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V REVISÃO CONSTITUCIONAL
Comissão Eventual para a Revisão Constitucional
Acta n.º 7
Reunião do dia 19 de Junho de 2001
SUMÁRIO
A reunião teve início às 10 horas e 25minutos.
Relativamente aos projectos de revisão constitucional n.os 1/VIII (PSD), 2/VIII (PS) e 3/VIII (CDS-PP), foram ouvidos pela Comissão os Srs. Juízes Conselheiros Noronha Nascimento e Ribeiro Mendes (Conselho Superior da Magistratura), que responderam a questões do Sr. Presidente (José Vera Jardim) e dos Srs. Deputados Luís Marques Guedes (PSD), Jorge Lacão (PS) e António Filipe (PCP).
Foi também ouvida a Sr.ª Prof. Doutora Paula Escarameia, que respondeu a questões dos Srs. Deputados Alberto Costa (PS) e José Matos Correia (PSD).
O Presidente encerrou a reunião eram 12 horas e 20 minutos.
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O Sr. Presidente (José Vera Jardim): - Srs. Deputados, temos quórum, pelo que declaro aberta a reunião.
Eram 10 horas e 25 minutos.
Srs. Deputados, vamos, então, dar início aos nossos trabalhos de hoje, estando programadas várias audições, desde logo a do Conselho Superior da Magistratura.
Começo por agradecer ao Sr. Vice-Presidente e aos restantes Srs. Conselheiros Membros do Conselho Superior da Magistratura a sua presença e colaboração, que, aliás, sempre dão aos trabalhos parlamentares.
Como sabem, estamos em sede de matéria de revisão extraordinária da Constituição, pelo que é sobre o conteúdo dos vários projectos apresentados que teríamos todo o gosto e, certamente, toda a utilidade em ouvir o que pensa o Conselho Superior da Magistratura, isto é, em conhecer a sua posição em relação a vários temas.
Naturalmente, refiro-me em especial aos temas que, de forma mais directa, dizem respeito ao Conselho Superior da Magistratura, isto é, sobretudo, a questão do Tribunal Penal Internacional e da alteração em matéria de processo penal, o que não retira que haja outros temas, como o da situação dos direitos políticos para os cidadãos de língua portuguesa, sobre os quais também gostássemos de ouvir o parecer do Conselho.
Portanto, a nossa audição não se limita a estes temas, mas é fundamentalmente sobre eles que pensamos que o vosso contributo poderá ser altamente positivo para os nossos trabalhos.
Agradeço, pois, mais uma vez, em meu nome e de todos os Srs. Deputados membros da Comissão, a vossa presença e disponibilidade.
Tem a palavra o Sr. Vice-Presidente.
O Sr. Juiz Conselheiro Noronha Nascimento (Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura): - Sr. Presidente e Srs. Deputados, o Conselho Superior da Magistratura agradece o convite que lhe foi endereçado pela Comissão.
Para entrar directamente na matéria sobre a qual fomos convocados, passo a palavra ao Sr. Conselheiro Ribeiro Mendes, membro do Conselho Superior da Magistratura, que fará a intervenção inicial.
O Sr. Presidente: - Faça favor, Sr. Conselheiro Ribeiro Mendes.
O Sr. Juiz Conselheiro Ribeiro Mendes (Membro do Conselho Superior da Magistratura): - Sr. Presidente, antes de mais, quero expressar os meus cumprimentos a todos os membros da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional.
Sr. Presidente e Srs. Deputados: Do ponto de vista desta revisão constitucional extraordinária, cujo processo foi iniciado, penso que o Conselho Superior da Magistratura não tem uma contribuição especialmente grande a dar.
Em primeiro lugar, a matéria da revisão é limitada: a occasio desta revisão é a intenção de ratificação do tratado que contém o Estatuto do Tribunal Penal Internacional, que terá sede em Haia.
Efectivamente, houve um número de Deputados suficiente para iniciar-se um processo de revisão constitucional. Congratulamo-nos com essa solução, porquanto seria altamente provável que houvesse contestações sobre a constitucionalidade de algumas normas do tratado se não houvesse uma revisão constitucional, nomeadamente sobre aquelas que são mais difíceis de aceitar pelos Estados soberanos, as quais foram elencadas, de um modo geral, pelo parecer do conselho constitucional francês. Trata-se, nomeadamente, daquelas normas que, no caso francês, poderiam pôr em causa certas soluções tradicionais decorrentes da teoria da soberania nacional.
No caso português, há normas no Estatuto, designadamente sobre a adopção da pena de prisão perpétua, que, sem uma revisão constitucional extraordinária, dificilmente poderiam ser compatíveis com o ordenamento jurídico constitucional português, sobretudo com o que consta do n.º 5 do artigo 33.º da Constituição, após a introdução dessa norma na revisão constitucional de 1997.
Portanto, penso que esta é a solução adequada, embora houvesse vozes mais optimistas - ou mais pessimistas, não sei bem - que consideravam que talvez não fosse necessária uma revisão constitucional. De facto, parece que a revisão constitucional é necessária.
Do ponto de vista do Conselho Superior da Magistratura - e este é um ponto sobre o qual tivemos ocasião de trocar impressões -, parece importante que o texto constitucional que venha a ser adoptado seja perfeitamente claro, embora pessoalmente considere que, mesmo depois de instituído, não haverá uma grande probabilidade de ser necessário entregar ao Tribunal Penal Internacional arguidos ou, pelos menos, suspeitos. Mas, com a globalização e com a abertura das fronteiras, é sempre possível que a situação venha a ocorrer.
A solução que nos parece razoável é aquela em que fique perfeitamente claro que a ratificação por Portugal do tratado, que ainda por cima não admite reservas, é feita nos termos do Estatuto, para que amanhã não possam suscitar-se dúvidas de constitucionalidade do tipo daquelas que estiveram na origem do caso Varizo, que passou pelo Tribunal Constitucional em 1995, se a memória não me atraiçoa.
Nestas matérias de constitucionalidade, o Tribunal Constitucional (como certamente sabem melhor do que eu) teve oportunidade de fazer um restatement, de estabelecer uma doutrina actualizada sobre a problemática da pena de morte e da prisão perpétua à luz do texto resultante da IV Revisão Constitucional, isto é, da nova regulamentação, no Acórdão n.º 1/2001/T.Const., de 8 de Fevereiro, numa fiscalização abstracta requerida pelo Provedor de Justiça.
Penso que é no quadro desta jurisprudência, aliás, unânime, que importa ter em conta a situação que se coloca agora de novo ao Estado português e, portanto, julgo que se impõe encontrar uma formulação clara.
A solução avançada, por exemplo, na proposta subscrita pelos Deputados do PS é a de aditar uma norma, nas disposições transitórias, sobre justiça internacional, que é, aliás, uma formulação semelhante à adoptada, em Julho de 1999, pela revisão constitucional francesa. Esse texto francês, que tenho em meu poder, é do seguinte teor: "A República pode reconhecer a jurisdição do Tribunal Penal Internacional nas condições previstas pelo Tratado assinado em 16 de Julho de 1998". Esta formulação é, de facto, semelhante à proposta pelo PS. Mas creio que a solução sistemática francesa não foi a mesma, tendo-se aditado um artigo 53.º-A, em matéria de tratados internacionais.
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A solução avançada pelo projecto de revisão constitucional subscrito pelos Deputados do PSD prevê, a nível sistemático, a inserção da seguinte norma no artigo 7.º, na matéria de relações internacionais: "(…) em condições de complementaridade face à jurisdição nacional (…) [o que, de facto, resulta, de entre outras normas, do artigo 80.º do Estatuto], reconhecer a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, conforme estabelecido no Estatuto de Roma".
Penso que esta formulação, a ser acolhida, beneficiaria se fosse mais clara, dizendo "conforme estabelecido no Estatuto de Roma e nos seus termos precisos". A polémica que se instalou sobre o acolhimento, no ordenamento jurídico português, que há mais de um século não admite a pena de prisão perpétua, da possibilidade de aplicação desta pena, embora por um Tribunal Penal Internacional, aconselha, do nosso ponto de vista, a que seja extremamente clara a formulação a ser inserida na Constituição.
Depois, será uma questão de escolha inserir esta norma no artigo 7.º, nas relações internacionais, ou, como pessoalmente me parece preferível, numa disposição transitória. É que, apesar de tudo, trata-se de uma inovação, pois a jurisdição penal internacional ainda está a dar os seus primeiros passos, ainda não há sequer uma plena definição dos crimes que entrarão na competência do Tribunal Penal Internacional.
Sr. Presidente, era isto o que queria dizer quanto ao ponto mais importante, do nosso ponto de vista, da occasio da revisão constitucional.
Quanto ao artigo 7.º, há ainda uma outra proposta de alteração, apresentada pelo PS, em que se adita à norma do actual n.º 6 do artigo 7.º um inciso relativamente ao espaço de liberdade, de segurança e de justiça, que tem que ver com a evolução da União Europeia num sentido mais abrangente, resultando, nomeadamente, dos Tratados de Amsterdão e de Nice. A meu ver, será uma benfeitoria constitucional que não suscitará especiais dificuldades, atendendo à posição assumida, nomeadamente, por este Parlamento no que toca à ratificação do Tratado de Amsterdão.
Relativamente ao artigo 15.º, na proposta dos Deputados do PSD, visa-se ampliar os direitos políticos atribuídos por convenções internacionais, e em condições de reciprocidade, aos cidadãos da República Federativa do Brasil e das antigas colónias de língua oficial portuguesa. Trata-se de uma opção política.
Será aceitável, no estado actual das relações na comunidade de povos de língua portuguesa, permitir o acesso aos cargos de ministro e de juiz de qualquer tribunal, ao serviço das Forças Armadas e à carreira diplomática de cidadãos com nacionalidade desses países, embora em condição de reciprocidade? Trata-se de um opção. É, seguramente, um salto em frente no sentido de alargamento da concepção que neste momento vigora em termos de relações entre países irmãos na Comunidade de Países de Língua Portuguesa.
No que toca ao processo penal, no projecto de revisão constitucional apresentado pelo CDS-PP, prevê-se a possibilidade de autorizar a entrada no domicílio durante o período nocturno relativamente aos casos de criminalidade relacionada com tráfico de estupefacientes. Já estava prevista a possibilidade da entrada desde que houvesse consentimento, mas prevê-se agora também essa possibilidade, independentemente do consentimento, quando houver uma "Ordem de autoridade judicial competente, no caso de criminalidade relacionada com tráfico de estupefacientes, e segundo as formas previstas na lei". Existe, portanto, um certo reconhecimento do flagelo constituído pelo tráfico de estupefacientes.
Apraz-nos, em todo o caso, do ponto de vista nacional, congratularmo-nos de que não esteja aqui previsto o terrorismo, o que significa, de facto, que o terrorismo hoje, felizmente, não tem qualquer expressão no nosso quotidiano. Esperemos que seja uma situação para se manter.
Esta medida é extremamente gravosa, em termos das cartas das liberdades tradicionais, no que se refere à protecção da inviolabilidade do domicílio no período nocturno, o que, de facto, talvez se ache relativamente posto em causa pelas novas condições de vida e de criminalidade.
Eis um ponto sobre o qual penso que seria conveniente que os colegas também se pronunciassem, mas eu, a título estritamente pessoal, que nada tem a ver com o Conselho Superior da Magistratura, diria que não tenho simpatia por este alargamento, embora compreenda ou possa compreender as razões que estão na sua base, porque, efectivamente, muitas vezes o problema não é fácil de tratar, quando está em causa o tráfico de drogas. Se houvesse a certeza de que determinado domicílio estava a ser utilizado por traficantes de estupefacientes, a situação seria diferente, mas, como é evidente, quando se faz uma investigação policial, mesmo com todos os controlos, mesmo existindo um processo pendente, muitas vezes há suspeitas ou indícios que, depois, não se vêm a verificar, e, portanto, temos aqui um balanceamento entre as necessidades da investigação criminal e os tradicionais direitos de reserva domiciliária, de reserva da intimidade da vida privada, durante o período nocturno.
Há ainda mais duas propostas de alteração do texto constitucional, quer no projecto do PSD, quer no do CDS-PP, que se referem à possibilidade de a lei poder estabelecer restrições ao exercício dos direitos de associações sindicais integradas por agentes de forças de segurança e à credencial para que a lei não constitucional possa limitar a renovação sucessiva de mandatos de titulares de cargos políticos, um problema que, fundamentalmente, se tem posto, com especial acuidade, relativamente aos autarcas, aos chamados "dinossauros", aos presidentes de câmara eternos.
Isto tem a ver, de facto, também com a jurisprudência constitucional, porque houve, efectivamente, uma fiscalização preventiva, tanto quanto me lembro, no Verão de 1992 ou de 1993, de uma proposta de lei do governo da época, do Prof. Cavaco Silva, para alterar a Lei das Autarquias, estabelecendo precisamente uma limitação temporal de renovação dos mandatos, e o Tribunal Constitucional, por maioria, numa daquelas decisões do antigo turno de Verão, pronunciou-se no sentido da inconstitucionalidade, por considerar que não havia, efectivamente, credencial constitucional para o efeito, solução essa que foi criticada por certos políticos e também por vários constitucionalistas, nomeadamente pelo Prof. Jorge Miranda, que tem sustentado que o princípio democrático e o princípio republicano comportam, em si, sempre uma possibilidade de limitação dos mandatos e que isso deveria estar na disponibilidade do legislador ordinário. Mas, de facto, não foi essa a orientação do Tribunal Constitucional e, portanto, é compreensível, para quem
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entenda que deve ser consagrada esta limitação, que se faça esta proposta para a limitação de mandatos.
Existe uma diferença de formulação entre as duas propostas, porquanto a do PSD prevê não só a limitação dos mandatos dos titulares de cargos políticos como também a limitação do exercício de altos cargos públicos, enquanto a do CDS-PP prevê apenas essa limitação para os mandatos de cargos políticos eleitos por sufrágio directo e universal, o que cobrirá, fundamentalmente, os Deputados e os autarcas.
Hoje, o exercício de altos cargos públicos, nomeadamente presidências de institutos públicos, presidências da administração indirecta do Estado ou altos cargos da Administração Pública, que penso que são qualificados como altos cargos públicos, está, de facto, sujeito a mandato periódico, mandato de três anos, de um modo geral, mas, efectivamente, não está consagrada qualquer limitação de renovação de mandatos, embora, na prática, essa limitação se verifique com frequência, há, portanto, uma certa rotação, tanto quanto me parece, no comum das situações nos altos cargos públicos.
Por último, e não por ordem, existem duas propostas no sentido de limitação, designadamente do direito à greve, no caso de associações sindicais integradas por agentes de forças de segurança, sendo certo que, enquanto o PSD fala em geral de agentes de forças de segurança, o CDS-PP limita apenas essa situação aos agentes de forças de segurança de natureza civil, considerando a Guarda Nacional Republicana uma força militarizada, se bem que sejam conhecidas as dificuldades, nomeadamente de ordem constitucional, que se põem relativamente a limitações de certos direitos no domínio da própria Guarda Nacional Republicana.
Esta previsão será, de facto, um caminho para uma plena sindicalização no âmbito das forças de segurança, embora com determinadas limitações, das quais a mais relevante é, efectivamente, o direito à greve.
Trata-se, portanto, de uma particularização em matéria de associações sindicais daquilo que, de certo modo, já consta, salvo erro, do artigo 270.º da Constituição sobre restrições ao exercício de direitos, uma disposição que já vem, embora com alterações de redacção, da versão originária da Constituição, e que trata de restrições ao exercício de direitos dos funcionários públicos, especificamente nestas categorias de militares e de agentes militarizados.
No que se refere à minha intervenção, ficar-me-ei por aqui, agradecendo o tempo que me foi concedido.
O Sr. Presidente: - Muito obrigado, Sr. Conselheiro, pela sua intervenção.
Como mais nenhum dos Srs. Conselheiros quer usar da palavra, passaremos de imediato à fase dos pedidos de esclarecimento.
Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, Srs. Conselheiros, quero colocar-lhes quatro questões.
A primeira, relacionada com a matéria do Tribunal Penal Internacional, tem a ver com o seguinte: todos conhecemos o conteúdo do Estatuto de Roma, que vai ser aplicado a este Tribunal, o princípio que conseguiu ser negociado e adquirido de complementaridade desta jurisdição nova face às jurisdições nacionais, e, pelas razões que todos compreendemos, é crucial para muitas forças políticas, nomeadamente para o PSD, que fique claro que a nossa participação na criação desta nova ordem jurídico-penal internacional não implicará, relativamente àqueles que são os valores e os princípios penais portugueses, recuos relativamente à nossa tradição. Ora, para isso é fundamental, obviamente, que haja da parte da jurisdição nacional uma capacidade, uma legitimidade e uma competência própria apta a utilizar na plenitude este princípio da complementaridade.
Parece-nos, pois, para que isso possa vir a acontecer de facto, que é necessário algum ajustamento da legislação penal portuguesa, no sentido de acolher internamente a tipificação, que, em alguns casos, é ligeiramente diferente e, noutros, é claramente nova, por não existir no Código Penal português a tipificação dos comportamentos penais que estão previstos e sancionados pelo Estatuto deste novo Tribunal Penal Internacional.
Portanto, a primeira questão muito concreta que quero colocar ao Sr. Conselheiro é se, para que haja uma adequada utilização ou, se quiser, exploração do princípio da complementaridade, entende ou não que é necessária a adequação da legislação penal nacional.
A segunda questão que quero colocar-lhe tem a ver com a proposta do Partido Socialista relativamente ao n.º 6 do artigo 7.º da Constituição, ou seja, o aditamento do inciso sobre a possibilidade de Portugal convencionar o exercício em comum de poderes, com vista à realização de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça.
É evidente que todos conhecemos este termo, todos conhecemos a lógica do que aqui está, mas a pergunta que quero fazer é muito simples: se entendem ou não que é necessária - friso necessária - esta alteração, porque a razão de ser desta norma do n.º 6, que foi introduzida na revisão de 1992, como sabem, foi para permitir a ratificação do Tratado de Maastricht, e este Tratado já continha em si o Terceiro Pilar, que é o pilar da justiça e da liberdade. Portanto, a questão que se coloca ou que deve colocar-se a todos nós é esta: até que ponto é que, neste momento, é necessário fazer esta alteração na Constituição ou, porventura, o problema ainda não se coloca em termos de necessidade, é apenas um problema de cautelas prévias? No fundo, queria ouvir a vossa opinião sobre este assunto.
Em terceiro lugar, quanto à questão da alteração do artigo 34.º, que tem a ver com as buscas nocturnas, devo dizer que, quando esteve nesta Comissão, o Sr. Procurador-Geral da República aventou uma hipótese que era, à semelhança do que acontece já para determinado tipo de buscas, nomeadamente em escritórios de advogados, em consultórios médicos e outras situações, a de as buscas só poderem ter lugar na presença de um Sr. Juiz.
O que vos quero pedir é um comentário relativamente a esta hipótese, sendo certo que, obviamente, estaremos sempre aqui em presença, como o Sr. Conselheiro já referiu, de uma situação de excepção(e, como esta, existem outras situações de excepção já na legislação portuguesa), e perguntar-lhes se entendem ou não que, a avançar-se com uma medida deste género, haveria ou não vantagem em se harmonizar regimes com outras situações de excepção já existentes, essas ou outras, porventura.
Relativamente ainda a esta questão, devo referir que esta proposta é muito inspirada na Constituição espanhola, que devem conhecer, e que, relativamente a esta matéria, estabelece não só esta dualidade de situações - o consentimento do visado ou a autorização judicial - mas
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uma terceira situação que é a do flagrante delito. Portanto, coloco-vos em concreto a questão de saber se entendem ou não que está a faltar na legislação nacional este tipo de situação.
É que penso que, tal como eu próprio e a generalidade dos portugueses, já assistiram a programas de televisão em que se mostra a filmagem directa da venda de droga feita através de postigos nas portas das casas, mas que, por ser realizada em domicílios particulares, inibe as autoridades policiais de qualquer tipo de actuação, assistindo o País inteiro a esse espectáculo degradante e com isso criando um sentimento de impunidade e de desautorização da autoridade do Estado que, seguramente, é gravosa.
Por último, a questão dos limites dos mandatos, em particular quanto ao problema que o Sr. Conselheiro já referiu relacionado com os altos cargos públicos.
Conhecendo, tal como referiu, a jurisprudência, de 1993, do Tribunal Constitucional sobre esta matéria, entende ou não o Sr. Conselheiro que, mesmo no caso dos altos cargos públicos, a haver uma alteração da legislação no sentido dessa limitação, seria necessário haver uma habilitação legal constitucional como esta que aqui está?
Eram estas as questões que queria deixar-vos.
O Sr. Presidente: - Vamos fazer uma ronda de perguntas, para a qual estão inscritos o Srs. Deputados Jorge Lacão e António Filipe.
Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, quero começar por cumprimentar os Srs. Conselheiros do Conselho Superior da Magistratura.
Dirigindo-me ao Sr. Conselheiro Ribeiro Mendes, aproveitaria as suas considerações iniciais para, na sequência delas e abordando alguns dos temas já referenciados pelo Sr. Deputado Marques Guedes, procurar ir um pouco mais longe nas questões que suscito.
Relativamente ao modo de acolher, em sede constitucional, o que se dispõe no Estatuto do Tribunal Penal Internacional, anotei a preocupação do Sr. Conselheiro quando referiu a utilidade que haveria em que, na redacção da norma de acolhimento, ficasse claro que isso se faz nas condições previstas no próprio Estatuto.
Essa é, de facto, uma preocupação nossa, na medida em que, como é evidente, há normas do Estatuto que colidem, na especialidade, com algumas das disposições normativas da nossa Constituição. Sabemos onde elas estão, designadamente as questões relativas à moldura penal e, também, à problemática da extradição e à das imunidades dos titulares dos cargos políticos.
Para não termos de fazer uma espécie de adaptação extensiva da Constituição, ponto a ponto, em cada norma em que se determinasse uma desconformidade parece-nos útil que tudo isso se faça através de uma norma de recepção que estabeleça que prevalece o Estatuto do Tribunal nas condições previstas nesse mesmo Estatuto.
Portanto, neste sentido, mais do que propriamente endereçar-lhe uma questão, queria realçar essa preocupação que também nós partilhamos.
Põe-se, depois, uma outra dimensão do problema que é a questão relativa à natureza da complementaridade da jurisdição do TPI. Como já foi realçado, essa complementaridade está sublinhada no próprio Estatuto. Uma das propostas apresentadas em sede de revisão constitucional admite introduzi-la também no normativo constitucional. É nesse ponto que, pela minha parte, tenho vindo a suscitar algumas reservas.
É que entendo que uma coisa é o Estatuto do Tribunal definir um princípio de complementaridade do qual resulta que os Estados subscritores do tratado que cria o Tribunal reservarão sempre para si próprios o primado da respectiva jurisdição nacional, outra coisa é haver uma vinculação constitucional que transforme essa faculdade numa obrigatoriedade indeclinável, digamos. A meu ver, no futuro, isto pode levantar mais problemas do que aqueles que resolve, se houver uma vinculação constitucional à obrigatoriedade de a jurisdição nacional, em toda e qualquer circunstância sem distinção, exercer necessariamente a sua função de judicatura.
Por isso, parece-me que já bastaria reconhecer o exercício das condições previstas no Estatuto sem a necessidade de reforçar, em sede de Constituição, a natureza complementar dessa jurisdição porque, por um lado, Portugal não deixa de manter o primado da sua jurisdição interna mas, por outro lado, não se vincula constitucionalmente ao exercício absoluto desse primado, porque cada caso é um caso, cada circunstância é uma circunstância, e, em certas circunstâncias, poderá acontecer que seja mais útil, do ponto de vista da relação entre Portugal e o TPI, admitir que seja o TPI a julgar em primeira instância e não, necessariamente, a jurisdição portuguesa. Digo isto em abstracto, sem cuidar de estar agora a fazer um desenvolvimento mais aprofundado do tema.
Ou seja, para sintetizar, quero crer que uma norma de autovinculação constitucional ao primado da jurisdição portuguesa, por um lado, é superabundante relativamente ao que o Tratado já diz, por outro lado, seria excessivamente vinculante, transformando uma faculdade num imperativo, o que me parece porventura desaconselhável, mas gostaria de conhecer melhor o ponto de vista do Sr. Conselheiro.
A outra questão, relativa a uma proposta que o PS apresenta também para o artigo 7.º, é a da referência ao espaço de liberdade, de segurança e de justiça no sentido de também ele conformar o exercício impune dos poderes necessários à construção da União Europeia.
Do nosso ponto de vista, não se trata apenas de uma simples benfeitoria constitucional. Trata-se de procurar prever o que poderá resultar do próprio processo de aprofundamento desse mesmo espaço de liberdade, de segurança e de justiça, designadamente em domínios como o da cooperação em matéria penal, que, como sabemos, vão tão longe como a criação de uma polícia europeia, a muito provável criação de um Ministério Público europeu, a aplicação directa de decisões judiciárias que, designadamente, poderão vir a conflituar com o actual regime de extradição constante da nossa Constituição. Trata-se de matérias que poderão vir a ser implementadas através de decisões-quadro, de convenções, e que podem vir a estabelecer regimes de cooperação reforçada em que uns Estados estarão em condições de participar e outros, eventualmente, não estarão, ou por efeito das suas políticas internas ou, eventualmente, até por efeito de algum pontual constrangimento constitucional.
A nossa preocupação é, pois, prevenir estas situações resultantes de um eventual e previsível aprofundamento desse espaço de liberdade, de segurança e de justiça e, portanto, para, no futuro, não ficarmos confrontados com uma situação como ficámos actualmente, justamente em vista da aprovação e da ratificação do Estatuto do Tribunal
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Penal Internacional, ou seja, ter de ir fazer, "às pressas", uma revisão constitucional, por mais pontual que fosse, para superar um constrangimento nos vários domínios em que eventualmente possam ocorrer devido a este aprofundamento, particularmente nos domínios da cooperação em matéria penal.
Concluo, debruçando-me sobre a questão das buscas domiciliárias e a possibilidade de superar este constrangimento absoluto da Constituição relativamente às buscas nocturnas.
Pergunto, pois, se, no caso de, eventualmente, a Constituição acompanhar essa superação da proibição absoluta com uma garantia reforçada, não só de autorização de um juiz mas igualmente da presença obrigatória de um juiz em diligências deste tipo, tal não concorreria para superar algumas das reservas que a superação da proibição absoluta a todos nos suscita.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Filipe.
O Sr. António Filipe (PCP): - Sr. Presidente, começo por cumprimentar os Srs. Conselheiros.
A questão que pretendo colocar prende-se precisamente com esta última a que aludiu o Sr. Deputado Jorge Lacão, que é a da inviolabilidade do domicílio à noite.
Conhecemos a origem desta norma constitucional e as razões que militam a favor da sua consagração. Ora, nos últimos anos, temos vindo a verificar que a protecção de direitos fundamentais dos cidadãos perante a investigação criminal tem vindo a ceder de alguma forma perante as exigências do combate a uma criminalidade cada vez mais sofisticada. Sabemo-lo e, nos últimos anos, face ao confronto entre estes dois tipos de valores, temos vindo a assistir a que as necessidades de combate ao crime vão fazendo ceder determinadas garantias que foram sendo conquistadas pelos cidadãos. A questão que se coloca terá que ver com a adequação e com o equilíbrio nestas cedências que vão sendo feitas.
A questão que vos coloco é a de saber se consideram que, neste momento, no domínio da repressão da criminalidade, existe um problema que tenha que ver com a inviolabilidade do domicílio à noite a ponto de justificar uma alteração constitucional. Isto é, será que não é possível combater designadamente o tráfico de droga, que é o que aqui está em causa, se não se entrar à noite no domicílio dos traficantes? Será que este é um crime que só é praticado de noite?
Há pouco, o Sr. Deputado Marques Guedes falava do postigo através do qual se vende droga à noite, mas, seguramente, se formos ao mesmo postigo durante o dia, provavelmente a venda funcionará de igual modo.
Portanto, embora sem querer antecipar a resposta, pergunto-vos se consideram que, neste momento, há de facto um determinado tipo de criminalidade relacionada com a droga que fica por reprimir ou que não é reprimível se não for introduzida esta disposição constitucional que permite que sejam feitas buscas ou detenções à noite, no domicílio.
Uma segunda questão que quero colocar relaciona-se com o mesmo problema.
Gostaria de saber se consideram que tem lógica, do ponto de vista do equilíbrio do sistema jurídico-penal, eliminar esta restrição especificamente com referência a um tipo de crime, na medida em que, fazendo a referência para o tráfico de droga, evidentemente que estamos a abrir a possibilidade de afastamento da inviolabilidade do domicílio para um crime que poderá não ter uma gravidade comparável a outro que possa ocorrer e relativamente ao qual essa restrição não é eliminada.
Eram estas duas questões relacionadas com o mesmo tema que gostariam que abordassem.
O Sr. Presidente: - Eu próprio também gostaria de colocar uma questão aos Srs. Conselheiros relacionada com esta última matéria das buscas domiciliárias nocturnas.
Na exposição do Sr. Conselheiro Ribeiro Mendes já foi um pouco referido o aspecto das novas condições de vida. Ora, queria fazer-lhe uma pergunta acerca disso.
Hoje, há um tipo de criminalidade que se passa nos domicílios entendidos em termos amplos, porque "domicílio" tem aqui um sentido antigo e clássico que é "sítio onde a pessoa reside".
Quando refiro o tráfico não ponho a questão apenas em relação ao crime de tráfico de droga mas também ao tráfico de seres humanos, ao tráfico de armas, etc., e quando falo em buscas domiciliárias dou-lhe o sentido de entrar em casas onde, suposta ou verdadeiramente, as pessoas também vivem, mas fazem delas centros de tráfico. Ora, este tipo de criminalidade passa-se nos domicílios entendidos neste sentido amplo.
A questão que coloco ao Sr. Conselheiro vai no sentido de saber se não considera que essa alteração das condições de vida e das condições do exercício de certo tipo de criminalidade coloca novos desafios que podem levar-nos a "pôr em causa", como dizia o Sr. Deputado António Filipe, princípios que eram válidos para outro tipo de condições de vida e para outro tipo de criminalidade.
Não sei se fui claro, mas, na exposição do Sr. Conselheiro, foi visível para mim que iria no sentido de alguma inclinação para essa tese. Era, pois, esta a questão que queria colocar-lhe.
Não há mais inscrições, pelo que dou a palavra, em primeiro lugar, ao Sr. Conselheiro Ribeiro Mendes, para responder.
O Sr. Juiz Conselheiro Ribeiro Mendes: - Sr. Presidente, começo pelos pontos específicos sobre os quais fui interpelado.
Relativamente às questões colocadas pelo Sr. Deputado Marques Guedes, devo confessar a minha fragilidade em temas de Direito Penal, a par de muitas outras fragilidades. Mas seguramente em temas de Direito Penal. Por isso, aquilo que poderei dizer será o resultado de algumas leituras que fiz - apressadamente, confesso - para vir aqui hoje. Isto porque a matéria de Direito Penal está, do ponto de vista profissional, relativamente afastada do meu campo de interesse.
No entanto, o que me parece, por alguns comentários que li e da leitura que fiz das normas relativas aos crimes contra a humanidade constantes do nosso Código Penal, é que há, efectivamente, uma discrepância entre as previsões dos crimes de genocídio, nomeadamente, e dos crimes de guerra, sendo que as nossas previsões são extremamente lacónicas.
Aliás, a técnica é também um pouco diferente. Julgo que a técnica é, por influência anglo-americana, apesar de tudo, mais detalhada, mesmo na tipificação penal no texto do Estatuto. Sei que não existe definição do crime de agressão e, tanto quanto pude verificar, continua a haver reuniões
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da Comissão Preparatória, estando prevista uma aprovação pela assembleia de Estados.
Em face do exposto, gostaria de dizer que parece-me razoável e preferível que os tribunais portugueses tratem destas situações e não as submetam ao Tribunal Penal Internacional - pelo menos, no comum dos casos.
Por outro lado, e aproveito para fazer a ligação à questão que o Sr. Deputado Jorge Lacão me colocou, parece-me que, num sistema como o nosso, em que, em matéria da perseguição penal, vigora o princípio da legalidade, dificilmente poderá haver uma raison d'État que permita o Executivo deferir competência a uma jurisdição penal internacional, quando existe uma regra de complementaridade no Tratado, independentemente da nacionalidade. Ou seja, sendo detidos no nosso país, podem ser aqui, penso eu, julgados, nomeadamente se houver uma conexão em termos de Código Penal, como há neste tipo de crimes.
Devo dizer que faço estas observações sob reserva. Espero não estar a dizer alguma grossa asneira em matéria de Direito Penal Internacional. Mas a ideia que tenho é esta: as nossas incriminações no âmbito do Código Penal deverão ser ajustadas, reproduzindo-se depois no direito interno, pelo menos a partir do momento em que vigore o tratado, porque depois pode levantar-se o eterno problema de saber se o direito internacional convencional é ou não hierarquicamente superior ao direito interno português.
Todavia, para evitar este tipo de discussões, julgo que o Código Penal deverá ajustar-se, por remissão ou por reprodução, neste quadro de crimes contra a humanidade, ao que estiver previsto no Estatuto e nas alterações subsequentes do Estatuto do Tribunal Penal Internacional.
Relativamente à solução do n.º 6 do artigo 7.º e sobre o carácter necessário desta inclusão, devo dizer que talvez não seja estritamente necessária neste momento.
Contudo, parece-me de atender a consideração feita no preâmbulo da pergunta colocada pelo Sr. Deputado Jorge Lacão no sentido de dizer que se estamos empenhados, como Estados membros de pleno direito na União Europeia, e se efectivamente existe uma evolução em curso na União Europeia que se tem acentuado nos últimos dois anos, então deve aproveitar-se a oportunidade de revisão constitucional para, sem a pressão do momento, se introduzir uma explicitação que, não sendo rigorosamente necessária neste momento, seguramente será útil e poderá vir a revelar-se necessária em termos de futuro próximo.
Portanto, afigura-se-me que, neste momento, o texto actual do n.º 6 do artigo 7.º já dá uma cobertura mínima a essa situação, mas parece-me que se deveria aproveitar esta ocasião para alterar o artigo.
Quanto ao problema da presença do juiz na entrada no domicílio para buscas e à solução gravosa de limitar uma liberdade que, pelo menos em Portugal, nos temos habituado a considerar já, nestes anos de vigência da Constituição, como tradicional, diria que, havendo essa hipótese, é pelo menos uma garantia suplementar. Portanto, no caso de poderem ocorrer na nossa legislação alterações em termos de restrição dos direitos fundamentais, então será sempre bom que tenha de haver uma intervenção judicial. Ou melhor, a admitir-se esta solução, então que haja de facto um cuidado especial, tal como há um cuidado especial em matéria de escutas telefónicas, porque há certas situações de intromissões gravosas na intimidade ou na reserva pessoal que devem obedecer a especiais cautelas.
Aliás, relativamente a este aspecto, em especial, gostaria de fazer uma remissão para a opinião dos colegas presentes, designadamente sobre o problema da presença do juiz e sobre esta situação em geral.
Quanto ao problema do limite dos mandatos, a ideia que tenho da jurisprudência constitucional, na qual participei e não me apercebi que tenha havido, entretanto, alguma alteração nesta matéria, a questão coloca-se especificamente em relação aos cargos electivos. Isto é, para os altos cargos públicos não me parece que exista qualquer obstáculo constitucional a que a lei faça uma limitação desses mandatos. Este argumento tem estado sempre presente, especialmente a partir dos chamados "primeiro e segundo acórdãos Fernando Gomes", que se traduziram num problema de incompatibilidades com um cargo electivo.
Como se recordarão, o então Presidente da Câmara do Porto, Fernando Gomes, tinha sido eleito Deputado ao Parlamento Europeu. Depois, houve uma alteração na legislação eleitoral, que, aliás, foi submetida à fiscalização preventiva de constitucionalidade, que explicitava uma incompatibilidade. E o problema que se pôs foi o seguinte: em todas as situações em que, efectivamente, estamos perante o preenchimento de um cargo por sufrágio popular, qualquer restrição é especialmente gravosa, porque pode levar, de um modo ou de outro, à limitação da opção de um corpo eleitoral.
Diria, pois, que a jurisprudência que existe no Tribunal Constitucional quanto à insusceptibilidade de a lei ordinária, no silêncio da Constituição, poder introduzir limites temporais aplicar-se-á aos cargos electivos e não aos altos cargos da Administração Pública. Aliás, a jurisprudência e a prática do Tribunal Constitucional em matéria de incompatibilidades vai nesse sentido. Daí que, quanto à criação de incompatibilidades, nem sequer se ponha o problema da tutela de confiança, sendo possível aplicar certas restrições aos mandatos em curso de altos funcionários públicos. De resto, tanto quanto me recordo, existe jurisprudência a propósito da alteração da lei das incompatibilidades.
No que diz respeito à norma de recepção e à inclusão da natureza de complementaridade, devo dizer que não tenho uma ideia assim tão segura em relação a este assunto, mas também não pensei nisso, porque só agora fui confrontado com a questão.
No entanto, posso dizer-lhes que não tenho a ideia de que a inclusão no texto da Constituição da natureza complementar da jurisdição internacional seja gravosa para a nossa soberania. Admito que não pensei muito nisso, mas parece-me haver um caso paralelo, porquanto o n.º 6 do artigo 7.º da Constituição refere-se ao princípio da subsidiariedade que está no Tratado de Maastricht. Portanto, ficou incluída no texto da Constituição, embora eu não veja a necessidade de ela estar lá.
Parece-me, pois, ser preferível dizer que recebemos no direito interno um tratado internacional nas condições aí previstas, isto é, pela ratificação e subsequente publicação, conforme as condições que estão previstas. Portanto, não vejo necessidade em incluir a noção de complementaridade, tal como é proposto - "(…) em condições de complementaridade (…)". Admito que seja um juízo de quem não pensou na questão, ao contrário de VV. Ex.as que têm andado a pensar nesta questão há algum tempo.
No que diz respeito ao problema das buscas domiciliárias, e fazendo a ligação à questão colocada pelo Sr. Presidente, quero dizer o seguinte: no confronto diário,
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mesmo não sendo penalista, apercebemo-nos de que há uma alteração impressionante dos hábitos das grandes organizações criminosas, alteração essa que é devida à globalização. Ou seja, estas grandes organizações têm uma extrema preparação nesta área, que se revela, designadamente, através da consulta jurídica muito detalhada que fazem nos vários países.
Aliás, segundo li no outro dia, há uma espécie de forum shopping em matéria criminal, tal como se fazia antigamente no Direito Comercial clássico. Portanto, podemos admitir que certas garantias que estão, um pouco ingenuamente, pensadas para uma sociedade mais pacata, talvez estejam em crise nas situações em que são utilizadas como uma espécie de safe-houses, de "casas" que, aparentemente, são pacíficos lares, para na realidade serem verdadeiros depósitos de substâncias criminosas ou psicotrópicas, de armas ou ainda cárceres privados, com algum luxo, de pessoas que são objecto de negócios jurídicos, como na antiga escravatura, no caso de tráfico de pessoas.
Perante este tipo de situações, será uma questão de balancear as soluções liberais de defesa das liberdades, face ao expeditismo das forças policiais. Nesta medida, há um balanceamento que o Parlamento pode levar a cabo. Se, de facto, as soluções forem no sentido da diminuição de garantias, deverá haver em todo o caso um contrapeso, o que poderá ser feito através de uma actividade mais profunda do juiz de instrução.
Quanto à questão colocada pelo Sr. Deputado António Filipe, relativa à questão da inviolabilidade do domicílio e à necessidade de incluir esta restrição no texto constitucional, tenderia a dizer que, da minha vivência e da leitura que faço das estatísticas criminais, apesar de tudo, não vejo essa necessidade. Mas eu sou relativamente optimista e lembro-me sempre de uma cena que se passou comigo - e que, aliás, se passa com todos nós - e que às vezes nos leva a questionarmos as convicções que sempre aceitámos. Se uma pessoa for vítima de um assalto - como uma vez se passou comigo no estrangeiro -, a maneira de reagir não passa propriamente pela defesa das liberdades, mas, sim, por um clamar da autoridade. Por isso é sempre perigoso fazermos estes juízos "a quente" e por isso é que digo que, se a nossa vivência passar a ser profundamente tocada por uma situação de rapto de um familiar, de submissão de um familiar ou de uma pessoa conhecida a uma situação de cárcere privado ou equivalente, ou mesmo por uma situação de prostituição forçada, etc., naturalmente tenderemos a ver as coisas com menos frieza.
Em todo o caso, parece-me que, se descontarmos alguma dose de sensacionalismo dos telejornais, a situação portuguesa não exige ainda, felizmente, um grande fortalecimento das medidas de natureza policial. Contudo, este é um ponto de vista pessoal e saliento que não sou especialmente qualificado nesta matéria.
Creio que procurei responder às questões que me foram colocadas da melhor forma que pude e soube, com as restrições que exprimi.
O Sr. Presidente: - Não havendo mais inscrições, dou por terminada esta fase da audição do Conselho Superior da Magistratura, renovando aos Srs. Conselheiros os nossos agradecimentos pela colaboração que, certamente, será muito útil para a continuação dos nossos trabalhos.
Pausa.
Srs. Deputados, quero apenas lembrar-vos que no dia 22 não temos audições, pelo que faremos um intervalo, mas no dia 26 temos três audições agendadas: do Professor Fausto Quadros, do Professor Jorge Miranda e do Professor Adelino Maltez.
Por outro lado, verifico que esta audição demorou 1 hora e 10 minutos e apenas começou às 10 horas e 25 minutos! Ora bem, queria suscitar aos Srs. Deputados esta questão muito simples: no dia 26, a primeira audição terá de começar exactamente às 10 horas, esteja presente quem estiver! Peço-vos desculpa, mas o que atrasa muito as audições é o facto de não começarmos às 10 horas, mas, sim, às 10 horas e 30 minutos. Ora, se começarmos às 10 horas prefixas, esteja quem estiver - e peço a todos para serem pontuais -, as coisas vão mudando; se começarmos com 30 minutos de atraso, vamos deslizando cada vez mais… Assim, no dia 26, visto que temos três audições de pessoas que se vão pronunciar sobre vários aspectos, visto que são Professores de Direito Constitucional, peço a vossa atenção especial para a pontualidade.
Pausa.
Srs. Deputados, vamos, então, continuar os nossos trabalhos com a audição da Sr.ª Prof.ª Doutora Paula Escarameia, a quem começo por agradecer o facto de estar presente nesta reunião e de se ter disponibilizado para aqui vir prestar o seu depoimento, visto que de depoimento se trata, muito embora esteja incluído no conjunto de audições que a Comissão está a levar a efeito.
V. Ex.ª fez parte do grupo que negociou, por parte de Portugal, o Tratado de Roma. Já aqui esteve o Sr. Embaixador Costa Lobo a prestar também o seu depoimento sobre essa matéria e pensou esta Comissão que teria muito interesse a sua audição, tanto mais que há trabalhos que continuam a decorrer e nos quais, suponho, a Sr.ª Prof.ª Doutora Paula Escarameia também está integrada. Como tal, é para nós importante ouvi-la quanto a esta matéria. A audição é, no seu caso, muito especialmente sobre esta matéria, sendo certo que, se quiser pronunciar-se sobre outras matéria, não lhe colocaremos entraves, como é óbvio, e ouvi-la-emos com toda a atenção.
Dou, então, a palavra à Sr.ª Prof.ª Doutora Paula Escarameia para uma primeira intervenção em que, baseada na sua experiência nesta matéria, nos poderá dizer alguma coisa sobre os projectos que estão presentes em matéria de Tribunal Penal Internacional (que, como sabe, são dois), bem como informar-nos sobre a forma como estão a decorrer os trabalhos, visto que também é do nosso interesse ouvi-la sobre esses pontos.
A Sr.ª Prof.ª Doutora Paula Escarameia: - Sr. Presidente, Srs. Deputados, agradeço-vos muito o facto de me terem convidado para vir aqui depor. Na verdade, contactei também o Embaixador Costa Lobo para saber o que é que ele tinha dito e para não estar a repetir as mesmas questões. Como tal, se me for permitido fazer uma pequena introdução, focarei outros aspectos sobre os quais penso que o Embaixador Costa Lobo não terá falado.
Na verdade, tenho acompanhado as negociações e sou a pessoa que lá está há mais tempo, já que era conselheira jurídica na Missão de Portugal quando começaram os trabalhos. Estava na Missão em 1995, ano em que começaram os trabalhos relativos ao Tribunal nas Nações Unidas. Tinha sido pedido um parecer à Comissão de
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Direito Internacional, que foi entregue em finais de 1994, pelo que em 1995 se constituiu o primeiro grupo de trabalho sobre o assunto. Ainda hoje continuamos a ter trabalhos quanto a outros crimes, como é o caso do crime de agressão.
Para enquadrar toda esta história, gostava apenas de salientar um aspecto: foi muitíssimo difícil conseguir "arrancar" com este Tribunal. Houve tentativas para o fazer vir à luz desde há muito tempo, logo desde a Convenção sobre o Genocídio, em 1948, em que se previa que houvesse um tribunal internacional. Houve, depois, tentativas nas Nações Unidas que se revelaram infrutíferas e, em 1951, e depois em 1953, chegou a ser constituído um comité para discutir o assunto, mas tudo acabou por cair por terra. Sobretudo pelo ambiente da Guerra Fria foi impossível, sequer, continuar os trabalhos de um comité para discutir a criação do Tribunal Penal Internacional. Mais tarde, com a Convenção do Apartheid, ressurgiu outra vez esta ideia, mas também não foi avante. Falo destas iniciativas apenas para mostrar a série de fracassos sucessivos que houve nas Nações Unidas para criar o Tribunal.
Finalmente, em 1989, a Trindade e Tobago apareceu com a ideia do Tribunal Internacional. Nessa altura a situação política era muito mais propícia e, felizmente, as coisas puderam ir avante: foi pedido o tal parecer à Comissão de Direito Internacional e esta entregou um projecto de Estatuto. Depois, os Estados negociaram e chegaram à aprovação na Conferência de Roma, tendo, entretanto, surgido os tribunais ad hoc.
Já agora, referir-me-ia a um aspecto que tem vindo na imprensa e sobre o qual gostaria de dar o meu ponto de vista, que penso ser bastante objectivo. Sucede que, muitas vezes, se faz uma grande ligação entre este Tribunal e os tribunais ad hoc. Claro que eles têm todos competência penal internacional, mas gostava de salientar que uma das razões pela qual foi bem sucedida a criação do Tribunal foi precisamente por reacção à criação dos tribunais ad hoc pelo Conselho de Segurança. Muitos Estados reagiram muito fortemente contra a ideia de que o Conselho de Segurança pudesse criar tribunais para as situações que lhe interessassem e não para outras. Por isso mudaram o assunto para a Assembleia Geral e foi por essa razão que houve todo este ânimo e este conjunto de vontades para criar o Tribunal Penal Internacional. Como vemos, a sua origem é completamente diferente e este Tribunal até surgiu como reacção aos tribunais ad hoc da Jugoslávia e do Ruanda.
Gostava ainda de salientar que politicamente foi tão difícil esta luta que foi preciso criar um grupo de países like-minded, países que pensavam da mesma maneira, e estes, dos quais constavam praticamente todos os países da União Europeia e quase todas as democracias do mundo, foram um grupo de pressão fortíssimo para conseguir avançar nos trabalhos, que foram muitíssimo difíceis.
Outro "motor" bastante importante foi a União Europeia. Todos os países da União Europeia, à excepção da França (mas por razões especiais), fazem parte deste grupo dos like-minded, e estes países da União Europeia foram, na verdade, sempre o "motor" mais forte. Ainda no dia 13 de Junho, há pouco tempo portanto, o Conselho da União Europeia aprovou, pela primeira vez, uma declaração sobre o assunto. O Parlamento Europeu já tem aprovado várias declarações sobre o Tribunal, mas agora o Conselho aprovou uma posição comum sobre o Tribunal, da qual vou deixar cópia para os Srs. Deputados. Esta posição comum é bastante substantiva e afirma não só que todos os países membros se comprometem a ratificar o Estatuto, como ainda que pressionarão os outros para fazerem o mesmo. A União Europeia tem sido ainda muito instrumental na relação com os Estados Unidos, porque estes têm sido muito reticentes à criação do Tribunal. Como tal, a União Europeia tem tentado, de algum modo, por negociações, que isto seja possível.
Também trago aqui um documento que talvez tenha interesse para a Comissão, se bem que ele se possa obter facilmente na Internet. Se forem ao site das Nações Unidas - www.un.org -, encontrarão informação sobre o Tribunal Penal Internacional e quase todos os documentos relacionados com ele. Este documento que trago aqui contém simplesmente os países que já assinaram e os que ratificaram, para além de algo que talvez seja importante para a Comissão, que são as declarações que eles fizeram aquando da assinatura ou da ratificação. Presentemente, 139 países assinaram (e já nenhum mais pode assinar porque já acabou o prazo da assinatura) e 33 já ratificaram. Por outro lado, ainda agora me disseram que o Reino Unido irá ratificar em Outubro e que a Irlanda, com o referendo, também irá ratificar muito brevemente. Quanto à União Europeia, posso referir que oito países já ratificaram há algum tempo.
Isto era, fundamentalmente, o que queria dizer quanto à história, mas gostaria ainda de acrescentar alguma coisa sobre a questão constitucional. É claro que esta foi uma preocupação muito constante das pessoas que estavam nas delegações, porque tinham a consciência de que as constituições nacionais não estavam preparadas e não foram pensadas para um Tribunal Penal Internacional, já que se trata de algo bastante revolucionário. Por isso, tivemos várias reuniões com pessoas que vêm das capitais - dos Ministérios dos Negócios Estrangeiros e da Justiça, e até alguns Deputados, se bem que sejam maioritariamente técnicos - e que estão encarregadas de redigir propostas de revisões constitucionais. Como vos dizia, tivemos várias reuniões sobre estudos comparados de revisões constitucionais.
Por acaso, eu também fiz parte, já não no âmbito da ONU, mas no âmbito de uma universidade italiana, de um grupo que realizou estudos comparados sobre revisões constitucionais em vários países europeus. Esse grupo produziu um livro (posteriormente os Srs. Deputados poderão obter fotocópia do exemplar que tenho comigo) que contém estudos comparados sobre vários países da Europa e, ainda, sobre a África do Sul. Penso, todavia, que a Assembleia da República tem este livro na biblioteca. De qualquer modo, este mesmo grupo vai publicar um segundo volume sobre a legislação de implementação, de aplicação do Estatuto. No entanto, como nós ainda não temos essa legislação, tenho apenas um artigo meu neste primeiro livro. No outro não podia ter, porque ainda não estamos nessa fase.
Para além disto, um documento que penso ser extremamente importante é aquele que foi elaborado pela chamada Comissão de Veneza, que se reuniu sob os auspícios do Conselho da Europa. Nele podemos ver um estudo comparado dos problemas constitucionais em todos os países que fazem parte do Conselho da Europa, que, por isso, é um conjunto muito mais alargado do que a própria União Europeia. Se calhar, estou a falar de coisas que já conhecem mas, se for útil, deixo aqui uma cópia
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deste documento que penso ter bastante interesse, já que se referem nele os vários artigos das diferentes constituições.
É claro que os principais problemas constitucionais em todo o mundo versaram sempre a questão das imunidades, a questão da extradição dos nacionais e, em alguns países, se bem que numa minoria, a questão da pena de prisão perpétua. No fim de contas, esta questão só se colocou nos países ibéricos e nos países da América Latina.
Já agora, gostava de clarificar o seguinte: dá-se a entender, muitas vezes, que todos os países fizeram revisões constitucionais, mas a verdade é que foram muito poucos os que fizeram. Dos 33 que ratificaram até agora - bem sei que os que primeiro ratificaram talvez tenham sido os que não precisavam de fazer as revisões constitucionais - só quatro ou cinco fizeram revisões constitucionais; da União Europeia, dos oito que ratificaram, só três fizeram revisões constitucionais. Muitos dos países interpretaram as constituições, que não estavam pensadas para isto, no sentido de que não seria necessária uma revisão constitucional. Talvez o caso mais paradigmático seja o de Espanha, cujo Conselho de Estado entendeu que as imunidades do Rei eram irrelevantes neste caso e, também, que não havia o problema da pena de prisão perpétua, embora na Constituição também conste essa proibição. De qualquer modo, outros países entenderam que deviam fazer revisões.
A Alemanha, que fez uma revisão não por causa das imunidades mas apenas por causa da extradição dos nacionais, pelo menos a nível internacional afirmou repetidas vezes que o fazia por causa da Convenção de Extradição dentro da União Europeia, que tem um artigo que dá um prazo de cinco anos às Partes para alterarem as suas legislações e exige que os nacionais sejam extraditados dentro da União Europeia. Essa era a principal razão, mas aproveitava também para aplicar ao Tribunal Penal Internacional.
Os outros países que fizeram revisões constitucionais foram a França e o Luxemburgo. Também a Bélgica vai fazer, mas decidiu algo interessante que lhes é permitido pelo seu Direito: primeiro ratificaram e só depois é que fazem uma revisão constitucional.
Quanto à revisão portuguesa, analisei os projectos que me enviaram, e que não são assim tão distintos, os quais agradeço.
Devo começar por dizer que me é um pouco indiferente a localização sistemática desta previsão relativa ao Tribunal Penal Internacional. Talvez o artigo 7.º seja um local um pouco mais apropriado do que no fim, porque o Tribunal não é algo transitório - deu tanto trabalho que deve, ao menos, resistir durante muitos anos! Por isso, talvez pudesse ficar melhor no artigo 7.º, que diz respeito às relações internacionais.
Quanto ao texto, devo dizer que prefiro aquele que vem referido na proposta de artigo 298-A, só porque é mais curto, mais conciso e mais preciso. Percebo as cautelas com a questão da complementaridade mas, do meu ponto de vista, elas não são necessárias porque já constam do tratado.
No entanto, penso que era necessária uma cautela que nem uma nem outra das propostas contemplam. Com efeito, ambas estabelecem que Portugal pode ratificar o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, seguindo a fórmula francesa que não foi adoptada por mais ninguém. O Luxemburgo adoptou uma fórmula bastante diferente que refere que nenhuma norma da constituição constituirá um obstáculo à aprovação do Estatuto do Tribunal Penal Internacional e à colaboração nas obrigações que provenham desse Estatuto. De facto, prefiro este tipo de fórmula, porque é mais clara.
Percebo que a fórmula francesa se fixa mais no momento da ratificação, no sentido de não ser por causa da Constituição que não se pode ratificar (está a pensar nesse momento), mas esquece um pouco o momento posterior, isto é, a sua aplicação pelos tribunais.
Poder-se-ia utilizar a fórmula francesa, segundo a qual se diria que Portugal pode reconhecer a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, mas acrescentando que nenhuma norma constitucional será interpretada num sentido que possa obstar ao cumprimento total por parte de Portugal das obrigações decorrentes do Estatuto. O texto deveria ter uma redacção deste género para ficar mais claro enquanto mensagem aos tribunais e não apenas ao Governo que vai aprovar.
Deixo este ponto à vossa consideração, pois penso que seria interessante fazer-se esta adenda.
Por outro lado, gostaria de referir um outro aspecto por causa das declarações que têm sido proferidas. Muitos Estados têm aproveitado o momento da ratificação para incluírem várias declarações. Ora, creio que não se deve fazer declaração alguma em termos substantivos, porque entendo que é mais do que suficiente que tenha sido feita a revisão constitucional.
Aliás, eu até considerava que não era necessária a revisão constitucional mas, como não foi decidido assim, não interessa estar agora a discutir esse ponto. O que interessa é que foi decidido que seria necessária a revisão constitucional. Em todo o caso, parece-me desnecessário referir os aspectos da complementaridade, do respeito pelos direitos humanos, etc. Dá a impressão de que estamos a desconfiar, a pensar que o Estatuto não respeita suficientemente os direitos humanos ou não estabelece que há complementaridade, quando o faz! Por isso, seria melhor adoptar uma redacção mais simples. No entanto, por questões práticas, penso que talvez fosse bom aproveitar o momento da ratificação para fazermos várias declarações, todas de carácter prático.
Por exemplo, no documento que enviou à Assembleia, sei que o Governo propôs que se estabelecesse algo sobre a língua em que os documentos serão redigidos, o que me parece muito bem. Mas poderia aproveitar-se para regular outras questões, que não apenas a língua (que vem referida no n.º 2 do artigo 87.º), como seja a identificação da entidade que recebe os pedidos de cooperação. É que o n.º 1 do artigo 87.º do Estatuto refere que os Estados devem designar qual é essa entidade - muitos Estados designaram vias diplomáticas, outros o Ministério da Justiça, etc.
Finalmente - este aspecto depende muito de considerações de outro tipo -, alguns Estados que não admitem a prisão perpétua, como a Espanha, fizeram declarações no sentido de aceitarem as pessoas que tenham sido condenadas para cumprirem a pena no seu país desde que ela não exceda os limites máximos das penas internas. Ou seja, não poderiam aceitar pessoas que tivessem sido condenadas a uma pena de prisão perpétua.
Andorra também fez uma declaração bastante interessante, na medida em que refere que aceita as pessoas de nacionalidade andorrenha. Ou seja, se um português viesse a ser condenado (oxalá isso não aconteça),
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Portugal não é obrigado a aceitar a execução da pena, isto é, qualquer país pode ou não aceitar a execução da pena no seu país - o artigo 103.º dá completa liberdade para tal. Em todo o caso, seria de considerar que podia ser interessante que algumas pessoas, já que são portuguesas e talvez tenham familiares cá, ou por outras razões, pudessem cumprir a pena em Portugal.
Julgo que estes três pontos poderiam constar de uma eventual declaração.
O Sr. Presidente: - Sr.ª Professora, agradeço a sua exposição muito interessante, que nos introduziu alguns temas que não tinham sido até agora discutidos nem sequer referidos.
Segue-se agora uma fase de questões, pelo que tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Costa.
O Sr. Alberto Costa (PS): - Sr. Presidente, gostaria de começar por cumprimentar a Prof.ª Paula Escarameia e agradecer a sua exposição.
Queria colocar algumas questões e fazer alguns comentários.
Em primeiro lugar, devo dizer que estou de acordo com o seu comentário crítico acerca da reprodução simples da fórmula constante da Constituição francesa. Dado que a Constituição Portuguesa, ao lidar com temática semelhante no quadro da instituição da União Europeia, utilizou uma fórmula diferente, pergunto-me e pergunto à Sr.ª Professora se não seria mais adequado, em relação ao Tribunal, adoptar-se pelo menos um enfoque paralelo e, portanto, conceber Portugal como um país que convenciona a instituição deste Tribunal.
Tal fórmula teria a vantagem de não multiplicar as construções e de dar até mais dignidade à presença portuguesa no acto da instituição deste Tribunal, em vez de se recorrer à lacónica maneira francesa: "nós reconhecemos esse tribunal, independentemente da origem", como já fizemos, por exemplo, em relação aos tribunais ad hoc, de que não somos parte instituinte mas que reconhecemos, já que isso corresponde aos nossos deveres à luz do Direito Internacional.
Portanto, a primeira questão é a de saber se não admite como vantajosas "obras" que pudessem dar uma nova feição, quer dogmática quer literária, ao enlace entre a Constituição e a instituição do Tribunal.
A segunda questão tem a ver com o princípio da complementaridade. Embora já se tenha referido a este aspecto, gostaria de obter o seu comentário um pouco mais desenvolvido sobre a vantagem de consagrar na Constituição este princípio.
Raciocino, fundamentalmente, com base na consagração constitucional que fizemos de maneira quase original (não inteiramente original) do princípio da subsidiariedade, o qual passou simultaneamente a constar do Direito Comunitário e do nosso Direito Constitucional. Com vantagem? É duvidoso, porque os comentadores constitucionalistas alegam que ele tem um determinado valor e uma determinada eficácia enquanto que os comentadores comunitaristas defendem o oposto. Isto é, nem sempre a captura de um princípio no texto constitucional, sobretudo quando ele deriva de outra esfera jurídica, é a melhor técnica para evitar a proliferação de problemas. Portanto, gostava de saber qual é a sua sensibilidade acerca deste problema da complementaridade.
A terceira questão prende-se com o seguinte: tem-se defendido a vantagem de Portugal formular uma declaração através da qual declarasse pretender julgar nos seus tribunais domésticos a totalidade dos crimes que viessem a ter algum elemento de conexão, nomeadamente pela presença de pessoas, nacionais ou estrangeiras, no território nacional.
A pergunta que quero fazer é esta: será que uma tal declaração é compatível com o sistema do Tribunal e com a visão que o próprio Tribunal tem da justiça? Desde logo, no sentido em que o Tribunal admite uma função correctora sobre as justiças, sobre os Estados e, no dia em que admitisse que lhe restava zero do acto pelo qual aquele Estado tinha aderido ao Tribunal, ele estaria a amputar toda essa capacidade que, para si próprio, prevê, entregando uma espécie de procuração irrevogável, ou um seu sucedâneo, àquele Estado! Este jamais poderia ser interferido pelo Tribunal, mesmo que um tribunal - e foi a hipótese que já coloquei aqui - decidisse julgar, sem condições, sem provas, sem testemunhas, etc., um fugitivo do Ruanda, onde se aplica a pena de morte, que tivesse lá praticado um crime terrível, ou crimes terríveis, sem testemunhas, e que viesse para Portugal. O Estado português diria: "Não extradito, não entrego esse responsável, porque a pena de morte aguarda-o no Ruanda e a pena de prisão perpétua aguarda-o no Tribunal Penal Internacional e, como não quero submetê-lo a esse risco, vou julgá-lo aqui". Mas julgá-lo aqui, poderia, pelo menos a meu ver, representar uma denegação de justiça perante a qual a comunidade internacional não podia ficar indiferente!
Pensando em hipóteses deste tipo, o que pergunto é se seria defensável uma atitude em que o Estado, do seu próprio ponto de vista, procurasse dotar-se de uma competência plena e furtar-se a qualquer espécie de intervenção, mesmo em casos marginais, nos quais a justiça não poderia ser feita, recorrendo àquele inciso "não estar em condições de", isto é, o Estado não estar em condições de aplicar justiça. Naturalmente, o tribunal português pode arvorar-se e pretender julgar um horrendo crime na Samoa Ocidental, desde que apanhe no aeroporto aquele que está indiciado como principal responsável. Mas essa justiça feita em Portugal, em Lisboa, com ou sem intérpretes, mas sem testemunhas, sem corpo de polícia, etc., será justiça do ponto de vista das aspirações da comunidade internacional?
Esta é a minha dúvida, a minha questão um bocado prolixa, mas incidindo sobre a possibilidade, a legitimidade de um Estado se afastar completamente da hipótese de se exercer a complementaridade no seu sentido útil.
A última questão tem a ver com a temática das imunidades. Admitindo que este mecanismo da complementaridade funciona e que os tribunais domésticos julgam determinados actos, por exemplos dos responsáveis políticos que, perante o Tribunal, não beneficiariam em ponto algum da sua qualidade oficial, no caso de esses princípios (que têm de ser em primeiro lugar constitucionais e, depois, ordinários) não terem sido recebidos na ordem interna, não parece à Sr.ª Professora que se criaria um efeito desequilibrador? Isto é, se alguém fosse levado a comparecer diante do Tribunal Penal Internacional não procedia nenhuma das chamadas condições de procedibilidade, como sejam as votações, as dilações, aguardar termos de mandado e tudo o mais que faz o regime especial de efectivação da responsabilidade dos titulares de órgãos de soberania?
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Mas se, por acaso, ao abrigo desta intenção, deste programa ou de uma simples normalidade legislativa, eles comparecerem perante o Supremo Tribunal de Justiça ou perante um tribunal semelhante, creio que nada poderia impedir que as normas constitucionais, e as normas ordinárias que as complementam, se aplicassem e, nessa altura, teríamos uma dualidade. Esta dualidade, para nós que temos um forte sentido de identidade, de comunidade de direito, como gostamos de representar para nós próprios, não constituiria um problema. Mas vamos admitir aos outros Estados que, nas suas constituições, inviabilizem aquilo que prometem fazer diante do Tribunal? Não lhes vamos admitir isso. E se não vamos admitir que a constituição de um determinado Estado impeça o seu presidente de responder perante o seu tribunal, onde ele diz que vai em primeiro lugar, sem uma votação da assembleia, como podemos, "de cara direita", manter exactamente o mesmo desequilíbrio?
É tudo, Sr. Presidente.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Alberto Costa, houve um ligeiro excesso, que levei à conta de o Sr. Deputado não estar presente quando, no início da reunião, marcámos 5 minutos como o tempo máximo de intervenção. Mas é um exemplo que não deve ser repetido.
Tem a palavra o Sr. Deputado José de Matos Correia.
O Sr. José de Matos Correia (PSD): - Sr. Presidente, foi pena que o Sr. Presidente tivesse referido agora a questão dos 5 minutos, porque eu também não estava presente no início da reunião e passei agora a saber dessa limitação.
Risos.
O Sr. Presidente: - Então, não foi pena!
O Sr. José de Matos Correia (PSD): - Enfim, do ponto de vista do Sr. Presidente, certamente que não. De qualquer modo, vou respeitar escrupulosamente o pedido do Sr. Presidente para ser breve.
Em primeiro lugar, quero cumprimentar a Sr.ª Prof.ª Paula Escarameia, dizer-lhe do prazer pessoal que tenho em revê-la e também agradecer-lhe vivamente, em meu nome e no do Grupo Parlamentar do Partido Social Democrata, a interessantíssima exposição que aqui nos fez, que é, em grande parte, motivada pelo imenso conhecimento que a Sr.ª Professora tem em matérias de Direito Internacional, mas também enriquecida pela sua grande experiência nesta matéria do Tribunal Penal Internacional.
Há duas ou três questões muito simples que quero colocar-lhe, parte delas, aliás, já "roubadas" pelo Sr. Deputado Alberto Costa, mas às quais gostaria de voltar.
Muito sinteticamente, em relação à questão da fórmula, gostava que a Sr.ª Professora me dissesse se a fórmula "mais despida", digamos assim, não pode ter, apesar de tudo, algumas desvantagens. De facto, dizer-se que se aceita um determinado Estatuto, concluído numa determinada data, nas condições nele estabelecidas, não pode pôr alguns problemas, em termos de alterações supervenientes desse mesmo Estatuto? Ou seja, ao querermos congelar, constitucionalmente, um determinado texto, ou, se quiser, porque a leitura também pode ser a inversa, ao querermos autorizar um determinado texto, não poderemos, de algum modo, permitir, em posteriores alterações do Estatuto, que questões essenciais do Estatuto sejam alteradas e que, nessa perspectiva, essa alteração possa, de algum modo, entrar na ordem jurídica portuguesa, ao abrigo de uma cláusula autorizativa geral e apenas em função de uma normal ratificação ou de uma normal adesão a uma alteração ao Estatuto do Tribunal Penal Internacional? Esta era a minha primeira questão.
Em segundo lugar, gostaria de explicitar um pouco melhor a formulação da proposta do Partido Social Democrata, na sequência, aliás, do que várias vezes o meu colega Marques Guedes tem feito, relativamente ao porquê daquela formulação. Numa certa perspectiva, até compreendo que a formulação do Partido Socialista, embora com estes eventuais óbices que referi, possa ter alguma razão de ser, inserida onde está. Por nós, entendemos que a inserção no domínio dos princípios regentes da actuação do Estado em matéria externa é mais adequada. E, nessa perspectiva, há um problema de respeito por uma certa filosofia constitucional. A verdade é que a Constituição optou, no artigo 7.º, por rodear os princípios delimitadores da acção externa do Estado por um conjunto de valores e orientações. E fê-lo, por exemplo, da última vez que esta questão foi tocada, em 1992, a propósito de Maastricht, com a referência que aqui faz à questão da reciprocidade ou à da subsidiariedade.
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Que estão no Tratado!
O Sr. José de Matos Correia (PSD): - Que estão no Tratado, exactamente.
Parece-nos a nós que, sendo a inserção mais adequada a do artigo 7.º, porque, de facto, não estamos perante uma questão transitória mas perante uma questão que desejamos firme no tempo, se aí é a inserção mais adequada, dizia, do ponto de vista da filosofia do artigo 7.º, uma explicitação dos princípios e valores que para Portugal estão subjacentes à pertença a este Tribunal parece-nos também essencial.
Gostava de ouvir a opinião da Sr.ª Professora sobre esta questão.
O terceiro ponto já não é sobre a questão constitucional mas, se a Sr.ª Professora me permite e aproveitando a sua presença, sobre as consequências posteriores da ratificação do Estatuto. Aliás, a Sr.ª Professora, de algum modo, já se referiu a essa questão do pós-revisão constitucional, ao falar do problema da declaração, que se colocará sempre no pós-revisão constitucional.
Confesso que não valoro excessivamente a questão das declarações. Em alguns pontos referidos pela Sr.ª Professora faz algum sentido, mas, às vezes, há alguns países - e isso, em Portugal, num ou noutro momento, já foi aflorado - que tendem a obter pela lógica da declaração aquilo que não podem obter pela lógica da reserva. Ora, o Estatuto não admite reservas - ponto final, parágrafo! Portanto, as declarações podem ter sentido, digamos, para dar plena eficácia a algumas normas do Estatuto, mas não como maneira de contornar a aplicação desse mesmo Estatuto.
Nessa perspectiva, e aproveitando um pouco a argumentação utilizada pelo Sr. Deputado Alberto Costa, queria também colocar a questão da alteração do direito ordinário posterior - uma questão, aliás, abordada pela Sr.ª Professora em alguns dos seus escritos sobre esta matéria -, como forma de operacionalizar o Estatuto e não como forma de contornar o Estatuto.
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Há pouco, tanto quanto pude perceber, o Sr. Deputado Alberto Costa referiu-se justamente a esta questão, chamando a atenção para o facto de não ter sentido, por exemplo, alterar de tal forma elementos de conexão da lei penal portuguesa que permitam que um crime que nada tem a ver com Portugal e cometido por pessoas que nada têm a ver com Portugal, pessoas que, por exemplo, vieram a Portugal assistir a um jogo de futebol da sua selecção, sejam julgadas por esse crime.
Isso, evidentemente, coloca aqui importantes questões, que se prendem com condições objectivas de punibilidade. Como é que se vai punir alguém, quando não há a mínima capacidade de investigar, de facto, aquilo que ela fez?
Por isso mesmo, quero deixar-lhe aqui uma pergunta, abusando um pouco da sua paciência, sobre a avaliação que a Sr.ª Professora faz das alterações que têm de ser feitas na legislação portuguesa, quer do ponto de vista da sua necessidade quer do ponto de vista da sua utilidade, sobretudo, como é óbvio, no que diz respeito ao Código Penal português.
O Sr. Presidente: - Não havendo mais inscrições, dou agora a palavra à Sr.ª Prof.ª Doutora Paula Escarameia para responder.
A Sr.ª Prof.ª Doutora Paula Escarameia: - Sr. Presidente, Srs. Deputados Alberto Costa e José Matos Correia, agradeço-lhes as questões que me colocaram, que são muitíssimo substantivas e interessantes. Vou tentar responder satisfatoriamente a algumas delas mas, em relação a outras, julgo que precisava de mais tempo para o fazer como devia.
De qualquer modo, começando por responder ao Sr. Deputado Alberto Costa, quanto à questão da complementaridade, porque muitas das suas perguntas giraram em torno da ideia do princípio da complementaridade no Estatuto, na verdade, devo dizer que, no Estatuto, tirando em sede de admissibilidade, nunca ficou muito clara esta questão da complementaridade. E percebo que, por vezes, haja necessidade de clarificar alguns pontos.
O princípio da complementaridade não foi pensado para que o Tribunal ficasse vazio de competências, nem foi sequer pensado para que o Tribunal tivesse de, sempre que não gostasse da maneira como os assuntos estavam a ser resolvidos, ir buscá-los. O Tribunal foi pensado para funcionar porque foi pensado que muitos Estados não quereriam, eles próprios, julgar as questões por variadíssimas razões. Enfim, estes são crimes tão graves… Por exemplo, pode ter havido mudanças de regimes e o novo regime não gostar de aparecer como um vingador do anterior, ou pode tratar-se de um acusado estrangeiro que esteja ocasionalmente no país em causa, o que pode tornar mais difíceis as relações diplomáticas entre os Estados. Por isso, pensou-se que, muitas vezes, os Estados, até por sua própria iniciativa, gostariam que a pessoa fosse entregue ao Tribunal para ser julgada pelo Tribunal e não pelos próprios Estados.
E julgo que o princípio da complementaridade foi sobretudo pensado para nacionais, para quando um Estado acha que deve ser ele, primeiro que tudo, a julgar aquelas pessoas, por todas as razões referidas (há muitas provas, o crime passou-se lá, etc.). Quer dizer, a situação normal seria esta: um crime que ocorreu no território, praticado por um nacional, seria julgado por este Estado. E o Tribunal só iria julgar se ficasse insatisfeito com o modo como foi julgado.
Na verdade, se levarmos o princípio da complementaridade tão longe ao ponto de dizermos que praticamente não há nenhum crime que vá ser julgado pelo Tribunal Penal Internacional a não ser que, internamente, as condições sejam de tal modo precárias que o julgamento não ofereça as mínimas garantias de viabilidade, então… Aliás, isto foi tentado: houve vários Estados que tentaram que fossem os tribunais nacionais a decidir se o Tribunal Penal Internacional podia ou não julgar. Imagine-se o que isto seria! Seria fazer com que o Tribunal não tivesse competências nenhumas. Felizmente, depois de uma luta muito grande, a última palavra acabou por ficar no Tribunal Penal Internacional.
Uma das suas perguntas, Sr. Deputado, foi a de se haveria alguma vantagem em constar da Constituição a questão da complementaridade. Por um lado, percebo os argumentos expostos, de que talvez fosse uma cautela a ter em algumas situações. Mesmo assim, ainda não consigo ver uma grande vantagem na ideia de a complementaridade constar da Constituição. É que, se não fôssemos fazer uma revisão constitucional, conseguiria perceber, porque, nesse caso, como tínhamos o problema com a pena de prisão perpétua, aí, com certeza, quereríamos, nos casos em que estivessem cá pessoas que pudessem ser submetidas a penas de prisão perpétua, que a situação ficasse clarificada, porque depois os juízes não entregariam estas pessoas… Estando clarificado na Constituição que as pessoas serão entregues ao Tribunal e que nós temos de colaborar com ele, não vejo muita necessidade em voltar a repetir a complementaridade. Mas também não vejo assim um mal muito grande em constar lá.
A única desvantagem que posso ver nesta questão da complementaridade é que talvez pareça que estamos a insistir muito em que temos que ser nós a julgar e que não estamos a confiar numa justiça internacional que também foi instituída por nós. E isto prende-se também um pouco com a ideia do Sr. Deputado Alberto Costa (se percebi bem) de que, no fim de contas, isto seria uma ordem judicial de que também faríamos parte, este Tribunal Internacional. Na verdade, poder-se-ia entender assim. O problema aí é que todas as argumentações iam no sentido de que, então, neste caso, fazemos parte de uma ordem judicial que, em última instância, admite a pena de prisão perpétua. Isso já seria um pouco problemático, sendo esse o perigo dessa argumentação. Se nós considerarmos que é um Tribunal que foi instituído pela comunidade internacional e que nós estamos obrigados, porque fazemos da comunidade internacional e não queremos alienar-nos dela, então, a situação é um pouco diferente e talvez não seja necessária a construção teórica de que nós fazemos parte desta ordem.
Já agora, voltando aos tribunais ad hoc, gostaria de dizer que, nos tribunais ad hoc, a situação é muito mais dramática, embora ninguém tenha levantado a questão em Portugal. Os tribunais ad hoc têm a pena de prisão perpétua, têm julgado muitas pessoas - e é relativamente possível que uma pessoa, então da Jugoslávia, venha aqui para Portugal (do Ruanda talvez seja um pouco mais difícil, mas da Jugoslávia não é: é até muito fácil). Aliás, se eu fosse um criminoso da Jugoslávia e soubesse que cá em Portugal não se podia entregar pessoas ao Tribunal por causa da prisão perpétua, isso até era um chamariz e viria, todos viriam, para cá - e, no fim de contas, nós estamos
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obrigados a colaborar com esses tribunais, porque fazemos parte de uma organização internacional que tem um órgão que instituiu esses tribunais (parece-me que ao abrigo do n.º 3 do artigo 8.º da Constituição Portuguesa), e isso não é debatido. No entanto, este sistema já existe.
Por isso, toda a questão levantada a propósito da pena de prisão perpétua surpreendeu-me bastante, porque já existia um precedente até muito mais dramático em que não opera a complementaridade e em que não há quaisquer garantias de revisão da pena. Ou melhor, tem, hoje em dia, garantias, que foram criadas pelos juízes posteriormente, porque o Estatuto do Tribunal não diz nada disso, e nós imediatamente tivemos de ser parte (a não ser que decidíssemos sair das Nações Unidas, o que seria algo de extraordinário, pois seríamos os primeiros que sairíamos, voluntária e definitivamente, das Nações Unidas).
Por isso, quanto à complementaridade, não vejo assim uma grande necessidade na sua referência.
Agora, quanto à ideia de que é compatível com o espírito do Estatuto esta ideia de que todos os crimes seriam cá julgados e depois, relacionado com esta ideia, a de se não estaremos nós a contornar o Estatuto, acho que sim. E acho que até politicamente (e não sou política) não era muito aconselhável Portugal enveredar por esse caminho. Reparemos no exemplo da Bélgica: a Bélgica, que tem o sistema de jurisdição universal, já julgou aquele caso das freiras do Ruanda e está agora a braços com o problema do Ariel Sharon. Quer dizer, até que ponto queremos também ter aqui uma situação dessas? É que, na verdade, nós também ratificámos as Convenções de Genebra e podíamos ter - até devíamos ter jurisdição universal para estes crimes. Sob o ponto de vista do Direito Internacional, devíamos ter para o genocídio, para os crimes contra a humanidade e os crimes de guerra das Convenções de Genebra, pelo menos para as violações graves (umas violações especiais da Convenção de Genebra), bem como para a tortura. Só que muitos países não o fizeram por questões políticas - esta é uma decisão um pouco política. Toda esta questão de se devemos ter jurisdição universal - e podemos ter, porque nem é ilegal face ao Direito Internacional, até cumpre o Direito Internacional… Mas usar o Tribunal para isso também não sei se seria muito bom.
Para além disso, há uma questão muito prática, relacionada com o referido pelo Sr. Deputado Matos Correia, que é a seguinte: para podermos, nos nosso tribunais, julgar todas estas pessoas, tínhamos de ter pronta uma série de leis ordinárias e precisamos mesmo de ter. Bem sei que um tratado, uma vez ratificado, tem um valor supra lei ordinária e, por isso, imediatamente, podíamos dizer: os crimes aplicam-se. Mas não se aplica o sistema de penas, porque o sistema de penas é o sistema nacional. O artigo 80.º do Estatuto diz que o sistema de penas que se aplica, sempre que nós julgamos qualquer crime, é o sistema nacional. Em primeiro lugar, não temos todos aqueles crimes previstos no nosso Código Penal e, ainda pior, temos no nosso Código Penal uns crimes com o mesmo nome que não têm o mesmo conteúdo.
Por isso, para começar, seria uma grande confusão, embora julgue que os juízes deviam sempre dar prioridade ao que está no Tratado sobre o que está na lei ordinária. Mas, enfim, era melhor clarificar a situação. Portanto, temos esse problema.
Depois, temos também o problema das penas, porque nós vamos ter que aplicar o nosso sistema penal e, no nosso Código Penal, não temos esses crimes - e os crimes de guerra que constam do Estatuto são muitos e incluem crimes como os de violência contra as mulheres, que nem temos na nossa legislação(aliás, isto é uma inovação do Estatuto, pois não existe noutro documento internacional). Por outro lado, não prevemos penas para esses crimes e tínhamos que arranjá-las. Há ainda a questão da não prescrição destes crimes, o que não está previsto no nosso código
Temos, por isso, de fazer uma revisão profunda da nossa legislação penal - e nem é preciso fazer uma revisão do Código Penal, basta fazer uma lei avulsa que, talvez, copie o que está no Estatuto quanto aos crimes e estabeleça as penas. Depois também há alguns aspectos, já de cooperação judicial e de cooperação com o Tribunal, que teriam de ser cuidados. Porém, nessa parte do Estatuto já não participei, tendo sido acompanhada por um membro da Procuradoria-Geral da República, pelo que não estou muito a par, embora saiba que há aí vários aspectos que teriam de ser tratados. Até por questões práticas, não podemos ratificar o Estatuto, fazendo uma declaração e dizendo que usamos a complementaridade até ao máximo potencial e julgamos todos os acusados sem termos as leis preparadas, porque, depois, se estivermos nessas circunstâncias, não os podemos julgar. E o que iria acontecer é que, se surgisse uma pessoa acusada de um qualquer crime do Estatuto e nós não o tivéssemos sequer tipificado no nosso Código Penal (era aplicado directamente o Estatuto), imediatamente o Tribunal vai chamá-la. Então, perante isto, vamos fazer constar da Constituição que queremos sempre a complementaridade para todos os casos? É um problema.
Quanto à questão das imunidades relacionadas com a complementaridade, é sempre a mesma questão. Na verdade, temos imunidades para o Presidente, para os Deputados, para os membros do Governo, mas as do Presidente talvez sejam as mais difíceis, porque só responde no fim do seu mandato por actos não oficiais. A questão de saber se estes crimes podem ser praticados como actos oficiais ou não, também é uma questão não muito clarificada. No caso Pinochet, a Câmara dos Lordes achou que não eram actos oficiais, porque nenhum dirigente poderia ter como acto oficial torturar as pessoas, promover o desaparecimento delas, etc. Mas a questão é debatida, porque normalmente é usada precisamente essa posição de poder (não é como um indivíduo vulgar que se faz), é usada a estrutura do Estado, para se cometer esses actos. Por isso e na verdade, eles são cometidos por causa da posição oficial.
Quanto a toda esta questão das imunidades, é claro que o Estatuto não admite qualquer excepção. Agora, isto não é nada inovador, porque também já os Estatutos dos Tribunais Penais Internacionais para o Ruanda e para a ex-Jugoslávia não a admitem, a Convenção sobre o Genocídio não a admite, a Convenção sobre a Tortura não a admite. Quer dizer, há uma série de convenções que já não a admitem. E nós, hoje em dia, como já ratificámos essas convenções, já estamos obrigados. Por isso, se o Presidente, um Deputado ou um membro do Governo praticar algum desses actos, tem de ser julgado. Ou seja, já temos esta obrigação, só que, na prática, felizmente, isso não está a passar-se porque nenhuma destas entidades foi acusada da prática destes crimes..
O Sr. Alberto Costa (PS): - (Por não ter falado ao microfone, não foi possível registar as palavras do orador.)
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A Sr.ª Prof.ª Doutora Paula Escarameia: - Pois é… Depende… A não ser que consideremos que isto cabe no n.º 1 do artigo 8.º da Constituição, que é o Direito Costumeiro Internacional, e acho que é. Se considerarmos isso, então, esta questão das imunidades já estaria acima da Constituição. E o meu entendimento não é assim tão estranho como isso, porque foi o entendimento do Conselho de Estado espanhol, dos alemães e dos austríacos. Todos eles entenderam que a questão das imunidades estava acima da Constituição.
Devo dizer que a minha opinião pessoal quanto a isto é esta: se tivéssemos uma situação em que o Presidente da República cometesse um destes crimes, nós já não tínhamos sequer a Constituição, quer dizer, nós já não estávamos no regime que estamos, mas numa situação de uma ditadura, de um abuso extraordinário. E, nessa altura, o que menos me preocupava era a Constituição, porque já não tínhamos sequer divisão de poderes, garantias de direitos, não tínhamos nada! Não é possível, com o nosso sistema, chegar-se a um ponto em que um Presidente pudesse ser acusado de um tipo de acto desses, porque são actos tão graves, tão graves… Percebo que, em relação aos crimes de guerra, possa haver aqui alguma dificuldade - já para o genocídio e para os crimes contra a humanidade, acho totalmente impossível, porque, então, já não tínhamos um Parlamento a funcionar, já nada funcionava! Quanto aos crimes de guerra, aí ainda é possível ter algumas dúvidas. Mas os crimes de guerra têm um enquadramento também bastante elevado…
Mesmo assim, não é fácil provar - veja-se o caso da Jugoslávia. A Jugoslávia, por exemplo, tem uma acção contra nós no Tribunal Internacional de Justiça - agora, somos réus - por causa dos ataques da NATO ao Kosovo. O mais provável é que o caso acabe na fase das questões processuais e não vá para a frente. Mas o que é certo é que, mesmo nos crimes que foram praticados no Kosovo - enfim, nas situações de guerra, há sempre muitos abusos -, mesmo nessa situação, a Procuradora do Tribunal não intentou nenhum caso contra as forças da NATO. Quer dizer, o Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia não está a julgar nenhum indivíduo envolvido com o uso da força da NATO, tendo especificamente competência para tal.
Em suma, não é fácil, mesmo assim, um crime de guerra ter um nível tal para vir a ser julgado por um tribunal destes. Há muitíssimos degraus por que tem de passar, não é fácil.
Sei que estou a demorar muito tempo, pelo que deixaria agora estas considerações relativas às questões colocadas pelo Sr. Deputado Alberto Costa e passaria a responder ao Sr. Deputado José Matos Correia.
Julgo já ter respondido a algumas das suas questões, Sr. Deputado José Matos Correia, mas agora, mais especificamente, vou abordar outras. Quanto à formulação escolhida pelo PSD (em contraste com a do PS) para tratar desta matéria, também concordo com a sua localização no artigo 7.º. Relativamente ao que referiu sobre as revisões futuras, tem toda a razão. Mas também devo dizer, se me permite, que não gosto muito nem de uma fórmula nem de outra. É que não gosto deste "pode" e acho que se poderia melhorar um pouco a fórmula. Um dos problemas é precisamente o das revisões do Estatuto. Nós poderíamos simplesmente dizer que cumpriremos o que estiver no Estatuto.
Agora, quanto às revisões futuras do Estatuto, o processo de revisão é tão difícil - e não sei se estão muito familiarizados com os artigos relativos à revisão - que, em relação aos crimes, só vincula aqueles que concordarem especificamente com a revisão e, nos outros casos, é preciso a ratificação de 7/8 dos membros da Assembleia dos Estados partes, uma maioria altíssima. Quer dizer, as revisões do Estatuto são muitíssimo difíceis. Como dizia, é preciso 7/8 para todos os outros assuntos substantivos e, para as definições dos crimes, é preciso unanimidade: um Estado que não concorde nunca está vinculado. Isto faz com que não seja muito perigoso, ou talvez não tão perigoso como isso, dizer-se na Constituição que cumpriremos o constante do Estatuto.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - As condições previstas no Estatuto incluem também o preceituado face à revisão do mesmo?
A Sr.ª Prof.ª Doutora Paula Escarameia: - Exactamente, "nas condições nele previstas", inclui as condições da revisão.
No entanto, também percebo um pouco esse argumento, de que, se calhar, era melhor uma fórmula, enfim, de que cumpriríamos as obrigações decorrentes do Tribunal Penal Internacional, estatuídas no Tratado de 17 de Julho para evitar vinculações a futuras alterações. Contudo, pelo que afirmei anteriormente, preferia uma vinculação de uma maneira qualquer que não desse a ideia de que é apenas o que actualmente é o Estatuto de Roma, aprovado em 17 de Julho de 1998. Talvez uma fórmula um pouco mais vaga para permitir essas futuras alterações. Como digo, o Estado é tão forte nesse ponto que é muito difícil haver um perigo muito grande.
Quanto às questões relativas às reservas e às declarações, sem dúvida alguma, não se podem fazer reservas e, por isso, não se podem fazer declarações que constituam reservas. A França foi muitíssimo criticada, porque tem declarações que são verdadeiras reservas. A França foi um dos primeiros Estados a ratificar, mas fez reservas. Aliás, a França foi a responsável pela existência do artigo 124.º, que cria uma moratória em relação aos crimes de guerra, durante sete anos. E a França usou esse artigo 124.º (claro que o usou, foi ela que o propôs e não saiu dali, de Roma, sem que tivesse o artigo 124.º), segundo o qual, durante sete anos, os seus cidadãos não podem ser julgados por crimes de guerra. E depois fez várias declarações, que são mais reservas do que declarações. Até agora, foi o único Estado a fazê-lo, porque a maioria não fez quaisquer declarações, ou fê-las de carácter prático. Estas últimas são boas porque úteis e não são contenciosas politicamente (como, por exemplo, qual é o Ministério que recebe as queixas, qual a entidade que recebe os pedidos de cooperação do Tribunal, etc.).
Em suma, eu seria totalmente contra que Portugal utilizasse as declarações para fazer uma reserva ou para dizer algo que vá contra o Estatuto. Isso, de modo algum.
Quanto à legislação posterior servir não para contornar mas para colaborar, sem dúvida, estou de acordo. E acho que precisamos de várias alterações na legislação, sobretudo, como referi, para os crimes e para o processo. Temos uma lei de cooperação judiciária, que já ajuda muito, mas, mesmo assim, muitos pormenores não estão lá.
Não sei se respondi suficientemente, acho que tinha de pensar mais algumas matérias, mas foi o que consegui agora.
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O Sr. Presidente: - Muito obrigado, Sr.ª Professora, pelas também muito interessantes respostas que deu. Atrevia-me até, não a solicitar, mas a sugerir-lhe, visto que na sua intervenção várias vezes referiu a falta de tempo para poder expressar-se mais aprofundadamente sobre estas matérias, que, se assim o entender, poderá obviamente enviar a esta Comissão algum escrito que queira aprofundar algum problema. Todos os elementos são úteis para o nosso trabalho. Portanto, se assim o entender e se o seu tempo o permitir, certamente que seria também um elemento de trabalho muito útil. Aproveito também para agradecer os elementos que já nos trouxe, os quais serão distribuídos pelos Srs. Deputados, e que também são muito úteis.
Não havendo mais nenhuma questão, terminava, agradecendo a sua presença e o seu depoimento, que, como disse, foi muito útil para a continuação dos nossos trabalhos.
Srs. Deputados, na sexta-feira, de acordo com o consenso a que se chegou, não haverá trabalhos da Comissão. A próxima reunião terá lugar na terça-feira, dia 26, pelas 10 horas (mas teremos mesmo de começar às 10 horas, porque, a essa hora, as pessoas começam a prestar o seu depoimento; caso contrário, não teremos tempo).
Srs. Deputados, está encerrada a reunião.
Eram 12 horas e 20 minutos.
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A DIVISÃO DE REDACÇÃO E APOIO AUDIOVISUAL