilidade entre a força jurídica supranacional de normas comunitárias no domínio do terceiro pilar e regras fundamentais da Constituição da República Portuguesa.
Portanto, se pudermos poupar ao Estado português e à nossa democracia o desgaste de um debate desse género, que seria sempre travado em circunstâncias bastante mais difíceis e complexas, e se pudermos antecipar o que é o nosso próprio contributo para um espaço judiciário europeu, que reflicta mais liberdade e também mais segurança dos cidadãos europeus, creio que estaremos a andar no bom caminho.
Nesse sentido, diria que não vale a pena esperar e que é preferível antecipar. E este esforço de antecipação que está aqui a ser feito, que está ensejado pelo acordo entre o PS e o PSD, em meu entender, não é uma solução de desprotecção constitucional, pois há suficientes cláusulas de salvaguarda e de garantia no próprio texto constitucional, tal como ele, neste momento, se apresenta em cima da mesa como proposta, para garantir que continuamos fiéis aos mesmos valores e à mesma tradição humanista de que há pouco falava o Sr. Prof. Barbosa de Melo, muito adequadamente.
Com efeito, essa tradição humanista portuguesa, específica, é um dos grandes laços de partilha cultural que temos com os restantes países da União Europeia e define o espaço judiciário europeu que também queremos construir.

O Sr. Presidente: - Muito obrigado, Sr. Ministro da Presidência. O Sr. Deputado Marques Guedes pediu a palavra?

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sim, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra, Sr. Deputado.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, desejava fazer um pequeno pedido, mais de precisão do que de esclarecimento, ao Sr. Ministro da Presidência e da Defesa, até porque, penso, já houve clareza suficiente da sua parte, mas é uma pequena precisão que desejava colocar ao Sr. Ministro, o que me leva a recapitular apenas dois ou três aspectos que, de resto, foram marginalmente citados nesta reunião, que temos vindo a manter, por alguns dos Srs. Deputados presentes, do meu ponto de vista, de uma maneira algo infeliz.

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Com efeito, recordo - e todos os Srs. Deputados que paticiparam activamente na primeira Comissão, e muitos deles estão presentes neste momento, sabem-no bem porque está gravado, está em actas, consta de documentos assinados e escritos -, recordo, dizia, que, na discussão mantida na primeira leitura, aconteceram duas coisas, face à questão da extradição de cidadãos portugueses.
Assim, o projecto inicial do Partido Socialista apontava apenas duas razões, aqui aduzidas na altura e que constam da acta, "desde que para Estados membros da União Europeia" ao que o PSD mostrou receptividade imediata, desde logo, explicitando apenas que tinha reservas, dado o carácter transfronteiriço e transnacional do crime organizado e do terrorismo internacional e que duvidava da eficácia da norma se se restringisse a "fora das fronteiras nacionais", mas, apesar de tudo, devia tentar marcar-se novas fronteiras, ainda que pudessem ser as da União Europeia.
É evidente, para nós, que o carácter transfronteiriço deste tipo de alta criminalidade rapidamente se encarregaria de tornar obsoleto um qualquer outro traçar de fronteiras. Foi, portanto, essa a única objecção que, de resto, consta, exemplarmente, do guião da primeira leitura, elaborado pelo então presidente da Comissão, Prof. Vital Moreira.
Quanto à segunda questão, também já aqui citada, que tem que ver com a problemática da abertura ou não da excepção à extradição no caso de pena de morte e de prisão perpétua por parte do Estado requisitante, queria lembrar também, para além daquilo que já foi explicitado e que também consta do guião do Prof. Vital Moreira, da primeira leitura, para quem tenha dúvidas, que isto foi tudo aqui debatido, com toda a abertura e com toda a transparência, pelos deputados da primeira leitura que, inclusive - e isto não foi aqui citado agora pelo que também o acrescento -, na altura, quando se procurou uma nova redacção, o Partido Social-Democrata, pela minha voz, lançou para o debate a hipótese de que essas garantias tivessem o valor máximo, de acordo com aquilo que o Sr. Ministro hoje, aqui, nos falou, digamos, dentro daquilo que se pode entender por "valor máximo ou absoluto" que era a celebração de uma convenção internacional.
O Partido Social-Democrata chegou a propor que a excepção fosse "salvo se com ele estiver vigente convenção internacional que expressamente proíba ou comute a aplicação desse tipo de penas", ao que o Partido Socialista, se bem me recordo, pelo voz do Sr. Deputado Alberto Martins aqui presente, expressou, na altura, para tanto, dando nota à Comissão de documentos internacionais que aqui citou profusamente que, hoje em dia, obrigar a convenções internacionais talvez fosse excessivo e que a terminologia já utilizada em vários documentos internacionais, nomeadamente do Conselho da Europa e de convenções, apontavam já para "especiais garantias ou garantias tidas por suficientes".
Penso que foi essa a terminologia e foi nessa sequência que o Partido Socialista, nesta Comissão, na primeira leitura, formalizou a proposta que consta das nossas actas de trabalho e que está assinada pelo Srs. Deputados António Reis e José Magalhães.
É bom que a verdade dos factos seja reposta para que não haja dúvidas sobre isso.
Por outro lado - e esta parte tem que ver mais directamente com o Sr. Ministro e entronca-se no pedido de precisão que lhe queria fazer -, o Sr. Ministro, certamente recordar-se-á bem de que, entre a primeira e a segunda leitura, foi encetado entre os nossos dois partidos um processo de negociação política, processo esse em que, quando colocamos a questão do artigo 33.º, foi feito aos não participantes nesta Comissão Eventual, como é o caso do Sr. Ministro, o relato do ponto a que o debate chegou na primeira leitura, e, face à grande aproximação que já havia entre os dois partidos, foi solicitado expressamente ao Sr. Ministro, atendendo às questões de Estado que estão necessariamente subjacentes a uma matéria como essa, que diligenciasse, junto do Governo de que o Sr. Ministro faz parte e dos Ministros directamente responsáveis, uma apreciação crítica ao texto que estava em gestação para que, da parte desse acordo político, com toda a segurança e com toda a perspectiva correcta em termos políticos, se avançasse para uma redacção que satisfizesse todos os interesses em presença, nomeadamente os do Estado português.
Isso aconteceu, pôde acontecer e chegou-se a uma formulação concreta, no âmbito das duas equipas negociais.
A partir daí, com toda a lealdade, queria recordar ao Sr. Ministro, do que, aliás, bem se recordará, que já depois de terminadas as conversações, embora antes ainda da assinatura formal e pública do acordo de revisão constitucional, foi feita uma diligência directamente, por parte do Partido Social-Democrata, face a algumas vozes que já se levantavam, fruto de notícias que "pululavam" nos jornais daquelas semanas, foi feita uma diligência por parte do Partido Social-Democrata, dizia, junto do Sr. Ministro, no sentido de averiguar até que ponto é que, da parte do Governo e da parte do Partido Socialista, mas em particular da parte do Governo, haveria ou não uma nova sensibilidade ou dados supervenientes que levassem a uma reponderação eventual da questão que tem que ver expressamente com a pena de morte, diligência à qual o Sr. Ministro, com toda a clareza - de resto, devo aqui dizer, com toda a frontalidade, que clareza, correcção e lealdade negocial foram apanágio indiscutível de ambas as partes ao longo de todo este processo, referindo-me, neste caso concreto, ao Partido Socialista e ao Partido Social-Democrata -, disse "que não, que a questão deveria ser mantida".
De resto, isso mesmo também se reflectiu na redacção concreta do acordo que foi assinado pelas duas partes, onde o Partido Social-Democrata começou por propor uma redacção mais mitigada, sobre o que o Partido Socialista explicitou que "nesta matéria da extradição não vamos poupar palavras, mas vamos, com clareza, frontalidade e lealdade política, colocar aqui exactamente aquilo que é pretendido para que não subsistam dúvidas".
De facto, foi isso o que aconteceu e, portanto, a minha questão, com toda a lealdade - e ouvi o Sr. Ministro atentamente -, parece-me poder concluir, com certeza, da intervenção que o Sr. Ministro aqui fez que pessoalmente mantém a opinião que tinha.
Face a isso, a precisão que lhe pedia era se, de facto, o Sr. Ministro entende ou não que há, para além da sua opinião pessoal, algum dado superveniente que ao nível das preocupações institucionais que o Sr. Ministro, neste momento,

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por ser um dos titulares do órgão de soberania "Governo" possa, eventualmente, carrear para esta Comissão ou se há algum dado superveniente que leve a que a posição possa ser revista e deva ser alterada.
Apesar de já ter entendido a sua posição pessoal, era esta a pequena precisão que solicitava, uma vez que o Sr. Ministro, como se sabe, participou neste processo, para além da natureza pessoal, também com um carácter institucional.

O Sr. Presidente: - O Sr. Ministro António Vitorino deseja responder?

O Sr. Ministro da Presidência e da Defesa: - Com todo o gosto, Sr. Presidente, até porque isso poupará alguns parágrafos nas minhas memórias e, portanto, embora estivesse a reservar partes das conversas de negociação para as memórias, posso já antecipá-las. Apesar de tudo, a história das conversas para este artigo não fica no ponto que o Sr. Deputado Marques Guedes se quis quedar. Mas, de todo o modo, como deve calcular, essa, aí, é a parte que vou mesmo reservar para as memórias porque convém sempre manter alguma parte, enfim, quanto mais não seja, para "efeitos promocionais".
Creio que o Sr. Ministro da Justiça tornou totalmente clara a visão que, enquanto membros do Governo, podíamos ter sobre esta matéria e, sobre isso, não há qualquer ambiguidade nem nenhuma posição férrea, nem inflexível, nem fechada. Daí a vantagem desta troca de impressões, à volta da mesa.
Não se trata de um problema de dogma. O Sr. Ministro da Justiça traduziu, com muita clareza, qual era a zona em relação à qual, efectivamente, há uma manifesta relevância em face dos compromissos internacionais que estamos a assumir e em face do que é a dinâmica da evolução do espaço judiciário europeu e quais são aqueles outros aspectos da proposta que podem ser considerados como fora do contexto dessa zona imprescindível e que estão na livre disponibilidade, naturalmente, do juízo valorativo de cada um, ou seja, aquele que o Sr. Ministro da Justiça aqui trouxe e aquele que eu também trouxe e que, em meu entender, são totalmente consonantes.
Contudo, percebo onde o Sr. Deputado quer chegar e não preconizo, falando agora a título estritamente pessoal, nenhuma leitura de excesso de zelo quanto a esta matéria. Portanto, é possível ser-se claro sem se sofrer de excesso de zelo e confio, acima de tudo, no juízo de prudência e de bom senso dos Srs. Deputados para encontrarem essa bissectriz entre a clareza, que evite o excesso de zelo, e uma solução que responda efectivamente aos desafios com que Portugal está confrontado no contexto internacional e, especificamente, no contexto europeu.

O Sr. Presidente: - Muito obrigado, Sr. Ministro. A bon entendeur...
Srs. Deputados, agradecendo ao Srs. Ministros da Justiça e da Presidência a disponibilidade, vamos passar à fase seguinte da nossa audiência.
Peço aos Srs. Deputados que não se dispersem porque o Sr. Procurador-Geral da República, já, há muito tempo, aguarda a disponibilidade para vir à nossa reunião.
Vamos interromper a reunião por alguns minutos.

Eram 17 horas e 45 minutos.

Srs. Deputados, vamos reiniciar os nossos trabalhos.

Eram 17 horas e 48 minutos.

Agora, com a presença do Sr. Procurador-Geral da República, a quem agradeço toda a disponibilidade para contribuir para o processo de reflexão em curso, nesta Comissão, em torno do destino do artigo 33.º, que se reporta à temática da extradição, da expulsão e do direito de asilo. No entanto, a matéria que, neste momento, nos ocupa é essencialmente a da temática da extradição.
Tivemos ocasião de ouvir, neste processo de reflexão, os Srs. Ministros da Justiça e da Presidência, os quais nos deram conta da situação das relações do Estado português, no contexto internacional, em matéria de aplicação das convenções de extradição, das implicações do Acordo de Schengen e da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen e de algumas reservas a que o Estado português teve de recorrer no sentido de compatibilizar a vigência desses compromissos internacionais com o disposto na Constituição Portuguesa.
Já tivemos também ocasião de reflectir sobre as implicações interpretativas por parte do Tribunal Constitucional no que diz respeito ao regime da extradição decorrente de uma compreensão integrada e sistemática da Constituição Portuguesa, nesse domínio.
Há, no entanto, algumas disposições no sentido de rever aquele dispositivo que resultaram, designadamente, da primeira leitura ocorrida na Comissão de Revisão Constitucional sobre a matéria e justamente, Sr. Procurador-Geral, aquilo que era propósito da Comissão, nesta audição com V. Ex.ª, tem, no essencial, que ver com o grau de implicação que a disposição constitucional vigente tem relativamente às possibilidades que se oferecem ao sistema judicial português no que diz respeito à sua contribuição, ou seja, ao Estado português para poder dar resposta adequada, no domínio internacional, ao combate à criminalidade sem prejuízo dos valores essenciais quanto à protecção dos direitos humanos, que são igualmente apanágio do nosso ordenamento constitucional.
Neste quadro e neste contexto, tomo a liberdade de pedir a contribuição do Sr. Procurador-Geral da República para a reflexão que tivesse por oportuna, sobre essa matéria.

O Sr. Procurador-Geral da República (Cunha Rodrigues): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: queria começar por agradecer a honra que me conferem em estar aqui. Creio que não vou acrescentar nada àquilo que foi trazido pelos Srs. Ministros da Presidência e da Justiça. Farei um relato muito sucinto do problema no que toca à questão judicial.
Em Agosto do ano transacto, tive ocasião de propor ao Sr. Ministro da Justiça uma alteração da Constituição quanto ao problema da aplicação da prisão perpétua nas relações de extradição porque considerei esgotado o esforço jurisprudencial nesse sentido. Isto é, pareceu-me que não haveria perspectivas de uma evolução da jurisprudência do Tribunal Constitucional no sentido de admitir a extradição nos casos de aplicação da pena de prisão perpétua. Tanto mais que essa jurisprudência foi seguida pelo

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Supremo Tribunal de Justiça e, em grande parte, pelas Relações.
E esgotado esse esforço da jurisprudência, pareceu-me indicado que se procedesse a uma alteração da Constituição nesse ponto, tornando claro aquilo que parecia, a mim e ao Ministério Público, de que é possível a extradição no caso de previsão da prisão perpétua, mesmo sob a égide da actual redacção da Constituição. Isto é, no entender do Ministério Público e no meu próprio entender, não seria necessário rever a Constituição porque ela mesma contempla ou, enfim , implicitamente autoriza a extradição no caso de ser prevista a aplicação da prisão perpétua.
Não é este o entendimento do Tribunal Constitucional, não foi este o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça nem das Relações e, portanto, julguei esgotado o esforço que estávamos a fazer no sentido de motivar uma evolução da jurisprudência, solicitando ao Sr. Ministro que tivesse a amabilidade de apresentar à Assembleia uma proposta de revisão da Constituição, nesse ponto.
As reservas que fizemos, quer à Convenção Europeia sobre Extradição de 1957, quer ao Acordo que implicou a execução da Convenção de Schengen, quer àquela que nos propomos fazer à convenção que foi aprovada em 96, representam um esforço diplomático interessante. No entanto, colocaram-nos graves dificuldades no domínio das relações multilaterais porque há um obstáculo que, penso, será incontornável, pois não vejo que a jurisprudência vá evoluir no sentido de considerar possível a aplicação da extradição nos casos em que seja possível a prisão perpétua.
Por isso, veria com interesse, até porque representa, a meu ver, um pressuposto fundamental no combate à criminalidade transnacional e à criminalidade altamente organizada, que seja prevista a possibilidade de extraditar, mesmo nos casos em que é possível a aplicação da prisão perpétua, se o Estado requisitante der garantias consideradas suficientes pelo Estado requisitado de que não será aplicada, na prática, ou será, enfim, alterada, modificada ou comutada a prisão perpétua noutro tipo de pena.
Já não é esse o meu pensamento quanto à pena de morte. Sobre esse ponto não tomei qualquer iniciativa e não tenho qualquer rebuço em dizer que penso que a questão é totalmente diferente. Temos um património histórico e cultural que temos de preservar. Fomos dos primeiros países a abolir a pena de morte, a qual não é aplicada em Portugal para crimes políticos desde 1834, embora só abolida em 1852, e para os crimes comuns em 67. Por isso, pareceria-me, de facto, um mau contributo, não só para a formação da opinião pública internacional como para o próprio património europeu, se Portugal, neste momento, recuasse nesse ponto.
Tanto mais que, depois do protocolo do SEXTO à Convenção Europeia, o Conselho da Europa tem hoje praticamente resolvido o problema da pena de morte. E a questão coloca-se, nesse ponto, fundamentalmente, como uma questão histórica e simbólica.
Resumindo, Sr. Presidente e Srs. Deputados, proporia uma revisão da Constituição que clarificasse que é possível a extradição, ainda que seja aplicável prisão perpétua pelo Estado requisitante, desde que esse Estado dê garantias consideradas suficientes pelo Estado requisitado de que não será, efectivamente, executada a pena de prisão perpétua mas outra pena por comutação, por substituição ou por alteração.
Queria, finalmente, representar apenas a VV. Ex.as um dado empírico. É que, na prática, hoje, são pouquíssimos os Estados que executam penas de prisão perpétua. Dá-se até, enfim, este aspecto, que considero algo caricatural, de, em termos estatísticos, o Estado, na União Europeia, que manteve, até mais tarde, a prisão perpétua e a pena de morte ter sido a Bélgica e as penas de morte aplicadas por este país, nos últimos 10 anos, consubstanciarem-se, na prática, em penas que não vão além de 9, 10, 11 ou 12 anos. Isto é, há um ano em que confrontei estatísticas, salvo erro em 1982, em que os condenados a pena de morte apenas cumpriram nove anos de prisão, o que significa que nove anos depois, a comunidade viu o pretenso morto regressar a casa pelo seu pé.
Este é o sinal de que a prática dos países é muito diferente da sua configuração teórica, dogmática e positivista e que não haveria, enfim, grandes dificuldades em que assumíssemos essa posição que vai consubstanciar-se, na realidade, numa boa cooperação com outros países e representará, efectivamente, uma melhoria no combate à criminalidade e uma consequência dos programas que estão implícitos, quer nas duas Convenções sobre Extradição, quer no Acordo de Schengen.
E era isto.

O Sr. Presidente: - Muito obrigado, Sr. Procurador-Geral. Certamente V. Ex.ª estará disponível para responder a algumas questões que os Srs. Deputados entendam por pertinentes, pelo que passaria a dar a palavra aos Srs. Deputados que desejem colocá-las.
Tem a palavra o Sr. Deputado Guilherme Silva.

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Procurador-Geral, como sempre ouvimos as suas exposições, muita claras, sobre estas questões. Queria começar por pedir desculpa em nome da Comissão e, no fundo, de nós todos, também. O Sr. Presidente com certeza que adiantará ou já adiantou o atraso com que começamos esta reunião com V. Ex.ª mas, como calcula, o Parlamento tem sempre esta imprevisão relativa sobre os nossos trabalhos.
De facto, alongou-se um pouco mais a primeira audição com os Srs. Ministros, o que motivou o referido atraso. Pedimos, por isso, desculpa pelo tempo que o Sr. Procurador-Geral teve de esperar.
Queria ainda, em nome do PSD e em meu nome pessoal, agradecer mais uma vez a disponibilidade, que o Sr. Procurador-Geral sempre tem, de vir ao Parlamento, quer no âmbito da Primeira Comissão e de outras solicitações e, agora, concretamente, nesta questão da revisão constitucional e neste ponto particular da extradição.
Fiquei, portanto, com a informação das razões que são de todo pertinentes em relação à necessidade, fundamentalmente por razões da nossa jurisprudência constitucional, de aclarar este ponto da possibilidade de extradição em casos de aplicação da prisão perpétua, desde que, efectivamente, sejam dadas garantias, pelo Estado requisitante, da não execução daquela pena. Mas, do meu ponto de vista, ficou em branco uma questão, que não estaria, obviamente,

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no âmbito das preocupações que o Sr. Procurador-Geral transmitiu ao Sr. Ministro, e que nos foram presentes no âmbito do nossos trabalhos de revisão, que é o problema da extradição de cidadãos nacionais.
Ou seja, se V. Ex.ª, quando põe este problema relativamente à prisão perpétua, está a pensar já também na extradição, sem reserva ou sem exclusão, de cidadãos portugueses ou se, pelo contrário, entende que não colide com esta vertente da cooperação externa, com esta vertente de uma situação de determinado tipo de criminalidade internacionalmente organizada e mais grave, a manutenção do princípio constitucional, hoje vigente e decorrente também de algumas convenções de extradição, da reserva da não extradição de cidadãos portugueses.
Era esta a questão que desejava colocar a V. Ex.ª.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Agradeço também ao Sr. Procurador-Geral o facto de ter aceite prontamente o convite para vir a esta Comissão, por um lado, e, por outro, a clareza com que expressou aqui a sua opinião pessoal sobre a matéria.
Em qualquer circunstância, o pedido de esclarecimento que queria fazer a V. Ex.ª, independentemente de ser, como é óbvio, bastante importante para esta Comissão, atendendo à personalidade que é, era mais no sentido de saber a sua opinião pessoal sobre alguns aspectos de natureza institucional que, enfim, não foram expressamente abordados na sua intervenção inicial e que são, de sobremaneira, interessantes para nós e que gostaria de ver algo precisados pelo Sr. Procurador-Geral.
Em primeiro lugar, sobre a expressão que utilizou relativamente ao assunto nuclear da extensão ou não destes mecanismos correctivos do actual texto constitucional, relativamente ao problema da existência da pena de morte nos Estados requisitantes da extradição. O Sr. Procurador-Geral utilizou, salvo erro, a expressão de que "do seu ponto de vista pessoal, veria mal ver Portugal recuar nesta matéria".
Ora, penso que a expressão "recuar" não é exactamente correcta e, por isso, colocava, desde já, a seguinte questão: entende o Sr. Procurador-Geral, daquilo que conhece - pelo menos não levantou qualquer dúvida sobre a formulação exacta do que nos traz aqui em discussão -, que, nessa redacção, não estão suficientemente salvaguardadas as garantias suficientes, dentro daquilo que é possível assegurar entre Estados de direito, de que a pena de morte nunca seria aplicada?
É que, a não ser assim - e permita-me "a laia" de alguma fundamentação deste pedido de esclarecimento -, haveria como que alguma contradição entre aquilo que o Sr. Procurador-Geral expressou relativamente à prisão perpétua, uma vez que, pelo menos no plano garantístico das relações entre Estados de direito e entre ordens jurídicas, o problema é perfeitamente idêntico.
Portanto, o Sr. Procurador-Geral entende, como expressou aqui - de resto, até revelando que tinha feito institucionalmente uma proposta ao Sr. Ministro da Justiça relativamente à questão das penas de prisão perpétua, aparentemente, por identidade de circunstâncias -, que as situações garantísticas, em termos de relacionamento de ordens jurídicas, tanto valem para uma coisa como para outra?
A segunda questão que desejava colocar era se o Sr. Procurador-Geral entende, da experiência natural que tem da cooperação judiciária internacional ou com múltiplos países, que, de facto, é possível hoje, ainda que de uma forma selectiva, relativamente a países com os quais se procuraria uma parceria em termos de reciprocidade, como é proposto para matérias como estas, que existem suficientes garantias de seriedade no cumprimento de compromissos no plano da cooperação judiciária internacional que possam tranquilizar, neste caso e num primeiro momento, o legislador constituinte, e, num segundo momento, o cidadão português, que verá reflectido um texto desta natureza na sua lei fundamental? Ou seja, que possam tranquilizar, em termos daquilo que são "garantias aceitáveis entre Estados de direito" para a celebração de mecanismos de reciprocidade de garantias tidas por suficientes e que possam velar por estas questões?
Por último, colocava a questão que ressaltou de uma preocupação que foi aqui explicitada na audição que esta Comissão manteve com o Sr. Ministro da Justiça e que é a seguinte: o Sr. Ministro da Justiça chamou a atenção para o facto de que, hoje, nomeadamente no tipo de criminalidade específica que é conhecida por "terrorismo ou criminalidade altamente organizada", existe uma vantagem no tratamento criminal dessas situações - uma vantagem manifesta, segundo o Ministro da Justiça -, no sentido de que os eventuais co-autores de determinado acto terrorista ou de participação em crime organizado possam ser julgados em conjunto e sob uma mesma jurisdição.
O Sr. Ministro da Justiça utilizou essa justificação como um dado, de algum modo, novo e fruto da evolução dessa mesma criminalidade e terrorismo internacional e, nessa realidade, fundamentou a defesa de que, de facto, devem as ordens jurídicas nacionais criar as condições para que se possa dar esse passo, em termos de ganhar não só alguma eficácia acrescida mas também equidade no tratamento de situações que devem ser consideradas iguais, nomeadamente nas co-autorias e participações em estruturas organizadas de criminalidade internacional.
Portanto, perguntava ao Sr. Procurador-Geral se também subscreve a leitura que o Sr. Ministro da Justiça faz, numa perspectiva técnica e de relacionamento institucional efectivo entre aquela que é, hoje , a realidade acusatória e de julgamento deste tipo de situações face à multiplicidade de envolvências que, também hoje, ela transporta.

O Sr. Presidente: - Para um pedido de esclarecimento, tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, Sr. Procurador-Geral da República, já estão colocadas duas das questões que, neste momento, estão em apreço na Comissão de Revisão Constitucional. Contudo, gostaria de lhe colocar uma pergunta sobre uma questão que tem sido objecto de particular atenção e que importa discutir até ao fim. Refiro-me à questão da alteração da norma constitucional aplicável ao regime da extradição quando o extraditando possa incorrer em pena abstracta de pena de morte.

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Face à globalização do crime e à acrescida liberdade de circulação, não só europeia como mundial, estão em confronto duas possibilidades de actuação: ou se permite a extradição de quem possa incorrer nessa pena, mas por qualquer razão tenha conseguido achar-se em território nacional, embora obtendo garantias adequadas de que a pena não será consumada e aplicada, ou, num segundo cenário (são duas hipóteses de trabalho distintas, embora em nenhuma delas esteja em causa aplicar a pena de morte mas sim evitá-la e, nesse sentido, a proposta que esteve considerada na primeira leitura e depois disso, precisamente, não visava a aplicação da pena de morte mas, pelo contrário, visou sempre garantir que nunca houvesse aplicação da pena de morte, dentro de um cenário em que permitia a extradição). Num segundo cenário, dizia, os Estados reclamam e auto-atribuem-se uma espécie de capacidade punitiva reforçada. E, portanto, neste cenário, que é, de resto, antevisto na proposta do artigo 5.º revisto do Código penal, apresentado pelo Governo, há dias, na Assembleia da República, o Estado assume, como função sua, julgar essas pessoas que não extradita e, portanto, aplica um princípio que eu podia sintetizar assim: "Não extradito para que não seja julgado alhures mas julgo eu aquilo que Estado alheio não julgará e, portanto, se não se lhe aplica pena de morte, seguramente não ficas impune". É essa a regra básica.
A questão que se coloca para trabalharmos este segundo cenário é a de saber se o Estado português pode julgar eficazmente cidadãos que praticaram actos, noutros territórios, puníveis, em abstracto, com pena de morte, insusceptíveis de serem extraditados face ao quadro constitucional português mas sendo certo que há problemas de determinação do ilícito criminal exacto, uma vez que nem sempre há a sobreposição exacta das malhas punitivas e tipificadoras entre o direito português e o direito estrangeiro, sendo certo que estão em causa todos os direitos estrangeiros.
É que quando o Estado assume essa função punitiva reforçada assume que vai aplicar penas por ilícitos similares aos configurados em todos os outros Estados que não o próprio.
Para trabalharmos essa hipótese, que é a hipótese alternativa àquela que esteve, e está ainda, em cima da nossa mesa, na sequência da primeira leitura, é importante que tenhamos um olhar sobre as possibilidades de eficácia da aplicação deste segundo cenário porque, obviamente, Portugal não pode ser tido no mundo, com razão ou sem razão, pois não me interessa nada a propaganda dirigida contra Portugal mas interessa-me, seguramente, aquilo que nós somos capazes de julgar objectiva e rectamente sobre a eficácia do nosso sistema punitivo e, nessa matéria, acho que devemos ser nós o mais cruéis e exigentes possível, independentemente dos juízos de terceiros.
Portanto, a questão é de saber se o nosso sistema punitivo tem capacidade, nesse segundo cenário, para aplicar e punir aqueles que, por actos de terrorismo, de destruição, de homicídio ou outros, busquem em Portugal refúgio a que não têm direito em sítio nenhum do mundo, porque precisamos de ter garantia de que são julgados e condenados, eficazmente. Temos condições para isso, se o Estado português decidir enveredar por aí, através de uma decisão da Assembleia da República?

O Sr. Presidente: - Se o Sr. Procurador-Geral estivesse de acordo, ouvíamos ainda mais dois Srs. Deputados que pediram a palavra para formular pedidos de esclarecimento.

O Sr. Procurador-Geral da República: - Com certeza, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Moreira da Silva.

O Sr. Moreira da Silva (PSD): - Sr. Procurador-Geral, se me permite, fazia-lhe o seguinte pedido de esclarecimento sobre uma questão que me parece fundamental nesta discussão e que é: a partir do momento em que se põe a hipótese de abrir a norma constitucional à possibilidade de extraditar cidadãos para Estados onde seja possível a prisão perpétua, a questão fundamental é garantir a existência de garantias e de garantias suficientes. Por isso, essa norma em branco das garantias suficientes parece ser, na minha opinião, a pedra de toque desta discussão. E de tal forma que não concordaria - e também pedia alguns esclarecimentos sobre isso - com o Sr. Procurador-Geral, quando reafirma que está de acordo com essa perspectiva relativamente à prisão perpétua mas já não relativamente à pena de morte, porque me parece que se nós entendemos que acreditamos no país estrangeiro, relativamente às garantias de não aplicação da pena de prisão perpétua, também acreditamos na garantia desse país terceiro relativamente à não aplicação da pena de morte.
Por isso, se as garantias são suficientes para a não aplicação da prisão perpétua, são também suficientes para a não aplicação da pena de morte. Portanto, ao admitir a abertura para um caso, penso que não teremos grandes argumentos para não admitir também relativamente ao outro caso, ou seja, à pena de morte.
Por isso, torna-se mais premente discutir a suficiência desta garantia, principalmente tendo em conta que não falamos só em países com o mesmo sistema jurídico que o nosso mas em todos os países que poderão pedir a extradição a Portugal, inclusivamente com sistemas jurídicos muito diversos dos nossos, com sistemas de protecção dos Direitos do Homem muito diferentes dos nossos, mas também relativamente aos seus sistemas políticos e qual a viabilidade de uma garantia dada por um órgão do Estado, que não é o aplicador da pena, e que garantia nos poderá servir a nós de que o outro órgão aplicador da pena vai cumprir a garantia dada por outro órgão terceiro.
Sobre esta questão, também pedia, claramente, um esclarecimento.

O Sr. Presidente: - Para finalizar, tem a palavra o Sr. Deputado António Filipe.

O Sr. António Filipe (PCP): - Apenas faria uma pergunta muito breve na medida em que duas das três questões que queria colocar já estão colocadas, sendo que uma diz respeito á extradição de nacionais, já colocada pelo Sr. Deputado Guilherme Silva, e a outra diz respeito às "garantias aceitáveis de não aplicação da prisão perpétua".

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Porém, a questão que gostaria de colocar diz respeito a outro tipo de penas que foi, aqui, abordado, na primeira leitura que fizemos dos projectos de revisão constitucional, com relação com a extradição, e que são as penas cruéis, degradantes ou desumanas, para utilizar uma formulação que constava de um projecto de revisão apresentado.
O Sr. Procurador-Geral deu-nos a sua opinião relativamente à extradição por crimes a que corresponde a pena de morte e a pena de prisão perpétua, segundo o direito do Estado requisitante. Agora, pedia que nos desse a sua opinião relativamente aos casos em que possa ser aplicável outro tipo de penas, designadamente aquelas que configuram situações de tortura ou outro tipo de penas como castigos corporais as quais não se enquadram na nossa tradição civilizacional e que, genericamente nos repugnam.
Portanto, gostaria de saber a sua opinião relativamente às situações em que possa estar em causa uma eventual extradição para um país que possa vir a aplicar penas dessa natureza.

O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado Barbosa de Melo.

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Em primeiro lugar, gostaria de deixar claro que muito gostei de ouvir o Sr. Procurador-Geral da República expor, com concisão e rigor, a sua opinião sobre a temática que estamos a debater. Fê-lo com clareza, deixando bem claro o que pensa sobre o problema em geral.
Foi-lhe pedido, por parte do Sr. Deputado Guilherme Silva, que abordasse a questão da extradição de portugueses, que omitiu, seguramente por razões materiais.
Pedia também ao Sr. Procurador-Geral que, ao responder a isso, nos dilucidasse visto que está na instância que, directamente, lida com os casos, e nos desse, se possível, uma indicação de quantos são os portugueses em relação aos quais se poderia pôr, praticamente neste período, o problema da extradição por crimes cometidos no exterior.

O Sr. Presidente: - Para responder, se o desejar, tem a palavra o Sr. Procurador-Geral da República.

O Sr. Procurador-Geral da República: - Sr. Presidente, Srs. Deputados, queria dar a explicação de que não abordei a questão dos nacionais porque admiti que não me tivesse sido colocada. O Sr. Presidente tinha referido, apenas, a questão da extradição, tendo-a ligado ao problema da prisão perpétua.

O Sr. Presidente: - Tem toda a razão, Sr. Procurador-Geral.

O Sr. Procurador-Geral da República: - Mas tenho todo o gosto em adiantar o meu ponto de vista: creio que, no espaço da União Europeia, o problema da extradição de nacionais é fundamental por razões várias e devia colocar-se, em termos gerais, em regime de reciprocidade, com as garantias que a Constituição pudesse prever.
Este aspecto tem que ver com várias exigências de combate à criminalidade que passam, por um lado, pela gestão das provas, que só podem ser feitas correctamente no local onde é praticado o crime, com um problema, que começa a ser preocupante nas relações internacionais, que é o da repetição dos julgamentos e do princípio do non bis in idem, que o risco de julgamentos em países diferenciados coloca.
Por outro lado, tem a ver com aquilo que acharia de um espaço como o da União Europeia, enfim, uma evidência em que a circulação das pessoas dá uma grande fluidez aos problemas de repressão criminal.
Depois, há a questão da cidadania europeia, donde se devem extrair consequências. Se a cidadania existe para fins políticos, sociais e económicos, ela deve representar também alguma coisa de importante para efeitos de extradição.
Finalmente, há ainda aquilo que considero importante, ou seja, há hoje correcções no domínio das relações internacionais, no espaço europeu, que são significativas, como, por exemplo, o caso da transferência de reclusos. Isto é, os reclusos podem cumprir a pena no seu país de origem
Depois do exposto, parece-me que a extradição de nacionais não é nada que repugne a um sistema de relacionamento entre Estados, como são os Estados da União Europeia.
Esta é a resposta à pergunta que me colocou o Sr. Deputado Guilherme Silva.
O Sr. Deputado Marques Guedes fala-me na pena de morte e no problema que consistia num "recuo", palavra que não seria a exacta.
É evidente que aproveitava para responder também ao Sr. Deputado Moreira da Silva, nesta parte.
Não distingui o caso da pena de morte e da prisão perpétua em termos de garantias. Distingui, sim, em termos de uma filosofia que está a montante, a qual não posso abstrair da minha mundividência e das minhas concepções.
Sou contra a pena de morte. VV. Ex.as já notaram isso. E sou por razões que têm que ver com a essência da pena, que considero a mais degradante, e com aquilo que, diria, é uma concepção positivista da pena de morte. É que não está demonstrado, a meu ver, que a pena de morte responda a algum problema de criminalidade. Nem para as concepções retributivas, nem para as concepções de prevenção geral, nem para as concepções de prevenção especial.
Quanto às concepções retributivas, diria, por exemplo, embora não se tenha ainda demonstrado, que a pessoa que é executada pode até passar para uma vida melhor como é, de facto, para quem acredita no transcendente. Porque é que havemos de pensar que a pessoa não vai ter um prémio quando é executada?
Para quem fale nas concepções de prevenção especial, nós não podemos prevenir aquele delinquente porque ele morreu e, portanto, não tem nenhuma função na prevenção especial.
Quanto à prevenção geral, lembrava a VV. Ex.as que estudos sociológicos feitos demonstraram, por exemplo, que no princípio do século, na Inglaterra, entre cada 200 delinquentes executados, cerca de setenta por cento já tinha assistido a uma execução, o que significava que não tinha nenhum efeito de prevenção geral.

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Há, de resto, um belíssimo quadro da Renascença, cujo autor neste momento não recordo, que tem esta cena: é uma execução por enforcamento de um carteirista, vê-se muita gente na assistência e está um carteirista a pôr a mão no bolso de alguém que está a assistir à execução. Este é o sinal de que, de facto, a prevenção geral da pena de morte é algo que está por demonstrar.
Temos também o caso recente do Irão, que estabeleceu a pena de morte para o tráfico de estupefacientes há uns anos e, nesse ano, duplicou o número de crimes de tráfico.
Não está demonstrado. Portanto, não é uma questão de garantias que, nesse plano, tenderia a não fazer um discurso tão radical mas é uma questão de concepção. É a pena mais degradante que há, não está demonstrado que ela responda a problemas de retribuição, prevenção geral ou prevenção especial e, depois, há ainda a velha questão - que já não traria para aqui - do erro judiciário, pois ainda que se repare o erro, a pessoa já não está cá para assistir à leitura da sentença de revisão.
Por tudo o exposto, tenderia a pensar que Portugal, tendo sido um país pioneiro, tendo tido um papel determinante no Protocolo SEXTO à Convenção Europeia, tendo tido intelectuais, como Torga, que, enfim, fizeram disso uma bandeira, fosse agora recuar - e aqui é que emprego a palavra -, desmobilizando o esforço que a comunidade deve fazer no sentido de que os países que ainda mantém a pena de morte a eliminem do seu quadro de sanções.
O Sr. Deputado Marques Guedes colocou também o problema das garantias.
É evidente, Sr. Deputado, que há garantias e garantias. Os Estados da União Europeia dão-nos mais garantias do que um Estado de outra latitude. E, portanto, considero que, numa previsão genérica, abstracta, em termos gerais, poderia receber a esse nível respostas diferentes quanto à consistência que o Estado português teria dessas garantias.
Quanto ao julgamento em comum, com a colaboração de outros Estados, é evidente que concordo com o pensamento do Sr. Ministro da Justiça. É conveniente que o julgamento se faça em comum, sobretudo em casos de crimes graves. Mas, há sempre um limite e esse limite, a meu ver, é a pena de morte, não por razões pragmáticas ou vertidas num processo em concreto mas por razões anteriores que passariam por uma mundividência, por uma concepção política e filosófica de Estado democrático de direito em que a pena de morte não deve existir.
O Sr. Deputado José Magalhães põe-me a questão das dificuldades que poderia haver numa realização do julgamento no nosso País.
Elas têm existido mas são hoje muito menores do que aquilo que foram outrora. Há convenções de cooperação judiciária, há hoje uma ligação entre Estados que não havia há 20 ou mesmo 10 anos. Penso que essas convenções podem ser melhoradas, quer no sentido de um reforço da articulação entre as polícias e de articulação entre as magistraturas, o que será tratado na próxima reunião de Chefes de Estado e de Primeiros-Ministros, em Haia, quer através daquilo, que acharia importante, que eram convenções sobre prestação e validação das provas. Isto é, não está excluído que provas prestadas no país em que o crime foi praticado tenham validade no país onde é feito o julgamento. Aliás, como aqui também já se observa, hoje, quanto a cartas rogatórias e quanto a cartas precatórias.
Portanto, se esse espaço é um espaço comum, ele deve ser um espaço comum também para a validação de provas. E, por aí, teríamos reforçado o arsenal de respostas, nesse domínio.
O Sr. Deputado António Filipe põe-me o problema da tortura e dos castigos corporais.
Devo dizer-lhe, Sr. Deputado, que uma formulação abstracta, no sentido de dizer que não é possível a extradição quanto se trate de penas degradantes, é uma formulação que pode causar riscos porque a doutrina divide-se muito sobre o que é uma pena degradante.
De facto, há hoje uma parte da doutrina que considera a prisão perpétua uma pena degradante; há doutrina que considera uma pena de 40 anos e as penas por acumulação real, que são praticadas pela maior parte dos Estados europeus, como penas degradantes.
Portanto, uma formulação abstracta poderia criar esse risco.
Porém, já estaria de acordo com uma formulação que enunciasse, em concreto, quais seriam as penas. E castigos corporais, sim; tortura, obviamente. Aliás, a tortura está hoje vedada por todas as convenções. Penso que não seria necessário acautelá-la, aqui. É o risco da formulação.
Estou de acordo quanto à dificuldade, estou de acordo quanto ao problema, mas, quanto à resposta, hesitaria em colocar esses problemas na temática da extradição porque eles têm cabimento noutras soluções, como em convenções que proíbam a tortura, em convenções que eliminem a hipótese de castigos corporais. E, então, não seria necessário formular, nesse princípio que veda a extradição, essas questões.
O Sr. Deputado Barbosa de Melo põe o problema dos nacionais.
Teria uma certa dificuldade em quantificar porque a eficácia dos sistemas repressivos, sobretudo dos países onde temos emigrantes, é grande, e os nossos emigrantes têm um sentido de pertença à comunidades em que estão que os leva, quase sempre, a não fugir para Portugal por razões, creio, que muitas vezes têm que ver com a imagem, com o chegar à comunidade a que pertencem como delinquentes.
Por isso, ainda não são muitos os casos, mas temos tido alguns casos e temos obtido uma boa resposta, quer por parte dos nossos tribunais, quer sobretudo por parte dos tribunais requisitados. Tivemos, ainda há bem pouco tempo, o caso de um português que cometeu um crime em Paris, com laivos de xenofobia, foi julgado aqui e tivemos uma óptima colaboração das autoridades francesas. Mas, repito, são poucos os casos. E isso espanta-me e, a meu ver, tem duas explicações: primeiro, a eficácia repressiva desses países e, depois, o nosso emigrante, mesmo quando é delinquente, não quer chegar com esse estigma à sua aldeia e, portanto, prefere andar por outros lados e não volta cá.
Acho que não vamos ter muitos casos desses e parece-me que isso, a nível de extradição de nacionais, seria um problema menor porque, no espaço europeu, a integração dos portugueses tem-se feito com grande facilidade e não vejo que, aí mesmo, houvesse qualquer reacção por parte

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dos portugueses em serem julgados nos países onde trabalham e onde estão, quase sempre, integrados. E, mesmo quando não estão, aceitam que é esse o país onde ganham a sua vida, onde melhoram a sua condição e onde, porventura, poderão vir a ser penalizados por crimes que cometeram.
Dos contactos que tenho feito com comunidades portuguesas, e da informação que tenho de colegas meus de outros países - e falo de países da África, da América e da Europa -, os portugueses não têm uma grande quota do mundo da delinquência. Felizmente, penso, têm uma boa imagem e não há, repito, uma grande quota de delinquentes. Estive há pouco tempo, por exemplo, na Venezuela, que é um país cheio de problemas e de criminalidade, e fiquei muito satisfeito em saber do número de portugueses que havia nas cadeias, cujo número concreto, sob pena de falsear os resultados, não posso agora recordar, mas sei que era baixíssimo. E isso mesmo nos satisfaz e nos dá alguma tranquilidade quanto ao futuro, neste domínio.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Guilherme Silva.

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Sr. Presidente, desejava apenas perguntar a opinião do Sr. Procurador-geral sobre a questão da execução da pena em Portugal.

O Sr. Presidente: - O Sr. Procurador-Geral também já aludiu a esse aspecto, mas, em todo o caso...

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Foi uma das questões que o Sr. Ministro nos colocou, pondo o problema com incentivos na extradição...

O Sr. Procurador-Geral da República: - Aí, posso dar ao Sr. Deputado a informação de que há um número crescente de pedidos.
Já propus ao Governo e espero que VV. Ex.as, aqui, na Assembleia, possam apreciar o problema com alguma urgência.
Tenho em vista a criação de um departamento interno que tratará desse assunto porque esse instituto começou com grande timidez - portanto com muito poucos pedidos, quer da vinda de portugueses para cá, quer da ida de estrangeiros para outros países -, mas usa-se cada vez mais e há muitos portugueses que, a pedido do próprio, querem cumprir a pena no seu país.

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - A questão que o Sr. Ministro aqui pôs, se bem entendi, significaria que, a anuirmos à extradição de portugueses para serem julgados no estrangeiro, se pudesse incluir nas condições da extradição, à partida, a obrigação imperativa de, depois, a pena ser cumprida em Portugal.
Perguntava se, no entender do Sr. Procurador-Geral, isso deverá ser uma questão que deve ficar à escolha do próprio.

O Sr. Procurador-Geral da República: - O Sr. Deputado coloca-me uma questão, depois de me dizer que o Sr. Ministro tem essa opinião. Ora, gostaria que não fosse encarada como uma divergência política.

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Não, não, Sr. Procurador-Geral!

O Sr. Procurador-Geral da República: - De facto, distinguiria, considerando situações em que o português quer cumprir a pena no estrangeiro porque é aí que tem a sua mulher, os seus filhos e os seus netos.

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Aqui, estaria o problema da vontade do próprio.

O Sr. Procurador-Geral da República: - Acho que era bom que a vontade do próprio funcionasse.

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Também não estou convicto de que o Sr. Ministro também não tenha essa ideia porque não a exteriorizou.

O Sr. Procurador-Geral da República: - É que há casos de portugueses que estão, de todo, integrados. É aí que vivem, que tem os seus filhos, que tem as suas ligações e não querem vir. Há, porém, outros que querem vir. E há ainda outro fenómeno em que o português não quer vir de todo porque tem vergonha de voltar ao seu país de origem.
Deixaria isso na vontade do recluso, como é hoje o sistema convencional de transferência de reclusos.

O Sr. Presidente: - Muito obrigado, Sr. Procurador-Geral.
Suponho que as questões que os Srs. Deputados tinham interesse em colocar foram cabalmente respondidas e que vão ser mais um motivo de reflexão na Comissão, a propósito da actualização do artigo 33.º.

O Sr. Procurador-Geral da República: - Muito obrigado, Sr. Presidente; muito obrigado, Srs. Deputados.

O Sr. Presidente: - Mais uma vez obrigado, Sr. Procurador-Geral, e peço desculpa, em nome de todos nós, pela demora inicial e até ao próximo encontro.
Srs. Deputados, vamos suspender os nossos trabalhos por breves minutos.

Eram 18 horas e 30 minutos.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vamos reiniciar os nossos trabalhos.

Eram 18 horas e 40 minutos.

Srs. Deputados, o Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça já se encontra presente pelo que peço para ocuparem os vossos lugares.
Antes de mais, quero agradecer, em nome de todos os Srs. Deputados da Comissão, a disponibilidade imediata, revelada pelo Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, no sentido de poder reflectir connosco sobre a problemática que foi sugerida para esta audição e que, como sabem, se reporta ao clausulado constitucional do artigo 33.º, em matéria de extradição.
Temos vindo a reflectir sobre a oportunidade de actualização do texto constitucional neste domínio, em vista da

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importância de compatibilizar, por um lado, o ordenamento constitucional em matéria de garantia dos direitos, liberdade e garantias e, por outro, os aspectos da cooperação judiciária internacional ligados à problemática do combate ao crime.
Nesse medida, tivemos ocasião, já nesta tarde, de ouvir os Srs. Ministros da Justiça e da Presidência e o Sr. Procurador-Geral da República.
O método que temos seguido, Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Dr. Sousa Macedo, é o de convidar os nossos interlocutores para um depoimento de avaliação da experiência respectiva, neste caso, da experiência judiciária relativamente à problemática da extradição, e, depois, os Srs. Deputados têm aproveitado, naturalmente, a oportunidade para colocar as questões que lhe parecem mais pertinentes.
Se estiver de acordo com o método sugerido, tem V. Ex.ª, Sr. Presidente do Tribunal de Justiça, a palavra.

O Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça (Dr. Sousa Macedo): - Muito obrigado, Sr. Presidente. Os meus cumprimentos a todos VV. Ex.as. É para mim uma honra, neste momento, poder colaborar convosco nesse trabalho difícil que é uma revisão constitucional.
Quero dizer-lhes que sou um civilista, praticamente nunca julguei crime. Portanto, é um tema que está afastado da minha experiência profissional. Tive de fazer o que faz o menino quando vai a exame: agarrar nos livros e pôr-se a estudar à pressa a ver se "colava" umas coisas.
Portanto, o meu depoimento tem por base as impressões que colhi através da leitura dos diplomas aplicáveis e, em particular, as conversas que tive com os meus colegas que têm trabalhado nesta área, particularmente com o Conselheiro Lopes Rocha, que se encontrava em Estrasburgo e chegou ontem à noite. Ainda tentei que me acompanhasse, pois julgo que seria o homem certo para estar aqui.
Da experiência que me transmitiram os meus colegas, sente-se que haverá uma certa dificuldade, por vezes, em se dar a extradição quando se sente que, até para bem nosso, isso seria razoável e sem ofensa aos direitos, liberdades e garantias, que se devem respeitar em Portugal.
Um dos casos de que se fala é este último, o dos italianos que se abrigaram entre nós e, durante quatro anos, estiveram a dar trabalho aos nossos tribunais para, depois, numa hábil operação, dirigida pelo Sr. Ministro da Justiça, vir a ser extraditado, enquanto não se "decidia" uma decisão tomada em Portugal porque, entretanto, se interpunha recurso para o Tribunal Constitucional.
Julgo que, particularmente no Supremo Tribunal de Justiça, se têm acusado dificuldades perante a leitura demasiado rigorosa dos termos, seja da Constituição, seja do Decreto-Lei n.º 43/91, em particular sobre as garantias que o Estado que pede a extradição deve conceder no caso de, pela sua lei, ser aplicável a pena de morte ou a de prisão perpétua.
Em relação à prisão perpétua, sucede até a situação de que, praticamente, nenhum país tem prisão perpétua, enquanto adopta uma visão dinâmica da aplicação das penas. Por outro lado, há países em que existe o cúmulo material das penas e, portanto, sem aplicar a pena de prisão perpétua, consegue um resultado que excede até o da prisão perpétua.
Em relação à pena de morte, também aparece a possibilidade de haver países em que a comutação da pena de morte representou já uma tradição e, portanto, essa tradição dá-nos uma certa segurança de que haverá comutação da pena de morte em pena de prisão.
Houve um caso - o caso Variso -, em que o correspondente ao nosso Procurador-Geral do Estado de onde estava sediado o tribunal que devia julgar o Variso tinha feito a declaração de que não seria pedida a pena de morte, ainda que fosse possível a sua aplicação, mas considerou-se que essa declaração não era suficiente.
VV. Ex.as certamente conhecem bem este caso.
Peço desculpa por o meu depoimento ser pobre, mas, enfim, é quanto está dentro das minhas possibilidades de colaboração.

O Sr. Presidente: - Muito obrigado, Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
Tem a palavra o Sr. Deputado Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Em primeiro lugar, permita-me, Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que, pela parte do PSD, formalmente lhe agradeçamos a prontidão com que aceitou vir a esta Comissão reflectir em conjunto connosco uma matéria que, obviamente, nos é muito cara. É sempre uma honra para esta Comissão ouvir distintas opiniões de pessoas de fora e, por maioria de razão, quando, em termos formais, se trata da individualidades que, como é o caso de V. Ex.ª, representa a quarta figura do Estado.
Posto isto, queria, em termos práticos, suscitar algumas reflexões.
Assim, o Sr. Presidente deixou, em princípio, enunciadas preocupações que efectivamente, hoje em dia, se colocam à nossa ordem judiciária, no plano daquilo a que chamou "algumas dificuldades que resultam da nossa ordem jurídica para a efectivação dos adequados mecanismos de extradição".
Nesse sentido, gostava de perguntar se o Sr. Presidente entende que, actualmente, nomeadamente em relação a Estados com quem existe uma cooperação judiciária efectiva entre as respectivas autoridades, há espaço para considerar que, do ponto de vista garantístico, pode, de facto, haver um relacionamento entre Estados que assegure, numa lógica de senso comum, que aquelas que são as regras básicas de proibição da ordem jurídica nacional, uma vez excepcionadas, formalmente, por acordos com o Estado requisitante, se encontram efectivamente asseguradas. Isto é, se o Sr. Presidente entende que se o Estado, com quem temos essa cooperação judiciária, der garantias mínimas, esses mesmas garantias ou os respectivos acordos serão respeitados e, portanto, não haverá razão para, em muitas circunstâncias, haver uma desconfiança ab initio entre as autoridades judiciárias nacionais e as autoridades judiciárias de alguns outros Estados.
É evidente que isto tem de obedecer a algum critério de selectividade, sendo também essa a opinião, desde a primeira leitura desta Comissão, de, no caminho que gostaríamos de trilhar no texto constitucional, exigir aqui sempre uma necessária negociação prévia e um regime de

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reciprocidade entre o Estado português o Estado requisitante, neste tipo de circunstâncias.
Mas, o fundamental para nós era saber se, do ponto de vista do Supremo Tribunal de Justiça, a que V. Ex.ª preside, se entende que, de facto, é perfeitamente hoje possível, no plano internacional e da cooperação judiciária internacional, encontrarem-se mecanismos garantísticos suficientes para que, uma vez convencionados determinados tipos de mecanismos nesta questão da extradição, haja, depois, de facto, regras mínimas que assegurem o cumprimento desses acordos.
Para nós, esta é a questão fundamental, uma vez que - e isso está fora de causa - ninguém preconiza nem preconizou nesta Comissão a reintrodução da pena de prisão perpétua e, muito menos, da pena de morte em Portugal.
Portanto, o que está aqui em causa é saber se é possível extraditar garantindo, dentro do que são as regras normais em ordens jurídicas sérias e responsáveis, que esse resultado final não se virá a concretizar.
Era um pouco esta precisão que pedia ao Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.

O Sr. Presidente: - Há outros Srs. Deputados inscritos e, se o Sr. Presidente estivesse de acordo, faríamos a ronda por todos eles e responderia, se o desejasse, no final.

O Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça: - Com certeza que sim, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): - Antes de mais, desejava agradecer ao Sr. Presidente por ter acedido em vir discutir connosco está matéria. De resto, isso está na linha das relações institucionais correctas e positivas que vimos desenvolvendo neste ciclo.
As duas questões que gostava de colocar são, de facto, de grande impacto público, mas em que é necessário grande rigor técnico.
Depreendi da intervenção que o Sr. Conselheiro-Presidente entendia que há vantagem efectiva em introduzir uma clarificação do regime constitucional no que diz respeito à possível extradição de pessoas que possam incorrer em pena de prisão perpétua, desde que haja garantias de que ela não seja efectivamente aplicada. Aliás, alertou-nos para um caso que tem sido pouco discutido entre nós, que é o caso dos países que têm cúmulo material de pena que pode, de resto, gerar situações mais graves ainda do que as que têm sido objecto de discussão pública, por vezes, um pouco demagógica.
Portanto, creio que partilha da ideia de que é necessário ou útil haver uma clarificação, neste ponto. E isso, para nós, é de grande importância.
Em segundo lugar, este novo quadro em que é livre a circulação de pessoas na União Europeia e, aliás, em geral, no mundo, não exclui, bem se entenda, o combate ao crime mas, pelo contrário, até exige uma eficaz punição do crime sob pena de a ideia de liberdade de circulação vir a ser identificada pelos cidadãos com a criminalidade desenfreada e sem controle. Também não implica quebra de princípios. E o papel dos magistrados judiciais é aí crucial.
Neste sentido, discutindo um pouco connosco, gostava que nos dissesse em que é que vê utilidade de intervenção acrescida de magistrados neste processo.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Medeiros Ferreira.

O Sr. Medeiros Ferreira (PS): - Gostava de aproveitar a presença do Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça para fazer uma pergunta, um bocado ao contrário, em relação às garantias.
Assim, vamos admitir que Portugal é considerado, por um país terceiro, como tendo uma ordem jurídica interna que permite penas como aquelas que nós queremos excluir da extradição sem garantias, como sejam a pena de prisão perpétua ou de outras formas degradantes, admitindo mesmo que a pena de prisão de 20 anos é uma pena degradante.
Vamos também admitir que há um Estado, nosso parceiro, do espaço jurídico em que estamos inseridos, que pede garantias ao Estado português para que essa pena não seja aplicada.
Perguntava como é que o Sr. Presidente concebe que essas garantias possam ser dadas.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça para comentar, se assim o desejar, as questões que foram colocadas pelos Srs. Deputados.

O Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça: - Em primeiro lugar, julgo que estas matérias devem ter assento em tratados e, quando fazemos um tratado, com certeza que temos o cuidado de escolher, como parte, um Estado que nos merece crédito e que tem uma organização judiciária que oferece as garantias de um correcto julgamento da pessoa a extraditar.
Nesses tratados, pode haver, desde logo, a cláusula de que, havendo extradição, o Estado que a pede se obriga a não aplicar a pena de morte e a pena de prisão perpétua. Portanto, já por via desse tratado ficaria essa condicionante.
Há um tratado-tipo de extradição organizado no âmbito do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que VV. Ex.as conhecem com certeza, e aí, sim, encontram-se preceitos que vão nesta linha.
Desde modo, respondo dando a ideia de que nós devemos acreditar na boa fé daqueles Estados com quem aceitamos formar tratados de extradição.
Portanto, poderia haver uma cláusula no sentido de que, nestes casos, a extradição só seria possível havendo tratado a prevê-la.
Depois, o Sr. Deputado José Magalhães refere um facto que é importante considerar. Hoje, surgem tipos de criminalidade que não podem ser perseguidos sem o envolvimento de vários Estados, não podendo Portugal considerar-se um país isolado. Temos, por exemplo, o crime do tráfico de estupefacientes, e se nós nos atemos ao território nacional não só quanto à actividade de investigação como, depois, mais tarde, na fase de julgamento, encontramos dificuldades, sobretudo em matéria de prova.

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O critério da competência do tribunal, que é o lugar do crime, é uma referência que se toma por ser, normalmente, o lugar onde se encontra mais facilidade de prova do delito. E, portanto, fazer o julgamento em Portugal relativamente a um crime praticado na Alemanha, por exemplo, será, sem dúvida, difícil pois as testemunhas alemãs não poderão vir a Portugal ou, mesmo que venham, terão dificuldade em expressar-se e em fazer-se entender por forma a que os nossos tribunais possam ter a possibilidade de exercer justiça correctamente.
Por outro lado, até a confiança na vida social dos nossos nacionais, não só dentro das nossas fronteiras como fora delas, está relacionada com a possibilidade de termos a certeza que Portugal não passa a ser um ponto onde se vêm acoitar os grandes criminosos a quem, nos seus países, seriam aplicadas penas de morte ou de prisão perpétua, e aqui ficariam a viver tranquilamente uma vez que não poderiam ser extraditados e o seu julgamento em Portugal, a fazer-se, também teria as dificuldades de prova que, teremos de reconhecer, existiriam.
Quanto ao problema da intervenção de magistrados portugueses ou a necessidade de intervenção de juízes para a extradição, quer dizer, se poderíamos ir para um sistema meramente administrativo... Creio ser essa a proposta que se colocou...

O Sr. José Magalhães (PS): - Aliás, a questão não foi colocada nem resulta de nenhum projecto. A questão - e peço desculpa se induzi em equívoco pela forma como coloquei a pergunta - era perguntar-lhe se entende que é necessário intensificar o actual grau de intervenção judicial no processo de extradição. Intensificar, repito. Dou de barato, Sr. Conselheiro-Presidente, que a intervenção judicial, nos termos em que está prevista, actualmente, é razoável e é inarredável, ou seja, irreversível.

O Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça: - Julgo que deveria haver mais possibilidade de, na parte administrativa, se fazer a escolha dos casos em que a extradição poderia ser apreciada pelos tribunais. Isto é, que na passagem pelo Ministério da Justiça, o crivo fosse mais apertado e, portanto, só viessem a tribunal os casos em que haveria uma situação evidente ou segura de poder ser dada a extradição. Isso evitaria uma delonga judicial e os nossos tribunais, que já estão sobrecarregados,
teriam um procedimento mais rápido.
O Sr. Deputado Medeiros Ferreira perguntou-me como é que Portugal poderia garantir, em relação aos cidadãos no exterior...

O Sr. Medeiros Ferreira (PS): - Não, não, Sr. Presidente. Coloquei uma hipótese teórica, ao contrário, ou seja, partindo do princípio que só extraditamos quando os Estados que nos pedem a extradição nos derem garantias suficientes de que não irão aplicar as penas por nós consideradas infamantes e degradantes, como é o caso da pena de morte ou de prisão perpétua, fiz o exercício contrário para se perceber como é que, na ordem jurídica interna, estas coisas podem funcionar.
Vamos, portanto, admitir que há um Estado que considera que não pode extraditar para Portugal um criminoso ou alguém perseguido por crimes porque considera que a pena aplicada em Portugal de 20 anos de prisão é uma pena degradante. A pergunta é esta: quem é que em Portugal ou qual o processo que o Estado português teria para fazer essa garantia.

O Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça: - Ora bem, Portugal não poderia pedir a extradição mas poderia proceder ao julgamento do cidadão português.

O Sr. Medeiros Ferreira (PS): - Não, não estou a falar do nacional!

O Sr. Presidente: - Sr. Conselheiro-Presidente, o Sr. Deputado Medeiros Ferreira está a colocar a seguinte questão: saber, se fosse Portugal o Estado requerente, que garantias, na ordem institucional portuguesa, poderiam ser dadas pelos órgãos do Estado português com vista a garantir que não seria aplicada pena de morte ou prisão perpétua, no caso de ela existir em Portugal.
Portanto, a questão é meramente teórica, como o Sr. Deputado Medeiros Ferreira sublinhou.

O Sr. Medeiros Ferreira (PS): - Não, não. Não é teórica. O problema aqui tem a ver com a garantia que se pode dar num Estado de direito para certas penas.

O Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça: - Tudo depende dos poderes que tenha o Ministério Público.
Se o Ministério Público tiver a possibilidade - e há países em que isso sucede - de limitar a acusação, pedindo um limite para determinada pena, o tribunal ficaria limitado. Porém, isso não é possível em Portugal.
A única possibilidade seria a Procuradoria-Geral informar que, segundo a jurisprudência corrente dos tribunais portugueses, aquela pena não seria aplicável. Pode também haver a figura da comutação de pena e, a existir na ordem jurídica portuguesa, o Presidente da República pode, nesses casos, comutar a pena.

O Sr. Presidente: - Na hipótese teórica em que estava a ser colocada essa dúvida, tratava-se de Portugal como Estado requerente.
De facto, o que encontramos, desde logo, na ordem constitucional portuguesa, é o poder atribuído ao Presidente da República de perdoar ou comutar penas mediante proposta do Governo.

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Também se houvesse uma convenção entre Portugal e esse país...

O Sr. Presidente: - Mas, Sr. Deputado, em todo o caso teria de passar sempre por uma decisão de um órgão constitucional competente, aspecto que não poderia ser contornado.
Tem a palavra o Sr. Deputado Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Era só para fazer uma pequena precisão relativamente à intervenção inicial do Sr. Presidente quando citou "mecanismos como estes teriam sempre que constar de convenções internacionais", dizendo que, em meu entender, a resposta mais singela ao caso hipotético que é colocado pelo Sr. Deputado Medeiros Ferreira é de que, caso Portugal tivesse, porventura

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- e também no plano hipotético -, uma convenção internacional celebrada com esse dito Estado, que nos colocava esse pedido e exigências, era perfeitamente aceitável que essa convenção internacional, que tem força jurídica na nossa ordem jurídica interna se for ratificada pelos órgãos nacionais competentes, por força da própria Constituição da República, especificasse qual o órgão - podia até ser, por exemplo, o Procurador-Geral, como sucede na hipótese que o Sr. Presente aqui coloca - que estaria incumbido de, eventualmente, conferir esse tipo de garantias.
Portanto, utilizando a primeira intervenção do Sr. Presidente do Supremo Tribunal, penso que tudo se passaria no plano da força jurídica das convenções internacionais que regessem esta reciprocidade e este relacionamento de pedido de extradição ou de autorização de extradição entre Estados, no plano internacional.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Marques Guedes, estamos a ouvi-lo a trabalhar sobre uma hipótese que, como foi sublinhado, era teórica, mas não podemos perder de vista que uma qualquer convenção internacional careceria sempre de aprovação e ratificação, mediante controlo de constitucionalidade.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Com certeza, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Portanto, não podíamos inventar uma qualquer solução de perdão ou de comutação de penas, fora da ordem constitucional, por via convencional.
Tem a palavra o Sr. Deputado Medeiros Ferreira.

O Sr. Medeiros Ferreira (PS): - No meu espírito, estava só demonstrar as dificuldades do sistema garantístico.

O Sr. Presidente: - Naturalmente, Sr. Deputado. E é difícil responder em concreto à pergunta porque é preciso conhecer a ordem constitucional dos países envolvidos no processo de extradição.
Os Srs. Deputados que desejem colocar mais alguma questão ao Sr. Conselheiro-Presidente podem fazê-lo.

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Já tinha pedido, Sr. Presidente!

O Sr. Presidente: - Tem toda a razão, Sr.ª Deputada. Dou-lhe imediatamente a palavra.

A Sr.ª Odete Santos (PSP): - Sr. Presidente, acho que a pergunta do Sr. Deputado Medeiros Ferreira foi extremamente importante porque mostrou uma coisa que está à vista, ou seja, que isto colide - e eu ouvi dizer que os países da União Europeia se aproximavam muito no regime destas coisas com o nosso - com muitas coisas, como o princípio da legalidade em processo penal e até com a própria independência dos magistrados judiciais.
Portanto, creio, a pergunta, nesse aspecto, foi extremamente importante.

O Sr. Presidente: - Dado que a Sr.ª Deputada não formulou, propriamente, qualquer questão, tem desde já a palavra o Sr. Deputado Medeiros Ferreira.

O Sr. Medeiros Ferreira (PS): - O meu objectivo era ver como seria possível ultrapassar as dificuldades das garantias através de instrumentos que, efectivamente, as dessem, quer fosse a convenção, quer a própria ordem constitucional interna portuguesa.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Conselheiro-Presidente.

O Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça: - Ia dizer que as dificuldades existem e que se trata de uma matéria em que a boa fé nas relações entre os Estados tem que operar porque, de contrário, as consequências, suponho, são bastante piores.
Por outro lado, não pode deixar de reconhecer-se que pode haver um sistema de comutação de pena a realizar pelo Presidente da República, situação já existente, ou pela Assembleia da República, que permitiria, depois, vir a fazer a correcção no caso de haver uma condenação em limite superior ao previsto no tratado ou convenção.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, creio que estão esclarecidas as questões que entenderam colocar.
Queria agradecer ao Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, em meu nome e de todos os deputados da Comissão, a sua disponibilidade para esta reflexão em conjunto.
Srs. Deputados, vamos suspender os nossos trabalhos por alguns minutos.

Eram 19 horas e 5 minutos.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vamos reiniciar os nossos trabalhos.

Eram 19 horas e 10 minutos.

Informo os Srs. Deputados que o Sr. Presidente do Tribunal Constitucional chegará à Comissão por volta das 19 horas e 30 minutos, pelo que sugiro, com a vossa concordância, que se aproveite este espaço de tempo para tratar de alguns aspectos fundamentais.
Na sexta-feira próxima não há actividade do Plenário e, por isso, perguntava aos Srs. Deputados se estão disponíveis para reunir a CERC, nesse dia.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Desejo informar, com toda a franqueza, que o PSD, no dia em que for decidido pela Assembleia não haver trabalhos parlamentares, não tem condições para mobilizar os seus deputados. E, com toda a lealdade, acrescento ainda que não me parece que isso seja uma questão de vida ou de morte para o funcionamento desta Comissão, nem tal foi suscitado pela Conferência de Líderes quanto a decisão foi tomada.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, creio que não valerá a pena fazer mais diligências para compreendermos que não há condições parlamentares para fazer sessão na próxima sexta-feira.

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Tem a palavra o Sr. Deputado António Filipe.

O Sr. António Filipe (PCP): - Julgava que a questão estava ultrapassada na medida em que marcámos trabalhos para segunda-feira. Portanto, é uma questão cuja excepcionalidade só compreendo por não haver trabalhos na sexta.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado António Filipe, permita-me, já agora, que lhe explique o seguinte: a Comissão reuniu na segunda-feira porque se trata de uma audiência extraordinária e ter sido entendido, por isso, que devia ser efectivada fora da grelha regular de trabalhos da Comissão.

O Sr. António Filipe (PCP): - Mas, esta tarde (...)...

O Sr. Presidente: - Mas a Comissão fez uma distinção entre a audição à entidades representativas de instituições do Estado e outras entidades relevantes mas fora do quadro da representação estadual.
Srs. Deputados, esta questão está clarificada e superada.
Há pouco, nos trabalhos da manhã, estivemos a apreciar o artigo 40.º, que votámos integralmente. No entanto, ficou em aberto a hipótese de transformar uma proposta de aditamento ao n.º 2, já aprovada, em um número autónomo na estrutura do artigo 40.º, questão, aliás, suscitada designadamente pelo Sr. Deputado Guilherme Silva.
Srs. Deputados, enquanto aguardamos, pedia que cooperassem para resolvermos, em definitivo, a questão do artigo 40.º.
O Sr. Deputado Guilherme Silva, que suscitou a questão, quer contribuir com uma proposta.

Pausa.

Tem a palavra o Sr. Deputado Guilherme Silva.

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Sugiro a seguinte redacção: "Os partidos políticos representados nas Assembleias Legislativas Regionais gozam de direitos iguais aos previstos no número anterior, no âmbito da respectiva Região".

O Sr. Presidente: - Nihil obstat, Srs. Deputados?

O Sr. Moreira da Silva (PSD): - (...) seria um "artigo" 3.º!

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Moreira da Silva, está a falar a sério?

O Sr. Moreira da Silva (PSD): - É que o n.º 2 refere-se a partidos políticos não representados no Governo. Por isso, aqui, partidos políticos representados na Assembleia Legislativa Regional não representados no Governo. Só esses é que gozam do direito, porque a nível nacional também só...

O Sr. Presidente: - Tem toda a razão. Tem que ser "nos números anteriores", tal como sublinhei.

O Sr. Moreira da Silva (PSD): - Não, não. É "número anterior" mas só em relação aos partidos não representados no Governo Regional. O n.º 1 é geral.

O Sr. Presidente: - Mas como, justamente pela primeira vez, se está a introduzir este aditamento, o que se quer é não ter uma visão compreensiva restritiva do n.º 2 por comparação com os demais números do artigo.

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Não, não fazem parte...

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Guilherme Silva, sugiro que, então, neste caso, não vale a pena mexer na norma tal como foi aprovada, claramente. E isto porque do que se tratava era de superar um "arrisco" de interpretação restritiva no que diz respeito ao n.º 1 do artigo porque este número tem hoje aplicação tanto aos partidos de âmbito nacional como aos partidos de âmbito regional, como o Sr. Deputado Guilherme Silva bem sabe.
O direito de antena é reconhecido e praticado nas Regiões Autónomas. Se assim é, quando fazemos uma valoração em sede do n.º 2, poderemos estar a contrario a permitir uma interpretação restritiva do n.º 1 por ele não ter alcance explícito relativamente aos partidos, no âmbito regional.
Por isso, o que sugiro - e é o que faria sentido - é autonomizar um novo número, mas que se reporte, no seu âmbito de aplicação, aos n.os 1 e 2. Caso contrário, sugiro que não façamos nenhuma alteração.

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Então, deixamos estar como está. É melhor.

O Sr. Presidente: - Portanto, o que pergunto aos Srs. Deputados é se há ou não entendimento quanto a um novo número mas de alcance global porque, se não houver, não faz sentido mexer na norma já aprovada.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, da nossa parte não há dúvida nenhuma quanto ao alcance desta norma. E não a interpretamos restritivamente.

O Sr. Presidente: - O que é importante é que, no momento em que fazemos esta adenda ao n.º 2, não fique nenhuma ambiguidade interpretativa,

O Sr. José Magalhães (PS): - Sim, sim. Pela nossa parte, não fica.

O Sr. Presidente: - Ou seja, não está colocada minimamente em risco a interpretação de que o n.º 1, quanto ao exercício do direito de antena por parte dos partidos políticos, tem alcance no plano nacional e tem também alcance, como de resto já acontece na respectiva ordem regional, também no âmbito das Regiões Autónomas.
De resto, a melhor compreensão sistemática, insisto, seria um novo número com alcance para os n.os 1 e 2, se os Srs. Deputados nisso convierem porque, se não, deixamos como está.

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Pode é acrescentar-se "políticos", ficando "partidos políticos".

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Diálogo em sobreposição não inteligível.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, passamos, portanto, ao artigo 42.º, se estiverem de acordo.

Diálogo em sobreposição não inteligível.

O Sr. Presidente: - Com franqueza, Sr. Deputado Marques Guedes... Fazemos aqui uma suspensão dos trabalhos por 10 minutos...

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - (...). Agora, aproveitar o adiantado da hora e o atraso do Presidente do Tribunal Constitucional para desatarmos aqui a... Isso, com franqueza, Sr. Presidente...

O Sr. Presidente: - Não "desataríamos" nada, Sr. Deputado Marques Guedes. Já propus 10 minutos de intervalo. Por amor de Deus, agora, poupe-me!

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Não sei o que se passa com o Sr. Presidente do Tribunal Constitucional, mas pelo papel que o Sr. Presidente nos tinha enviado, estava previsto vir aqui às 6 horas e 30 minutos.

O Sr. Presidente: - Foi feito um contacto telefónico, através do qual tivemos notícia que o Sr. Presidente do Tribunal Constitucional estava num processo de julgamento e, como tal, pediu para ser recebido pela Comissão o mais tarde que fosse possível. Ajustou-se, portanto, o horário das 19 horas e 30 minutos.
Estamos a 10 minutos desse momento, período durante o qual vamos suspender os nossos trabalhos, para os retomar às 19 horas e 30 minutos.

Eram 19 horas e 20 minutos.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vamos reiniciar os nossos trabalhos.

Eram 19 horas e 30 minutos.

Srs. Deputados, estamos perante a hora que foi estabelecida por todos nós para o reinicio dos trabalhos, já com a presença do Sr. Presidente do Tribunal Constitucional, cuja disponibilidade muito agradeço, em meu nome pessoal e em nome de toda a Comissão.
Como o Sr. Presidente do Tribunal Constitucional sabe, está, nesta segunda leitura, a proceder-se à apreciação e até à votação indicativa da revisão dos artigos que serão objecto de última apreciação em Plenário.
A propósito do artigo 33.º e à matéria concreta da extradição, a Comissão entendeu, mesmo em segunda leitura, fazer uma reflexão mais desenvolvida, reflexão essa que nos permitiu já, hoje, ter tido contacto com o Sr. Ministro da Justiça, com o Sr. Ministro da Presidência e da Defesa, com o Sr. Procurador-Geral da República e ainda com o Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e, agora, também com o Sr. Presidente do Tribunal Constitucional.
Temos vindo a reflectir sobre as possibilidades de actualização do artigo 33.º. Por um lado, com vista a manter nele as garantias de direitos, liberdades e garantias fundamentais, de acordo com o ordenamento constitucional em vigor; por outro lado, tendo em atenção a problemática da cooperação judiciária internacional, designadamente em matéria de prevenção e combate da criminalidade, o que implicará, porventura, alguma actualização da matéria relativa à extradição.
No entanto, é preciso - e é esse o ponto de vista geral da Comissão - reflectir sobre as possibilidades de actualização da norma em vista da experiência de aplicação da disposição constitucional actual e da interpretação que, acerca dela, foi feita designadamente pelo Tribunal Constitucional em acórdão recente sobre o qual importa reflectir, nas suas consequências, para efeitos de eventual actualização da disposição constitucional sobre a extradição.
No fundo, é esta a problemática relativamente à qual pedia ao Sr. Presidente do Tribunal Constitucional o favor de, sobre ela, testemunhar, digamos, o ponto de vista do Tribunal e, enfim, concorrer com a sua reflexão para aquela que estamos a proceder, neste momento.
Em sequência disso, muito provavelmente, os Srs. Deputados quererão dialogar com o Sr. Presidente do Tribunal Constitucional e teríamos, agora, essa oportunidade.
Agradecendo-lhe mais uma vez a disponibilidade da presença, tem V. Ex.ª a palavra.

O Sr. Presidente do Tribunal Constitucional (Cardoso da Costa): - Sr. Presidente da Comissão, Srs. Deputados, agradeço as palavras de boas-vindas que me deram e queria apenas dizer-lhes que tenho muita honra em estar aqui, na Assembleia da República. Sinto-me, de facto, verdadeiramente honrado por o Parlamento ter entendido convidar-me a participar, naturalmente como mero auditor, por assim dizer, nesta sua tarefa importante da revisão da Constituição.
Antes de mais, não queria deixar de sublinhar que é com muita honra que presto à Comissão esta modesta colaboração, naquilo que estiver dentro das minhas possibilidades.
Não conheço exactamente, Sr. Presidente e Srs. Deputados, qual é o estado da discussão actual das alterações propostas ao artigo 33.º da Constituição. Conheço, sim, as alterações que constam de três projectos de revisão - do projecto n.º 3/VII do Partido Socialista; do projecto n.º 4/VII do Partido Comunista Português e do projecto n.º 10/VII do Partido Ecologista Os Verdes, embora neste a alteração do artigo 33.º não diga respeito à extradição - e, portanto, o que retiro dos respectivos textos é o seguinte: em primeiro lugar, que foi sugerida, neste caso, pelo Partido Socialista, uma alteração ao n.º 1, que visa tornar possível a extradição de cidadãos portugueses nos casos de terrorismo e criminalidade organizada e para Estado membro da União Europeia, quando exista reciprocidade.
Em segundo lugar, no que toca ao n.º 3 do actual texto, concluo que foram feitas duas propostas que, em parte, coincidem, visando ambas alargar o teor da norma constitucional em vigor, no sentido de nela incluir expressamente outros casos de proibição de extradição, ou seja, a inclusão expressa - isso consta do projecto do Partido Comunista Português - da proibição de extradição quando haja pena ou medida de segurança privativa ou

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restritiva de liberdade de carácter perpétuo ou duração ilimitada ou indefinida e, quanto a ambos os projectos, a proibição de extradição quando estejam em causa (e cito o texto do Partido Socialista) "penas cruéis, degradantes e desumanas".
Portanto, são estes os elementos a partir dos quais posso fazer a minha reflexão inicial.
Relativamente a estes textos, diria ainda o seguinte: em primeiro lugar, compreendo que os desenvolvimentos que se têm operado no âmbito da União Europeia, nomeadamente no capítulo do estabelecimento de uma política de segurança comum - o pilar da segurança - colocam,, de facto, problemas novos relativamente às concepções tradicionais vigentes entre nós em matéria de extradição e, em especial, relativamente à possibilidade de extradição de cidadãos portugueses.
Diria que, hoje, esse problema tem de ser encarado noutros termos e compreendo, por isso, que a questão tenha sido levantada no projecto do Partido Socialista. Simplesmente, uma coisa é a possibilidade de extradição de cidadãos portugueses e outra, diferente ou diversa, as condições em que esta extradição é prevista.
Concluo que no projecto do Partido Socialista se limita esta possibilidade a casos de terrorismo e criminalidade organizada. Compreendo que sejam justamente estas as situações em que pode haver lugar a extradição de cidadãos portugueses, mas estou aqui, obviamente, a opinar em termos pessoais porquanto, sobre esta matéria, o Tribunal Constitucional nunca se pronunciou.
Quanto à extradição de cidadãos estrangeiros e aos casos em que se encontra vedada a extradição, matéria de que trata o n.º 3 do artigo 33.º , o alargamento da proibição de extradição aos casos em que ao crime corresponda pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade de carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida, nesta parte, este alargamento não virá senão tornar expresso na letra da Constituição aquele que era o conteúdo que o Tribunal Constitucional, num acórdão de 1995, já considerava que nela estava incito.
Posso dizer a este respeito que, na altura, quando este problema dos crimes a que corresponde pena privativa de liberdade de carácter perpétuo ou de duração ilimitada foi posto ao Tribunal, não foi uma questão particularmente difícil de resolver a de saber se estas situações deviam considerar-se constitucionalmente equiparadas à da pena de morte.
Sobre isso, o Tribunal não teve grandes dúvidas em fazer essa interpretação não literal do texto da Constituição porquanto, na doutrina, essa posição era defendida já por mais de um autor e o Tribunal considerou, no fundo, que a extensão da proibição, apesar do silêncio da Constituição, às penas de carácter perpétuo, estava na linha da centenária tradição de humanidade do Direito Penal português.
Portanto, não serei eu quem vai naturalmente estranhar ou muitos menos pôr dúvidas, nem será seguramente o Tribunal Constitucional, embora ele como tal não tenha palavra nesta matéria, a estranhar que este alargamento dos casos de proibição de extradição passe a constar da lei fundamental.
Do mesmo modo direi quanto às penas que violem a integridade moral ou física das pessoas ou quanto às penas cruéis, degradantes ou desumanas. Claro que os textos das nossas decisões não podiam dar conta disso, mas não tenho dúvida em revelar aqui que, na nossa discussão em torno deste tema da extradição e das limitações constitucionais à extradição, esta mesma hipótese foi considerada no nosso debate interno embora, naturalmente, porque esse problema não estava posto, não haja eco disso nas decisões do Tribunal.
Dir-se-á que as mesmas razões, ou razões semelhantes ou paralelas, que justificam a proibição da extradição por crimes a que corresponda pena de morte, justificarão a proibição da extradição nestes outros casos, casos, aliás, a que se poderiam ainda estender aqueles outros em que o país requerente não assegure as garantias processuais de defesa capazes e que são reclamadas pela nossa concepção de Estado de direito.
Portanto, quanto aos textos em presença, as observações que poderei fazer são estas.
Acrescentarei, agora, quanto à jurisprudência do Tribunal Constitucional, que, nos três ou quatro acórdãos que o Tribunal proferiu sobre a matéria (três sobre extradições requeridas em Macau e um sobre uma extradição requerida no território nacional) debateu-se, basicamente, a questão de saber o que é "direito do Estado requisitante" a que se reporta o artigo 33.º, n.º 3, que diz: "Não há extradição por crimes a que corresponda pena de morte segundo o direito do Estado requisitante".
Foi em torno da questão de saber quando é que, "segundo o direito do Estado requisitante", a um crime corresponde pena de morte, que o Tribunal proferiu as decisões a que já aludi e que são conhecidas (três ou quatro relativas a casos em que estavam em causa crimes a que correspondiam pena de morte e um outro a que correspondia a pena de prisão perpétua).
Ora bem, os pontos centrais do entendimento do Tribunal são os dois seguintes: em primeiro lugar, o "direito do Estado requisitante" de que a Constituição trata não é só o direito objectivo tal como resulta da lei penal, não é a pura descrição de uma moldura penal que inclui a pena de morte tal como ela é feita num diploma legal, não é este direito abstracto que importa considerar mas, sim, importa considerar o direito do caso concreto, isto é, o "direito do Estado requisitante" há-de ser o direito do caso concreto.
Por isso, o Tribunal admitiu que onde, por força de uma decisão jurisdicional irrevogável, já não seja possível aplicar a pena de morte ou uma pena de carácter perpétuo a um determinado cidadão no Estado requisitante, apesar de, de acordo com a lei desse Estado, a tal crime corresponder pena de morte, aí, a extradição era possível. Ponto é que, repito, a exclusão da pena de morte ou da pena de carácter perpétuo se fundamentasse numa decisão proferida por uma entidade competente segundo o Direito Processual e o Direito Penal do Estado requerente, decisão essa irrevogável que tornasse juridicamente impossível a aplicação, no caso, da pena de morte ou da pena de carácter perpétuo.
É este o âmago, diria, do sentido das decisões do Tribunal.
O Tribunal, portanto, considerou que, nestes casos, seria possível a extradição mas, justamente por isso, considerou que já não era possível a extradição onde fosse altamente improvável que a pena de morte ou a pena de

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carácter perpétuo fosse aplicada, mas onde não estivesse dada uma garantia judiciária da sua não aplicação.
Portanto, considerou que a nossa Constituição, no seu texto actual, não consente a extradição por crimes a que corresponda pena de morte ou pena de prisão de carácter perpétuo, com base unicamente numa garantia diplomática ou política do Estado requisitante.
Este é que é o ponto central. E foi isso que levou o Tribunal, nos casos relativos a cidadãos chineses (penso que em um dos casos era mesmo um cidadão com passaporte britânico de Hong Kong), a considerar que a norma do diploma sobre extradição vigente em Macau era inconstitucional, na medida em que consentia a extradição com base numa mera garantia diplomática. E foi isso que levou o Tribunal a considerar que era também inconstitucional a norma da lei de extradição vigente em Portugal, na medida em que permitia a extradição por crimes a que corresponda pena de prisão perpétua também com base em garantias que não possuíam essa força de caso julgado.
Este é o quadro da jurisprudência constitucional e o quadro do entendimento que o Tribunal Constitucional faz do artigo 33.º.
Penso que deva ficar por aqui. Terei muito gosto, naturalmente, em ter, a seguir, um diálogo com os Srs. Deputados.

O Sr. Presidente: - Sr. Dr. Cardoso da Costa, muito obrigado pelo seu depoimento.
Os trabalhos da Comissão, sobretudo em sede de primeira leitura foram abrindo caminho para outras possibilidades de conformação das soluções de actualização do artigo 33.º, mas, em todo o caso, estamos em pleno momento de reflexão e a justificação destas audiências tem exactamente a ver com essa circunstância.
Há alguns Srs. Deputados interessados em interpelar o Sr. Presidente do Tribunal Constitucional, pelo que começaria por dar a palavra, pela ordem de inscrição, aos Srs. Deputados José Magalhães, Marques Guedes, Calvão da Silva e António Filipe.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Magalhães.

O Sr. José Magalhães (PS): - Muito obrigado, Sr. Presidente do Tribunal Constitucional, por estar entre nós para quem este debate é de grande importância, como sabe.
Tivemos ocasião de discutir esta matéria com os Srs. Ministros da Justiça e da Presidência, com o Sr. Procurador-Geral da República e com o Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e vamos, aliás, continuar a discutir o tema com diversas outras entidades que têm vindo a interrogar-se sobre o que está em causa.
O retrato sobre o qual se pronunciou, como num filme, moveu-se devido à primeira leitura e o quadro que descreveu corresponde, basicamente, ao início, isto é, a Março de 96, momento em que a revisão constitucional foi accionada e se encetou.
Entretanto, decorreu a primeira leitura e daí resultou, de maneira clara, pelo menos para nós, que a hipótese aventada, e que constava do nosso projecto de revisão constitucional, de alargamento de proibições de extradição a casos em que, designadamente, possa estar em causa a aplicação de penas consideradas degradantes, suscitava mais problemas do que resolvia.
O Sr. Procurador-Geral da República teve ocasião, aliás há poucos momentos, de densificar e de documentar essas dificuldades que resultam, entre outras coisas, da relativa indeterminação do conceito de "pena degradante" e das flutuações de critério que isso poderia gerar, designadamente em casos de penas longas, sendo certo, também, que o conceito de "pena longa" varia consoante as civilizações jurídicas e as ópticas e, seguramente, um traficante de droga que seja punido com 25 anos de prisão tem uma pena longa mas creio que, se tudo funcionasse segundo as regras do Estado democrático, bem merecida.
Portanto, é melhor algum cuidado, que nos levou a, nessa matéria, ter mais prudência do que aquela que marcou o momento inicial do debate.
O que está em causa neste momento são três questões, que, em parte, abordou, e uma delas muito relacionada com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, não porque essa jurisprudência, em si mesma, ou o juízo, perante ela, possa ser olhado numa óptica de divergência e, menos ainda, naturalmente, de conflito institucional, mas porque ela suscita um problema. E esse problema são os compromissos internacionais de Portugal, num espaço europeu e num quadro de globalização, que é preciso evitar, a todo o custo, seguramente não com sacrifício de qualquer princípio fundamental e humanista, que o Estado português seja colocado numa situação de impossibilidade de cumprimento de tarefas de cooperação no quadro da criação do espaço judiciário europeu, desde logo, mas não só.
A prolongar-se o entendimento segundo o qual a garantia diplomática, entre outras, é inaceitável - penso naturalmente nos casos de prisão perpétua dado o caso de pena de morte pode colocar-se num terreno distinto -, e a considerar-se que só a decisão judiciária irrevogável, insusceptível, portanto de recurso, basta para se entender que há uma garantia suficiente por parte do Estado português, estaremos ou poderemos vir a estar, entre outras coisas, impossibilitados de dar cumprimento a compromissos já assumidos no âmbito, designadamente, do espaço Schengen e também no quadro daquilo que se está a construir em matéria de extradição a nível da União Europeia.
Sabe-se que esta matéria está na disponibilidade do legislador, em sede de poder de revisão constitucional, mas as razões que têm levado a entender - e que nos levaram na sequência da primeira leitura e por força também dela e da reflexão que temos estado a fazer - que é preciso criar um mecanismo que seja simultaneamente garantístico mas não rigidificador, essas razões parecem ponderosas e são as que estão subjacentes ao texto que foi, designadamente, burilado na primeira leitura e que, depois, veio a acolher um consenso indiciário dos partidos que subscreveram o acordo político de revisão constitucional, que é público, nas sua letra específica, desde 7 de Março.
Aí só se admite a extradição por crimes do tipo que estamos agora a examinar, a título excepcional, se ao Estado português forem dadas garantias consideradas suficientes que a pena ou a medida de segurança será comutada, substituída por outra de duração limitada ou, por qualquer outra forma, não executada.

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Isso significa que se teve em conta a linha de reflexão, que não apenas o Tribunal Constitucional veio a assumir, como outros tribunais vieram a fazer sua.
Uma das razões é esta e estamos confrontados com ela e temos que a discutir com todos estes casos.
O Sr. Presidente pronunciou-se sobre a possível extradição de portugueses e referiu que o Tribunal Constitucional nunca foi confrontado com essa questão. Mas, a benefício de reflexão e de contribuição, na altura que entender oportuna, aquilo que resultou da primeira leitura e se encontra neste momento presente no nosso quadro decisional - isso está discutido amplamente nas actas da primeira leitura e portanto não representou surpresa o acordo político da revisão constitucional - é admitir uma excepção ao princípio da não extradição de cidadãos portugueses, que continua, todavia, a ser o princípio-mãe neste cenário, nesta leitura do texto constitucional, em condições de reciprocidade, desde logo só para os casos de terrorismo e criminalidade altamente organizada e para Estado que assegure o respeito dos direitos humanos.
É este conjunto de condições, em bloco, articuladamente, que são essenciais para que se admita a quebra deste princípio que, todavia, se mantém como princípio geral que é, naturalmente, a apreciação judicial e as garantias próprias de um Estado de direito democrático.
Em relação à questão da pena de morte ou da possibilidade de autorização de uma cláusula similar a esta com garantias, estão, no fundo, aqui em confronto dois cenários: para obedecer à necessidade de combate e designadamente de resposta adequada à criminalidade particularmente violenta, como é o caso do terrorismo, o primeiro cenário é o da extradição com garantia de não cumprimento da pena de morte, precisamente. Isto é, não se trata de exportar a pena de morte ou exportar alguém para os braços da morte, mas tratar-se-ia de garantir precisamente que não houvesse aplicação da pena de morte.
Este cenário coloca, todavia, problemas que têm vindo a ser equacionados política e publicamente, aos quais somos o mais possível sensíveis uma vez que o que subjaz a esta proposta não é a multiplicação da pena de morte mas, digamos, a sua não aplicação.
Num segundo momento, excluída a possibilidade de extraditar pessoas que possam incorrer na pena máxima no país onde cometeram a infracção, então, o cenário operativo (o segundo cenário) que se coloca é o de julgar e condenar essas pessoas em Portugal, se para cá fugirem, naturalmente. Se para cá fugirem e sendo certo que Portugal não será, a título algum, santuário de terroristas que tenham conseguido fugir às malhas da justiça no território da União Europeia ou de qualquer sítio, acolhendo-se em Portugal, na óptica e na esperança de um refúgio seguro e impune. Então, a solução é o Estado português punir e o Governo, nessa parte, adiantou já uma proposta de Código Penal, que está nas nossas mãos desde há poucos dias e na qual se prevê uma extensão da capacidade punitiva do Estado português para abranger situações desse tipo.
Mas gostava também que o Sr. Presidente pudesse ajudar-nos a ajuizar sobre a eficácia dessa punição praticada pelo Estado português. Porque é bom de ver que essa punição se fará em relação a crimes cometidos em territórios outros.
Em segundo lugar, far-se-á descontextualizadamente. Aliás, o Sr. Procurador-Geral da República, não por acaso, sugeria que houvesse acordos de validação da prova colhida em matéria de facto, designadamente noutros Estados, sem o que o Estado português, como Galagham, andaria em busca de provas em relação a um crime cometido alhures e num contexto, numa cultura e num mundo totalmente distinto do mundo português, sendo certo, naturalmente, que essa investigação custa dinheiro e exige meios operativos, alguns dos quais implicam deslocação presencial, interrogação de testemunhas, capacidade de romper o caminha da verdade e da sua descoberta relativamente a um crime que pode ter sido praticado a muitos milhares de quilómetros de distância.
Portanto, este segundo cenário é o da construção abstracta, sedutor e positivo, na medida exacta em que a capacidade punitiva do Estado português se expande, mas é preciso ter em vista que há pressupostos da eficácia dessa expansão sem os quais, essa mesma expansão,
será puramente verbal, e, portanto, ilusória.
Gostava ainda que pudesse ajudar-nos a meditar sobre as condições para conseguir eficácia verdadeira, neste segundo cenário.
Se não viermos a flexibilizar o texto constitucional no sentido de manter a extradição em casos em que a pessoa incorra virtualmente, em abstracto, em pena de morte, mas não de facto, porque isso não seria consentido face aos nossos princípios humanitários.
E se trabalharmos no segundo cenário, quais seriam os pressupostos óptimos para a eficácia punitiva do Estado português, conjugando tribunais, Parlamento e polícias, naturalmente, poder ser atingida, e para Portugal não poder ser, nesse cenário, o tal, nesse caso negregado, santuário de criminosos de delito comum.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Em primeiro lugar, à semelhança do que já tive oportunidade de poder satisfazer relativamente à presença aqui do Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, queria expressar a V. Ex.ª, em nome do PSD, o reconhecimento e apreço pela prontidão com que, tratando-se como se trata de uma das mais altas figuras do Estado, se ter disponibilizado, em tão curto espaço de tempo, para participar e contribuir para a reflexão que os deputados desta Comissão estão a levar a cabo, com vista à revisão constitucional.
Posto isto, e entrando de imediato na "matéria dos autos", começaria por dizer, como comentário lateral à exposição que acabei de ouvir do Sr. Deputado José Magalhães e da questão que lhe colocou, que o PSD, em qualquer circunstância, continua a ver com preocupação qualquer das alternativas: a de Portugal ser uma estância de turismo de criminosos internacionais ou a de passar a ser uma estância penal desses mesmos criminosos internacionais.
Mas, enfim, não é essa a questão que nos levou a solicitar, de entre outras individualidades, o contributo do Sr. Presidente do Tribunal Constitucional.
E a questão que queria colocar é, de resto, uma questão que me foi suscitada, com muita propriedade, pela intervenção inicial do Sr. Presidente, que, do meu ponto

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de vista, tocou num aspecto crucial que tem que ver com o facto de a jurisprudência do Tribunal Constitucional ter vindo a fazer um percurso muito particular sobre aquele que deve ser o entendimento jurisprudencial do "direito do Estado requisitante", chamando, ao mesmo tempo, a atenção para aquela que tem vindo a ser a posição do Tribunal Constitucional no sentido de que se deve entender que o que está em causa no "direito do Estado requisitante" é uma lógica de aplicação concreta, ao caso em concreto, e não em abstracto, da moldura penal que possa estar vigente no Estado em causa.
Face a isso, queria colocar uma questão muito directa ao Sr. Presidente e que é a seguinte: entenderá, então, o Tribunal Constitucional que, se, porventura, as tais garantias de comutação ou de afastamento necessário da pena de prisão perpétua ou da pena de morte no Estado requisitante decorrerem de uma convenção internacional, celebrada entre o Estado português e esse Estado requisitante, que, expressa e automaticamente, comine essa própria comutação ou a substituição da pena por uma outra, com força inequívoca de caso julgado, entenderá o Tribunal Constitucional, dizia, no sentido de que está perfeitamente afastada, com plena força jurídica na ordem jurídica do Estado requisitante, a aplicação, ainda que eventualmente, nesse caso concreto, de uma pena com essas características, tudo dentro daquele que tem vindo a ser o entendimento da jurisprudência do Tribunal Constitucional em situações como essas, e não podendo o Tribunal Constitucional deixar de entender que a extradição era possível?
De igual modo, citando até, por analogia, os casos que o Sr. Presidente aqui nos trouxe relativamente a outro tipo de casos concretos, aonde, pese embora àquele crime, praticado por aquele criminoso em concreto, na ordem jurídica abstracta do Estado requisitante, pudesse ter lugar a aplicação da pena de morte, por uma decisão já transitada em julgado, essa pena de morte ou essa prisão perpétua não foi aplicada e, por não ter sido aplicada e não poder ser revista face ao direito do Estado requisitante, pode o Tribunal entender que, então aí, também não haveria óbice à extradição requisitada?
Mutatis mutandis, a questão que coloco ao Sr. Presidente, e espero ter-me feito entender, é se, dentro desse conceito já definido em termos jurisprudenciais pelo Tribunal Constitucional, a existência de uma convenção internacional vigente entre o Estado português e esse Estado, em que, expressamente, esteja já proibida tal pena ou comutada por substituição com uma pena de natureza diferente, nestes casos em concreto, ou seja, haver todo um regime garantístico, com plena força jurídica, aplicável ao direito do Estado requisitante que, expressamente, afaste este tipo de situações.
Portanto, qual seria, face à actual jurisprudência do Tribunal Constitucional, na configuração de uma situação como esta, a posição do Tribunal Constitucional?

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Calvão da Silva.

O Sr. Calvão da Silva (PSD): - Antes de mais, as minhas saudações para o Sr. Dr. Cardoso da Costa, Presidente do Tribunal Constitucional.
Em face da jurisprudência do Tribunal Constitucional, que vai além do texto da actual Constituição, pensou alguma vez o próprio Tribunal Constitucional estender o mesmo entendimento àqueles países que, na prática, não tendo prisão perpétua, pelo cúmulo de penas pode levar a aplicar o equivalente a prisão perpétua? O raciocínio que levou a extensão da Constituição a esse caso também já esteve presente em qualquer decisão do Tribunal Constitucional?
Por outro lado, como é óbvio, a jurisprudência do Tribunal Constitucional, pelos vistos, está bem alicerçada no sentimento humanitário das grandes tradições portuguesas, mas é de crer que, no contexto internacional do crime, numa interpretação actualista, acabou por ir muito além do que os próprios autores da Constituição quiseram. Ora, sendo assim, não há que manter na sua pureza a distinção entre os casos de pena de morte e os outros casos?
O caso da pena de morte, por si só, tal qual está no actual texto constitucional, não justificaria que se mantenha, em nome da mesma tradição humanista que o Tribunal quis estender a outros casos, designadamente à pena de prisão perpétua? E em nome de outras razões - agora razões práticas, que não de grandes princípios, como de combate ao crime -, permitir-se um alargamento com as tais garantias, dadas através de convenção internacional ou por outro processo, não colidindo aí já com os grandes princípios humanistas da tradição portuguesa.
Acho que era de distinguir os dois naipes de casos em que a pena de morte é um deles, com toda a razão, com toda a tradição, e o outro, neste sim, em nome da eficácia do combate ao crime organizado internacionalmente, permitir extradições mais fáceis embora com algumas garantias.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Filipe.

O Sr. António Filipe (PCP): - Antes de mais, quero saudar também o Sr. Conselheiro-Presidente do Tribunal Constitucional por nos ter dado a possibilidade de estar presente.
A questão que desejava colocar é simples. Como já foi referido, na evolução dos nossos trabalhos, designadamente, o conhecido acordo político de revisão constitucional que foi celebrado e tornado público prevê, relativamente à extradição por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena de morte ou pena ou medida de segurança privativa de liberdade com carácter perpétuo, que (e cito) "Considera-se que a mesma deve poder ser admitida a título excepcional se ao Estado português forem dadas garantias consideradas suficientes de que a pena ou a medida de segurança será comutada, substituída por outra de duração limitada ou por qualquer outra forma não executada".
E a questão precisa que colocava é a seguinte: que garantias entende o Sr. Conselheiro que seriam admissíveis para que o Estado português pudesse, numa situação dessas, designadamente na da pena de morte, considerar satisfeito este requisito constitucionalmente exigido para poder proceder à extradição de um cidadão que seja requisitada por outro Estado?

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E, colocando a questão ao contrário, como o Sr. Deputado Medeiros Ferreira colocou já hoje numa outra audição, e a meu ver brilhantemente, isto é, se em Portugal, por absurdo, existisse pena de morte e Portugal fosse confrontado com uma exigência semelhante a esta, feita por outro Estado, que garantias poderíamos dar nós no actual quadro constitucional e sem que isso significasse uma violação da independência da magistratura? Isto é, poderia Portugal, perante, por exemplo, um Estado que considerasse na sua ordem constitucional que uma pena de 20 anos não seria admissível segundo a sua tradição e que só extraditaria um cidadão para Portugal caso o Estado português desse garantias de que essa pena prevista no seu direito interno não seria aplicada, poderíamos nós, face ao direito constitucional português actual, dar essas garantias?
Já hoje aqui foi referida, por exemplo, a hipótese de tal ser previsto através de tratados de extradição a celebrar com outros países. Tenho, no entanto, alguma dificuldade em ver que se possa estabelecer, por exemplo, por tratado que o Presidente da República se comprometa a comutar determinadas penas. Creio que isso não seria possível, no nosso quadro constitucional.
Portanto, tenho esta preocupação relativamente a exigências que possamos formular de garantias que nos sejam dadas e que nós, se estivéssemos no lugar desse Estado, não estaríamos em condições de dar.
É esta a questão que gostaria de colocar.

O Sr. Presidente: - E para concluir esta ronda de questões, tem a palavra o Sr. Deputado Barbosa de Melo.

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Começaria por dirigir um cumprimento muito especial ao Sr. Presidente do Tribunal Constitucional e dizer-lhe, repetindo o que já foi dito, do muito gosto que temos em tê-lo aqui e, ainda, saudá-lo pelo modo claro e directo com que abordou e o ponto de vista correcto em que pôs - o ponto de vista do Tribunal Constitucional - a problemática para que foi convocado e a que, prontamente, acedeu vir.
V. Ex.ª vai ficar a saber, pela boca de todos nós, que o imbróglio que aqui surgiu se deve à instituição a que tão dignamente preside.
Entenderam os Srs. Conselheiros que era tempo de ter piedade para com os criminosos que se acoitam nas nossas fronteiras e, vai daí, alargaram as razões pelas quais negam a Estados que querem puni-los o dever de lhes entregar aqueles que tem conexão com a sua ordem jurídica.
Os Srs. Conselheiros foram generosos, alargaram longa e largamente, passe a repetição, os casos em que proíbem ao legislador e proíbem ao Estado, negociador de convenções, que regule as coisas de outra maneira. E isto porque temos aqui esta norma e ela limita, constitui um princípio que limita o poder legislativo e, enfim, o poder que, embora não sendo legislativo, esteja envolvido numa na celebração de uma convenção internacional, isto é, o jus tractum do Estado. É esta norma que visa regular isto.
Mas, estendeu-se demasiado e, agora, começamos a perceber que isto não estava bem em função do que se está a passar pelo mundo, mas, de facto, não estava bem em função da extensão que o Tribunal deu a esta proibição.
O outro ponto que, claramente, foi aqui dito a todos nós é que, perante a atitude tão enraizada já na jurisprudência portuguesa, desencadeada pelo Tribunal Constitucional, sufragada pelo Supremo Tribunal de Justiça, difundida já pelas Relações, perante a atitude da jurisprudência, dizia, esta posição, que eu diria de "escuteirismo", recepcionante dos campeões da criminalidade do mundo, esta atitude já é irreversível. Agora, não há volta a dar a isto.
Portanto, vai daí as "obras que andamos aqui a fazer para pôr a construção a dar com isso tudo".
E, agora, pergunto a V. Ex.ª, Sr. Presidente do Tribunal Constitucional, se acha que é mesmo irreversível esta posição do Tribunal Constitucional?
V.Ex.ª avançou um critério na interpretação do conceito de "direito do Estado requisitante" que está no n.º 3 do artigo 33.º, que diz: "Não há extradição por crimes a que corresponda pena de morte segundo o direito do Estado requisitante". Mas, se entendermos esta expressão, como V. Ex.ª disse, e julgo que muito bem, no sentido que é o direito in concreto, isto é, não é o direito em abstracto mas, sim, é o direito do caso que é possível apurar, não há lugar para aplicar pena de morte, não há lugar para aplicar qualquer pena e, então, porque é que vamos exigir, além disto, garantias e mais garantias! Essas que estão aí nas convenções europeias não são só para negócios entre europeus mas também para o mundo inteiro.
Ora bem, queria ouvi-lo um pouco mais, quanto mais não fosse para confessar o seu pecado, Sr. Presidente do Tribunal Constitucional.

O Sr. Presidente: - Depois desta intervenção "nada provocatória" do Sr. Deputado Barbosa de Melo, tem a palavra o Sr. Presidente do Tribunal Constitucional para responder, se o desejar.

O Sr. Presidente do Tribunal Constitucional: - Srs. Deputados, muito obrigado pelas questões que me puseram, que permitem alargar-me um pouco mais, e espero que tornar um pouco mais vivo e útil para todos nós, o diálogo em que me quiseram fazer participar e que muito me desvanece.
Não sei bem por que lado hei-de começar. Mas, uma coisa é certa, as perguntas que me foram colocadas são todas elas especialmente pertinentes e tocam naquilo que é verdadeiramente essencial.
Vou começar por responder ao Sr. Deputado José Magalhães, que foi o primeiro, e depois seguir a ordem, embora pense que, relativamente a algumas das perguntas que sucessivamente me foram colocadas, poderei responder conjuntamente dada a sua ligação com as mesmas questões.
O Sr. Deputado José Magalhães foi o primeiro e começou por me esclarecer do estado actual da discussão. Registo que foi abandonada a ideia de estender a proibição da extradição aos casos em que seriam aplicáveis aos crimes penas degradantes. Compreendo perfeitamente a razão porque a utilização pela Constituição de conceitos, que têm sempre uma certa álea de indeterminação, e que tem de ser concretizados depois na sua aplicação aos casos, suscitam obviamente as maiores dificuldades.
Permitam-me, por isso, já que me deram a honra de aqui estar, que eu, provavelmente, indo além daquilo que me pediram, chame a atenção para o facto de a substituição

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operada no texto inicial do projecto do Partido Socialista, relativamente à extradição de cidadãos portugueses dos Estados membros da União Europeia para países que assegurem o respeito pelos direitos humanos, colocar o mesmo tipo de problemas. E sou levado a fazer esta observação porque, diria, talvez falando como cidadão e com o privilégio de ter podido viver a experiência que o Tribunal Constitucional teve de fazer nesta matéria, que uma das grandes questões, senão porventura a grande questão, que a abertura (abertura no sentido de permitir a extradição quando sejam dadas garantias de não aplicação das penas, seja a de morte só seja a de morte e prisão perpétua) da cláusula do n.º 3 do artigo 33.º da Constituição coloca, ou seja, a primeira e a grande questão que essa abertura, do meu ponto de vista, coloca é, precisamente, a de que ela vai abrir a porta ao tratamento diferenciado das situações e dos casos.
A cláusula, entendida nos termos radicais, tal como o Tribunal a vem entendendo, tem, pelo menos, um mérito, uma vantagem, ou seja, leva, afasta ou elimina quaisquer problemas de distinções de juízo, de avaliação, acerca da solidez das garantias que são prestadas pelo Estado requisitante. É que, senão, as mesmas garantias são válidas aqui, não são válidas além, estas são suficientes, as que este dá chegam, as que aquele dá não chegam. E porquê? Porque, cria-se aqui, de facto, penso eu, inevitavelmente, a possibilidade de se criarem questões de difícil gestão diplomática.
Mas, não direi mais do que isto e com isto não quero menorizar a realidade do problema que a interpretação do Tribunal Constitucional coloca ao Estado português, aos seus órgãos políticos, ao Governo, à Assembleia da República e aos seus órgãos legiferantes. Não menorizo isso. Penso, todavia, que este será um elemento que importa colocar no prato da balança. E é colocando todos e cada um desses elementos no respectivo prato da balança que cumprirá avaliar os dois cenários que o Sr. Deputado José Magalhães desenhou.
Começaria por dizer que também penso que a alternativa à manutenção de limites à extradição, num quadro de globalização da cooperação internacional em matéria de perseguição criminal e, nomeadamente, no quadro da União Europeia, só pode ser a de assumir Portugal o poder punitivo. Isso, para mim, é bastante claro.
Parece-me bastante inadmissível que Portugal não extradite e, depois, não assuma o dever de punir.
A esse respeito, pergunta-me o que é que acho sobre a possibilidade de tornar efectivo este segundo cenário. Confesso que não conheço a realidade judiciária e a realidade, no domínio da própria investigação criminal, da perseguição policial, etc., que me habilite a dar uma resposta cabal sobre se é viável ou não a efectivação deste cenário.
Seria, seguramente, ousado da minha parte dizer que esse cenário é inviável como seria ousado da minha parte dizer que ele tem toda a viabilidade. Uma opção a esse respeito, de facto, transcende um pouco o domínio da realidade que eu domino. Dir-lhe-ei, apenas, que estava convencido que era assim porquanto a jurisprudência do Tribunal Constitucional foi vivamente contestada em determinados círculos. Foi, inclusivamente, publicado um estudo doutrinário - que provavelmente o Sr. Deputado conhecerá - que coloca em causa, de uma forma veemente, esta jurisprudência, entendendo-a, salvo o devido respeito pelo autor, não com inteira exactidão.
Mas, dizia eu, a jurisprudência foi vivamente contestada. E um dos argumentos utilizados, argumento provavelmente não jurídico, foi o de que o Tribunal Constitucional, com a sua jurisprudência, tinha levado a que situações criminais das mais graves - estão em causa crimes de homicídio, crimes de tráfico de droga de alto coturno, etc., etc.. - acabassem por ficar impunes.
Procurei responder a esses argumentos - tive oportunidade de discutir esta questão num outro contexto -, no sentido de que isso não era exactamente assim porquanto o Estado português estava obrigado, ele próprio, então, a continuar a perseguição criminal desses actos e a julgar os seus autores no País, segundo a lei portuguesa.
Estava convencido que era assim e alguns experts na matéria diziam que era assim. Mas, confesso, começo agora sem saber se era efectivamente assim. Mas, alguém me disse que era assim. Não sei se efectivamente é assim, pois o meu conhecimento do Direito Criminal e do Direito Processual Penal não chega aí.

O Sr. José Magalhães (PS): - Sr. Presidente, se me permite a interrupção...

O Sr. Presidente: - Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. José Magalhães (PS): - Não, Sr. Presidente. Só será assim se, inequivocamente, vier a ser aprovada, como é razoável, uma proposta de revisão ao Código Penal que, precisamente, visa alterar o artigo 5.º do Código Penal...

O Sr. Presidente do Tribunal Constitucional: - Ah, portanto, não é assim ainda!

O Sr. José Magalhães (PS): - ...para tornar inequívoca e mais abrangente a possibilidade hoje existente.

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - É com o artigo 5.º do Código Penal!

O Sr. Presidente do Tribunal Constitucional: - Acredito ou é possível?

O Sr. Presidente: - Sr.ª Deputada Odete Santos, deseja usar da palavra?

A Sr.ª Odete Santos (PCP): - Não, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, pedia-lhes para não entrarem em diálogo, a fim de manter a boa ordem na nossa Comissão.
Peço aos Srs. Deputados que deixem o Sr. Presidente do Tribunal Constitucional continuar a sua exposição.

O Sr. Presidente do Tribunal Constitucional: - Portanto, Sr. Deputado José Magalhães, sobre esta sua primeira questão, teria todo o gosto em poder ser um pouco mais positivo, mas seria temerário se avançasse mais considerações sobre esta matéria.
Passarei, portanto, às outras questões.
O Sr. Deputado Marques Guedes coloca uma questão que, no fundo, foi retomada pelo Sr. Deputado Barbosa de

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Melo, embora de outro modo ou, diria até, que se liga, pelo menos, à questão que o Sr. Deputado Barbosa de Melo colocou.
A questão muito precisa que o Sr. Deputado Marques Guedes me formulou foi se, à luz da actual jurisprudência do Tribunal Constitucional, era possível a extradição quando as garantias do Estado requisitante estejam previstas num instrumento jurídico internacional vinculativo desse Estado e do Estado português, designadamente numa convenção internacional.
Penso que, no fundo, a hipótese será esta: estar na convenção internacional, ou seja, prever ela própria que os Estados subscritores possam dar garantias acerca das penas que serão aplicadas ao caso concreto, nomeadamente garantias de que será excluída a pena "A" ou a pena "B" e pelo tratado se haverem vinculado a cumprir essa garantia. Portanto, a prestação dessa garantia significa que o Estado se compromete jurídica e internacionalmente a não aplicar a pena ao crime praticado por aquele extraditando.
Bom, isto, no fundo, reconduz-se um pouco à questão de saber se a jurisprudência do Tribunal Constitucional comporta ainda elementos de flexibilização como o Sr. Deputado Barbosa de Melo referiu.
Não gostaria de ser futurólogo e, portanto, procurando manter-me com o rigor possível - nestas matérias acabamos sempre por ficar numa situação um pouco ambivalente -, de expor aquilo que é objectivo ou de, no fundo, subliminarmente, acabar por também adiantar o nosso próprio ponto de vista pessoal.
Portanto, procurando controlar esta ambiguidade inevitável das coisas, diria o seguinte: o ponto foi tratado nos primeiros acórdãos do Tribunal Constitucional, respeitantes às extradições requeridas pela China. E foi tratado, aparentemente, em termos de excluir esse tipo de garantias (ainda que essa), porquanto não é por acaso que o Tribunal Constitucional disse (e cito): "Pretendeu o Tribunal Constitucional significar que o artigo 33.º, n.º 3, da Constituição, proíbe a extradição por crimes cuja punição com pena de morte seja juridicamente possível de acordo (e não foi por acaso que isto se acrescentou) com o ordenamento penal e processual penal do Estado requisitante, sendo, por isso, incompatível com quaisquer garantias de não aplicação ou de substituição da pena capital, prestadas pelo Estado requerente, que não se traduzam numa impossibilidade jurídica da sua não aplicação".
Esta doutrina está resumida no último acórdão, que foi o acórdão em que o Tribunal generalizou o julgamento da inconstitucionalidade da norma aplicável, em Macau.
Mas, isto torna-se ainda mais claro se se confrontar o teor do acórdão com os votos de vencido porque os dois votos de vencido apoiam-se, justamente, na tese de que o Direito Internacional vinculante do Estado requisitante ainda deve ser direito do caso, para este efeito. Portanto, foi justamente este o argumento a que se arrimaram os meus distintos colegas que votaram no sentido de que "garantias que tivessem a cobertura jurídica do Direito Internacional Público deviam ser reconhecidas como suficientes no quadro do artigo 33.º, n.º 3".
Portanto, à primeira vista, a minha resposta não seria negativa mas penso que também não é definitiva.

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Pensa que não é definitiva?

O Sr. Presidente do Tribunal Constitucional: - Admito que possa não ser definitiva.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - E se o artigo 33.º o dissesse expressamente?

O Sr. Presidente do Tribunal Constitucional: - Se o artigo 33.º o dissesse expressamente, claro que o Tribunal não podia... A não ser que resolvesse subverter a Constituição! E isso, pelo menos, é o que procuramos não fazer. Se o dissesse expressamente, com certeza! Mas o problema está em não o dizer expressamente.

O Sr. Presidente: - Só há essa maneira segura... Teria de ser uma espécie de garantia administrativa.

O Sr. Presidente do Tribunal Constitucional: - Mas, vejamos, no caso, era inclusivamente duvidoso que se estivesse perante uma garantia jurídico-internacional. Esse ponto...

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Está a reportar-se ao caso de Macau?

O Sr. Presidente do Tribunal Constitucional: - Sim, reporto-me ao caso de Macau, até porque o caso chamado "Variso" é outra temática, embora também tenha a ver com a questão da flexibilização.
Era, inclusivamente, duvidoso que a situação fosse parificável àquela que o Sr. Deputado Marques Guedes considerou porque o que ali tínhamos era uma declaração unilateral do Estado requisitante, se bem que prestada por via diplomática e, devo acrescentar, produzida junto do Ministério dos Negócios Estrangeiros português.
Não foi apenas uma declaração da Agência Nova China. Havia um instrumento diplomático emitido pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês. Suponho até que só uma nota verbal ou coisa do género, produzida junto do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal. Mas era uma declaração unilateral e não uma declaração a que o Estado requisitante estivesse obrigado por força de qualquer convenção internacional.
Portanto, não posso ir mais além do que isso. Sublinharia que a hipótese que o Sr. Deputado Marques Guedes coloca será uma hipótese diferente da espécie de hipóteses que estiveram na base da jurisprudência do Tribunal Constitucional.
Claro que poder-se-á argumentar: se se trata de uma declaração que o Estado produz no quadro de uma convenção jurídico-internacional, declaração à qual a convenção atribui a força vinculativa de afastar a possibilidade de aplicação daquela pena naquele caso, dir-se-á que o direito objectivo do Estado requisitante, para aquele caso, foi alterado ou é modificado por aquela declaração. É uma argumentação possível.
Portanto - e agora entro já também na pergunta do Sr. Deputado António Filipe: "que garantias?" -, uma coisa é certa: é que qualquer alteração do n.º 3 do artigo 33.º da Constituição, no sentido de permitir a extradição quando sejam fornecidas garantias, haverá de ser interpretada... E compreendo perfeitamente que o legislador constitucional modifique a jurisprudência do Tribunal Constitucional. Diria até que o legislador constitucional existe

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também para corrigir aquilo que o Tribunal Constitucional foi fazendo, interpretando a Constituição, da forma que não é, porventura, a mais desejável.
Mas, voltando à questão "que garantias?", uma coisa é certa, dizia, a alteração do n.º 3 do artigo 33.º só pode significar que vão ser possíveis garantias de tipo diplomático porque, quanto às garantias jurisdicionais, já a suficiência delas resulta da jurisprudência do Tribunal Constitucional. Quanto a essas, não há dúvida alguma, se houver uma sentença judicial ou um despacho do juiz, irrevogáveis, que, antecipadamente, comutem a pena do acusado. Ou até, por exemplo, se num qualquer Estado existir um mecanismo semelhante ao do artigo 16.º, n.º 3, do Código Penal, que permite ao Ministério Público propor a pena até um certo máximo e modifica a competência do Tribunal - e essa é uma decisão irrevogável -, de maneira que a condenação não pode ultrapassar... Bom, garantias dessas, já o Tribunal as considera suficientes.
Portanto, a abertura às garantias há-de, naturalmente, entender-se como uma abertura às garantias de tipo diplomático.
Sobre o nível em que as mesmas garantias se devem colocar, aí é que há, de facto, gradações possíveis. Porventura, uma garantia diplomática, expressa na forma de uma mera declaração unilateral, é, provavelmente, diferente de uma garantia dada pelo Estado, no quadro de uma convenção multilateral, em que há uma assunção recíproca de direitos e deveres nesta matéria, possivelmente.
Por aquilo que ouvi, será a lei a definir as garantias. Portanto, a lei definirá. Mas, isto não foge a que, em cada caso, tenha que se analisar o tipo de garantias. É-me realmente muito difícil... Diria que, a avançar-se neste caminho - e isto é naturalmente da responsabilidade de VV. Ex.as e dos vossos pares -, haveria de ter-se a preocupação de procurar objectivar, tanto quanto possível, o tipo de garantias suficientes, ainda que de garantias diplomáticas, eliminando o mais possível a álea da apreciação dos casos concretos. É que, realmente, em Portugal, apesar de tudo, nestas duas situações que, obviamente, não agradaram aos Estados requisitantes e em que o Tribunal Constitucional foi protagonista, as coisas não correram, nesse plano - permitam-me este aparte -, mal de todo porque assim como foi recusada a extradição para a China foi também recusada a extradição para os Estados Unidos da América.
Portanto, é visível, é claro que, do ponto de vista do Estado português - neste caso, era uma instância jurisdicional mas poderia ser o Governo -, não houve qualquer avaliação diplomática das garantias dadas por cada um dos Estados. E, de facto, diria que o desejável - respondendo ao Sr. Deputado António Filipe - é que a formulação das garantias fosse de molde a tornar esse requisito o mais objectivo possível e o mais possível eliminador destas situações, sempre complicadas.
Passo a responder ao Sr. Deputado Calvão da Silva, mas continuo ainda com a pergunta do Sr. Deputado Barbosa de Melo. É que a pergunta que o Sr. Deputado Calvão da Silva faz também tem que ver com os elementos de flexibilização da jurisprudência do Tribunal Constitucional, agora no sentido de flexibilizá-la para alargar os casos em que não seria possível a extradição, se bem entendi, isto é, se o Tribunal entendeu proibir a extradição para países que, na prática, têm prisão perpétua.
Embora esta situação, de facto, nunca tenha sido colocada, não estranharia que a posição do Tribunal se centrasse muito em torno do direito concreto, do direito tal como ele na realidade opera nos casos e, portanto, que se não bastasse com a mera afirmação abstracta numa norma de que não há prisão perpétua.
Mas, a situação é muito complicada, é uma situação diferente. Esta situação, no fundo, tem a ver com a extradição para países onde não são asseguradas as garantias de defesa. É que se a lei não prevê a prisão perpétua mas pode prever medidas de segurança indefinidamente prorrogáveis, por exemplo, ou, então, nem sequer isso prevê, mas sabe-se que as pessoas são presas e são esquecidas nas masmorras ad aeternum. Bom, neste caso, é mais complicado, diria que até seria mais difícil ao Tribunal estender a proibição de extradição a esses casos, na lógica dos acórdãos. E isto porque os acórdãos que o Tribunal Constitucional tirou nunca abordaram esse ponto específico das garantias. Abordaram, sim, um outro ponto, que vai ao encontro da pergunta do Sr. Deputado Barbosa de Melo, ao admitirem que o direito aplicável ao caso fosse estabelecido por via jurisprudencial. Não por acaso, essa consideração teve lugar no acórdão que versou sobre o requerimento de extradição dos Estado Unidos da América do cidadão brasileiro.
É que aí, em boa parte, o direito é jurisprudencial e, por consequência, o Tribunal seria cego para a realidade jurídica do país requisitante se não considerasse essa situação. E, justamente, isso foi dito. Há um ponto em que a dimensão jurisprudencial do direito também é considerada, ponto esse que, de momento, não localizo, mas que está realmente formulado algures, em outro arresto.
A configuração dos casos que os tribunais decidem influenciam sempre, quer se queira quer não, as normas do caso. As generalizações são sempre arriscadas, isto é, a extrapolação de uma norma geral, a partir das normas do caso, que os tribunais formulam, é sempre arriscada.
Portanto, não me atreveria a dizer que esteja de todo excluída qualquer margem de flexibilização na jurisprudência do Tribunal Constitucional. E isto porque são os próprios casos que obrigam os tribunais a reflectir, a "acertar o rito", a corrigir, a moderar, porventura, expressões e afirmações que foram, aqui ou além, excessivas, a rever situações que, enfim, foram consideradas em termos demasiado amplos.
Sublinharei, em todo o caso, que a consideração expressa do Direito Internacional Público, por parte do Estado requisitante, como direito do caso, não foi, de facto, considerada nos acórdãos do Tribunal Constitucional.
Há uma pergunta que nenhum dos Srs. Deputados me formulou, mas que, mentalmente, formulei, enquanto os ia ouvindo. É que, com tudo isto, tem também a ver quem avalia as garantias que o Estado requisitante oferece. Permitir-me-ia trazer este tópico também para a reflexão de VV. Ex.as se, porventura, ele não for de todo falho de sentido e que formulo nos seguintes termos: quem avalia essas garantias? Se são garantias de carácter diplomático, deve avaliá-las um tribunal? Ou deve a avaliação dessas garantias ficar na área da decisão política sobre a extradição?
Claro que se esta pergunta fosse colocada no quadro da elaboração de uma lei ordinária, haveria o problema de saber se isso era possível, se, no fundo, a reserva do Governo

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na avaliação das garantias não violaria o princípio da garantia judiciária nesta matéria, como está claro.
Contudo, diria que esse problema não se porá em termos de revisão constitucional, mas não deixa de ser um tópico do legislador da mesma revisão porque o sistema tem de ser harmónico e a harmonia do sistema, possivelmente, também não consentirá excluir aqui, de todo em todo, uma apreciação jurisdicional.
Não tenho uma resposta para esta pergunta. Ela ocorreu-me nesta troca de impressões mas, na verdade, penso que se se coloca o problema de saber "que garantias" também, creio, se deve colocar o problema de saber "como é que elas são avaliadas e quem as vai avaliar".

O Sr. Barbosa de Melo (PSD): - Tem de ser sempre o tribunal por causa do n.º 4!

O Sr. Presidente do Tribunal Constitucional: - Isso significa que, em último termo, quem poderá vir a avaliar estas garantias será o Tribunal Constitucional, desde que a questão seja posta em termos que permitam o recurso para o Tribunal Constitucional.
Srs. Deputados, lamento ser tão pobre nas minhas considerações, mas diria que também estou à procura, nesta matéria.
Sublinharia, ainda, uma última nota que o Sr. Deputado Calvão da Silva referiu. Mas, aqui, terei de fazer a reserva de que o farei a título pessoal. É que não posso nem devo deixar perceber que isto pode ser um entendimento partilhado pelos meus colegas.
Portanto, a título puramente pessoal, repito, direi que, provavelmente, não excluiria a possibilidade de uma ponderação de soluções diferentes para os crimes a que corresponda pena de morte e para os crimes a que corresponda a pena de prisão perpétua. E isto até porque tenho a consciência clara de que a proibição da prisão perpétua coloca hoje a Portugal um problema difícil no quadro europeu. Tenho a perfeita percepção disso, não há dúvida.
De tanto quanto sei, por exemplo, há países em que ainda é prevista a pena de prisão perpétua, mas ela não é efectivamente aplicada ou deixou de ser aplicada. Há medidas de liberdade condicional, na Alemanha, por exemplo. Há outros países onde a prisão perpétua está prevista e é realmente aplicada como tal. Isto coloca, de facto, problemas complicados. E penso que, porventura, uma pista de reflexão poderá ser essa.
A propósito, já gora, das convenções internacionais e da sua eficácia, não poderei deixar de referir que, no último processo que passou pelo Tribunal Constitucional - o tribunal, aliás, proferiu uma mera decisão processual sobre essa matéria, sem conhecer do pedido do recorrente -, que foi também um caso muito conhecido e relativamente recente e em que a extradição, aliás, efectivou-se depois para a Itália - o Tribunal Constitucional, como disse, não conheceu do mérito do caso mas conheceu o Supremo Tribunal de Justiça -, o problema que estava posto tinha a ver, justamente, com a vinculatividade internacional dos Estados pelas convenções.
E o que é que aconteceu? É que, como provavelmente alguns se recordarão, esse cidadão foi extraditado com base na prática de um crime para o qual não estava prevista pena de prisão perpétua e veio, depois, pedir a revisão da sentença de extradição porque, entretanto, tinha sido pronunciado em Itália pelo prática de um crime a que correspondia pena de prisão perpétua e quis evitar a extradição com esta circunstância. Porém, Supremo Tribunal de Justiça não lhe concedeu a revisão porque, de acordo com a convenção subscrita por Portugal e pela Itália, a extradição só pode ter efeito para aquele crime, para o crime pelo qual foi concedida a extradição.
A Itália recebeu este cidadão mas está, por força da Convenção Europeia de Extradição, adstrita a julgá-lo apenas pelo crime a que não corresponde prisão perpétua, ou seja, pelo crime pelo qual Portugal extraditou.
Portanto, aqui, a garantia da convenção funcionou, ao nível do Supremo Tribunal de Justiça, para permitir a extradição. E esta questão não foi revista pelo Tribunal Constitucional porque, de facto, não se conheceu do mérito.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, Sr. Presidente do Tribunal Constitucional, suponho que damos por extremamente bem aproveitado o tempo da nossa reflexão.
Quero agradecer, em nome da Comissão e em meu próprio, ao Sr. Presidente do Tribunal Constitucional a disponibilidade para esta troca de impressões e para esta reflexão conjunta, que muito seguramente aproveitará à Comissão.

O Sr. Presidente do Tribunal Constitucional: - Sr. Presidente e Srs. Deputados, eu é que agradeço a VV. Ex.as o convite que me fizeram e digo-lhes do gosto com que aqui estive. Lamento, no entanto, que a minha contribuição só tenha podido ser esta, com a consciência de que foi modesta mas foi, naturalmente, com a melhor boa vontade e disponibilidade.

O Sr. Presidente: - Mais uma vez, muito obrigado, Sr. Presidente do Tribunal Constitucional.
Srs. Deputados, dou por encerrada a nossa reunião e voltaremos a reunir-nos amanhã, às 17 horas e 30 minutos.
Está encerrada a reunião.

Eram 20 horas e 55 minutos.

A DIVISÃO DE REDACÇÃO E APOIO AUDIOVISUAL

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