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V REVISÃO CONSTITUCIONAL
Comissão Eventual para a Revisão Constitucional
Acta n.º 3
Reunião do dia 29 de Maio de 2001
SUMÁRIO
A reunião teve início às 10 horas e 15 minutos.
Foram apresentadas propostas do PSD e do CDS-PP relativas aos artigos 15.º (Estrangeiros, apátridas, cidadãos europeus) e 34.º (Inviolabilidade do domicílio e da correspondência) da Constituição, respectivamente.
Usaram da palavra, a diverso título, além do Sr. Presidente (José Vera Jardim), os Srs. Deputados Maria Manuela Aguiar (PSD), Narana Coissoró (CDS-PP), Jorge Lacão (PS), Cláudio Monteiro (PS), Luís Marques Guedes (PSD), António Filipe (PCP), Pedro Roseta (PSD) e Maria Celeste Correia (PS).
O Presidente encerrou a reunião eram 12 horas e 15 minutos.
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O Sr. Presidente (José Vera Jardim): - Srs. Deputados, temos quórum, pelo que declaro aberta a reunião.
Eram 10 horas e 15 minutos.
Srs. Deputados, como sabem, reservámos o dia de hoje para a apresentação das propostas relativas aos artigos 15.º (Estrangeiros, apátridas, cidadãos europeus) e 34.º (Inviolabilidade do domicílio e da correspondência) da Constituição. Em relação ao primeiro existe apenas uma proposta do PSD, cuja apresentação está a cargo da Sr.ª Deputada Maria Manuela Aguiar.
Tem a palavra, Sr.ª Deputada.
A Sr.ª Maria Manuela Aguiar (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Começaria por ir um pouco atrás, para referir que a questão do gozo de direitos políticos para portugueses e brasileiros foi inicialmente suscitada no Brasil, pela comunidade portuguesa, e foi objecto da Emenda n.º 1 à Constituição brasileira, em 1969.
Na altura, Portugal teve a capacidade de dar uma resposta pronta, isto é, cerca de dois anos depois, em 1971, ano em que foi celebrada, em 7 de Setembro, a Convenção de Igualdade de Direitos e Deveres entre Portugueses e Brasileiros, ratificada em 20 de Dezembro do mesmo ano, na Assembleia Nacional. Houve uma troca de instrumentos de ratificação em 22 de Março de 1972, sendo a respectiva regulamentação também desse ano. Portanto, tratou-se de um processo relativamente curto.
Infelizmente, o mesmo não aconteceu quando o Brasil deu um novo passo em frente, em 1988. Já lá vão 13 anos e nós continuamos sem ter logrado dar reciprocidade ao novo patamar que a Constituição brasileira, no seu artigo 12.º, veio colocar o estatuto de direitos políticos entre portugueses e brasileiros.
Talvez haja vantagem em referir os termos do artigo 12.º da Constituição brasileira, no qual se pode ler o seguinte: "Aos portugueses com residência permanente no Brasil, se houver reciprocidade em favor dos brasileiros, serão atribuídos os direitos inerentes ao brasileiro nato, salvo os previstos nesta Constituição". E excepcionam-se como direitos do brasileiro nato os cargos de Presidente e de Vice-Presidente da República, de Presidente da Câmara dos Deputados, de Presidente do Senado Federal, de Ministro do Supremo Tribunal Federal, da carreira diplomática e de oficial das forças armadas.
Para efeitos de discussão, também é interessante referir o conteúdo do estatuto especial de igualdade de direitos políticos, tal como era concebido pela Convenção de Igualdade de Direitos e Deveres de 1971. No artigo 21.º estabelecia-se que "aos nacionais brasileiros, nas condições do artigo anterior, não poderão todavia exercer funções constitucionalmente reservadas aos portugueses originários". Ou seja, estar-lhes-iam vedadas as funções de Presidente da República, de conselheiro de Estado, de Deputado, de Procurador à Câmara Corporativa, de membro do Governo, de juiz dos tribunais supremos, de Procurador-Geral da República, de Governador das Províncias Ultramarinas, agente diplomático, oficial general das Forças Armadas, nem poderiam participar no colégio eleitoral para a designação do Presidente da República. Estas eram as limitações da Convenção de 1971, e os Srs. Deputados já conhecem as que são impostas pela Constituição da República Portuguesa.
Ora, para dar a reciprocidade, não sei se plena mas, pelo menos, muito aproximada, o PSD apresentou um projecto de revisão constitucional que inclui uma proposta de alteração ao n.º 3 do artigo 15.º com a seguinte redacção: "Aos cidadãos da República Federativa do Brasil e dos demais Estados de língua oficial portuguesa, com residência permanente em Portugal, são reconhecidos, nos termos da lei, mediante observância das convenções internacionais e em condições de reciprocidade, os direitos próprios dos cidadãos portugueses, com excepção do direito de acesso aos cargos de Presidente da República, Presidente da Assembleia da República, Primeiro-Ministro, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e Presidente do Tribunal Constitucional, e do serviço nas Forças Armadas e na carreira diplomática". Como podem constatar, ainda assim, este é um pouco mais restritivo do que o texto do artigo 12.º da Constituição brasileira.
Como sabem, no Brasil, esta questão tem levantado uma grande polémica que teve eco, em Portugal, na revisão constitucional de 1989 e, de novo, na revisão constitucional de 1997, tendo ainda sido apresentado um projecto pelo Deputado Pedro Roseta - que estatuía de forma semelhante àquela que agora aqui propomos - num processo de revisão constitucional que não chegou a concretizar-se, em 1994.
É difícil de compreender para os brasileiros e, penso, para muitos portugueses a razão deste longo impasse, deste impasse de 13 anos. Julgo que uma das razões será uma confusão, absolutamente infundada, reinante entre dois conceitos diferentes de cidadania: entre a chamada "cidadania europeia" e a "cidadania luso-brasileira", que resulta da Convenção de 1971.
Como sabem, na União Europeia, os direitos mais importantes do conteúdo da cidadania são os de livre circulação, de protecção consular e diplomática em países terceiros e os direitos políticos limitados ao nível local. Nós podemos chamar aos estatutos que resultam da Convenção de 1971apenas Estatuto de Igualdade de Direitos ou, então, cidadania luso-brasileira ou cidadania da CPLP, mas temos de ter consciência de que estamos a falar de um conteúdo completamente diverso. Não há entre Portugal e Brasil, muito menos a nível dos países da CPLP, direito de liberdade de circulação; também nos termos da Convenção de 1971, não há direito à protecção diplomática e consular (artigo 17.º do Convenção), nem se abrange o direito à permanência no território português, nem o direito à protecção diplomática em terceiro Estado. A convenção é, pois, muito clara neste ponto.
A meu ver, será mesmo muito difícil que se venha a estabelecer um direito de liberdade de circulação entre os países da lusofonia, o que não quer dizer que não tentemos nem esteja a ser tentado o seu estabelecimento. Mas não é, com certeza, previsível para o curto prazo.
Por outro lado, da Convenção de 1971 decorrem dois estatutos: o estatuto de direitos civis, que é atribuído depois de a pessoas estar devidamente legalizada num país, e o estatuto de direitos políticos, que era concedido ao fim de cinco anos e que, nos termos do novo tratado de amizade luso-brasileiro, passará a ser de três anos. Aquilo em que o Estatuto de direitos políticos ou, se quiserem, neste sentido, a cidadania luso-brasileira vai muito mais longe é, precisamente, no próprio conteúdo dos direitos políticos, uma vez que estes abrangem não só o nível local mas, também, o nível nacional. Mesmo hoje, com a Convenção de 1971, ela vai muito mais longe do que a
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chamada cidadania europeia, porque permite a participação em eleições nacionais, em eleições para órgãos de soberania, assim como permite o acesso aos tribunais, embora não aos tribunais superiores.
Estou a falar de um conteúdo de direitos políticos muito mais extenso, mas reservado a imigrantes, isto é, um direito reservado aos residentes permanentes e que se perde com a perda da residência permanente. Portanto, quando se agita o problema da disparidade de dimensões entre o Brasil e Portugal está a levantar-se um falso problema, porque o Estado tem sempre a possibilidade de controlar e de limitar o acesso dos brasileiros e dos outros povos de língua portuguesa ao País. De facto, apenas gozam dos direitos aquelas pessoas que foram admitidas com residência permanente no País e ao fim de alguns anos após terem obtido o estatuto de igualdade de direitos civis.
Chamo a atenção para este facto porque esteve em discussão, este mês, em Portugal, o chamado "estatuto do cidadão lusófono" e verifiquei pela leitura de jornais que, realmente, o estatuto do cidadão lusófono tem o enfoque na liberdade de circulação. Portanto, é a tal ideia eurocêntrica de que cidadania se confunde com liberdade de circulação. Nessa reunião, realizada em 10 de Maio, estiveram presentes responsáveis dos serviços de fronteiras, de emigração e de relações exteriores dos países da CPLP para se avançar para a definição do estatuto de cidadão lusófono. Pelo menos, é o que informam os jornais. Designadamente, foram discutidas questões relativas a passaportes, vistos, estada, circulação de pessoas e, ao que parece, vão apresentar um relatório que será discutido em São Tomé e Príncipe brevemente, na reunião de ministros da CPLP.
Temos ainda a informação de que Portugal terá encomendado ao Professor Gomes Canotilho um trabalho sobre esta problemática, no qual se fez um levantamento das populações residentes no espaço da CPLP. Esse estudo revela que Portugal tem, realmente, grandes comunidades nestes países: cerca de 1,2 milhões no Brasil, 18 000 em Angola, 12 000 em Cabo Verde, 500 na Guiné, e, enfim, 240 em São Tomé e Príncipe. Também no que respeita à imigração, constatamos que existe uma vasta comunidade cabo-verdiana em Portugal, que oficialmente é constituída por 38 000 imigrantes, mas que se estima em mais de 80 000, 10 900 angolanos e 10 400 brasileiros, 20 000 guineenses e cerca de 5000 moçambicanos e são-tomenses.
A proposta do PSD estende-se, evidentemente, ao espaço da lusofonia, não é limitada ao Brasil - nem o artigo 15.º da Constituição o é! Porém, não podemos ignorar o facto de termos com o Brasil, há mais de 30 anos, uma convenção bilateral, o que não acontece com os outros países e, nos termos da Constituição, teria de acontecer. Portanto, não podemos estendê-la ao espaço da CPLP sem prévios acordos a nível bilateral.
Já mais no plano político das relações entre Portugal e o Brasil, este é um assunto que é incompreendido no Brasil e tem envenenado as relações entre os dois países. Aliás, no Brasil são feitas cíclicas ameaças de eliminação: há grupos de Deputados (felizmente, a iniciativa não tem merecido acolhimento) que propõem a eliminação, pura e simples, do artigo 12.º da Constituição brasileira, o que seria uma solução bem mais radical do que aquela que nós próprios adoptámos. De facto, em Portugal, o que não se fez foi ir além do que está convencionado deste há 30 anos, mas nunca houve proposta alguma de recuo em relação ao celebrado com o Brasil nessa data, enquanto que no Brasil a questão põe-se em termos de eliminar o artigo 12.º da Constituição brasileira.
Também chamo a atenção para este ponto, pois penso que não faz sentido fazermos uma revisão da Constituição sem equacionarmos este problema e sem tentarmos resolvê-lo, até porque o Brasil não compreendia que não o fizéssemos; não compreenderia que, havendo uma revisão constitucional em que se abordam vários pontos, este tema não fosse contemplado.
Penso que não vale a pena estar aqui a descrever o que se passou na última revisão constitucional, porque as propostas são bem conhecidas, quer as do PSD quer as do PSD. Como bem se recordarão, a proposta do Partido Socialista abria a possibilidade de os brasileiros serem membros do Governo, mas excluía a eleição para Deputado e o exercício da magistratura, assim, sem mais, o que seria um retrocesso em relação quer à Convenção de 1971, em que apenas se excepcionavam os juízes dos tribunais superiores, quer ao texto brasileiro, sabendo nós que há, no Brasil, muitos portugueses que são magistrados e, até, magistrados de tribunais superiores. Estas são as linhas gerais do projecto.
Antes, porém, de terminar a minha intervenção, gostaria de acrescentar uma pequena nota: não é apenas nesta matéria que falta reciprocidade; falta reciprocidade, também, por exemplo, numa disposição da actual Constituição brasileira, disposição essa que vem já de meados do século XX, salvo erro de 1946, que permite a aquisição da nacionalidade brasileira pelos portugueses e pelos outros povos lusófonos ao fim de um ano. Essa é uma disposição que abrange todo o mundo da lusofonia, enquanto que os direitos políticos abrangem apenas Portugal.
Ainda neste plano da CPLP, é interessante notar que quando a Convenção foi celebrada, em 1971, ela abrangia efectivamente, em termos de atribuição de gozo de direitos civis e políticos, todo o espaço da CPLP, uma vez que Portugal ainda era um país com as suas colónias e, portanto, negociou em termos de todo o espaço português. Não será, pois, uma novidade voltar a estender este estatuto a todos os povos que falam português. Como digo, não me parece nada errado que estejamos a discutir a facilitação; pelo contrário, parece-me muito bem a facilitação da liberdade de circulação entre os países da CPLP, mas julgo que é muito importante termos a noção de que estamos a atribuir direitos políticos, nos termos do convencionado e do que agora propomos, apenas a imigrantes residentes permanentes num país.
Com esta noção de uma cidadania diferente da cidadania europeia será bem mais fácil negociar a nível da CPLP, ou será mais fácil negociar este aspecto, se quiserem, do direito de cidade, do que o próprio direito de livre circulação.
O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado Narana Coissoró.
O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Sr. Presidente, Sr.ª Deputada Maria Manuela Aguiar, a pergunta que quero formular prende-se mais com o modo como está redigida a norma, uma vez que se pode prestar a algumas interpretações que, julgo, não estão na mente dos proponentes.
A Sr.ª Deputada fez a distinção entre cidadania para efeitos de cidadania europeia e cidadania portuguesa e referiu-se às interligações que existem entre as duas cidadanias, principalmente por causa da livre circulação das pessoas dentro da União Europeia. Mas a forma como a
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proposta está redigida, uma vez que a mesma estabelece que "(…), são reconhecidos, nos termos da lei, mediante observância de convenções internacionais e em condições de reciprocidade, os direitos próprios dos cidadãos portugueses, (…)", levanta o seguinte problema: há uma espécie de assimilação pelos cidadãos brasileiros dos direitos dos cidadãos portugueses, o que não quer dizer que sejam de todos os direitos dos cidadãos portugueses.
Por outras palavras, questiono se esta redacção quer significar que eles se tornam cidadãos portugueses, mediante uma forma de aquisição automática da cidadania portuguesa, ou apenas lhes são conferidos direitos iguais aos dos cidadãos portugueses, sem que os mesmos sejam considerados cidadãos portugueses.
De duas uma: ou eles são automaticamente considerados cidadãos portugueses pelo mero facto de serem cidadãos brasileiros, através de um instrumento internacional e em condições de reciprocidade, e nesse caso não há maneira de afastá-los da aplicação de todo o regime de cidadão português, designadamente o direito de livre circulação, uma vez que eles também se tornam cidadãos da União Europeia; ou, então, este regime visa atribuir-lhes direitos iguais aos dos cidadãos portugueses, mas sem os considerar como tal. Neste caso, o problema muda de figura, porque não terão quaisquer direitos que decorram da cidadania europeia, uma vez que esta só é própria dos cidadãos portugueses. E não teremos cidadãos portugueses mas, sim, cidadãos assimilados aos portugueses.
O Sr. Presidente: - Também para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, porque estamos numa fase de formular perguntas, não pretendo fazer uma intervenção detalhada sobre esta matéria. Em todo o caso, queria fazer a seguinte reserva: como o Partido Socialista tem dito várias vezes, para nós esta revisão constitucional extraordinária teve uma razão de ser que todos conhecemos e que se identifica, sobretudo, com a problemática da harmonização da nossa ordem jurídico-constitucional a alguns dos desafios mais prementes no contexto da construção do Direito Internacional e do Direito Europeu.
Naturalmente, estamos disponíveis para ouvir os fundamentos e as propostas que os outros grupos parlamentares apresentam, mas não deixaremos de procurar distinguir entre matérias que, pela sua acuidade, justificam ser apreciadas em sede de revisão constitucional num processo extraordinário e outras que, pelo seu significado mais permanente e, também, pela possibilidade de uma maturação mais adequada, melhor se situarão no contexto de uma revisão constitucional ordinária.
Dito isto, apenas gostaria de conhecer da Sr.ª Deputada Maria Manuela Aguiar algumas informações complementares, designadamente se dispõe de dados estatísticos acerca do fluxo actual de relações de imigração entre Portugal e o conjunto dos países lusófonos e do conjunto dos países lusófonos relativamente a Portugal. E, em função desse dado de avaliação, poderíamos fazer uma apreciação fáctica acerca do significado das relações de reciprocidade constantes da vossa proposta.
Em segundo lugar, quando no texto da proposta do PSD se faz uma alusão aos cidadãos originários dos países de língua oficial portuguesa com residência permanente em Portugal, gostaria de saber se este conceito de "residência permanente", do ponto de vista dos autores, é subsumível à permanência regular, ou com regularidade, no território nacional ou se é uma qualquer permanência, independentemente da legalização. Se for esta última hipótese, não creio que a norma esteja redigida da forma mais adequada a esse desiderato.
Em terceiro lugar, apesar das considerações da Sr.ª Deputada relativamente à distinta esfera de um conceito de cidadania lusófona e de um conceito de cidadania europeia, gostaria de saber se a Sr.ª Deputada está ciente dos problemas que, no contexto europeu, vão colocar-se ao exercício de direitos no espaço europeu por parte do conjunto dos cidadãos de origem exterior aos Estados membros da União Europeia relativamente ao aprofundamento do direito da cidadania europeia. E se, sobre essa problemática, também tem um ponto de vista próprio a defender.
Finalmente, pergunto se a Sr.ª Deputada estaria em condições de nos informar, designadamente para efeitos de registo, em face dos actuais instrumentos de natureza convencional celebrados entre Portugal e o conjunto dos países lusófonos (com excepção da Convenção para a igualdade entre cidadãos portugueses e brasileiros, já aqui citada), se já foi possível exercer em pleno o âmbito de aplicação do n.º 3 do artigo 15.º da Constituição, tal como ele está redigido actualmente. Ou seja, quais são os instrumentos de direito convencional que, com base na reciprocidade, já permitem o pleno exercício do disposto no n.º 3 do artigo 15.º da Constituição?
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Cláudio Monteiro.
O Sr. Cláudio Monteiro (PS): - Sr. Presidente, em primeiro lugar, e antes de formular uma pergunta, propriamente dita, queria fazer uma breve declaração. Suponho que é sabido que tenho nesta matéria, como tenho tido desde a revisão constitucional de 1997, uma posição autónoma em relação ao Grupo Parlamentar do Partido Socialista, e autónoma, se não fosse por outras razões de ordem política mais geral, pela razão simples e particular de eu próprio ter nascido no Brasil com a nacionalidade brasileira.
Portanto, tal como no Brasil existe alguma dificuldade em compreender o posicionamento de Portugal nesta matéria, eu próprio tenho tido, ao longo dos anos, alguma dificuldade em compreender o posicionamento de Portugal nesta matéria, nomeadamente pela circunstância de me parecer que Portugal não pode, como país de imigração, agir como agiam alguns dos países para onde os portugueses emigravam, com excepção do Brasil, que como tal nunca agiu.
Dito isto, e sem prejuízo da discussão que se há-de fazer mais adiante e em relação à qual pretendo intervir, nesta fase, queria apenas perguntar à Sr.ª Deputada Manuela Aguiar a razão da escolha da expressão "direitos próprios", designadamente por comparação com outras que têm sido utilizadas em textos e convenções internacionais para traduzir a ideia de direitos civis e políticos.
No fundo, o que aqui está em causa é a extensão dos direitos civis, sobretudo dos direitos políticos, dado que, mesmo no quadro das convenções actualmente existentes, esses direitos políticos são limitados em matéria de capacidade eleitoral activa mas não quanto à capacidade eleitoral passiva, no sentido em que os cidadãos brasileiros podem ser eleitores no quadro da Convenção de Igualdade de Direitos Civis e Políticos, mas já não podem ser eleitos
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para órgãos de soberania, designadamente para a Assembleia da República, a não ser - como é o meu caso - que tenham, entretanto, adquirido a nacionalidade portuguesa e, portanto, possam ser eleitos enquanto cidadãos portugueses de pleno direito… Não de pleno direito porque, mais uma vez, não é bem o caso, uma vez que, como se sabe, há restrições constitucionais aos cidadãos natos com outra nacionalidade ou com outro país, o que faz com que nesta sala, agora que já tenho idade, continue a não poder ser candidato a Presidente da República pela circunstância de essa função estar restrita aos cidadãos natos portugueses. É uma pena, mas é assim!
De qualquer forma, julgo que esta questão é importante, quanto mais não seja pela ambiguidade que a expressão "direitos próprios" pode trazer. Confesso que tenho algumas dúvidas em relação a ela, porque não tenho a exacta noção do alcance jurídico que ela revela.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Queria enfatizar dois ou três aspectos relativos à proposta já apresentada pela Sr.ª Deputada Maria Manuela Aguiar, aproveitando para, nesta fase prévia, tecer um ou dois comentários que me parece importante que fiquem clarificados e registados em acta.
Em primeiro lugar, permito-me fazer uma observação em relação ao que a Sr.ª Deputada Maria Manuela Aguiar referiu ao falar de um dos falsos problemas que muitas vezes é agitado relativamente a esta proposta: a questão da disparidade da dimensão, nomeadamente entre Portugal e o Brasil. Ora, diria que essa disparidade, na prática, no que diz respeito à proposta em causa, nem sequer é um falso problema, uma vez que é um problema que está rigorosamente colocado ao contrário. Senão vejamos.
Normalmente, a forma como os detractores desta proposta colocam o problema é agitando o "fantasma" de que, sendo Portugal um país de 10 milhões de habitantes e o Brasil um país com mais de 150 milhões de habitantes, haveria aqui uma desproporção enorme que, no limite, faria perigar a própria soberania do Estado português relativamente à abertura a este tipo de direitos políticos.
É, pois, necessário que se faça um trabalho sério quando, em sede da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, olhamos para as propostas que estão sobre a mesa. De facto, o que está em causa não é a realidade populacional dos dois países mas, sim, a realidade dos cidadãos com residência permanente num e noutro país. Então, vamos falar em termos de dimensões reais! O que acontece é que haverá, grosso modo, 10 000, 20 000 ou, no limite dos limites, 30 000 cidadãos brasileiros a residir em Portugal…
A Sr. Maria Manuela Aguiar (PSD): - Que não há!
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Com residência permanente não há, seguramente! Mas aceitemos o número dantesco de 30 000 cidadãos brasileiros com residência permanente…
O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Dantesco?!
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Dantesco para os cenários daqueles que entendem que esta proposta é um atentado à soberania nacional. Fez bem em fazer essa observação, Sr. Deputado Narana Coissoró, porque lido fora do contexto poderia parecer que também eu embarcava nessa leitura.
No limite, aceitemos que existem 15 000, 20 000 ou 30 000 cidadãos brasileiros com residência permanente em Portugal, que é um número muitíssimo superior aos dados reais e oficiais. No Brasil teremos, no mínimo, entre 1,5 milhões e 2 milhões de portugueses com residência permanente. Então, se querem comparar o problema da disparidade da dimensão das comunidades de um e de outro país relativamente à problemática que aqui estamos a analisar - porque é essa e só essa que está contida na economia da proposta colocada sobre a mesa pelo Partido Social Democrata -, chegarão à conclusão de que, de facto, a questão da disparidade até nem é um falso problema! É um problema mas não para Portugal, seguramente.
Ou melhor: poderá ser um problema para as autoridades portuguesas e, nesse sentido, é para Portugal na medida em que há uma enorme comunidade de portugueses residentes no Brasil que estão colocados numa situação incompreensível face ao seu país de acolhimento, incompreensível para as autoridades brasileiras e incompreensível para o povo brasileiro que tem a generosidade de conferir aos nossos cidadãos aí residentes um determinado estatuto, um determinado número de regalias e de direitos de cidadania que as autoridades portuguesas, por teimosia exclusiva do Partido Socialista em Portugal - e meço bem as minhas palavras: por teimosia exclusiva do Partido Socialista em Portugal -, ainda não foi possível aplicar. E exclusiva porquê? Porque é público, faz parte da história do Direito Constitucional português que, na última revisão da Constituição, todas as bancadas com assento na Assembleia da República à data votaram favoravelmente esta alteração, à excepção da bancada do Partido Socialista.
Portanto, se este direito ainda não é reconhecido aos cidadãos dos países de língua portuguesa, e inscrito como tal na nossa Constituição da República, tal deve-se exclusivamente à teimosia do Partido Socialista.
Dito isto, parto para uma segunda consideração ao que aqui nos deixou o Sr. Deputado Jorge Lacão como testemunho prévio…
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Então, não faz perguntas à Sr.ª Deputada Manuela Aguiar?!
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Primeiro tenho de fazer uns considerandos relativamente à sua intervenção, Sr. Deputado.
De facto, com toda a franqueza, Sr. Deputado Jorge Lacão, o Partido Socialista já "fintou" a Assembleia da República e as outras bancadas sobre esta matéria uma vez. E nós não gostaríamos de ser "fintados" segunda vez! Ou seja, na última revisão constitucional, quando esta questão foi colocada no Plenário da Assembleia da República, o Partido Socialista - consta das actas do Plenário - utilizou a argumentação de que, por estar a decorrer, ou estar eminente na altura, uma deslocação do Sr. Primeiro-Ministro ao Brasil, não era oportuno a Assembleia da República fazer o debate e a votação, em Plenário, daquela proposta. E, por essa razão, que na altura foi entendida como razoável por parte das outras bancadas, a Assembleia da República adiou essa discussão e votação.
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Não gostaria que, mais uma vez, com o pretexto da oportunidade - agora não a propósito de viagens de Estado ao Brasil, ou a outro país de língua oficial portuguesa, mas a pretexto da natureza da revisão -, o Partido Socialista venha tentar adiar a discussão sem que haja, da sua parte, uma clarificação política óbvia, evidente e transparente sobre qual é a intenção e o posicionamento político do PS relativamente a esta matéria. É, pois, necessário que as posições sejam clarificadas.
Relembro que o Sr. Presidente da República, à altura e actualmente, declarou então, em 1997, também numa deslocação de Estado ao Brasil, justificando-se perante os brasileiros por que é que a revisão da Constituição Portuguesa não tinha consagrado esta reciprocidade de direitos - e cito -, "Eu, como Presidente, sou obrigado a promulgar a Constituição da maneira como ela me é apresentada pelo Parlamento". De resto, em declarações supervenientes, quando lhe foi perguntado por um jornalista se isso queria dizer que veria com "bons olhos" a possibilidade de ser aberto um processo de revisão extraordinário da Constituição para se consagrar esta alteração ao artigo 15.º, o Presidente Jorge Sampaio respondeu afirmativamente. Ou seja, numa viagem de Estado, em nome daquilo que ele representa, a Nação e a República Portuguesa, deixou claro que, da parte da República Portuguesa e como opinião pessoal, havia uma predisposição natural para, numa primeira oportunidade, se avançar para a consagração do direito da reciprocidade, conforme está aqui a ser colocado.
Portanto, o momento da oportunidade é este - outros foram tentados mas saíram gorados -, quando de novo se abrem poderes constituintes à Assembleia da República. E, ao estarmos aqui, como é natural - e necessariamente, diria eu - a proposta é colocada sobre a mesa. Era, pois, positivo que não houvesse mais uma "finta" à questão substantiva e fosse definido um posicionamento transparente da parte das várias forças políticas e dos vários Deputados para que esta matéria não continue a andar de Herodes para Pilatos, sem que haja uma assunção clara de responsabilidades relativamente ao seu desfecho.
Para terminar, coloco apenas uma questão à Sr.ª Deputada Manuela Aguiar, questão que vai muito no sentido da intervenção do Sr. Deputado Cláudio Monteiro. De facto, a redacção que é apresentada pelos Deputados do PSD vem no contexto do n.º 1 do próprio artigo 15.º, quando se refere aos direitos e deveres dos cidadãos portugueses, daí a expressão "direitos próprios". Contudo, pelo menos aparentemente, a proposta que é avançada pelo Sr. Deputado Cláudio Monteiro parece ter a vantagem de, quando lida autonomamente, ainda que desinserida do contexto, de tornar mais claro aquilo que verdadeiramente está em causa com esta norma de excepção.
Neste sentido, pergunto à Sr.ª Deputada se entende que essa pode ser uma clarificação útil e se há abertura da sua parte a considerar este tipo de alterações, no sentido de deixar claro e de permitir uma leitura inequívoca por parte de todos os interessados.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado…
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, se me permite, gostaria de exercer o direito de defesa da consideração da minha bancada relativamente a uma consideração feita pelo Sr. Deputado Luís Marques Guedes.
O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado António Filipe inscreveu-se primeiro, mas tratando-se do uso da palavra para defesa da consideração da bancada, se o Sr. Deputado não vir inconveniente, daria de imediato a palavra ao Sr. Deputado Jorge Lacão.
O Sr. António Filipe (PCP): - Sr. Presidente, pela minha parte não vejo qualquer inconveniente.
O Sr. Presidente: - Então, tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, agradecendo a compreensão do Sr. Deputado António Filipe, serei muito breve.
Queria dizer ao Sr. Deputado Luís Marques Guedes que o Partido Socialista, tomando posições certas ou susceptíveis de serem politicamente censuradas por serem consideradas erradas, de uma ou de outra maneira, assume posições políticas com a legitimidade própria de qualquer grupo parlamentar nesta Casa. A Assembleia da República compõe-se pelo conjunto dos Deputados eleitos e o Partido Socialista representa, precisamente, metade do número de Deputados da Assembleia da República.
Quando o Partido Socialista toma posições não "finta a Assembleia da República"; quando o Partido Socialista toma posições susceptíveis de serem aplaudidas ou censuradas exprime com inteira legitimidade a representação de metade dos eleitores portugueses, o que deve merecer consideração de qualquer um, designadamente do Sr. Deputado Luís Marques Guedes.
Quando concordo ou, sobretudo, discordo de posições do PSD não utilizo aqui expressões do tipo "anda a fintar" quem quer que seja! Critico-as se entender que as devo criticar, aplaudo-as se entendo que as devo aplaudir, mas não me permito ter a pesporrência de considerar que as atitudes dos outros não são a expressão de uma legitimidade democrática plena que como tal deve ser considerada e respeitada.
O Partido Socialista, Sr. Deputado Luís Marques Guedes, não tem de lhe merecer concordância permanente, mas tem de lhe merecer consideração e respeito.
O Sr. Presidente: - Para dar explicações, querendo, tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Deputado Jorge Lacão, de facto, devemos estar a falar de uma matéria muito complicada para o Partido Socialista, pois só isso justificaria esta intervenção absurda. Absurda e caricata.
O que disse, e repito, porque ficou claro na intervenção do Sr. Deputado Jorge Lacão que, na falta de qualquer tipo de argumento ou, sequer, de vontade e de ânimo para clarificar a questão de fundo, o PS limita-se a inventar um incidente onde ele, pura e simplesmente, não existe!
Sr. Presidente, até poderia dizer que considero, no mínimo, benigno da sua parte, enquanto Presidente desta reunião, entender que o dizer-se que uma bancada "fintou" as outras bancadas numa determinada discussão é uma declaração ofensiva…
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Peço desculpa, a expressão que o Sr. Deputado usou foi esta: "fintou a Assembleia da República"!
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O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sim, "fintou" a Assembleia da República e o Plenário da Assembleia da República. Mas, enfim, o Sr. Presidente é benigno na leitura que faz e eu respeito essa sua postura.
De facto, o que eu disse não é, rigorosamente, ofensivo para ninguém: nem em termos de vocabulário português, nem em termos de actuação política. Podia ter utilizado adjectivos ou termos ofensivos, mas não o fiz. Limitei-me a dizer a verdade que, de resto, consta das actas (refiro-me às actas da última revisão constitucional que o Sr. Presidente já fez distribuir pelos Deputados). Basta lê-las para verificar se ocorreu ou não uma tentativa por parte do Partido Socialista de, uma vez colocado perante a situação de ter de pronunciar-se sobre a questão de fundo, "fintar" essa discussão, adiando-a, postergando-a para um momento diferente, com um argumento que depois se veio a verificar que não era o fundamento real da posição que o Partido Socialista queria assumir perante esta matéria. Gostaria que isso não se voltasse a repetir.
Era bom que o Partido Socialista não se ficasse pelo argumento de que estamos perante uma revisão extraordinária e não ordinária e, portanto, esta não é matéria de revisão extraordinária mas, sim, de revisão ordinária. Esta é uma matéria política como qualquer outra que é colocada sobre a mesa num processo de revisão, por isso era bom que, sobre ela, os vários Deputados dos diferentes grupos parlamentares tivessem a atitude frontal de assumir, com verdade e sem qualquer tipo de equívocos, o seu posicionamento político.
Para que exista uma consideração real entre as posições que são assumidas pelos vários Deputados e pelas diferentes bancadas é fundamental que todos usem da maior das frontalidades na assunção das suas posições e não se escudem atrás de argumentos nem procedimentais nem de oportunidade, escamoteando a questão substantiva das propostas que estão sobre a mesa.
São estas as considerações ou as explicações que, Sr. Presidente, queria fazer relativamente ao pedido de defesa da consideração apresentado pelo Sr. Deputado Jorge Lacão, reafirmando que continuo à espera de ouvir - e espero que não seja preciso muito mais tempo - a posição do Partido Socialista que, seguramente, quer través do Sr. Deputado Jorge Lacão, quer através de outros Deputados do PS presentes nesta Comissão, acabará, inevitavelmente, ao longo dos nossos trabalhos, por ser colocada sobre a mesa. Espero que mais cedo do que tarde!
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Filipe.
O Sr. António Filipe (PCP): - Sr. Presidente, a questão que queria colocar à Sr.ª Deputada Maria Manuela Aguiar prende-se com o seguinte: é sabido que os Deputados do PCP votaram favoravelmente a proposta que foi apresentada em Plenário aquando do último processo de revisão constitucional e, portanto, as perguntas que vou formular têm esse pano de fundo, não visam colocar qualquer objecção de fundo à proposta que é apresentada.
Coloco apenas um problema, resolúvel do nosso ponto de vista, que tem a ver com o equilíbrio interno da própria formulação que é apresentada. Se repararmos, as limitações que são colocadas ao exercício de direitos políticos por cidadãos não nacionais dizem respeito ao acesso a cinco cargos unipessoais - os de Presidente da República, Presidente da Assembleia da República, Primeiro-Ministro, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e Presidente do Tribunal Constitucional -, para além de duas outras limitações, o serviço nas Forças Armadas e na carreira diplomática.
Ora, creio que há aqui algum desequilíbrio, uma vez que, nos termos desta proposta, um cidadão nacional não poderia prestar serviço nas Forças Armadas mas poderia ser Ministro da Defesa Nacional, tal como não poderia integrar a carreira diplomática mas poderia ser Ministro dos Negócios Estrangeiros! Há, pois, aqui algum desequilíbrio. Provavelmente, seria mais avisado encontrar uma formulação que, por exemplo, estabelecesse mais limitações em função de determinadas pastas ministeriais (incluindo estas duas que referi ou outras que considerassem adequadas), porque, a não ser assim, parece um pouco desproporcionado limitar o acesso à carreira diplomática ou ao serviço das Forças Armadas quando o exercício de cargos ministeriais de tutela sobre estas duas funções são permitidos.
Teremos, pois, de tentar equilibrar esta formulação ou para um lado ou para o outro. Aliás, creio que este problema seria resolúvel com algum bom senso. Admito que esta formulação possa estar consagrada, designadamente por instrumentos convencionais, mas não é forçoso que a Constituição tenha de adoptar essas formulações porque, naturalmente, a aplicação da norma constitucional será graduada pelo princípio da reciprocidade, através de instrumentos de direito internacional convencional. Portanto, esse não seria um problema.
Em todo o caso, parece-nos que é de ponderar devidamente qual a melhor formulação constitucional para evitar desequilíbrios que ficam mal no texto da lei fundamental.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, eu próprio também queria formular uma breve pergunta à Sr.ª Deputada Maria Manuela Aguiar, que é a seguinte: será que lhe ofereceria algum melindre ou alguma sensibilidade acrescentar um outro cargo, o de Procurador-Geral da República, que tem a seu cargo a direcção do exercício da acção penal? Ou seja, embora tendo em conta os escritos das convenções e de outros textos, mesmo textos constitucionais, pergunto se a Sr.ª Deputada não vê algum melindre e sensibilidade em que um estrangeiro, naturalmente originário de país de língua oficial portuguesa, possa exercer ou ter a seu cargo a direcção da acção penal.
Não havendo mais pedidos de palavra, tem a palavra a Sr.ª Deputada Maria Manuela Aguiar para responder.
A Sr.ª Maria Manuela Aguiar (PSD): - Sr. Presidente, começando por responder ao Sr. Deputado Narana Coissoró, diria que para dilucidar esta questão temos de olhar não só o texto constitucional como o texto convencional e o da própria regulamentação da Convenção. E o texto da Convenção é muito claro no que respeita à distinção entre estatuto de igualdade de direitos civis e políticos e dupla cidadania. Aliás, a nível popular, muitas vezes chamam-lhe a "convenção de dupla cidadania". E não se trata de uma convenção de dupla cidadania mas justamente o contrário!
A lei é muito clara quando refere, no artigo 1.º, que "os portugueses no Brasil e os brasileiros em Portugal gozarão de igualdade de direitos e deveres com os respectivos nacionais". Portanto, há uma igualdade ou uma equiparação de direitos mas não há uma aquisição de soberania. Também o artigo 2.º é claríssimo quando refere "O exercício
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pelos portugueses no Brasil e pelos brasileiros em Portugal de direitos e deveres na forma do artigo anterior não implicará a perda das respectivas nacionalidades".
O n.º 3 do artigo 7.º estabelece que "o gozo de direitos políticos no estado de residência importa a suspensão do exercício dos mesmos direitos no Estado de nacionalidade". Assim como só goza de direitos políticos no Estado de residência quem tenha a plenitude dos direitos políticos no Estado da nacionalidade. A Convenção também é muito clara a esse respeito.
Por outro lado, estes direitos dos imigrantes legais - prefiro usar a palavra "imigrante", porque tem um sentido técnico muito preciso -, isto é, os direitos que um país de imigração dá aos seus residentes limitam-se às fronteiras desse Estado. Já o referi, mas volto a fazê-lo: se o Sr. Deputado ler o artigo 11.º da Convenção verificará que o mesmo estabelece que o português ou o brasileiro no gozo da igualdade de direitos e deveres que se ausentar do Estado de residência perde esse estatuto de direitos. Quer dizer, esse estatuto de direitos não é oponível a Estados terceiros, perde-o fora das fronteiras do Estado.
Com efeito, o que se estabelece é que se o cidadão se ausentar do Estado de residência terá direito à protecção diplomática apenas do Estado da nacionalidade. Portanto, no espaço da União Europeia, os brasileiros são brasileiros e não portugueses, porque não o são, efectivamente.
Porém, o conteúdo de direitos desses imigrantes que vivem em Portugal, sejam brasileiros sejam originários de outros países de língua portuguesa, desde que sob condição de reciprocidade, correspondem aos direitos civis e políticos que eles gozam em Portugal. Quer dizer, é um conteúdo mais alargado do que o dos outros imigrantes. Creio que a lei é, toda ela, muito clara no tratamento deste ponto.
Temos de ter presente que a Constituição baliza, limita os direitos que podem ser estabelecidos por lei ordinária, mas todo este processo vai ser regulamentado por lei ordinária. Aliás, é a própria Constituição que prevê que os direitos são reconhecidos nos termos da lei - a lei que nós não estamos aqui a fazer. Em todo o caso, poderemos olhar a lei que existe e pensar que, possivelmente, o actual legislador não vai elaborar uma lei muito diferente. De resto, as perguntas exprimem um sentir que vai justamente ao encontro do estatuído na lei.
Sr. Deputado Jorge Lacão, quanto aos dados estatísticos do fluxo actual, diria que essa é uma pergunta que merece resposta, mas não é uma pergunta pertinente no que respeita à questão de fundo, porque o que aqui estamos a discutir são os direitos que vamos atribuir aos imigrantes legais, autorizados, com residência permanente, com residência autorizada em Portugal. Essa questão não deve ter a ver com o estatuto de direitos, é uma questão prévia!
O Estado português, o Governo aceita os que quer! Aliás, o que para um imigrante tem uma importância muito imediata, aquilo que, digamos, condiciona as suas possibilidades de vinda para um país e de integração nesse país não é o estatuto de direitos políticos mas, sim, o estatuto de direitos civis. Ele só vai alcançar o estatuto de direitos políticos ao fim de cinco anos - futuramente, diminuídos para três anos -, o que não é, de forma alguma, determinante de um projecto de imigração, nem o vai permitir numa primeira fase! Esse é um problema dos direitos civis, que ninguém aqui está a pôr em causa nem é o que estamos a discutir.
De qualquer maneira, vou responder à pergunta que me formulou. Temos dados estatísticos rigorosos do número de pessoas que estão legalmente a residir no País, que é o que nos interessa para efeitos de aplicação da Convenção (porque esta não se aplica aos imigrantes ilegais, aos imigrantes clandestinos, àqueles que não têm uma autorização de residência permanente). E os números que nos interessam e que relevam são aqueles que foram publicados numa notícia do Público de 10 de Maio de 2001, pois são números oficiais que lhes foram transmitidos.
Vejamos: neste momento, há 10 400 brasileiros em Portugal dados como legais e que poderão requerer, eventualmente, daqui a dois ou três anos (desconhecemos há quanto tempo eles estão em Portugal), o estatuto de direitos civis. E ainda não sabemos se poderão requerer o estatuto de direitos políticos, portanto o número será até menor. São estes, mais nenhuns!
No que respeita aos cabo-verdianos, não estamos a falar de 80 000 nem de 90 000 mas, sim, de 38 000. Estes são os números que os registos oficiais nos fornecem.
Em matéria de fluxos, Sr. Deputado Jorge Lacão, tanto quanto sei e me apercebo, ultimamente desenha-se em Portugal um enorme fluxo de imigração, muito maior do que aquele de que nos apercebemos. Digo isto porque tenho procurado aperceber-me da questão a nível local e verifico que em povoações do interior, onde nem suspeitamos que há imigrantes, encontramos imigrantes oriundos da Europa de Leste.
Neste momento, o fluxo significativo de imigrantes que se vem registando em Portugal não é oriundo de países da CPLP mas de países da Europa que não pertencem à União Europeia.
No que respeita ao contexto europeu, devo dizer que quando se levantou essa questão, como se levanta ciclicamente, confundido o conceito de cidadania europeia fundado na livre circulação com um conceito de cidadania que é completamente avesso ou, pelo menos, que ignora de todo essa questão, não a regula nem a facilita, que é o conceito de cidadania luso-brasileira, perguntei ao próprio Prof. Cavaco Silva (telefonei-lhe propositadamente) se tinha havido alguma dificuldade, se as posições iniciais do PSD, que foram de não aceitação… - como sabem, na revisão de 1989, o PSD absteve-se, tal como o PS, retirando a possibilidade de aprovação da alteração ao artigo 15.º que foi apresentada, a título individual, por alguns Deputados. Como dizia, perguntei ao Prof. Cavaco Silva se essa atitude do PSD, que era então governo, tinha sido determinada por pressões da União Europeia, mas ele respondeu-me que nunca, mas nunca, em negociação alguma, houve a menor pressão da União Europeia em relação a esta questão. Nem deve haver, porque é uma questão relativa a um estatuto interno que, realmente, não ultrapassa as nossas fronteiras.
Portanto, a resposta foi muito clara. Não é uma das personalidades que foi chamada a esta Comissão, mas possivelmente muitos outros ex-ministros que, inclusive, estão no Parlamento poderão confirmar que assim foi.
Tenho frisado que se trata de imigrantes com residência legal. E o artigo 6.º é muito claro: "A igualdade de direitos e deveres extinguir-se-á com a cessação da autorização de permanência no território do Estado ou perda da nacionalidade". Portanto, este é um estatuto que dura enquanto durar a autorização de residência; é um estatuto muito importante mas não tem a mínima autonomia em relação ao estatuto de autorização de permanência - essa
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coisa simples e burocrática que é uma autorização de permanência no território do Estado por um determinado número de anos. E, aliás, extingue se o cidadão se ausentar de Portugal por mais de cinco anos.
Segundo o artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 126/72, "O estatuto de igualdade não abrange, contudo, o direito à permanência no território português nem o direito à protecção diplomática em terceiro Estado". Portanto, a lei não pode ser mais clara: o estatuto de igualdade não abrange nem tem nada a ver com o direito de permanência. O direito de permanência é anterior, ou está concedido ou o estatuto de igualdade não pode ser requerido e, inclusivamente, caindo a autorização de permanência, cai o direito.
Penso que a lei é muito clara e o próximo legislador só terá de manter esta ideia. Aliás, o artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 126/72 também refere que "O estatuto geral de igualdade e o estatuto especial de igualdade de direitos políticos extinguem-se pela cessação da autorização de permanência no território português ou pela perda da nacionalidade brasileira". Enfim, não posso imaginar dispositivo mais claro, a nível legal - e chamo de novo a atenção para o facto de o artigo 15.º da Constituição remeter para a regulamentação por via da legislação ordinária. Portanto, o legislador ordinário terá, pura e simplesmente, de seguir este caminho.
No que respeita aos direitos que são concedidos aos portugueses nos outros países da CPLP, não há qualquer acordo bilateral, nem convenção bilateral semelhante à que foi celebrada com o Brasil, há 31 anos. Nos termos dos números seguintes do artigo 15.º da Constituição, julgo que, de entre os países da CPLP, só os cabo-verdianos gozam de direitos políticos a nível local em Portugal, justamente porque a lei da República de Cabo Verde dá aos portugueses os mesmos direitos. Portanto, em relação a todos os outros países, nem sequer há o gozo de direitos políticos a nível local. Tudo isso está por fazer.
Quando se fala de negociar estes direitos a nível da CPLP, devemos ter a preocupação de não nos orientarmos para o mínimo denominador comum. Parece-me muito importante avançar caso a caso - e com Cabo Verde, aparentemente, a curto prazo será viável celebrar uma convenção semelhante à que temos com o Brasil -, no eixo bilateral, onde os progressos com alguns países são possíveis, uma vez que não o são com a generalidade dos países da CPLP.
Sr. Presidente, não queria alongar-me muito mais mas, já agora, no que respeita a direitos políticos locais (direitos que não têm a ver directamente com esta questão), parece-me que, tal como o fazem alguns países nórdicos há muitas dezenas de anos, Portugal deveria conceder… Enfim, não estou a propor essa alteração nesta revisão constitucional, mas numa próxima revisão constitucional proporia que, ao nível da participação local, se prescindisse da reciprocidade, porque entendo que é um nível de participação política em que o Estado deve tratar todos os seus imigrantes por igual. E, nesse caso, poderíamos conceder o direito de votação a todos os países da CPLP, independentemente de os portugueses terem nesses países o mesmo direito.
Respondendo às perguntas formuladas pelo Sr. Deputado Cláudio Monteiro, e regozijando-me com a sua posição que é, evidentemente, próxima da minha - e chamo a atenção de que não só o Sr. Deputado Cláudio Monteiro como vários Deputados do Partido Socialista, embora em minoria, partilham desta posição e votaram-na favoravelmente, tanto em 1989 (o actual Primeiro-Ministro, António Guterres, e o actual Ministro dos Negócios Estrangeiros, Jaime Gama, subscreveram a proposta de alteração do artigo 15.º na revisão constitucional de 1989) como em 1997.
O Sr. Deputado Cláudio Monteiro põe em questão a expressão "direitos próprios". Esta expressão foi escolhida, se bem me lembro, pelo próprio Dr. Barbosa de Melo, que foi um dos autores da proposta, e a sua razão de ser é a seguinte: a nossa preocupação tem sido fundamentalmente a de acompanhar, a de responder ao Brasil. E o Brasil fala de direitos inerentes ao cidadão brasileiro nato, daí ter-se optado por essa expressão.
Em todo o caso, estamos abertos a negociar as expressões, porque o que importa é o espírito que preside a esta revisão; o que importa, como muito bem disse o Sr. Deputado António Filipe, é que nos concentremos na reciprocidade a dar à possibilidade de capacidade eleitoral activa e passiva para a Assembleia da República, ou de acesso aos tribunais e ao Governo, porque essas são, realmente, as três questões que estão sobre a mesa, os três grandes avanços em termos de direitos políticos que foram realizados pela Constituição brasileira de 1988. E podemos, realmente, afastarmo-nos da redacção da Constituição brasileira, aspecto em relação ao qual manifesto a maior abertura.
Sr. Deputado Luís Marques Guedes, estou muito de acordo com o que disse, e volto a chamar a atenção para o facto de não estarmos a comparar 10 milhões de portugueses com 160 milhões de brasileiros mas, sim, mais de 1 milhão de emigrantes portugueses no Brasil com 10 400 brasileiros que vivem com estatuto de permanência, autorizados, em Portugal.
Também concordo inteiramente quando diz que o Brasil não pode compreender… Ou melhor, não podemos falhar nenhuma oportunidade de fazer justiça aos brasileiros em Portugal e, através destes, aos portugueses no Brasil, porque o estatuto de direitos dos portugueses no Brasil também está a ser prejudicado - não esqueçam - com a nossa falta de reciprocidade.
Realmente, para mim tanto releva o interesse dos brasileiros em Portugal como o dos portugueses no Brasil. É igual! Tanto quero ver resolvido o problema de uns como o problema dos outros. E o Brasil não compreende esta atitude, porque o Brasil sempre privilegiou os portugueses, que é algo que nós esquecemos na relação Portugal/Brasil. Eles não esquecem porque sabem! Já mesmo no tempo de Getúlio Vargas, quando foi imposta uma quota de 2/3 de brasileiros nas empresas e nas diversas profissões, os portugueses foram excepcionados! E, desde 1946, como disse, o prazo para a naturalização no Brasil é de apenas um ano. Ou seja, a pessoa pode optar pela naturalização muito antes de poder requerer o estatuto de direitos políticos.
Julgo que é de salientar a evolução que houve na adesão dos diversos grupos parlamentares à importância da questão da reciprocidade. Em 1989, só o CDS-PP votou favoravelmente a alteração ao artigo 15.º da Constituição - e o PRD, salvo erro. Mas a votação do CDS-PP foi, realmente, oficial e unânime. Por exemplo, o argumento do PCP (e, como veio a verificar-se, era perfeitamente sério e consistente) foi apenas o de que precisavam de mais tempo para reflectir sobre a questão. E foi verdade, porque na revisão seguinte o PCP votou a favor, assim como todos os outros partidos, exceptuando o PS ou, digamos, a primeira linha que arrasta, evidentemente, a maioria do Grupo Parlamentar do PS. Mas não podemos esquecer os socialistas
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que têm combatido essa posição, com Manuel Alegre à cabeça, por exemplo, e não compreendem, também, estes 13 anos de impasse na resolução desta questão, isto é, na subida do patamar de reciprocidade.
Lembram-se, com certeza, da polémica que cercou a ida do Presidente da República ao Brasil: a Constituição foi votada no dia 3 de Setembro de 1997, o Presidente da República partiu para o Brasil no dia 4 e, portanto, apanhou esta questão ex post facto! E, nas suas declarações, remeteu a responsabilidade para a Assembleia da República, e bem. A responsabilidade continua a ser nossa, pois somos a sede própria para resolver este imbróglio.
Trata-se de procurar um novo ponto de encontro da reciprocidade; não se trata sequer de adoptar um novo modelo de cidadania, é apenas um aprofundamento, um alargamento dos direitos de um estatuto de cidadania existente.
Sr. Deputado António Filipe, a razão de ser do elenco de excepções que apresentamos visa cobrir a chefia dos diferentes órgãos de soberania. A lógica é essa. E, havendo uma bicefalia dos tribunais, acabamos por ter não quatro mas cinco excepções.
No que respeita à carreira diplomática e à carreira militar devo dizer que optámos por uma formulação mais restritiva do que a da Constituição brasileira, que apenas excepciona os cargos de oficiais e não toda a carreira das Forças Armadas, e muito mais restritiva do que a formulação da legislação de 1972, que apenas excepcionava o cargo de oficial general.
Em todo o caso, permanece a questão. Creio que a justificação de poder haver ministros em sectores da governação que estão vedados à participação dos brasileiros deriva do facto de o Governo ser um órgão colegial, um órgão da confiança política do Primeiro-Ministro e que actua sob a responsabilidade do Primeiro-Ministro. Portanto, os ministros são da sua responsabilidade, o que pode não acontecer a nível dos funcionários, que são cargos que se exercem a título individual. Penso que a justificação só pode ser essa, mas julgo que é mais uma das questões que poderemos debater.
Sr. Presidente, agradeço-lhe muito a pergunta que me quis formular, mas a justificação de se ter excluído o Procurador-Geral da República é a mesma que dei ao Sr. Deputado do Partido Comunista. É que o Procurador-Geral da República, sendo um alto cargo público, não é um órgão de soberania, é uma nomeação. Portanto, há que acautelar as nomeações. Pelo menos, a razão da ausência dessa excepção é esta.
O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado Cláudio Monteiro pediu de novo a palavra e, a esse propósito, lembro os Srs. Deputados que temos de fazer um esforço de contenção e de organização dos trabalhos, caso contrário entramos na fase do debate que teremos ocasião de realizar num segundo momento. É evidente que, por vezes, é difícil distinguir entre a apresentação dos projectos e o próprio debate, como já se viu. Em todo o caso, fazia um apelo a que tivéssemos em mente que vai haver uma fase de debate.
Tem a palavra, Sr. Deputado.
O Sr. Cláudio Monteiro (PS): - Sr. Presidente, tenho isso em mente e, aliás, quero fazer uma interpelação à mesa e não uma nova intervenção. Apenas queria solicitar, através da Mesa, que os serviços possam disponibilizar o original da proposta que foi apresentada na revisão constitucional de 1997, porque posso ter a memória já um pouco gasta e, eventualmente, estar a confundir subscrições com declarações expressas de apoio, mas tenho a noção de que havia 22 Deputados do Partido Socialista subscritores dessa proposta ou, então, houve 22 declarações expressas de apoio, ao tempo.
Julgo que essa informação é útil para que não se pense que a minha intervenção de há pouco é tão singular, tão extemporânea e tão estranha como possa parecer.
O Sr. Presidente: - Assim será feito, Sr. Deputado.
Tem a palavra o Sr. Deputado Pedro Roseta, renovando o mesmo apelo de há pouco.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Sr. Presidente, também sob a forma de interpelação à Mesa, vou um pouco mais longe: vou disciplinarmente acatar as instruções do Sr. Presidente e não entrarei no debate, embora tenha, desde o primeiro momento, partilhado com a Sr.ª Deputada Manuela Aguiar a iniciativa nesta matéria, mas revejo-me totalmente nas palavras que proferiu.
De qualquer modo, sobre esta importante matéria, gostaria que a Mesa pudesse disponibilizar, em tempo útil - é óbvio que não é preciso ser amanhã ou depois! -, uma cópia do artigo pertinente da Constituição brasileira e também, eventualmente, alguma disposição semelhante que haja nas Constituições de outros países lusófonos. Estou a pensar na de Cabo Verde, até porque sei que nos outros países essa é uma questão académica: todos sabem que este problema não se vai pôr a curto prazo em relação, por exemplo, a Angola ou a Moçambique.
Gostaria que fosse feita essa pesquisa noutras Constituições, nomeadamente no que diz respeito a Cabo Verde, bem como que nos fossem disponibilizados outros documentos pertinentes, designadamente as actas dos debates da revisão constitucional não apenas de 1987 mas de 1989 e, se possível, a iniciativa de 1994, porque também existem actas dessa revisão que foi "abortada" por razões que agora não vêm ao caso.
Portanto, interpelo a Mesa nesse sentido e, quanto ao mais, aguardarei o momento do debate para referir os pontos em que há nuances, porque a minha posição pessoal, por exemplo no que diz respeito às Forças Armadas, é a de que não há motivo para sermos mais restritivos do que os brasileiros. Mas essa é uma questão que veremos mais tarde. Efectivamente, se os brasileiros restringem essa exclusão apenas aos oficiais das Forças Armadas porquê estarmos a restringir aos sargentos, aos cabos, etc.?
Fico por aqui e espero que a Mesa possa, com a brevidade possível, sem ser excessiva, dar andamento a esta minha interpelação.
O Sr. Presidente: - Certamente, Sr. Deputado. No entanto, no que diz respeito às actas, temos seguido o método - aliás, já hoje usado -, para não se tirarem milhares e milhares de fotocópias, de distribuir um exemplar das actas por grupo parlamentar, podendo cada Sr. Deputado solicitá-las ao respectivo coordenador. Foi o método que acordámos seguir e penso que deveríamos continuar a adoptá-lo. No que diz respeito aos demais documentos, essa é uma pesquisa que a Mesa irá providenciar para que possa ser feita.
Tem a palavra a Sr.ª Deputada Maria Celeste Correia, a quem faço o mesmo apelo, porque já dei como terminada a fase de perguntas à apresentação deste projecto.
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A Sr.ª Maria Celeste Correia (PS): - Sr. Presidente, se me permite, queria apenas colocar uma questão à Sr.ª Deputada Maria Manuela Aguiar, que é a seguinte: como sabe, votei a favor da alteração deste artigo 15.º na última revisão constitucional e as razões pelas quais o fiz continuam, a meu ver, válidas. Porém, a Sr.ª Deputada avançou com dois números que me fazem uma certa confusão: 38 000 cabo-verdianos e 10 600 brasileiros que podem requerer o estatuto de direitos civis. Mas nós estamos a tratar dos imigrantes com residência permanente e essas pessoas só têm essa autorização de residência ao fim de seis anos! Ou seja, os números que citou referem-se a pessoas que têm autorização de residência permanente, ao fim de seis anos? E qual é a origem desses números?
Esta é a informação que pretendia.
O Sr. Presidente: - Para responder, tem a palavra a Sr.ª Deputada Maria Manuela Aguiar.
A Sr.ª Maria Manuela Aguiar (PSD): - Sr. Presidente, Sr.ª Deputada Maria Celeste Correia, os números que citei foram colhidos de uma notícia publicada no jornal Público, de 10 de Maio de 2001, sobre o estatuto do cidadão lusófono, notícia essa que refere que os registos oficiais indicam que residem em Portugal - não 38 000, há pouco enganei-me - 33 000 cabo-verdianos, embora se admita que o seu número ronde os 80 000. E a mesma notícia acrescenta ainda os restantes números que citei.
Penso que seria útil, uma vez que a questão aqui foi levantada, que a Comissão solicitasse os números oficiais às autoridades competentes, ao Alto Comissário para a Imigração e Minorias étnicas ou ao Ministério da Administração Interna, dos cidadãos que, neste momento, vivem em Portugal…
A Sr.ª Maria Celeste Correia (PS): - Com residência permanente, porque podem ser legalizados e não terem residência permanente!
A Sr.ª Maria Manuela Aguiar (PSD): - Exactamente, nas diferentes situações. Nesse caso, e penso que é muito pertinente que tenha levantado a questão, o número será ainda inferior. Aliás, referi esse aspecto no que diz respeito aos brasileiros, isto é, que o número seria, com certeza, inferior aos 10 400 que são avançados. Sei, por exemplo, que beneficiam, ou beneficiavam ainda há pouco tempo, do estatuto de igualdade cerca de 2000 brasileiros em Portugal.
Solicitava, pois, ao Sr. Presidente que diligenciasse no sentido de nos serem fornecidos os números oficiais dos cidadãos estrangeiros gozando dos diferentes estatutos.
O Sr. Presidente: - Sr.ª Deputada, é evidente que a Mesa irá providenciar nesse sentido junto do Ministério da Administração Interna, que certamente possui essas estatísticas e esses números.
Srs. Deputados, dou por terminada a apresentação do projecto do PSD, a propósito do artigo 15.º.
Segue-se a apresentação do artigo 34.º (Inviolabilidade do domicílio e da correspondência), naturalmente seguida das questões que os Srs. Deputados entenderem colocar, em relação ao qual foi apenas apresentada uma proposta de alteração pelo CDS-PP.
Para fazer a sua apresentação, em nome do Grupo Parlamentar do CDS-PP, tem a palavra o Sr. Deputado Narana Coissoró.
O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Primeiro, devo começar por expressar, em brevíssimas palavras, qual é a nossa concepção desta revisão constitucional. Quer o Sr. Presidente quer os demais Srs. Deputados devem ter verificado que, ao apresentar o meu projecto de revisão constitucional, o CDS-PP não invocou o facto de esta revisão constitucional ter sido necessária para trazer à ordem jurídica interna a problemática do Tribunal Penal Internacional.
Os Srs. Deputados também devem ter reparado que o nosso projecto de revisão constitucional não faz qualquer alusão ao Tribunal Penal Internacional. E não o fazemos simplesmente porque entendemos que o problema do Tribunal Penal Internacional não está suficientemente maduro na sociedade portuguesa, principalmente na sociedade jurídica e política, por isso deveria esperar mais tempo, podendo esta revisão constitucional ter lugar mais tarde, no próximo ano, já em sede de revisão constitucional ordinária.
Realmente, não vemos razão alguma para esta pressa que se imprimiu ao acordo celebrado entre o PSD e o PS sobre o TPI. E julgo que também já está decidido, no mesmo acordo, quais as alterações que terão seguimento e as que cairão nesta revisão constitucional. Parece-me que estamos aqui a fazer um "jogo de espelhos", em que se discutem muitos artigos, com muita informação e marcação de audições, para se aprovar, no fim, aquilo que já ficou antes estabelecido, à mesa de um almoço entre os líderes do PS e do PSD.
Em todo o caso, trata-se de um exercício como outro qualquer, aprende-se sempre alguma coisa nestes debates embora, mais tarde, se venha a concluir que de pouco serviu. O debate de hoje é exemplo disso mesmo.
Colocou-se o problema de saber quem inviabilizou o quê: o PS ou o PSD? Quem não quis a extensão dos direitos aos brasileiros e aos cidadãos lusófonos, etc. Contudo, foram esses dois partidos que chegaram ao acordo, depois das suas "negociatas", que nesta revisão constitucional não haveria lugar para a extensão dos direitos aos cidadãos lusófonos ou do Brasil - basta termos presente o discurso do Sr. Deputado Luís Marques Mendes, discurso que trago comigo e, se quiserem, posso lê-lo!
De facto, estas decisões são combinadas entre os dois parceiros que põem e dispõem da revisão constitucional, fixando o mínimo e o máximo, mas isso não nos dispensa de os ouvir aqui, horas e horas, falando acerca de matérias em relação às quais, eles próprios, chegaram a um consenso bilateral.
Uma vez que foi votada a abertura de um período de revisão constitucional extraordinária, o CDS-PP entendeu que deveria chamar a atenção para os pontos que lhe pareciam ser os mais importantes. E, para nós, o mais importante não era a questão do TPI, daí que o mesmo não faça parte do nosso projecto de revisão constitucional.
Cabe-me, pois, apresentar o projecto de revisão constitucional do CDS-PP, no que respeita ao artigo 34.º.
Sabemos que, hoje em dia, a luta contra o crime organizado, o crime de terrorismo e das associações de malfeitores está a consumir grande parte da actividade das nossas polícias e está colocado na agenda política.
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A criminalidade ligada ao terrorismo, ao branqueamento de capitais, à toxicodependência, ao contrabando, à corrupção e a um sem número de factores, que, não só em Portugal como na Europa e noutras partes do mundo, é cada vez mais grave e sofisticada, representa um verdadeiro risco para o normal funcionamento do Estado de direito.
O que sucede é que muitas das garantias, que estavam pensadas para uma situação normal da convivência social e política, estão a ser rompidas através da sofisticação e desvirtuação destes meios, que as organizações terroristas e a criminalidade de alto grau aproveitam e utilizam dentro das nossas fronteiras.
Um exemplo disso é o de a maior parte destes negócios serem feitos dentro de casa e de estas organizações terroristas e associações de malfeitores terem sedes onde guardam a maior parte dos objectos utilizados para o terrorismo e todos os instrumentos, todo o dinheiro, todos os armamentos, todos os seus documentos, todas as provas, etc. E actuam durante a noite, porque têm a cobertura legal, clássica, dos direitos fundamentais, de que ninguém pode ser perturbado ou atacado na sua residência ou no seu domicílio, desde o pôr do sol até ao nascer do sol.
É uma garantia clássica. Lembro que Churchill dizia: "Se alguém me bater à porta de madrugada, tenho de ter a certeza de que é o meu leiteiro". Portanto, é essa convicção democrática, de que só o leiteiro tem o direito de bater à porta de madrugada e mais ninguém, que leva a que, em todas constituições modernas e democráticas, esse direito seja consagrado.
Sucede que este direito se presta a abusos, à sua má utilização. Por isso mesmo, já há legislações, em que, em termos muito prudentes e excepcionais, se prevê a possibilidade de quebra deste "santuário", digamos, que vigora durante a noite no "domicílio" dos cidadãos.
Aliás, a nossa legislação penal já abre caminho para isso. Por exemplo, o n.º 1 do artigo 177.º do Código de Processo Penal estabelece que "A busca em casa habitada ou numa sua dependência fechada só pode ser ordenada ou autorizada pelo juiz e efectuada entre as 7 e as 21 horas, sob pena de nulidade." e, no n.º 2, que "Nos casos referidos no artigo 174.º, n.º 4, alíneas a) e b), as buscas domiciliárias podem também ser ordenadas pelo Ministério Público ou ser efectuadas por órgão de polícia criminal. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 174.º, n.º 5".
E o artigo 174.º, n.º 4, diz respeito ao "a) (…) terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida e a integridade de qualquer pessoa; b) em que os visados consintam, desde que o consentimento prestado fique, por qualquer forma, documentado; c) aquando de detenção em flagrante por crime a que corresponda pena de prisão.".
Quer dizer, desde o momento em que haja o consentimento prestado e, por qualquer forma, documentado, ou em caso de detenção em flagrante por crime a que corresponda pena de prisão, pode haver lugar à busca e à revista, mesmo fora do período entre as 7 e as 21 horas. Só que este artigo tem sido muitas vezes encarado pela jurisprudência como estando fora da autorização constitucional para tal, correndo o risco de nulidade por inconstitucionalidade, mesmo com o consentimento ou mesmo em flagrante delito, se a detenção tiver sido feita entre as 21 e as 7 horas.
Daí a necessidade de dar uma cobertura constitucional a estas hipóteses, já previstas no Código de Processo Penal. Elas representam uma circunstância absolutamente excepcional, ou porque há o perigo iminente, ou porque há o consentimento do próprio visado, ou porque há o flagrante delito, ou (agora, em quarto lugar) porque há fundado receio de que, em determinado "domicílio", estão a ser desenvolvidas, durante aquelas horas, das 21 às 7 horas, actividades por parte de associações criminosas, terroristas, de criminalidade violenta ou altamente organizada.
Esta disposição ou autorização constitucional, que já vigora na Constituição espanhola, é vulgarmente conhecida pelos terroristas como "lei da patada na porta". Portanto, na gíria terrorista seria a "patada na porta". Só que não é a "patada na porta" que está, neste momento, em cima da mesa, mas a adaptação do actual Código de Processo Penal à necessidade de os juízes não verem os seus actos inutilizados pela invocação de inconstitucionalidade, por a Constituição não dar efectivamente cobertura ao disposto no Código de Processo Penal. Portanto, é preciso compaginar aquilo que está já descrito no Código de Processo Penal, para que a actividade policial, a actividade jurisdicional e a actividade do Ministério Público não sejam desperdiçadas com uma invocação que não está no espírito do legislador constitucional, mas está certamente no texto.
Por isso, gostaríamos que esta nossa proposta de alteração ao artigo 34.º fosse debatida nesta Comissão e aceite na revisão constitucional extraordinária.
O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Deputado Narana Coissoró, como o Sr. Deputado teve ocasião de referir, esta proposta de alteração do Partido Popular aproxima-se, em alguma medida, daquilo que existe, por exemplo, na Constituição espanhola, onde (e lendo o que tenho aqui à minha frente) se refere, no artigo 18.º, que "nenhuma entrada ou busca poderá ser feita sem o consentimento do morador ou mandato judicial, a não ser em caso de flagrante delito".
A proposta de alteração apresentada pelo Partido Popular também segue a dualidade de situações permitidas na Constituição espanhola, ou seja, a de a entrada no domicílio depender ou do consentimento ou de ordem de autoridade judicial. Só que o Partido Popular acrescenta aqui o inciso "no caso de criminalidade relacionada com tráfico de estupefacientes".
Ora, a questão que quero colocar-lhe, Sr. Deputado Narana Coissoró, é se, de facto - é o que resulta da redacção mas, de qualquer modo, gostaria de saber se é essa a intenção dos proponentes -, há aqui uma restrição objectiva que é uma condição, digamos, cumulativa com o
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que vem atrás. Ou seja, o mandato judicial está vinculado à observância desta ocorrência? Isto é, só pode ocorrer um mandato da autoridade judicial no caso de criminalidade relacionada com o tráfico de estupefacientes?
Gostaria de saber se é essa, de facto, a intenção dos proponentes, porque a questão que se coloca ao PSD é esta: a ser assim, qual a hierarquia de valores - e de valores jurídico-penais - que preside a esta solução? É que, sem pôr em causa, é claro, a magnitude do problema do tráfico de estupefacientes e o fortíssimo desvalor social que ele merece da sociedade portuguesa e deve merecer da ordem jurídica portuguesa, parece-me evidente haver outras matérias que, porventura, merecem um desvalor tão grande e que, em termos de hierarquia, poderão ou não - e era essa a opinião que gostaria de ouvir da parte do CDS-PP - ser colocadas no mesmo plano. Para lhe dar dois exemplos e não me ficar apenas pelo abstracto, pergunto-lhe: porquê o tráfico de estupefacientes e por que não o tráfico de crianças ou de pessoas? Porquê o tráfico de estupefacientes e por que não as associações criminosas ligadas ao terrorismo?
Isto só para dar exemplos, o Sr. Deputado compreenderá. Ou seja, tem de haver aqui um critério de hierarquização de valores jurídico-penais, pelo que gostava de saber à luz de que raciocínio, de que prioridades e hierarquias politicamente estabelecidas é que o Partido Popular avança para esta proposta (se estou a fazer a leitura correcta) e não, porventura, para uma proposta diversa, sobre esta matéria.
O Sr. Presidente: - Para responder, tem a palavra o Sr. Deputado Narana Coissoró.
O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Sr. Presidente, Sr. Deputado Luís Marques Guedes, agradeço-lhe a questão colocada.
Como deve ter verificado, o que dizemos na nossa proposta de alteração do artigo 34.º é que "A entrada no domicílio de qualquer pessoa durante a noite depende da verificação de um dos seguintes pressupostos: a) o consentimento do visado, ou visados;". Com isto, damos cobertura às alíneas a), b) e c) do n.º 4 do artigo 174.º, onde se diz: "Ressalvam-se das exigências contidas no número anterior as revistas e as buscas efectuadas por órgão de polícia criminal nos casos: a) de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa; b) em que os visados consintam, desde que o consentimento prestado fique, por qualquer forma, documentado; ou c) (…)". A única coisa que não havia era a habilitação constitucional para esse efeito. Assim, inserindo o consentimento do visado ou visados na própria Constituição, no artigo 34.º, já têm cobertura constitucional as alíneas a), b) e c) do n.º 4 do artigo 174.º do Código de Processo Penal.
Por que é que nós aqui optámos pela "criminalidade relacionada com tráfico de estupefacientes"? Porque, segundo as informações que temos, a Polícia Judiciária e alguns criminalistas consideram que o tráfico de estupefacientes não cabe no terrorismo, nem na criminalidade violenta ou altamente organizada, já que é um crime a se, não tendo de estar, ou muitas vezes não estando, associado ao terrorismo, não estando necessariamente associado à criminalidade violenta e podendo até não ser altamente organizado. Porém, pode haver - e, efectivamente, há - criminalidade relacionada com tráfico de estupefacientes que, sem ter estas características, de terrorismo, de criminalidade violenta ou altamente organizada, prejudique a sociedade portuguesa. Quer dizer, este tráfico de estupefacientes pode ser feito com muitos milhões de dólares, sem recorrer à violência, à criminalidade organizada ou ao terrorismo, da maneira como estes conceitos são trabalhados e tratados tanto na doutrina criminalista como na jurisprudência dos nossos tribunais ou na prática das nossas polícias.
Foi isso que nos levou a escrever claramente "estupefacientes", porque, quanto aos outros, para lhe dizer a verdade, indagámos sobre a prostituição, o tráfico de brancas, armamentos, etc., e a informação que colhemos foi que estes casos são subsumidos na criminalidade violenta ou altamente organizada.
O Sr. Deputado fez bem em perguntá-lo. Também tive a mesma dúvida no início. Porém, até à próxima discussão deste artigo, vou munir-me de mais elementos que me habilitem a dizer-lhe por que razão, e se efectivamente, o tráfico de brancas, armas, etc., cabem ou não na criminalidade violenta ou altamente organizada.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Jorge Lacão, tem a palavra.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, em primeiro lugar, quero colocar uma dúvida relativamente à exposição inicial do Sr. Deputado Narana Coissoró, em face dos artigos do Código de Processo Penal que foram invocados.
No que se refere ao Código de Processo Penal, creio que o esforço aí feito foi no sentido de elaborar uma norma conforme à Constituição no que diz respeito ao cumprimento do disposto no n.º 3 do artigo 34.º da Constituição, mas, sobretudo, no que diz respeito ao n.º 2, quando se determina que a entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade tem de ser sempre ordenada pela autoridade judicial competente.
Ora, nos casos do n.º 4 do artigo 174.º e, mais à frente, na busca domiciliária, no artigo 177.º, o que o Código de Processo Penal admite é que haja situações excepcionais em que a entrada no domicílio ocorra, ou por iniciativa do órgão de polícia criminal, ou por determinação do Ministério Público, sendo essas iniciativas, necessária e imediatamente, subordinadas à validação do juiz de instrução criminal.
Ou seja, neste contexto, não há, no conjunto dos artigos do Código de Processo Penal, norma que excepcione a restrição relativa à proibição de entrada no domicílio durante a noite. E, para uma melhor delimitação do que é que se entende por esse período nocturno, no que diz respeito às buscas domiciliárias, o Código de Processo Penal estabelece que elas só podem ocorrer entre as 7 e
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as 21 horas, sob pena de nulidade. E aqui sem qualquer tipo de excepção.
Pergunto ao Sr. Deputado Narana Coissoró se, de facto, concorda com esta compreensão do Código de Processo Penal que acabei de referir.
Posto isto, e admitindo que seja como eu disse, subsiste o fundamento da questão suscitada pela proposta do CDS-PP, que é, de facto, um problema que nos interpela - tenho de o admitir.
Em primeiro lugar, interpela-nos quanto à compreensão histórica da razão de ser do disposto actualmente na nossa Constituição.
Esta disposição vigora na Constituição Portuguesa desde a sua formação originária, em 1976, e tem um significado histórico muito preciso. A sociedade portuguesa tinha acabado de sair de um período extremamente traumático, em que a violação dos direitos fundamentais era constante e em que a segurança e o espaço de liberdade e de protecção das garantias individuais era frequentemente ameaçado pelo poder discricionário do regime ditatorial. Consequentemente, esta norma teve uma formulação lapidar: a de garantir que, em democracia e em Estado de direito, haveria uma necessária garantia e um necessário respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos, designadamente o direito à privacidade e à inviolabilidade do seu domicílio, bem como da sua correspondência.
Só que, enquanto que em relação à inviolabilidade da correspondência é a própria Constituição que admite as situações excepcionais em que, de acordo com regras garantísticas de cautela processual e de controle jurisdicional, é possível haver acesso à correspondência, no que diz respeito à inviolabilidade do domicílio a Constituição já não previu excepções.
Estamos agora confrontados com esta proposta do CDS-PP e com a questão de saber se, na ponderação de valores e dos interesse penais fundamentais, há uma melhor garantia dos direitos individuais restringindo de maneira absoluta a possibilidade de acesso ao domicílio no período nocturno, ou se, para garantir certos direitos fundamentais, designadamente de ordem pública, de combate à criminalidade, até das vítimas, em certas circunstâncias excepcionais, não deverá admitir-se ou prever-se a possibilidade de acesso ao domicílio nesse período nocturno.
O Sr. Deputado Narana Coissoró, ao apresentar-nos o projecto do CDS-PP, reporta essa possibilidade de excepção exclusivamente à criminalidade relacionada com o tráfico de estupefacientes,…
O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Não, não.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Deputado, fá-lo no que diz respeito à delimitação dessa possibilidade mediante ordem da autoridade judicial - para ser mais preciso.
Evidentemente, a questão que se nos coloca é muito semelhante à que o Sr. Deputado Luís Marques Guedes suscitou há pouco. Sendo evidente que o combate ao tráfico de estupefacientes é uma prioridade absoluta no combate à criminalidade, há que saber se, numa lógica harmonizada dos valores penais e processuais em causa, faz sentido excepcionar neste domínio, eventualmente não tratando de forma semelhante os crimes de terrorismo, a criminalidade violenta e altamente organizada, o tráfico de armas ou alguns crimes desta natureza.
Em segundo lugar, a proposta do CDS-PP interpela-nos também para o problema dos limites: onde estão os exactos limites para circunscrever esta norma de excepção? E penso que esses exactos limites também teriam que ser delimitados com extraordinário rigor.
Colocando uma dúvida interpretativa inicial, levantei uma segunda questão para saber se o CDS-PP admitiria repensar a sua própria proposta no sentido da harmonização daquela tipologia de crimes que, por uma natureza de gravidade semelhante, justificasse igual forma tratamento.
Finalmente, quero dizer aos Deputados do CDS-PP, embora não antecipando o período do debate, que nós também estamos muito interessados em conhecer o ponto de vista de outros eminentes constitucionalistas e personalidades que convidámos para reflectir sobre aspectos da nossa ordem jurídico-constitucional, no sentido em que entendemos que este é um tipo de medida que deve ser tomada em nome de um espectro de largo consenso, e que vale a pena testar a existência desse mesmo consenso.
Para concluir, isto significa que, sem antecipar qualquer posição, designadamente do grupo parlamentar do PS, pela parte que me toca, não deixo para já de ser sensível às preocupações que fundamentaram a proposta do CDS-PP.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, não havendo mais inscrições, tem a palavra o Sr. Deputado Narana Coissoró, para dar os esclarecimentos que bem entender.
O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Sr. Presidente, os esclarecimentos a dar são poucos. O que constatamos é que o próprio artigo 34.º da Constituição fixa vários graus para a protecção da inviolabilidade de domicílio e de correspondência. Este artigo prevê o sigilo de correspondência e dos outros meios de comunicação privada, a entrada no domicílio de outra pessoa durante a noite, com ou sem consentimento, e a ingerência das autoridades públicas nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação social.
Há uma inviolabilidade que é própria do dia, há outra inviolabilidade que é assegurada de noite. À noite, a autoridade judicial já não pode ordenar a entrada no domicílio de uma pessoa contra a sua vontade, é mesmo necessário o consentimento dessa pessoa. É por essa razão que se coloca o problema de substituir o consentimento pela autorização judicial nos casos em que o proprietário, ou o residente da habitação, promova actividades delituosas graves - têm de ser sempre graves - e, efectivamente, não dê o seu consentimento. É isto que está em causa e é por esta razão que queremos esta cobertura constitucional.
De qualquer modo, estão sempre fora de causa todos aqueles casos em que não haja terrorismo, alta criminalidade, associação de malfeitores, prática de crimes em flagrante delito. Portanto, só em casos muitíssimo excepcionais, presididos pelo juiz, é que terá lugar esta excepção, e também no caso do tráfico de estupefacientes.
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O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, não havendo mais inscrições, dou por terminada a apresentação do projecto de revisão constitucional do CDS-PP, relativo ao artigo 34.º.
Antes de dar por concluídos os nossos trabalhos, vou fazer um pequeno sumário dos documentos solicitados, para que não haja dúvidas sobre essa matéria.
Vejamos: os Srs. Deputados solicitaram as actas das revisões constitucionais em que se discutiu o artigo 15.º, que serão recolhidas e distribuídas - um exemplar - a cada grupo parlamentar. Os Srs. Deputados que tiverem interesse poderão pedir a respectiva cópia, podendo até pedi-la desde já, se o entenderem.
Também foi pedido o artigo da Constituição brasileira relativo a esta matéria e, eventualmente, uma pesquisa sobre outras Constituições de países de expressão portuguesa, sendo certo que existe alguma coisa na Constituição de Cabo Verde, mas não noutros países - mas pode fazer-se essa pesquisa, embora não haja notícia de grandes alterações nesta matéria.
Finalmente, foi-me pedido que oficiasse ao Ministério da Administração Interna (MAI), solicitando os elementos disponíveis sobre cidadãos estrangeiros em Portugal, oriundos de países de expressão portuguesa, distinguindo, tanto quanto possível, as várias situações em se encontram.
É evidente, todos o sabemos, que os números relativos às situações ilegais são o que são. Portanto, naturalmente, os números oficiais a que teremos acesso serão inferiores aos reais, mas o ofício irá um pouco neste sentido.
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, peço a palavra.
O Sr. Presidente: - Faça favor, Sr. Deputado.
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, apenas queria fazer um pequena precisão relativamente à questão do artigo 15.º.De resto, daí já resultou, pelo que percebi, algum equívoco, até por um comentário lateral que o Professor Narana Coissoró fez há pouco.
Essa busca relativamente ao artigo 15.º, nomeadamente no que diz respeito à revisão constitucional de 1997, deve ser feita nas actas do Plenário e não da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional (CERC), porque essa matéria não foi objecto de trabalho, nem de negociação política na Comissão. Existiu uma proposta autónoma, por isso é que não consta dos trabalhos da CERC, apresentada por um conjunto de Deputados de todas as bancadas, que foi presente no próprio Plenário. Portanto, essa busca deverá ser feita nas actas da discussão e votação em Plenário.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, já agora queria sublinhar que, nessa altura não foi apresentada apenas uma proposta no Plenário, também foi apresentada uma do PS que não foi aprovada.
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Houve duas propostas apresentadas pelo PS!
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Exactamente! Até é capaz de haver duas…
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Uma foi apresentada de manhã, outra à tarde!
O Sr. Jorge Lacão (PS): - O Partido Socialista é assim, costuma empenhar-se em conseguir consenso!
O Sr. Presidente: - Então, em relação à revisão constitucional de 1997, serão requeridas as actas do Plenário.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Sr. Presidente, peço a palavra.
O Sr. Presidente: - Faça favor, Sr. Deputado.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Sr. Presidente, o Sr. Deputado Luís Marques Guedes antecipou-se, porque também eu ia dizer o mesmo.
Sem me repetir, queria frisar bem - o Sr. Presidente não explicitou, mas penso que é o que estava no seu pensamento - que em relação às revisões anteriores não é assim.
Na iniciativa de 1994, não houve discussão em Plenário, porque foi uma revisão "abortada". Portanto, quanto a essa, estamos exactamente perante a situação contrária: não houve debate no Plenário, mas houve em Comissão e há actas dessas reuniões.
Em relação à revisão constitucional de 1989, julgo que a pesquisa deverá ser feita nas duas sedes, porque tenho a impressão - enfim, já lá vão 12 anos - de que, além do debate em Plenário, terá havido uma referência esporádica a esta matéria na Comissão.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, será feita essa pesquisa, designadamente tendo em conta os esclarecimentos que foram prestados em relação à revisão de 1997, de que não há actas de Comissão mas, sim, actas de Plenário. Também em relação às revisões anteriores será feita uma pesquisa genérica sobre o artigo 15.º, os respectivos debates, propostas apresentadas, etc.
Srs. Deputados, terminámos os nossos trabalhos por hoje. Reuniremos na próxima sexta-feira para concluir esta fase da apresentação e dos esclarecimentos.
Está encerrada a reunião.
Eram 12 horas e 15 minutos.
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A DIVISÃO DE REDACÇÃO E APOIO AUDIOVISUAL
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