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V REVISÃO CONSTITUCIONAL
Comissão Eventual para a Revisão Constitucional
Acta n.º 6
Reunião do dia 12 de Junho de 2001
SUMÁRIO
A reunião teve início às 11 horas e 10 minutos.
Relativamente aos projectos de revisão constitucional n.os 1/VIII (PSD), 2/VIII (PS) e 3/VIII (CDS-PP), foi ouvido pela Comissão o Sr. Embaixador Costa Lobo, que respondeu a questões do Sr. Presidente (José Vera Jardim) e dos Deputados José Matos Correia (PSD), António Filipe (PCP), Pedro Roseta (PSD) e Jorge Lacão (PS).
Foi também ouvido o Sr. Procurador-Geral Adjunto (Dr. Bernardo Colaço), que respondeu a questões dos Srs. Deputados Jorge Lacão (PS) e António Filipe (PCP).
Foi ainda ouvido o Sr. Juiz Conselheiro Mário José Torres, que respondeu a questões dos Srs. Deputados Luís Marques Guedes (PSD), Jorge Lacão (PS) e António Filipe (PCP).
O Presidente encerrou a reunião eram 13 horas.
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O Sr. Presidente (José Vera Jardim): - Srs. Deputados, temos quórum, pelo que declaro aberta a reunião.
Eram 11 horas e 10 minutos.
Srs. Deputados, como sabem, estão agendadas para hoje várias audições, a primeira das quais é com o Sr. Embaixador Costa Lobo, que já se encontra presente, a quem começo por, em meu nome pessoal e, naturalmente, em nome de todos os Srs. Deputados desta Comissão, agradecer a disponibilidade para estar hoje connosco e para nos prestar um depoimento que incidirá sobre o Tribunal Penal Internacional.
O Sr. Embaixador esteve nas negociações de Roma, dirigiu-as, em nome do Governo português, em conjunto com várias outras pessoas, algumas das quais serão também aqui ouvidas, pelo que esperamos o depoimento de V. Ex.ª com muito interesse.
Para não me alongar mais e não tomar mais o seu tempo, vou dar-lhe a palavra, de imediato, para V. Ex.ª nos prestar o depoimento que entender, mas aproveitando, naturalmente e certamente, a experiência riquíssima que colheu ao longo dos muitos meses de trabalho para se chegar ao texto final que instituiu o Tribunal Penal Internacional.
Tem a palavra, Sr. Embaixador Costa Lobo.
O Sr. Embaixador Costa Lobo: - Sr. Presidente, em primeiro lugar, quero agradecer as suas palavras de boas-vindas e exprimir também a minha satisfação por vir a esta Casa fazer a minha exposição, podendo assim contribuir para estes trabalhos, que faz com que esta minha vinda aqui, além de ser uma obrigação, constitua também, para mim, um motivo de prazer e satisfação.
Suponho que será talvez desejo de todos que faça a apresentação de forma bastante resumida, pelo que vou começar por localizar o tema.
Os trabalhos com a criação do Tribunal Penal Internacional têm antecedentes longínquos, mas começaram, de forma mais directa, no início dos anos 90. Depois, o assunto esteve na Comissão de Direito Internacional e passou mais tarde para um Comité Preparatório, no âmbito da Assembleia Geral das Nações Unidas, mais ou menos em 1995, e, entretanto, a Conferência Diplomática, a realizar em Roma, foi marcada para 1998.
Pessoalmente, fiz parte da delegação apenas a partir da última sessão do Comité Preparatório, que foi, salvo erro, em Abril ou Maio de 1998. Depois, efectivamente, como o Sr. Presidente referiu, em 1998, na Conferência de Roma, estive à frente da delegação.
Foi, naturalmente, uma Conferência interessante, pelo tema, que era difícil, e porque havia variedade de opiniões e de perspectivas. E, ao contrário do que era intenção inicial, a aprovação do texto acabou por ser feita por votação. No Comité plenário o Estatuto tinha sido aprovado por consenso mas, depois, na sessão final da Conferência foi aprovado por votação, pedida pelos Estados Unidos. Mas foi até, talvez, melhor assim, porque ficou mais clarificado, uma vez que os consensos, muitas vezes, escondem divergências e segundos pensamentos que confundem, um pouco, sobre qual a verdadeira atitude dos Estados e o verdadeiro apoio aos documentos que dali saem. Assim, veio a obter-se uma aprovação por 120 votos a favor, 7 votos contra e 21 abstenções. Os 7 votos contra foram de natureza muito heterogénea, pois incluem desde os Estados Unidos à Líbia, ao Iraque e à China.
Portugal, como, aliás, todos os outros países da União Europeia, votou a favor da aprovação.
O texto que foi votado, em face das grandes divergências que havia e de alguns pontos não terem sido resolvidos por negociação directa nos grupos de trabalho, acabou por constar de um documento que foi apresentado pelo bureau e cuja versão final nos chegou apenas durante a noite que precedeu o último dia da Conferência, pelo que a alternativa, naquele momento, era a de aceitar ou não aceitar. O texto suscitava objecções a todos os grupos mas, justamente em virtude da divergência de opiniões a que fiz referência, era inviável alterá-lo.
No contexto do chamado grupo dos like-minded, mais ligado ao grupo Ocidental mas que tinha vários países latino-americanos, alguns africanos e até asiáticos, embora menos, considerou-se que o saldo, dentro da perspectiva que havia, era francamente positivo, pelo que se decidiu pela votação e, inclusive, na sessão final, quando foram propostas determinadas emendas, houve uma moção no sentido de o texto ser considerado directamente, até porque, realisticamente, não havia possibilidade de, naquele momento, fazer aprovar um texto diferente.
Os pontos principais em discussão eram a questão da jurisdição, quem é que abrangia, quais eram as condições necessárias para que determinada pessoa pudesse ser levada a tribunal, a questão dos poderes do Conselho de Segurança, a questão da competência ou dos poderes do Procurador, a questão das penas - designadamente porque havia um movimento muito grande e muito importante de um grupo de países que insistia na inclusão da pena de morte e foi difícil ultrapassar esta questão, obrigando mesmo a uma solução em que o Presidente da Conferência leu uma declaração no sentido de dizer que, ali, a não inclusão da pena de morte não implicava um julgamento, o que, aliás, era óbvio, porque a aprovação de um texto internacional nada tem a ver com as disposições das ordens jurídicas internas, mas, enfim, para dar uma satisfação e conseguir a não objecção desses países, houve essa declaração - e a questão da agressão.
O ponto relativo à agressão continua, digamos, em suspenso. Está incluído na lista de crimes mas refere-se que o Tribunal, de momento, ainda não tem jurisdição sobre ele. Portanto, em termos práticos, só estará, efectivamente, entre os crimes a serem julgados, quando da primeira revisão, que não terá lugar antes de daqui a sete ou oito anos ou talvez um pouco mais. Estas eram as principais questões em discussão.
Houve a aprovação do texto, que não podia ter reservas, e iniciaram-se, depois, os trabalhos da Comissão Preparatória, que recebeu vários encargos, nomeadamente o de elaborar os projectos de uma série de documentos que tinham ainda que ser preparados, entre os quais, o documento sobre as regras do processo, um documento chamado "Elementos dos crimes", onde a definição de cada crime era descrita em maior pormenor, por uma questão de maior certeza e segurança, e outros documentos como o dos acordos sobre privilégio e imunidades, o acordo entre as Nações Unidas e o Tribunal (porque, como sabem, o Tribunal, embora estreitamente ligado às Nações Unidas, não será um órgão das Nações Unidas) e o acordo entre o Tribunal e o país anfitrião, que será a Holanda. Esses trabalhos estão em curso; estão, aliás, relativamente perto
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do fim, tendo chegado a prognosticar-se que os trabalhos poderiam terminar aquando da próxima sessão, em Setembro/Outubro, mas não será assim. No entanto, os dois documentos talvez mais importantes e mais difíceis, o dos "Elementos dos Crimes" e o das "Regras do Processo e da Prova", foram concluídos dentro da data marcada, que era a de 30 de Junho de 2000.
Portanto, os trabalhos da Comissão Preparatória estão em curso, como já disse, e presumo que terminem no decurso do próximo ano, talvez com mais uma ou duas reuniões.
Entretanto, está também em curso o processo de ratificações ou adesões dos vários países. Para que o Estatuto do Tribunal entre em vigor são necessárias 60 ratificações ou adesões e, neste momento, segundo a minha última informação (mas não sei se esta manhã teve lugar mais alguma), 32 países já haviam ratificado e há ainda muitas ratificações em curso. Para dar apenas um exemplo, refiro a União Europeia (e espera-se que todos os países membros venham a aderir), neste momento há oito países que já aderiram. Os ingleses disseram, há pouco tempo, numa reunião informal, que esperavam proceder à ratificação em Outubro. Enfim, tudo depende também dos processos internos, da forma como as coisas funcionam. Na Irlanda, por exemplo, que era o país de que se esperava maior demora, porque havia necessidade de fazer um referendo, este já passou e foi aprovado na semana passada.
Trata-se, pois, de um processo que ainda pode demorar um pouco, mas, enfim, as coisas estão encaminhadas no sentido de se completar. Quanto a um prognóstico, é sempre difícil este tipo de prognósticos, mas presumo que talvez tudo esteja concluído durante o decurso do próximo ano, de 2002, alguns dizem que até Julho, mas, enfim, é uma área em que é difícil um prognóstico.
Não sei se a selecção que fiz dos pontos a abordar foi a mais indicada, mas, naturalmente, estou à disposição para responder a questões pontuais que me sejam dirigidas.
Muito obrigado pela vossa atenção.
O Sr. Presidente: - Muito obrigado, Sr. Embaixador, pela sua exposição.
Vamos agora abrir um período de formulação de questões, por parte dos Srs. Deputados, pelo que aguardo as respectivas inscrições.
Para já, tem a palavra o Sr. Deputado José Matos Correia.
O Sr. José Matos Correia (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Embaixador, em primeiro lugar, quero cumprimentá-lo e agradecer-lhe a exposição que aqui nos fez acerca de alguns aspectos da evolução do processo de negociações.
A propósito justamente das negociações, gostava de colocar-lhe algumas questões, não esquecendo que, além de ter participado no processo de negociações, o Sr. Embaixador é um eminente internacionalista, pelo que gostaria de lhe fazer algumas perguntas na perspectiva da sua apreciação do Estatuto de Roma.
No entanto, a primeira questão que coloco tem a ver directamente com a questão das negociações. É natural, e julgo até que é incontornável, que, durante o processo de negociações, se tenha colocado a questão e a dúvida à delegação portuguesa sobre a eventual compatibilidade entre algumas das normas constantes do Estatuto de Roma e a Constituição da República Portuguesa, nomeadamente no que diz respeito à prisão perpétua, que é, porventura, a mais complexa, mas em relação a outras era também visível que iriam suscitar alguns problemas de natureza constitucional. Gostava de saber em que medida é que essa questão foi tida em conta durante as negociações e quais foram, digamos, as acções desenvolvidas pela delegação portuguesa e as instruções que foram recebidas pela delegação portuguesa para tentar, na medida do possível, evitar essas situações de eventual incompatibilidade entre o texto que viesse a ser negociado e a Constituição da República Portuguesa.
Em segundo lugar, a questão que coloco ao Sr. Embaixador é a seguinte: do ponto de vista daquilo que sentiu, em termos do processo de negociações, e o Sr. Embaixador disse há pouco que era difícil fazer previsões em relação ao processo de ratificação e à entrada em vigor do Tribunal, mas do ponto de vista, digamos, de quem participou directamente no processo de negociações, o Sr. Embaixador Costa Lobo entende que estão, de facto, reunidas condições, em termos internacionais, para que o Tribunal comece efectivamente a funcionar? E, quando digo que comece a funcionar efectivamente, não está só em causa o problema de saber se estão reunidas as condições para que as ratificações sejam feitas, o que está em causa é se a crítica que tantas vezes se faz no sentido de que o Tribunal pode ser visto mais como uma forma quase de alijar responsabilidades, no sentido de dizer que se fez uma coisa mas que, enfim, essa coisa não vai começar a funcionar como deve ser, se isto tem razão de ser ou se, pelo contrário, foi, de facto, perceptível naquele processo de negociações que há, digamos, o desenvolvimento de uma preocupação jurídica internacional em termos que o Tribunal Penal Internacional tenha, se me permitem a expressão, "pés para andar" e não acabe como outras iniciativas que foram desenvolvidas e cujo trabalho tem vindo a ser relativamente despiciendo.
Por fim, quero também perguntar ao Sr. Embaixador se entende que esta questão da prisão perpétua, em termos internacionais, e pese embora a posição que o Estado português tem sobre a questão, internamente, pode ou não ser entendida como um passo adicional no sentido da restrição da pena de morte. Se bem me recordo, e o Sr. Embaixador conhece muito melhor as negociações do que qualquer um de nós, mas, se bem me recordo, repito, houve, por parte de alguns países, nomeadamente de alguns daqueles que sustentam a aplicação da pena de morte, na fase final das negociações, a emissão de uma declaração dizendo que a aceitação, por parte desses países, do Estatuto de Roma e, portanto, da pena de prisão perpétua como pena máxima a aplicar, não significava, de forma alguma, que esses países entendessem que a pena de morte não devia ser aplicada e que isso não implicaria, portanto, qualquer cedência do ponto de vista da sua própria legislação interna.
Entendo, aliás, nós entendemos, porque o meu colega Deputado Pedro Roseta tem sido o grande defensor dessa posição, que a consagração, pelo Tribunal Penal Internacional, da pena de prisão perpétua, pese embora as envolventes de uma pena dessa natureza, é um avanço na perspectiva de que foi possível fazer com que crimes de uma certa gravidade, como crimes contra a paz e crimes contra a humanidade, fossem objecto de uma punição severa - é certo! - mas não da punição com a pena de morte.
Portanto, no fundo, o que lhe quero perguntar, e tendo em conta a sua participação directa e a forma como
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acompanhou este processo de negociações, é se, de facto, também houve esse sentimento durante o processo de negociações, ou seja, se ficou mais ou menos claro que, de facto, apesar da severidade que estava aqui a ser estabelecida como pena máxima aplicável pelo Tribunal, isso pode, de facto, ser entendido como uma "machadada", se assim me é permitido dizer, na aplicação da pena de morte e se essa declaração que alguns países se viram na contingência de emitir, pode, de alguma forma, ser interpretada nesse sentido, isto é, como uma atitude defensiva de quem vê que uma pena a que habitualmente recorre no seu ordenamento interno está a ser posta em causa ao mais alto nível, no plano internacional, e, portanto, de alguma forma, tenta salvaguardar a sua posição.
O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado António Filipe.
O Sr. António Filipe (PCP): - Sr. Presidente, Sr. Embaixador, gostaria de colocar duas questões relativas às negociações do Estatuto de Roma.
A primeira diz respeito a uma questão que o Sr. Embaixador já referiu, que é o facto de ter sido deixado para momento posterior a definição dos elementos típicos do crime de agressão. Gostaria que nos dissesse algo mais acerca das circunstâncias que levaram a que essa matéria fosse deixada para um momento posterior, de onde vieram e quais foram os obstáculos fundamentais para que essa matéria não ficasse definida tal como as restantes.
A segunda questão que gostaria de colocar-lhe diz respeito ao relacionamento que se estabelece com o Conselho de Segurança das Nações Unidas. Quando se fala do Estatuto do Tribunal Penal Internacional como um avanço no sentido da criação de uma instituição de Direito Internacional não dependente da lógica que tem prevalecido nas Nações Unidas, que é uma lógica de relações de força entre potências, pelo menos aparentemente, esta relação que se estabelece é uma cedência a essa mesma lógica de funcionamento. Daí que gostaria também de o ouvir sobre essa questão concreta.
O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado Pedro Roseta.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Sr. Presidente, vou ser muito breve, até porque as questões que queria colocar já foram colocadas, e muito bem, pelo meu colega Deputado José Matos Correia. No entanto, se me permitem, queria felicitar - não só como Deputado, mas até pessoalmente - o Sr. Embaixador Costa Lobo, porque pude seguir o seu trabalho e conheço-o desde os tempos longínquos em que esteve como Embaixador no Conselho da Europa.
Vou colocar apenas duas questões.
Em primeiro lugar, gostaria de saber qual o papel que entende que podem ter as organizações regionais, designadamente o Conselho de Europa. Como sabe, a Organização dos Direitos do Homem tem sido muito viva no sentido de promover a ratificação do Estatuto do Tribunal e já houve, pelo menos, duas recomendações da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa nesse sentido.
Este Tribunal tem, pois, de ser visto na perspectiva do primado da pessoa e dos direitos humanos. Gostava que comentasse o papel das organizações regionais, não só do Conselho da Europa, mas de outras organizações que podem levar à ratificação e ter, também, um papel importante, porque na protecção da pessoa não existem só os Estados. Este assunto não é apenas um assunto de Estado, mas de toda a comunidade internacional, incluindo as outras organizações internacionais além das Nações Unidas.
A segunda questão diz respeito àquele problema que existe hoje e sobre o qual sou muito crítico, talvez um dos mais críticos aqui presentes e que me leva a ser um defensor engagé da ratificação. Gostava que me dissesse o que pensa e o que se pensava nos trabalhos preparatórios sobre a situação actual.
A meu ver, a situação actual é insustentável, e não vou repeti-lo pois os meus colegas já ouviram a minha opinião. Os tribunais ad hoc são tribunais dirigidos, são tribunais de vencedores, são tribunais que não aplicam o princípio da igualdade perante os princípios, perante o direito, perante a lei e não julgam com equidade.
Gostava que comentasse se sentiu aquilo a que os franceses chamam lassitude du tribunal, que o Conselho de Segurança e outros estão fartos dos tribunais ad hoc, porque geram imensas questões, tais como questões de intendência mas, sobretudo, porque começa a surgir a consciência de que a situação actual é insustentável. Muitos crimes de genocídio não são punidos e os que são punidos são-no por motivos políticos.
Gostava de ouvir o seu comentário sobre estes dois pontos.
O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, não é propriamente para pedir esclarecimentos, mas para saudar o Sr. Embaixador Costa Lobo, em meu nome e em nome dos Srs. Deputados do Partido Socialista, e salientar que já tivemos o gosto de trocar impressões com o Sr. Embaixador no quadro da 1.ª Comissão, de uma maneira genérica, sobre o mesmo tema que hoje nos trouxe aqui em sede de Comissão Eventual para a Revisão Constitucional.
Assim, mais do que colocar-lhe uma questão, louvo-me também da pertinência das questões que os outros colegas Deputados colocaram ao Sr. Embaixador e, naturalmente, estamos atentos para ouvir os seus comentários finais.
O Sr. Presidente: - Muito obrigado, Sr. Deputado Jorge Lacão.
Para comentar e esclarecer as diversas questões que acabam de lhe ser postas, tem a palavra o Sr. Embaixador.
O Sr. Embaixador Costa Lobo: - Sr. Presidente, em primeiro lugar queria agradecer as palavras amáveis que me foram dirigidas por vários dos intervenientes, a quem procurarei responder, da forma que for capaz, tendo como intenção que a minha participação nos trabalhos possa contribuir para trazer um ou mais esclarecimentos.
Vou seguir a ordem pela qual as perguntas foram formuladas. Em relação à primeira pergunta, colocada pelo Sr. Dr. José Matos Correia, sobre a compatibilidade do Estatuto de Roma com a Constituição e a atitude da nossa delegação em Roma, devo dizer-lhe que se tratava de uma negociação em que, muitas vezes, os textos dos artigos não eram negociados caso por caso.
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As delegações, os grupos de trabalho propunham as suas perspectivas, "puxavam" a solução final para o seu lado, nalguns casos envolviam-se na negociação e chegavam a um acordo. Neste caso, normalmente o país estava coberto por aqueles princípios que conhecia ou de instruções que tinha recebido; noutros casos, partia-se ainda com uma certa indefinição e quando se faziam os textos preparados pelo coordenador do grupo de trabalho e, num momento posterior, pelo próprio bureau e pela presidência é que se via o contexto e, muitas vezes, havia apenas a alternativa de aceitar ou rejeitar.
Citou o caso concreto da prisão perpétua. Não nos escapava, naturalmente, que era uma disposição que estava em contrário com os nossos princípios e tradições e, por isso, procurámos contrariá-la. Muitas vezes é difícil saber o que é que, efectivamente, se passou nestas reuniões, nestas negociações. Mas quanto à prisão perpétua e à posição dos vários países, já tive ocasião de notar, num pequeno artigo que escrevi na revista O Mundo em Português, que em relação a esse ponto há um trabalho do coordenador do grupo de trabalho que se ocupou das penas, o norueguês Ronald Fife. Ao citar as discussões havidas quanto às penas, para exemplificar, e depois de ter falado quanto à questão da pena de morte numa oposição mais generalizada e na questão da prisão perpétua, disse que também suscitou discussões e que se empenharam particularmente contra este princípio as delegações de Portugal e algumas latino-americanas. Citei essa questão naquele artigo.
Tenho aqui um publicação brasileira da Comissão de Direitos Humanos, na qual consta um artigo de uma senhora juíza que fez parte da delegação nas negociações e que diz "Portugal e os países ibero-americanos foram os grandes opositores da inclusão não só da pena capital, mas também da pena de prisão perpétua." Curiosamente, talvez por estarmos assim individualizados, somos, até, os únicos a ser designados pelo nome, o que não quer dizer que outros países não o tenham também feito.
Como dizia, travou-se essa batalha e está reconhecida esta nossa posição, mas aqui, como em muitas outras coisas, houve depois que ter em conta o sentido geral. Havia, portanto, a noção geral.
A delegação era composta por elementos do Ministério da Justiça e da Procuradoria e, além das instruções, por vezes havia contactos telefónicos directamente com esses departamentos e procurávamos falar com eles e fazer prevalecer, na medida do possível, as nossas posições.
A questão das condições de funcionamento no momento actual cobre um pouco outras perguntas posteriores. Creio que é inevitável e que é um facto que se assista a um sentido de globalização da justiça penal internacional. É inevitável e cada vez nos preocupamos mais não só com o que se passa à nossa volta como com o que se passa mais longe. Há um sentimento no sentido de considerar que a sociedade internacional deve intervir, deve procurar executar determinado tipo de coisas. Mas existem vários caminhos para o fazer.
Nesta procura, e no que diz respeito concretamente à jurisdição penal - talvez daqui a pouco alargue mais o tema -, há vários caminhos. Podemos pensar no alargamento da jurisdição universal dos tribunais internos dos vários países, nos tribunais ad hoc criados por uma entidade, designadamente o Conselho de Segurança, como aqueles que actualmente existem, e neste Tribunal.
Creio que, embora contestado, e visto com menos entusiasmo por alguns sectores, há um sentimento que é inevitável dentro desta necessidade de evolução. Talvez esta solução, independentemente de diferenças de pormenor, que é dada por um tribunal penal, em que participa toda a comunidade e em que se procurou o máximo de garantias de independência e onde não há uma ligação estrita a um determinado grupo, seja o melhor caminho para o futuro.
É evidente que, depois, o tempo dará alguma experiência e vão surgindo correcções, mas no momento actual, em termos gerais, talvez seja esta a solução que parece mais adequada. Penso que, de um modo geral, na comunidade internacional, maioritariamente, há um desejo de aceitar e acolher esta solução.
Quanto à pergunta que fez sobre a prisão perpétua, penso que o facto de não ter sido incluída a pena de morte dentro do Estatuto constitui um precedente e mais uma peça no sentido de contribuir para a eliminação, a prazo, desta penalidade.
Aquela necessidade que alguns países sentiram ao imporem, quase como uma condição, que a própria presidência fizesse uma declaração nesse sentido, talvez revelasse a consciência de que estavam ali a perder terreno e que queriam contrabalançar, na medida do possível, sobretudo com o que se vai passando no mundo em termos de declarações, negociações, etc.. Esses protocolos são uma tarefa difícil.
Ainda recentemente, na Assembleia Geral das Nações Unidas, vimos que um projecto de resolução, que visava a futura abolição da pena de morte - não nesta última, mas na penúltima Assembleia Geral das Nações Unidas -, em grande parte patrocinado pela União Europeia, acabou por ser retirado porque começaram a ser introduzidas emendas que o desnaturariam completamente. Eu diria que a não consagração da pena de morte constitui, desse ponto de vista, um aspecto positivo
Aquando da criação do tribunal penal para o Ruanda foi aprovado um estatuto que não incluía a pena de morte entre as penalidades e o Ruanda - que tinha sido um dos entusiastas desse Tribunal - acabou por votar contra, como membro do Conselho de Segurança. De maneira que, em alguns sectores, há ainda este sentimento, mas temos de viver com essa realidade.
Quanto à questão da agressão, talvez houvesse o desejo de alguns países, devido à sua dificuldade e à sua natureza particular, que esta questão não figurasse. Todavia, pelo menos externamente, em princípio quase todos concordavam com a inclusão da agressão. Simplesmente, havia pontos de vista bastante diferentes quando à definição, e é evidente que não se podia incluir um crime sem o definir com o possível rigor - vimos mesmo que mais tarde se sentiu a conveniência de haver documentos sobre os elementos dos crimes -, quando não se quer mesmo uma definição geral.
De facto, as diferenças eram muito grandes. Elas vão desde aqueles que queriam uma definição com muito detalhe e defendiam um conceito muito lato, abrangendo, inclusive, a questão económica, até àqueles que queriam uma definição muito restrita ou que queriam - que era o caso da proposta, que está ainda na Mesa, apresentada pela Federação Russa - definir como agressão aquilo que o Conselho de Segurança considera que é agressão. Havia uma divisão muito grande de opiniões, o que levou à ideia de que não se chegaria a acordo nessa matéria.
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Houve um momento em que pareceu, numa fase final, que havia uma esperança… Havia também uma grande pressão (e nós tínhamos contacto com ela), designadamente entre os países lusófonos havia um grande empenhamento na inclusão. Porém, no final, não houve cedências suficientes, por isso pensou-se: "A agressão tem de ficar de fora". Então, alguém se lembrou ou, enfim, o conjunto da conferência imaginou que a solução, para não ficar como que a mensagem de que ela estava de fora porque não tinha sido considerada suficientemente importante, era incluir-se. Portanto, consta a agressão, mas na ausência de uma definição, não foi possível considerar que o Tribunal pudesse, desde logo, começar a julgar este crime. O assunto está agora a ser tratado no âmbito da comissão preparatória, embora não possa ser concluído desde já.
Entre os países que apresentaram propostas sobre o assunto inclui-se Portugal, aliás com uma proposta conjunta com a Grécia, mas tais propostas têm ainda de ser negociadas. A nossa proposta, quando apareceu, não estava nos extremos, mas surgiram depois algumas mais, pelo que, agora, a nossa proposta tem pouca simpatia por parte dos membros permanentes do Conselho de Segurança. De qualquer maneira, a questão está sobre a Mesa para se ir progredindo no sentido de uma solução do assunto, embora não se possa dizer que se esteja perto de alcançar um acordo.
Os poderes do Conselho de Segurança, se bem me recordo, traduzem-se nos seguintes três aspectos: na indicação ao Tribunal de situações em relação às quais deva averiguar a existência de crimes puníveis pelo Estatuto de Roma; na possibilidade de suspender acções nalguns casos e ainda outros poderes em matéria de agressão. O mais grave e o que deu mais discussão foi o segundo.
Com efeito, todos aceitaram, mais ou menos, que o Conselho de Segurança tivesse o poder de denunciar situações, mas quanto ao segundo… Quando é que se deu um passo em frente? Bem, de início havia propostas que praticamente permitiriam, designadamente aos membros permanentes, suspender uma acção se entendessem que, politicamente e mesmo sob o ponto de vista da segurança, ela era inconveniente. É claro que tal poder atribuiria um grande valor a um julgamento subjectivo.
Então, a certa altura, surgiu uma proposta - apresentada por Singapura e, por isso, foi chamada proposta de Singapura - no sentido de exigir que esse poder de suspensão necessitasse de uma decisão tomada nos termos do capítulo 7.º da Carta das Nações Unidas. Quer dizer, o Conselho de Segurança, no seu conjunto, pode fazê-lo, mas para isso necessita de uma maioria e da concordância dos cinco membros com poder de veto no Conselho, o que já torna bastante mais difícil a medida.
Esse foi o compromisso possível. Ou seja, enquanto que a possibilidade de qualquer membro poder obstaculizar o procedimento de uma acção tornava muito vaga, muito aleatória a acção do Tribunal, assim, com esta solução de compromisso - embora no plano dos princípios ela possa ser discutível -, já parece resultar, na prática, uma salvaguarda bastante importante deste poder do Conselho de Segurança, visto que a exigência do voto positivo dos cinco membros permanentes já constitui uma garantia.
Relativamente ao papel dos organismos regionais, entendo que eles podem tê-lo efectivamente - e estou de acordo nesse ponto -, porque há aqui um objectivo geral conjunto. A meu ver, este Tribunal é um dos elementos, é um dos instrumentos que, em última análise, visa a protecção dos Direitos do Homem, que envolve muitos aspectos, designadamente um aspecto normativo, um aspecto de promoção e ainda, digamos assim, um aspecto de repressão. As condenações dirigiam-se, predominantemente, aos Estados (inclusive, hoje em dia temos noções como a de intervenção humanitária em caso de violações muito graves), mas entendeu-se que elas também deveriam atingir os indivíduos, porque a responsabilidade por determinada acção não podia vir apenas de uma entidade abstracta.
Ora, neste aspecto, diria que há uma grande convergência de objectivos, designadamente em organizações como o Conselho da Europa, que já tem discutido o assunto em termos gerais e, até, realizado reuniões. Há cerca de um ano e tal realizou-se uma reunião para discutir especificamente aspectos de aplicação Estatuto do Tribunal. De facto, tem existido essa colaboração oriunda - parece-me - de uma convergência, em última análise, de objectivos.
Sobre a situação actual, como disse, num primeiro momento, creio que essa globalização, essa preocupação da jurisdição penal é inevitável, é um movimento geral. Aliás, estou a dizê-lo mais como uma opinião pessoal, já que considero que é muito superior a questão de uma jurisdição em termos mais independentes, global e menos relacionada com casos concretos, como a que se pretende com o Tribunal Penal Internacional, do que aquela que resultaria da criação sucessiva de tribunais ad hoc, que podem ser criados não só em função de considerações de justiça mas de oportunidade. De maneira que a minha inclinação pessoal vai nesse sentido.
Parece que a acção levada a cabo, designadamente no Tribunal para a Jugoslávia (até enquanto precedentes e estudos que foram utilizados pela comissão preparatória), alguma coisa tem colhido da experiência e da jurisprudência do Tribunal da Jugoslávia. Mas penso, efectivamente, que a direcção exacta, a direcção correcta vai no sentido da criação de um mecanismo global que garanta, designadamente, um máximo de independência.
Srs. Deputados, agradeço as palavras que me dirigiram e recordo a utilidade (para mim) da conversa que tivemos há alguns meses atrás, que agradeço também.
Muito obrigado pela vossa atenção.
O Sr. Presidente: - Sr. Embaixador, os meus agradecimentos renovados. O seu depoimento foi rico, como esperávamos de alguém que teve essa experiência muito interessante. Eu próprio podia dar um pequeno depoimento (na altura exercia outras funções), mas ficará para outra ocasião. Aliás, como V. Ex.ª referiu, representantes do Ministério da Justiça e da Procuradoria-Geral da República foram também acompanhando os trabalhos difíceis, muitas vezes nocturnos - também tive notícia disso -, como é normal nas negociações internacionais.
O depoimento de V. Ex.ª vai certamente ser muito importante para a continuação dos nossos trabalhos. Agradeço-lhe, mais uma vez, ter-se aqui deslocado para nos dar o seu precioso contributo.
Muitíssimo obrigado, Sr. Embaixador.
Pausa.
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O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, enquanto aguardamos a chegada do Sr. Procurador-Geral Adjunto, Dr. Bernardo Colaço, quero informar-vos sobre a reorganização dos trabalhos da Comissão a que teremos de proceder.
No dia 19 de Junho temos marcadas audições com o Sr. Presidente do Conselho Superior da Magistratura, com o Sr. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e com a Sr.ª Doutora Paula Escarameia. Também estamos a tentar marcar para esse dia a audição com os representantes da Amnistia Internacional, que estava marcada para outro dia.
Para o dia 22 de Junho não está confirmada nenhuma audição, o que é um problema que teremos de resolver, pondo-se como hipóteses ou a interrupção dos trabalhos ou o aproveitamento do dia para audições.
No dia 26 estão confirmadas três audições, com os Srs. Prof. Doutores Fausto Quadros, Jorge Miranda e Adelino Maltez. Mas poderíamos tentar que o Professor Adelino Maltez fosse ouvido no dia 22 porque será, porventura, mais difícil a presença, nesse dia, quer do Professor Fausto Quadros quer do Professor Jorge Miranda.
No dia 29 - e chamo a especial atenção de VV. Ex.as para este ponto - temos confirmadas as audições do Dr. Mário Soares e do Dr. António Vitorino. E, embora a Amnistia Internacional tenha confirmado a sua presença neste dia, iremos tentar mudar a sua audição para o dia 19. Em todo o caso, se a Amnistia Internacional também vier nesse dia, queria ouvir os Srs. Deputados sobre a possibilidade de, dado o âmbito das questões sobre as quais se pronunciarão o Dr. Mário Soares e o Dr. António Vitorino, podermos fazer uma destas audições da parte da tarde.
Tem a palavra o Sr. Deputado Osvaldo Castro.
O Sr. Osvaldo de Castro (PS): - Sr. Presidente, creio que (e o Sr. Deputado Luís Marques Guedes também poderá confirmar o que vou dizer, visto que participa comigo na Conferência dos Representantes dos Grupos Parlamentares) o dia 29 de Junho será o último dia de funcionamento do Plenário da Assembleia da República, com sessão durante toda a manhã. E, se bem que as votações estejam marcadas para o dia 28, não tenho a certeza se não poderá "escorrer" alguma coisa para o dia 29.
Portanto, embora o dia 29 seja uma sexta-feira, penso que seria útil que estas audições fossem feitas durante a tarde, já que, relativamente ao Plenário, a perspectiva é a de que esse será o dia da discussão e votação do orçamento rectificativo, pelo que a sessão nunca acabará antes das 14 horas. Nesse sentido, suponho que só após as 16 horas será possível realizar as audições.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, penso que há um equívoco da parte do Sr. Deputado Osvaldo Castro. Sinceramente, não me parece que isso seja necessário.
Em Plenário, o agendamento desse dia, como o Sr. Deputado Osvaldo Castro acabou de referir, inclui a discussão e votação do orçamento rectificativo, que terá uma primeira parte para debate na generalidade, com uma grelha própria. É que, no mesmo dia, terá de fazer-se a discussão na generalidade e na especialidade, seguida de votação na especialidade, como ocorre em todos os orçamentos, e, por último, teremos a votação final global, que, como disse o Sr. Deputado Osvaldo Castro, previsivelmente ocorrerá depois das 13 horas, isto é, por volta das 13 horas e 30 minutos.
Com toda a franqueza, está previsto que as votações sejam feitas por bancadas, não há indicação alguma no sentido de que sejam feitas nominalmente. Portanto, tirando porventura um ou outro Deputado desta Comissão que seja destacado pelo respectivo grupo parlamentar para intervir nesse debate, não vejo que haja necessidade de se proceder como o sugerido pelo Sr. Deputado Osvaldo Castro.
Obviamente, se houvesse algum problema de votações no Plenário, imediatamente, através de uma suspensão dos trabalhos, os Deputados da Comissão dirigiam-se para o Hemiciclo, a fim de participarem nas votações. O que não me parece é que haja uma situação de incompatibilidade entre uma coisa e outra, com toda a franqueza. De facto, penso que as coisas são perfeitamente compatibilizáveis e tínhamos vantagem em manter as nossas audições da parte da manhã.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.
Srs. Deputados, peço-lhes que não se alonguem muito, pois já temos presente o Sr. Procurador-Geral Adjunto, Dr. Bernardo Colaço, a quem apresento desculpas por estas intervenções antes do início da sua audição.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, estou de acordo consigo, mas é preciso termos em atenção que há um princípio genérico, que, todavia, nós excepcionamos com enorme frequência - e esta Comissão também o faz por necessidade -, que é o de não haver trabalhos simultâneos do Plenário e das comissões. Mas há situações e situações!
No momento em que se aprova alguma coisa que tem a ver com o Orçamento do Estado decorrerem trabalhos paralelos de outras comissões, francamente, não me parece bem, quer pelos Deputados envolvidos no trabalho paralelo quer por via dos convidados desse mesmo dia!
Portanto, embora seja muito incómodo do ponto de vista da organização dos trabalhos desta Comissão, teremos de ter isso em consideração e não fazer a sobreposição.
O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado António Filipe também quer dar a sua achega a este problema?
O Sr. António Filipe (PCP): - Quero sim, Sr. Presidente.
Sr. Presidente: - Então, faça o favor.
O Sr. António Filipe (PCP): - Sr. Presidente, creio que neste momento surge uma questão nova. A verdade é que temos funcionado pacificamente em simultâneo com o Plenário e, ainda na última sexta-feira, recebi a notícia de uma falta à reunião plenária, que justifiquei pela minha presença nesta Comissão. De qualquer modo, se houver objecções de que assim seja por parte de algum grupo parlamentar, ponderaremos uma solução diferente. Mas, de facto, a questão é nova, porque até aqui temos funcionado pacificamente em simultâneo com o Plenário.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, talvez possamos conciliar a questão marcando a audição do Dr. Mário
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Soares para as 10 horas da manhã e pondo a hipótese de ouvirmos o Dr. António Vitorino às 15 horas. Portanto, parecia-me mais sensato prevermos já a audição do Dr. Mário Soares para as 10 horas, ouvi-lo durante uma hora e meia ou duas horas, e marcarmos a do Dr. António Vitorino para as 15 horas.
Penso que há consenso em relação a esta questão.
Tem a palavra o Sr. Deputado Osvaldo Castro.
O Sr. Osvaldo Castro (PS): - Sr. Presidente, voltamos a insistir nesta ideia, porque trata-se de um convidado especial, cuja audição não foi sequer apresentada por nós. Ora, exactamente às 10 horas, presumo eu, estará o Primeiro-Ministro a falar no Parlamento, o que, de algum modo, poderá também tirar visibilidade à vinda aqui do Sr. Dr. Mário Soares. Sou da opinião que, a ter de ser ouvido de manhã, então que não seja às 10 horas.
O Sr. Presidente: - Fica então para as 11 horas, Sr. Deputado.
Portanto, Srs. Deputados, penso que será uma solução sensata se marcarmos a audição do Dr. Mário Soares para as 11 horas e a do Dr. António Vitorino para as 15 horas e 30 minutos.
Quanto à audição da Amnistia Internacional, veremos depois como é que a enquadramos.
Pausa.
Sr. Procurador-Geral Adjunto, começo por agradecer, em meu nome e em nome de todos os Srs. Deputados, a sua disponibilidade para nos prestar um depoimento numa matéria em que, é sabido, V. Ex.ª tem produzido um conjunto de teorias importantes.
Verifico que V. Ex.ª tem consigo um livro sobre a matéria de que estamos a tratar - o problema dos direitos das associações sindicais das forças de segurança -, que faz parte desta revisão constitucional. De resto, devo dizer-lhe que esta Comissão foi unânime em assentar no interesse do seu depoimento para os nossos trabalhos.
Agradeço-lhe, por isso, em meu nome e de todos os Srs. Deputados, a sua disponibilidade. Ouvi-lo-emos com todo o interesse.
O Sr. Dr. Bernardo Colaço (Procurador-Geral Adjunto): - Sr. Presidente, antes de mais nada, muito obrigado pelas palavras amáveis que me dirigiu.
Se me permite, como nota preambular, gostaria de oferecer à Comissão, através de V. Ex.ª, este livro que acaba de ser publicado e que se refere justamente a esta matéria.
O Sr. Presidente: - Os meus agradecimentos, em nome da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional. O livro será dirigido à biblioteca e ficará à disposição de quem precise de o consultar.
O Sr. Dr. Bernardo Colaço: - Este livro é o repositório de todo um conjunto de trabalhos, que muitas vezes nem sequer se prendem com questões teóricas, mas que a prática, a evolução e desenvolvimento do processo do associativismo socioprofissional ou representativo na PSP levaram a que nos debruçássemos, com algum cuidado, até pelo interesse que é próprio da nossa classe de magistrados, como Ministério Público, visivelmente ligados à policia, a vê-los a defender direitos e a serem-lhes recusados direitos. Portanto, foi mais neste sentido que foi produzida esta obra.
Se VV. Ex.as me permitem, verifico que foram apresentadas duas propostas cuja alteração incide sobre o artigo 56.º da Constituição, que tem como epígrafe "Direitos das associações sindicais e contratação colectiva".
Na minha modesta opinião, parece-me que mesmo que tenha sido criada em 1990, salvo erro, com a Lei n.º 6/90, a figura jurídica de associativismo socioprofissional, bem poderia ser utilizada futuramente para a defesa dos interesses da classe dos profissionais da PSP. Portanto, nada haveria em contrário a essa figura jurídica do associativismo socioprofissional.
Ponto é que, julgo eu, salvo o devido respeito, este tipo de associativismo nunca foi levado a sério pelas autoridades do executivo, porque não havia uma programação e os próprios associados e as próprias associações representativas apareciam nos ministérios ou junto dos comandos como meramente tolerados, como sendo entidades que eram ouvidas sem haver qualquer programação prévia sobre os assuntos a estudar ou sobre as decisões que efectivamente se pretendiam.
A questão do direito à greve, designadamente a proibição ou a restrição do exercício do direito à greve, é um assunto que não é de hoje.
Julgo que já em 1986 tinha ficado claramente definido, até por escritos dimanados da então pro-associação sindical da PSP, que eles renunciavam ao direito à greve. Não é que a renúncia ao direito à greve seja uma questão fundamental relacionada com este tipo de associativismo, no entanto, quanto mais não fosse, servia para acalmar os ânimos conturbados da opinião pública, muitas vezes relacionados com questões da continuidade de serviço, isto é, no sentido de assegurar um serviço de segurança ao cidadão.
Portanto, foram eles próprios que tomaram a iniciativa de que renunciariam ao direito à greve, já em 1986. Aliás, o Sr. Deputado Jorge Lacão, que acompanhou todo este processo, também tem conhecimento desta situação. Então, pergunto: se é por causa da questão do direito à greve, porquê só agora? Uma questão tão veemente!…
Por outro lado, entendemos que a introdução desta alteração na Constituição, tal como vem referida na proposta de n.º 5 do artigo 56.º, acaba por ser um acrescento algo inócuo. Isto, por uma razão muito simples: sempre defendemos - e aqui vem uma pequena parte da teorização sobre o direito ao associativismo socioprofissional ou representativo nas forças de segurança - que da conjugação do artigo 270.º da Constituição (mesmo com a última alteração introduzida), com o artigo 18.º da Constituição, que versa sobre as restrições ao exercício de direitos, resulta justamente a introdução da chamada proibição do direito à greve, porque, para todos os efeitos, o direito à greve é um direito menor quando relacionado com o direito de associação.
Por outras palavras, existe o direito de associação sem o direito à greve, mas nenhuma greve pode ser, em princípio, profícua ou exercitada com vantagem sem haver uma associação que a organize. Até porque o direito à greve, como todos sabemos, é um direito individual e não um direito colectivo. Portanto aparecer aqui um direito das associações sindicais interligado a um direito à greve, parece-me, até do ponto de vista jurídico, não ter um grande sentido.
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Diz o artigo 57.º que é garantido o direito à greve. Portanto, insere-se no enquadramento dos direitos do trabalhador individualmente considerado.
Porém, a greve só tem expressão quando colectivamente exercitada e, nessa altura, não são as associações, salvo o devido respeito, que têm o direito à greve, elas organizam o direito à greve, ou seja, organizam os trabalhadores a fazer a greve. Só que o exercício do direito à greve é um direito individual e não um direito colectivo.
Daí que, sistematicamente, não me pareça que seja este o local próprio para a inserção dos direitos dos agentes de forças de segurança, designadamente o direito à greve.
Aliás, pergunto então: porquê só o direito à greve? Coloco esta questão porque há outras restrições ao exercício de direitos dos agentes de forças de segurança. É o caso, por exemplo, da participação em manifestações ou reuniões fardados ou de qualquer intervenção pública do ponto de vista político ou cívico. Daí que eu pergunte: onde é que vamos introduzir todas estas restrições propriamente ditas? Teria de ser criado um instrumento jurídico amplo, onde fossem introduzidas todas estas e as demais restrições.
Portanto, parece que o direito à greve é efectivamente a única problemática que preocupou o legislador neste caso. Aliás, se me permitem também - não estou a dizer qualquer novidade -, a verdade é que a questão do direito à greve foi sempre um problema que precedeu à constituição das associações socioprofissionais ou representativas em qualquer país.
Inclusivamente, há tempos tive o cuidado de fazer uma pesquisa na Internet, a propósito da Australian Police Union, onde era referido que uma das razões que levava a população a ser contrária à constituição de associativismos socioprofissionais era justamente a possibilidade de a polícia poder fazer greve.
Por outro lado, em matéria de greve, devo dizer que, tirando uma ou duas excepções, Suécia e Holanda, nenhum país, quer da Europa quer da União Europeia, tem direito à greve.
Deste modo, é pois uma questão líquida que o direito à greve não deve existir, pelo menos nesta fase, relacionado com as forças de segurança.
Porém, a sua consagração expressa como uma proibição é que me parece algo excessiva. Porque a Constituição é um instrumento jurídico nacional que envolve direitos, liberdades e garantias, funcionando como base fundamental. Ora, parece que aqui quer-se precisamente introduzir uma espécie de vertente algo proibitiva contra as forças de segurança, designadamente em relação ao direito à greve, quando isto pode prever-se no âmbito da própria Constituição, da conjugação do artigos 270.º com o artigo 18.º.
Há aqui uma pequena questão que pode, eventualmente, ser suscitada no projecto do PSD, que é a seguinte: se o direito à greve também afecta as associações sindicais integradas por agentes da força de segurança, este pode afectar a própria Polícia Judiciária, porque a ASFIC (Associação Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal da Polícia Judiciária) conhece o direito à greve. Nesta altura, então, entrará aqui a figura dos direitos adquiridos de associados de uma força de segurança, que podem exercer o direito à greve, enquanto os outros não podem fazer greve! Este é, portanto, um problema que se pode colocar.
Quanto ao projecto do CDS-PP, é obvio que, nele, se procura afastar a própria GNR deste conjunto, na medida em que se restringe, digamos assim, esta problemática aos agentes de forças de segurança de natureza civil. Sabemos que a GNR é de natureza militarizada, embora se possa discutir sobre se ela deve ser "civilizada" (entre aspas), ou se caminha para a "civilização", como aconteceu, ainda há bem pouco tempo, na Bélgica, onde a guarda civil, inclusivamente, deixou de ser guarda civil para ser integrada num corpo da polícia nacional. Esta é uma outra questão.
Todavia, o facto de a GNR ser militarizada não significa que ela não possa, efectivamente, ter uma associação socioprofissional que represente os seus interesses. De qualquer forma, permanece também o mesmo problema relacionado com o direito à greve.
Uma última questão que gostaria de colocar (e que tenho como nota muito acentuada) prende-se com o seguinte fenómeno: proibindo o direito da greve aos elementos das forças de segurança, quais seriam as vias substitutivas para eles alcançarem determinados objectivos que, normalmente, são alcançados por outros trabalhadores através do exercício do direito à greve?
Ora, nesta altura, provavelmente, seria preciso prever a existência de certas comissões paritárias ou, eventualmente, a existência de comissões arbitrais para se poderem resolver certos problemas relacionados com reivindicações que, em princípio, os agentes de segurança não poderiam fazer valer sem o direito de greve.
Estes são os aspectos que, à partida, me pareceram dever trazer à consideração de VV. Ex.as.
O Sr. Presidente: - Muito obrigado, Sr. Procurador-Geral Adjunto, Dr. Bernardo Colaço.
Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, começo por cumprimentar o Sr. Dr. Bernardo Colaço e, mais do que fazer-lhe alguma questão, quero dizer que, globalmente, manifesto inteira concordância com a sua análise, na medida em que, como disse, a formulação actual do artigo 270.º e a sua interpretação à luz do artigo 18.º da Constituição, que regula o regime de restrição dos direitos, liberdades e garantias, parece ser inteiramente suficiente para que este problema pudesse ter ficado resolvido há muito tempo.
Em todo o caso, uma disponibilidade para clarificar esta matéria, se é que alguma coisa carece ser clarificada, continua a parecer-me que, então, com vantagem, se deve fazer no quadro harmonioso do artigo 270.º da CRP, eventualmente especificando melhor o âmbito restritivo de alguns direitos derivados, embora originariamente atribuídos aos trabalhadores, como seja o direito à greve no âmbito do associativismo sindical. Do meu ponto de vista, de facto, não o devemos fazer no quadro do artigo 56.º, porque tal acaba por ter, aparentemente, efeitos diferentes daqueles que os autores talvez tenham querido.
Digo isto na medida em que, por um lado, a formulação apresentada pela proposta do PSD reconhece implicitamente um direito à existência de associações sindicais por parte de todas as forças de segurança, sem distinção - e, aparentemente, por aquilo que sempre temos ouvido, o PSD não quer conceder o direito de associação sindical à Guarda Nacional Republicana. Mas a verdade é
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que, com esta formulação que apresentam, essa intenção política não tem confirmação na proposta de texto, uma vez que nela não se faz essa distinção; essa distinção faz-se no texto do CDS-PP, como referiu, mas não se faz na proposta do PSD.
Por outro lado, uma outra consequência, porventura não prevista, é a de que uma restrição absoluta ao exercício do direito à greve talvez alcance mais do que aquilo que se pretendia, uma vez que, como também já nos lembrou, há associações sindicais no âmbito das forças e dos serviços de segurança que, já hoje, têm reconhecido o direito à greve, como é o caso da ASFIC (Associação Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal da Polícia Judiciária).
Portanto, por uma via e por outra - num caso dá-se demais, noutro caso estabelece-se de menos -, essa solução parece-me, de facto, desequilibrada. Além do mais, poderia causar outro tipo de desequilíbrios: se fosse necessária uma credencial constitucional expressa para proibir o exercício do direito à greve no âmbito das forças de segurança, talvez nos perguntássemos, depois, onde é que estaria a credencial constitucional expressa para proibir o direito à greve às Forças Armadas e às forças militarizadas; ou seja, numa interpretação harmoniosa da Constituição, penso que se se proibisse a uns e não se proibisse a outros, tal iria parecer uma espécie de declaração implícita de tolerância a uns e de restrição absoluta a outros.
O Sr. Osvaldo Castro (PS): - Claro!
O Sr. Jorge Lacão (PS): - São soluções que, de facto, não nos agradam e, portanto, como sublinhei, mais do que fazer uma pergunta, pretendo somar estas considerações que acabo de fazer àquelas que lhe ouvi, manifestando uma sintonia de análise com aquela que o Sr. Dr. Bernardo Colaço referiu.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Filipe.
O Sr. António Filipe (PCP): - Sr. Presidente, também queria saudar a presença do Dr. Bernardo Colaço nesta reunião e dizer que, tal como o Deputado Jorge Lacão, também eu concordo com a generalidade das opiniões que aqui exprimiu. Aliás, quem assistiu, na última reunião, à discussão que aqui travámos, recordará que, de alguma maneira, já houve uma troca de opiniões sobre estas questões, aqui, no âmbito desta Comissão.
A questão que vou colocar-lhe tem que ver ainda com a necessidade de estabelecer este aditamento ao artigo 56.º, mesmo que se concorde com o conteúdo, isto é, mesmo que alguém entenda que faz sentido que haja uma restrição do direito à greve por parte das associações sindicais integradas por elementos das forças de segurança.
Enfim, "dando de barato" essa questão, com a qual concordo, de que o direito à greve é um direito individual, mas admitindo que se considera que seria adequado restringir o direito à greve na legislação reguladora do exercício do direito de constituição de associações sindicais de uma determinada categoria profissional - neste caso, os polícias -, pergunto a V. Ex.ª se considera que seria necessário introduzir uma alteração constitucional como esta que é proposta para o artigo 56.º, ou se entende que isso poderia ser feito em sede de lei ordinária, no fundo, no uso da possibilidade de restrições que está introduzida pelo actual artigo 270.º.
Esta é, pois, a questão que gostaria de colocar-lhe.
O Sr. Presidente: - Não havendo mais questões a colocar pelos Srs. Deputados, pessoalmente, também queria colocar uma questão que vislumbrei na sua intervenção, e tomei nota, embora seja mais uma curiosidade do que, propriamente, algo que tenha uma importância definitiva para estes trabalhos. V. Ex.ª criticou, por considerar excessiva, a proibição expressa, constante de algumas propostas, e referiu que, "pelo menos nesta fase", era contra o direito à greve das forças de segurança. Ora, gostaria que V. Ex.ª comentasse esta crítica, pois depreendo que a sua opinião vai no sentido de que, numa outra fase posterior, poderiam ter esse direito à greve.
Esta é mais uma questão de curiosidade, mas, enfim, talvez ela possa ter também alguma importância no decorrer dos trabalhos.
Assim, dou a palavra ao Sr. Procurador-Geral Adjunto, Dr. Bernardo Colaço, para esclarecer estas questões, pois, embora já as tenha referido durante a sua intervenção, peço-lhe para dar alguma achega adicional à sua intervenção inicial.
O Sr. Dr. Bernardo Colaço: - Sr. Presidente, quando referi que a questão do direito à greve pelo menos nesta fase foi, quanto mais não seja, por uma questão de opinião pública, no momento em que o País vive psicologicamente, ou então na base de um certo realismo relacionado com o problema da insegurança; a opinião pública, efectivamente, ficaria um tanto abalada nesta fase, com a aceitação ou o reconhecimento do direito à greve à polícia - as pessoas pensariam que, logo a seguir, viriam para a rua todos os ladrões; todas as pessoas estariam inseguras por tudo e por nada, por assassinatos e por aí fora.
Como é óbvio, nada disto iria acontecer, só que, ao fim e ao cabo, nós temos de ir a passo com a opinião da comunidade, pelo menos nesta fase, como eu digo.
De facto, Sr. Presidente, entendo que, por exemplo, no caso do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público e no dos Juizes, nós também temos direito à greve. Até já foi decretada a greve e, no rigor dos termos, não veio mal ao mundo! Na realidade, se é que se pode fazer críticas à justiça, direi que não será por qualquer exercício do direito à greve que o Ministério Público ou os juizes tenham feito que a justiça está como está. Portanto, não é por este caminho (que o direito à greve deve ser impedido).
Por outro lado, entendemos que a questão do direito da greve se prende, efectivamente - se é que se pode dizer assim -, com o grau de consciência do próprio titular do direito à greve: quanto mais alargada for a sua consciência social e, sobretudo, a consciência profissional, mais sentido de realidade terá quanto ao uso deste exercício. Tenho para mim como certo que chegará o dia, Sr. Presidente, em que a polícia terá o direito de greve, e não haverá qualquer perigo para a sociedade: os serviços e as necessidades da sociedade serão satisfeitos mesmo podendo a polícia exercer o seu direito à greve.
O Sr. Presidente: - É um optimista!…
Risos.
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O Sr. Dr. Bernardo Colaço: - Sr. Presidente, não sei se dei uma resposta satisfatória, mas realmente entendo que o associativismo é, efectivamente, o mais alto grau de consciência social que um profissional, um trabalhador, seja em que circunstâncias for, pode adquirir, justamente nesta base.
Por outro lado, quanto à pergunta formulada pelo Sr. Deputado António Filipe, relacionada com a questão de podermos conjugar a proibição do direito de greve, evitando uma consagração constitucional desta proibição e fazer, digamos assim, uma emissão concomitante, em paralelo significa: por um lado, reconhecia-se o direito sindical - aliás, esta até é uma posição que uma vez me aventurei a defender, num colóquio, justamente neste sentido. Como basta uma maioria simples, para efeitos de aprovação de direitos, liberdades e garantias, na pureza dos princípios nada impediria, por exemplo, que fosse promulgada uma lei reconhecendo o direito sindical à PSP, no caso concreto, às forças de segurança (mediante um decreto autónomo, reconhecendo esse direito sindical) e, por outro, em simultâneo, que se introduzisse no Estatuto ou na Lei Orgânica dos respectivos serviços todas as eventuais restrições constitucionais que o artigo 18.º da Constituição consente.
Portanto, por um lado, teríamos uma lei geral que reconhece o direito à greve, que é um reconhecimento de um direito e de uma garantia, e, por outro lado…
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Peço desculpa, tratou-se de um mero lapso: o Sr. Dr. referiu-se ao direito à greve, mas suponho que queria dizer o direito à associação sindical.
O Sr. Dr. Bernardo Colaço: - Sim, reconhecer o direito de associação sindical, através de um diploma autónomo e, em simultâneo, introduzir no Estatuto das respectivas forças de segurança as eventuais restrições ao exercício de direitos que entendessem, posto que, neste caso, o chamado "direito à greve" figuraria, efectivamente, como uma restrição a um direito individual do próprio agente de segurança.
Portanto, esta é uma ideia que também pode ser avançada: diploma autónomo, por um lado, e introdução de restrições nos diplomas estatutários, por outro lado.
O Sr. Presidente: - Agradeço ao Sr. Procurador-Geral Adjunto os esclarecimentos que nos prestou, que foram muito positivos para o nosso trabalho. Em meu nome e em nome dos Srs. Deputados, agradeço-lhe mais uma vez ter-nos prestado a sua preciosa colaboração.
Aliás, devo fazer uma pequena rectificação: o livro que o Sr. Procurador-Geral Adjunto ofereceu ficará à disposição dos Srs. Deputados, enquanto decorrerem os trabalhos da Comissão, e só depois irá para a biblioteca.
Pausa.
O Sr. Presidente - Srs. Deputados, já temos presente o Sr. Conselheiro Mário José Torres, que acedeu a comparecer nos nossos trabalhos e a quem, em nome pessoal e em nome de todos os Sr. Deputado, agradecia a disponibilidade que manifestou em estar connosco, hoje, para nos prestar um depoimento sobre matéria que diz respeito à revisão constitucional.
Muito em especial, quando foi sugerida a sua presença, desde logo aceite por unanimidade, foi referido que o seu depoimento teria um especial interesse no que respeita a questões levantadas por projectos referentes à igualdade de direitos políticos entre portugueses e cidadãos de países de língua oficial portuguesa. Era sobre essa matéria em especial, sem prejuízo de V. Ex.ª poder, também em relação a outras matérias, prestar-nos o seu depoimento, que foi sugerido o nome do Sr. Conselheiro.
Mais uma vez os meus cumprimentos e agradecimentos.
Informo ainda que, em regra, os trabalhos da Comissão se têm desenrolado através do escalonamento de uma intervenção inicial do convidado, seguida de questões que os Sr. Deputados possam querer colocar. Portanto, se V. Ex.ª concordasse com este método de trabalho, iríamos entrar na matéria e eu dar-lhe-ia a palavra para uma intervenção inicial.
Tem a palavra, Sr. Conselheiro.
O Sr. Juiz Conselheiro Mário José Torres: - Sr. Presidente, Srs. Deputados, agradeço o convite que me formularam para colaborar com o que pouco sei relativamente a esta matéria. O convite que recebi especificava fundamentalmente a questão do princípio da equiparação dos direitos políticos, constante de uma proposta de alteração ao artigo 15.º da Constituição.
Antes de mais, começo por pedir desculpa pelo pouco tempo que tive para estudar os elementos relativos a esta temática, além de aproveitar para lamentar que ainda não estejam publicados os trabalhos da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional de 1997, que seriam muito importantes relativamente a esta matéria.
Dos três projectos presentes, apenas o PSD apresentou uma proposta de alteração ao n.º 3 do artigo 15.º, retomando no fundo, pelo que percebi, uma proposta que, na revisão de 1997, foi subscrita por Deputados de todos os partidos, tendo sido apresentada posteriormente uma outra proposta subscrita apenas por alguns Deputados do Partido Socialista.
Porém, comparando esses diversos projectos, penso que a primeira conclusão que se retira é que haverá um certo consenso relativamente à necessidade de avançar um pouco mais no domínio da equiparação desse tipo de direitos e apenas haverá divergências quanto aos cargos políticos que serão ou não abrangidos nessa matéria.
Gostaria ainda de recordar algumas posições que tenho defendido quanto ao princípio da equiparação dos estrangeiros, que está consagrado no artigo 15.º da Constituição, embora reconheça que sem grande sucesso.
Em traços muito breves, a minha tese traduz-se no seguinte: distingo, num primeiro grupo, os direitos relativamente aos quais, por princípio, são equiparados os nacionais e os estrangeiros, e que não são apenas os tradicionais direitos, liberdades e garantias mas, também, os direitos a prestações, como resulta da comparação entre a Constituição de 1993, que excluía do princípio da equiparação as prestações que implicassem encargos para o Estado, e o actual texto constitucional no qual essa restrição não existe.
Desse primeiro grupo, que abrange os direitos relativamente aos quais é válido, em regra, o princípio da equiparação entre nacionais e estrangeiros, distingo, num segundo grupo, aqueles direitos que, à partida, são apenas válidos para os nacionais, mas relativamente aos quais se admite, em certas condições - digamos que como um acto de generosidade do Estado português -, o seu alargamento a estrangeiros.
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Relativamente ao primeiro grupo de direitos, tenho sustentado que a Constituição não permite a imposição da regra da reciprocidade ou (como a Professora Isabel Magalhães Colaço preferia, por mais rigoroso) a regra da retaliação e, portanto, são inconstitucionais as normas de lei ordinária que assim o estabeleçam. Refiro-me, concretamente, ao artigo 14.º do Código Civil e a disposições da Lei da Segurança Social e do acesso ao Serviço Nacional de Saúde.
Essa restrição ao princípio da equiparação derivada do seu condicionamento à regra da reciprocidade ou da retaliação seria compreensível numa altura em que se considerava que, pelo facto de um indivíduo ser nacional de um Estado, deveria sofrer todos os inconvenientes dessa ligação, isto é, havia uma responsabilização colectiva de todos os nacionais de um Estado que permitia, por exemplo, em situações de guerra, o internamento dos nacionais de países inimigos em campos de concentração ou o confisco dos seus bens. Porém, no estádio actual do Direito Internacional, a dignidade da pessoa humana e o seu reconhecimento como sujeito de direitos perante a ordem jurídica internacional não consente essa extensão.
O condicionamento do princípio da equiparação à regra da reciprocidade deu origem a situações extremamente absurdas, como algumas decisões do Supremo Tribunal Administrativo que, por exemplo, recusavam (antes das alterações que foram introduzidas na Lei do Apoio Judiciário) a concessão de apoio judiciário a requerentes de asilo com o argumento de que países de onde esses requerentes eram naturais, e contra cujos regimes lutavam, não reconheciam, nesses Estados, esse direito aos cidadãos portugueses. Isto é, um cidadão angolano, um cidadão nigeriano, por lutar contra os regimes dos respectivos países por motivos políticos, requeria asilo em Portugal e via-se penalizado porque o regime político vigente no Estado, contra o qual ele lutava justamente por não ser um regime democrático e respeitador dos direitos humanos, não concedia aos cidadãos portugueses o mesmo direito. Ora, este era um caso chocante e, como é evidente, alterou-se a lei para evitar os absurdos a que pode levar o tal princípio da retaliação - isto relativamente ao que considero ser o grosso dos direitos em relação aos quais é válido o princípio da equiparação
Diversamente, no segundo grupo de direitos, relativamente aos quais, em regra, o princípio da equiparação não procede, embora seja admissível um alargamento a esses direitos, aí, sim, penso que, de facto, o princípio da reciprocidade tem toda a razão de ser, na medida em que vai incrementar que relativamente a esses Estados haja um tratamento mais favorável dos cidadãos portugueses que, eventualmente, lá residam.
Pela comparação que estive a fazer entre os projectos apresentados na anterior revisão constitucional e na presente, a proposta que está agora sobre a mesa recupera a já apresentada por diversos Deputados na revisão anterior. Na altura, as diferenças existentes relativamente a uma segunda proposta apresentada por alguns Deputados do Partido Socialista, consistiam em que, por um lado, esta última alargava a proibição da equiparação a todos os Deputados da Assembleia da República e não apenas ao seu Presidente, a todos os magistrados e não apenas aos Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional e ainda aos membros do Conselho de Estado e do Conselho Superior de Defesa Nacional, mas, por outro lado, em sentido contrário, restringia essa proibição aos oficiais das Forças Armadas, enquanto que quer a primeira proposta, genericamente mais generosa, quer o texto constitucional actual, quer a proposta do projecto de revisão do Partido Social Democrata não alteram esse ponto, ou seja, a restrição atinge todos aqueles que se encontrem em serviço nas Forças Armadas, mesmo que não sejam oficiais.
Pessoalmente, pelos contactos que desenvolvi, pude constatar que, actualmente, no Brasil, existe a possibilidade de cidadãos portugueses exercerem cargos de magistratura e não se trata de mera possibilidade pois existem casos concretos, designadamente em São Paulo.
Em minha opinião, quanto ao leque de cargos cujo exercício deverá ser absolutamente proibido a estrangeiros, considero que, eventualmente, haverá razões para também restringir o alargamento à questão dos membros do Conselho de Estado e aos membros do Conselho Superior de Defesa Nacional, por razões equivalentes àquelas que levam à proibição do serviço nas Forças Armadas ou, pelo menos, na qualidade de oficial, mas não veria grande objecção a ir-se um pouco mais longe no que respeita aos magistrados e, eventualmente, aos Deputados à Assembleia da República.
Nesta questão dos magistrados, que, aliás, os projectos não distinguem se são apenas magistrados judiciais ou também magistrados do Ministério público, está subjacente uma questão ainda mal resolvida. De facto, fala-se em titulares de órgãos de soberania e os magistrados, mesmo os judiciais, não são titulares de órgãos de soberania, pelo menos com a mesma natureza que os restantes. Surgem-me, por isso, algumas dúvidas se não se tratará apenas de uma carreira especial da função pública, o que pode ter implicações práticas, nomeadamente na competência do Tribunal Central Administrativo, no sentido de saber se um recurso de um despacho do Ministro da Justiça que não dá um complemento de vencimento por acumulação de funções de um magistrado é ou não um recurso que versa matéria da função pública. Aliás, a prática legislativa da Assembleia da República (embora haja um acórdão do Tribunal Constitucional em sentido contrário) sempre foi a de considerar as leis sobre a magistratura judicial e a organização dos tribunais como inseridas na reserva relativa e não na reserva absoluta de competência legislativa, isto é, na alínea que respeita à organização e competência dos tribunais e ao estatuto dos respectivos magistrados e não na alínea que respeita ao estatuto dos titulares de órgãos de soberania.
Porém, independentemente dessa discussão eventualmente teórica, a minha sensibilidade é a de que não me repugnaria - e a situação, em termos práticos, apenas se põe em relação aos cidadãos brasileiros - que exercessem funções de magistrado, em Portugal, cidadãos brasileiros, com o alargamento da equiparação a esse nível.
No fundo, quase me atreveria a propor que se transpusesse para a Constituição, com algumas adaptações, um pouco do elenco que está na norma da Constituição brasileira, em que, de facto, no que respeita às magistraturas, apenas se reserva aos brasileiros natos o cargo de Ministro (Juiz Conselheiro) do Tribunal Federal.
O Sr. Presidente:- Para pedir esclarecimentos ao Sr. Conselheiro estão inscritos os Srs. Deputados Luís Marques Guedes e Jorge Lacão.
Tem a palavra, Sr. Deputado Luís Marques Guedes.
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O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Conselheiro, ouvi atentamente a opinião que quis vir aqui partilhar connosco e houve um aspecto relativamente ao qual não consegui entender o seu pensamento, que tem a ver com aquilo que me pareceu ser uma sugestão sua no sentido de, para além dos cargos em que se pretende, nesta proposta, excluir os cidadãos dos países de língua portuguesa não portugueses, haver a considerar o Conselho de Estado e o Conselho Superior de Defesa Nacional.
A minha dúvida reside no seguinte: em primeiro lugar, como sabe, o Conselho Superior de Defesa Nacional não se restringe à lógica das Forças Armadas, tendo uma lógica diferente, pois a defesa nacional é um conceito mais vasto e diferente do conceito de defesa militar. Assim, gostaria que, à luz desta diferença, que não é uma nuance, pois a defesa nacional é, de facto, diferente da defesa militar, pudesse dar alguma explicação adicional da razão pela qual entende que também no Conselho Superior de Defesa Nacional se justificaria uma não permissão de cidadãos que não sejam portugueses natos, embora residam em Portugal.
O mesmo se diga relativamente ao Conselho de Estado, por maioria de razão, dado ser um órgão estritamente consultivo, de natureza política, do Presidente da República. Não vejo muito bem por que é que um órgão de natureza estritamente consultiva deva ser objecto de qualquer tipo de restrição deste tipo. Gostaria de perceber qual é, exactamente, o pensamento do Sr. Conselheiro sobre estas questões.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, em primeiro lugar, quero sublinhar que concordo com o ponto de vista do Sr. Conselheiro Mário Torres, quando exprimiu a natureza universal dos direitos de natureza económica e social fundados numa concepção da dignidade da pessoa humana e, portanto, desejavelmente não susceptíveis de restrição a cidadãos apenas por decorrência do seu estatuto de nacionalidade.
Quanto à aplicação da regra da reciprocidade, no domínio dos direitos estatutários e participativos, de ordem de política ou mais institucional, o Sr. Conselheiro Mário Torres referiu-se à problemática do exercício dessa reciprocidade no contexto luso-brasileiro. Salvo distracção minha, não se referiu ao alargamento desse princípio a todos os cidadãos originários dos países de língua oficial portuguesa. Ocorre que a proposta que actualmente está em cima da mesa é no sentido de universalizar essa regra da reciprocidade, não apenas aos cidadãos brasileiros, mas a todos os cidadãos dos Estados de língua oficial portuguesa. Neste sentido, quero saber se o seu ponto de vista se mantém, mesmo com a consideração do âmbito mais alargado da proposta que estamos a apreciar.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Filipe.
O Sr. António Filipe (PCP): - Sr. Presidente, quero também saudar a presença do Sr. Conselheiro Mário Torres aqui e a valia da opinião que nos transmite, sendo conhecida a reflexão que tem feito sobre matérias de direito dos estrangeiros.
A questão que lhe quero colocar é relativa à proposta do PSD que nos foi apresentada e que retoma a proposta apresentada em Plenário, na última revisão constitucional - nessa altura, havia várias propostas que foram objecto de discussão na CERC e houve uma versão que foi apresentada em Plenário e que, se não estou em erro, corresponde a esta que agora nos é aqui apresentada.
A questão que lhe coloco é a seguinte: dando como assente a concordância que já nos exprimiu relativamente a uma ampliação do reconhecimento de direitos políticos sob condição de reciprocidade, pergunto-lhe se a norma, tal como é proposta, não é demasiado ampliativa, nuns casos, e restritiva, noutros. Isto é, por exemplo, no caso do órgão de soberania governo, questiono-me se não será demasiado ampliativo restringir a cidadãos nacionais apenas o cargo de Primeiro-Ministro e se não haverá outras pastas ministeriais relativamente às quais seria prudente estabelecer igual reserva - estou a pensar, designadamente, nos cargos de Ministro da Defesa Nacional ou dos Negócios Estrangeiros. Ao invés, questiono-me também se não será excessivo restringir o serviço nas Forças Armadas apenas a cidadãos nacionais. Parece-me que, num caso, há uma restrição excessiva e, noutros, uma ampliação excessiva de direitos.
Gostaria, pois, de ouvir a sua opinião acerca do equilíbrio interno da norma proposta.
O Sr. Presidente: - Para responder, tem a palavra o Sr. Juiz Conselheiro Mário Torres.
O Sr. Juiz Conselheiro Mário Torres: - Sr. Presidente, quanto à questão colocada pelo Sr. Deputado Marques Guedes, suponho que na base da proibição do exercício por cidadãos não portugueses de funções nas Forças Armadas está, bem ou mal, justificada ou injustificadamente, uma eventual suspeição de não garantia de uma fidelidade total. É que, tradicional e culturalmente, a ideia da defesa nacional está um pouco ligada à defesa da Pátria e a sentimentos de patriotismo que, eventualmente, não seriam tão fortemente partilhados por cidadãos não portugueses como por cidadãos portugueses, mesmo que apenas naturalizados. E isto também porque está em causa a última defesa da própria soberania e da integridade do Estado, que poderá, eventualmente, estar em risco.
Assim, parece-me compreensível que, quer não apenas no exercício efectivo do serviço militar, mas também na definição das políticas que têm a ver com essa área, haja alguma cautela no sentido não consentir o seu exercício por estrangeiros. No fundo, a minha posição é a de que não me repugna que haja algumas restrições, no caso do Conselho Superior de Defesa Nacional, por eventualmente estarem em causa (opinião que é claramente discutível) interesses fundamentais da soberania e da segurança do Estado e tradicionalmente ligados a sentimentos de patriotismo que não serão, bem ou mal, partilhados por todos.
O mesmo se diga relativamente ao Conselho de Estado, pois aí trata-se da definição de políticas fundamentais do Estado.
A minha posição relativamente a estes dois aspectos é, por um lado, a de que a proibição não me repugna, não me choca e, por outro, a de que, em termos pragmáticos, me parecem ser dois campos em que a exclusão dos estrangeiros nessa matéria será pouco problemática. Penso
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que a parte fundamental da polémica estará na questão do exercício das funções de magistratura e dos Deputados, até pelo reduzido número de cargos que, fora destes dois grupos, poderão estar em causa.
Por esta razão, tenderia a dar razão à observação do Sr. Deputado António Filipe. De facto, atentas estas preocupações, que estarão na base destas restrições, parece-me que, no que se refere aos Ministros da Defesa Nacional e dos Negócios Estrangeiros, se se proíbe o exercício por estrangeiros do serviço militar e da carreira diplomática, seria pelo menos algo estranho que nomeadamente o chefe, digamos assim, da carreira diplomática também não estivesse abrangido por essa proibição.
É sobretudo uma questão sensibilidade a de definir se deverão ser todos os membros do Governo ou se deverão ser apenas os das pastas mais sensíveis, directamente relacionadas com a soberania e a sobrevivência do Estado. Devo dizer que, pessoalmente, não me repugnaria ver um brasileiro como Ministro da Ciência e Tecnologia, por exemplo.
Quanto à questão colocada pelo Dr. Jorge Lacão, devo dizer que consultei as últimas versões das Constituições dos restantes países e a impressão que tenho é a de que o problema prático, pelo menos a curto prazo, dada a cláusula da reciprocidade, apenas se colocará com o Brasil. A Constituição brasileira é a única que, neste momento, já permite o exercício de cargos nos órgãos políticos por portugueses. Segundo me parece, a Constituição de Angola não refere sequer o princípio da equiparação, a de Moçambique remete para a lei a definição das condições do exercício de funções públicas e as restantes não têm normas especiais para países de expressão portuguesa, excepto a de Cabo Verde, que tem uma norma idêntica à do n.º 3 do nosso artigo 15.º.
Assim, penso que, em termos práticos, o problema se põe fundamentalmente com o Brasil e, eventualmente, com Cabo Verde. De qualquer maneira, dada a existência de uma comunidade de línguas portuguesas, parece-me que seria talvez pouco compreensível que uma norma destas, que é uma norma de mera abertura e cuja aplicação prática está condicionada pela existência de reciprocidade, fizesse discriminações entre o Brasil, por um lado, e os restantes países, por outro. Isto embora a minha conclusão seja a de que, na prática, pelo menos a curto prazo, não seja detectável, nas Constituições de Angola, Moçambique ou dos outros países, qualquer tendência no sentido de garantirem uma reciprocidade que tornasse possível aos naturais desses países a reivindicação do exercício destes cargos.
O Sr. Presidente: - Sr. Conselheiro, não havendo mais questões, agradeço, mais uma vez, a sua prestimosa colaboração com esta Comissão e o facto de ter aceite o nosso convite para aqui vir prestar o seu depoimento. Foi certamente um depoimento enriquecedor para o debate que se vai seguir e que já está em curso. Mais uma vez, muito obrigado pela sua presença.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, antes de terminarmos a reunião, peço a vossa atenção para confirmar que, no próximo dia 19, continuaremos os nossos trabalhos, com a audição do Sr. Conselheiro Presidente do Conselho Superior da Magistratura e da Sr.ª Prof.ª Doutora Paula Escarameia, que são os depoentes cuja vinda está confirmada, e, eventualmente, de representantes da Secção Portuguesa da Amnistia Internacional, se concordarem com esta nova data.
Repito que a próxima reunião terá lugar na próxima terça-feira, dia 19, às 10 horas.
Depois, temos marcada uma reunião para o dia 22, mas ainda teremos de ver, no dia 19, o que é que faremos no dia 22, se não houver audições.
Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, há pouco, incorrectamente da minha parte, fui atender um telefone, na parte final daquilo o Sr. Presidente estava a dizer, mas devo dizer que, em última instância, concordamos, obviamente, com a sugestão do Sr. Presidente. Ou seja, embora mantenhamos que, para nós, não há razões… É que isso seria estar a antecipar problemas de funcionamento da Assembleia, o que não nos parece legítimo.
Assim, na sexta-feira, há hipótese de ouvirmos, às 9 horas, às 9 horas e 30 minutos ou às 10 horas, o Dr. Mário Soares e, porventura, o Sr. Comissário Europeu.
O Sr. Presidente: - No dia 29?
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sim, no dia 29. E o Sr. Comissário Europeu ficará, porventura, para as 15 horas. Peço desculpa, mas é que, como disse, tive de me ausentar.
Enfim, queria apenas reiterar esta posição porque, de facto, pelo menos na primeira parte do debate do dia 29, parece-nos de todo em todo descabido… Evidentemente, só haverá votações a partir do meio-dia, pelo que penso que teremos mais do que tempo. Nem que antecipássemos um pouco o início da audiência, para as 9 horas e 30 minutos ou coisa que o valha, haveria mais do que tempo para, pelo menos, fazer tranquilamente a primeira audição.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, a verdade é que há pouco, sem um consenso expresso, se pôs também o problema do começo dos trabalhos e eu teria assente na altura que ouviríamos o Dr. Mário Soares às 11 horas - teremos, com relativo à-vontade, uma hora para isso ou mesmo um pouco mais - e que, então, deslizaria a audição do Dr. António Vitorino para as 15 horas e 30 minutos. Bom, este foi o consenso possível, mas tomarei nota da posição do PSD.
Srs. Deputados, temos para resolver alguns problemas relativos aos nossos trabalhos. Já ouvi um Sr. Deputado aqui presente dar uma entrevista, dizendo qual era a sua perspectiva sobre o desenvolvimento dos trabalhos. Fiquei, assim, a saber qual era a sua perspectiva.
Ora bem, no dia 26 temos três audições confirmadas; é um pouco pesado, mas calhou assim. Ouviremos nessa data o Doutor Fausto Quadros, o Doutor Jorge Miranda e o Doutor Adelino Maltez. Digo que estas audições são "pesadas" porque os três Professores, designadamente o Doutor Fausto Quadros e o Doutor Jorge Miranda, vêm falar sobre a matéria praticamente toda. Sobretudo o Doutor Fausto Quadros, na medida em que é internacionalista, mas também o Doutor Jorge Miranda, que se reportará a todas as matérias em geral. Por isso digo que é uma manhã pesada que, naturalmente, irá deslizar bastante.
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Depois, no dia 29, temos poucas confirmações. Por isso escolhi as audições do Dr. Mário Soares e do Dr. António Vitorino, visto que o Dr. Moura Ramos não pode estar presente, que o Fórum Justiça ainda não foi contactado (apesar de eu já ter dado algumas pistas para este organismo poder ser contactado através do seu presidente, o Doutor Pinto Ribeiro) e que teríamos, então, a Amnistia Internacional. Por isso mesmo é que faço, neste momento, uma tentativa para que a Amnistia Internacional venha no dia 19, se eles estiverem dispostos a tal. Não sei se a Amnistia Internacional tem disponibilidade para isso, mas a verdade é que este agendamento nos permitiria adiantar um pouco os trabalhos.
Naturalmente, faltam-nos, depois, audições, mas teremos de ver como é que vão decorrer os nossos trabalhos. Como digo, já há um depoimento do Sr. Deputado Fernando Seara sobre esta matéria, depoimento que ouvi com muita atenção e em que foi dado um plano de trabalhos da Comissão, muito por alto, é verdade. De todo o modo, o problema que temos é que estes trabalhos têm de deslizar para Julho, razão pela qual teremos de marcar um dia, partindo do princípio de que, conforme já tínhamos dito, em Julho não teremos as contraintes que temos durante os trabalhos do Plenário. Eu estava aqui a visionar um dia, o dia 3 ou, eventualmente, o dia 6 (se bem que dia 3 fosse melhor porque é mais no início), mas teremos tempo para falar nisso.
Depois, teremos também de ver quando é que poderemos terminar os nossos trabalhos, se é que os podemos terminar, como eu pretenderia e penso que era a nossa ideia inicial, até meados de Julho. Já ouvi depoimentos mais pessimistas mas, apesar de tudo, espero que tenhamos condições para os terminar mais cedo.
Não sei se alguém quer fazer algum comentário sobre esta matéria.
Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, desculpar-me-á, mas quero apenas manifestar a minha não conformação com a ideia de insistir na sessão do dia 29, da parte da manhã. Não vou desenvolver argumentos, porque já os aduzi há pouco, mas penso que continuam válidos.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, esse foi o consenso possível e partiu de uma posição do PSD que não via inconvenientes em fazer audições da parte da manhã, mas também de uma constatação feita por mim de que as duas audições de manhã poderiam não só ser muito pesadas, como ter algum impacto na presença dos Srs. Deputados no último dia de Plenário, que, como sabemos, é sempre um dia que pode tornar-se complicado pelas votações, etc.
Foi este o consenso possível, mas eu compreendo a posição do Sr. Deputado Jorge Lacão que, suponho, expressa a posição do PS.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Suponho que não, Sr. Presidente.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, quero apenas deixar uma pequena nota relativa às considerações gerais que fez sobre as audições um pouco pesadas que ocorrerão nos dias que referiu. Queria apenas reiterar ao Sr. Presidente a nossa disponibilidade para que, nesses dias, haja alguma disciplina de tempos, a ser imposta por V. Ex.ª, porque penso que, nessa altura, sobremaneira, se impõe essa disciplina. Como tal, quero apenas dizer que, nesses dias, a nossa disponibilidade é total para que o Sr. Presidente imponha regras. Pedimos apenas que essas regras sejam clarificadas perante toda a gente logo no início da reunião.
O Sr. Presidente: - Com certeza que iremos clarificar essas regras, Sr. Deputado. Aliás, já tínhamos um certo consenso sobre isso, ou seja, sobre a necessidade de proceder assim.
Srs. Deputados, está terminada a reunião.
Eram 13 horas.
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A DIVISÃO DE REDACÇÃO E APOIO AUDIOVISUAL
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