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V REVISÃO CONSTITUCIONAL

Comissão Eventual para a Revisão Constitucional

Acta n.º 2

Reunião do dia 25 de Maio de 2001

SUMÁRIO

A reunião teve início às 10 horas e 10 minutos.
Foram apresentadas propostas do PS e do PSD relativas ao Tribunal Penal Internacional e do PS em matéria de espaço judiciário europeu - artigos 7.º e 298.º-A dos projectos de revisão constitucional n.os 1/VIII (PSD) e 2/VIII (PS), respectivamente.
Usaram da palavra, a diverso título, além do Sr. Presidente (José Vera Jardim), os Srs. Deputados Jorge Lacão (PS), Luís Marques Guedes (PSD), Pedro Roseta (PSD), António Filipe (PCP), Fernando Seara (PSD), Guilherme Silva (PSD) e Narana Coissoró (CDS-PP).
O Presidente encerrou a reunião eram 13 horas e 20 minutos.

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O Sr. Presidente (José Vera Jardim): - Srs. Deputados, temos quórum, pelo que declaro aberta a reunião.

Eram 10 horas e 10 minutos.

Srs. Deputados, está em distribuição um documento preparado pelos serviços de apoio à Comissão sobre o Tribunal Penal Internacional e a experiência parlamentar francesa. Como sabem, também foi feita em França uma revisão constitucional a este propósito.
Queria pôr à consideração dos Srs. Deputados o seguinte: existe um conjunto de debates realizados em sede da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, em 1996 e 1997, que, de uma forma ou de outra, tocam alguns dos problemas que aqui estamos a discutir. Como se trata de um volume muito grande de papel, sugeria que se mandasse distribuir um exemplar por cada grupo parlamentar, cabendo ao coordenador do grupo seleccionar aqueles que pretendia que fossem distribuídos a todos. Creio que todos estarão de acordo.
Posto isto, iríamos dar início aos nossos trabalhos, dando execução ao que tínhamos acordado consensualmente: a realização da 1.ª leitura que se desenvolveria com a apresentação, por cada grupo parlamentar, dos respectivos projectos, seguida da formulação de pedidos de esclarecimento pelos Srs. Deputados, se o desejarem.
Entendi que deveríamos proceder da seguinte forma: como existem três grandes blocos de problemas nos vários projectos, a apresentação deverá ser feita por blocos, caso contrário tornar-se-á uma apresentação muito longa e correremos o risco de "perder o fio à meada".
Portanto, o que propunha era que hoje começássemos por discutir o primeiro bloco, o Tribunal Penal Internacional e espaço judiciário europeu, seguindo-se, na próxima terça-feira, a apresentação do segundo bloco, igualdade de direitos e buscas domiciliárias, e, finalmente, abordaríamos o terceiro bloco relativo aos problemas das associações sindicais e da limitação de mandatos.
Em conversa informal, já obtive o acordo prévio do Sr. Deputado Luís Marques Guedes e penso que os Srs. Deputados do PS também não se vão opor a esta metodologia. Pergunto ainda ao Sr. Deputado António Filipe se estará de acordo com esta metodologia de fazermos a apresentação dos projectos por blocos.

O Sr. António Filipe (PCP): - Sr. Presidente, no que respeita à metodologia a adoptar, creio que os proponentes terão a palavra decisiva, já que é sobre eles que incide…

O Sr. Presidente: - Exactamente, mas apesar de não ser proponente, também o Sr. Deputado deve ser ouvido sobre esta matéria.

O Sr. António Filipe (PCP): - Estou de acordo, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Assim sendo, daria a palavra ao Sr. Deputado Jorge Lacão, para fazer a apresentação do projecto de revisão constitucional do PS relativamente ao Tribunal Penal Internacional e espaço judiciário europeu.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Começando as minhas considerações pelo Tribunal Penal Internacional, gostaria de sublinhar que suponho que todos nós beneficiamos do largo debate e reflexão já travados, até este momento, em torno de uma opção a fazer pela Assembleia da República no que diz respeito à aprovação da Convenção, que cria o TPI, de acordo com o Estatuto de Roma.
Ocorre que dessa reflexão, particularmente realizada em sede de 1.ª Comissão, resultou para muitos de nós a convicção de que seria inviável a aprovação da referida Convenção sem cuidar de uma pré-adaptação da Constituição, com vista a evitar inconstitucionalidades resultantes da desconformidade de algumas normas do Estatuto de Roma relativamente às disposições constitucionais.
Não vou, por isso, ocupar o vosso tempo reportando-me às razões de natureza política que militam favoravelmente à opção de aprovação da Convenção que cria o TPI. Por outro lado, também me parece que as questões relativas ao enquadramento constitucional estão razoavelmente delimitadas. E ficaram delimitadas através de um parecer que frequentemente invocamos, elaborado pelo Sr. Deputado Alberto Costa, em sede de 1.ª Comissão, no qual foi feito o rastreio das incidências constitucionais do Estatuto de Roma que cria o Tribunal.
Permita-se-me por isso, em termos sintéticos, sublinhar algumas dessas questões de enquadramento constitucional.
Em primeiro lugar, a consideração de que, tratando-se no Estatuto de Roma de atribuir ao Tribunal Penal Internacional uma competência que implica o julgamento de crimes susceptíveis de serem praticados em território nacional, essa translação de competência de alguma maneira questiona o âmbito do princípio da soberania constante da Constituição, desde logo no seu artigo 1.ª, bem como o âmbito da função jurisdicional plena que a nossa Constituição atribui aos tribunais, mormente nos artigos 202.º e 209.º.
Portanto, na medida em que a Convenção prevê essa possível translação de exercício de competência jurisdicional, parece ser avisado, que haja a possibilidade constitucional de o admitir.
Em segundo lugar, as normas do Estatuto prevêem, ainda que em situações extremamente graves e em casos limite, a possibilidade de aplicação de uma modalidade inicial de prisão perpétua que é, ela própria, necessária e obrigatoriamente revisível ao fim de um certo número de anos de aplicação, o que, de alguma maneira, poderia ser interpretado como uma não "vinculatividade" à natureza perpétua de uma pena, mesmo que como tal excepcionalmente tivesse sido decretada.
Seja como for, parece haver uma desconformidade entre esta disposição do Estatuto e as disposições constitucionais, em particular a do n.º 1 do artigo 30.º que, no nosso caso, proíbe de forma expressa e peremptória a aplicação desta medida penal.
Consequentemente, e embora de acordo com toda a reflexão produzida até ao momento esteja inteiramente claro que não se trata, nesta revisão constitucional, de incorporar para a nossa ordem jurídica interna esse tipo de pena, ela continuará excluída de qualquer aplicabilidade no âmbito da ordem jurisdicional portuguesa. Portanto, não se trata de regredir aqui, em termos de pensamento jurídico-constitucional, no que diz respeito à ordem jurídico-constitucional no Estado português mas, sim, de fazer-se uma opção pelo "sim" ou pelo "não" em termos de adesão à Convenção que cria o Tribunal Penal Internacional e, neste sentido, admitir que no âmbito do Direito Internacional,

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justamente aquele que regula de modo específico o funcionamento do TPI, seja admissível, ainda que a título excepcional, que essa previsão penal alguma vez possa ser aplicada, sem que da disposição da Convenção resulte uma desconformidade não admitida pela Constituição Portuguesa, uma vez que, como sabemos, entre o Direito Internacional e o direito interno existe não uma situação de confusão mas de inter-relacionamento entre esses dois níveis de ordens jurídicas. Ou seja, a constituição de um país também não pode ser indiferente ao modo como o Direito Internacional se projecta na sua ordem jurídica.
Em terceiro lugar, vale a pena ainda salientar um problema de reflexão relativo ao regime da extradição, na medida em que a nossa Constituição define regras bastante específicas quanto aos procedimentos jurisdicionais aplicáveis às situações permitidas para a extradição, que são as que constam do artigo 33.º da Constituição(em particular os n.os 1, 3 e 5). No entanto, na medida em que o Estatuto do TPI prevê a possibilidade de entrega de pessoas ao tribunal, pessoas essas que podem ser portugueses, faz sentido que nos interroguemos sobre se essa possibilidade de entrega, a pedido do tribunal, configura ou não uma solução de extradição.
Sabemos que a opinião jurídico-constitucional em torno da qualificação desta situação se divide, uma vez que eminentes constitucionalistas entendem que esta situação da entrega ao TPI, porque não resultaria de uma certa horizontalidade inter-relacional entre Estados, não configuraria necessariamente uma situação de extradição.
Em todo caso, pela minha parte, entendo que não é propriamente o nome que pomos às coisas que altera a natureza das coisas! E, provavelmente, o que aqui está em causa em termos de materialidade ou de natureza fáctica dessa situação é que, de facto, se põe a situação da entrega de alguém que deixará de estar subordinado à tutela da nossa ordem jurídica para passar a estar subordinado à tutela de uma ordem jurídica exterior à do Estado português.
Por isso, ainda que admitindo como razoável todo um debate conceptual em torno da qualificação desta situação da entrega, talvez a jurisprudência das cautelas" nos aconselhe a ponderar que vale a pena conceber uma ideia de que, também aqui, uma aprovação da Convenção do TPI deverá ser feita com a possibilidade constitucional de daí não derivarem eventuais desconformidades futuras quanto à aplicação desta situação da entrega de pessoas justamente ao TPI.
Coloca-se ainda uma outra questão que os trabalhos desta Comissão admitiram ponderar e que se prende com o facto de sabermos que um dos aspectos mais significativos que caracteriza o Estatuto do TPI é o da irrelevância da qualidade oficial de quem for demandado em tribunal. Levantará isto questões específicas, em particular no que diz respeito ao regime das incompatibilidades dos titulares de cargos políticos, de acordo com o que a Constituição prevê nesta matéria? Será suficiente uma cláusula de aceitação do Estatuto do TPI para, também aqui, excepcionarmos na ordem interna a eventual colisão entre estas disposições do Estatuto e as nossas normas relativas ao regime das incompatibilidades?

O Sr. Mota Amaral (PSD): - E das imunidades!

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Das incompatibilidades e das imunidades, diz muito bem o Sr. Deputado Mota Amaral! E levanto esta questão sob forma interrogativa justamente para que sobre ela nos possamos debruçar no nosso processo de reflexão.
Em síntese, Srs. Deputados, penso que são estes os factores de ponderação constitucional que nos aconselham a, justamente em sede de revisão, criar uma solução que permita um acolhimento expresso, pela nossa Constituição, do Estatuto do TPI e, portanto, no âmbito de disposições jurídicas que nele se prevêem.
A técnica constitucional preferida pelo Partido Socialista, bem como - permitam-me que o sublinhe - a apresentada no projecto do PSD, é a de uma cláusula geral que expressamente admita o reconhecimento do Estatuto do Tribunal Penal Internacional e, deste modo, permita que essa jurisdição do TPI seja integrada em conformidade com a Constituição.
Há, no entanto, uma distinção entre o projecto do PS e o do PSD quanto à integração sistemática desta cláusula.
O Partido Socialista apresenta essa proposta de integração sistemática num artigo em sede de disposições finais da Constituição. Devo confessar que esta opção foi longamente reflectida e devo confessar, também, sem qualquer parti pris, que não é definitiva, o que significa que, pela nossa parte, estamos inteiramente abertos a ponderar os "prós" e os "contras" desta inserção sistemática da norma de acolhimento.
O projecto do PS poderia, desde logo, tê-la integrado no artigo 7.º, que trata da matéria das relações internacionais. E por que é que não o fez? Porventura, o que no artigo 7.º se dispõe quanto aos princípios fundamentais relativos às relações internacionais significa, desde logo, um adquirido muito significativo e um testemunho muito expressivo da Constituição relativamente a uma compreensão do modo como se estruturam essas mesmas relações internacionais. Portanto, é um testemunho da Constituição a favor de uma estrutura estabilizada e significativa do quadro das relações internacionais, tal como a Constituição as reconhece, as admite e nelas aceita participar.
A questão relevante para esta reflexão é a seguinte: no momento em que a revisão constitucional vai ter lugar, verdadeiramente, o Tribunal Penal Internacional ainda não está criado. Estamos, portanto, a referirmo-nos a uma entidade ainda inexistente na ordem jurídica internacional.
Está a decorrer, como sabem, o processo de formalização dos Estados no sentido da adesão à Convenção. Não sabemos quando é que esse processo estará concluído, com a aprovação e a ratificação da Convenção por um número exigível de Estados, para que o TPI possa entrar em vigor, mas é mais do que provável que, no final deste nosso processo de revisão constitucional, ainda não exista qua tale, como ente específico autónomo na ordem internacional.
Por isso nos interrogamos se fará sentido a sua consagração, desde logo, apesar de ser entidade ainda não existente, no quadro que estrutura o domínio relevante e estabilizado da ordem jurídica internacional como tal reconhecido pela Constituição Portuguesa ou se, numa atitude um pouco mais ponderada, não fará mais sentido encarar esta relação entre a ordem constitucional portuguesa e o TPI não como uma relação de estabilização plena no quadro da ordem jurídica internacional mas como algo que especificamente é admitido pela Constituição; algo a que a Constituição se abre na possibilidade de vir a entrar em vigor.
No futuro, quando o TPI, no exercício normal e pleno das suas funções, demonstrar ter ganho um papel estabilizado no quadro das relações jurídicas internacionais, fará

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então, porventura, mais sentido deslocar aquilo que a Constituição inicialmente possa admitir em sede de disposições finais para mais tarde, então sim, haver uma plena integração ao nível dos princípios fundamentais que estão espelhados no artigo relativo às relações internacionais.
Como os Srs. Deputados podem compreender, estas argumentações são mais de oportunidade do que de princípio e, como tal, argumentos de oportunidade não admitem, certamente, opções dogmáticas. Estamos por isso, desde já o declaro, disponíveis para ponderar as outras razões que em sentido diferente possam ser explicitadas para, num espírito de síntese e de consenso, virmos a optar pela solução que, tudo visto e ponderado, nos pareça a mais aconselhável.
Dito isto, se me permitem, passaria agora a dizer algo sobre o tema do espaço jurídico europeu.
O projecto do PS levanta esta questão - porventura, é o único que o faz -, aí sim, em sede de artigo 7.º, ponderando a possibilidade de a norma que já se contém no artigo 7.º, relativamente à admissão por Portugal da sua participação no exercício em comum dos poderes necessários à construção da União Europeia (os requisitos do exercício em comum desses poderes necessários à construção da União Europeia, fundamentalmente os que se reportam à realização da coesão económica e social), ser alterada, tendo em vista que se a dinâmica da construção europeia serve, por um lado - e deve continuar a servir -, a realização da coesão económica e social, por outro lado, desenvolve-se noutros âmbitos igualmente significativos, sendo um deles o do "espaço de liberdade, de segurança e de justiça".
O conceito de cidadania europeia interpela-nos justamente para a compreensão de que esse espaço de liberdade, de segurança e de justiça se abre à nossa frente como um espaço de progressiva harmonização de muitos princípios e regras de procedimento em matéria de espaço judiciário comum aos Estados da União.
Sabemos, aliás, que esta matéria tem merecido bastante reflexão no próprio processo de aprofundamento da União. Começou por ser inserida, ao nível do Tratado de Maastricht, como matéria do segundo pilar, em termos que a compreendiam numa lógica de intergovernamentalidade; com o Tratado de Amesterdão, muitas das normas que inicialmente tinham sido concebidas nesse plano foram comunitarizadas e são hoje matérias da competência plena dos órgãos da União Europeia, como é o caso do regime do asilo, das políticas de imigração, do controlo das fronteiras externas da União, dos problemas da liberdade de circulação, designadamente de acordo com o adquirido pelos Acordos de Schengen.
Existem, contudo, outras vertentes, vertentes essas que se reportam, no Título VI do Tratado da União, a outros domínios igualmente do maior relevo. Refiro-me à cooperação policial e judiciária em matéria penal e à prevenção do combate do racismo e da xenofobia, o que implica um amplo leque de situações em que tenderá a haver uma acção comum cada vez mais estreitada no domínio da cooperação judiciária, designadamente em matéria penal.
Como resulta dos próprios artigos do Título VI do Tratado da União, essa cooperação judiciária em matéria penal passa por criar, designadamente: formas de harmonização na tramitação processual; formas de cooperação e de harmonização quanto à execução das decisões judiciais; formas de cooperação e de "facilitação" relativamente ao regime da extradição praticado entre os Estados membros e por assegurar as normas de compatibilidade aplicáveis entre esses mesmos Estados. Consequentemente, este conjunto de situações deve merecer a nossa ponderação, e deve merecê-la, aliás, de maneira a termos em linha de conta o que se tem vindo a passar no quadro da própria União.
Sabemos, desde logo, que as conclusões de Tampere, de Outubro de 1999, criaram uma significativa ênfase em torno destes domínios. Aí se referiu que o reforço do princípio no domínio da cooperação penal deveria contribuir não só para facilitar a cooperação entre autoridades como também para melhorar a protecção judiciária dos direitos individuais, e que muito disto está associado às ideias que implicam uma possibilidade de reconhecimento recíproco das decisões judiciais, quer em matéria civil quer - o que é dito explicitamente - em matéria penal. Esta é, aliás, a conclusão actualizada das posições da presidência do Conselho Europeu de Tampere, como referi, mas também do chamado Score-board, que vai fazendo a avaliação dos progressos realizados na criação do espaço de liberdade, de segurança e de justiça na União Europeia, com permanente ênfase nestes domínios. Eles vão tendo, aliás, tradução prática.
Ainda esta semana, se me é permitido recordar, o Governo decidiu enviar para a Assembleia da República, para aprovação e posterior ratificação, a convenção relativa ao auxílio judiciário em matéria penal entre os Estados membros da União Europeia. E, se verificarmos o âmbito normativo que integra essa convenção e que prevê, designadamente, a constituição de equipas de investigação conjuntas entre os Estados membros, soluções normativas para a intercepção de telecomunicações relativamente às investigações encobertas ou entregas vigiadas, relativamente aos métodos de combate à criminalidade organizada transfronteiriça, relativamente à possibilidade de entrega, ainda que circunstancial, de detidos para poderem ser investigados ou inquiridos em tribunais de jurisdição de outros Estados membros.
Compreendemos que estamos perante uma realidade em processo significativo de mutação que nos leva a ponderar o seguinte: se não fizermos uma reflexão com incidência constitucional sobre todo este conjunto de tópicos, de um dia para o outro poderemos correr o risco de estarmos confrontados com um problema de desconformidade de medida normativa, por via de algo que tenha a ver com directivas, com decisões-quadro ou com a aprovação de uma convenção, que nos coloque numa situação semelhante àquela em que estivemos relativamente ao Estatuto do Tribunal Penal Internacional. Com uma diferença, todavia: a decisão voluntarista de criação do tribunal internacional penal resultou de uma conferência expressa, sob a égide das Nações Unidas, visando justamente a criação desse novo órgão na ordem internacional, enquanto que, em sede da União Europeia, o espaço jurídico, o espaço judiciário europeu e a problemática da liberdade, da segurança e da justiça é algo que está no nosso horizonte, uma vez que está inscrito no texto dos tratados, e cujo aprofundamento, portanto, está ao nosso alcance poder compreender e, em consequência, desde já antecipar relativamente às suas possíveis implicações em sede constitucional.
Estas implicações podem, designadamente, situar-se relativamente a artigos da nossa Constituição que tenham a ver com as matérias penais e do processo penal e, particularmente, quanto ao próprio regime da extradição.
Assim sendo, também nos pareceu que uma esperança/previsão de que o contributo português para o aprofundamento

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da União Europeia deve fazer-se para a realização de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça, no âmbito do qual possa convencionar-se o exercício em comum dos poderes necessários à construção da União, era uma medida de cautela em sede constitucional que poderia permitir um muito melhor acompanhamento e uma participação mais activa e mais plena, da parte de Portugal, nesse esforço de construção da União.
Permitam-me, para concluir, Srs. Deputados, pois esta minha introdução já vai alargada, que, a propósito disto, faça a seguinte observação: a possibilidade de cooperação no espaço da União Europeia, sobretudo depois do Tratado de Amesterdão, é configurada segundo modalidades que permitem a todos os Estados membros soluções de cooperação reforçada, soluções, portanto, que permitirão a Estados que se considerem melhor apetrechados tomar decisões mais dinâmicas relativamente a outros que, eventualmente, não estejam em condições, sejam elas quais forem, de acompanhar um certo ritmo de decisão.
É por isso que, designadamente, convenções podem hoje ser aprovadas entre os Estados da União, envolvendo metade desses Estados e não necessariamente todos eles, criando modalidades de cooperação reforçada, particularmente nesta área do espaço de liberdade, de segurança e de justiça.
Creio que seria bom para Portugal estar em condições institucionais de poder disputar, de acordo com os seus critérios, a linha da frente e não ficar, um dia, eventualmente, numa situação difícil, de, designadamente, quanto à eventualidade de concretização de soluções de cooperação reforçada, não as poder acompanhar, não poder integrar soluções que sejam adequadas por embaraços de ordem constitucional que, eventualmente, limitassem as suas possibilidades de opção.
Não esqueço que toda esta consideração tem a sua pertinência num contexto europeu em que os valores e os princípios fundamentais do Estado de direito são e continuam a ser absolutamente dominantes e em que, à luz matricial, designadamente da própria Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, não estamos a falar da possibilidade de evoluirmos para soluções que, de alguma maneira, pudessem, um dia, ferir os princípios constantes dos valores e dos nossos direitos fundamentais. Por isso, estamos nesta matéria com o estado de espírito de quem não quer contribuir em nada para, um dia, prejudicar aquilo que são os valores fundamentais da liberdade, da democracia e dos princípios do Estado de direito, mas para os aprofundar, precisamente no quadro dinâmico da União Europeia, porque a União Europeia não deve ser apenas um espaço de união económica e monetária, deve ser um espaço de união em que a cidadania europeia seja um valor privilegiado e pelo qual faça todo o sentido que nos batamos com convicção.
São, portanto, estas as razões, Sr. Presidente e Srs. Deputados, que, quer quanto ao TPI quer quanto ao espaço judiciário europeu e ao espaço de liberdade, de segurança e de justiça, me apraz apresentar-vos como razões que fundamentaram as iniciativas do Partido Socialista em matéria de propostas para esta revisão constitucional.

O Sr. Presidente: - Inscreveram-se, para pedir esclarecimentos, os Srs. Deputados Pedro Roseta e Luís Marques Guedes, mas, antes disso, o Sr. Deputado Luís Marques Guedes pediu a palavra para interpelar a Mesa.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, é apenas para fazer um ligeiro ponto de ordem à Mesa.
Embora pense que já ganhámos tempo com esta exposição circunstanciada do Sr. Deputado Jorge Lacão, pedia à Mesa que, primeiro, formulássemos os pedidos de esclarecimento acerca da temática do TPI, porque o PSD também tem uma proposta sobre o TPI que terá de apresentar, e, numa segunda ronda, entrássemos nos eventuais pedidos de esclarecimento sobre a temática do espaço judiciário europeu, sob pena de começarmos agora a questionar o Sr. Deputado Jorge Lacão sobre tudo e, posteriormente, termos de voltar atrás, à temática do TPI.
Portanto, sugeria que a primeira ronda de pedidos de esclarecimento se centrassem na temática do TPI e, uma vez prestados esses esclarecimentos por parte do Partido Socialista, TPI, o Partido Social Democrata pudesse apresentar a sua proposta também sobre o TPI, para então, finalmente, passarmos à discussão sobre o espaço judiciário europeu.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, penso que nada haverá a opor. A minha ideia era que a apresentação fosse feita por blocos, mas nada tenho contra o metodologia proposta por V. Ex.ª.
Façam então o favor, Srs. Deputados, de colocar as questões relativamente ao Tribunal Penal Internacional. Suponho que são os Srs. Deputados Pedro Roseta e Luís Marques Guedes que estão encarregados dessa missão.
Tem a palavra o Sr. Deputado Pedro Roseta.

O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Sr. Presidente, vou tentar não entrar na apresentação, para não estar a repetir o que já foi dito.
Relativamente ao TPI, quero colocar ao Sr. Deputado Jorge Lacão uma questão precisa sobre a formulação apresentada pelo PS.
O Sr. Deputado Jorge Lacão sublinhou uma coincidência sem dúvida importante entre as propostas do PSD e do PS, no que respeita ao TPI. Ambas são cláusulas gerais que permitem o reconhecimento da jurisdição desse tribunal. No entanto, há duas diferenças relevantes, das quais o Sr. Deputado Jorge Lacão apenas identificou uma, a questão da inserção sistemática, embora tenha referido - e nós tomámos nota - que está aberto a mudar sobre essa questão.
Ora, sobre essa questão, quero, desde já, dizer que o PSD faz uma grande diferença entre a questão do sentido e a questão da oportunidade. O fazer sentido - e veremos isso mais tarde, no debate alargado - para nós é uma coisa e a questão do tempo, da oportunidade, é outra. Aliás, o Sr. Deputado Jorge Lacão acrescentou que, no fundo, era uma questão de oportunidade, de não antecipar demais.
Quero ainda lembrar-lhe, a propósito desse ponto, que a ratificação do Estatuto do TPI é a fase final de um processo já longo, que referirei na minha apresentação daqui a pouco, que começou já há muitos anos, até há décadas, e que teve, aliás, alguns precedentes, uns melhores, outros piores, como veremos mais adiante. Portanto, não se pode dizer que o facto de a ratificação por parte de todos os 60 Estados e a sua entrada em vigor não acontecer ainda este ano seja algo de completamente novo. Aliás, chamo ainda a sua atenção - e para acabar com esta questão da sistemática - para o facto de, já no n.º 6 do artigo 7.ºda CRP, se antecipar, de alguma maneira, quando votámos numa revisão constitucional por larga maioria, que "Portugal pode, em condições de reciprocidade, (…),

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convencionar o exercício em comum dos poderes necessários à construção da união europeia." - e, nessa altura, ainda não havia União Europeia, estávamos ainda no tempo da Comunidade Europeia. Portanto, mutatis mutandis, parece-nos que seria possível. Mas isto era só uma reflexão, não era a questão.
A segunda diferença é esta: a formulação do PS é seca e técnica, não contendo, ao contrário da formulação do PSD, a afirmação de alguns princípios, que, para nós, são muito importantes. Por isso, quero perguntar se não entende, já não digo como fundamental mas, pelo menos, importante - para nós, evidentemente, é fundamental, para o PS poderá ser outra coisa - afirmar os princípios e os valores como, nomeadamente, a realização de uma justiça internacional e a promoção dos direitos da pessoa humana e dos povos, que, aliás, já constam do artigo 1.º. Mas nós queríamos fazer a ligação e a reafirmação desses princípios fundamentais também a propósito do TPI. O que lhe parece esse desenvolvimento maior, essa maior radicação nos princípios constitucionais e, se quiser, até, nos princípios da comunidade portuguesa, que constam da proposta do PSD? E por que é que eles não constam da proposta do PS?

O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos (julgo que também sobre o TPI), tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, relativamente à questão do TPI, quero, sistematicamente, primeiro, quanto à apresentação do Partido Socialista, colocar três questões e, segundo, tecer alguns considerandos em relação às preocupações que o Sr. Deputado Jorge Lacão também quis acrescentar e com as quais o Partido Socialista se deparou.
Quanto às questões, começo pelo problema da inserção sistemática. Há, de facto, aqui um problema, que, para nós, revela alguma dificuldade de compreensão e que é a inserção desta matéria nas "Disposições finais e transitórias". De facto, parece-nos que a pior coisa que se pode fazer, aparentemente, a esta ideia de promover a criação de uma justiça internacional, necessariamente como qualquer justiça estável e duradoura, é a de a colocar numa perspectiva de transitoriedade (porque a inserção sistemática terá, obviamente, sempre uma leitura!). Essa parece-nos, pois, uma ideia profundamente errada.
Portanto, no que diz respeito à inserção sistemática, temos muita dificuldade em entender a criação de uma justiça penal internacional como algo que Portugal "olha" numa perspectiva transitória, diria quase que precária, para ver o que é que ela dá, quando me parece, como teremos oportunidade de explicitar na apresentação da proposta do PSD, que tal deve ser assumido pelo Estado português como uma questão estruturante das relações internacionais e do posicionamento que Portugal quer ter no concerto das nações, em termos da construção de uma ordem mundial e de uma realidade internacional diferentes. Daí, obviamente, a fundamentação - mas isso não vem agora ao caso - da proposta do PSD.
Portanto, quanto à inserção sistemática, coloco esta primeira grande dúvida sobre se o Partido Socialista não sente que os "nomes das coisas" - utilizando até a expressão do Deputado Jorge Lacão, embora a propósito de outro considerando -, às vezes, não são totalmente relevantes, porque as coisas são rigorosamente o que são! Ora, ao inserir uma "coisa" destas nas "Disposições finais e transitórias", goste-se ou não, corre-se sempre, do nosso ponto de vista, o risco de uma leitura de precariedade e de transitoriedade, que, pelo menos aparentemente - mas o Partido Socialista di-lo-á -, nos parece, de todo em todo, de afastar num mecanismo como este.
Em segundo lugar, um outro problema que traz a redacção do Partido Socialista, independentemente de me parecer (mas isso é uma questão de pormenor) que há alguma incorrecção, em termos formais, quando se diz que se reconhece a justiça instituída pelo Estatuto de Roma, de 17 de Julho de 1998, porque não é o Estatuto que é de 17 de Julho mas, sim, a Convenção que aprova o Estatuto (mas, enfim, essa é uma questão de pormenor), tem a ver com o fixismo que uma norma deste tipo colocaria relativamente à participação de Portugal na criação deste tribunal internacional. É que, como o Sr. Deputado Jorge Lacão também referiu, e bem, na sua intervenção, consta da própria lógica da criação do Tribunal Penal Internacional que, digamos, esta é uma semente que se pretende que germine, desenvolva, evolua e parta para novas realidades - algumas das quais são caras a Portugal e têm a ver com a correcção de alguns exageros, nomeadamente em termos de molduras penais, de tal modo que, actualmente, o consenso ainda teve de ser em torno daquilo que para Portugal são manifestos exageros do ponto de vista dessas mesmas molduras penais. Portanto, há aqui uma evolução e um caminho a percorrer.
Por isso, situar a adesão de Portugal a um Estatuto, tal qual ele foi assinado, numa data precisa, aponta para um fixismo, que é, do nosso ponto de vista, não só redutor como contrário àquela que deve ser a postura e a atitude de Portugal no desenvolvimento daquilo de que o Tribunal Penal Internacional é a semente, o gérmen, que é a criação de uma justiça internacional que possa defender os valores e os princípios que Portugal professa e que Portugal possa transportá-los para esta construção internacional que está a ser criada de uma justiça universal ou, pelo menos, à escala mundial. Pergunto, pois (é a segunda dúvida), se este fixismo não é claramente redutor e se esta solução não é um pouco do género de "uma mão atrás e outra à frente", como que dizendo: "Para já, vou a medo, tudo bem, não me comprometas, e se houver, amanhã, alguma alteração, logo veremos, logo teremos de…". Portanto, há também aqui um problema de sinais que são dados.
A minha terceira questão já foi liminarmente abordada pelo Sr. Deputado Pedro Roseta, mas eu insisto nela, porque nos parece fundamental. Refiro-me à secura ou ao carácter demasiado enxuto da redacção que vem proposta pelos Deputados do Partido Socialista. Ou seja, dizer-se que Portugal adere a isto sem se dizer porquê, nem para quê, contraria, desde logo, do meu ponto de vista, até aquela que é a natureza programática da nossa Constituição da República.
É que a nossa Constituição é, de facto, o que é e tem, desde a sua génese, uma determinada filosofia, uma determinada agenda, e uma norma como esta, pela secura que transporta, sem apontar critérios nem objectivos num passo tão importante para o País e para o Estado, como será, porventura, a adesão a um instituto como este, parece-nos, de facto, extraordinariamente contrária àquela que é a filosofia reinante na esmagadora maioria dos seus preceitos e, maxime, nos preceitos estruturantes, como são, claramente, matérias deste tipo, cujo efeito não só é horizontal como se prolonga continuadamente no tempo, impondo-se ao Estado e aos cidadãos portugueses com alguma perenidade.

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Esta é a terceira questão que desejaria colocar-lhe, questionando, no fundo, o Partido Socialista sobre se foi deliberadamente que assim o fez e se há alguma razão específica para ter optado por esta solução.
O segundo aspecto de considerações que quero colocar ao Sr. Deputado Jorge Lacão têm a ver com os considerandos que ele também quis fazer - e bem, do meu ponto de vista - relativamente a alguns aspectos que decorrerão substantivamente do eventual passo de adesão de Portugal ao Tribunal Penal Internacional.
Existem dois aspectos cruciais para mim: um, o problema que referiu da necessidade de cautelas relativamente à questão da entrega de cidadãos estrangeiros, o que não percebi muito bem. Percebo a preocupação, mas não percebi bem aonde é que, porventura, queria chegar com esse considerando, se foi apenas um alerta ou se foi um considerando que nos deve levar a reflectir sobre a necessidade de complementar uma norma de autorização da adesão de Portugal à jurisdição internacional com um outro qualquer mecanismo relativamente ao problema das extradições.
É que, efectivamente, não estou a ver que isso seja necessário, embora perceba, objectivamente, a sua preocupação, tanto mais que, como sabe, o Partido Social Democrata, na fundamentação política que faz da sua proposta, até aponta claramente para a necessidade de, complementarmente a uma eventual adesão a esta Convenção, Portugal ter de fazer um esforço de revisão e de adaptação do seu Código Penal, precisamente para prevenir situações indesejáveis como aquela que colocou da eventual extradição de nacionais ou de cidadãos encontrados em território nacional para serem entregues a uma justiça que pode aplicar penas à luz de valores que não são os da ordem jurídica nacional e que não são defensáveis pela comunidade nacional.
No entanto, parece-me evidente que esse problema, pelos mecanismos da Constituição, nomeadamente do seu artigo 8.º, que faz impender automaticamente sobre a ordem jurídica portuguesa as normas de Direito Internacional que sejam convencionadas e aceites pelo Estado português, aparentemente fica resolvido, mas gostava de ouvir as suas considerações ou alguma extensão das suas considerações sobre o assunto.
Já quanto ao segundo aspecto, aí é que, verdadeiramente, e exactamente pela mesma ordem de razões, o PSD se tem confrontado com dúvidas que têm a ver com o problema das imunidades, para as quais as audições que o Sr. Presidente está a marcar serão extraordinariamente úteis. E não é tanto o problema genérico das imunidades dos órgãos de soberania, porque, como o Sr. Deputado bem sabe, no caso dos órgãos de soberania, Assembleia da República e Governo, existem já mecanismos na Constituição que prevêem expressamente autorização vinculada da parte da Assembleia da República de entrega dos titulares desses órgãos de soberania à justiça, nos casos em que o delito de que são acusados ultrapasse um determinado plafond, onde toda a tipificação criminal que consta do Estatuto de Roma se insere, e, portanto, o problema, do meu ponto de vista, aí não se coloca. Mas coloca-se no caso específico do Presidente da República.
Coloca-se neste caso específico por uma razão: a Constituição, relativamente ao Presidente da República, refere, entre outras coisas, por exemplo, que, por crimes que não sejam do exercício das suas funções, ele só responde no final do mandato. Faz-se, portanto, aqui uma dilação temporal que, do meu ponto de vista, pode entrar em conflito com as normas do Estatuto de Roma. E, como na doutrina constitucional portuguesa está estabilizado o princípio de que as normas relativas a direitos e deveres dos órgãos de soberania, maxime, do Presidente da República, não podem ser minimamente alteradas, reduzidas ou ampliadas pela legislação ordinária, a menos que haja uma previsão constitucional expressa relativamente à sua regulação, há aqui um problema que, de facto, se nos coloca.
Ou seja: basta a adesão e a sobreposição que o artigo 8.º confere das normas de Direito Internacional sobre a ordem jurídica interna para resolver o problema? Aparentemente, não! Porque, de facto, este princípio de que aos direitos e deveres dos órgãos de soberania, nomeadamente do Presidente da República (porque são esses que serão colocados em cheque numa situação como esta), a ordem jurídica interna não se lhes pode sobrepor, a menos que haja uma previsão constitucional expressa, coloca-nos verdadeiramente aqui um problema.
Portanto, se, em relação aos outros órgãos de soberania, devo dizer que, aparentemente, não sinto o problema, salvo melhor opinião, já no que se refere ao caso do Presidente da República, nomeadamente por causa da previsão expressa que vem no artigo 130.º da Constituição relativamente à responsabilidade criminal, penso que, de facto, há uma reflexão importante a fazer.
A este respeito é, pois, importante ouvir também algumas das personalidades cuja presença nesta Comissão foi solicitada porque, de facto, neste caso é que Portugal pode cair, de hoje a amanhã, numa situação não direi de incumprimento, até porque, obviamente, não antevejo minimamente que qualquer Presidente da República de Portugal possa incorrer em crimes dessa natureza…
Mas, objectivamente, a lei é algo que deve ser encarado numa perspectiva abstracta e genérica, e Portugal não pode, de hoje a amanhã, ser acusado de ter uma Constituição e uma ordem interna que, na prática, criam mecanismos que obviam a aplicação, aos seus titulares, de um estatuto com a importância do do Tribunal Penal Internacional.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, lembro que estamos a debater questões que têm a ver com o Tribunal Penal Internacional.
Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado António Filipe

O Sr. António Filipe (PCP): - Com certeza, Sr. Presidente. Aliás, face à intervenção do Sr. Deputado Jorge Lacão, gostaria de, em momento posterior, quando o Sr. Presidente entender que é a altura adequada, colocar questões relativamente ao espaço judiciário europeu.
Não estamos ainda em fase, tal como acertámos, de nos posicionarmos sobre a questão de fundo, sobre a substância das várias propostas, teremos oportunidade de o fazer depois das audições que fizermos, mas há um problema, que, aliás, o Sr. Deputado Luís Marques Guedes acabou de referir, que é o da compatibilização do Estatuto do Tribunal Penal Internacional com as regras da extradição, que gostaria de colocar, desde já, ao Sr. Deputado Jorge Lacão.
Compreendi as preocupações que o Sr. Deputado Jorge Lacão exprimiu, compreendi que não é o facto de chamarmos entrega e não extradição a uma determinada realidade que faz com que essa realidade se altere substancialmente. Na verdade, onde o Estatuto do TPI fala

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em entrega estamos perante uma real e verdadeira extradição, por isso creio que o Sr. Deputado Jorge Lacão faz bem em exprimir a sua preocupação.
No entanto, se compreendi os considerandos, já não percebi a conclusão. E a pergunta concreta que gostaria de colocar ao Sr. Deputado Jorge Lacão é como é que entende a aplicação das normas da Constituição da República Portuguesa relativamente à extradição, face ao que dispõe o Estatuto do Tribunal Penal Internacional em matéria de entrega de pessoas que sejam procuradas pelo dito Tribunal, ou seja, se entende que são aplicáveis a esses casos as regras substantivas que a Constituição da República Portuguesa determina relativamente à extradição, designadamente as limitações que são impostas, por diversas razões, à extradição de cidadãos. Perante um cidadão que possa estar em Portugal e que não seja extraditável à luz da Constituição, essas normas cedem perante um pedido de entrega que seja formulado pelo Tribunal Penal Internacional?
É que, a ser assim, no fundo, as preocupações que aqui são expressas não passam de mera retórica. Isto é: se consideramos que há grandes preocupações - e ainda há pouco o Sr. Deputado Luís Marques Guedes exprimiu várias, relacionadas com a aplicação das regras da extradição, com a imunidade dos titulares de cargos políticos, etc., etc. - arriscamo-nos a considerar que, não obstante isso, elas não têm saída.
Dado que o Estatuto do Tribunal Penal Internacional não admite reservas, arriscamo-nos, de facto, a estar aqui perante determinadas preocupações retóricas, das quais, depois, não retiramos quaisquer consequências se admitirmos, de facto, a jurisdição plena do Tribunal Penal Internacional. Mas esta é uma questão já para a fase da discussão.
Relativamente a esta questão em concreto, gostaria de compreender qual é a conclusão que o Sr. Deputado Jorge Lacão tira das preocupações que formulou relativamente à aplicação do regime da extradição.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Fernando Seara.

O Sr. Fernando Seara (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Deputado Jorge Lacão, a proposta do novo artigo 298-A, apresentada pelo Partido Socialista, resulta inequivocamente do novo texto do n.º 2 do artigo 53.º da Constituição francesa.
Como o Sr. Deputado Jorge Lacão sabe muito melhor do que eu, o artigo 53.º da Constituição francesa de 1958 é um dos artigos do seu Título VI, respeitante à matéria das relações e do Direito Internacional. A minha pergunta é esta: porquê inserir na parte respeitante às disposições finais e transitórias a matéria do Tribunal Penal Internacional? E quais as razões que levaram o Partido Socialista a não inseri-la no artigo 7.º ou, porventura, no artigo 8.º, já que, como V. Ex.ª compreenderá, independentemente das questões de diferença de dias entre o texto francês e o texto português, a busca da influência francesa também devia chegar à convicção da inserção sistemática?

O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado Guilherme Silva.

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Deputado Jorge Lacão, a questão que lhe quero colocar também tem a ver com esta opção sistemática e com a leitura que ela poderá permitir relativamente à questão do Tribunal Penal Internacional.
Nós damos a importância que damos ao Tribunal Penal Internacional a ponto de gerarmos o consenso necessário para fazermos uma revisão constitucional. Este é, do meu ponto de vista, o primeiro sinal da importância que Portugal pretende dar a esse órgão. E, sendo assim, sinceramente não compreendo que o Partido Socialista proponha o acolhimento desta matéria, na Constituição, numa norma transitória.
Sinto essa solução ainda mais preocupante quando, relativamente ao espaço de segurança e de justiça comum, em termos da União Europeia, o Partido Socialista adopta uma solução estruturante, na parte que me parece adequada, inserindo-o no artigo 7.º da Constituição, o que, em conjugação com a opção sistemática em relação ao Tribunal Penal Internacional, tem ainda a consequência de, do meu ponto de vista, permitir uma leitura de subalternização do Tribunal Penal Internacional relativamente à opção, no âmbito europeu, desse espaço de segurança e de justiça.
Tendo em atenção estas leituras possíveis da opção que o Partido Socialista, à partida, apresentou, coloco ao Sr. Deputado Jorge Lacão a questão da disponibilidade ou não do Partido Socialista para repensar esta matéria, na medida em que ela não é, efectivamente, uma questão meramente sistemática. Ou melhor, sendo aparentemente uma questão sistemática, tem e pode ter, na leitura constitucional, consequências que não me parecem as melhores e as mais coerentes com a decisão que tomámos, ao assumirmos uma revisão constitucional exactamente para permitir que Portugal adira e ratifique a Convenção que aprovou o Estatuto do Tribunal Penal Internacional.
Embora estejamos agora apenas a tratar da temática relativa ao Tribunal Penal Internacional, como V. Ex.ª abordou a solução para o espaço de segurança e de justiça, quero dizer, sinceramente, que comungo das mesmas dúvidas do Sr. Deputado Luís Marques Guedes. Não dará já o artigo 8.º, e até mesmo o artigo 7.º da Constituição, solução bastante para as preocupações e os problemas que se colocam ao nível do espaço de liberdade, de segurança e de justiça, no âmbito da União Europeia? E, quanto a esta matéria, mais uma vez, denoto uma preocupação acrescida, porque, em termos substantivos e no que se refere à opção sistemática, também me parece subalternizante do Tribunal Penal Internacional.

O Sr. Presidente: - Para responder a este conjunto de questões, tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados, antes de mais, agradeço o conjunto de questões que me colocaram, pois, certamente, permitirão, pelo menos assim o tentarei, que nos aproximemos de uma reflexão conjunta partilhada, de modo a que, no final, possamos retirar as melhores conclusões.
Em relação ao que disse o Sr. Deputado Pedro Roseta, permito-me ter, talvez, a impertinência de lembrar que, provavelmente, em sede parlamentar, terei sido o primeiro Deputado a reivindicar a importância da aprovação parlamentar em tempo útil, por parte de Portugal, do Estatuto do Tribunal Penal Internacional. E se o digo é apenas para sublinhar que tanto eu como o Partido Socialista se sentem à-vontade quanto a esta questão política fundamental. Não estamos a reboque de uma qualquer onda de

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opinião pública ou política favorável à aprovação do Tribunal Penal Internacional e temos a consciência de termos sido nós, sem excluir outros, como é evidente, designadamente do seu próprio partido, mas de termos sido também nós, seguramente, que estivemos na linha da frente no combate pela importância para o aprofundamento da garantia dos direitos do homem da criação do Tribunal Penal Internacional.
Portanto, politicamente, aderimos ao Estatuto do TPI com plena convicção, sem embargo, naturalmente, de não concordarmos com todas as disposições nele constantes e de, como é sabido, justamente em face da lógica matricial da nossa Constituição, haver alguns aspectos relativos à medida das penas - e já aqui foram referidos por mim próprio, no início - que, pela nossa parte, se o Estatuto não tivesse também resultado, como resultou, de uma solução compromissória entre os Estados que participaram no processo negocial, deveriam ser contemplados com outras soluções. Porém, não é isso que nos irá impedir de dar o nosso contributo.
Não há, portanto, aqui, na nossa atitude, qualquer problema, digamos, de menor graduação da valoração da aprovação da Convenção que cria o Tribunal Penal Internacional, no que diz respeito à sua inserção sistemática em sede constitucional.
Se os Srs. Deputados repararem, a verdadeira questão com que estivemos confrontados até agora foi a de discutir se "sim" ou "não" a Convenção era susceptível de aprovação, sem criar um problema de desconformidade com a Constituição, e se "sim" ou "não" seria necessário encontrar uma solução constitucional que superasse essas possíveis desconformidades. Do que se tratava, pois, era, no essencial - e creio que, nesse essencial, estamos inteiramente de acordo -, de criar uma solução constitucional que superasse as desconformidades que foram referidas. Quanto ao modo de o fazer, naturalmente, faz sentido que possamos optar por uma solução nas disposições finais, no sentido de que a Constituição, não o acto político da aprovação da Convenção mas a Constituição, como tal, dá uma solução técnica para adequar, no seu seio, o Estatuto do Tribunal Penal Internacional, sem embargo de a Constituição ter, ela mesma, digamos, uma atitude relativamente neutra sobre o que seja o papel do Tribunal Penal Internacional na ordem jurídica internacional.
E gostaria de ser entendido neste ponto: é que não se trata de fazer uma avaliação do que representa, politicamente, o nosso gesto de parlamentares, ao aprovarmos a Convenção do TPI; trata-se de saber se queremos que o nosso gesto político e o valor que lhe damos seja, desde logo, valorado como tal, em sede constitucional, e proclamado pela própria Constituição. Talvez neste ponto tenhamos sido mais reservados do que o projecto apresentado pelo PSD e, portanto, o que vale a pena que possamos submeter à nossa reflexão é a questão de saber se deveremos passar já para a Constituição não apenas a solução que permitirá a conformidade do Estatuto com a nossa ordem constitucional mas também, mais do que isso, a proclamação do TPI, desde já, mesmo em momento anterior ao da sua efectiva criação, como um elemento decisivo no que diz respeito ao espaço jurisdicional internacional.
Pela nossa parte, repito, fomos mais reservados, mas já disse que estamos abertos à reflexão e que a nossa posição não é dogmática mas de ponderação de oportunidade. Portanto, vamos ver qual a melhor solução e até, na medida em que ainda temos audições para fazer, qual a sensibilidade geral em torno deste aspecto.
Quero, no entanto, colocar uma outra questão, que alguns Srs. Deputados já suscitaram, designadamente os Srs. Deputados Pedro Roseta e Luís Marques Guedes, a qual tem a ver com a circunstância de a norma, tal como o PS a apresenta redigida, ser, porventura, de acordo com a vossa própria expressão, "excessivamente enxuta" e, portanto, não cuidar, ela mesma, de fundamentar os valores matriciais em nome dos quais a Constituição acolhe, como cláusula geral, a possibilidade da integração do Estatuto do TPI. Ora bem! Porventura, também isto deve merecer, da nossa parte, uma reflexão muito apurada: saber se é preferível uma norma meramente técnica que resolva a questão constitucional ou se essa norma deve, pela sua natureza proclamatória, ir longe demais naquele que seja o significado dessa mesma proclamação.
Ora, só conseguirei responder melhor à questão que me foi colocada se, de certa forma, fizer já uma observação ao projecto do PSD, justamente para permitir estabelecer a diferença.
Quando, no projecto do PSD, se lê que "Portugal pode, em condições de complementaridade face à jurisdição nacional, reconhecer a jurisdição do Tribunal Penal Internacional", podemos passar de forma razoavelmente ligeira pelo significado desta afirmação e considerá-la no seu sentido proclamatório, no seu sentido de enunciado geral. Mas se fizermos, porventura, uma interpretação mais estrita do significado literal do que aqui está escrito, podemos considerar que, de algum modo, está aqui escrito, em termos de acolhimento constitucional, alguma coisa que resulta do Estatuto do TPI, que é, como sabemos, o facto de o Estatuto do TPI considerar o próprio TPI como uma jurisdição complementar às jurisdições dos Estados nacionais ou, de certo modo, a sua actuação considerar-se subsidiária da actuação das jurisdições nacionais.
Ora, isso está muito bem, no que diz respeito ao Estatuto do TPI, no sentido de que se torna claro que, no quadro da sua inserção internacional, ele não vai exercer com primado uma certa jurisdição onde os Estados nacionais entendam exercer essa mesma jurisdição. No entanto, passar dessa compreensão, em sede do Estatuto, para a integrar na própria norma constitucional, vinculando internamente a própria jurisdição nacional, terá, provavelmente, o significado de um compromisso de que jamais o TPI fará qualquer julgamento envolvendo cidadãos nacionais ou actos criminosos susceptíveis de nele ser julgados e, de alguma forma, com conexão com a jurisdição portuguesa, sem que tal seja previamente assumido pela jurisdição nacional, o que, compreendam, Srs. Deputados, nos poderá trazer outro tipo de embaraços. Não quero dizer que a lógica comportamental da relação entre a jurisdição portuguesa e a do TPI não seja essa, mas assumir que a jurisdição nacional tem, como que por imperativo constitucional, o primado do julgamento, que é o que resulta da vossa norma, é fazer, em sede constitucional, uma afirmação excessiva, talvez desnecessária e, porventura, em certas situações, inconveniente.
Portanto, Srs. Deputados, retiro daqui que o valor da norma "enxuta" poderá ser mais bom conselheiro do que um excesso de declaração, como o que propõem.
Por outro lado, o Sr. Deputado Marques Guedes, tal como, de resto, também o Sr. Deputado António Filipe, referiu, em relação à minha consideração inicial, a circunstância de não ser necessariamente o nome que damos às coisas que altera a sua natureza, a propósito do regime da entrega junto do TPI e do nosso regime constitucional da

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extradição. Isto, para, ao fim e ao cabo, se colocar o problema a propósito deste tema e também a propósito de outros, ou seja, a propósito da natureza da relação paramétrica entre certas disposições do Estatuto do TPI e certas disposições da Constituição. Uma é o caso da extradição, outra é o caso da questão da pena perpétua e outra ainda, como o Sr. Deputado Marques Guedes referiu, é o caso do regime das imunidades dos titulares de cargos políticos, maxime o problema da responsabilidade criminal do Presidente da República.
E perguntar-se-á: se estes são os fundamentos que demonstraram - e foi nesse sentido que os aludi na minha intervenção inicial - a necessidade da revisão constitucional, para permitir uma conformação das disposições constitucionais com a aplicabilidade do Estatuto do TPI, todos estes problemas se resolvem inserindo na Constituição uma cláusula geral de acolhimento do Estatuto do TPI? Esta é que é a questão técnico-constitucional sobre a qual teremos de tomar posição! E, aparentemente, pensamos que será assim que esses problemas se resolverão, porque, quer o vosso projecto, quer o nosso, foi exactamente assim que trataram a matéria.
Mas também poderíamos chegar à conclusão de que não bastaria a cláusula geral de acolhimento porque, onde em concreto se verificasse alguma desconformidade pontual, também aí teria de ser superada essa desconformidade pontual.
Se optássemos por esta segunda interpretação, quase teríamos de reconhecer que, praticamente, não faria sentido inserir na Constituição uma cláusula geral, porque estaríamos, de alguma maneira, a confessar em termos de técnica do valor dessa cláusula geral de acolhimento que ela não resolveria os problemas pontuais de desconformidade e que, portanto, ou a cláusula geral teria um valor meramente proclamatório ou seria inteiramente superabundante.
Ora bem, não é essa a minha interpretação. A minha interpretação é a de que esta cláusula geral valerá como norma especial que, no quadro de uma interpretação sistemática da Constituição, permitirá derrogar as normas da Constituição que, no caso concreto, se revelarem desconformes ao Estatuto do TPI. Interpreto esta cláusula geral como cláusula de valor especial com este significado interpretativo. E suponho mesmo que é esta a interpretação que deveremos consolidar nestes trabalhos da revisão constitucional para superar todas as dificuldades.
Com isto passo à própria dificuldade que o Sr. Deputado António Filipe me pediu para comentar, dizendo exactamente como é que se faria a compatibilização desta cláusula geral de acolhimento com regras da Constituição desconformes com o Estatuto do TPI, eventualmente as do regime da extradição. Para mim, esta compatibilização far-se-á neste exacto sentido que acabei de referir, ou seja, considerando que a cláusula geral é uma norma especial que, no quadro sistemático da Constituição, prevalece sobre outras normas desconformes ao Estatuto do TPI. Penso que temos que dar uma interpretação clara sobre esta questão, até para não ficar qualquer resquício de dúvida no final deste processo sobre qual é a nossa atitude de boa fé no momento em que aprovamos a Convenção.
Sabemos que a boa fé é uma questão relevante do regime da aprovação dos tratados, de acordo com as Convenções de Viena sobre os tratados, e que um Estado que aprove para valer na sua ordem interna um qualquer instrumento de Direito Internacional o deve fazer em condições de garantir que a sua ordem interna não venha a implicar ou impedir a plena aplicação das normas do Direito Internacional. No nosso caso, na relação paramétrica entre Direito Internacional e direito interno, o problema nunca se põe na relação das normas de Direito Internacional com as normas ordinárias, porque aí, como sabemos, em caso de desconformidade, prevalece a norma do Direito Internacional. E é por isso que estamos relativamente à vontade até quanto à definição do elenco dos tipos legais de crime previstos no Estatuto do TPI, questão que também foi aflorada nas perguntas do Sr. Deputado Luís Marques Guedes.
Digo isto porque aí se torna evidente que se, eventualmente, na conformação do tipo legal de crime no quadro do Estatuto do TPI alguma coisa se revelasse desconforme, ou, melhor, não conforme com uma norma interna do nosso direito ordinário e, eventualmente, do nosso Direito Penal, desaplicar-se-á a norma interna do Direito Penal para prevalecer a conformação normativa constante do Estatuto do TPI, enquanto norma de Direito Internacional que é e, portanto, prevalecendo sobre a norma de direito interno na relação paramétrica. Mais: mesmo no caso de omissão do nosso direito ordinário, o aplicador interno, particularmente em sede jurisdicional, poderá sempre aplicar as normas constantes do Estatuto do TPI, porque, a partir do momento da sua entrada em vigor, elas são aplicáveis na nossa ordem interna sem qualquer dificuldade.
Não acompanho, por isso, algumas preocupações que foram manifestadas até agora, dizendo que nós não só teríamos de cuidar da prioridade da revisão constitucional como de uma espécie de prioridade de adaptação dos textos da lei ordinária quanto à definição dos tipos legais de crime no Código Penal ou em quaisquer outros instrumentos de natureza processual. Não vejo que essa prioridade exista, porque, a partir do momento da entrada em vigor do Estatuto do TPI e da sua aplicabilidade na ordem interna, ela aplica-se sem problemas e, em caso de desconformidade, aplicar-se-á o Direito Internacional com desaplicação da norma interna.
Como não é assim, manifestamente, no que diz respeito à norma da Constituição - porque aqui, sim, de acordo com as regras do artigo 8.º, prevalecerá a norma constitucional sobre a norma do Direito Internacional -, aqui é que o problema da desconformidade é sensível. Ora, aqui é que volto ao ponto de há pouco, dizendo que entendo que a cláusula geral de acolhimento do Estatuto do TPI deve ter o significado constitucional de uma norma especial que, na interpretação sistemática da Constituição, deve prevalecer sobre quaisquer outras normas da Constituição que sejam desconformes ao disposto nesse mesmo Estatuto e, obviamente, para esses efeitos exclusivos.
Dito isto, de alguma maneira, o meu ponto de vista sobre a questão que o Sr. Deputado Fernando Seara me colocou já está dado e penso que não é por esta matéria de inserção sistemática que me vou bater num sentido ou noutro. Quero apenas contribuir para que a solução final a que cheguemos seja aquela que partilhemos com uma ponderação consensual estabilizada entre todos nós e não levantarei aqui qualquer espécie de dificuldade.
Como tal, pela mesma ordem de razões, a mesma resposta darei ao Sr. Deputado Guilherme Silva. Peço desculpa aos Srs. Deputados se tiver deixado alguma coisa por clarificar, mas não foi esse o meu propósito.

O Sr. Presidente: - Teremos ocasião, ao longo das discussões, de aprofundar todos estes temas, Sr. Deputado.

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Passaremos agora a uma fase de questões sobre o espaço de liberdade, de segurança e de justiça.

Pausa.

Dizem-me que o que tínhamos combinado era proceder agora à apresentação por parte do PSD…

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Peço a palavra, Sr. Presidente.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra, Sr. Deputado.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, antes de o Sr. Deputado Marques Guedes usar da palavra, e até para não o interromper depois, queria apenas dizer que há um pequeno problema técnico. É que não sei como é que resolvemos o problema da nossa presença no Plenário. Fazemos um intervalo de 2 minutos?

O Sr. Presidente: - Vamos fazer, sim, mas talvez seja melhor a seguir…

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Só se constituirmos um procurador!

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - A ordem do dia do Plenário é composta por uma interpelação ao Governo e esta tem uma grelha alargada. Não tenho dúvida alguma de que o Plenário não acabará antes das 13 horas e 30 minutos ou mesmo antes das 14 horas.

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Ou, então, há que informar a Mesa para nos dar como presentes; os serviços podem informar o Secretário da Mesa!

O Sr. Presidente: - A minha ideia era a de instituirmos um sistema - não sei se isto se usa, porque nas outras comissões não é costume fazê-lo -, segundo o qual a assinatura deste livro serviria para justificar junto da Mesa a presença dos Srs. Deputados. É uma coisa sobre a qual poderemos conversar com a Mesa, porque…

O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Mas os Secretários têm de nos dar como presentes!

O Sr. Presidente: - Para as próximas reuniões, Vamos tentar instituir um sistema que não obrigue os Srs. Deputados a deslocarem-se ao Hemiciclo para a assinatura.
Vamos, então, passar à apresentação, por parte do PSD, do seu projecto em matéria de TPI.
Tem a palavra, Sr. Deputado Pedro Roseta.

O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Evidentemente, vou resistir à tentação de responder ao Sr. Deputado Jorge Lacão, sobretudo nos argumentos relativos à questão sistemática e ao conteúdo da norma que nos parecem reversíveis e, eventualmente, veremos depois no debate, talvez mais favoráveis à proposta do PSD.
Embora sem estar de acordo com todas e cada uma das disposições do Estatuto, que, como já foi dito, resultou de um compromisso, é bom lembrar que ele foi assinado por mais de 130 países, já teve mais de 30 ratificações e há muitas que estão em fase adiantada, sendo possível que dentro de alguns meses possa entrar em vigor.
Como tudo aponta para que a nossa ratificação, publicação e demais trâmites supervenientes venham a acabar, no mínimo, em Outubro ou, eventualmente, em Novembro, mesmo aquele argumento do tempo será eliminado. A verdade é que o nosso processo também não está para terminar amanhã e, apesar de poder estar a pecar por optimismo, tudo aponta para que haja um número cada vez mais significativo de ratificações, pelo que este Estatuto poderá entrar em vigor no fim do ano, ou no princípio do ano que vem.
O PSD, a propósito ainda desta afirmação clara, que já foi feita também pelo Sr. Deputado Jorge Lacão, de que não concorda com todas e cada um das disposições do Estatuto, habituou-se sempre a distinguir - aliás, este tema foi título de vários livros e, julgo, do próprio Dr. Mário Soares, que nesse ponto não foi original, teve um trabalho ou mesmo um livro sob este título - entre a floresta e a árvore. Isto porque aquilo que pode ser tentador é pegar numa árvore destacada da floresta e esquecer que nesta está o essencial. E é sobre o essencial que agora quero falar.
O PSD propõe esta norma que permite o reconhecimento da jurisdição do TPI por três razões fundamentais. Aceita, evidentemente, e quero que isso fique sublinhado, que outros o façam por outras razões e aceita até que outros, por razões de consciência, em votação no Plenário, não venham a aprovar, como é público, este Estatuto e que, ainda antes do Estatuto, nem sequer venham a contribuir para os dois terços da revisão. Estamos, contudo, convictos de que os Deputados portugueses o farão e, em parte, pelas razões que nos levam à ratificação.
Como já foi dito pelo Sr. Deputado Marques Guedes, e este é um ponto preliminar ainda antes das razões, trata-se de uma questão estruturante e fundamental que pode introduzir uma mutação extraordinariamente significativa na realidade internacional, numa realidade que queremos diferente, porque não nos conformamos com o estado de coisas que ainda existe no mundo dos nossos dias. Isto muito embora reconheçamos, evidentemente, os progressos já realizados, mesmo até desde o tempo em que, por exemplo, as declarações dos direitos humanos eram qualquer coisa de proclamatório. Não minimizo, evidentemente, a importância dessas declarações proclamatórias, como seja a Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Felizmente, na Europa avançou-se para a Convenção dos Direitos do Homem - e digo o nome abreviado para ganhar tempo -, de 1950, que já previa mecanismos que levavam o Estado a respeitar os direitos da pessoa, e isto sem esquecer as convenções das Nações Unidas sobre a tortura, os pactos internacionais sobre os direitos civis, políticos, culturais, económicos dos anos 60, que todos conhecem. No entanto, a verdade é que muito falta ainda fazer para assegurar o primado da pessoa humana e os Direitos do Homem a nível mundial. Esta é a questão preliminar.
Primeira razão: os nossos fundamentos políticos, a nossa filosofia política, se quiserem, essa, sim, é que dá sentido à nossa acção política. Ora, essa filosofia política assenta, em primeiro lugar, no primado da pessoa humana, da sua dignidade e dos seus direitos. Hoje, esse primado está consagrada no artigo 1.º da Constituição, com o que nós muito nos congratulamos, e julgo que tem uma aceitação não direi unânime, porque não há unanimidades (nem é bom que seja unânime!), mas esmagadoramente maioritária em toda a comunidade portuguesa. E esse é o fundamento

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da nossa proposta, dele decorrendo a universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos.
Não vou fazer uma prelecção sobre essa universalidade e o que é que se entende por ela, contudo, sabe-se que é hoje reconhecido que a dignidade é intrínseca a todo e qualquer ser humano, seja ele qual for, tenha ele nacionalidade ou não tenha, seja apátrida ou não seja e esteja onde estiver. Por isso, enquanto houver seres humanos sem o reconhecimento dessa dignidade, sentiremos que a nossa própria dignidade é afectada, que os nossos direitos não são completos e não estão consolidados.
No entanto, julgo ter sido dado um passo significativo neste aspecto, pelas razões que enunciarei adiante, passo esse que foi dado nas últimas décadas para que a Humanidade reconheça que todos os homens são iguais, são solidários e são irmãos.
Ora, esta fraternidade universal, que tem raízes múltiplas, desde logo, no cristianismo, passando também pelo ideal de fraternidade da Revolução Francesa, com o lema igualdade, liberdade e fraternidade, foi durante muito tempo proclamada, sem que existissem instrumentos que a pudesse trazer para a realidade, de modo a dar a ideia, fora do âmbito europeu - porque no âmbito europeu, o Conselho da Europa, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem não têm feito outra coisa -, que a nível mundial se pode dar também um conteúdo substancial e uma possibilidade de fazer algo na prática, para além de proclamações que já existem.
Ainda dentro da razão referida, conforme estabelece o artigo 7.º da nossa Constituição, "Portugal rege-se nas relações internacionais pelos princípios da independência nacional, do respeito dos direitos do homem (…) e da cooperação com todos os outros povos para a emancipação e o progresso da humanidade". Julgo, pois, que este Tribunal vem, exactamente, permitir que este desiderato que consta da nossa Constituição - o respeito pelos Direitos do Homem - venha a ter uma substância que até hoje não teve.
Na verdade, os direitos humanos, para além das proclamações, devem e têm de ser protegidos por todos os Estados contra qualquer violação. É certo que existe a Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre os Direitos Humanos de 1993, que muitas outras conferências ao nível mundial repetiram já. Mas delas resulta apenas uma obrigação ética e política, que agora queremos transformar numa obrigação jurídica de todos os Estados contribuírem para soluções a nível mundial.
Referirei, ainda que com brevidade, o papel histórico de Portugal e o seu carácter pioneiro na aproximação entre os povos e as pessoas, designadamente quero sublinhar a abertura que Portugal teve (embora com muitas manchas, como todos os outros povos ao longo da história e da colonização) na forma de tratar todos os outros homens. Isto porque, de algum modo, fomos pioneiros na consciência desta unidade essencial entre os homens. Julgo que seria absurdo, e que teria consequências catastróficas, se a globalização viesse a ser económica, científica, tecnológica e mediática, mas não viesse a ser uma globalização dos direitos das pessoas. Fica, portanto, esta primeira razão em relação à qual julgo que já me alarguei substancialmente.
Passarei agora à segunda razão que diz respeito à promoção dos valores nacionais, que são aqueles valores em que acreditamos para além dos direitos humanos que já referi, nomeadamente a paz, a liberdade e a solidariedade.
Relativamente a este aspecto, gostaria de referir que entendo (é uma posição pessoal, e por isso altamente discutível) que não há valores consistentes se eles não forem hierarquizados. Ou seja, se esquecermos, por exemplo, que há valores primordiais como o da dignidade da pessoa humana e o direito à vida e se um dia, por qualquer motivo, sobrepusermos outros direitos à garantia destes (direitos sem dúvida importantes, mas que hierarquicamente vêm a seguir), o que sucede é que, pretendendo defender um único direito ou um único valor, estamos a pôr em causa os valores superiores e, logo, todo o edifício dos direitos humanos e dos valores. Portanto, sem hierarquia não há valores; sem hierarquia não há direitos humanos. Não se trata, pois, de valores iguais. Todos são respeitáveis, todos são importantes, mas há uns - como é costume dizer-se agora - "que são mais importantes do que outros", nomeadamente o direito à vida.
O PSD propõe esta norma e, obviamente, vai votá-la favoravelmente, porque a protecção da vida humana é, para nós, um dos tais direitos de primeiro plano. E, para a proteger, é preciso lutar contra o arbítrio e contra a impunidade dos detentores do poder que cometem crimes que põem em causa essa vida humana.
Recordo, brevemente, que o século XX, sobretudo na sua primeira metade, se caracterizou pela violação maior em toda a História da Humanidade - e não sou só eu que o digo, já todos o disseram. É certo que se poderá falar nos períodos pré-históricos, na Antiguidade, na escravatura, na Idade Média (porque ainda há quem veja a Idade Média como um todo, como se pudesse dizer: "Isto é medieval!") e, com certeza, haverá alguma razão. Por isso, é óbvio que não vou defender que existiu o respeito integral dos direitos humanos na Antiguidade, ou na Idade Média, ou na época do despotismo iluminado no século XVIII, longe de mim! Mas quero afirmar a minha opinião, que é a de que a primeira metade do século XX foi a pior de todas as épocas da História da Humanidade no que diz respeito às violações dos direitos fundamentais, nomeadamente do direito à vida.
Claro que isto resultou em grande parte dos sistemas transpersonalistas que quiseram impor sociedades eficazes e perfeitas, em nome de várias ideologias que preconizavam o domínio de povos, raças, Nações, Estados, classes, o que quiserem. Isto é bem conhecido! Mas a verdade é que daí resultou para a Humanidade, agravado com o que se passou nas duas Guerras Mundiais (quer na primeira, que muitas vezes é esquecida, quer na segunda, e sobretudo nesta), o atingir do mais baixo patamar da sua história. Falo da destruição programada de vários povos (os judeus, os ciganos), da deportação de povos inteiros, do holocausto. Quantos e quantos genocídios se prolongaram mesmo na segunda metade do século XX! Lembro os exemplos conhecidos do Ruanda, do Camboja, da ex-Jugoslávia, da Serra Leoa, da Somália e do Sudão, entre tantos exemplos possíveis.
É, pois, objectivo do TPI não só punir como prevenir a repetição destes crimes e, portanto, evitar a violação de valores fundamentais, evitar a violação de um dos valores primordiais que é a dignidade da pessoa humana e o direito à vida. E visa fazê-lo como? Em primeiro lugar, acabando com a impunidade dos que, porque são chefes de Estado - e mesmo não sendo chefes de Estado -, não são julgados pela ordem jurídica do seu país e que não podem ficar impunes, como até agora.
Lembro todos os casos que referi, com excepção do Tribunal de Nuremberga, o Tribunal de Tóquio e os tribunais

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ad hoc a que farei referência na parte final da minha intervenção. Como poderão verificar, embora possa parecer paradoxal, são precisamente algumas disfunções na existência desses tribunais que, curiosamente, nos levam a querer que o Tribunal Penal Internacional permanente entre em vigor rapidamente.
Seja como for, em todos os outros casos, que não estes quatro que acabei de referir, verificou-se uma impunidade total, não só das violações ao direito à vida como também pelos massacres e genocídios que foram praticados em todos estes casos ou que estão, ainda hoje, a ser praticados - vide o caso do Sudão, vide o caso da Somália (na Serra Leoa parece que a situação melhorou um bocadinho). Houve, portanto, inúmeros casos, a começar pelo Camboja, onde ocorreu um dos maiores genocídios do nosso tempo, em que não foi aplicada qualquer sanção. Isto sem analisarmos o período anterior à Primeira Grande Guerra ou sem falar no genocídio dos arménios provocado pelo Império Otomano, como tantos outros casos.
Em suma, houve muitos casos, ao longo de todo este século XX, em que não se verificou a punição dos responsáveis.
O TPI visa proteger o direito à vida, punindo aqueles que o violarem, através dos crimes de genocídio e dos crimes contra a humanidade, mas também desencorajando e prevenindo futuras violações.
Ora, a inviolabilidade do direito à vida é um dos valores em que Portugal, como sabem, foi percursor. Devo dizer que consideramos muito positivo que nunca se possa aplicar a pena de morte no âmbito do TPI, porque entendemos que a pena de morte não só é contrária à dignidade da pessoa humana como é, também, totalmente injusta. Isto para além da questão de se poder condenar um inocente. É gritante, terrível e inaceitável saber que os Estados que aplicam a pena de morte (designadamente os que a aplicaram no passado ou aqueles, que são bastantes, que ainda a aplicam) continuam a punir inocentes, não em todos os casos, como é evidente, mas em muitos casos há inocentes que são executados por crimes que não cometeram. Trata-se, portanto, de uma pena totalmente injusta, aberrante e contrária à dignidade da pessoa humana.
Todavia, para além destes aspectos, gostaria de referir que (e quero dizer que fomos nós, portugueses, alguns dos presentes talvez tenham dado até uma pequena contribuição), com a participação dos diplomatas portugueses e dos membros dos sucessivos governos portugueses conseguiu alargar-se muito a ideia ao nível da Europa, nomeadamente no Conselho da Europa, que na Europa não é aceitável que haja pena de morte.
O protocolo VI adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, hoje assinado e ratificado pela esmagadora maioria dos países do Conselho da Europa, é disso exemplo. É certo que Turquia ainda não o ratificou, mas não ousa aplicar a pena de morte devido à ideia que hoje existe contra ela e para a qual nós muito contribuímos com o nosso pioneirismo desde o século XIX.
O que é que pretendemos? Pretendemos que esta ideia possa estender-se a todo o mundo e que as ideologias de países totalitários, que desprezam a vida humana, sejam postas em causa. Pretendemos ainda influenciar alguns países não totalitários, como é o caso de 37 dos 50 estados dos EUA, onde há um movimento crescente em defesa da abolição da pena de morte, mas onde há ainda muito a percorrer para acabar com esta aberração.
Ora, como argumento adicional daqueles que já referi, entendemos que o TPI pode contribuir para este movimento. Isto não por uma razão de debate entre um órgão que vai ter, como sabem, uma assembleia (e para além de os próprios juizes serem designados por países que não têm pena de morte), mas pelo carácter exemplar do simples facto de não haver nele pena de morte. Uma razão de pura lógica! Se na sua jurisdição estão em causa os crimes mais graves e a eles nunca se aplica a pena de morte, abre-se uma grande oportunidade para influenciar a abolição da pena de morte em todo o mundo e para fazer pressão sobre os países que ainda têm a pena de morte. Alguns deles propõem-se (outros não, por enquanto) aderir ao Estatuto do TPI e, portanto, colocam-se nesta situação absolutamente incongruente de, para os crimes mais graves que se podem cometer contra a humanidade, admitirem que só podem ir até à prisão perpétua, e mesmo essa (como veremos depois no debate), só em casos muito excepcionais, e de manter a pena de morte no seu ordenamento interno. Este é, pois, um argumento adjuvante na defesa do direito à vida que nos leva, também, à decisão de ratificar.
Antes de passar ao terceiro e último argumento, gostaria de recordar que, desde o fim da Primeira Guerra Mundial, a comunidade mundial tenta criar uma justiça penal internacional. Portanto, não é algo que tenha surgido agora. Aliás, verifiquei pelo debate que tem havido em Portugal que parece que só agora algumas pessoas acordaram. Ora, isto já vem do Tratado de Versalhes, já tem mais de 80 anos! O Tratado de Versalhes - que, como sabem, é um tratado muito discutível, que tem muitas coisas más, mas tem algumas boas -, no seu artigo 227.º e seguintes, já previa a criação de tribunais penais internacionais para julgar, e cito: "(…) as pessoas acusadas de terem cometido actos violadores das leis e dos costumes da guerra (…)". Mas isso pouco importa. Agora, o que interessa é o que já tinha anunciado há pouco: os tribunais criados na II Guerra Mundial.
Neste aspecto, permitam-me que distinga entre os tribunais militares internacionais de Nuremberga, por um lado, e os Tribunais ad hoc de Haia e de Arucha, respectivamente sobre a ex-Jugoslávia e o Ruanda, por outro. Estes dois últimos vão dar-me um argumento que mostra que, muitas vezes (e isto nada tem que ver com o Sr. Deputado Jorge Lacão. Estou a olhar para o Sr. Deputado, porque julgo que me acompanhará neste ponto), os argumentos se voltam contra aquele que os usa.
Penso que o Tribunal de Nuremberga foi útil e, hoje, ninguém contesta a necessidade de justiça e de equidade internacional que punisse os crimes horrorosos que os líderes nazis cometeram. Houve mudanças posteriores, dele nascidas, que são muito importantes, mesmo para o futuro, nomeadamente a exclusão do sistema de defesa baseado na obediência a ordens hierárquicas, o que foi muito importante, pois permitiu não só responsabilizar os chefes de Estado como, também, os que não eram chefes de Estado e se desculpavam sistematicamente, em Nuremberga, em Tóquio, etc., dizendo que praticaram determinados actos porque a lei os protegia e os seus presidentes, os seus ditadores os obrigavam.
Houve, pois, algo de muito importante, que consistiu em responsabilizar o chefe máximo, bem como os outros, excluindo esse sistema de defesa que era muito utilizado antigamente, baseado na obediência a ordens hierárquicas e que permitia dizer que Hitler é que mandava e os outros tinham de obedecer, pelo que não eram responsáveis. Quero, assim, salientar a herança moral e jurídica do Tribunal de Nuremberga.

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Já quanto aos Tribunais ad hoc sobre a ex-Jugoslávia e o Ruanda, este deve ser o único ponto em que me separo bastante de todos estes textos que têm sido produzidos a propósito do TPI. Neste ponto, permito-me separar-me desses textos, tal como o PSD - como viram, consta do preâmbulo do nosso projecto -, pois temos algumas reservas a esse respeito. Aliás, estes tribunais que foram criados mais recentemente, através de decisões do Conselho de Segurança, são tribunais ad hoc. Não está em causa a necessidade de julgar os que cometeram genocídios no Ruanda, na Bósnia, no Kosovo, ou seja onde for, mas este modelo de tribunais ad hoc está a ser, e muito bem, criticado por várias pessoas, porque se trata de um tribunal de vencedores que julga vencidos. São tribunais que, a nosso ver, violam alguns dos princípios fundamentais da justiça, como seja o de que a justiça tem de ser igual para todos.
Como é possível criar um tribunal para o Ruanda e não criar outro para o Sudão, que é mesmo ao lado? Como é possível criar um tribunal para a ex-Jugoslávia e não criar outro para o Camboja, onde houve um genocídio eventualmente pior? Reparem que se pode, logo de princípio, fazer uma contestação clara a esses tribunais.
Mas há um outro problema que agora tem sido referido e ao qual se chama - peço desculpa por usar expressões francesas e inglesas, mas não sei muito bem como as traduziremos para português - a lassitude du tribunal ou, à inglesa, tribunal fatigue, que fez com que hoje se entenda que o Conselho de Segurança atingiu um pouco o ponto de saturação na criação de tribunais ad hoc.
Gostemos ou não destes tribunais ad hoc (eu, como já viram, sou dos que não gostam, e explicarei depois, com mais tempo, as razões por que não gosto), há a consciência de que estes tribunais não são o modelo ideal, porque julgam a posteriori, porque tendem a ser tribunais de vencedores que só julgam vencidos e tendem a abrir as portas a fenómenos como aquele a que agora assistimos (e cito este incidente sem comentários): o de pedir à Procuradora, a Sr.ª Carla Del Ponte, que traga para cá o senhor A, B ou C e, posteriormente, um país mais ou menos poderoso vir dizer que, se não entregam o senhor A, vão ter sanções e não recebem dólares! Este é, como é evidente, o pior sistema de justiça.
Ora, ao contrário do que alguns dizem, o Tribunal Penal Internacional vem exactamente resolver estes problemas dos tribunais ad hoc. O que é que significa o tal "cansaço" (a tradução é minha), a tal lassitude du tribunal? O Conselho de Segurança tem, neste momento, um cansaço dos tribunais ad hoc! Isto porque o Tribunal do Ruanda foi muito ineficiente, o de Arucha só começou três anos depois e, no que respeita ao Tribunal da ex-Jugoslávia, o Conselho de Segurança viu-se assoberbado com constantes problemas, pedidos de dinheiro, etc., etc.
Daqui resulta um efeito de "vacina", se calhar boa, no Conselho de Segurança, de modo que, quase de certeza, a não ser que houvesse um caso gravíssimo, que não vislumbro, o Conselho de Segurança não irá criar outros tribunais.
Chegamos assim ao terceiro argumento que me afasta de boa parte dos defensores do TPI: a situação actual não pode continuar. Não é possível continuar! Estamos, ao nível do mundo, e também um pouco ao da Europa, numa situação de pura duplicidade de critérios, de double standard, de deux poids de mesures, de "dois pesos, duas medidas", que não é possível continuar!
Criámos uma boa consciência, porque somos europeus e, na Europa, há a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, há o Tribunal Europeu, que, como os senhores sabem, nomeadamente o nosso Presidente, que muito trabalhou nessa área, não é exactamente o mesmo que o Tribunal Penal Internacional, que visa respeitar os direitos do homem e afirmar os direitos da pessoa humana contra o seu próprio Estado, que não é a questão que agora está em jogo, mas que, ao mesmo nível, é também uma boa consciência para os europeus. Dizemos que agora temos 43 países membros da Europa, faltando só a antiga Jugoslávia, a Bósnia e a Bielorússia, que é uma ditadura e, pelo resto, ficamos com a boa consciência de europeus! Ora, isto não é possível!
Este sistema vai, sem dúvida, levar-nos a uma calamidade, porque a Europa não pode pensar que vai criar uma fortaleza, seja económica, seja outra qualquer, e muito menos uma fortaleza dos direitos humanos, dizendo que para nós queremos isto, mas os outros ficam nas trevas, sem qualquer protecção!
Esta situação, ainda com as críticas que acabo de fazer à experiência dos tribunais ad hoc, é insustentável. É por isso que houve toda uma evolução das opiniões públicas, quer na Europa quer fora dela, que sentiram que esta situação não podia continuar, que não mais era admissível que um grupo corte as mãos das crianças ou desencadeie violações em massa de mulheres, com fins de guerra, ou promova os massacres, ou seja o que for, e que, porque está fora da Europa, as pessoas não falem ou só falem quando os media lá vão. Se os media lá vão, como foram, por exemplo, ao Ruanda, fala-se; mas ao Sudão, por exemplo, é difícil ir, pelo que já ninguém quer saber.
Julgo, pois, que é para acabar com esta situação que devemos prosseguir com o que já fizemos no passado. Quero também referir o papel de Portugal, para o qual chamo a vossa atenção, pois penso que devemos prestar homenagem aos que o fizeram, não só o Embaixador Costa Lobo, mas também outros que com ele colaboraram, nomeadamente a jurista Professora Paula Escarameia e outros, na criação do chamado - como é evidente, não vou agora aqui historiar, pois está nos livros todo este processo que levou à substituição da ideia dos tribunais ad hoc, que se esgotaram… Ainda bem que os criticam, porque, volto a dizer, compartilho muitas das críticas que lhe fazem, quer o meu companheiro Pacheco Pereira quer outros, só que tiro a conclusão oposta.
A conclusão que o PSD tira é a de que, para acabar com esta situação e com o esgotamento e a duplicidade dos tribunais ad hoc, tem de haver um tribunal internacional permanente para todos.
Portugal teve, através do Embaixador Costa Lobo e outros, um papel muito relevante, que talvez não seja aqui conhecido, que foi o de fazer parte de um grupo dos chamados - vou fazer a tradução para português, que não sei se será a correcta - "Estados da mesma opinião". E o que era este grupo dos "Estados da mesma opinião", que acabou por dar forte impulso ao TPI? Graças à hospitalidade da delegação canadiana que assumiu informalmente a coordenação deste grupo… Como sabem, o Canadá é um país com o qual temos profundas relações, tratando-se de um país inquestionável ao nível da protecção dos direitos humanos.
O Canadá, com este grupo dos países ditos da mesma opinião, os alike minded States, num total de 29, criou uma coordenação que deu um impulso decisivo para o Tribunal.

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Criou esta consciência de tudo aquilo que tenho estado a dizer, e que não repito, e afirmou que teria de haver um grupo impulsor. Alguns países do continente europeu - deste grupo de 29, vou citar só os europeus -, entre os quais Portugal, Itália, Bélgica, Alemanha, Finlândia, Holanda, Noruega, Suécia, Suíça e Grécia, estiveram neste grupo motor dos chamados "Estados da mesma opinião". Como sabem, foram estes Estados que levaram à assinatura da Convenção, em Julho de 1998, em Roma.
Para nós, está aqui depositada a responsabilidade de toda a nossa tradição humanista e de protecção do direito à vida, o nosso pioneirismo na abolição da pena de morte, etc., etc., mas também o protagonismo que assumimos para ultrapassar esta situação, com a qual ninguém está contente, de haver a possibilidade de existência desta discrepância na ordem jurídica internacional.
A última nota que aqui quero deixar já foi referida. Julgo que, como refere a Amnistia Internacional, aquilo que o preâmbulo e os artigos 1.º, 17.º e 80.º estabelecem é que se trata de uma jurisdição complementar que, de modo algum, conflitua com a ordem jurídica interna portuguesa. Por isso, o PSD, no seu projecto - e chamo a vossa atenção para o nosso preâmbulo -, entende que Portugal deve apresentar uma declaração interpretativa do Tratado, na qual reafirme os seus valores, o compromisso de julgar pelo Estatuto, nos nossos tribunais, todos os crimes políticos e que se afirme que, para isso, devemos dar prioridade a uma revisão da nossa legislação penal.
Julgo que esta ideia é hoje partilhada por outros. E, Sr. Deputado Jorge Lacão, não quero saber quem foi o primeiro ou quem não foi; esta matéria preocupa-me há anos e sei que também preocupa muitos Deputados do Partido Socialista, mas há já muitos anos que nós, quer no Conselho da Europa quer noutros forae, temos acompanhado esta matéria e julgamos que nesta declaração interpretativa, além de referir, como, aliás, consta do texto que propomos, a complementaridade desta jurisdição em relação à portuguesa, deve reafirmar que Portugal mantém os seus valores e se compromete a julgar nos seus tribunais pelo Estatuto do TPI. Para tanto, teremos de rever as normas penais para acolher as disposições necessárias, mantendo os nossos tribunais sempre jurisdição plena.
Como se diz no nosso preâmbulo, este é, realmente, um aspecto fundamental, de modo a garantir a coerência da posição portuguesa. Teremos de ver este ponto no fim, porque esse aspecto não consta da declaração interpretativa apresentada pelo Governo. Há um ponto em que a declaração interpretativa do Governo falha (o que também não é novo, pois veio da declaração espanhola), que é na declaração formal da recusa em aceitar nos estabelecimentos prisionais portugueses a execução de penas de prisão não previstas na nossa ordem jurídica interna.
Julgo que já abusei da vossa paciência, mas penso que, se tivesse sido mais breve, a nossa fundamentação teria ficado incompleta, a qual, como viram, em alguns casos, coincide com a do Sr. Deputado Jorge Lacão, e noutros é diferente, indo mais longe. Alguns dirão, evidentemente, que vai longe demais, mas o que importa, para além da fundamentação, é que daqui resulta a convicção clara de que Portugal… Como vêem, tentei evitar os aspectos políticos da política internacional, pois, a esse nível, seria catastrófico, escandaloso, que Portugal ficasse de fora! Evitei tudo isso e coloquei-me ao nível dos princípios, dos valores e dos direitos da pessoa humana.

O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, em sede de questões, vou, pela minha parte, fugir à tentação de integrar neste plano do processo de revisão constitucional fundamentos mais vastos quanto à própria justificação da razão de ser da aprovação da Convenção que cria o Tribunal Penal Internacional. Circunscrever-me-ei, por isso, a dois aspectos, na questão que desejo formular ao Sr. Deputado Pedro Roseta.
O primeiro aspecto resulta, de algum modo, de uma observação que, há pouco, fiz numa resposta e que, aliás, vejo agora evidenciado e confirmado pelo Sr. Deputado Pedro Roseta. É curioso verificar a sintonia - e, neste ponto, rendo homenagem à coerência da posição do PSD - entre justamente o projecto apresentado pelo PSD, quando, na justificação de motivos, declara entender que a aprovação da Convenção que cria o Estatuto do TPI deveria ser acompanhada de uma declaração interpretativa…
Já se especulou muito sobre isto no passado relativamente recente, mas quero dizer que, independentemente do que se vier a fazer, tenho uma posição muito reservada relativamente à utilidade de uma tal declaração interpretativa. Em primeiro lugar, porque uma declaração interpretativa não altera em nada a natureza e as condições de aplicação das disposições constantes do Estatuto que cria o TPI e, em segundo lugar, porque ela em nada vincula o modo de actuação do TPI; quando muito serve como uma espécie de autovinculação que o Estado português assumiria para si próprio. É neste aspecto que tenho uma atitude, na verdade, reservada, e tenho mesmo a convicção de que serei acompanhado por muitos outros Srs. Deputados nessa reserva.
Ora, se me parece superabundante e, eventualmente, contraproducente a dita declaração interpretativa a acompanhar a resolução que o Parlamento terá de fazer para aprovar a Convenção, maiores são as razões de ser dessas reservas quando se pretende introduzir tal declaração no texto constitucional. É aquele ponto a que eu, há pouco, me referi, Sr. Deputado Pedro Roseta, quando, em coerência, reconheço que, com essa posição que defende, o PSD quer inscrever, no n.º 6 do artigo 7.º, a ideia de que Portugal assume que as condições de actuação do TPI são de estrita complementaridade face à jurisdição nacional, o que significaria uma autovinculação, segundo a qual Portugal assumiria o compromisso, com sede constitucional, de proceder necessariamente a julgamentos sempre em tribunais portugueses sempre que houvesse qualquer incidência ou conexão, por via das pessoas ou por via do território, com um crime praticado no âmbito da jurisdição portuguesa.
Penso que se trata de um excesso e que não existe qualquer razão para nos vincularmos à lógica do excesso, sem embargo de podermos pensar nisso, sem embargo de considerarmos que essa pode ser a boa conduta dos tribunais portugueses. Mas fazer disso uma declaração necessária no âmbito da resolução que aprova a Convenção e, mais ainda, introduzir isso como uma regra constante do artigo 7.º, penso que, de facto, o PSD deveria ponderar a oportunidade e a prudência de não irmos tão longe numa matéria em que não temos necessidade de nos vincular.
Segundo aspecto: foi o Sr. Deputado Luís Marques Guedes que, há pouco, numa interpretação que me fez na

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observação à redacção apresentada pelo PS, falava daquilo que lhe parecia ser um excesso de fixismo pelo facto de, na norma do PS, aparecer referida a data.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Por causa da data!

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Exactamente!
Quero colocar à consideração do PSD e, na circunstância, do Sr. Deputado Pedro Roseta um outro aspecto do fixismo, que é o seguinte: nós, ao introduzirmos a cláusula de recepção na Constituição, introduzimos uma cláusula de recepção integrativa, porque só podemos admitir que as normas constantes do Estatuto do Tribunal Penal Internacional prevaleçam sobre normas da Constituição na medida em que lhe conferimos uma dignidade de normas de 1.º grau, por via dessa recepção integrativa, e é por isso que a norma especial da cláusula de recepção pode prevalecer sobre outras normas constantes da Constituição, por aplicação prevalecente das normas do TPI, segundo essa prevalência de normas especiais sobre normas gerais.
Ora, sendo assim, e creio que é, a minha dúvida sobre a redacção em concreto que o PSD apresenta no segmento final da sua proposta é a de que se reconhece a jurisdição do Tribunal Penal Internacional conforme estabelecido no Estatuto de Roma, enquanto, se repararem, a fórmula acolhida pelo PS - e, como disse, há pouco, o Sr. Deputado Fernando Seara, e bem, mais próxima da redacção que os franceses introduziram na sua própria Constituição - é a de que se reconhece jurisdição do Tribunal Penal Internacional nas condições nele previstas.
Ora, esta formulação não é de todo despicienda por duas razões.
A primeira é que temos na nossa Constituição o princípio segundo o qual os tipos legais de crimes, designadamente, têm de estar todos eles estabilizados relativamente à prática do acto, e, portanto, ninguém pode ser condenado por um acto que não esteja previamente criminalizado, isto é, identificado integralmente no tipo legal de crime. E sabemos que, por exemplo, há aqui um melindre no que diz respeito a aspectos do Estatuto do TPI, porque há certos tipos legais de crimes previstos no Estatuto do TPI, designadamente o tipo do crime internacional de agressão, que não estão ainda inteiramente definidos quantos aos elementos integrativos desse tipo legal de crime, o que significa que haverá formas de densificação dessas normas constantes do Estatuto, mas que ficarão para além do próprio Estatuto, e este é um aspecto que deveremos considerar.
A segunda é que o próprio Estatuto é revisível no tempo nele previsto. Ora, nós não queremos colocar-nos, ninguém aqui, seguramente, penso eu, quer colocar-se na situação de o desenvolvimento do Estatuto, seja por via da sua revisão futura, seja por via das soluções integrativas que algumas normas já prevêem que ocorram, venha a colocar-nos novas dificuldades supervenientes em face das disposições constitucionais.
Daí que vale a pena ponderar, do ponto de vista estritamente técnico, qual a melhor redacção, se uma redacção que declara aceitar a jurisdição do Tribunal conforme o Estatuto estabelecido ou uma redacção conforme às condições estabelecidas nesse Estatuto, o que não é exactamente a mesma coisa, sendo que a segunda solução é mais dinâmica e mais integrativa, e, portanto, mais modelada às evoluções previstas no próprio Estatuto.
Portanto, também para acolher esta preocupação quanto a um eventual risco de fixismo e não para criarmos aqui um debate de contraditório necessário, colocamos esta questão à vossa reflexão, para que também acerca dela ponderem sobre qual a solução técnica de melhor formulação da norma.
Mas, neste ponto em concreto, estou convencido que a formulação apresentada no projecto do PS responde melhor a este tipo de dificuldades, mas gostaria de conhecer, sobre um e outro aspecto, o ponto de vista do Sr. Deputado Pedro Roseta.

O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado António Filipe.

O Sr. António Filipe (PCP): - Sr. Presidente, Sr. Deputado Pedro Roseta, quero dizer que considero extremamente interessante a sua exposição e que compartilho o seu pondo de vista relativamente a muitos aspectos. Creio, designadamente, que fez observações extremamente lúcidas relativamente às limitações dos tribunais ad hoc e compartilho inteiramente o juízo que fez relativamente ao carácter injusto e parcial desse tipo de jurisdição. Portanto, saúdo a sua intervenção por isso, e creio que foi um interessantíssimo contributo para este debate.
Agora, a questão que se deve colocar é se este Tribunal Penal Internacional, tal como está concebido e, designadamente, como prevê a cooperação com as Nações Unidas, é o instrumento adequado para fazer valer os valores que V. Ex.ª defendeu. Mas creio que esse é um debate que teremos ocasião de travar quando apreciarmos em concreto cada uma das propostas.
Há, no entanto, uma questão concreta sobre a qual eu gostaria de conhecer a opinião do Sr. Deputado Pedro Roseta, que é a da eficácia das declarações interpretativas que têm vindo a ser feitas por vários Estados, quando confrontadas com a norma do Estatuto do Tribunal Penal Internacional que não admite reservas. Fico com a sensação de que vários Estados - e, ainda há poucos dias, verifiquei que a Guatemala ratificou o Estatuto do Tribunal Penal Internacional, também com declarações interpretativas, relativas, inclusivamente, à prevalência da respectiva Constituição nacional…
Portanto, a pergunta que lhe faço é como é que entende a relevância jurídica deste tipo de declarações, que me parece que procuram ser reservas, embora não sejam assumidas como tal. Gostaria de conhecer o seu ponto de vista acerca da relevância jurídica desse tipo de declarações, designadamente quando a questão está posta relativamente à atitude a tomar pelo Estado português.

O Sr. Presidente: - Não havendo mais pedidos de palavra, tem a palavra o Sr. Deputado Pedro Roseta para responder.

O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Sr. Presidente, também quero começar por agradecer as questões que me foram colocadas.
Devo dizer que não vou aprofundar muito, porque me parece que as questões que me foram colocadas ficarão melhor numa fase ulterior do debate e, também, porque a problemática das declarações interpretativas é, claramente, uma questão que tem a ver já com a ratificação e não com… Referi-me a ela, e consta do preâmbulo do nosso diploma, mas não é uma das questões essenciais. Contudo, não deixarei de dizer alguma coisa, como é óbvio.

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Permitam-me que responda primeiro aos Srs. Deputados que me colocaram a questão da declaração interpretativa, deixando para o fim a que me foi colocada pelo Sr. Deputado Jorge Lacão, até porque esta foi a grande questão que me colocaram.
Agradeço as palavras que o Sr. Deputado António Filipe proferiu mas, se me permite, gostaria de fazer um comentário, que é pertinente, ao preâmbulo do seu pedido de esclarecimento.
V. Ex.ª interrogou-se sobre se este seria o instrumento adequado para fazer valer os valores que eu defini na ordem internacional. Eu devolvo-lhe a questão, dizendo-lhe que não é, certamente, o instrumento perfeito, mas eu próprio disse isso, e, aliás, entendo que, ao nível da política, quer interna quer internacional, os instrumentos ditos perfeitos ou que pretendem ser perfeitos são os piores! Tudo o que tenha a carga de uma perfeição quase absoluta é perigoso, e eu costumo dizer para deixarmos as "perfeições" para outros domínios.
Na política, querer atingir a perfeição é quase pré-totalitário. Aliás, há pensadores - e não só recentes -, alguns deles muito conhecidos e outros menos, dos quais gosto muito, como, por exemplo, o célebre italiano Antonio Rosmini e outros, que têm trechos, posteriormente desenvolvidos por várias doutrinas, que dizem que a perfeição dos instrumentos políticos ou jurídicos tem logo uma carga de determinismo, de querer resolver tudo de uma vez, de querer apertar tudo num modelo perfeito, o que é muito bom para a utopia. St. Thomas More fez isso num livro, mas teve muito cuidado em não o fazer na prática política.
Portanto, para mim este instrumento é, como o Sr. Deputado Luís Marques Guedes já referiu, o instrumento possível e, respondendo ao Sr. Deputado António Filipe, direi também adequado às presentes circunstâncias. No entanto, se me perguntar se considero este um instrumento adequado para sempre, direi que não, mas é por isso que se prevê a revisão do Estatuto ao fim de sete anos.
A questão não pode colocar-se em termos de perfeição, pelas razões já aduzidas, porque a perfeição é perigosa e eu contesto-a em tudo o que é política, em todos os instrumentos. Se alguém me apresentar uma lei perfeita sou o primeiro a votar contra: se este tratado é perfeito, sou contra, por uma questão de princípio, por uma questão filosófica! Mas pé um instrumento adequado e, acrescento, possível nas presentes circunstâncias, por razões que depois veremos no debate.
Sr. Deputado Jorge Lacão, sei que as declarações interpretativas não são reservas e não têm, portanto, eficácia perante o Tribunal. No entanto, estas têm sido feitas por vários países - não falo no exemplo da Guatemala, mas no de Espanha, de França, que até exagerou um pouco no número. Por que é que o fizeram? E por que é que o Governo português, que julgo ser do Partido Socialista, do PSD não é…
O Governo enviou - dele constando as assinaturas do Primeiro-Ministro, do Ministro dos Negócios Estrangeiros, do Ministro da Justiça, etc. - uma versão do articulado da proposta de resolução n.º 41/VIII, que aprova, para ratificação, o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, cujo n.º 1 do artigo 2.º, com a epígrafe "declaração interpretativa", estabelece o seguinte: "Portugal manifesta a sua intenção de exercer o poder de jurisdição sobre pessoas encontradas em território nacional indiciadas por crimes previstos no n.º 1 do artigo 5.º do Estatuto, com observância da sua tradição penal, de acordo com as suas regras constitucionais e demais legislação penal interna". E o n.º 2 do mesmo artigo, que também me parece útil, refere a utilização da língua portuguesa nos pedidos de cooperação e nos documentos comprovativos.
Ou seja, o próprio Governo do Partido Socialista quer uma declaração interpretativa, tal como aconteceu com França, Espanha e vários outros países.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Deputado, permita-me que faça uma observação.

O Sr. Pedro Roseta (PSD):- Se o Sr. Presidente der licença…

O Sr. Presidente: - Faça favor, Sr. Deputado.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Deputado Pedro Roseta, desde o princípio que tenho afirmado, e portanto não me levará a mal que o reafirme, que a declaração interpretativa que acabou de ler é superabundante, não introduzindo nenhuma alteração qualitativa relativamente às regras do procedimento jurídico. Todavia, não é isto que está em causa.
Pedi o esclarecimento do Sr. Deputado Pedro Roseta em relação a uma transcrição de uma declaração interpretativa, independentemente da sua oportunidade, no momento da aprovação da Convenção, que, pessoalmente, penso que não acrescenta nada - este é o meu ponto de vista, independentemente de não ser esta a posição final do PS. Ou seja, é na transcrição de um certo compromisso semelhante à declaração interpretativa para a própria sede constitucional que penso que há o excesso de medida, e era relativamente a este aspecto que gostaria que desse o seu testemunho.

O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Sr. Deputado Jorge Lacão, não foi isso que me pareceu resultar da sua primeira intervenção. Penso que agora foi mais preciso.
Não vou entrar numa discussão jurídica sobre a formulação precisa dos projectos, porque me parece prematuro. Creio que ainda estamos ao nível de uma discussão dos princípios e da fundamentação, sendo útil - sem haver qualquer laivo de utilitarismo - ou importante, se preferir, que os países estabeleçam, através de declarações interpretativas, os seus princípios e façam uma afirmação política que tem essa consubstanciação.
Ora, esta declaração é extraordinariamente importante e, a nosso ver, poderia ter mais meia frase, ainda que não fosse necessário fazer um número novo, que estabelecesse o mesmo que os espanhóis e recordasse que Portugal não aceita ter prisioneiros no estabelecimentos prisionais com penas superiores àquelas que estão previstas para a ordem jurídica portuguesa. Trata-se de fazer saber aos outros o que faz parte da nossa ordem jurídica, porque eles não são obrigados a conhecê-la! Portanto, esta declaração não tem apenas um efeito de compromisso connosco próprios - aliás, há alguns meses atrás, já referi este aspecto num jornal, ao ser interrogado sobre esta matéria -, sendo também uma proclamação, ainda que sem efeitos jurídicos, com efeitos para os outros.
Portanto, por estas razões, sem entrar em mais discussões, parece-me que este ponto é importante, embora reconheça que a sua opinião, que julgo ser pessoal e evidentemente respeitável, não é compartilhada por outros Deputados do Partido Socialista nem sequer pelo Governo.

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Quanto à questão de transportar algo para o artigo 7.ºda Constituição, tal como já referi, e aliás o Sr. Deputado Luís Marques Guedes também já respondeu a esta questão, entendemos que não se trata de um novo fixismo. Excluindo agora a questão de saber se isto implica que o Estatuto seja revisto daqui a sete anos, ou não, e se encaixa na nossa redacção, já que se trata de uma questão de redacção do último ponto, pelo que a devemos remeter para mais tarde, julgo que a introdução de princípios que para nós não são fixistas, porque o fixismo é apenas de determinadas soluções, é uma questão diferente.
Como sabe, sou contra o determinismo (aliás, às vezes penso que já deve estar farto de me ouvir), sou contra o fixismo, a política não tem realidades finais, não há objectivos finais, não há paraísos na terra… Mas, atenção: eu faço a distinção entre o que é permanente sem ser fixista, que são os princípios, por exemplo o direito à vida e os demais princípios ligados ao respeito pelos Direitos do Homem. Aqui, não se trata de uma questão de fixismo, mas de permanência de valores, existindo uma grande diferença. Com efeito, o fixismo prende-se com as soluções, com as regras jurídicas, etc. - e podemos debater esta matéria quando chegar a altura, ouvindo os seus argumentos. Outro aspecto é a proclamação dos princípios que são permanentes, o que já nada tem a ver com fixismo.
Não vale a pena entrar em mais debates jurídicos, estritamente de técnica jurídica - aliás, temos outros especialistas que o podem fazer melhor do que eu -, porque ainda estamos muito longe desse estádio. Com certeza que o Sr. Presidente quer avançar depressa, mas ainda estamos na primeira reunião, e como dizem os franceses (para ver que nada tenho contra eles) "à chaque jour suffit sa peine", veremos essas questões no momento adequado.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, suponho que não é o Presidente que quer avançar depressa, somos todos nós que queremos cumprir determinados calendários.
Como o PS fez uma apresentação conjunta do TPI e do espaço de liberdade, de segurança e de justiça, vamos dar possibilidade fazer perguntas sobre esta matéria a quem o queira fazer, a menos que o PS queira acrescentar algo.
Para pedir esclarecimentos, inscreveu-se o Sr. Deputado Luís Marques Guedes, a quem vou dar a palavra de seguida.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, vou ser breve, até porque o essencial está basicamente dito. Vou colocar apenas uma questão sobre o espaço judiciário europeu, uma vez que esta proposta retoma, de alguma forma, o debate que tivemos a propósito da proposta do TPI.
A primeira referência que gostaria de deixar para contribuir para a reflexão de todos, em particular do Deputado Jorge Lacão, é a seguinte: relativamente a esta matéria, é curioso que o Partido Socialista, no artigo 7.º, onde se estabelece a habilitação constitucional para as nossas convenções sobre o aprofundamento da União Europeia, tivesse considerado importante afirmar princípios e defender objectivos. Chamo a atenção do Sr. Deputado Jorge Lacão para o facto de - e foi por essa razão que o PSD apresentou a proposta sobre o TPI, incorporando critérios e objectivos, ou valores, como disse o Deputado Pedro Roseta - ser exactamente por esta ordem de razões, que os senhores aparentemente também sentem em relação problema da União Europeia, que nós, na formulação da adesão ao TPI, entendemos que também era preciso afirmar princípios. Este é que é o nosso acervo constitucional.
À semelhança do que o Partido Socialista propõe para a adesão ao TPI, o n.º 6 do artigo 7.º da CRP poderia estabelecer que Portugal podia aderir à construção da União Europeia nas condições previstas no tratado de Maastricht. Ou seja, a revisão constitucional feita em 1992, para acrescentar este número 6.º à Constituição, podia ter estabelecido que assim era, o que seria semelhante àquilo que o PS agora nos propõe. Mas não foi essa a solução da nossa Constituição, porque a Lei Fundamental tem uma matriz própria. O que se disse na altura foi que "Portugal pode, em condições de reciprocidade, com o respeito pelo princípio das subsidiariedade e tendo em vista a realização da coesão económica social (…)". Estes são os valores defendidos pelo Tratado de Maastricht.
Foi esta a forma como os Deputados imbuídos de poderes constituintes, na altura, entenderam que se iria criar a habilitação constitucional do Governo e do Estado português para ratificar o Tratado de Maastricht, tendo a Assembleia da República entendido que era importante afirmar na Constituição da República princípios fundadores desta nossa opção e valores que deveriam, e devem necessariamente, ser prosseguidos na participação de Portugal na construção europeia.
De igual modo, propomos o que propomos para a criação da justiça internacional e estabelecemos determinados valores que devem e têm de ser prosseguidos por Portugal, como disse o Deputado Pedro Roseta, ao aceitar entrar nesta aventura - porque de uma aventura se trata, mas a qual o PSD considera ser externamente positiva para a regulação de um mundo melhor e do respeito pelos direitos da pessoa humana -, que é a tentativa de criação, pela primeira vez, de uma justiça penal internacional que não seja pontual e virada apenas para os vencedores.
Esta questão entronca na pergunta que quero colocar ao Sr. Deputado Jorge Lacão e que se prende com o seguinte: o n.º 6 do artigo 7.º foi feito para ratificar o Tratado de Maastricht, o qual já continha, com toda a clareza, o terceiro pilar, que é o da construção do espaço judiciário, da segurança e da justiça dos cidadãos. E, portanto, se o n.º 6 já foi introduzido, consciente e objectivamente, com o intuito de ratificar Maastricht, e se Maastricht já continha com toda a clareza o terceiro pilar, qual é a necessidade, a razão, a mais-valia do acrescento que se quer fazer? É que a razão de ser do n.º 6, na redacção actual da Constituição, repito, já foi para incorporar um tratado que pressuponha como terceiro pilar a construção do espaço de segurança e justiça europeia.
De resto, devo dizer ao Sr. Deputado que, neste caso, não colhe a ideia de que a Constituição deveria ter alguma estabilidade, que foi o argumento que utilizou para justificar a inserção sistemática da proposta do PS nas normas transitórias, alegando que as matérias que constam do artigo 7.º são aquelas que já estão conformadas. Acontece, Sr. Deputado, que não foi assim com o Tratado de Maastricht - e como prova disso temos o n.º 6 - e, aparentemente, também não é assim com a proposta que agora nos apresentam!
Com efeito, quando fez a apresentação da proposta do PS, o Sr. Deputado Jorge Lacão foi o primeiro a deixar claro que os contornos deste aprofundamento ainda não estão definidos e estão muito longe de estarem concluídos. Mas, como diz o Sr. Deputado Pedro Roseta, ainda bem que assim é, porque é sinal que não há "perfeições" e que a construção europeia é um trabalho continuado, sem fim.

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E espero que nenhum líder político alguma vez possa vir dizer que a construção europeia está terminada, acabou, porque a partir desse momento começa a ruína da Europa! Entramos em processo de degradação e, então, é verificar quando expira o prazo de validade.
Portanto, o argumento que o Sr. Deputado Jorge Lacão utilizou, o da estabilidade, vira-se contra si próprio, aparentemente, face a esta proposta que agora apresentam, porque se há tarefa que não está verdadeiramente estabilizada nem terminada, essa tarefa é esta! Aliás, o espaço judiciário está quase no "berço"!
Em primeiro lugar, do meu ponto de vista, a utilidade da proposta do PS é indecifrável, uma vez que a razão de ser deste n.º 6 do artigo 7.º, na actual redacção, foi a de permitir a ratificação do Tratado de Maastricht e o espaço de segurança e de liberdade já constava do próprio Tratado de Masstricht como terceiro pilar. E o mesmo vale para o problema da incerteza de que falou.
Por último, Sr. Deputado, com toda a franqueza queria deixar aqui uma consideração ou uma primeira afirmação política que, obviamente, evoluirá de acordo com as várias opiniões ao longo deste debate da revisão constitucional, que é a seguinte: de facto, o PSD tem grande dificuldade em aceitar, numa matéria como esta, de aprofundamento e de estabilização futuros de um espaço de justiça europeia, de criação de um espaço judiciário europeu (sabendo-se que, hoje em dia, na Europa, ainda existem países que conservam, por exemplo, a pena de prisão perpétua nas suas ordens jurídicas internas), enquanto não houver contornos precisos nem uma harmonização mais clara da matéria, o PSD tem dificuldade em aceitar, dizia, atitudes voluntaristas como, aparentemente, parece ser o caso da proposta do PS.
Com efeito, ela não acrescenta nada em termos decisivos relativamente à habilitação constitucional que foi necessária para aprovar o terceiro pilar de Maastricht, como sucede na redacção actual, apenas se limita a manifestar uma abertura voluntarista para evoluções, evoluções essas cujos contornos ainda não se conhecem neste momento ou, pelo menos, não estão totalmente definidos. Aliás, a audição que aqui realizarmos com o Sr. Comissário Europeu desta área será extremamente útil, daí o PSD ter insistido na realização da mesma, para termos a percepção exacta sobre qual o estádio de evolução relativamente à construção do terceiro pilar. Nessa altura, poderemos verificar, em definitivo, se faz ou não sentido esta atitude que, à primeira vista, qualifico como um pouco voluntarista.
É certo, porém, que esta é uma área que difere daquela que se prende com o Tribunal Penal Internacional. Uma coisa é a proposta relativa ao TPI, em relação ao qual temos um Estatuto com força jurídica já actuante que está presente sobre a mesa e, portanto, quando avançamos para criar uma norma constitucional para adesão ao tribunal, em termos de certeza jurídica, sabemos perfeitamente o que estamos a fazer, outra coisa é esta proposta sobre o espaço judiciário europeu que, obviamente, não nos parecendo nada de negativo, também não lhe reconhecemos qualquer utilidade. E, salvo melhor opinião, ela parece-nos um pouco fora de tempo, porque não existem ainda contornos definitivos nem suficientemente avançados quanto à construção deste espaço judiciário europeu que nos leve a sentir a necessidade de avançar para esta alteração da Constituição.
A necessidade que foi sentida em 1992 ficou consagrada no texto actual do n.º 6 do artigo 7.º, o que permitiu a Portugal ratificar o Tratado de Maastricht, com aceitação expressa, porque inscrita nesse Tratado, do terceiro pilar, que é precisamente o pilar da construção do espaço de segurança e justiça europeia.
De facto, não conseguimos vislumbrar o que aconteceu, entretanto - é esta a pergunta que formulo ao Sr. Deputado Jorge Lacão -, de rigorosamente novo e definitivo, cujos contornos sejam perfeitamente delineados, à semelhança, por exemplo, do Tribunal Penal Internacional, e que nos leve a ter por necessária tal alteração à Constituição!? A não ser assim, isto é, se é para acrescentar o que já está estabelecido na própria Constituição, não vemos grande interesse nessa alteração.

O Sr. Presidente: - Para responder, tem agora a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão, embora eu próprio também me tenha inscrito para usar da palavra… A não ser que me queira dar prioridade!

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Se o Sr. Presidente não me levasse a mal, dava já o meu testemunho de resposta e o Sr. Presidente, com vantagem, faria a sua reflexão global.

O Sr. Presidente: - Com certeza, Sr. Deputado.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, Sr. Deputado Luís Marques Guedes, em primeiro lugar queria fazer o seguinte apelo: estamos no início dos trabalhos e os trabalhos têm de servir para nos esclarecermos reciprocamente. Portanto, o meu apelo vai no sentido de evitarmos tirar conclusões à cabeça de um processo de reflexão e de esclarecimento recíproco.
Como o Sr. Deputado Luís Marques Guedes terá ocasião de ponderar, de facto, algo mudou significativamente desde o Tratado de Maastricht até hoje, nestes domínios. Em primeiro lugar, o Tratado de Maastricht não tinha incorporado nas competências dos órgãos da Comunidade Europeia matérias tão relevantes como aquelas que citei há pouco, designadamente as matérias do direito de asilo, da política de imigração, do controlo externo das fronteiras, de regulação do espaço de liberdade e de circulação que foram comunitarizadas já no Tratado de Amesterdão.
Quando a norma há pouco citada - o n.º 6 do artigo 7.º - foi redigida, tendo como pressuposto a referência fundamental do Tratado de Masstricht e o aprofundamento da coesão económica e social, de facto, não se encarou com um grau de relevância suficiente para consagrar na Constituição aquilo que posteriormente ficou integrado nos Tratados e na competência dos órgãos da Comunidade, ou seja, justamente a parte relativa ao aprofundamento do espaço de liberdade, de segurança e de justiça.
Trata-se, portanto, de um domínio que o Tratado de Amesterdão trata de maneira significativamente inovadora em relação àquela que tinha sido a versão do Tratado de Masstricht. E, como o Sr. Deputado disse - e bem -, a disposição constitucional reportou-se à adequação da Constituição ao Tratado de Maastricht, mas ignorou a dinâmica que esse Tratado veio a adquirir com a revisão de Amesterdão.
Existe, todavia, o outro lado da questão. Mesmo na área das matérias comunitarizadas, os aspectos relativos ao combate do crime grave e organizado, à cooperação policial e à cooperação judicial, designadamente em matéria penal, foram profundamente clarificados na revisão dos artigos pelo Tratado de Amesterdão, e foram clarificados

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quanto à ambição da cooperação a promover entre os Estados. E de tal maneira o foram que, enquanto o Tratado de Masstricht se limitava, nestes domínios meramente intergovernamentais, a estabelecer que os Estados membros, entre si, deviam adoptar posições comuns, celebrarem acordos, estabelecerem acções comuns (estou a citar as disposições dos artigos k.1, k.2 e k.3 da versão primitiva do Tratado de Maastricht), o Tratado de Amesterdão veio introduzir outros instrumentos para uma cooperação muito mais activa. Veio, designadamente, instruir o instrumento das decisões-quadro, permitir que as convenções celebradas entre os Estados membros deixassem de ser concebidas, para terem eficácia no espaço da União, como convenções celebradas necessariamente entre todos os Estados membros e poderem passar a ser celebradas apenas entre parte dos Estados membros, dando lugar ao regime da cooperação reforçada.
Neste sentido, de facto, muita coisa mudou entre as dinâmicas do Tratado de Masstricht e as dinâmicas do Tratado de Amesterdão. Basta ver, aliás, o significado enorme que, para o aprofundamento desse espaço de liberdade, de segurança e de justiça, passou a existir nas preocupações da União, desde logo com aquele que foi o testemunho das conclusões de Tampere, que tem estado permanentemente presente no Score-Board e que, em sede de comissão, tem sido sustentado. Esse testemunho é muito claro relativamente ao compromisso para intensificar, quer as modalidades de definição penal e, até, de moldura penal para certo tipo de crimes que importa combater eficazmente no espaço da União Europeia, quer os aspectos relativos, por exemplo, ao reconhecimento mútuo das decisões judiciais.
Permita-me que leia o que consta da versão actualizada do Score-board: "O Conselho Europeu subscreve o princípio do reconhecimento mútuo que, na sua opinião, se deve tornar a pedra angular da cooperação judiciária na União, tanto em matéria civil como penal. Este princípio deverá aplicar-se às sentenças e a outras decisões das autoridades judiciais". Podia citar muitos mais enunciados deste tipo, alguns dos quais estão já claramente calendarizados quanto a um conjunto vasto de iniciativas que a Comissão está a promover - certamente, com a audição do Sr. Comissário António Vitorino, teremos oportunidade de sobre todas elas reflectir -, visando não só o reconhecimento mútuo das decisões judiciais como, igualmente, a revisão do próprio regime de funcionamento da extradição no quadro dos Estados membros da União.
Tudo isto se encontra em processo acelerado de reflexão e de elaboração para apresentação de propostas que podem vir a ter a natureza de decisões-quadro, ou a ser subscritas por via de convenção, ou podem dar lugar a que uns Estados entrem em regimes de cooperações reforçadas entre si e, eventualmente, que outros não o possam fazer, designadamente por encontrarem algum obstáculo constitucional na sua ordem jurídica interna.
Ora, mais vale prevenir do que remediar. A meu ver, vale mais que consigamos perceber o sentido que esta evolução está a ter no quadro de uma nova dinâmica dos Tratados - que não propriamente aquela a que se referia o Sr. Deputado Marques Guedes, apenas com base na versão originária do Tratado de Maastricht - para evitar que venhamos a ser colocados, mais dia menos dia, numa situação de termos de ir "a correr", sobretudo por parte daqueles que acreditam no processo de aprofundamento da União Europeia, rever disposições da Constituição a fim de permitir que Portugal mantenha um passo actualizado nesses domínios de aprofundamento do espaço da liberdade, da segurança e da justiça.
É, pois, com esta preocupação que apresentamos este tema para debate em sede de revisão constitucional. E vamos falar com franqueza: para Portugal, o âmbito desta matéria tem muito mais premência do que a própria questão do Tribunal Penal Internacional, porque relativamente a este queremos, pela nossa adesão, dar um testemunho de consolidação na ordem internacional de uma certa maneira independente, autónoma, permanente, estável e isenta de fazer justiça internacional, mas não estamos a acreditar, de acordo com a nossa própria convicção matricial acerca do cumprimento das regras do Estado de direito, que os crimes de que se vai ocupar o Tribunal Penal Internacional, verosimilmente, venham a ter de ser aplicados em julgamento de acções produzidas a partir de situações de violação de que cidadãos portugueses viessem a ser responsáveis.
No entanto, não é assim no que diz respeito ao aprofundamento do espaço de liberdade, de segurança e de justiça. Esse está aí, na ordem do dia; esse vai afectar de maneira significativa a dinâmica de cooperação e de inter-relação entre ordens judiciárias, entre a execução de decisões dos tribunais, entre instrumentos jurídicos dos vários Estados membros! É, portanto, de uma realidade mais premente sobre a nossa própria ordem jurídica e os nossos próprios processos de decisão de que se trata de tomar consciência e, eventualmente, responder por forma adequada.
Não quero maçar nem o Sr. Deputado Luís Marques Guedes nem os demais Srs. Deputados com mais uma longa dissertação sobre o assunto, mas julgo que destas minhas palavras terá resultado que, de facto, não foi impertinente, bem pelo contrário, revela toda a pertinência que o Partido Socialista tenha trazido este tema para reflexão neste processo de revisão constitucional.
Nas audições que realizaremos com a presença do Sr. Ministro da Justiça e do Sr. Comissário António Vitorino, para além do desenvolvimento da nossa própria reflexão, encontraremos, estou convencido, motivos para vir a compreender o bom fundamento desta iniciativa que o PS apresenta e para não a julgarmos intempestiva.
Vou quedar-me por aqui, até porque estou convencido que o Sr. Presidente, nas suas próprias considerações, complementará, com benefício, estas preocupações que aqui vos deixo.

O Sr. Presidente:- Srs. Deputados, uso da palavra apenas para dar um testemunho, não para acrescentar nada de muito substancial àquilo que disse o Sr. Deputado Jorge Lacão, que subscrevo inteiramente.
Concordo também com o Sr. Deputado Luís Marques Guedes, pois a vinda aqui do Sr. Comissário António Vitorino, e também do Sr. Ministro da Justiça, poder-nos-á ajudar a aprofundar todas estas matérias.
Durante anos, participei no Conselho de Ministros da Justiça e de Assuntos Internos das Comunidades, e devo dizer que o fiz com imensa frustração - eu e todos os colegas que dele faziam parte. Efectivamente, só para dar um exemplo, a criação e a entrada em funcionamento da Europol demorou anos, anos e anos, e poderia repetir aqui matérias à saciedade. Porém, ocorreu uma viragem muito importante, que foi precisamente a Cimeira de Tampere, a partir da qual surgiu um novo dinamismo.

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Penso que se há matéria sobre a qual deve haver consenso entre todos nós é a de que não podemos fazer revisões constitucionais todos os anos, ou de dois em dois anos, para podermos cumprir obrigações internacionais com as quais estaremos de acordo, ou, pelo menos, com que se espera que possamos estar de acordo, naturalmente com as limitações que já foram apontadas de que dentro do espaço judiciário europeu nem todos os sistemas estão ainda igualizados, continuando a haver países que mantêm a pena de prisão perpétua, sendo certo que todos nós sabemos o que são essas penas de prisão perpétua quando comparadas com a média das penas existentes no nosso país. Aí, também há muita falácia à volta disso.
Mas penso que deveremos atentar nesta evolução recente da criação deste espaço judiciário e prepararmo-nos para, dentro do possível - e penso que não será impossível -, termos certidão constitucional para podermos, à medida que formos confrontados com a criação desse espaço judiciário europeu, não termos de, sistematicamente, proceder a revisões constitucionais.
Aliás, lembro que já aqui, noutra qualidade, vim levantar um conjunto de problemas que se ligavam com este, e o Sr. Deputado Luís Marques Guedes, e outros Srs. Deputados, naturalmente, como o Sr. Deputado Jorge Lacão, do PS, participaram nessas matérias com as quais fomos também confrontados.
A certa altura, Portugal, e outros países, precisamente devido a um sistema de extradição que excluía por completo a de nacionais, foi confrontado com a necessidade de fazer uma revisão constitucional que introduzisse essa possibilidade, dentro dos limites que sabemos serem aqueles que hoje constam.
Ora, na medida em que nos for possível ter um quadro claro (e espero que ele possa resultar das audições a que vamos proceder) da evolução previsível nesta matéria, já apontada nos seus traços fundamentais pelo Sr. Deputado Jorge Lacão, penso que ganharíamos tudo em dotar a Constituição de meios - e, portanto, os órgão de soberania, a começar por este Parlamento - para poder reagir, de um ponto de vista político, a tudo o que está em preparação na União, naturalmente sem prejuízo de nesse julgamento político o Parlamento português ter toda a liberdade, não estando coagido por normas constitucionais que, digamos, dão um fecho de abertura, para poder acompanhar esse esforço de criação do espaço judiciário europeu que, pela primeira vez e desde há cerca de 2 anos, está a avançar e não é hoje, como era, um conjunto enorme de frustrações perante necessidades vitais para assegurar a justiça, a liberdade e a segurança nas sociedades europeias.
Refiro-me a algumas coisas que já foram abordadas pelo Sr. Deputado Jorge Lacão, designadamente à luta contra o crime organizado, nas suas variadas formas, à criação de formas de cooperação entre as autoridades judiciárias muito mais avançadas do que as que temos hoje, etc., etc.
Se pudermos deixar feito este trabalho, a meu ver, é um contributo, positivo que damos para que Portugal possa acompanhar os esforços que estão, neste momento, a ser feitos para a criação verdadeira desse espaço judiciário e teremos ocasião de os ver em profundidade com as audições a que vamos proceder.
Tem a palavra o Sr. Deputado António Filipe.

O Sr. António Filipe (PCP): - Sr. Presidente, Sr. Deputado Jorge Lacão, esta proposta do PS, como é formulada, do meu ponto de vista, coloca alguns problemas, sobretudo porque pretende ser uma habilitação constitucional geral para acolher uma prática de cooperação judiciária que, eventualmente, entrará em conflito com a nossa Constituição, em termos processuais penais.
Portanto, o PS coloca a questão nestes termos: hoje, há normas constitucionais que constituem um obstáculo ao avanço de uma Europa de justiça e de cooperação judiciária, como é designada. Como reagir a isso, adoptando uma disposição constitucional ou acrescentando um inciso ao artigo 7.º que permita que, nesse espaço de cooperação judiciária, essas disposições constitucionais pudessem ser derrogadas, seguindo, no fundo, uma técnica semelhante àquela que propõe para acolher a jurisdição do Tribunal Penal Internacional?
Ora bem, independentemente da posição de fundo que tomemos sobre a questão, se podemos compreender que relativamente ao TPI se trate, no fundo, de uma aplicação da justiça excepcional, esporádica, eventual, relativamente ao espaço judiciário europeu a questão, como disse o Sr. Deputado Jorge Lacão, coloca-se quotidianamente. Então, a questão que se coloca é se este tipo de habilitação constitucional é suficiente ou qual é o espaço de aplicação das normas materiais da Constituição em matéria processual penal, existindo uma norma destas. Isto é, se se entende que esta habilitação chega, como é que a nossa Constituição se aplica? A crimes que não têm relevância internacional, permita-se a expressão, aplicam-se as normas constitucionais tal como elas estão, mas havendo alguma margem de aplicação do direito comunitário, então, aí a Constituição cede?
Creio que ficaremos aqui com um problema de aplicação das normas constitucionais que desta forma não se resolve. Lembro que, quando foi a revisão constitucional de 1992, se fez a alteração do artigo 7.º, que hoje vigora, mas não se fez só isso, adaptou-se o Estatuto do Banco de Portugal à moeda única, por exemplo, porque não sei o que teria acontecido se se tivesse feito a alteração do artigo 7.º e, depois, se tivesse deixado o artigo 105.º, relativo ao Banco de Portugal, tal como ele estava.
Agora, parece-me que ficamos confrontados com um problema destes: se fosse aprovada esta disposição do PS, seria possível entender que todas as outras normas constitucionais relativas ao processo penal ficariam derrogadas por aqui? Creio que não e que há uma incompatibilidade entre aquilo que o PS diz que pretende - e acredito que pretenda - e, no fundo, a forma que propõe para o conseguir. Não estou a dizer, com isto, que defenda a alteração dessas normas, essa é uma questão que iremos discutir adiante; porém, não vejo como é que através desta alteração ao artigo 7.º se possa acolher uma aplicação diária, permanente , de normas que, de facto, estão em contradição com outras normas constitucionais. Era também sobre esta questão que gostaria de ouvir a reflexão do Sr. Deputado Jorge Lacão.

O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Jorge Lacão, como está também inscrito o Sr. Deputado Narana Coissoró, talvez fosse melhor...

O Sr. António Filipe (PCP): - Sr. Presidente, peço desculpa mas gostaria de acrescentar um pequeno pormenor, pequeno em termos de tempo mas que não é uma questão menor, em termos substanciais.

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Parece-me óbvio que a integração europeia, em matéria do terceiro pilar, implica uma harmonização legislativa frequente, como, aliás, estamos a verificar, e eu não vejo como é que essa harmonização legislativa pode ser feita mantendo normas constitucionais que, eventualmente, conflituem com ela.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Narana Coissoró.

O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Sr. Presidente, queria referir duas coisas. Em primeiro lugar, parece evidente que o PS, pelo menos, está no caminho de apressar o chamado federalismo jurídico dentro do espaço europeu. Enquanto não se faz o federalismo político, vai-se avançando a passos muito largos para a federalização do sistema jurídico, começando pelo espaço judiciário e na matéria de Direito Penal.
Quanto a isto, para os socialistas e não para os portugueses em geral, há o argumento de dizer que assim evitamos as constantes revisões constitucionais pontuais, as "mini-revisões". Porém, estas "mini-revisões" constitucionais, pontuais, só são de aceitar se, realmente, o caminho seguido for o de estarmos constantemente a adaptar o nosso direito ao direito europeu, esvaziando o que há de específico na nossa Constituição, o que há de particular no nosso Direito Penal, no nosso Direito Fiscal, etc., de modo a que, amanhã, a Constituição portuguesa seja uma meia dúzia de artigos que remetem para a constituição europeia. Se este for o caminho, efectivamente, estamos a dar passos decisivos, pelos pés, neste caso, do PS. Porém, para nós, este caminho não é assim tão recomendável, pelo menos nesta fase da integração europeia.
Em segundo lugar, este problema levanta um outro, o de anular a norma da última revisão constitucional quanto à extradição. Se fizemos uma norma para a extradição estabelecendo que proibimos a extradição no caso de o extraditado ir sofrer prisão perpétua ou pena de morte, não vejo como é que se pode manter este princípio agora, com o princípio da cooperação no espaço judiciário, porque ela pode levar a que Portugal tenha de executar aqui, sem mais, ou pelo menos entregar lá fora, contra a nossa actual norma, os condenados a prisão perpétua ou a pena capital.
Em terceiro lugar, a não ser quanto à execução de sentenças civis e quanto àquilo que o Sr. Presidente referiu, no sentido de evitar futuras "mini-revisões" constitucionais para este e aquele feito, pergunto o que é que isto traz de benéfico e de substantivo para a ordem jurídica portuguesa, tanto no Direito Penal, como no Direito Civil, como no Direito Fiscal, ou seja, no Direito público e privado.

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Fernando Seara.

O Sr. Fernando Seara (PSD): - Sr. Presidente, gostaria de colocar algumas questões, quer ao Sr. Deputado Jorge Lacão quer ao Sr. Presidente e Deputado José Vera Jardim.
Compreendo em tese prospectiva alguns dos argumentos aduzidos no que respeita à proposta do PS em relação a um novo aditamento ao n.º 6 do artigo 7.º da Constituição. E pedia, sem prejuízo de chamar à colação alguns avisos que o Sr. Presidente da República nos trouxe esta semana no que concerne às revisões constitucionais, a colaboração dos Srs. Deputados Jorge Lacão e José Vera Jardim para a necessidade /compatibilidade/ necessidade - sendo tautológico de propósito - de conferir no texto constitucional esta norma habilitante geral, como disse o Sr. Deputado António Filipe, numa matéria em relação à qual já se foram concretizando um conjunto de procedimentos ordinário-políticos, particularmente no que respeita às convenções que aprovaram e fizeram entrar na ordem jurídica portuguesa os Acordos de Schengen.
Creio que o último reduto de soberania do conjunto dos Estados europeus é, de certa forma, o da justiça. E, portanto, todos os processos ultimamente decorrentes - que a presidência portuguesa e o Conselho da Feira, de certa maneira, impulsionaram - não poderão ser enquadrados na norma habilitante genérica, hoje em dia já constante do n.º 3 do artigo 8.º, em vez de necessitarem deste complemento habilitante genérico do n.º 6 do artigo 7.º?
Ou seja, em relação a uma eventual resposta, que saúdo, do Sr. Deputado Jorge Lacão sobre algum conjunto de normas jurídicas que já resultam dos tratados institutivos das Comunidades Europeias - e não vamos agora entrar na disputa jurídica sobre as expressões "Comunidades Europeias" e "União Europeia" -, pergunto se a norma do n.º 3 do artigo 8.º, maxime as interpretações jurisprudenciais quer do Tribunal Constitucional português quer do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias sobre essas normas, não será suficiente para toda a matéria que necessariamente decorre do processo evolutivo de direito comunitário derivado que as matérias da justiça e dos assuntos internos estão a suscitar.
Não será mais coerente e mais razoável - vou chamar à colação uma matéria paramétrica de que o Deputado Jorge Lacão goste - uma reserva de Constituição e será que não nos devemos precaver para uma "delegação" de Constituição? Ou seja, o que temos não nos serve ou o que temos não nos serve para o que queremos vir a ter? E a Constituição, nesta matéria, não deverá ser uma reserva de nós, República, e não uma delegação dela, União?

O Sr. Presidente: - Para responder aos vários pedidos de esclarecimento formulados, tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, começo por agradecer aos Srs. Deputados que colocaram as questões, bem como àqueles que ainda têm paciência de nos ouvir, evidentemente.
Gostaria de dar uma resposta globalizada, se me permitissem, não necessariamente seguindo a ordem das questões, aflorando os problemas que foram suscitados. Creio que hão-de fazer-nos justiça pelo reconhecimento de que não se trata de uma lógica voluntarista do Partido Socialista, designadamente decorrida para o que foi sugerido poder ser um federalismo jurídico, avant la lettre. Nada disso! Basta ler o texto dos Tratados tal como eles hoje estão redigidos e basta tomar consciência de que o problema que se nos põe é o de responder ao que decorre da plena aplicação das normas dos Tratados, seja na parte em que foi comunitarizado o domínio das políticas de imigração, das políticas de controle de fronteiras, das políticas de definição das condições de liberdade de circulação, designadamente na lógica do acervo Schengen; seja na parte intergovernamental, compreendendo a utilização de novos instrumentos que resultaram do Tratado de Amesterdão, como sejam as decisões-quadro que, ao fim e ao

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cabo, têm uma natureza muito próxima da próprias directivas, ainda que se diga que não gozam (em contraponto com as directivas) de uma aplicabilidade directa, mas não deixam de vincular imediatamente os Estados, no caso de terem sido aprovadas; ou ainda a possibilidade do regime das cooperações reforçadas, através dos instrumentos convencionais.
Portanto, todos estes novos instrumentos não resultam do lado voluntarioso do Partido Socialista mas, sim, de dinâmicas inseridas hoje nos próprios Tratados, dinâmicas essas que foram posteriormente espelhadas pela tomada de posição do conjunto dos Estados membros da União, citando - porque vale a pena citar - o ponto de orientação política em que tudo isto se fundamenta, ou seja, as conclusões da presidência do Conselho Europeu de Tampere, de Outubro de 1999.
Permitam-me, Srs. Deputados, que vos leia algo do que foi dito e sublinhado nessa altura e que, desde então, entrou no painel da agenda dos assuntos internos da União: "Em matéria penal, designadamente o Conselho Europeu, considera que o procedimento formal de extradição deverá ser abolido entre os Estados membros no que diz respeito às pessoas julgadas à revelia cuja sentença já tenha transitado em julgado (…); dever-se-á também reflectir sobre a possibilidade de estabelecer procedimentos de extradição acelerados (…); o princípio do reconhecimento mútuo deverá ainda aplicar-se a despachos judiciais que depois são desenvolvidos (…); a implementação do princípio do reconhecimento mútuo deve ter prioridade nas agendas da Comissão e como tal a ela foi recomendado (…); deve haver um título executório europeu sobre variadíssimos aspectos do direito processual". E eu dispenso-me de continuar a ler!
Queria apenas elucidar os Srs. Deputados de como a concretização destas matérias nos levantará, nalguns aspectos, sérios melindres constitucionais, seja ao nível do nosso regime processual da detenção, seja ao nível do nosso regime processual da extradição, seja ao nível do nosso regime processual quanto ao cumprimento das decisões judiciais de tribunais estrangeiros, neste caso de Estados membros da União. E, portanto, de duas uma: ou fechamos os olhos às dificuldades, ou abrimos os olhos para os desafios que estão colocados à nossa frente. A nosso sugestão é que abramos os olhos, efectivamente.

O Sr. Presidente: - Ou, então, teremos de os abrir muitas vezes!

Risos.

O Sr. Jorge Lacão (PS): - Ou, então, andamos a abri-los em lógica de "pisca-pisca", o que também é capaz de não ser o método mais recomendável!
Como testemunho para reforçar a sensibilização dos Srs. Deputados para a necessidade de não termos opiniões a priori e, em vez disso, estudarmos efectivamente os dossiers a fim de compreendermos as interpelações que eles nos colocam, quero ater-me à questão sublinhada pelo Sr. Deputado António Filipe, porque ao contrário do que ele, eventualmente, poderia presumir quanto à minha resposta, devo dizer que considero que a sua pergunta tem toda a pertinência, porque levanta problemas do maior melindre. E nós temos de estar preparados para reflectir aqui sobre esses problemas.
Um dos problemas de maior melindre que reporta é, desde logo, o de saber qual é o valor paramétrico que tem na ordem constitucional o direito derivado das instituições da União Europeia. Compreendo que este é um problema tão difícil que, normalmente, todos os constitucionalistas tendem a fugir a ele e, sobretudo, relativamente ao qual nenhuma interpretação autêntica foi produzida pela nossa parte, nem pelo Tribunal Constitucional.
Porém, o problema está colocado e nós não podemos estar mergulhados na dinâmica da integração europeia sem nos confrontarmos, inevitavelmente, com dificuldades deste tipo.
Levanto ainda outro tipo de problemas. No paralelismo que estabeleceu entre o que vamos fazer com a cláusula de recepção do Estatuto do TPI face ao alargamento desta cláusula em relação ao exercício em comum de poderes, reconheço que há uma distinção que pode parecer subtil mas tem alcance. É que no caso da cláusula geral de recepção do Estatuto do TPI - por isso é que, há pouco, levantei a questão que levantei sobre as condições constantes desse Estatuto - estamos a falar de uma cláusula de recepção integrativa, ou seja, as normas do Estatuto do TPI, por força de uma cláusula de recepção integrativa, passam a ter um valor constitucional e é por isso que podem, na harmonia da Constituição, ser interpretadas por forma a prevalecer sobre normas diferentes que constem da própria Constituição. Obviamente, não poderíamos admitir que elas tivessem um valor infra-constitucional e, todavia, prevalecessem sobre a norma da Constituição, porque tal seria subverter a lógica hierárquica entre normas jurídicas e o primado da norma constitucional como norma de 1.º grau.
Já o Sr. Deputado António Filipe põe o "dedo" numa dificuldade, ao dizer que a cláusula para o exercício em comum dos poderes de aprofundamento da União Europeia não é integrativa do direito derivado, até porque ele nem existe, e, por outro lado, tem outras regras de formação. É verdade! E também reconheço, tal como o Sr. Deputado referiu, que quando adaptámos esta norma para poder aprovar o Tratado de Maastricht, alterámos, na especialidade, algumas normas - recordou o exemplo do Banco de Portugal -, porque se houver uma norma da Constituição que seja incompatível com uma norma do direito derivado europeu, subsistindo embora o problema da tomada de posição sobre o valor paramétrico do direito derivado europeu face ao Direito Constitucional, não há dúvida que subsiste aqui um problema.
Gostaria de acrescentar o seguinte: ao reconhecer, honestamente e com objectividade intelectual, que esse problema existe quero, com isto, significar que a norma do PS é uma proposta de partida neste processo de reflexão da revisão constitucional para suscitar aos Srs. Deputados a sensibilização para a necessidade de encararmos esta matéria - e, eventualmente, tal não nos dispensaria de melhorar, em termos de técnica constitucional, uma ou outra formulação - sublinhando os pontos da Constituição que, de facto, poderão suscitar eventuais problemas com o desenvolvimento desta vertente do direito europeu (já os referi há pouco) e que necessitarão, também, de alguma norma de aplicação para resolver essa dificuldade que existe.
Ao fazer estas afirmações, queria situar-me na seguinte questão: o primeiro momento da nossa reflexão será o de reconhecer se é ou não importante, tempestivo e, até, necessário que, desde já, a Constituição se deva adequar à dinâmica do desenvolvimento europeu em matéria do aprofundamento do espaço de liberdade, de segurança e de justiça. Se o admitimos, e pela nossa parte consideramos

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que assim é, a solução apresentada pelo PS é um princípio de resolução do problema e não quer dizer que seja a resolução técnica do problema, em versão final. Portanto, admitimos que a mesma seja ponderada, designadamente na sequência das audições que vamos realizar. E outras formulações técnicas mais cirúrgicas também deveriam ser inseridas no texto constitucional para salvaguardar outras conflitualidades.
Aliás, o Sr. Deputado Fernando Seara evidenciou a consciência do problema quando questionou se não deveríamos optar por uma solução também de natureza geral que implicasse como que uma espécie de derrogação da Constituição cada vez que o direito derivado europeu conflituasse com a Constituição nestas matérias. Diria até que esta é a sugestão mais ousada de todas! Vamos ver.
O importante é que não olhemos para este processo com uma lógica apriorística nem o encaremos com uma atitude de preconceito, antes compreendamos que estamos aqui a tratar de adequar a nossa compreensão da ordem jurídico-constitucional portuguesa à dinâmica do direito europeu, particularmente face ao Tratado de Amesterdão e face às decisões de Tampere.
Srs. Deputados, são estas as reflexões que me permito fazer em resposta às vossas perguntas, sublinhando, até com alguma humildade, o seguinte: estamos num ponto de partida e longe de nós, longe de mim, ter a ideia de, logo nesta primeira apresentação, neste debate preliminar, já querer chegar ao ponto de chegada.

O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, creio que chegámos ao fim dos nossos trabalhos. Antes, porém, de dar por encerrada a reunião, queria apenas comunicar que a Mesa, com excepção do Sr. Deputado António Filipe, que não tive ocasião de consultar, a fim de podermos compatibilizar o tempo de que dispomos, sobretudo para a realização das audições, encontrou consenso no seguinte sentido: ao contrário do que acontecerá com a generalidade das audições (que estariam a ser agendadas três por dia), seria de concentrar num único dia as audições daquelas entidades que se vêm pronunciar apenas sobre um ponto específico, designadamente o Sr. Embaixador Costa Lobo, a Prof. Doutora Paula Escarameia, o Dr. Bernardo Colaço e o Conselheiro Mário Torres. Em vez de dispormos de 1 hora, teremos 45 minutos por audição, o que nos obriga a um esforço de contenção, mas espero que estejamos à altura desse esforço.

O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - O Sr. Presidente terá de disciplinar o tempo de intervenção!

O Sr. Presidente: - Exacto. Aliás, gostava de dizer aos Srs. Deputados o seguinte: ouvimos aqui hoje exposições e reflexões muito úteis, mas penso que teremos de tentar introduzir, entre nós, alguma disciplina, quer quanto aos tempos de intervenção, quer quanto às perguntas a formular nas audições, etc. Porque se vamos começar a formular perguntas que são, elas próprias, uma intervenção, então o melhor é partirmos já do princípio que não vamos trabalhar a tempo.
Juntamente com os elementos que compõem a Mesa iria apresentar propostas para concentrarmos as audições. Creio, aliás, que as próximas apresentações serão mais fáceis na medida em que, na generalidade dos casos, até existem apenas propostas de um só partido e de âmbito mais limitado. Com efeito, à primeira vista - e este é um prognóstico sempre reservado -, as apresentações de hoje eram as mais extensas. Em todo o caso, temos de introduzir, entre nós, alguma autolimitação para podermos levar a cabo os nossos trabalhos.
Nesse sentido, proponho a concentração das quatro audições que referi numa manhã, o que exige, naturalmente, da nossa parte e da parte das entidades convidadas, a contenção necessária.
Está encerrada a reunião.

Eram 13 horas e 20 minutos.

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