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V REVISÃO CONSTITUCIONAL
Comissão Eventual para a Revisão Constitucional
Acta n.º 5
Reunião do dia 5 de Junho de 2001
SUMÁRIO
A reunião teve início às 10 horas e 10 minutos.
Relativamente aos projectos de revisão constitucional n.os 1/VIII (PSD), 2/VIII (PS) e 3/VIII (CDS-PP), foi ouvido pela Comissão o Sr. Procurador-Geral da República (Dr. Souto Moura), que respondeu a questões do Sr. Presidente (José Vera Jardim) e dos Srs. Deputados Luís Marques Guedes (PSD), Jorge Lacão (PS), Narana Coissoró (CDS-PP), Pedro Roseta (PSD), Alberto Costa (PS), Bernardino Soares (PCP) e Guilherme Silva (PSD).
Foi também ouvido o Sr. Bastonário da Ordem dos Advogados ( Dr. Pires de Lima), que respondeu a questões dos Srs. Deputados Narana Coissoró (CDS-PP), Pedro Roseta (PSD), Luís Marques Guedes (PSD), António Filipe (PCP), Maria Manuela Aguiar (PSD) e Jorge Lacão (PS).
O Presidente encerrou a reunião eram 13 horas e 12 minutos.
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O Sr. Presidente (José Vera Jardim): - Srs. Deputados, temos quórum, pelo que declaro aberta a reunião.
Eram 10 horas e 10 minutos.
Srs. Deputados, como todos sabem, está prevista para hoje uma audição com o Sr. Procurador-Geral da República. Começaria por, em meu nome e em nome de todos os Srs. Deputados que fazem parte desta Comissão, agradecer ao Sr. Procurador-Geral da República a disponibilidade que manifestou, desde logo, para vir a esta Comissão prestar-nos a sua ajuda nesta tarefa extremamente sensível, que é uma revisão constitucional.
Vamos ouvir, naturalmente, com toda a atenção o Sr. Procurador-Geral da República, a quem pedimos para intervir sobre os pontos que mais directamente lhe interessam, sem prejuízo de se poder pronunciar, se assim o entender, sobre outros aspectos e outros artigos constantes dos vários projectos de revisão constitucional apresentados pelas diferentes bancadas.
Tínhamos pensado que os aspectos específicos sobre os quais seria mais importante, para nós, ouvi-lo seriam aqueles que se prendem com os artigos 7.º, designadamente com o Tribunal Penal Internacional (TPI), e 34.º, em matéria de buscas domiciliárias, que têm o seu regime próprio estabelecido na lei para além das referências constitucionais. E, finalmente, gostaríamos de o ouvir sobre a matéria da construção de um espaço de liberdade, de justiça e de segurança na União Europeia, em relação à qual também foi apresentado uma proposta.
Seriam esses os três aspectos que pensámos que seriam da maior utilidade ver abordados por esta audição do Sr. Procurador-Geral, sem prejuízo, como disse, se assim o entender, de poder pronunciar-se sobre outros temas.
Mais uma vez, renovo os nossos agradecimentos pela sua presença, pela sua disponibilidade, Sr. Procurador-Geral.
Segundo o método de trabalho acordado, começaríamos com uma intervenção inicial, de cerca de 15 minutos - embora os tempos não estejam marcados de uma forma estanque -, seguida das questões que os Srs. Deputados entenderem colocar e, finalmente, teríamos uma nova intervenção do Sr. Procurador-Geral, podendo ainda haver, se houver tempo (espero que sim), mais questões e algum debate.
Tem a palavra, Sr. Procurador-Geral da República.
O Sr. Procurador-Geral da República (Souto Moura): - Sr. Presidente, cumprimento, evidentemente, todos os presentes e reitero toda a minha disponibilidade, nesta e noutras comissões, para poder dar um parco contributo à produção legislativa desta Casa.
Em relação aos 15 minutos que me assinalou, temo ficar aquém desses 15 minutos! Porquê? Porque me parece que os comentários a tecer, sobretudo em relação aos dois artigos que citou, se cifram em bastante pouco, na medida em que não oferecem especiais reservas nem críticas. Além de que há aqui questões que são, diria, de opção política e, portanto, não me competirá, a mim, manifestar-me sobre elas.
Começando exactamente pelo tema do Tribunal Penal Internacional, a minha opinião é a de que a opção que se seguiu é adequada, correcta, havendo um ou outro ponto no Estatuto de Roma que poderia "beliscar" a nossa Constituição. Aliás, foi dito e glosado que eu me teria manifestado no sentido de nem sequer ser necessária a revisão constitucional, por isso aproveito a oportunidade para informar que essa opinião que exprimi, e que apontaria em tal sentido, foi emitida imediatamente antes da presidência portuguesa da União Europeia. De alguma maneira, o tempo de que dispus para elaborar o parecer que fiz na altura foi muito limitado, mas mantenho aquilo que disse, embora aceite como eventualmente mais prudente, mais realista e politicamente mais correcto que haja uma revisão constitucional. Portanto, estou com a revisão constitucional, do ponto de vista da minha opinião pessoal.
É evidente que esta revisão constitucional - que, suponho, foi motivada sobretudo pela ratificação do Estatuto de Roma - arranca de uma problemática em que não me compete, enquanto Procurador-Geral, dizer se "sim" ou "não"; isto é, na função de garantir a observância das leis, se a Convenção funciona como lei, compete-me apenas acatá-la, uma vez estando em vigor e nada mais.
Há uma opção política por trás de todo este processo que leva a ratificar ou não o Estatuto de Roma, opção essa que me é estranha, isto enquanto Procurador-Geral. É evidente que, enquanto cidadão, poderei ter a minha opinião e suponho que foi isso que, de alguma maneira, transpareceu num artigo que publiquei há uns tempos. Portanto, posso dizer que, pessoalmente, entendo que é um passo positivo a dar a ratificação deste Estatuto de Roma.
Em termos de compatibilização com a nossa Constituição, e tendo em conta as propostas quer do PSD quer do PS, devo dizer que esta última parece-me a mais adequada, porque é aquela que, numa frase, concilia todos os interesses e, segundo creio, foi a solução seguida em França - aliás, suponho que a proposta do PS corresponde, praticamente, à tradução da expressão francesa e, realmente, simplifica imenso, resolve todos os problemas, ultrapassa as dificuldades e parece-me ser o bom caminho.
No entanto, há aqui uma diferença que me parece muito importante e que é a seguinte: a proposta do PSD faz uma alteração ao artigo 7.º, que se cifra no acrescentar de um número (o n.º 7), deixando de lado toda a problemática da União Europeia. Isto é, aquilo que na proposta do PS aparece como sendo um acrescento, através da expressão "e de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça", estará ausente na proposta do PSD.
Portanto, a grande questão é a de saber se é ou não útil este aditamento. É evidente que, se se introduzir este aditamento ao artigo 7.º, a seguir ao propósito de realização da coesão económica e social, o preceito que se refere directamente ao Tribunal Penal Internacional ficará relegado para o fim da Constituição, para o artigo 298.º-A. Ou seja, terão de existir dois preceitos.
Se entrarmos mais em detalhe na proposta do PSD relativa ao artigo 7.º, em princípio, a leitura deste preceito não me merece qualquer reparo nem objecção do ponto de vista estritamente jurídico, legal. Há, no entanto, um comentário que poderia fazer: onde se diz "Portugal pode, em condições de complementaridade face à jurisdição nacional" poder-se-á dizer que estas condições de complementaridade resultam, à saciedade, do próprio Estatuto. Isto é, no preâmbulo, penúltimo parágrafo, nos artigos 1.º e 17.º está claramente estabelecido que existe uma relação de complementaridade entre a jurisdição do Tribunal Penal Internacional e a jurisdição nacional. Pode
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haver algum interesse do ponto de vista político em sublinhar esta ideia de complementaridade, mas do ponto de vista estritamente jurídico parece-me que não é necessário.
Inclusivamente, se se pensar numa declaração aquando da própria ratificação, suponho que o sublinhar desta ideia de complementaridade poderá constar dessa mesma declaração.
Em relação à proposta do PS, de alteração ao n.º 6 do artigo 7.º, vejo com bons olhos a introdução da expressão "e de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça", porque ficará claro, do meu ponto de vista, que a União Europeia deixou de ser um espaço de coesão económica e social estrito. E há aqui uma chamada de atenção clara para aquele que é o terceiro pilar pós-Maastricht - a construção deste "espaço de liberdade, de segurança e de justiça" tem a ver, no fundo, com os assuntos internos e com a justiça.
Julgo, pois, que a ideia de sublinhar uma União Europeia a este nível é positiva e deve avançar-se por esse caminho, porque tem uma dignidade mais do que suficiente para figurar na nossa Constituição, mais concretamente neste n.º 6 do artigo 7.º.
Para não passar para outro assunto, a expressão que consta da proposta do PS, do artigo 298.º-A, "Portugal pode reconhecer a jurisdição do Tribunal Penal Internacional instituído pelo Estatuto de Roma (...), nas condições nele previstas.", parece-me seca, directa, simples e não me merece qualquer reparo nem sequer comentário. Volto a dizer que se justifica esta expressão neste artigo se se optar pela modificação do n.º 6 do artigo 7.º. E, como me perece positiva esta modificação, acolheria de bom grado estas duas alterações: modificação da redacção do n.º 6 do artigo 7.º e acrescento, no fim, de um artigo relativo ao Tribunal Penal Internacional, com o destaque que lhe é dado, isto é, através de um artigo próprio.
Se passarmos à proposta do PSD relativa ao artigo 15.º - embora seja um dos tais artigos que não estaria na mente do Sr. Presidente tratar comigo -, uma leitura breve e sem grande profundidade leva-me a colocar a seguinte questão: porquê destacar os cidadãos da República Federativa do Brasil dos Estados de língua oficial portuguesa? Deve haver uma razão, mas confesso que não a identifico, à primeira vista. Embora o Brasil seja uma grande nação e um país irmão, pergunto se tal não poderá, inclusivamente, levantar alguns problemas de relacionamento com todos estes países.
A actual redacção do n.º 3 do artigo 15.º utiliza a expressão "cidadãos dos países de língua portuguesa", na proposta do PSD utiliza-se a de "cidadãos da República Federativa do Brasil e dos demais Estados de língua oficial portuguesa, com residência permanente em Portugal, (...)". A expressão "com residência permanente em Portugal" pode ser tomada como um qualificativo só dos habitantes dos demais Estados de língua oficial portuguesa e, em relação aos da República Federativa do Brasil, deixa de ser um requisito necessário.
Quanto ao mais, não tenho qualquer comentário a fazer.
Passaria, então, para a questão das buscas domiciliárias (artigo 34.º). Aqui, confesso que tenho alguma dificuldade, do ponto de vista do jurista e do processualista, em aceitar esta solução, na medida em que entendo que há uma protecção absoluta da habitação para efeitos de buscas durante a noite, protecção absoluta que tem razão de ser.
Com esta proposta quebra-se essa protecção, e quebra-se através de um requisito que pode existir ou não, conjugado com outro: a questão do consentimento do visado e a ordem de autoridade judicial competente, apenas no caso de criminalidade relacionada com tráfico de estupefacientes.
A primeira dúvida que me surgiu foi esta: porquê (num artigo que é da Constituição) restringir a um tipo de crime muito específico esta abertura da possibilidade de se fazerem buscas no domicílio durante a noite? Suponho que, em técnica legislativa, na Constituição, não se deveria mencionar um concreto tipo de crime para justificar uma determinada medida. É sempre difícil afirmar que "este e só este" justifica esse tipo de medida, sobretudo porque, ao lado do tráfico de estupefacientes, há, realmente, outros tráficos e outros crimes tanto ou mais graves.
É evidente que a incidência do tráfico de estupefacientes é muito grande, preocupa-nos talvez mais do que outro tipo de criminalidade grave. Não obstante, seria da opinião de que, tratando-se de uma medida de processo penal, não deve estar ao serviço de apenas um crime e deve ser facultada para todo o tipo de criminalidade que tenha a gravidade do tráfico de estupefacientes. Não sei qual seria a alternativa aqui, mas suponho que isto reclamaria uma alteração do Código de Processo Penal e, portanto, remeteria para os termos da lei, ou para os casos que a lei designasse, aqueles em que poderia haver esse tipo de actuação. Mas, na Constituição, restringir só a um tipo legal de crime… Nem sequer pode dizer-se "tipo legal de crime", pois tráfico de estupefacientes é, se calhar, uma expressão mais vaga porque abarca associação criminosa para o tráfico de estupefacientes.
A grande objecção que me parece poder ser feita aqui é quanto a esta alternativa: "(…) um dos seguintes pressupostos: a) O consentimento do visado, ou visados; b) Ordem de autoridade judicial (…)". Por mim, mostrar-me-ia relutante em aceitar como suficiente esta condição "consentimento do visado, ou visados" - qualquer agente policial, a qualquer hora da noite, entra na casa de quem quer que seja com o objectivo de fazer uma busca desde que haja consentimento dos visados. Parece-me que é realista pensar que o consentimento dos visados nestas condições é prestado sempre por quem está numa situação de grande inferioridade, de grande fragilidade.
De maneira nenhuma quero duvidar da correcção da actuação das nossas polícias, o que é certo é que este é um consentimento que se rodeia de um circunstancialismo muito próprio, o qual, eventualmente, durante o dia, não teria sido dado, pelo menos da mesma maneira.
Depois, há sempre a questão de se pensar que uma negativa pode acarretar represálias, há o medo dessas represálias. Diria que um consentimento do visado, dado nestes termos, durante a noite, não tem o grau suficiente de liberdade, de autodeterminação da pessoa, que permita considerar suficiente esse consentimento para que haja esta invasão da privacidade, quando não da intimidade destas pessoas.
Assim sendo, parece-me que o "consentimento do visado, ou visados" deveria ser banido deste preceito mas, a ser aceite, então, eventualmente e no limite, como condição para entrada na casa das pessoas durante a noite, poderia substituir-se já não digo por autorização da autoridade judicial, mas pela presença da autoridade judicial. Parece-me que é um valor de tal maneira importante que se justifica uma equiparação clara, por exemplo, ao que acontece com os escritórios de advogados ou de médicos, em que tem de ser o juiz a presidir à própria diligência. No
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limite, se se entender que isto é mesmo necessário, então, haveria um magistrado judicial a presidir quer às buscas nos escritórios de advogados e de médicos, quer às buscas domiciliárias feitas durante a noite. Neste momento, não quero pensar no que será a reacção dos magistrados judiciais a uma proposta destas…
No entanto, em termos de garantia para as pessoas, passar de uma protecção absoluta para, digamos, um facilitar das coisas, como aqui está previsto, parece-me uma mudança exagerada. Portanto, se, em termos de política criminal, se entende que é mesmo necessário entrar na casa das pessoas durante a noite, então, que se ponha a garantia máxima e essa é, não a autorização de um juiz mas a própria presidência de um juiz à diligência. Isto em relação a este preceito.
É evidente que os outros preceitos que vêm a seguir são opções políticas que não me merecem especiais comentários. Nada tenho contra nem a favor, acho que "sim, senhor" se assim for entendido.
O Sr. Presidente: - Sr. Procurador-Geral da República, muito obrigado pela sua exposição que certamente foi muito útil para, agora, podermos manter algum diálogo sobre os vários artigos em relação aos quais se pronunciou.
Está inscrito, em primeiro lugar, o Sr. Deputado Luís Marques Guedes, a quem dou a palavra desde já.
Faça favor.
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Procurador-Geral, queria colocar-lhe algumas questões relativamente à sua exposição inicial, para precisar algumas das nossas preocupações, começando pela sequência normal dos artigos e pegando na questão do TPI.
Tomei nota de que, na breve apreciação que fez das propostas que estão sobre a mesa, mencionou expressamente a eventual dispensabilidade da referência expressa às condições de complementaridade em que a jurisdição do Tribunal Penal Internacional poderia ser reconhecida pela ordem jurídica portuguesa, uma vez que - e tomei nota das suas palavras - "resulta à saciedade do próprio Estatuto esse princípio da complementaridade".
A questão que quero colocar ao Sr. Procurador-Geral é a de saber se não pensa que o problema deve colocar-se exactamente para que não fique a ideia de que Portugal adere à Convenção independentemente do que sejam as suas próprias regras. Ou seja, como sabemos, o Estatuto tem condições de revisão própria, as quais, de resto, estão estabelecidas e reguladas no próprio Estatuto e, de hoje para amanhã, nalguns casos, como, por exemplo, quanto ao problema das penas e por impulso português, deverão, porventura, vir a ser alteradas e revistas. Quanto a esta questão da complementaridade, também nada nos garante que fique ad aeternum no Estatuto.
Portanto, a questão concreta que quero colocar-lhe é a de saber se, independentemente de, na actual versão inicial do Estatuto, ser evidente que está lá o princípio da complementaridade, não entende que o mesmo é suficientemente importante como justificativo para a adesão de Portugal a esta semente da criação de uma justiça penal internacional, se não entende que esta é uma das condições, um dos pressupostos básicos que podem justificar a adesão de Portugal. Pergunto-lhe, pois, se não considera que a inscrição no próprio texto da Constituição, seguramente não só reforça muito a posição dos futuros negociadores portugueses nas normais revisões do Tratado e na reapreciação do Estatuto do Tribunal como, além disso, assegura, tranquiliza, estabiliza, diria eu, em termos de ordem jurídica interna, a situação relativamente às preocupações que podem advir do facto de haver esta partilha de soberania.
É que, como o Sr. Procurador-Geral bem sabe, quando estamos a falar em termos de justiça, e particularmente justiça penal, esta é, seguramente, uma das áreas em que, imediatamente, deve ter-se a consciência de que todas as adesões a jurisdições estranhas à ordem jurídica nacional são partilhas de soberania.
Portanto, por estes considerandos que acabei de fazer e independentemente de todos sabermos e de ser um dado factual que, no actual texto do Estatuto, está inscrito, de uma forma clara, o princípio da complementaridade, pergunto-lhe se não entende que esse princípio não é em si um valor próprio que o texto da Constituição Portuguesa deve salvaguardar, sob pena de, de hoje para amanhã, numa eventual evolução do próprio Estatuto, poder perder-se, o que, para nós, é essencial, isto é, o problema que resulta da questão da complementaridade. Ou seja, não entende que, perante a constatação de que, face à ordem jurídica portuguesa, relativamente aos cidadãos nacionais prioritariamente mas a qualquer outro tipo de cidadãos encontrados no espaço português, não haverá razão para serem entregues ao Tribunal, a não ser porque não deve haver uma demissão da ordem jurídica portuguesa e dos tribunais portugueses para o julgamento deste tipo de criminalidade?
Aqui acrescento uma segunda questão que, não tendo a ver expressamente com as alterações ao texto da Constituição, será como que uma decorrência.
Assim - e penso que não perderemos muito tempo com isso, antes pelo contrário, considero que até poderemos ganhar algum tempo -, aproveitaria desde já para colocar à consideração do Sr. Procurador-Geral se gostaria de dar alguma opinião pessoal relativamente a uma questão que, tal como o PSD já expressou publicamente que iria fazer, e fará, é a da necessidade de adequação da ordem jurídica penal portuguesa, por forma a absorver todas as tipificações criminais que resultam do Estatuto, exactamente para garantir que este princípio da complementaridade não fica apenas como um princípio vago e que à ordem jurídica portuguesa e aos tribunais portugueses é, de facto, conferida a legitimidade e a plena competência, em primeira instância, para julgamento de todo o tipo de situações que actualmente estão tipificadas neste Estatuto do Tribunal Penal Internacional.
É que, relativamente a alguns dos crimes, como o genocídio e a escravatura, existem também tipificações criminais próprias na nossa ordem jurídica, mas estas não coincidem exactamente, em alguns aspectos, com as circunstâncias que estão previstas no Estatuto do Tribunal, o que acontece, manifestamente, por exemplo, relativamente aos crimes de guerra e, de hoje para amanhã, também aos crimes de agressão que, ainda não estando tipificados, já estão previstos e que, a seu tempo, serão tipificados no Estatuto do próprio Tribunal.
Pergunto ao Sr. Procurador-Geral se não considera que, para que esta complementaridade não seja um princípio abstracto e passe a ser um valor que, na prática, é observado e respeitado pelos tribunais portugueses, há a necessidade de ser feita uma adequação.
Quanto à questão do Tribunal, deixo-lhe estas duas pequenas notas.
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Quanto à questão do espaço judiciário europeu - chamemos-lhe assim -, devo dizer que também a nós, Partido Social Democrata, não parece minimamente mal esta proposta que é avançada pelo projecto de revisão constitucional apresentado pelo Partido Socialista. Só que a questão decisiva não é a de saber se fica mal ou fica bem; para nós, a questão decisiva é a de saber se é necessário e quais as consequências dele. Isso é que interessa.
É que a Constituição da República pode sofrer acrescentos, incisos novos, em praticamente todos os seus preceitos, mas o que é preciso cuidar, até pelo que representa a própria Constituição, é de saber até que ponto cada um desses incisos tem consequências específicas próprias, directas e resiste a uma apreciação de utilidade/necessidade.
Há ainda uma questão sobre a qual não ouvi o Sr. Procurador-Geral, mas gostava de ouvir.
Gostava, pois, que o Sr. Procurador-Geral nos especificasse um pouco melhor o que é que, do seu ponto de vista, leva à necessidade deste acrescento nas actuais circunstâncias. Se quiser, ponho-lhe a questão em termos mais pragmáticos: o que é que passa a poder fazer-se que, actualmente, não se pode fazer, com o texto da Constituição tal qual está?
Como sabe, tal qual está, o texto foi inscrito na Constituição para permitir a ratificação do Tratado de Maastricht, o qual já consagrava expressamente a existência do Terceiro Pilar e a construção de um espaço de justiça e liberdade na Europa. Portanto, o que é passa a poder fazer-se que, actualmente, não se pode fazer?
Desculpe-me a informalidade, Sr. Procurador-Geral, mas pergunto-lhe se, de facto, entende que, actualmente, há alguma coisa que não se possa fazer e que, com esta alteração, passa a poder fazer-se.
Em segundo lugar, e talvez ligadas à resposta a esta primeira questão, pergunto-lhe também quais são, eventualmente, as consequências de a Constituição passar a incluir esta alteração. Ou seja, o que é que muda? O que é que decorre desta alteração à Constituição, ou será que não ocorre nada, fica tudo na mesma e continuaremos tranquilamente a aguardar que haja a evolução natural e o aprofundamento da construção deste espaço de justiça, em termos da União Europeia, vindo ou não, posteriormente, a ser consagrado em novas convenções que terão, necessariamente, de vir a ser ratificadas? É que, nestes domínios, como me referi há pouco, estamos, normalmente, em sede de partilha de soberania e, portanto, inequivocamente, tem de haver um processo de ratificação, com a intervenção da Assembleia da República.
Quanto à questão do artigo 34.º, Sr. Procurador-Geral da República, entendi das suas palavras, mas corrigir-me-á se não corresponde à verdade, desde logo, uma dúvida de princípio que, devo confessar-lhe, também é a dúvida que, nesta fase, os Deputados do PSD têm relativamente a esta alteração. Refiro-me a uma alteração que se coloca em termos de hierarquia de valores ou de desvalores sociais, que está sempre por trás da justiça penal, neste caso processual penal. E, para nós, a primeira grande dúvida - e penso que subentendi das suas palavras que o Sr. Procurador também hesita um pouco sobre a definição do critério que preside a esta alteração - é se, na hierarquia dos desvalores, o problema da criminalidade relacionada com o tráfico de estupefacientes é ou não superior, por exemplo, ao tráfico de pessoas, de crianças. Ou seja, justifica-se esta invasão de uma reserva de intimidade que está inscrita expressamente na Constituição, através da proibição das buscas nocturnas ao domicílio, ou será que, na hierarquia dos desvalores, o tráfico de estupefacientes se deve considerar acima ou à frente do tráfico de pessoas, das associações terroristas ou, enfim, da violência doméstica, por exemplo?
Esta questão da violência doméstica que referi entronca com a última questão que quero colocar ao Sr. Procurador-Geral quanto a esta matéria e para a qual gostava de chamar a sua especial atenção.
Como sabe, a Constituição espanhola tem uma norma algo semelhante a esta proposta que agora temos sobre a mesa. É que na Constituição espanhola, ao contrário do que acontece na Constituição Portuguesa, não existe, de facto, uma proibição absoluta, uma reserva absoluta, do domicílio no que respeita a buscas policiais durante o período da noite. No caso espanhol não existe esta reserva absoluta, existe, sim, uma reserva relativa, que é condicionada ou delimitada, à semelhança do que esta proposta aqui nos vem sugerir, mas em três situações. Duas delas coincidem com as da proposta do Partido Popular, ou seja, o consentimento do visado e o mandato judicial, não havendo, no caso espanhol, uma delimitação por tipo de crime, como é aqui avançado - é só o mandato judicial em termos genéricos. Mas acrescenta-se uma terceira situação, e, relativamente a esta, gostava de ouvir a opinião do Sr. Procurador-Geral da República, porque é uma situação prática para a qual a sua opinião e a experiência da Procuradoria pode ser muito útil, que é o flagrante delito.
Quero situar-lhe a questão nestes termos: todos nós estamos recordados, seguramente, e temos impresso na nossa memória aquelas imagens que, volta não volta, passam na televisão, e estou a lembrar-me, nomeadamente, de uma reportagem feita, há um ou dois anos, num bairro da baixa da cidade do Porto, onde, através de uma câmara de filmar, se via o tráfico de droga feito através de um postigo colocado na porta da casa de um cidadão, onde só se viam as mãos, mas entrava o dinheiro e saía o pacotinho da droga.
São situações claras de flagrante delito, mas como se tratava, seguramente, de um domicílio, porque era uma zona residencial, e se passava de noite, as televisões filmam, o País observa, os cidadãos constatam e revoltam-se contra a incapacidade ou a inoperância das autoridades para poderem actuar neste tipo de situações.
Como é que é possível - interroga-se cada um de nós, enquanto cidadão - que as televisões estejam lá, filmem e passem essas imagens para o País inteiro? De facto, há ali uma situação clara de flagrante delito e as autoridades não fazem rigorosamente nada, ou sentem-se impotentes e impossibilitadas de fazer qualquer tipo de intervenção!
De igual modo, como o Sr. Procurador-Geral da República e todos nós poderemos visualizar, existe outro tipo de situações, como, por exemplo, uma perseguição de um cidadão, apanhado em flagrante delito, que entra para dentro de casa.
Portanto, na Constituição espanhola, esta é a terceira situação em que fica arredada esta reserva da intimidade privada e existe a possibilidade de entrada no domicílio para uma busca durante o período da noite.
Gostava também de ouvir o Sr. Procurador-Geral da República sobre esta situação, porque ela, à primeira vista, não me parece padecer das dificuldades que nos coloca a proposta do Partido Popular, que é o problema de
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justificar "porquê estes crimes e não os outros?". O flagrante delito corresponde a uma situação objectiva que mais facilmente seria generalizado a um determinado tipo de crimes graves e não circunscrito a uma criminalidade muito localizada.
Por outro lado, no caso do flagrante delito, parece-me que há uma situação insustentável para um Estado de direito, como, por exemplo, aquela que lhe relatei há pouco, do espectáculo degradante de um crime, com a gravidade do do tráfico de droga, poder passar em directo nas televisões, perante a total inoperância, por impotência, das autoridades. Gostava também de ouvir o Sr. Procurador-Geral da República sobre esta questão.
O Sr. Presidente: - Sr. Procurador-Geral da República, talvez fosse melhor fazermos uma ronda de perguntas e, no fim, V. Ex.ª responderia a todos, porque, sem prejuízo, naturalmente, do direito de usar da palavra de todos os Srs. Deputados, se seguirmos este ritmo, as intervenções dos Srs. Deputados são mais longas do que as suas.
Como também estou inscrito, porque também tenho esse direito, vou colocar a V. Ex.ª duas questões.
V. Ex.ª não é um constitucionalista e não vem aqui nessa qualidade, mas tem uma experiência nas suas antigas funções, se me é legítimo chamá-las à colação, de participação na construção do espaço de liberdade, de segurança e de justiça da União Europeia, sobretudo no que diz respeito, naturalmente, a matérias de processo penal e às consequências da construção desse espaço no processo penal, deixando de lado matérias, que também são importantes, se não mesmo mais importantes, como a emigração, o asilo político, tudo aquilo que diz respeito à abertura de fronteiras, etc. Não lhe ponho a questão como constitucionalista porque, salvo o devido respeito, V. Ex.ª não está aqui nessa qualidade.
O que lhe pergunto é se V. Ex.ª julga que é importante - e como fazê-lo é uma questão sobre a qual teremos ocasião, certamente, de ouvir constitucionalistas que aqui virão também prestar o seu depoimento - que a Constituição Portuguesa contenha uma certificação para Portugal poder acompanhar os esforços de construção desse espaço, designadamente em matéria de extradição e em matéria de investigação criminal. Não nos podemos esquecer que está, possivelmente, em marcha acelerada a construção de uma procuradoria europeia, agora mais acelerada do que há tempos atrás.
Em conclusão: julga ou não importante que haja na Constituição e na lei portuguesa, mas sobretudo na Constituição, essa certificação, essa "autorização", para que Portugal possa, sem limitações que podem decorrer actualmente do quadro constitucional, participar nessa construção? Por exemplo, a extradição, como V. Ex.ª sabe, está a sofrer um processo de evolução para sistemas de entrega e situações desse tipo. Esta a minha primeira questão.
A segunda questão que quero colocar ao Sr. Procurador-Geral da República é a seguinte: o Sr. Procurador-Geral mostrou - como acontece com todos nós, certamente - um enorme respeito pelo domicílio das pessoas e pela protecção da sua vida privada. Mas até onde vai a noção de "domicílio"? Tive também alguma experiência nessa matéria e ouvi muito as queixas da polícia e até, também, de Procuradores da República no que respeita às limitações de entrada no domicílio, que V. Ex.ª aqui defendeu, à inviolabilidade do domicílio.
Ora, sabemos que, hoje, o quadro social em que nos movemos é muito diferente do que era há 20 ou 30 anos, para não ir mais longe, mas todos também sabemos que, debaixo da capa do domicílio, não poucas vezes está um armazém de crime ou um centro de criminalidade organizada. É assim, é a realidade! E suponho que o Sr. Procurador-Geral da República a conhece melhor do que eu ou, pelo menos, tão bem.
Põe-se, portanto, a questão de saber se ainda devemos trazer à colação uma noção antiga, que continua, naturalmente, a ser válida para a generalidade dos casos, mas que pode não ser válida para muitos, do domicílio como centro da intimidade, quando ele passou a ser o centro da criminalidade.
Então, esse domicílio, que de domicílio só tem o facto de se situar, eventualmente, numa zona que pode também servir para domicílio, terá de ter a mesma protecção do domicílio na concepção desse espaço de intimidade da vida pessoal? E se não tem, que consequências tirar, quando chegarmos à conclusão, ou melhor, quando as autoridades judiciais e a polícia chegarem à conclusão de que o que se trata não é de domicílio mas, sim, de centro de actividade criminosa? E que consequências tirar desta nova realidade, nova pela sua extensão, obviamente, não pela sua existência, porque ela existe, certamente, há séculos - é até existem casos históricos de que o criminoso tem um segundo domicílio, que é o seu centro de actividade criminosa. Só que hoje essa situação é uma situação que abunda e que nocet ou faz prejuízo. Era esta questão que queria colocar também ao Sr. Procurador-Geral da República.
Tem agora a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Obrigado, Sr. Presidente.
Quero começar por saudar a presença do Sr. Procurador-Geral da República e aproveitar a oportunidade para colocar as questões sob forma considerativa, mas procurando ser célere, como o Sr. Presidente nos recomenda.
Em primeiro lugar, quero sublinhar que uma das observações que o Sr. Procurador-Geral da República fez, de alguma maneira, vai no sentido de uma que já tive ocasião de formular nesta Comissão, quanto à questão de inserir ou não, com relevância constitucional, a condição da complementaridade do Estatuto do TPI e da sua aplicação, em face da jurisdição nacional.
O Sr. Procurador referiu a circunstância de essa complementaridade derivar, de modo evidente e expresso, do Estatuto do próprio TPI e de, eventualmente, a sua consagração em sede constitucional acabar por significar não que o Estado português mantém a prerrogativa de fazer, digamos, a aplicação da sua justiça em primeira instância e, portanto, justamente, ao abrigo dessa relação de complementaridade com o TPI, mas que esse princípio da complementaridade se transforma num princípio vinculativo para o próprio Estado português, se tiver sede constitucional. E, consequentemente, aquilo que seria uma faculdade na relação entre a ordem jurídica interna e a ordem jurídica do Estatuto do TPI pode transformar-se numa aplicação vinculada. Suponho que é exactamente isso que pretendem os autores desta norma, mas é, porventura, nisso, que reside alguma divergência de posição.
Compreende-se que, em sede de declaração política, eventualmente em declaração complementar, no momento da ratificação, se assim se entender, alguma coisa possa ser dita sobre a disposição do Estado português nesta
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matéria - quanto à aplicação da própria natureza complementar ou subsidiária do Estatuto do TPI -, mas consagrar isso em sede constitucional, pela nossa parte, oferece-nos algumas reservas, justamente acompanhando o tipo de observação que o Sr. Procurador-Geral fez.
Portanto, neste sentido, o que fiz foi menos do que uma pergunta, foi uma manifestação de sintonia, digamos, com a preocupação que aqui nos referiu.
Relativamente à problemática do artigo 15.º e à igualdade de direitos com os cidadãos dos Estados de língua oficial portuguesa, não sei se a minha pergunta terá algum melindre, quanto à possibilidade de resposta do Sr. Procurador, mas não resisto à tentação de a fazer.
Na fórmula que aqui nos é apresentada, não se nota qualquer restrição à possibilidade de exercício, desde logo, do próprio cargo de Procurador-Geral da República, mas também das magistraturas, no seu conjunto, com a única excepção do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e do Presidente do Tribunal Constitucional. Não sei se o Sr. Procurador nos pode comentar a questão, mais do que do ponto de vista da sua lógica constitucional, da forma como as magistraturas, hoje em dia, podem olhar para uma situação destas, ou seja, para a possibilidade de, com uma norma constitucional deste tipo, a magistratura portuguesa, seja a judicial, seja a do Ministério Público, poder, em condições de igualdade e, obviamente, na base da reciprocidade, vir a ser também desempenhada por todo e qualquer cidadão devidamente habilitado, desde que oriundo do espaço lusófono. Se o Sr. Procurador pudesse comentar esta questão, ficar-lhe-ia grato.
Relativamente ao problema da inviolabilidade do domicílio, o Sr. Procurador fez algumas considerações que me parece que vale a pena reter. Quanto à técnica constitucional, fez uma observação de reserva relativamente à solução a partir de uma delimitação específica de um tipo legal de crime, dizendo que talvez possa ser um pouco, enfim, demasiado rígido, do ponto de vista da solução normativa, mas, por outro lado, deu um ênfase em relação à circunstância de, se vier a ser superada essa restrição absoluta, então, a cautela maior deve estar na exigência das garantias. Quero salientar exactamente essa sua observação, para que ela fique, digamos, presente na reflexão que deveremos continuar a travar aqui, na Comissão, em torno deste problema.
Reservei para o fim a questão do espaço de liberdade, de segurança e de justiça. O Sr. Procurador manifestou-se favorável a uma previsão constitucional deste tipo, no que diz respeito ao exercício em comum dos poderes necessários à construção da União Europeia.
Pela nossa parte, a meditação que temos feito é a de que, depois de Maastricht e, particularmente, depois de Amsterdão, o incremento do espaço de cooperação judiciária europeu - em matéria civil, já plenamente comunitarizado e, em matéria penal, a um nível de intergovernamentalidade, mas com a possibilidade de utilização de instrumentos extremamente significativos, como as directivas-quadro e as próprias convenções, que permitirão a possibilidade de aplicação de regimes de cooperação reforçada, em que uns Estados, se tiverem condições para participar nessa cooperação, o farão, e outros, se, eventualmente, tiverem constrangimentos de ordem interna, poderão ficar limitados nessa mesma possibilidade de cooperação reforçada - oferece uma preocupação: a de que não estejamos, amanhã, eventualmente confrontados com uma situação um pouco semelhante àquela com que estivemos agora, a propósito do TPI, ou seja, a de haver um constrangimento constitucional que, de um momento para o outro, nos possa inibir ou de partilhar uma directiva-quadro ou de partilhar mesmo a aprovação de uma determinada convenção em matérias relativas à cooperação judiciária, particularmente à cooperação judiciária em matéria penal.
Pergunto-me se matérias como, por exemplo, a do regime de detenção com a possibilidade de apresentação junto da autoridade judiciária competente, que é configurada na nossa Constituição exclusivamente na óptica das autoridades judiciárias internas, a do regime de extradição e do problema do cumprimento das decisões dos tribunais do espaço da União Europeia, a das próprias questões relativas ao desaforamento dos processos e à competência territorial dos tribunais que têm regulamentações muito claras no regime dos nossos direitos, liberdades e garantias, não poderão, em todo o caso e em algum momento, significar algum constrangimento ou impedimento pontual à possibilidade da partilha dos instrumentos de direito comunitário na construção do espaço de liberdade, de segurança e de justiça.
Portanto, nesse sentido, queríamos, efectivamente, abrir a possibilidade de a nossa Constituição conformar a hipótese de aprofundamento desse mesmo espaço, sem embargo de termos algumas dúvidas que gostaríamos de partilhar com o Sr. Procurador, quanto a saber se esta solução, só por si, resolveria problemas como aqueles que acabei de suscitar ou se, para além da abertura desta "janela", digamos assim, no quadro do artigo 7.º, teríamos de admitir, de forma ainda mais explícita, a possibilidade de superação de constrangimentos constitucionais pontuais, no caso de, alguma vez, se mostrarem evidentes, através de uma eventual desconformidade entre alguma disposição de uma convenção ou de uma directiva-quadro e alguma das regras típicas do nosso regime dos direitos, liberdades e garantias. Gostaria de saber, da parte do Sr. Procurador, se, nesta circunstância, admitiria a existência de uma cláusula ainda mais clarificadora da possibilidade de superação de eventuais desconformidades.
O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos ao Sr. Procurador-Geral da República, tem a palavra o Sr. Deputado Narana Coissoró.
O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Sr. Presidente, Sr. Procurador-Geral da República, em primeiro lugar, cumprimento-o por estar aqui hoje.
As minhas dúvidas ou reflexões - breves, porque o essencial já foi dito - incidem sobre o artigo 34.º da Constituição, relativo à inviolabilidade do domicílio.
Como já foi aqui referido, esta proposta é do CDS-PP e a fonte inspiradora foi, efectivamente, a Constituição espanhola. E a Constituição espanhola, no seu artigo 18.º, n.º 2, estabelece o seguinte: "O domicílio é inviolável. Ninguém pode entrar ou conduzir busca no domicílio de qualquer pessoa, sem o seu consentimento ou sem autorização judicial, salvo em caso de flagrante delito.". Esta Constituição não faz qualquer distinção entre o dia e a noite, ao contrário da Constituição da República Portuguesa, o que tem permitido ao legislador espanhol manejar, efectivamente, este conceito, conforme as necessidades do combate à alta criminalidade, que, segundo parece, tem sido relativamente mais eficaz do que aqui em Portugal. Não diria que isso tem a ver com a questão das
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buscas nocturnas, mas porque, de facto, na consciência colectiva espanhola, existe a ideia de que o domicílio, de noite, pode, porventura, ser visitado pela autoridade judicial ou policial.
Em segundo lugar, a nossa Constituição, como já foi aqui dito, deixa em aberto para o legislador ordinário o conceito de "domicílio" e o conceito de "noite". O conceito de "noite" é também fixado no Código de Processo Penal, como sendo o período que vai das 21 horas às 7 horas da manhã, o que, efectivamente, se é por causa do escuro ou da luz do dia, tem os seus quês. É que, no Verão, às 21 horas é de dia e, no Inverno, às 7 horas da manhã ainda é de noite, não é verdade?! Ora bem! De qualquer modo, há que fixar um critério.
O Sr. Procurador-Geral da República: - Na Suécia, seria um problema!
O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - E se fôssemos para a regulação horária anterior, no tempo em que o Professor Cavaco Silva era Primeiro-Ministro, tínhamos um dia que acabava às 24 horas, com duas horas sobre o Greenwich, e a noite acabava muito depois.
Mas este conceito de "noite" é um conceito da legislação ordinária e não um conceito que a Constituição defina claramente.
Em terceiro lugar, a nossa legislação penal, concretamente o Código de Processo Penal, nesta matéria, tem alguma ambiguidade e faz uma distinção clara nos artigos 177.º e 174.º sobre determinado tipo de crimes, sendo que as tais garantias que devem preceder ou acompanhar a busca são diferentes.
O artigo 177.º, e também o artigo 176.º, relativo às formalidades da busca, mas mais precisamente o artigo 177.º, que é o relativo à busca domiciliária, refere o seguinte: "Tratando-se de busca em escritório de advogado (…)" - que V. Ex.ª já referiu - e "Tratando-se de busca em estabelecimento oficial de saúde, o aviso a que se refere o número anterior (…)", ou seja, em ambos os casos as pessoas recebem aviso. Quanto à busca "(…) em casa habitada ou numa sua dependência fechada só pode ser ordenada ou autorizada pelo juiz e efectuada entre as 7 e as 21 horas (…)".
O n.º 2 do artigo 177.º estabelece ainda que "Nos casos referidos no artigo 174.º, n.º 4, alíneas a) e b), as buscas domiciliárias podem também ser ordenadas pelo Ministério Público ou ser efectuadas por órgão de polícia criminal. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 174.º, n.º 5.", ou seja, temos de ver o que estabelece o artigo 174.º.
A nossa legislação penal organiza as buscas com várias intensidades, conforme sejam buscas em determinados locais, como escritórios de advogados, consultórios médicos ou outros estabelecimentos, ou em função de crimes, como vamos ver.
De facto, o artigo 174.º do Código de Processo Penal estabelece o seguinte: "Quando houver indícios de que alguém oculta na sua pessoa quaisquer objectos relacionados com um crime (…)". Neste caso, a busca tem o nome de revista, mas quando esses objectos ou o arguido ou outra pessoa que deva ser detida se encontrem em lugar reservado ou não livremente acessível ao público - e aqui também devemos ter em consideração o que é um lugar reservado e o que é um lugar não livremente acessível ao público, por causa do conceito de domicílio -… Aliás, a este propósito, o exemplo que o Sr. Deputado Marques Guedes deu sobre uma casa que se considera domicílio e que tem um postigo por onde sai dinheiro e entra droga, ou o contrário, é um bom exemplo para vermos se se trata de um lugar livremente ou não livremente acessível ao público.
O n.º 4 do artigo 174.º estabelece que "Ressalvam-se das exigências contidas no número anterior as revistas e as buscas efectuadas por órgão de polícia criminal nos casos: a) De terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa; b) Em que os visados consintam, desde que o consentimento prestado fique, por qualquer forma, documentado; c) Aquando de detenção em flagrante por crime a que corresponda pena de prisão.".
O n.º 5 do referido artigo estabelece ainda que "Nos casos referidos na alínea a) do número anterior (…)" - nos casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada - "(…) a realização da diligência é, sob pena de nulidade, imediatamente comunicada ao juiz de instrução e por este apreciada em ordem à sua validação.".
Quanto a este aspecto, o Sr. Procurador-Geral da República fez a distinção entre o dia e a noite relacionada com a questão do consentimento, ou seja, referiu que o consentimento é prestado por quem está numa situação de grande fragilidade, dado que o consentimento do visado durante a noite não tem o mesmo grau de liberdade que teria de dia.
Devo dizer que, em relação à criminalidade organizada, à criminalidade violenta e à criminalidade de estupefacientes, entendo que essa liberdade não existe, nem de dia nem de noite. Julgo que uma pessoa que sabe o que tem dentro de casa e sabe que, de um momento para o outro, pode ser exposta perante a existência de instrumentos de crime, de produtos ou de bens que não devia ter em casa e que são fonte de criminalidade, a liberdade dessa pessoa é sempre a mesma, seja de dia, seja de noite! Portanto, quando se tem um depósito de droga ou de armas em casa não se é menos livre de noite e mais livre de dia.
Em quarto lugar, é preciso ver que o artigo 174.º, com todas as ressalvas que prevê, não faz a distinção entre o dia e a noite. No entanto, nós temos de fazer essa distinção devido ao estabelecido no preceito constitucional que referi inicialmente.
Portanto, o legislador penal organizou um aparelho de ataque ao terrorismo e à criminalidade violenta ou altamente organizada de forma diferente do que fez em relação a quaisquer outros crimes. Ou seja, no que diz respeito ao domicílio, a única ressalva que permanece diz respeito a buscas e revistas efectuadas durante a noite.
Em quinto lugar, o legislador penal já pressentiu que o consentimento em flagrante delito e a necessidade de entrar num domicílio sem acesso ou, como a lei diz, "não livremente acessível ao público", tem de ser feito de uma maneira diferente. Devo dizer que já há passos dados no sentido de que a inviolabilidade do domicilio não seja absoluta. E ela não é absoluta! De noite, principalmente, ela não pode ser absoluta. Primeiro, porque de acordo com a legislação comparada, como referiu, esta não é uma das tais garantias dos cidadãos que conste dos direitos universais, de forma a que seja, efectivamente, uma garantia absoluta e não uma garantia sujeita a reserva.
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De resto, compreendo perfeitamente que de noite essa garantia deva ser maior do que de dia. Mas, sinceramente, tratando-se de crimes de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada ou do crime de tráfico de estupefacientes, não vejo que esta garantia absoluta deva prevalecer sobre o perigo da consumação dos mesmos.
Em sexto lugar, gostaria de dizer que também não compreendo que existam formalidades diferentes para o dia e para a noite. Isto é, tratando-se dos crimes que acabei de referir, não compreendo que de dia sejam suficientes algumas cautelas e que de noite sejam precisas cautelas adicionais. Efectivamente, o que está aqui em causa não é a defesa do domicilio como garantia, mas o ataque à criminalidade. Portanto, o valor que prevalece, nestes casos, é o do ataque à criminalidade.
Pareceu-nos que, uma vez que estes crimes estão em vias de ser reservados para um tratamento especial pelo legislador penal, falta prever a questão do tráfico de estupefacientes para o dia. O que se verifica é que, de noite, esse tráfico é muitíssimo maior do que de dia - dizem-no as estatísticas e dizem-no os entendidos nessa matéria. Daí que não haja, da nossa parte, grande relutância em aceitar que, em vez do crime de tráfico de estupefacientes, se abranja também nesta previsão os crimes de terrorismo e a criminalidade violenta ou altamente organizada.
Simplesmente, pareceu-nos que, uma vez que o legislador penal, por qualquer razão, fez a distinção entre os conceitos "dia" e "noite" (e porque o tráfico de estupefacientes é mais organizado de noite do que de dia), deveríamos fazer a menção do tráfico de estupefacientes.
Mas este não é o problema essencial. A questão essencial é quebrar de algum modo, dentro de limites muito fortes e com suficientes garantias, aquilo a que V. Ex.ª chamou a reserva absoluta do domicílio, durante a noite.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, gostaria de fazer um ponto de ordem nos nossos trabalhos, que nada tem que ver com a intervenção do Sr. Procurador-Geral.
Foram acordados tempos determinados para as audições. Até agora, falaram quatro Srs. Deputados, tendo sido gastos 50 minutos. Uma vez que a Mesa tem mais quatro inscrições, se estivéssemos a fazer estas audições com a duração máxima de 1 hora, como tínhamos previsto, as pessoas teriam de esperar pela sua audição 1 hora e 30 minutos pelo menos, ou talvez 2 horas! Ora bem, ou existe auto-regulação, ou a Mesa tem de reunir e dividir tempos, porque senão não há possibilidade de concluirmos os nosso trabalhos conforme acordado.
O Sr. Procurador-Geral da República falou durante 11 minutos! Os Srs. Deputados, nos quais me incluo,…
O Sr. Guilherme Silva (PSD): - E deu um bom exemplo!
O Sr. Presidente: - …demoraram 50 minutos!
Não há, portanto, possibilidade de trabalharmos nestas condições. Se continuamos assim, teremos de marcar audições para o dia todo,…
O Sr. Guilherme Silva (PSD): - E para a noite!
O Sr. Presidente: - … e faremos audições até ao dia 15 de Julho.
Portanto, os Srs. Deputados farão como entenderem, mas a Mesa também se reserva o direito de reunir e de fazer cumprir o que aqui foi acordado: a fixação de tempos, tal como no Plenário, senão nunca mais acabamos os nossos trabalhos.
Posto isto, e uma vez que há já um conjunto bastante amplo de questões, tem a palavra o Sr. Procurador-Geral da República. Pode até ser que a intervenção de V. Ex.ª consiga evitar novas questões, o que seria o ideal para a condução dos trabalhos, sem prejuízo daqueles Srs. Deputados que se encontram inscritos poderem usar também da palavra.
O Sr. Procurador-Geral da República: - Sr. Presidente, Srs. Deputados, tentarei responder às questões que entretanto quiserem colocar.
Começo por referir que, em matéria de complementaridade,…
O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Pedia ao Sr. Procurador-Geral da República que deixasse para o fim as respostas às questões colocadas pelo Sr. Deputado Luís Marques Guedes, que teve de se ausentar para estar presente noutra reunião.
O Sr. Procurador-Geral da República: - O problema é que ele tocou praticamente em todas as questões!
Em relação à questão do espaço de liberdade, de segurança e de justiça, foi-me colocada, concretamente, a questão de saber o que é que se não pode fazer com a redacção actual e o que é que pode passar a fazer-se com este acrescento.
Até ao momento, não vi qualquer dificuldade com a redacção actual do n.º 6 do artigo 7.º da Constituição, isto é, com a expressão "(…) realização da coesão económica e social, (…)". Ou seja, não vi que tivesse sido levantada qualquer dificuldade relacionada com as exigências que nos são impostas pelo facto de estarmos na União Europeia, concretamente em relação às decisões do Conselho da União Europeia.
Contudo, a minha opinião é a de que seria bem-vinda esta introdução na Constituição, porque seria a cobertura que daria o aval e garantiria a viabilidade de, por via legislativa ou convencional, se dar cumprimento àquelas que têm sido as exigências do Conselho da União Europeia.
Já não falo em convenções, porque estas pressupõem uma ratificação e que se compagine o conteúdo das convenções com o conteúdo da Constituição, mas penso nas decisões-quadro e nas acções comuns, que nos colocam exigências em termos legislativos, exigências essas que tantas vezes colidem com aquilo que é a nossa legislação vigente. Ou seja, em face de uma ou outra questão que venha a ser levantada por força de decisões-quadro, poderá levantar-se um problema de constitucionalidade.
Penso também nos crimes de branqueamento - que na nossa legislação estavam reservados para um crime catalogado, ou seja, só um certo tipo de criminalidade é que pode levar à incriminação do branqueamento dos produtos dessa criminalidade -, que, por exigências comunitárias, deve ser alargado sem limites.
Penso numa questão que já foi referida, a da Procuradoria Europeia, a que eu chamaria as incidências do corpus juris, isto é, a necessidade que se prevê de criar um corpo de magistrados do Ministério Público que defendam os interesses financeiros da União Europeia.
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Penso ainda no Eurojust, que já está em funcionamento. Temos um magistrado português, o Dr. Lopes da Mota, que foi Secretário de Estado da Justiça, a exercer funções no Eurojust, neste momento. Há, portanto, um corpo de magistrados, um por cada país, que está sediado em Bruxelas e que tem como função estabelecer as ligações na criminalidade organizada e transnacional de gravidade. Cada magistrado mantém o seu estatuto no país a que pertence, mas trata-se de magistrados que têm acesso a processos em segredo de justiça noutros países que não aquele de que são originários.
Ora, tudo isto pode levantar questões estatutárias e, inclusivamente, "beliscar" aspectos constitucionais.
Penso, igualmente, na extradição abreviada, com o consentimento do extraditando.
Aquilo que foi a minha passagem pela União Europeia, sobretudo durante a presidência portuguesa, leva-me a pensar que é previsível haver um conjunto de exigências que nos serão impostas - em particular, ao nível das decisões-quadro, que têm a função das directivas, sendo portanto obrigações de resultado e não de meios - podendo existir, em progressão geométrica, um conjunto de necessidades de alteração legislativa interna.
Por tudo isto, penso que seria positivo levar a cabo essas alterações. Não digo que isso seja absolutamente indispensável ou essencial, designadamente que, a não serem feitas essas alterações, não poderia fazer-se coisa alguma. No entanto, em termos de cautela, seria altamente conveniente que houvesse uma expressão na Constituição que desse aval e cobertura a este tipo de exigências.
Perguntam-me, também, se o facto de se introduzir a expressão "realização de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça" resolveria todos os problemas. É evidente que não! Em face de cada exigência concreta que fosse apresentada ao legislador português, haveria que cotejar essa exigência com outros preceitos constitucionais.
Estou a pensar, por exemplo, no caso da extradição, e parece-me que não seria pelo facto de se estabelecer essa expressão que estaríamos dispensados de cotejar, num determinado caso concreto, a situação, com a disposição que se refere, concretamente, à extradição e a toda a problemática da prisão perpétua. Seria, pois, necessário analisar ambas as situações.
Agora, parece-me que este artigo tem uma intencionalidade mais programática do que outra coisa; é uma declaração de fundo, de princípio. Portanto, penso que seria útil a esse nível.
Quanto à questão das buscas domiciliárias, volto a repetir o que tentei dizer há pouco. Em primeiro lugar, há o problema de se mencionar apenas um certo tipo de crime na alínea b). essa não me parece ser a melhor solução. Aliás, o Sr. Deputado Narana Coissoró já reconheceu que esta não é uma questão essencial.
O grande problema é que, na alínea a), quando se refere "O consentimento do visado, ou visados" como condição única e suficiente, não se fala em criminalidade grave, nem em criminalidade organizada, nem em criminalidade violenta!
O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Quando há consentimento, não é preciso…
O Sr. Procurador-Geral da República: - Não é isso, Sr. Deputado. A possibilidade de busca nocturna com esta única exigência é qualquer coisa que, pela Constituição, fica facultada para todo e qualquer crime, mesmo para as maiores "bagatelas". É isso que me impressiona!
É que, no corpo do n.º 3 do artigo 34.º proposto, pode ler-se que "A entrada no domicílio de qualquer pessoa durante a noite depende da verificação de um dos seguintes pressupostos: (…)". Ora, um dos pressupostos é o consentimento do visado, seja qual for o crime em jogo, e isto é que me parece que é "abrir" demasiado.
Em relação à questão de se mencionar um tipo de criminalidade concreta, eu diria que, em termos de técnica legislativa, deveria evitar-se fazê-lo na Constituição; quando muito, poderia fazer-se, na Constituição, uma menção à criminalidade grave, especialmente organizada, ou a algo semelhante.
O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Deve relegar-se para a lei ordinária!
O Sr. Procurador-Geral da República: - Mas relegar só para a lei ordinária. Parece-me que seria incorrecto estabelecer que o tráfico de droga, o tráfico de seres humanos, ou o tráfico de armas, ou o lenocínio… Amanhã, aparece outro tipo de crime que passa a ter uma incidência ainda maior que esta, passando a preocupar mais as pessoas. E, então, a Constituição ficava desfasada! Enfim, eu não iria pela particularização de tipos de crime.
Falou-se, aqui, da questão do domicílio, da definição de domicílio - claro, trata-se de um conceito subsidiário do Direito Civil, suponho, e, portanto, teríamos de recorrer a esse tipo de fontes. Mas, para efeitos processuais, ou criminais, ou de repressão penal, o que me parece estar aqui subjacente é a ideia de "casa de habitação", mas definida, sobretudo, em função do sítio onde se dorme, não tanto onde se passa o tempo ou onde se come. E, tendo presente a intervenção do Sr. Dr. Vera Jardim, eu diria que não é pelo facto de na "casa de habitação" se cometerem crimes que o conceito de "casa de habitação" fica abalado. Quer dizer, o conceito de "casa de habitação", no que o define, é compatível com o cometimento de crimes lá dentro ou outra coisa qualquer. Não é pelo facto de se tornar em centro de cometimento de crimes que o domicílio deixa necessariamente de ser "casa de habitação".
Mas pode dizer-se que, em termos de reacção penal, a protecção que merece a "casa de habitação" pode ficar postergada, em nome dos interesses da segurança, que também são de atender, neste caso.
De qualquer maneira, eu tenderia a manter a posição que manifestei de início e que vai no sentido não de propor uma alternativa mas de considerar que o que consta - sobretudo - na alínea a) é "abrir" demasiado. E porquê? Porque parece-me que seria "abrir" demais se fôssemos seguir esta disciplina, e tanto fazer ser de dia como de noite! De facto, continua a parecer-me que seria "abrir" demais o facto de a busca ser feita de noite, já que não estamos a pensar nas 21 horas, mas nas 4 horas ou nas 5 horas da manhã; não estamos a pensar só em traficantes de droga altamente organizados, mas estamos a pensar em qualquer cidadão que seja suspeito de um crime qualquer.
Em suma: não se distinguir o crime e fixar-se uma disciplina idêntica para o dia e para a noite seria "abrir" demasiado.
Enfim, este é um terreno em que não quereria entrar, mas todos temos alguma experiência da facilidade com que se
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"obtém o consentimento" nestes casos. E, enfim, na minha condição de detentor da acção penal e, portanto, por estar especialmente empenhado na repressão do crime, seria levado a dizer "com certeza!". Mas, por outro lado, também tenho como preocupação a defesa da legalidade e a defesa dos direitos, liberdades e garantias - tudo isso! Portanto, a protecção do cidadão visado também tem de estar aqui muito presente e é da conciliação destas duas preocupações que deve surgir um equilíbrio possível, "aqui e agora".
Reafirmo que, tal como está feita a previsão da alínea a) proposta pelo CDS-PP, isso seria "abrir" demasiado,
Em relação à alínea b), "Ordem de autoridade judicial competente, (…)", obviamente que ela é necessária, mas eu iria mais além e, como já disse há pouco, proporia então a intervenção do próprio magistrado. Não vou repetir-me, mas volto a referir que não me parece bem especificar "tráfico de estupefacientes", nem sequer me parece bem especificar qualquer tipo de crime.
Ainda em relação às buscas domiciliárias, refiro a questão do flagrante delito que me parece ter toda a pertinência. E porque, realmente, não tinha pensado nessa hipótese, fiz a mim mesmo a pergunta de saber se as medidas cautelares e de polícia (que estão previstas no Código de Processo Penal, exactamente em situações em que é iminente a fuga e em que é absolutamente necessária a conservação de provas), não serão medidas suficientes para atender a esse tipo de situações. Não sei o que se passa na legislação espanhola ordinária, em termos destas medidas cautelares e de polícia; se calhar, não as têm e, por isso, existe a necessidade de permitir a entrada, na sequência de um flagrante delito.
Em relação ao artigo 15.º, foi colocada a questão de saber se era ou não demasiado estreito o impedimento de acesso a cargos. Nesta previsão do artigo 15.º, li as menções do Presidente da República, Presidente da Assembleia da República, do Primeiro-Ministro, do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional, como que sendo o desdobrar da expressão "órgãos de soberania". É evidente que o órgão de soberania "tribunais" não se concentra no Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e, portanto, na previsão do artigo 15.º, esse impedimento seria extensivo a todos os juizes.
O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça representa o poder judicial e, portanto, tem uma função importantíssima, simbólica, protocolar e de gestão da magistratura judicial; mas não é, ele o órgão de soberania "tribunais". Portanto, aqui, realmente, aceito a ideia de Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e de Presidente do Tribunal Constitucional, mas devo acrescentar a este texto "e os tribunais, em geral.", como órgãos de soberania que são.
Em relação aos magistrados do Ministério Público, parece-me que a situação é diferente. E digo, com toda a transparência, que entendo que o Ministério Público é um órgão de Estado mas não é órgão de soberania. É um órgão que funciona junto dos tribunais, mas não é o órgão de soberania "tribunais". Portanto, a questão não se põe da mesma maneira.
Suponho que, se me referir à questão da complementaridade, esgotarei, por aqui, a minha intervenção.
A questão que foi colocada pelo Sr. Deputado Luís Marques Guedes era a de saber se…
O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Só se V. Ex.ª quiser responder na 2.ª fase!
O Sr. Procurador-Geral da República: - Então, farei isso, vou responder na 2.ª fase.
O Sr. Presidente: - Muito obrigado, Sr. Procurador-Geral da República.
Com o pedido de contenção, porque receberemos o Sr. Bastonário da Ordem dos Advogados às 12 horas e dispusemos de duas horas para esta audição, tem a palavra o Sr. Deputado Pedro Roseta.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Sr. Presidente, entendo cumprir, não só hoje mas sempre, esse desiderato de V. Ex.ª, até porque terei, mais tarde, em sede de debate, o meu próprio tempo. Então, nessa altura, é que pedirei a benevolência do Sr. Presidente. Agora, estou aqui apenas para colocar questões e, aliás, nem quero repetir as já formuladas pelo Sr. Deputado Luís Marques Guedes, com as quais concordo. Por isso mesmo, vou concentrar-me no artigo 15.º, ao qual o Sr. Deputado não se referiu.
Em todo o caso, se me permite, numa única frase, não posso deixar de sublinhar e registar, de passagem, que o Sr. Deputado Jorge Lacão, hoje, já compreende a existência de uma declaração interpretativa na altura da ratificação do Estatuto do TPI, o que aponta para a ideia de que, afinal, sempre há uma "terceira via", não é só ratificar ou não ratificar o Estatuto.
Quanto à reciprocidade de direitos, gostaria de conhecer, Sr. Procurador-Geral da República, a sua opinião sobre o fundo da questão. É que V. Ex.ª colocou algumas questões, que vou referir de seguida, mas não falou sobre o fundo da questão. Fê-lo agora no que diz respeito aos tribunais, mas não falou sobre o fundo da questão, sobre os restantes órgãos de soberania, isto é, se lhe parecia ou não bem que os brasileiros e os cidadãos dos outros países lusófonos pudessem ter acesso à titularidade não só dos órgãos de governo próprios das regiões autónomas, acabando com a actual proibição do n.º 3 do artigo 15.º, como de vários órgãos de soberania.
Portanto, fico a aguardar a sua opinião, para além daquilo que já disse em relação aos tribunais e com o que não concordo. Mas o Sr. Presidente concordará que eu não vá agora dizer por que é que não concordo, pois não estou aqui para convencer o Sr. Procurador, estou para saber o que é que o Sr. Procurador pensa!
O Sr. Presidente: - Parece-me bem, Sr. Deputado!
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Parece-me que este é o bom entendimento!
Risos.
Em relação às três questões decorrentes: porquê a menção expressa dos cidadãos da República Federativa do Brasil? Por razões históricas. Não é apenas uma questão de tamanho porque, para além do acolhimento e dos direitos concedidos aos portugueses, desde há muito tempo, há a Constituição do Brasil, com o seu artigo 12.º. Portanto, é esse o motivo.
Segunda questão: esta menção minimiza os outros Estados de língua oficial portuguesa? Entendemos que não,
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porque estão referidos e já temos mostrado este texto a várias personalidades e ninguém se sentiu minimizado.
Terceira e última questão: a previsão "com residência permanente em Portugal" aplica-se a quem? Aplica-se a todos. Para nós é óbvio que se aplica quer aos cidadãos da República Federativa do Brasil quer aos dos demais Estados da língua oficial portuguesa - existe uma vírgula a seguir para mostrar que se aplica a todos.
A única razão e com isto termino, Sr. Presidente, para estar ainda dentro de menos de 3 minutos - porque nós sublinhamos o Brasil, além do que já referi, é a seguinte: é que, como sabe, com excepção de Cabo Verde, os outros países lusófonos não têm mecanismo algum semelhante. E esta é uma resposta não apenas política mas uma resposta histórica. A gratidão, aliás, não é um conceito político mas, para além da gratidão, há um conceito de reciprocidade em relação à antecipação que os brasileiros tiveram (e que já vinha de antes), sobretudo com o artigo 12.º da Constituição de 1988.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, muito obrigado pelo seu esforço de contenção, que agradeço em nome de todos nós, ao fim e ao cabo.
Também com um esforço de contenção, tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Costa.
O Sr. Alberto Costa (PS): - Sr. Presidente, também queria dirigir as minhas saudações ao Sr. Procurador-Geral da República.
A primeira questão que queria colocar, que parece meramente teórica (embora não seja essa a minha opinião), diz respeito à construção da norma habilitadora em matéria de Tribunal Penal Internacional. Qual é o ponto? A norma geral habilitadora em relação à construção da União Europeia (artigo 7.º, n.º 6) estabelece: "Portugal pode, (…), convencionar o exercício em comum (…)", etc, etc. E, com base nessa cláusula, ficou Portugal habilitado a ratificar os tratados que, sucessivamente, vêm desenvolvendo a União Europeia.
No caso do Tribunal, vendo bem, a posição de Portugal é semelhante. Isto é, Portugal precisa de uma norma que o habilite a ratificar tratados. E o que está em causa, é um tratado instituidor de um tribunal.
Deverá Portugal "comprar" a norma da Constituição francesa (os franceses, em matéria de construção, não são muito exigentes), que reconhece a jurisdição de um tribunal, como poderia reconhecer qualquer distante tribunal instituído por outras entidades? Digamos que a norma de reconhecimento é uma norma que reconhece o carácter exógeno da instituição a reconhecer, enquanto que uma norma que autorizasse que fosse convencionalmente instituído o Tribunal, pareceria mais de acordo com o status, sobretudo de um País que inicialmente assinou e parece apostado em ratificar, ainda antes do Tribunal entrar em vigor, por considerar isso um objectivo de grande relevo político e simbólico.
Portanto, a minha questão é a seguinte: será esta a construção mais adequada, nomeadamente quando ela aparece por contraste? No número anterior lê-se "Portugal pode (…) convencionar (…)" e, no número seguinte ou numa norma final transitória (após a alteração), "Portugal pode (…) reconhecer (…)". Não haverá mais paralelismo do que a oposição? Não significará a utilização da "norma-reconhecimento" uma atitude diferente daquela que Portugal, afinal, defende e postula?
Segunda questão: será a norma geral habilitadora suficiente, no sentido de que identificadas certas áreas, ainda que residuais, de colisão, extradição, extradição/prisão perpétua, imunidades ou regimes especiais de efectivação das responsabilidades, identificadas essas áreas de colisão, dizia, bastará o "chapéu geral" de uma norma habilitadora, com as características que estão concebidas? Será isso suficiente para que um tribunal possa, por exemplo, determinar a extradição ou a entrega ao Tribunal Penal Internacional. Passo a explicar este ponto.
Suponhamos que, aquando da entrada em funcionamento do Tribunal, se verifica no Ruanda (para dar alguma verosimilhança à hipótese) um novo genocídio No Ruanda aplica-se a pena de morte. Um dos responsáveis pelo genocídio "vem pela África acima" e, sabedor que em Portugal não há pena de morte, nem sequer prisão perpétua e que, em princípio, Portugal não facilitará a sua entrega a outras instituições internacionais, fixa residência em Portugal. E suponhamos que o Tribunal Penal Internacional, perseguindo esses factos, notifica as autoridades portuguesas para que entreguem o cidadão do Ruanda, Tribunal esse que só aplica a prisão perpétua. A meu ver, e fica já exarado, Portugal não pode dizer: "Não, temos aqui legislação pronta, tribunais capazes, Estado de direito em pleno vigor, por isso vamos julgar aqui esse senhor do Ruanda e não o vamos entregar ao Tribunal Penal Internacional".
Em minha opinião, se Portugal fizesse isso expunha-se rotundamente a que o Tribunal viesse dizer: "Como é que os senhores estão em condições, como é que se consideram capazes de julgar este cidadão? Estão a brincar connosco!". Esse processo não é genuíno, não é autêntico, como algures se diz numa das normas do Estatuto. Portugal tem, pois, de encarar uma hipótese dessas; no limite, Portugal tem de encarar a hipótese de ser colocado perante a necessidade de decidir face a um pedido de entrega do Tribunal Penal Internacional.
Pergunto: um tribunal e um juiz considerarão suficiente a norma geral para "passar por cima" do artigo 33.º da Constituição, que regula a extradição? É a questão da suficiência da norma geral. Parece-me claro que a norma geral não tem o condão de erigir uma norma do Tratado numa norma supraconstitucional ou, sequer, numa norma de valor constitucional que prevalecesse ou que, em processo de interpretação, devesse prevalecer sobre o sentido da norma do artigo constitucional respeitante à extradição.
O mesmo se poderia colocar em relação às imunidades, onde também existem algumas colisões, ainda que residuais. O problema que se coloca é o de saber se Portugal, que deve estar atento a que nas outras ordens jurídicas as constituições não inviabilizem os efeitos que os Estados declaram prontos a alcançar através da sua colaboração com o Tribunal Penal Internacional, não mantém na sua ordem interna uma relação assimétrica. Isto é, uma relação onde - na hipótese de se verificar a prática de um crime desta natureza por um titular de um órgão de soberania - um terceiro possa vir a dizer: "Mas os senhores, que estão aqui a exigir isto e aquilo, na vossa Constituição impedem o cumprimento das normas do Estatuto!"
A pergunta que faço ao Sr. Procurador-Geral da República é a seguinte: a norma geral será suficiente, tal como no caso anterior, para ultrapassar essas dificuldades? Essas normas consagram não só um dever de cooperação através da entrega como um dever de pronta cooperação,
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e os próprios mecanismos de intervenção da Assembleia, que levam tempo, que introduzem delongas ou as condições que envolvem espera do termo do mandato, são condições que colidem com as regras constantes do Estatuto.
Para mais, consagrando o Estatuto o princípio da irrelevância das qualidades oficiais, pergunto: será suficiente ratificar o Estatuto com aquela cláusula geral para que estes aspectos fiquem todos regulados e para que seja evitado um problema que me impressiona, que é o de, perante o Tribunal, obtidas as pessoas, de uma maneira ou de outra, não vigorarem as normas que condicionam ou retardam a efectivação de responsabilidades?
É evidente que essas normas não vigoram perante o Tribunal mas, se não adaptássemos as normas constitucionais, parece que perante os mesmos crimes e perante os tribunais portugueses essas normas teriam de operar - nem vejo por que motivo não operariam - com dignidade constitucional. Então, seria inaceitável que perante o Tribunal Penal Internacional a regra da irrelevância da qualidade oficial se aplicasse plenamente nas suas expressões, sejam substanciais sejam processuais. Porém, caso fosse o Supremo Tribunal de Justiça ou outro tribunal português, parece que os mesmos princípios e as mesmas regras em matéria constitucional não seriam aplicáveis.
Em suma, a minha questão é sobre a suficiência da norma geral para resolver as várias colisões detectáveis com o texto constitucional.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Bernardino Soares.
O Sr. Bernardino Soares (PCP): - Sr. Presidente, Sr. Procurador-Geral da República, respondendo ao apelo do Sr. Presidente para a brevidade e a síntese, queria fazer uma pergunta tendo em conta a alteração ao artigo 34.º, designadamente sobre a questão da entrada no domicílio durante a noite.
Julgo que antes de debatermos os requisitos ou as garantias eventualmente necessários para consagrar esta possibilidade, devíamos - e é sobre isso que gostaria de ouvir o Sr. Procurador-Geral - discutir a questão prévia, que é a de saber da necessidade de alteração, isto é, se há relevantes dificuldades na investigação criminal criadas por esta limitação, se as razões que levam a que a Constituição consagre hoje esta protecção da reserva da intimidade se alteraram, e de que modo, de forma a justificar e a possibilitar tal alteração. E, mesmo em relação ao paralelismo com a lei e com a Constituição espanhola, há que apurar se a realidade, do ponto de vista criminal, do nosso país vizinho não tem características próprias que levam a que esta resposta seja diferenciada em relação ao que se passa em Portugal.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Guilherme Silva.
O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Procurador-Geral, gostaria de colocar-lhe duas questões complementares às que já lhe foram expostas e de aprofundar um pouco a resposta que já terá dado, em parte, a estas matérias.
A primeira tem que ver com a proposta do Partido Socialista relativamente ao espaço de liberdade, de segurança e de justiça. Já o Sr. Deputado Marques Guedes referiu, como posição de princípio, que nada temos a obstar a que esta matéria seja aqui ponderada. Mas a verdade é que há um princípio natural em matéria de revisão constitucional, em particular nesta revisão constitucional, que é o da necessidade das alterações. Ou seja, neste caso (e também no que respeita ao Tribunal Penal Internacional), do ponto de vista das obrigações que Portugal assumia ou pretende assumir no âmbito das suas relações no espaço onde se integra, qual a necessidade de introduzir alterações à Constituição para que sejam acolhidas soluções que, nesses domínios, se colocam a essa nossa participação?
V. Ex.ª invocou a sua própria experiência no sentido da previsão de que poderá haver, aqui ou ali, uma outra situação que levanta essa questão da adequação dessas soluções à nossa Constituição. Mas também referiu que esta fórmula proposta pelo Partido Socialista não dará, eventualmente, resposta a essas questões e que isso não dispensará, em cada solução e situação concreta, um cotejo com os demais normativos e disposições constitucionais. É exactamente aqui que queria colocar a questão, porque do ponto de vista genérico de uma receptividade de soluções que nessas instâncias se colocam e que vinculam Portugal, penso que nos actuais artigos 7.º e 8.º da Constituição, como posição de princípio de receptividade genérica, isso está já consagrado. Pergunto-me se é necessário - e se não é um precedente complicado do ponto de vista da dignidade constitucional -irmos introduzindo parcelarmente princípios de receptividade geral relativamente a vários sectores no quadro da União Europeia: agora no âmbito da segurança, da liberdade e da justiça, depois no âmbito do mercado, depois ainda no âmbito do trabalho e por aí adiante…! Nunca mais se pararia de abrir estas "subalíneas" de recepção geral a cada sector que se colocasse na evolução que pudesse, aqui ou ali, colidir com a Constituição.
A pergunta que faço é a seguinte: se não nos dispensamos - e penso que essa é a posição avisada - em relação a determinadas situações concretas que temos de cotejar da sua constitucionalidade e se esta fórmula não dá resposta a esses problemas, por que não termos a prudência de manter aquilo que já consta da Constituição, nos artigos 7.º e 8.º, designadamente nos n.os 5 e 6 do artigo 7.º, para não estarmos a banalizar este tipo de cláusulas semigerais de receptividade de soluções no âmbito de espaços em que Portugal se integra e está vinculado em função de tratados celebrados? Esta é a primeira questão.
A segunda questão tem que ver com a problemática do artigo 34.º e a proposta do CDS-PP. Em primeiro lugar, gostaria de lembrar que o CDS-PP só inova num ponto, que é o da ordem da autoridade competente no caso da criminalidade relacionada com o tráfego de estupefacientes, porquanto o consentimento do visado já está previsto na Constituição. Ou seja, segundo a Constituição, "Ninguém pode entrar durante a noite no domicílio de qualquer pessoa sem o seu consentimento." Do meu ponto de vista, o n.º 3 do artigo 34.º…
O Sr. Presidente: - De noite!
O Sr. Barbosa de Oliveira (PS): - Exactamente!
O Sr. Guilherme Silva (PSD): - É a restrição para a noite.
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O actual artigo 34.º já consagra essa solução. Repito: "Ninguém pode entrar durante a noite no domicílio de qualquer pessoa sem o seu consentimento." O consentimento como forma de entrada no domicílio…
O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - É para os amigos!
O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Essa agora!
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Guilherme Silva, queria pedir-lhe que fosse mais conciso porque estamos a chegar ao meio-dia.
O Sr. Guilherme Silva: - Vou já terminar, Sr. Presidente.
Ora, a questão que lhe queria colocar é a seguinte: tem V. Ex.ª, pela sua experiência no exercício das funções anteriores e das actuais, alguma ideia ou informação da forma como tem funcionado o actual n.º 3 do artigo 34.º da Constituição? Já nos referiu alguma crítica a este tipo de solução, uma vez que considera que, em princípio, no tipo de circunstâncias em que estas diligências ocorrem, há algum constrangimento, alguma diminuição, de liberdade de decisão por parte dos visados, mas é evidente que esta norma tem já, com certeza, uma prática registada no nosso ordenamento penal e processual penal.
Em relação ao problema do domicílio, parece-me que é um adquirido constitucional e penal que, aqui, a ideia de domicílio tem um sentido muito amplo que não se identifica, nem de perto nem de longe, com o domicílio civil e que tem, realmente, uma ideia de protecção bastante mais alargada. Como tal, é eventualmente discutível se se podem introduzir aqui… Estou de acordo consigo quando diz que não devemos aqui tipificar crimes. Aliás, há uma problemática inerente a esta questão; há, naturalmente, uma ideia lógica e compreensível de que a excepcionalidade desta entrada no domicílio durante a noite deve estar associada a alguma gravidade criminal, mas, tal qual foi aqui referido pelo Sr. Deputado Marques Guedes, há determinado tipo de criminalidade, eventualmente de menor gravidade quando comparadas com o tráfico de armas, com a organização terrorista e com o tráfico de estupefacientes, que, pela sua natureza, poderia justificar esta excepção. É o caso, por exemplo, da violência doméstica, em que há um acobertar-se do próprio domicílio e na protecção que o domicílio tem para a prática do crime. É talvez um caso que, independentemente da sua maior ou menor gravidade, tem uma lógica inerente ao próprio crime em si e às circunstâncias em que normalmente é cometido que poderá, eventualmente, justificar este tipo de excepção.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, informo-vos de que o Sr. Bastonário já está à nossa espera.
Para dar os esclarecimentos e respostas que entender, darei a palavra ao Sr. Procurador-Geral da República, a quem não peço um esforço de contenção, visto que durante 1 hora e 50 minutos V. Ex.ª foi, de longe, o que falou menos, sendo certo que vinha para uma audição, ou seja, para ser ouvido.
Tem, então, a palavra o Sr. Procurador-Geral da República.
O Sr. Procurador-Geral de República: - Sr. Presidente, serei o mais sintético possível, quase telegráfico, mas agora terei mesmo de me referir à intervenção do Sr. Deputado Marques Guedes. A questão posta foi a de saber se a menção da complementaridade não será necessária, tendo em vista uma possível e futura alteração do próprio Estatuto de Roma. Ora bem, a ideia que me fica é a de que a complementaridade, pelos locais em que está consagrada - logo no preâmbulo, no artigo 1.º e no artigo 17.º, em termos mais de regulamentação -, é de tal maneira essencial e estruturante do próprio sistema do TPI (Tribunal Penal Internacional) que, mais do que fazer futurologia, me parece irrealista pensar que nela se irá mexer. Não me parece, portanto, que a introdução desta "válvula de segurança" na Constituição prejudique o que quer que seja, não me parece é que seja necessária. Porquê? Porque esta alteração a este nível, volto a dizê-lo, me parece irrealista.
No entanto, se, eventualmente, essa alteração viesse a ter lugar e se, portanto, se alterasse todo este sistema de complementaridade, a conclusão a que se poderia chegar seria uma de duas: ou que Portugal denunciava o Tratado e, portanto, saía do Tribunal Penal Internacional, ou que iria haver uma nova revisão constitucional, desta feita para atender a essa modificação que elimina a questão da complementaridade.
O Sr. Fernando Seara (PSD): - O Direito Internacional não lhe permite essa interpretação!
O Sr. Procurador-Geral de República: - Acha que não?!
Bem, este é o pensamento que me surge em face da…
O Sr. Fernando Seara (PSD): - Peço desculpa, mas o Direito Internacional não lhe permite essa interpretação!
O Sr. Procurador-Geral de República: - Foi no que pensei no momento em que estava a ouvir o Sr. Dr. Marques Guedes.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - E eu creio que o Sr. Procurador-Geral da República pensou muito bem!
O Sr. Presidente: - Sr. Procurador-Geral, peço-lhe o favor de continuar a sua intervenção.
O Sr. Procurador-Geral de República: - Se houver uma alteração deste ponto da complementaridade, parece-me que é difícil manter a constitucionalidade da adesão com a legislação que temos. É uma opinião.
Passo para outro ponto, que é o de saber se a menção da complementaridade, pela ênfase que lhe é dada e porque é o único princípio que é mencionado, não redundará num efeito contrário. Isto é, o ter de se dizer aqui que tudo isto funciona em termos de complementaridade não será fazer depender da consagração na Constituição o funcionamento ou não desse mecanismo? Isto porque há outros princípios, há outros veios estruturantes do funcionamento do TPI que não se mencionam. Menciona-se só este, pelo que um leitor menos atento poderá dizer: "Bem, quanto a este, era mesmo necessário dizê-lo, porque, se não se dissesse, alguma coisa correria mal!". Ora, isto, de alguma maneira, é enfraquecer o ponto de vista que se pretende sublinhar ou fortalecer.
A questão que me foi posta pelo Sr. Dr. Marques Guedes está também relacionada com o problema da necessidade de legislação nova, e isso é evidente, quer do
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ponto de vista substantivo quer do ponto de vista processual. Aqui, pegaria na intervenção do Dr. Alberto Costa, na parte em que se referiu à extradição e à entrega. Nesse parecer que fiz, há mais de um ano, e que só me responsabiliza a mim e não ao Conselho Consultivo, apontava os vários sectores em que se mostra absolutamente necessário legislar do ponto de vista da lei ordinária. Aliás, uma das coisas que descobri, porque não tinha essa noção, foi que, mesmo que não houvesse adesão ao Tribunal Penal Internacional, havia necessidade de legislar, por exemplo, em matéria de crimes de guerra, porque, em relação às Convenções de Genebra que Portugal ratificou, ainda há trabalho a ser feito em termos de tradução para a legislação interna das imposições dessas convenções.
Assim, não se trata apenas do Tribunal Penal Internacional, já que há instrumentos internacionais que tratam exactamente esta matéria - estou a referir as Convenções de Genebra - e que justificam que se legisle ao nível substantivo, nas previsões dos tipos legais de crimes, mas também ao nível procedimental. Aliás, saliento mais uma vez a questão do tribunal para a ex-Jugoslávia, porque, de alguma maneira, dei um contributo para um projecto de diploma que permitiria a cooperação com o tribunal da Jugoslávia (que suponho que ainda não está feito), no qual se punha exactamente o mesmo problema, que é o de regulamentar esta coisa da entrega, sobretudo para a distinguir da extradição, já que me parece que são coisas diferentes, com nuances diferentes.
Em relação às demais questões que foram colocadas, começo por referir-me ao artigo 15.º e à questão de fundo, ou seja, à questão da cidadania. O Sr. Dr. Pedro Roseta perguntou-me o que é que eu pensava em relação à questão de fundo. Ora, em relação à questão de fundo, eu não tenho de pensar nada! Tentando precisar, o que está aqui em causa é saber se se deve ou não construir, cimentar e enriquecer a CPLP, a Comunidade de Países de Língua Portuguesa. Se se entender que essa é uma opção de fundo mas de cariz obviamente político, é evidente que é bem-vinda toda esta problemática e esta disciplina. É evidente que são bem-vindas estas soluções. Se se entender que é uma questão que merece um interesse relativo ou que é para deixar cair, então parece-me que não tem qualquer razão de ser este preceito. Eu parto do princípio de que o que se pretende aqui é fortalecer e enriquecer esse tipo de comunidade e, a esse nível, com certeza, penso que sim, que está certo. Contudo, essa já não é uma opção jurídica, mas, sim, uma opção política.
Foi aqui posta a questão de saber se o acrescento "Portugal reconhece a jurisdição de" será ou não suficiente. Parece-me que a expressão "reconhecer a jurisdição" significa, no fundo, que Portugal aceita as implicações do funcionamento do Tribunal Penal Internacional. Pergunta-me se é suficiente. É evidente que, com base nesta norma, está aberto o caminho para a ratificação do tratado. As normas convencionais, porque há uma recepção automática, entram para o direito português. São infra-constitucionais, mas, de alguma maneira, suponho que sejam superiores às normas ordinárias de fonte não convencional.
O que é que se vai passar na aplicação disto?
O Sr. Fernando Seara (PSD): - Peço desculpa, Sr. Procurador, mas não há recepção automática. Há, sim, recepção plena!
O Sr. Procurador-Geral de República: - É necessária publicação, mas…
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Posso interrompê-lo, Sr. Procurador?
O Sr. Procurador-Geral de República: - Com certeza, Sr. Deputado.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Agradeço-lhe o facto de me ter deixado fazer um pequeno apontamento para dizer o seguinte: penso que na fórmula que está apresentada não se trata apenas da questão da aceitação da jurisdição do Tribunal. Além do mais, é necessário fazê-lo nas condições previstas no próprio Estatuto, o que, a meu ver, significa que há uma verdadeira constitucionalização das normas do Estatuto para que elas possam operar plenamente, não vindo a levantar questões como as da eventual desconformidade, suscitada na questão pertinente do Sr. Deputado Alberto Costa. Ou seja, a própria Constituição não só admite que se aceita a jurisdição como refere plenamente que se aceita a jurisdição nas condições nele previstas, razão pela qual essas normas passam a ter um valor constitucional incorporado na Constituição a partir desta norma. Só assim elas prevalecerão sobre a ordem jurídica interna em todos os aspectos e valerão como norma especial na interpretação da Constituição, designadamente para efeitos do estatuto de imunidade dos titulares de cargos públicos, políticos, etc.
O Sr. Procurador-Geral de República: - Eu iria pelo caminho da consideração destas normas como normas especiais em relação às outras, mas sempre ao nível da lei ordinária.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não é possível reproduzir as palavras do orador.)
O Sr. Presidente: - Ninguém o está a ouvir para efeitos de gravação! Todavia, se quiser intervir, faça favor, Sr. Deputado.
O Sr. Jorge Lacão: - É que esta é uma questão decisiva para a futura interpretação desta matéria.
O Sr. Procurador-Geral de República: - A interpretação que faço deste preceito é a de que é uma norma que vai dar cobertura constitucional às normas da Convenção, ou seja, do Estatuto de Roma. Essas normas têm natureza equivalente à lei ordinária, mas surgem ao lado das outras normas, leis ordinárias, como normas especiais. Se a colisão ou a contradição for com normas constitucionais propriamente ditas - é o caso, por exemplo, do que se tiver dito sobre a extradição -…
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sabe por que é que isto é decisivo, Sr. Procurador? É que se fosse essa a interpretação que viesse a prevalecer, o Sr. Deputado Alberto Costa tinha razão ao dizer que, nesse caso, não bastava esta cláusula de recepção. Significaria tal que era necessário ir à Constituição e desfazer todas as desconformidades encontradas caso a caso com as normas do TPI. Isto porque, se as normas do TPI tivessem valor infra-constitucional, as normas da Constituição, em
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qualquer caso, prevaleceriam sempre. É o caso, por exemplo, das imunidades dos titulares de cargos políticos. Aí voltaríamos a ter um problema.
O Sr. Procurador-Geral de República: - Eu pergunto é se a questão não tem de ser colocada em termos de compatibilização entre as várias normas constitucionais e esta norma constitucional.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Com esta norma constitucional que constitucionaliza as normas do TPI!
O Sr. Presidente: - Sr. Procurador-Geral, peço desculpa por estar a interrompê-lo, mas não podemos entrar neste tipo de diálogo que, sendo um diálogo muito interessante entre juristas, deve ser tido noutros locais que não este.
Peço ao Sr. Procurador-Geral que continue e termine logo que possível, não sendo mais interrompido e não sendo estabelecidos mais diálogos.
O Sr. Procurador-Geral de República: - Foi-me ainda colocada a questão da necessidade da alteração do artigo 34.º, relativo às buscas. O que poderia dizer sobre isto é que esta alteração é ditada por uma necessidade de política criminal e, portanto, são necessidades sentidas no terreno que apontarão para aqui. Mas o facto de o artigo 34.º permitir que se entre durante a noite no domicílio com o consentimento é uma abertura que não está consagrada na lei ordinária. Porquê? Porque na lei ordinária, mesmo com o consentimento, esta possibilidade não existe e, portanto, há uma protecção mais ampla ao nível da lei ordinária do que aquilo que a Constituição permitiria. Tal significa que, tanto quanto me é dado a conhecer, não há uma experiência no terreno quanto à entrada com consentimento em casa de habitação durante a noite, porque a lei ordinária o não permite.
Quanto à questão do espaço de liberdade, de segurança e de justiça, disse já aquilo que, fundamentalmente, me parecia. Quanto ao saber se é necessário ou não, se é imprescindível ou não, devo dizer que não colocaria a necessidade desta expressão neste preceito ao mesmo nível da menção da complementaridade. Estou convencido de que não prejudica e que pode ter alguma utilidade. Na questão da complementaridade pode ter aquele efeito perverso, que é o seguinte: se se sentiu a necessidade de ir buscar este princípio e de o mencionar, poderá entender-se que, se não fosse mencionado, poderia ou não ter lugar. Parece-me que - como foi referido na objecção ao Sr. Dr. Marques Guedes - isto é de tal maneira estruturante do próprio funcionamento do TPI que vejo como uma hipótese remotíssima a possibilidade de vir a ser alterado.
O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Dá-me licença que o interrompa?
O Sr. Procurador-Geral da República: - Faça favor.
O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Uma vez que também nos artigos 7.º e 8.º existem cláusulas de carácter geral, designadamente em relação ao quadro da União Europeia, se formos agora fazer, ainda que com carácter genérico e com os inconvenientes que referiu de não dar resposta a todas as situações pontuais que, eventualmente, possam ocorrer em relação ao espaço de liberdade, de segurança e de justiça, também não estaremos a permitir uma leitura perversa, no sentido de que, então, as outras áreas não beneficiam deste princípio de receptividade que se dá em relação ao espaço de liberdade e de justiça?
O Sr. Procurador-Geral da República: - Sr. Deputado, o que me parece é que há aqui uma alteração fundamental, em termos de evolução da União Europeia, com a criação dos três pilares, que estariam, de alguma maneira, cobertos pela expressão "coesão económica e social", faltando agora uma menção expressa, ou melhor, mais explícita a este terceiro pilar. Com esta expressão "espaço de liberdade, de segurança e de justiça", que é consagrada para designar exactamente aquilo que se pretende com este terceiro pilar e com as funções do Conselho da União Europeia, eu diria que o panorama fica completo, tocando-se os pontos em que a União Europeia hoje procede.
Terei, com certeza, deixado questões por responder, mas confesso que, neste momento, é tudo o que queria dizer.
O Sr. Presidente: - Sr. Procurador-Geral, agradeço a sua intervenção e o facto de ter vindo cooperar com a Comissão. Foi certamente um prazer tê-lo entre nós e foi muito útil para todos e para os trabalhos da Comissão. Agradeço-lhe, por isso, em nome de todos, a sua vinda e a sua colaboração connosco.
Srs. Deputados, antes de ouvirmos o Sr. Bastonário da Ordem dos Advogados, teremos de fazer um pequeno ponto de ordem.
O Sr. Procurador-Geral da República: - Sr. Presidente e Srs. Deputados, agradeço a oportunidade que me deram e peço licença para me despedir de todos, em geral.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Sr.as e Srs. Deputados, temos de fazer um ponto de ordem sobre a continuação dos trabalhos da Comissão, para além de nos termos de entender um pouco melhor sobre os tempos de intervenção.
Chamo a atenção dos Srs. Deputados para o facto de esta audição ter demorado 2 horas e 7 minutos. Ora, temos marcadas três audições por dia - bem sei que algumas delas são mais limitadas a determinados temas, mas há outras, as dos constitucionalistas, designadamente, que são até mais amplas. Temos, portanto de nos entender! Se é para fazermos audições em que a pessoa que vem ser ouvida fala 10 minutos e o conjunto dos Srs. Deputados fala 1 hora e 30 minutos… Temos de nos entender sobre isto! Por mim, se houver esse entendimento, estou disponível para estar cá, do dia 1 ao dia 15 de Julho, de manhã à noite, mas, naturalmente, é necessário que haja este entendimento e este consenso à volta da condução dos trabalhos. E isto tanto mais - e era neste ponto que eu queria falar - que estamos a ter dificuldades com a marcação das audições.
Desde logo, no próximo dia 8, sexta-feira, nem o Sr. Comissário António Vitorino, nem o Sr. Ministro da Justiça podem comparecer. Temos apenas confirmadas, para o dia 12, três audições (a do Sr. Embaixador Costa Lobo, a do Dr. Bernardo Colaço e a do Conselheiro Mário Torres) e, para dia 19, a audição do Sr. Presidente do Conselho Superior da Magistratura, não havendo ainda confirmação das audições dos dois constitucionalistas, Professores Vital Moreira e Gomes Canotilho.
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Isto levou-me a uma consulta informal às várias bancadas (na ausência do Sr. Luís Marques Guedes, consultei o Sr. Deputado Vice-Presidente), no sentido de cancelarmos a reunião do dia 8, ou seja, da próxima sexta-feira, pois penso que esta fase dos trabalhos não faz muito sentido sem haver um mínimo de audições (a outra hipótese era fazer uma reunião de discussão, mas penso, e ouvi as bancadas, que foram todas consensuais neste aspecto…), bem como a reunião do dia 11, que seria a reunião seguinte. Ora, a razão para o cancelamento da reunião do dia 8 seria a mesma para a do dia 11, que seria nocturna, ou seja, o facto de não se terem realizado audições suficientes.
Para sermos realistas, tendo em conta as dificuldades de comparência às audições de várias das pessoas que estavam para ser ouvidas e o tempo que estamos a demorar para cada audição, tudo isto me leva a, sem prejuízo de reunir a Mesa e conversarmos sobre esta matéria, na próxima semana, pensar que vamos, cada vez mais, deslizar no tempo, para que os trabalhos se concentrem nos primeiros dias de Julho. É visível que assim será.
É com esta situação que estamos confrontados e teremos ocasião de falar sobre ela. Há várias confirmações, como a do Doutor Fausto Quadros, mas, por exemplo, o Sr. Comissário António Vitorino só tem a possibilidade de vir no dia 29 de Junho. Ora, havendo uma audição fundamental, e talvez até outras, que fica já para fins de Junho, teremos de repensar o nosso calendário (mas numa das próximas reuniões, não agora).
Hoje, importa só dizer que a Mesa, ouvidas as bancadas, decidiu cancelar as duas próximas reuniões, a de sexta-feira e a de terça-feira à noite… Perdão, a de segunda-feira à noite, porque segunda-feira é que é dia 11… Exactamente, tínhamos resolvido que, nessa semana, a nossa reunião não seria na terça-feira mas, sim, na segunda-feira. Dia 12 é a véspera de 13, que é feriado, como, aliás, é uma verdade digna de um ex-presidente da República Portuguesa, de há longo de tempo, que dizia estas verdades óbvias!
Srs. Deputados, ficamos, então, assim.
O Sr. Deputado Guilherme Silva assumirá a presidência da Comissão, para a audição do Sr. Bastonário da Ordem dos Advogados, pois terei de me ausentar.
Peço, então, ao Sr. Deputado Guilherme Silva que me substitua, certamente sem qualquer prejuízo para os trabalhos, e espero que até com algum benefício!
Pausa.
Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Vice-Presidente Guilherme Silva.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, vamos retomar os nossos trabalhos, com a audição do Sr. Bastonário da Ordem dos Advogados.
Sr. Bastonário, mais uma vez agradeço a sua disponibilidade para vir aqui dar o testemunho da Ordem dos Advogados, pela sua voz, em relação a uma matéria da maior relevância como é a da revisão constitucional. Esta revisão tem particular incidência em aspectos relacionados com a justiça, pelo que é indispensável para a utilidade dos nossos trabalhos ouvir a Ordem dos Advogados.
Começo por dar a palavra ao Sr. Bastonário para nos dar a sua opinião relativamente aos projectos que estão sobre a mesa, seguindo-se depois os pedidos de esclarecimento que os Srs. Deputados entenderem fazer.
Tem a palavra, Sr. Bastonário.
O Sr. Bastonário da Ordem dos Advogados (Pires de Lima): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Apresento os meus cumprimentos a VV. Ex.as e agradeço a circunstância de convocarem a Ordem para a exposição do seu ponto de vista sobre estas matérias, que constituem o projecto de revisão que se propõe para a Constituição portuguesa.
Farei apenas algumas notas relativamente a cada um dos preceitos que vêm acompanhados pelas propostas de revisão, o primeiro dos quais é o artigo 7.º, relativo às relações internacionais. Penso que, em última análise, qualquer das propostas apresentadas tem em vista reconhecer a jurisdição do Tribunal Penal Internacional. Este reconhecimento implica, na opinião que temos vindo a manifestar (nós, isto é, a Ordem, o plural não é majestático) que o reconhecimento da jurisdição do Tribunal Penal Internacional, seja como subsidiária, complementar ou conforme se quiser entender, traduz sempre, de alguma forma, uma derrogação dos princípios enunciados no artigo 33.º da Constituição, no que respeita à colaboração que as autoridades portuguesas terão de vir a dar em relação à possibilidade de outra entidade fazer a aplicação da pena de prisão perpétua.
Veríamos com muito interesse e com muito agrado o reconhecimento da jurisdição do Tribunal Penal Internacional, caso esta situação se não verificasse, porquanto consideramos constituir um retrocesso a alteração desta regra de ouro, que vigora em Portugal há muitos anos, que é a de não prestarmos a colaboração a tribunais ou entidades que possam aplicar a pena de prisão perpétua.
Uma outra questão relaciona-se com o artigo 15.º. Segundo a proposta que lemos, admite-se, em condições de reciprocidade, que cidadãos não portugueses possam exercer determinadas funções, especificando-se os cargos para que não seriam admitidos - é o caso do Presidente da República, do Presidente da Assembleia da República, do Primeiro-Ministro, do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, do Presidente do Tribunal Constitucional, dos serviços das Forças Armadas e da carreira diplomática.
Entendemos não fazer parte das nossas atribuições apreciar este alargamento do âmbito de funções, no entanto, esta tipificação das excepções suscita-nos algumas dúvidas. Uma delas é a seguinte: poderá alguém ser eleito Vice-Presidente da Assembleia da República e ficar privado de substituir o Presidente, apenas e só porque não é nacional? Será que o cargo de Procurador-Geral da República ou o de Director da Polícia Judiciária poderá ser exercido por um estrangeiro, ou deverá ser exercido por um estrangeiro? E o mesmo se diga dos cargos de Presidente do Tribunal de Contas ou de Presidente do Supremo Tribunal Administrativo. Estará nas intenções abrir a tal ponto o leque de apetências ou a possibilidade de exercício de funções que se crie uma hipótese como a que referi ou outras que não me vêm agora à memória?
Julgo que as excepções aqui suscitadas abrem perspectivas que não são compreensíveis, dentro do pensamento que à Ordem compete expressar, no sentido de que nos parece haver muitos outros cargos que não deveriam ser exercidos por pessoas que não tenham a nacionalidade portuguesa de origem.
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O artigo 34.º é talvez aquele em que se esperava que a Ordem dos Advogados emitisse uma opinião mais crítica, mas a nossa crítica é precisamente num sentido positivo. Parece-nos que o que se está a passar, no caso da criminalidade qualificada - e o que se qualifica, aqui, é o problema do tráfico de estupefacientes -, impõe a tomada de medidas drásticas. Por isso, não nos surpreende que a Assembleia dê este passo, a nosso ver importante e decisivo, de se permitir que, para além do consentimento do visado, a existência de uma ordem de uma autoridade judicial possa impor o acesso ou a entrada no domicílio da pessoa, nos casos de criminalidade relacionada com o tráfico de estupefacientes.
No que diz respeito ao artigo 56.º, entendemos que a redacção que se coaduna com o espírito do direito de associação, tal como a Ordem o vê, é a da proposta n.º 1/VIII, do PSD. Na realidade, a outra redacção que nos é sugerida limitaria, logo de princípio e dentro da qualificação que está feita, a possibilidade do direito de associação da Guarda Nacional Republicana. E entendemos que o direito de associação, embora com limitações pontuais, deve abranger também a Guarda Nacional Republicana.
Parece-nos, de acordo com a leitura que fazemos, que a proposta n.º 2/VIII, ao falar apenas de forças de segurança de natureza civil, tal como estão a ser definidas neste momento, excluiria - segundo nos parece, mas talvez estejamos equivocados - as forças de segurança de natureza paramilitar, como nos parece ser o caso da Guarda Nacional Republicana.
Finalmente, no que diz respeito ao exercício dos cargos de natureza política de âmbito nacional, regional ou local, julgamos que é salutar a limitação. Não vemos por que é que ela não resulta da própria Constituição, mas, obviamente, isso seria ir além da nossa competência. De qualquer forma, repito, a limitação da renovação parece-nos salutar, sendo esse um princípio que deverá ser consagrado.
Sr. Presidente e Srs. Deputados, sumariamente é o que me competiria dizer pelo mandato que recebi dos meus colegas da Ordem dos Advogados.
O Sr. Presidente (Guilherme Silva): - Tem a palavra o Sr. Deputado Narana Coissoró.
O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Sr. Presidente, Sr. Bastonário, em primeiro lugar, os meus cumprimentos.
Quanto ao artigo 15.º da proposta de revisão constitucional n.º 1/VIII, relativo aos estrangeiros, apátridas e cidadãos europeus, no que diz respeito ao facto de os cidadãos dos países lusófonos, e com maior razão os do Brasil, poderem exercerem todos os cargos em questão, menos os que estão excepcionados, o Sr. Bastonário questionou porquê estes e não outros! Também eu poderia perguntar se um cidadão que se encontre nestas condições pode ser ministro, porque do n.º 3 do artigo 15.º consta apenas o cargo de Primeiro-Ministro. E pode ser ministro dos negócios estrangeiros de Portugal mas não pode ser diplomata? Ora, esta lista ou tem de ser suficientemente ampla ou, então, terá de ser feita uma nova redacção.
Foi aqui dito que as designações constantes do artigo representam órgãos de soberania, mas não parece ser este o intuito porque do artigo consta o Presidente da Assembleia da República, o Primeiro-Ministro, não se refere o Governo, e constam ainda os cargos de Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e o Presidente do Tribunal Constitucional. Ora, se se tratasse de representar o órgão de soberania - se é que os consideramos com essa acepção - teria de constar a expressão "tribunais".
Acresce ainda a referência ao serviço nas Forças Armadas e na carreira diplomática. E eu pergunto: esta última envolve apenas os diplomatas de carreira, ou aqueles que não o são? Por exemplo, pode ser nomeado embaixador itinerante ou embaixador para determinadas funções um cidadãos nas condições previstas no artigo?
Em segundo lugar, há uma restrição, agora na perspectiva contrária, já que se condiciona a assunção de lugares à observância de convenções internacionais e em condições de reciprocidade. É preciso que o país de onde o cidadão é natural também conceda aos cidadãos portugueses, residentes permanentemente nesses países, o acesso a todos os lugares menos aos que se encontram excepcionados. Portanto, trata-se de uma condição restritiva.
Quanto às buscas domiciliárias, matéria sobre a qual mais me interessava ouvi-lo, V. Ex.ª referiu estar de acordo com a alteração por nós proposta, o que é bom, porque houve quem defendesse a reserva ou a chamada protecção absoluta do domicílio de noite, Gostaria apenas de saber o que é que o Sr. Bastonário pensa sobre esta proibição ou protecção absoluta do domicílio durante a noite que, segundo o Código de Processo Penal, vigora entre as 21 horas e as 7 horas da manhã.
O Sr. Presidente (Guilherme Silva): - Tem a palavra o Sr. Deputado Pedro Roseta.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Bastonário, gostaria de agradecer a sua vinda a esta Comissão e dizer que conhecemos já largamente as suas posições, designadamente sobre a eventual ratificação do Estatuto do TPI e a alteração constitucional que ela torna necessária. Não estamos agora num momento de discussão, pelo que quero apenas colocar questões, porque entendo que é o que importa fazer no tempo de que dispomos. E vou concentrar-me não só sobre este ponto do Estatuto do como, também, sobre o artigo 15.º.
Se o Sr. Bastonário e o Sr. Presidente me permitem, começarei por dar algumas respostas breves, uma vez que o Sr. Bastonário colocou algumas questões.
Quanto ao primeiro ponto, e sabendo que as nossas posições não são coincidentes, quero colocar a seguinte questão: é verdade que, embora sendo complementar, o Estatuto do TPI implica que, em circunstâncias muito raras, que já foram referidas e que não vou recordar, possa ser aplicada, não em Portugal mas noutros ordenamentos, uma pena que todos rejeitamos, a pena de prisão perpétua. Ora, gostaria de saber se o Sr. bastonário é sensível a dois aspectos.
Primeiro, tendo em conta a declaração interpretativa, tendo em conta a referência que consta do n.º 7 do artigo 7.º, da proposta do PSD, que refere "(…) em condições de complementaridade face à jurisdição nacional (…)", sendo claro que não há extradição de portugueses, porque na jurisdição nacional continuam a aplicar-se as penas existentes no direito português (e, portanto, não se trata de entrar algo em Portugal), gostaria de saber se é sensível a este aspecto.
Segundo, Gostaria de saber se é sensível ao aspecto de que, como alguns dizem, se não houver uma hierarquia de
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, não há valores. É que o objectivo essencial desta ratificação, pelo menos para o PSD, é a protecção de um valor superior, o do direito à vida e da dignidade da pessoa humana. Todos os outros valores são, obviamente, muito importantes, mas o valor objectivo, fundamental que queremos transmitir, de toda a nossa experiência quase milenária, é este: os portugueses põem em primeiro lugar o direito à vida.
Ora, não lhe parece que a ratificação do Estatuto é um passo fundamental na consagração do primado da pessoa e do seu direito à vida, primeiro, na medida em que previne e pune o crime de genocídio e os atentados ao direito à vida (as mortes, os massacres indiscriminados, etc.) e, segundo, na medida em que, por causa da participação activa dos diplomatas e de outros juristas portugueses na elaboração do Estatuto, foi possível, ainda que com muita dificuldade, eliminar a pena de morte?
Pensamos que este Estatuto pode ser uma alavanca fundamental para a consagração da abolição da pena de morte ao nível universal. Esta é uma matéria na qual Portugal se destaca e já conseguiu na Europa, através do Conselho da Europa e do esforço de muitas pessoas - não vou referir nomes para não ferir outros, mas entre eles encontram-se advogados, parlamentares, juizes, juristas, políticos, diplomatas - que, hoje, nos 43 países do Conselho da Europa, ninguém ouse aplicar a pena de morte, mesmo os que ainda não a aboliram do ordenamento, como é o caso da Turquia, porque sabem que existe hoje esta consciência iniciada por nós, que fomos pioneiros, há 150 anos, de que a Europa não pode aceitar a pena de morte.
Repito, julgo - e o PSD também - que esta pode ser a alavanca para acabar com a pena de morte no mundo.
Gostaria ainda de fazer a seguinte reflexão. Entendo, pelo menos ao nível político (estou a falar como político e não como jurista), que a perfeição não é neste mundo e, para atingir o essencial, não se pode ser perfeito em tudo. E até sou daqueles que entende - esta é uma opção pessoal, não tem nada a ver com o meu partido e, por isso, não vou desenvolvê-la - que a tentativa de atingir a perfeição na política já é, em si, o germe do totalitarismo.
O segundo ponto que quero focar diz respeito ao artigo 15.º. A posição que defendemos é a que consta da proposta. Perguntam-me: porquê estes cargos e não outros? Por uma razão muito simples: esta é uma resposta ao grande país irmão que é o Brasil. A Deputada Manuela Aguiar, e eu próprio, várias vezes apresentámos uma proposta semelhante (não sei se a Sr.ª Deputada, como Deputada eleita pelo círculo da emigração, sobretudo como uma das iniciadoras desta proposta, juntamente comigo e com outros, quererá depois acrescentar algo).
O que é que visamos com isto? Em primeiro lugar, visamos proteger 1,5 milhões de portugueses. Às vezes as pessoas pensam: "Estamos a conceder". Claro que estamos a conceder, mas há algo que não podemos esquecer: o objectivo essencial, para além da reciprocidade e para além do aspecto tão simples referido pelo Sr. Bastonário, que aliás já tinha sido referido pelo Sr. Procurador, é que ou há uma comunidade de cidadãos ou não há qualquer comunidade. A CPLP, como comunidade de Estados, já se percebeu que não vai a parte nenhuma! Só será comunidade se houver uma comunidade de cidadania, ainda que limitada. E há um país que se adiantou à existência da CPLP, que foi o Brasil. Portanto, trata-se da reciprocidade em relação aos brasileiros para proteger e para alargar os direitos de 1,5 milhões de portugueses que vivem no Brasil, enquanto que em Portugal só vivem 30 000 ou 25 000 brasileiros.
Em relação às duas questões que colocou, quanto a saber se esses cidadãos poderiam assumir o cargo de vice-presidente da Assembleia da República, devo dizer que, a nosso ver, essa questão não se coloca, porque o vice-presidente da Assembleia da República não tem funções próprias nem pode substituir-se às funções constitucionalmente atribuídas ao Presidente da Assembleia da República. Por exemplo, a substituição interina de um chefe de Estado não pode ser feita por um vice-presidente. Portanto, não tendo estas funções próprias, julgo que a questão não se coloca.
É evidente que pode ser eleito vice-presidente. Mas, não devemos esquecer que há quatro vice-presidentes e não apenas um, portanto essa questão nunca se colocaria. Se, em termos de hipótese académica, um brasileiro fosse eleito vice-presidente, haveria mais três e, por isso, nunca substituiria o Presidente da Assembleia da República.
Finalmente, no que diz respeito ao Procurador-Geral da República, gostaria de chamar a sua atenção para o facto de isso já ser permitido. Não se trata de um órgão de soberania e já está abrangido pelo n.º 3 do artigo 15. Ou seja, desde que haja reciprocidade, já hoje o Procurador-Geral da República pode ser um cidadão brasileiro, pelo que, quanto a esta matéria, não se acrescenta nada.
É tudo, Sr. Presidente. Apenas gostaria de saber se, com estas explicações, o Sr. Bastonário não poderá repensar a sua posição sobre o artigo 15.º, que, aliás, não foi tão categórica como agora estou a tentar dizer.
O Sr. Presidente (Guilherme Silva): - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, começo por cumprimentar o Sr. Bastonário, a quem gostaria de colocar duas questões muito directas sobre a alteração proposta pelo PP ao artigo 34.º.
A primeira tem que ver com o problema da hierarquia de valores que resulta desta proposta. Ou seja, dou por adquiridos, e revejo-me neles, os considerandos que fez relativamente a alguns impedimentos e obstáculos que existem, nos dias de hoje, ao normal exercício da autoridade para prevenção de determinado tipo de criminalidade, mas a minha questão é esta: porquê este tipo de crimes e não outros?
Será que o Sr. Bastonário é da opinião que a Ordem entende que este tipo de crime é mais grave? E digo isto porque, na pratica, esta inscrição na Constituição abrirá uma excepção que, hierarquicamente, colocará este tipo de criminalidade à frente de outras para as quais a mesma excepção não ficará constitucionalmente salvaguardada - estou a pensar em tráfico de pessoas, em terrorismo e até na violência doméstica. Isto leva-me à segunda questão que queria colocar-lhe, a do problema do flagrante delito.
Na Constituição espanhola, na qual se inspira esta proposta, para além das situações previstas no artigo 34.º da Constituição da República Portuguesa, o consentimento do cidadão residente e a hipótese do mandato judicial, existe o problema do flagrante delito, que também é contemplado constitucionalmente como uma das situações perante a qual cede a reserva da intimidade do domicílio. Parece-me que há, de facto, situações de flagrante delito
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em que a não actuação das autoridades, por força de um princípio como este, nem sequer é compreendida pelos próprios cidadãos.
Os cidadãos não conseguem compreender que situações de manifesta violação da lei, seja de violência doméstica, em que os vizinhos ouvem o que se está a passar e a polícia não pode intervir, seja de venda de droga, em que as câmaras das televisões filmam em directo a transacção - e o Sr. Bastonário, se calhar, como nós todos, já teve oportunidade de ver programas de televisão em que se filma em directo a transacção da droga por um postigo de uma porta, à noite, em que entra a nota e sai a embalagem da droga -, fiquem impunes.
Este sentimento de impunidade por parte das autoridades, por força de um constrangimento como este, pode, ou não (é um bocadinho esta a opinião que gostaria de escutar da sua parte), ser ladeado se houver uma adaptação não apenas intuito a determinado tipo de criminalidade - este ou outro, de acordo com uma hierarquia de valores diferente -, mas prevendo-se também a situação de flagrante de delito, se é que, de facto, também entende que existe aí um empecilho ao normal exercício da autoridade na prevenção da criminalidade?
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Sr. Presidente, posso fazer uma correcção àquilo disse anteriormente?
O Sr. Presidente (Guilherme Silva): - Tem a palavra, Sr. Deputado.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Sr. Presidente, tenho de fazer uma correcção, graças a uma chamada de atenção que me foi feita pelo Sr. Deputado José Matos Correia, que é a seguinte: o artigo 132.º da Constituição diz que "Durante o impedimento temporário do Presidente da República, bem como durante a vacatura do cargo até tomar posse o novo Presidente eleito, assumirá as funções do Presidente da Assembleia da República ou, no impedimento deste, o seu substituto.". Embora corrija aquilo que disse há pouco - e agradeço ao Deputado José Correia -, mantenho a posição de que, havendo quatro vice-presidentes, e não sendo sequer previsível que haja menos de quatro, no caso pouco provável de um brasileiro ser eleito vice-presidente da Assembleia da República (embora volte a dizer que isto é uma hipótese académica, que, aliás, também se põe no Brasil, mutatis mutandis, porque aqui há uma questão da reciprocidade. Além disso, não esqueçamos que o Brasil tem duas Câmaras, o Senado e a Câmara dos Deputados, e nós só temos uma), o problema nunca se poria na prática, porque havendo este impedimento constitucional no artigo 15.º, que se mantém, para estes efeitos o substituto teria de ser sempre um dos outros três vice-presidentes e não o que tivesse a nacionalidade brasileira. Portanto, faço esta correcção ao que disse há pouco, mas quero precisar que o problema, a meu ver, continua a não existir.
O Sr. Presidente (Guilherme Silva): - Tem a palavra o Sr. Deputado António Filipe.
O Sr. António Filipe (PCP): - Sr. Presidente, Sr. Bastonário, quero colocar-lhe duas questões sobre temas diferentes.
A primeira tem que ver precisamente com este problema do reconhecimento de direitos políticos a cidadãos de outros países. Coloco esta questão porque não fiquei a perceber muito bem se o Sr. Bastonário colocou uma objecção de fundo a alguma equiparação de direitos políticos, ou se o problema tem que ver com a configuração concreta da norma.
Devo dizer que eu próprio fiz alguns reparos, não direi algumas objecções, numa reunião anterior, relativamente a algum desequilíbrio que o artigo 15.º da proposta nos parece ter, na medida em que, por exemplo, a nível do Governo, só prevê a restrição ao cargo de Primeiro-Ministro e não, por exemplo, aos cargos de Ministro dos Negócios Estrangeiros ou da Defesa Nacional, que, segundo esta formulação, poderiam ser exercidos por um cidadão estrangeiro. Portanto, creio que esta norma, a admitir o princípio, careceria, naturalmente, de ter alguma reformulação.
Mas a minha questão é se o Sr. Bastonário coloca uma objecção ao princípio em si, ou se, pelo contrário, admite que há um princípio de equiparação de direitos que deveria ser aprofundado na nossa Constituição, sendo que, no entanto, a norma não deveria ser exactamente esta.
A segunda questão que quero colocar-lhe diz respeito ainda ao Tribunal Penal Internacional (TPI) e ao problema da relevância do acolhimento, ainda que implícito, da prisão perpétua na ordem jurídica portuguesa, por via deste tribunal.
O Sr. Bastonário já se referiu a este assunto, mas a questão que lhe coloco, e sobre a qual gostaria de poder contar com a sua reflexão, é referente às consequências que essa recepção poderia ter relativamente à evolução futura do ordenamento jurídico português em matéria penal, concretamente em matéria de molduras penais.
Faço-lhe esta pergunta, porque nos tempos que correm está um pouco em voga pensar que as insuficiências da justiça penal se resolveriam aumentando as penas, portanto há como que uma reivindicação difusa de que deveriam ser aumentadas as penas mais graves, de que o ordenamento jurídico português tem penas brandas.
Digamos que, aqui ou ali, designadamente em alguns órgãos de comunicação social, esta ideia aparece difundida e fica-se um pouco com o pensamento de que, admitindo que Portugal aceita plenamente na sua ordem jurídica - a qual nesse aspecto, do nosso ponto de vista, até é bastante avançada - a jurisdição de um tribunal que prevê a aplicação da pena de prisão perpétua, corremos o risco que isso possa vir ajudar a que esse tipo de ideias, de que os problemas da justiça penal se resolvem com o endurecimento de penas, possa fazer caminho. Gostava de poder contar com a reflexão do Sr. Bastonário sobre esta matéria.
O Sr. Presidente (Guilherme Silva): - Tem a palavra a Sr.ª Deputada Maria Manuela Aguiar.
A Sr.ª Maria Manuela Aguiar (PSD): - Sr. Presidente, queria lembrar que o artigo 15.º da Constituição da República Portuguesa procura dar reciprocidade ao artigo 12.º da Constituição brasileira, e isso explica a sua redacção.
O artigo 12.º da Constituição brasileira só exclui do estatuto de igualdade de direitos políticos conferidos aos portugueses os cargos que são, nos termos desse artigo, "inerentes aos brasileiros natos". Os cargos inerentes aos brasileiros natos são aqueles que constam dessa lista e aos quais procuramos corresponder na nossa lista de
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excepções. Portanto, a lógica é essa, é uma lógica de reciprocidade. Não é, digamos, um articulado que parta da nossa iniciativa e em que estejamos a configurar as situações em que um estrangeiro, um brasileiro, um lusófono, poderá, ou não, exercer esses cargos.
Julgo que um dos grandes óbices a uma aceitação desta equiparação, pelo menos na Assembleia da República, por parte de alguns políticos, que foi tão fácil…
O mais difícil foi conseguido em 1971, também em resposta à emenda n.º 1 da Constituição brasileira de 1969. A meu ver, foi o mais difícil, porque se tratou da concessão da igualdade de direitos políticos, de direitos civis e do reconhecimento da capacidade eleitoral activa para órgãos de soberania, que é realmente aquele limite que, na Europa, a nível de União Europeia ou em qualquer país da Europa, nunca foi ultrapassado. Isto foi feito por nós em 1971/1972. É interessante verificar que foi um governo ultranacionalista, uma ditadura de direita que conseguiu conceber esta ideia de uma comunidade transnacional, sem grande dificuldade, sem grande problema.
Esta dificuldade que se sente de dar apenas um passo em frente leva-me a pensar que, se realmente não tivéssemos adquirido o que adquirimos em 1971, hoje esse estatuto não seria possível, em democracia, o que, para mim, não deixa de ser, digamos, profundamente chocante.
Que reciprocidade damos nós aos brasileiros plenamente? Damos a reciprocidade a nível local, na eleição do Parlamento e, julgo, no que respeita à magistratura, excluindo os tribunais superiores, porque é isso que está na lei de 1972. Portanto, este é, digamos, o patamar inferior da reciprocidade que está consagrado: uma plena reciprocidade no que respeita aos direitos civis, ou quase, com fortes restrições no que respeita ao estatuto de direitos políticos, a partir de 1989, a partir da data em que a Constituição brasileira, por pressão, por influência de uma fortíssima comunidade portuguesa, deu esse passo em frente.
Por isso, o que está em causa é dar aos brasileiros, em Portugal, um estatuto de direitos políticos que lhes permita o acesso aos órgãos próprios de governo das regiões autónomas, aos cargos de deputado da Assembleia nacional e de ministro e à magistratura dos tribunais superiores.
Chamo também a atenção para uma outra questão que tem sido muito debatida na Assembleia da República, que é a ideia de que estamos a conceder estes direitos políticos ao universo dos brasileiros, o qual é imensamente superior aos dos portugueses; a ideia de que estamos a comparar um pequeno País de 10 milhões de residentes com um país de 160 milhões de residentes.
Mas esta comunidade, baseada nestes dois estatutos, não beneficia do princípio da livre circulação. Por isso, estes direitos, ao contrário do que acontece na União Europeia, que julgo ser sempre o quadro de referência, só são atribuídos a imigrantes, numa concepção técnico-jurídica, isto é, a imigrantes propriamente ditos, a residentes permanentes, a residentes no País há longos anos. Portanto, esta panóplia magnífica de direitos não é dada a cada brasileiro que está no Brasil e que queira vir para Portugal mas, sim, àqueles que conseguiram uma autorização de residência em Portugal, que aqui viveram largos anos e que, portanto, estão verdadeiramente assimilados.
O Sr. Presidente (Guilherme Silva): - Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, Sr. Bastonário, queria suscitar-lhe, porventura, uma única questão em torno da problemática da ratificação, ou não, do Estatuto do Tribunal Penal Internacional.
Creio que na fase adiantada em que esta controvérsia tem estado já terá resultado claro que a questão da pena de prisão perpétua, mesmo com o seu carácter não definitivo no quadro do Estatuto do TPI, em qualquer caso, mesmo com a ratificação do Estatuto, não significa a sua incorporação na ordem jurídica interna e, portanto, jamais a sua aplicabilidade ao nível jurisdicional por parte dos nossos próprios tribunais.
Dito isto, a questão que, em última instância, se revela incontornável é a do chamado opting in ou opting out, ou seja, aderimos ou ficamos de fora. Estamos a tratar de uma matéria que nos coloca num contexto internacional, portanto não numa lógica de mera decisão para efeitos exclusivamente nossos, uma vez que se trata de dar ou não dar contributo para a restruturação de uma certa capacidade de o Direito Internacional gerar uma capacidade jurisdicional própria.
Assim, queria saber, por parte do Sr. Bastonário, se, em última instância, conhecendo que o conjunto do Estados membros da União Europeia subscreveram o Estatuto do TPI (não sei se me escapará algum Estado que, no quadro do próprio Conselho da Europa, não tenha já subscrito o Estatuto do TPI) e tudo ponderado, o nosso melhor testemunho a favor da estruturação do Direito Internacional e, nele, da salvaguarda do primado dos direitos humanos - apesar de alguma contrariedade, relativamente a aspectos pontuais que, no Estatuto do TPI, nos não agradem - não é estar do lado de todos aqueles que integram a civilização dos Estados de direito, embora, provável e efectivamente, acompanhados por outros Estados de mais duvidoso cumprimento dessas regras. Ou seja, se o nosso contributo não é estar do lado do opting in e não ficar do lado do opting out.
Se assim é, gostaria ainda de saber se o Sr. Bastonário nos poderia dar testemunho, caso exista, de alguma instituição também representativa dos advogados ou das profissões liberais ligadas ao sistema judiciário que, no quadro da União Europeia ou do Parlamento Europeu, dos países membros, tenha tomado uma posição hostil à possibilidade dos respectivos Estados virem a rectificar o Estatuto do TPI.
O Sr. Presidente (Guilherme Silva): - Tem a palavra, para responder, o Sr. Bastonário da Ordem dos Advogados.
O Sr. Bastonário da Ordem dos Advogados: - Sr. Presidente, antes de mais, quero agradecer o facto de me permitirem complementar algumas informações que prestei. Também não quero deixar de referir que nunca fiz uma pergunta, na minha exposição, no sentido de obter uma explicação. Entendo que estou aqui para dar explicações sobre aquilo que é a posição da Ordem dos Advogados.
Aliás, se me permitem, teria, até, muito prazer em que, em outras oportunidades e em outras comissões, tivesse sido chamado mais vezes, ao longo deste mandato, para dar explicações sobre as posições assumidas pela Ordem
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relativamente a diversas matérias como o ensino, etc., as quais, eventualmente, poderiam esclarecer os critérios que a Ordem está a seguir como associação de direito público.
Quanto ao artigo 34.º, se tivesse de me louvar em alguma razão para aceitar esta interferência no direito à privacidade do domicílio, poderia utilizar os argumentos que são usados para se aceitar a adesão ao Tribunal Penal Internacional e a circunstância de, através do Tribunal Penal Internacional, poder haver uma colaboração das autoridades portuguesas no que diz respeito à entrega ou à extradição (a palavra técnica não é, com certeza, nenhuma destas) com a possibilidade da aplicação da pena de prisão perpétua.
Reconheço que esta limitação aqui consignada contra a inviabilidade do domicílio é, efectivamente, uma trágica notícia relativamente àquilo que gostaríamos, mas não posso deixar, também, de reconhecer que cerca de 80% dos presos portugueses são pessoas que estão com problemas relacionados com o tráfico de droga e que, provavelmente, ao atacarmos nesta área, estamos a atacar na área mais sensível da criminalidade portuguesa.
O inquérito que a Ordem está a realizar aos presos preventivos revela um quadro que confirma aquilo que acabo de dizer. Como estamos num âmbito extraordinariamente reservado, os resultados que já pude analisar nessa matéria conduzem-me à ideia - já transmitida ao Sr. Procurador Geral da República - de que a Ordem não terá o direito de publicitar esses mesmos resultados sem uma prévia conversa com o Conselho Superior da Magistratura e a Procuradoria-Geral da República, tendo em vista verificar desses mesmos dados, da sua realidade e da necessidade de uma intervenção mais activa de todos, fundamentalmente da própria Ordem do Advogados.
Se, efectivamente, me choca o problema da intervenção por imposição ou autorização da autoridade judicial no domicílio, num período que deveria ser reservado, julgo que, em termos nacionais, aquilo que se está a passar no campo do tráfico e do consumo da droga exige medidas drásticas que, apesar de tudo, compreendemos. O que não quer dizer que não haja outras matérias, como V. Ex.ª diz, e muito bem, que também poderiam ser objecto de consideração. Mas ao menos estas, porque as outras, eventualmente, implicariam um alargamento que não se coaduna, e talvez até nem seja necessário, neste momento. Não é que não fossem úteis, mas poderiam criar um ambiente de devassa que, talvez, não seja necessário, neste momento.
Certas matérias, como, por exemplo os crimes de violência, não têm a projecção na área penal como, efectivamente, sucede com a matéria da criminalidade relacionada com o tráfico de droga, que é verdadeiramente alarmante. Estou firmemente convencido de que os números, se não forem alterados, se lograrem as perspectivas do inquérito que a Ordem está a realizar e que, neste momento, está a ser estudado, poderão apontar para que cerca de 80% dos detidos preventivamente sejam relacionados com problemas de tráfico de droga ou crimes de outra natureza praticados em relação com a droga ou com o uso de estupefacientes. Para mim, esta alteração é um mal, mas um mal menor, aceitável e que a própria Assembleia da República saberá caudear para uma revisão no momento oportuno se, efectivamente, as condições se alterarem.
Outra questão que se coloca é a relacionada com o artigo 15.º. Na realidade e na prática, esta comunidade luso-brasileira não se tem revelado apenas numa expressão de direitos políticos, mas de direitos civis. Devo confessar que não sei como é que se poderá governar o exercício da profissão de advogado quando, em Portugal, há, neste momento, 19 000 inscritos, 5118 estagiários e cerca de 2600 alunos no 5.º ano de Direito nas faculdades portuguesas a acabarem o curso dentro de dois meses. No entanto, isto comparado com 450 000 advogados brasileiros é uma gota no oceano, como devem imaginar.
O problema que aqui se coloca não é esse, porque a advocacia brasileira tem subido de categoria, de nível. A questão que se coloca é que, apesar de admitir o princípio, penso que seria interessante compreender as excepções e qual o critério que foi adoptado nas excepções. Constato que já se discute aqui, de uma forma muito positiva, se o vice-presidente da Assembleia da República tem de passar a ser o terceiro para que não seja o primeiro, no exercício de determinadas funções, ou se pode… Aquilo que peço é que se seja claro nesta exposição dos motivos, por forma a que se entenda qual é o critério que foi adoptado.
Também é tribunal supremo o Tribunal de Contas, também é tribunal supremo o inesgotável Tribunal Militar, também é tribunal supremo o Supremo Tribunal Administrativo em áreas profundamente importantes na nossa actividade. Portanto, gostava de compreender o critério das excepções, visto que não estou contra o princípio.
Quanto ao Tribunal Penal Internacional, a questão que se coloca não é a de estarmos contra a existência de um organismo internacional. Entendemos, até, no conjunto dos órgãos que compõem a Ordem que, tal como se configura hoje a criminalidade e como ocorrem os diferentes factos que são passíveis de serem integrados na apreciação do Tribunal Penal Internacional, infelizmente, se justifica uma jurisdição internacional.
Portanto, não colocamos um obstáculo, nem, tão-pouco, estamos a pôr obstáculos. Não conheço posições de outros países, mas mesmo que as conhecesse, Sr. Deputado, devo dizer-lhe que a Ordem dos Advogados teria a capacidade de não decidir pelos outros, mas por si própria, ainda que contra a maré.
Entendemos que, neste caso, não é tão fácil dizer que Portugal não abdica de alguma coisa, que não é um problema da sua competência ou da sua soberania. Portugal consigna o princípio não só da defesa intransigente da não aplicação ou aplicabilidade da pena de morte, mas também da prisão perpétua. Temos o princípio de que não só não a aplicamos como não colaboramos com a aplicação e, por isso, não extraditamos, não entregamos sem a garantia de que essa pena não vai ser aplicada.
Ora, por muito que se diga, o Tribunal Penal Internacional chama a si uma competência que podemos reconhecer, que é a de decidir se as autoridades portuguesas têm a autoridade suficiente para serem competentes para julgar uma determinada matéria, mesmo relativamente a portugueses. O Tribunal Penal Internacional reserva para si essa decisão última, sobre o ajuizamento da competência e da capacidade dos tribunais dos Estados. Nessas circunstâncias, entendemos que corremos o risco remoto - que é uma certeza e não já um risco - da consagração do princípio de que, se eventualmente nos exigirem ou se nos for reclamado, faremos a entrega da
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pessoa a uma jurisdição que pode aplicar a pena de prisão perpétua.
Relativamente à pena de prisão perpétua, entendemos que é um juízo definitivo - embora a prazo, dos tantos anos - sobre a validade, sobre a capacidade de um determinado indivíduo se regenerar. Entendemos e temos vindo a defender que, por princípio e no campo dos direitos humanos, estes indivíduos não são nem melhores nem piores do que os outros. Do ponto de vista da Ordem dos Advogados, não há o direito de a justiça humana tomar uma decisão tão importante como a de fazer a condenação definitiva que, eventualmente, venha a revogar no futuro. Julgamos que isto contraria os princípios de direito humano, que, aliás, estão consagrados, salvo o erro, desde 1886, no nosso Direito Penal.
Por isso, temos pena que, tal como se evitou - e mérito de muitos portugueses - a possibilidade da aplicação da pena de morte, não se tenha conseguido evitar este outro passo que, eventualmente, consagraria o Tribunal Penal Internacional como uma instituição, não digo mais respeitável, mas mais apetecível do que aquilo que é para a Ordem dos Advogados.
O Sr. Presidente (Guilherme Silva): - Tem a palavra, para formular um pedido de esclarecimento adicional, o Sr. Deputado Pedro Roseta.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Bastonário, referiu, e muito bem, os direitos humanos. Como sabe, eu e muitos outros temos dedicado grande parte da nossa vida à organização que é tida como organização dos direitos humanos - digo isto, porque, para mim, foi um critério decisivo, toda a gente reconhece -, que é o Conselho da Europa.
Não tenho aqui, mas poderei enviar-lhe várias posições do Conselho da Europa, designadamente ao nível da Assembleia Parlamentar e do Comité de Ministros, em que recomenda vivamente - até porque se conseguiu, não só Portugal mas também os outros países, afastar a pena de morte - a ratificação do Estatuto.
Portanto, eu, que mesmo noutras áreas não gosto de quem quer ser "mais papista do que o Papa", pergunto se não estaremos a sê-lo, admitindo que o Conselho da Europa é uma organização que tem atrás de si um património de 55 anos na defesa do direitos humanos e que temos recomendações desta instituição a dizer "Nós, que defendemos os direitos humanos, queremos a ratificação do tribunal".
Gostava de deixar esta dúvida e de dizer que terei muito prazer em mandar-lhe os textos dos direitos humanos, ao nível do Conselho da Europa, em que se recomenda a ratificação do Estatuto do TPI.
O Sr. Presidente (Guilherme Silva): - Tem a palavra o Sr. Bastonário da Ordem dos Advogados, caso queira acrescentar mais algum aspecto.
O Sr. Bastonário da Ordem dos Advogados: - Sr. Presidente, Sr. Deputado Pedro Roseta, como católico apostólico romano, quero apenas dizer a V. Ex.ª que reconheço a infalibilidade do Papa, mas nas outras matérias não me importo de ser mais papista que ele próprio.
Risos.
O Sr. Presidente (Guilherme Silva): - Muito obrigado, Sr. Bastonário, pelo contributo pessoal e em nome da Ordem dos Advogados que aqui nos trouxe.
Srs. Deputados, está encerrada a reunião.
Eram 13 horas e 12 minutos.
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