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V REVISÃO CONSTITUCIONAL
Comissão Eventual para a Revisão Constitucional
Acta n.º 8
Reunião do dia 26 de Junho de 2001
SUMÁRIO
A reunião teve início às 10 horas e 20 minutos.
Relativamente aos projectos de revisão constitucional n.os 1/VIII (PSD), 2/VIII (PS) e 3/VIII (CDS-PP), foi ouvido pela Comissão o Sr. Prof. Doutor Fausto Quadros, que respondeu a questões do Sr. Presidente (José Vera Jardim) e dos Srs. Deputados Luís Marques Guedes (PSD) e Jorge Lacão (PS).
Foi também ouvido o Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda, que respondeu a questões dos Srs. Deputados António Filipe (PCP), Jorge Lacão (PS) e José Matos Correia (PSD).
Foi ainda ouvido o Sr. Prof. Doutor Adelino Maltez, que respondeu a questões dos Srs. Deputados Fernando Seara (PSD) e Jorge Lacão (PS).
O Presidente encerrou a reunião eram 12 horas e 55 minutos.
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O Sr. Presidente (José Vera Jardim): - Srs. Deputados, temos quórum, pelo que declaro aberta a reunião.
Eram 10 horas e 20 minutos.
Srs. Deputados, vamos dar início aos nossos trabalhos de hoje, estando programadas para esta manhã três audições, a primeira das quais com o Sr. Prof. Doutor Fausto Quadros, a quem saúdo.
O Sr. Prof. Fausto Quadros já, por várias vezes, deu o seu contributo a este Parlamento em diferentes matérias, pelo que gostaria de começar por agradecer estar a fazê-lo hoje, mais uma vez, e por se ter disponibilizado de imediato para comparecer nesta Comissão Eventual para a Revisão Constitucional a fim de nos dar a sua opinião sobre determinadas questões relativas a algumas propostas, com vista ao processo de revisão constitucional. As questões a analisar prendem-se com as relações internacionais, designadamente com a criação e ratificação do Estatuto que criou o Tribunal Penal Internacional, com o inciso no artigo 7.º da expressão "espaço de liberdade, de segurança e de justiça" e, finalmente, com o artigo respeitante ao reconhecimento de direitos políticos aos cidadãos dos países de língua portuguesa. Tudo isto, naturalmente, sem prejuízo de o Sr. Professor estar livre, como é óbvio, se assim o entender, para nos prestar também o seu depoimento sobre outras matérias. No entanto, é sobretudo sobre estas matérias que dizem respeito directamente à suas especialidades que gostaríamos de o ouvir.
Como é habitual, será feita uma exposição inicial, a que se seguirá um período de perguntas.
Tem a palavra, Sr. Prof. Doutor Fausto Quadros.
O Sr. Prof. Doutor Fausto Quadros: - Sr. Presidente e Srs. Deputados, com muita sinceridade quero dizer que é com muita honra que estou aqui - pelas minhas contas, pela terceira vez.
Da última vez que aqui estive, em 1992, pronunciei-me sobre a revisão constitucional prevista para a ratificação do Tratado de Maastricht (Diário da Assembleia da República, 2.ª série, n.º 9-RC, de 17 de Outubro de 1992).
Saúdo muito respeitosamente a Assembleia da República que representa a vontade popular ao mais alto nível no sistema democrático português; saúdo esta Comissão, à qual está confiado sempre um encargo muito difícil, mas muito aliciante, de exercer o primeiro poder que pertence ao Estado, que é o poder constituinte; saúdo, também, o Sr. Presidente da Comissão e os Srs. Deputados, alguns dos quais, aliás, já tenho o prazer de, a vários títulos, conhecer. Pelo que vejo na lista de Deputados membros da Comissão, inclusivamente, vou encontrar aqui alguns Srs. Deputados que comigo já debateram, da última vez, a questão da revisão constitucional necessária para a ratificação do Tratado da União Europeia, vulgarmente conhecido por Tratado de Maastricht.
Sr. Presidente, como referiu, e bem, irei pronunciar-me fundamentalmente sobre três questões.
Em primeiro lugar, tratarei de uma questão que me parece de simples e rápida análise: o problema da equiparação de direitos dos cidadãos de Estados de língua portuguesa de África, ou fora de África, com os direitos dos cidadãos portugueses. Como referi, esta questão ocupar-me-á pouco tempo.
Em segundo lugar, abordarei o problema da previsão e da constitucionalização da adesão ao Estatuto de Roma, que me ocupará um pouco mais de tempo.
Em terceiro lugar, falarei sobre a alteração prevista para o n.º 6 do artigo 7.º da Constituição, em relação ao qual, talvez contra as vossas expectativas, me ocuparei com mais pormenor, porque entendo que é um dos pontos cronicamente deficientes da nossa Constituição, o que tem a sua gravidade.
Comecemos, portanto, pela questão dos direitos dos cidadãos do espaço lusófono, se esta expressão não ofende ninguém.
Devo dizer que sou insuspeito em relação a esta matéria, particularmente em relação ao Brasil, porque os governos brasileiros e português pediram-me, na devida altura, que arbitrasse com um parecer a questão dos dentistas brasileiros.
Portanto, estou à vontade para dizer que saúdo esta inovação constitucional, embora queira dizer que, nesta matéria, a reciprocidade vale o que vale!
Dou um exemplo: se amanhã o Burkina Faso introduzir um preceito na sua Constituição ou celebrar um acordo internacional com Portugal, dizendo que os cidadãos portugueses podem ser Presidente da República do Burkina Faso (que é uma antiga colónia francesa, embora hoje administrada mais pela Bélgica do que pela França), devo dizer que não me sinto obrigado, como cidadão português - e não me sentiria obrigado como político português -, a dizer que, por reciprocidade, qualquer cidadão do Burkina Faso pode ser Presidente da República em Portugal.
Como referi, em minha opinião, a reciprocidade vale o que vale, embora seja um princípio de direito internacional e, desde logo, um princípio de cortesia internacional.
Ora, o que consta do projecto de revisão constitucional do PSD, na sua essência, parece de saudar, embora haja, desde logo, no texto algumas questões que conviria resolver. Faço este aparte porque entendo - trata-se de uma opinião pessoal de técnica legislativa - que o legislador constituinte deve resolver os seus próprios problemas e não transferi-los para o legislador ordinário, assim como a lei ordinária deve resolver os seus próprios problemas e não transferi-los para o poder administrativo.
Uma questão que desde logo se coloca é a seguinte: quem é que vai dizer o que é "residência permanente" em Portugal?
Em segundo lugar, é usada a expressão "são reconhecidos, nos termos da lei, mediante observância das convenções internacionais". E eu pergunto: porquê "mediante observância das convenções internacionais"? A Constituição não tem de remeter para convenções internacionais. É óbvio que se houver convenções internacionais a respeitar, abaixo da Constituição Portuguesa, elas serão respeitadas, mas esta referência - que não consta do texto do artigo similar da Constituição brasileira por alguma razão - parece-me desnecessária. E volto a frisar que, em minha opinião, o texto constitucional deve facilitar a vida ao legislador e não criar mais obstáculos a este.
Em terceiro lugar, gostaria de referir que não gosto da expressão "direitos próprios dos cidadãos portugueses", que, aliás, não está na Constituição brasileira. O que aí consta é: "direitos inerentes" aos cidadãos do Brasil.
Minhas Senhoras e Meus Senhores: eu, que sou europeísta, que sou a favor da internacionalização de Portugal e que sou a favor do papel forte de Portugal numa era inevitável de globalização e de integração, entendo que é compatível com esse esforço a defesa da identidade do
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que é português e da portugalidade. Por isso digo: os direitos próprios dos cidadãos portugueses são só dos cidadãos portugueses, e de mais ninguém.
Portanto, direi aqui que o que nós concedemos é a equivalência aos direitos dos cidadãos portugueses e não os direitos próprios dos cidadãos portugueses ou, se quiserem, como está na Constituição brasileira, no artigo 12.º, parágrafo 1.º, "os direitos inerentes ao brasileiro". É que os direitos inerentes ou equivalentes são uma coisa e os direitos próprios são outra coisa. Nós não cedemos os nossos direitos próprios a ninguém, nós podemos é fazer equivaler outros cidadãos aos cidadãos portugueses.
Posto isto, quanto aos cargos em questão - que é o último ponto sobre esta matéria -, gostaria de dizer o seguinte: julgo que na hierarquia dos tribunais portugueses temos hoje, acima de todos os tribunais, o Supremo Tribunal de Justiça. E, depois, não encontro razões para distinguir três supremos tribunais na hierarquia protocolar: o Tribunal Constitucional, o Supremo Tribunal Administrativo e o Supremo Tribunal Militar. Ou seja, não percebo por que é que não consta das excepções o Presidente do Supremo Tribunal Administrativo. Intriga-me por que é que, no âmbito da exclusão, quando se excluem da equivalência o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e o Presidente do Tribunal Constitucional, não se exclui também o Presidente do Supremo Tribunal Administrativo.
Devo dizer que custa-me muito verificar que o presidente do mais alto tribunal que fiscaliza toda a actividade da Administração Pública possa não ser português, pelas mesmas razões porque estão excluídos, e bem, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e o Presidente do Tribunal Constitucional na equivalência de direitos. Presumo que o Presidente do Supremo Tribunal Militar estará incluído nos "serviços das Forças Armadas" e, portanto, esse problema já não se porá quanto a ele.
Há uma outra questão que me causa algum embaraço. Pelo menos da minha parte, penso que gostaria de ter tempo para reflectir sobre se as funções de acusação pública, que se reconduzem, no fundo, ao Ministério Público, poderão ser exercidas por cidadãos não originariamente portugueses.
Volto a recordar que sou insuspeito quando falo na equivalência de direitos, mas custa-me muito que qualquer função de Ministério Público, de acusação pública, possa ser conferida a cidadãos não originariamente portugueses.
Penso, portanto, que esta questão merece, pelo menos, uma reflexão mais demorada. Ou seja, pergunto-me, e deixo isto à vossa consideração para reflexão futura, se a magistratura do Ministério Público (a começar pelo cargo de Procurador-Geral da República) não devia estar excluída da equivalência, assim como tudo o que diz respeito às Forças Armadas, quanto às quais parece haver percepção para este problema. Mas, então, comece-se no Ministro da Defesa e nos Chefes do Estado-Maior dos três ramos das Forças Armadas, quando não forem militares, o que, creio, em Portugal não pode acontecer; noutros países poderá acontecer, mas em Portugal não pode acontecer. E se, em Portugal, me disserem que o CEMFA pressupõe necessariamente o serviço nas Forças Armadas, então, nesse caso, esses cargos estão excluídos de equivalência pelo projecto em apreço.
Porém, não sei se estão excluídos necessariamente, e também não sei se, como acontece na Alemanha, o Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas não poderá ser um civil, caso em que deveria estar aqui excluído da equivalência.
Por outro lado (o Brasil não prevê o que vou propor, porque não o tem), se o cargo de Primeiro-Ministro de Portugal está excluído da equivalência, por que é que não há-de estar excluído o cargo de presidente do governo regional das regiões autónomas, que é, de facto, o chefe do governo da região autónoma? O Brasil não prevê esta situação.
O artigo em causa inspirou-se claramente no artigo brasileiro, como é obvio. Aliás, quase que o transcreve em dois pontos e, como disse, mal, porque o artigo da Constituição brasileira não se refere a convenções internacionais (não tem de o fazer) e fala em "direitos inerentes", enquanto que o projecto do PSD usa a expressão "direitos próprios", o que me parece, repito, salvo o devido respeito, um excesso.
Em suma, entendo que também devia estar aqui excluído, pelo menos, o cargo de presidente do governo regional das regiões autónomas; o de Ministro da República já não, porque este artigo não quer excluir os ministros - um brasileiro pode ser ministro, se pode ser Ministro da Justiça, então por que é que não há-de ser Ministro da República?
O cargo de presidente do governo regional das regiões autónomas não está previsto no Brasil, porque o Brasil é um país centralizado, sem regiões autónomas. Como temos regiões autónomas, deixo à vossa consideração se, de facto, não haverá aqui conveniência em excluir essa função da equivalência.
Devo dizer que este artigo, em qualquer caso, será muito generoso porque, recordo, o artigo 48.º, n.º 4, do Tratado de Roma (que está à beira de ser alterado), desde 1957 exclui da livre circulação de pessoas o exercício de funções de autoridade. Portanto, nós vamos dar no espaço lusófono uma equivalência de direitos em matéria de exercício de cargos públicos muito mais generosa do que acontece na União Europeia já com traços federais.
Portanto, creio que não estou a contradizer-me quando digo que já contribuí para uma ampla equivalência de direitos. Mas deixo à vossa consideração se essas restrições também não deveriam ser levadas em conta.
Passaria agora, se o Sr. Presidente der licença, ao Tribunal Penal Internacional.
Saúdo os desejos de Portugal de aderir ao Estatuto de Roma e se alguma crítica tenho a fazer, com o devido respeito, é a de que a adesão vem tarde. Este Estatuto é de 1998 e eu gostava muito que Portugal tivesse sido dos primeiros países a aderir; aliás, eu gostava muito que Portugal, em matéria de protecção de direitos fundamentais no plano internacional, fosse dos primeiros e não dos últimos.
Recordo que fomos o penúltimo Estado da Europa a ratificar, a aderir ao Protocolo n.º 11 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, depois da Moldávia e do Cazaquistão - o último foi a Itália; recordo ainda que a importante directiva de recursos em matéria de contratos administrativos, de 1989, foi transposta para Portugal pelo Decreto-Lei n.º 314/98, de 15 de Maio e, portanto, com nove anos de incumprimento da directiva que dá direitos fundamentais aos cidadãos portugueses em matéria de contencioso dos contratos administrativos.
Em matéria de direitos fundamentais, gostava que o zelo de Portugal em aderir a textos internacionais fosse igual ao zelo com que adere a textos que lhe conferem fundos ou dinheiros comunitários.
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Saúdo a adesão ao Tribunal Penal Internacional, porque andámos muitos anos a pedir a existência de um tribunal internacional dos Direitos do Homem, ou de algo equivalente - e cá está uma coisa parecida com um tribunal internacional dos Direitos do Homem! Durante vários anos, andámos a queixar-nos de que o Direito Internacional Público não progredia em termos de protecção dos direitos fundamentais, agora, cá está uma primeira manifestação de um grande progresso no Direito Internacional na matéria.
Aliás, o Tribunal Penal Internacional é muito melhor, incomparavelmente, desde logo do ponto de vista jurídico, do que vários tribunais penais regionais como os que existem. Primeiro, porque os tribunais penais internacionais que existem sabem um pouco a ajuste de contas dos vencedores contra os vencidos e, segundo, não podem respeitar dois princípios que este pretende respeitar: o nullem crimen sine lege e a nulla poena sine lege. Agora só se criminalizam os crimes ad futurum, o tribunal não se aplica, retroactivamente, a factos ocorridos no passado.
Espero agora que o Tribunal Penal Internacional constitua uma solução eficaz na comunidade internacional para julgar todos os criminosos de guerra e todos aqueles que pratiquem os crimes aí previstos. Todos e não só alguns.
Acresce que esta adesão não cria embaraços a Portugal porque, pela ordem normal das coisas, não vamos ter grandes problemas com o Tribunal. Que eu saiba não há portugueses implicados em massacres em nenhum dos espaços que estamos a imaginar e não vejo que possa haver, em condições normais, portugueses sujeitos à jurisdição deste Tribunal. A única forma pela qual eu imagino - e já fizemos este esforço de simulação em vários colóquios, em Portugal e no estrangeiro, na universidade ou fora da universidade - que Portugal possa ter conexão com este Tribunal, do Estatuto de Roma, acontecerá se for encontrado em território português, portanto sob a jurisdição de Portugal, teoricamente, algum cidadão implicado de qualquer modo ou indiciado por estes crimes.
Portanto, Portugal nem sequer tem incómodos de grande ordem de nível pessoal caso adira a este Tribunal. Assim, penso que Portugal faz bem em criar as condições para aderir ao Estatuto de Roma.
Vão perguntar-me se é ou não necessária esta revisão constitucional. Há quem diga que não e há quem diga que sim, mas eu entendo que sim e, como sou partidário de que a Constituição deve dizer o menos possível, entendo que a revisão constitucional se deve limitar ao que for necessário e não mais do que isso.
Não é necessária revisão constitucional porque se altera o regime interno jurídico-penal português. Peço licença de discordar aqui de eventuais ilustres antecessores meus nesta função - já terá havido aqui pessoas ilustres que disseram que era preciso mudar o Código Penal português. Eu entendo que não é preciso tocar no Código Penal português, porque a jurisdição penal portuguesa demarcada pelo Código Penal português não sofre a mínima alteração. E, designadamente, se querem ir por aí, vamos ao problema de fundo: não passa a vigorar na ordem interna portuguesa a pena de prisão perpétua. O Estatuto é claro nesta matéria.
Segundo, não é preciso rever a Constituição da República Portuguesa por causa da matéria da extradição. É que aqui não há extradição. Aliás, tive o cuidado de discutir com os autores do respectivo artigo - o artigo 89.º do Estatuto de Roma - esta questão e posso dizer-vos que os "pais" dos Estatuto de Roma tiveram esse problema e ficou claro que ficava no seu artigo 89.º a palavra "entrega" e não a palavra "extradição".
A extradição foi criada, na altura própria, no direito internacional e, por isso, tem limites. Nomeadamente, a extradição foi pensada de Estados soberanos para Estados soberanos. Ora, aqui não há extradição mas, sim, entrega por um Estado de uma pessoa presumivelmente criminosa - ninguém é criminoso enquanto não for condenado por sentença transitada em julgado - a um tribunal internacional, em relação ao qual não se põem problemas de soberania e, portanto, não há aqui um problema de extradição.
Devo dizer-vos que é esta a interpretação dos outros Estados que estão a discutir esta matéria em sede de eventual revisão constitucional. Mas, verificando o modo como nasceu a extradição entre Estados soberanos, aqui o que existe é "entrega", porque é de entrega que se trata e não de extradição.
Reconheço, todavia - já me apercebi disso em sete ou oito colóquios em que participei, em Portugal e no estrangeiro, sobre esta matéria -, que este é um ponto de dúvida. Então, se é um ponto de dúvida acho bem que a revisão constitucional o esclareça, para que não haja amanhã dúvidas sobre a matéria.
Em suma, a revisão constitucional não é necessária por causa da alteração da lei penal interna portuguesa, que não é afectada pelo Estatuto de Roma, nem é necessária por causa da extradição, com as dúvidas que esta matéria pode suscitar, mas já é necessária a revisão constitucional por dois motivos.
Primeiro, porque este Tribunal surge-nos como tribunal subsidiário em relação à jurisdição portuguesa - e aqui peço licença para dizer que duvido da autenticidade ou da correcção da tradução portuguesa, que diz ser este Tribunal "complementar" da jurisdição nacional, porque, também ao que me dizem, esta matéria foi discutida na sede própria e foi entendido que o Tribunal Penal Internacional era subsidiário em relação às jurisdições penais nacionais. E é disso que se trata. Uma coisa é complementar e outra coisa é subsidiário: complementar significa que é necessária a intervenção do Tribunal Penal Internacional para completar algo do tribunal penal português - e não é necessário, porque o que resulta do Estatuto é que se, de modo adequado, os tribunais penais nacionais reprimirem os crimes em questão, acabou aí o processo -, subsidiariamente quer dizer que só se a justiça penal nacional for ineficaz, paralisada ou inepta, se os tribunais não funcionarem, se houver um sistema generoso de prescrições, etc., é que intervém o Tribunal Penal Internacional.
Eu interpreto - e também aqui posso invocar à colação os autores do Estatuto - que onde se diz que a jurisdição penal internacional é complementar se quer dizer que ela tem carácter subsidiário em relação a jurisdições penais nacionais, sempre com o escopo último de reprimir adequadamente os crimes previstos no Estatuto. Portanto, há a necessidade de prever, na revisão constitucional, a intervenção subsidiária do Tribunal Penal Internacional.
Segundo, a revisão constitucional é necessária para adaptar a Constituição ao artigo 27.º do Estatuto (o problema das imunidades), bem como para prevenir a execução, em Portugal, da pena de prisão perpétua, mesmo se não aplicada por tribunais portugueses, o que, todavia, será muito difícil de acontecer.
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Qual é o sistema de execução das penas? Eu recordo: se houver Estados que se ofereçam para cumprir nas suas cadeias as penas aplicadas pelo Tribunal Penal Internacional, o problema está resolvido, pois presumo que Portugal não vai oferecer as suas cadeias, até porque elas estão sobrelotadas; se não houver nenhum Estado aderente ao Estatuto que se ofereça, nesse caso os órgãos respectivos indicarão quais os Estados que têm de pôr as cadeias à sua disposição.
Só nesse caso, só se Portugal tiver de, por essa via, executar em território português, em prisão portuguesa, pena de prisão perpétua ainda que aplicada por um tribunal não português se põe, porventura, o problema da conformidade com a Constituição Portuguesa.
Portanto, por essas razões é necessária a revisão constitucional.
O problema que se coloca é o seguinte: vamos, como alguns propõem, em vários destes pontos da Constituição, ressalvar o Estatuto de Roma, ou vamos incluir um artigo que, em globo, possibilite a adesão de Portugal ao Estatuto de Roma? Creio que os dois projectos de revisão constitucional em causa vão no segundo sentido - e vão bem -, ou seja, optam por incluir um só preceito, com dignidade própria, nos primeiros artigos da Constituição. E parece-me bem que essa alteração conste do artigo 7,º como propõe o PSD, diferentemente do que propõe o PS. Talvez o artigo 7.º seja o indicado devido à sua função, embora a meu ver diga coisas a mais, que já passaram de moda, tais como "a abolição do imperialismo, do colonialismo (…)", a "insurreição"… Acho que isto já devia ter sido limpo da Constituição há muito tempo, porque como essas coisas já não existem, felizmente, já não é preciso referi-las. E, em todo o caso, não somos nós, portugueses, que iremos acabar com o imperialismo, com o colonialismo ou com a insurreição. Aliás, recordo que a expressão "insurreição" foi introduzida em 1976 por causa de Timor, e hoje já não existe o problema de Timor.
Portanto, é bom sistema prever um só artigo que permita a adesão e, aqui, proponho uma redacção muito próxima da do PS, que é do seguinte teor: "Portugal pode reconhecer a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, instituído pelo Estatuto de Roma de 17 de Julho de 1998, nas condições nele previstas.". Eu poria apenas, até para ser fiel à redacção do próprio Estatuto de Roma (artigo 12.º), que "Portugal pode aceitar (…)" - e não Portugal pode reconhecer - "(…) a jurisdição do Tribunal Penal Internacional nos termos estabelecidos no Estatuto de Roma." Diria "nos termos" e não "nas condições" - e desculpem este prurido -, porque, como sabem, em termos jurídicos não é a mesma coisa e, aliás, creio que há outros artigos que seguem esta técnica legislativa.
Portanto, a minha sugestão é esta: "Portugal pode aceitar a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, nos termos estabelecidos no Estatuto de Roma". Não é preciso pôr a data porque não há outro Estatuto de Roma e haverá o cuidado de não chamar ao outro tratado "Estatuto de Roma"; há vários "Tratados de Roma", mas não há outro "Estatuto de Roma". No entanto, se quiserem, ponham a data.
Esta revisão, assim prevista, com uma cláusula geral, cobre todas as possíveis incompatibilidades que enunciei do sistema jurídico português com o Estatuto de Roma e, eventualmente, outros problemas. Por exemplo, recordo que no Estatuto os crimes são imprescritíveis enquanto que em Portugal há crimes prescritíveis. Portanto, porventura há várias dissonâncias entre o sistema português e o Estatuto de Roma que ficarão cobertas com esta cláusula geral.
Quero ainda dizer que, a optar-se pelo texto do PSD, então não utilizaria a expressão "em condições de complementaridade" mas, sim, a expressão "em condições de subsidiariedade", porque é disso que se trata e não de complementariedade.
E chegamos por fim, Sr. Presidente, ao problema do artigo 7.º, n.º 6, da CRP, sobre o qual quero repetir o seguinte.
Em primeiro lugar, por alguma razão Portugal é o único dos Quinze que prevê o exercício em comum dos poderes necessários à construção europeia por parte dos Quinze Estados. Isto juridicamente é errado (existia na Constituição francesa, mas foi alterado na revisão de 1992).
Não nos iludamos, porque não estamos a exercer parcelas da soberania italiana nem a Itália parcelas da soberania portuguesa. Não é disso que se trata; trata-se, sim, de saber, tal como todas as Constituições prevêem, se Portugal aceita ou não as limitações de soberania decorrentes da sua livre adesão à União Europeia ou, doutra forma, se Portugal aceita, como refere a "cláusula europeia" - que é considerada modelo - da Constituição alemã, a transferência de poderes soberanos por acto livre do Parlamento para organizações supranacionais. É isto que está em causa, é isto que a Constituição não resolveu e não tem querido resolver.
Este problema resolve-se, a meu ver, de uma forma muito simples: criando um artigo 7.º-A, que teria a dignidade de uma cláusula europeia, tal como existe na Constituição alemã, na Constituição grega, na Constituição irlandesa e por aí fora, porque a União Europeia merece não estar dissolvida em 7 ou 8 números do artigo 7.º. Ainda por cima, não são as meras relações internacionais que estão em causa. Está expressamente em causa um problema profundamente autónomo dentro das relações internacionais, que é a participação num movimento cada vez mais integrado, goste-se ou não dele.
Portanto, aqui, para ser sintético, proponho o seguinte.
Primeiro, que deixemos de ter a única Constituição dos Quinze Estados membros que proclama que a sua soberania é "indivisível" (artigo 3.º, n.º 1). A soberania é "una" sobre todo o território português, mas não é "indivisível", porque está sujeita às limitações de soberania trazidas pela União Europeia. Portanto, tenhamos a coragem de, no artigo 3.º da CRP, eliminar o adjectivo "indivisível".
Segundo, eliminemos o n.º 6 do artigo 7.º, da CRP, porque não se trata de "convencionar o exercício em comum de poderes". O que está em causa é a relação entre Portugal e a União Europeia, e, aí, a aceitação por Portugal das limitações de soberania decorrentes da livre adesão à União Europeia - e, entende-se, da livre permanência na União Europeia - ou, segundo outro modelo tecnicamente perfeito, a transferência ou a delegação (não vou, aqui, discutir um problema jurídico muito profundo e altamente especializado) de poderes soberanos para a União Europeia, por acto livre do Parlamento.
Assim, proponho que se elimine o n.º 6 do artigo 7.º, e também o n.º 3 do artigo 8.º, visto que este tem uma redacção infelicíssima - o Professor Jean-Victor Louis, professor belga, diz que é o mais imperfeito artigo dos Quinze em matéria de vigência do Direito Comunitário na ordem interna -, e que se substitua tudo isto por uma cláusula europeia (que seria um novo artigo 7.º-A).
Essa cláusula europeia estabeleceria uma de duas coisas: ou, tal como o modelo da Constituição grega, que
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"o Estado português consente, em condições de reciprocidade com outros Estados, nas limitações da soberania decorrentes da sua livre adesão a organizações internacionais." (ou organizações supranacionais). E, segundo o Professor Jorge Miranda (não sei se ele ainda defende isso ou se o vai defender também hoje), isto até resolveria o problema do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, porque o Professor Jorge Miranda assimila o Tribunal Penal Internacional a uma organização internacional, o que eu não faço. No entanto, se entenderem que assim é, este artigo dispensaria uma cláusula especial sobre o Tribunal Penal Internacional.
Ou, então, adoptar-se-ia uma cláusula de transferência de poderes soberanos, tal como a da Constituição alemã, estabelecendo algo deste género: "o Estado português pode, por acto do Parlamento (ou, se quiserem, por acto livre do Parlamento, o que é uma redundância), delegar em organizações internacionais o exercício dos seus poderes soberanos, em condições de reciprocidade com outros Estados".
Ou, ainda, se quiserem resolver todos os problemas de limitação de soberania, de transferência de poderes soberanos e de ressalva do tratamento mais favorável aos cidadãos portugueses em caso de conflito, em matéria de direitos fundamentais, entre normas comunitárias e normas nacionais, dir-se-ia qualquer coisa que absorvesse a jurisprudência do caso Granital do Tribunal Constitucional italiano, dos casos Solange I, Solange II e do caso Maastricht do Tribunal Constitucional federal alemão (e não cito o nosso Tribunal Constitucional, porque ainda não teve oportunidade para se pronunciar sobre esta matéria), através de um artigo que estabeleça, mais ou menos, que "os tratados institutivos das Comunidades Europeias (ou, se quiserem, da União Europeia) e os que os modifiquem, bem como as normas e os actos emanados dos seus órgãos competentes, prevalecem sobre o direito interno e vigoram na ordem interna nos termos definidos na respectiva ordem jurídica, desde que daí não resulte ofensa aos direitos fundamentais ou aos fundamentos do regime democrático".
Esta é a jurisprudência, pelo menos desde 1978, do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias; esta é a jurisprudência pacífica, hoje, dos tribunais constitucionais e esta é a prática quotidiana da Administração Pública portuguesa, que, em matéria da transposição das directivas, nem sequer, por vezes, acolhe convenientemente a defesa dos interesses nacionais que a própria directiva deixa ao legislador português. Mas essa seria matéria para outra intervenção e, com certeza, noutra sede que não aqui, neste quadro elevado da Comissão para a Revisão Constitucional.
Sr. Presidente, no essencial, disse o que tinha a dizer. Como não me disse qual era o tempo de que dispunha, julgo que não o excedi. Estou agora ao dispor para aprender convosco e para trocar eventuais impressões sobre aquilo que disse.
De qualquer modo, muito obrigado pela honra que me foi concedida de estar aqui, hoje, perante este ilustre auditório. E, se as minhas observações puderem dar um mínimo de contributo possível para esta revisão constitucional, sentir-me-ia muito feliz e muito honrado, embora me tivesse limitado a cumprir o meu dever de universitário e de cidadão.
O Sr. Presidente: - Muito obrigado, Sr. Professor, pela sua exposição muito rica e que, certamente, suscitará algumas questões dos Srs. Deputados.
Naturalmente, não lhe marquei tempo de intervenção porque os Deputados desta Comissão preferem marcar tempo para si próprios. Aliás, vou aproveitar para pedir aos Srs. Deputados que não se alonguem na formulação das perguntas para não fazermos esperar demasiado os nossos outros convidados.
Tem a palavra, desde já, o Sr. Deputado Luís Marques Guedes, com o pedido de ser tão breve quanto possível.
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, em primeiro lugar queria cumprimentar o Sr. Prof. Fausto Quadros e agradecer-lhe a exposição que aqui nos fez.
Apenas farei dois ou três comentários muito breves para, por fim, colocar uma questão mais concreta.
Quanto ao artigo 15.º, no fundo, o Sr. Professor aperceber-se-á que o que decorre das reflexões que aqui nos quis trazer implicaria, de certo modo, em algumas partes, um alargamento do que é, já hoje em dia, uma situação decorrente do texto constitucional. Nomeadamente, quando falou na possibilidade de também o cargo de Procurador-Geral da República e os cargos de exercício de autoridade genericamente considerados poderem ficar fora da disponibilidade para os cidadãos dos países de língua portuguesa, estava a reduzir o universo que actualmente já existe. Ou seja, o texto constitucional actual permite o acesso - e, do nosso ponto de vista, bem - a esse tipo de cargos, no plano abstracto dos direitos, aos cidadãos de língua portuguesa.
De igual modo (e faço apenas uma breve consideração), o Sr. Professor defendeu, aqui, a hipótese de não se ir tão longe ao ponto de retirar totalmente do texto constitucional o acesso aos cargos, pelo menos na chefia, dos governos regionais. Com franqueza, Sr. Professor, vejo aí duas dificuldades: em primeiro lugar, a primeira figura não é o presidente do executivo, mas o presidente da assembleia legislativa regional, pelo que havia logo aí uma dificuldade, e, em segundo lugar, como o Sr. Professor disse, e muito bem, mesmo não sendo possível fazer a comparação com o Brasil, de qualquer modo o Brasil é um Estado federal, com cargos importantíssimos como, por exemplo, os de governador de estado, que, do meu ponto de vista, não ficam atrás, seguramente, dos cargos dos membros dos governos regionais.
Sr. Presidente, em matéria de artigo 15.º, fico por aqui, pois apenas queria dar como que uma satisfação às reflexões que o Sr. Professor aqui nos quis trazer e apontar os problemas que, do nosso ponto de vista, se colocam relativamente às matérias que suscitou.
As questões concretas que quero colocar dizem respeito ao artigo 7.º. Ouvi-o atentamente e devo dizer que, no plano jurídico, evidentemente, não posso deixar de concordar com a afirmação peremptória que o Sr. Professor faz de que a adesão ao TPI não afecta a ordem jurídica portuguesa, nomeadamente o Código Penal e o Código de Processo Penal portugueses.
É evidente que só temos de, com a devida vénia, concordar com esta sua afirmação, que é profundamente verdadeira. Só que o problema não é esse! O problema está no seguinte: como sabemos, do Estatuto do Tribunal, pela prática de determinado tipo de crimes, decorre a possibilidade de aplicação de penas que, pelo menos ética e moralmente, não são aceitáveis para a ordem jurídica portuguesa.
Nesse sentido, ao aceitarmos a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, de duas uma: ou temos mecanismos
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para, nos termos do próprio Estatuto, realizar, através dos tribunais portugueses, o julgamento desses cidadãos, aplicar-lhes penas e, deste modo, evitar a "entrada em cena" do Tribunal Penal Internacional; ou os nossos tribunais, por alguma razão, são obrigados a declararem-se incompetentes relativamente a determinado tipo de práticas criminosas e, por se declararem incompetentes, vêem-se na contingência de entregar esses cidadãos à jurisdição do Tribunal Penal Internacional, com todas as possíveis consequências que daí advenham - possíveis, porque é evidente que até ao final do julgamento tudo é possível.
Portanto, o que está aqui em causa, Sr. Professor, é a necessidade de habilitar os tribunais portugueses de forma a nunca serem colocados na situação de terem de se declararem incompetentes em razão, nomeadamente, da tipificação de crimes. O Sr. Professor bem sabe que o Estatuto do Tribunal Penal Internacional, para além de, relativamente a alguns crimes, como o de genocídio e os crimes contra a humanidade, ir manifestamente mais longe em termos de tipificação de comportamentos susceptíveis de integrarem a prática criminosa, ir bastante mais longe do aquela que é a tipificação decorrente do Código Penal português, contém, no caso dos crimes de guerra, por exemplo, uma densificação da tipificação dos comportamentos que está muito para além daquilo que está previsto na ordem jurídica portuguesa.
Assim, se, de hoje para amanhã, um cidadão for encontrado no território nacional, sob alçada dos tribunais portugueses, e estiver indiciado pela prática de um crime que vem tipificado no Estatuto de Roma, mas relativamente ao qual é totalmente omisso o Código Penal português, não restará aos tribunais portugueses outra solução senão a de, por terem de se declararem incompetentes para julgar aquela matéria, entregar o cidadão à jurisdição do Tribunal Penal Internacional. A única forma de obviar essa situação é habilitar os tribunais portugueses com uma tipificação de crime que lhes permita, em todas e quaisquer circunstâncias em que haja indiciação por parte do TPI, considerarem-se competentes e, portanto, poderem, eles próprios, avançarem com o julgamento da situação. Esta é a primeira questão.
Em segundo lugar, e independentemente de o Sr. Professor saber, seguramente melhor do que eu, mas também melhor do que praticamente todos nós, quais são os mecanismos de aplicação directa do direito internacional na ordem interna, gostaria de abordar a questão relativa ao problema das imunidades que decorre da adesão ao Tribunal, que o Sr. Professor citou por alto e que quero colocar-lhe em concreto: trata-se do problema do julgamento do Presidente da República. Como o Sr. Professor bem sabe, este é o único caso em que a nossa Constituição tem expressamente uma norma, no artigo 130.º, que estabelece que, em determinado tipo de situações, o Presidente só responde, em primeiro lugar, perante o Supremo Tribunal de Justiça e, temporalmente, em alguns casos, só responde depois de terminado o seu mandato.
Como tal, gostava de saber se, por causa deste problema do Presidente da República, o Sr. Professor entende que a recepção genérica do Estatuto do Tribunal Penal Internacional resolve este problema de violação ou de incompatibilidade com o artigo 130.º da Constituição ou se entende haver aqui algum trabalho a fazer, em termos de excepcionar expressamente esta questão relativamente ao mesmo artigo.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, já temos entre nós o Sr. Prof. Jorge Miranda, que me comunicou a sua dificuldade em permanecer cá para além do meio-dia. Ora, nós é que começámos a reunião tarde, pelo que nós é que somos os responsáveis pelo atraso.
Como tal, dou a palavra ao Sr. Deputado Jorge Lacão, com o pedido de que seja célere.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, vou procurar acolher a sua recomendação, mas não sem saudar vivamente a presença do Sr. Prof. Fausto Quadros e a sua estimulante reflexão para o nosso próprio trabalho e que, asseguro-lhe, muito contribuirá para o processo de amadurecimento que aqui nos compete fazer.
Como o Sr. Presidente sugere que seja telegráfico, devo dizer que, relativamente à problemática da igualdade de direitos políticos no espaço lusófono, acompanho as reflexões feitas pelo Sr. Professor, na medida em que, por um lado, o papel pioneiro de Portugal na construção desse espaço lusófono faz todo o sentido, sendo que, por outro lado, não deixa de haver questões delicadas, do ponto de vista do exercício de direitos, nos termos em que o Sr. Professor referiu. Como tal, quero apenas sinalizar o quanto acompanhámos a sua reflexão.
No que respeita ao problema da recepção da cláusula relativa à possibilidade do reconhecimento do Estatuto do TPI, também me pareceram francamente pertinentes as observações do Sr. Professor, tanto mais que esta problemática da relação de complementaridade entre o TPI e a ordem jurídica interna tem-nos vindo a colocar aqui questões que tenderiam mais a complicar do que a simplificar o nosso processo. A ideia de que teríamos de acorrer rapidamente para a compatibilização da nossa ordem interna penal, relativamente à tipologia dos crimes - e, como sabemos, nem todos estão já tipificados, designadamente o crime de agressão -, no que respeita ao Estatuto do TPI, implicaria levar às últimas consequências uma ideia que o Sr. Professor aqui nos demonstrou não ser inteiramente correcta, que é a ideia de uma complementaridade quase necessária do TPI relativamente à nossa ordem interna, com prioridade de aplicação da jurisdição penal portuguesa.
O Sr. Professor lembrou-nos, até por uma razão de previsão, numa visão prospectiva, que, porventura, a conexão que poderá ocorrer do nosso lado com o TPI há-de ser se, um dia, for encontrado no território de Portugal alguém que deva ser julgado pela prática dos crimes que constam justamente do elenco dos crimes previstos no Estatuto do TPI. Se, nessa circunstância, nos vinculássemos, em sede constitucional, à ideia de que o Estatuto do TPI é complementar relativamente à jurisdição penal portuguesa, tal significaria que estávamos a vincular o Estado português à necessidade de, em primeira mão, julgar aquela pessoa apanhada em território português e só depois, se o próprio TPI admitisse não se conformar com a decisão penal portuguesa, é que haveria um eventual segundo momento de julgamento em sede de TPI.
Ora, isto não faz muito sentido, porque, do meu ponto de vista, Portugal tem de estar em situação de assegurar que, nas condições que o Sr. Professor referiu, se um cidadão for demandado pelo TPI, ele poderá ser-lhe entregue imediatamente, sem nos envolvermos numa imensa querela acerca da complementaridade, em termos de, necessariamente e por vinculação constitucional, a ordem jurídica penal portuguesa ter de actuar em primeira mão. Isso parece-me uma maneira de complicarmos a nossa relação com o TPI que é inteiramente injustificada. Nesse
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sentido, prefiro uma cláusula de recepção mais "enxuta", como o Sr. Professor salientou, quanto à sua oportunidade.
Também retive as suas observações acerca da judicidade, digamos, de alguns conceitos que julgo devermos depois ponderar.
A minha última observação é sobre o que o Sr. Professor disse acerca da cláusula de recepção do direito internacional, particularmente o direito derivado das organizações internacionais, com tudo o que isto implica com a problemática do direito europeu.
De facto, no artigo 7.º, o PS "abre a janela" para a problemática do aprofundamento do espaço de liberdade, de segurança e de justiça no plano europeu. Mas também já aqui tive ocasião de sublinhar, num outro momento da nossa reflexão, que eu próprio não estou satisfeito com a forma como esta cláusula está apresentada, porque considero que ela identifica a existência de um problema que temos de saber resolver, mas não o resolve inteiramente. É que, se, amanhã, designadamente ao nível de uma eventual cooperação reforçada para a aprovação de uma convenção ou para a transcrição de uma directiva-quadro, víssemos, na matéria da liberdade, segurança e justiça, que alguma norma era desconforme com qualquer norma em concreto da Constituição portuguesa, ficaríamos igualmente embaraçados com a necessidade de fazer uma espécie de nova revisão constitucional, porque talvez tivéssemos de chegar à conclusão de que esta cláusula geral do artigo 7.º não nos resolvia o problema das relações paramétricas entre o direito europeu, particularmente o direito derivado, e a nossa ordem interna, particularmente a nossa ordem constitucional.
Nesse sentido, depois destas considerações, pois foram mais considerações do que perguntas, na colagem às reflexões do Sr. Professor, vou limitar-me a pedir-lhe um favor: o de voltar a falar-nos, porque não consegui tomar inteiramente nota, daquela cláusula que sugeriu, na sua reflexão final, como uma cláusula que, do seu ponto de vista, resolveria globalmente o conjunto dos problemas que temos posto, designadamente os do artigo 8.º, do artigo 7.º, etc. Se o Sr. Professor nos fizesse o favor de voltar a enunciar esse texto, ficar-lhe-ia grato.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Prof. Fausto Quadros, a quem também peço que seja breve.
O Sr. Prof. Doutor Fausto Quadros: - Sr. Presidente, quanto ao artigo 15.º, que fique bem claro o seguinte: eu disse que era a favor da maior amplitude possível da equivalência de direitos, e até disse mais: disse que estava vinculado a esta questão porque, há cerca de quase 10 anos, exprimi-me num estudo sobre esta matéria. Como tal, não vejo razões para alterar a minha posição.
Sr. Deputado Marques Guedes, hierarquizei as minhas observações em vários degraus. As alterações ao texto constitucional que proponho são: a eliminação da referência às convenções internacionais, depois de este preceito estar aqui estipulado; a eliminação da expressão "direitos próprios", porque considero que ficaria aqui melhor a ideia de equivalência ou a referência aos direitos inerentes, porque entendo que os direitos próprios dos cidadãos portugueses são só deles - desculpem a insistência neste ponto -; a eliminação da grande dificuldade, para o legislador português, que é a de saber o que é a residência permanente (dir-me-á que o legislador tem de fazer a opção, e é verdade, mas a residência permanente é de 48 horas, é de 3 anos, é de 6 anos?); e a inclusão aqui do Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, que tem dignidade protocolar igual à dos outros tribunais.
Quanto ao resto, foram dúvidas, não foram sugestões, e essas dúvidas são-no até mais para os políticos do que para os juristas. É o caso da dúvida de saber se faz sentido que os cidadãos não originariamente portugueses exerçam funções de acusação pública no quadro dos agentes do Ministério Público, a começar pelo cargo de Procurador-Geral da República, ou de saber se faz sentido que o Ministro da Defesa, quando for um civil, possa não ser originariamente português, considerando que o serviço nas Forças Armadas, que é uma instituição análoga, está excluído da equivalência. Concordo consigo quando diz que o problema também se pode pôr quanto ao presidente de uma assembleia regional e ao presidente de um governo regional, mas não faço disso questão. E, repare, não se trata de uma proposta minha mas, sim, de uma dúvida, dentro do espírito geral do problema, sendo certo, repito, que sou a favor da mais ampla equivalência possível nesta matéria, havendo também que ter em conta que, embora tenhamos de defender os nossos interesses, os outros Estados já nos concederam isso.
Não pedi uma similitude com o artigo 48.º, n.º 4, do Tratado de Roma, em matéria de poderes de autoridade, até porque muitos deles já estão aqui abrangidos pela equivalência; o que sublinho é que nós, e eu apoio este movimento, vamos para além da livre circulação de pessoas no quadro da União Europeia, o que me parece muito bem.
O segundo ponto prende-se com o Tribunal Penal Internacional. Sr. Deputado, subscrevo todas as suas observações, mas não são observações para uma revisão constitucional; são observações para um aperfeiçoamento do sistema jurídico-penal interno português. Disse, e bem, que temos de ter meios eficazes para julgar os crimes na ordem interna, para se entregar o menor número possível de presumíveis criminosos ao Tribunal Penal Internacional. Mas este é um problema português. Temos de agilizar o sistema penal português - não sou especialista em direito penal, mas oiço todos os penalistas dizerem que, de facto, ele precisa de ser agilizado, quer na celeridade da justiça, quer nas garantias a conceder ao acusado, quer nesse malfadado princípio, talvez mais pela forma como funciona do que pelo princípio em si, das prescrições, que desaparecem na justiça penal internacional.
Assim, penso que esta não é matéria de revisão constitucional mas, sim, de lei penal e de revisão do Código Penal, não porque o Estatuto de Roma o imponha, mas porque o Código Penal e o Código de Processo Penal precisam de ser aperfeiçoados. Mas, nesta matéria, há, porventura, à volta da mesa especialistas mais qualificados do que eu.
Sr. Deputado Marques Guedes, quanto ao problema das incompatibilidades, penso que uma cláusula geral com a possibilidade de Portugal aceitar, e não só reconhecer, a jurisdição do Tribunal Penal Internacional resolve todas as eventuais incompatibilidades do direito português com o Estatuto. Como tal, também isso que referiu, e bem, é muito verdadeiro: uma cláusula geral tem esta grande vantagem. Repare, o mesmo se passa com a cláusula europeia: se fossemos prever, em cada artigo, as incompatibilidades com o direito comunitário, teríamos, em todos os artigos da Constituição, que são muitos, de ressalvar o Direito Comunitário. Mas não é isso que fazemos. Temos o problema resolvido através de um sistema geral de aceitação do Direito Comunitário.
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Falta-me ainda referir o seguinte ponto: parece-me bem que fique no artigo 7.º, que interpreto como um artigo programático em matéria de relações internacionais, algo do que diz o PS, no novo n.º 6 que propõe, embora com outra redacção, se me permitem, deste tipo: "Portugal participa na construção de um espaço de coesão económica e social (isto até por causa da cooperação reforçada, Sr. Deputado) e de liberdade, segurança e justiça, no âmbito da União Europeia". Este é um preceito programático, e por aqui ficaria o n.º 6 do artigo 7.º.
Depois, o problema da vigência do Direito Comunitário na ordem interna ficaria para outra cláusula, que seria o artigo 7.º-A, a que se chama lá fora "cláusula europeia", mas a que eu daria apenas o título de "União Europeia", o qual teria uma das seguintes redacções: ou "o Estado português consente, em condições de reciprocidade com outros Estados, nas limitações da soberania decorrentes da sua livre adesão a organizações internacionais" (ou, especificamente "à União Europeia") - é o caso da Constituição grega -, ou, como é o caso da Constituição alemã e de algumas outras, "o Estado português pode, por acto do Parlamento, delegar (ou transferir) para organizações internacionais o exercício dos seus poderes soberanos, em condições de reciprocidade com outros Estado", ou ainda, como na Constituição irlandesa, "(…) os Tratados institutivos das Comunidades Europeias e os que os modifiquem, bem como as normas e os actos emanados dos seus órgãos competentes, prevalecem sobre o direito interno e vigoram na ordem interna nos termos definidos na respectiva ordem jurídica, desde que daí não resulte ofensa aos direitos fundamentais ou aos fundamentos do regime democrático", o que depois implicaria a adaptação do nosso sistema de fiscalização da constitucionalidade a este artigo.
Provavelmente, o Professor Jorge Miranda, logo a seguir, vai defender uma posição diferente da minha, o que só enriquecerá o debate. Enquanto ele não o faz, tenho de dizer que é esta a minha posição.
Por conseguinte, eu eliminaria a referência ao exercício comum dos poderes soberanos, que só constava da Constituição francesa, mas deixou de constar porque, ao lado deste artigo, a revisão de 1992 passou a incluir a cláusula da transferência de poderes soberanos para a União Europeia por acto do Parlamento.
Sr. Deputado Jorge Lacão, penso que respondi às suas questões.
Sr. Presidente, da minha parte é tudo. Mais uma vez, muito obrigado pela honra que a Comissão me concedeu.
O Sr. Presidente: - Sr. Professor, em meu nome e de todos os Srs. Deputados, agradeço a sua colaboração com a Comissão, que foi muito motivadora para todos nós e que ajudará à continuação das nossas reflexões.
Pausa.
Sr.as e Srs. Deputados, temos connosco o Sr. Prof. Jorge Miranda, a quem apresento os meus agradecimentos, em nome de todos os Srs. Deputados, pela sua cooperação com o Parlamento, desta vez em matéria de revisão constitucional.
Como o Sr. Professor sabe, esta revisão constitucional incide sobre um conjunto de artigos. Não vou marcar o objecto da sua intervenção - falará sobre aquilo que entender -, visto que, na qualidade de constitucionalista, V. Ex.ª tem certamente muito a dizer-nos sobre os diversos artigos ou, pelo menos, sobre alguns deles.
O tempo é escasso. Sei que o Sr. Professor tem o seu tempo de hoje muito ocupado, pelo que peço aos Srs. Deputados, mais uma vez, que não façam intervenções mas, sim, perguntas.
Sr. Professor, atrevo-me a pedir-lhe, até no seu interesse, que seja também incisivo na sua primeira intervenção, que abrirá os nossos trabalhos. Mais uma vez, muito obrigado, Sr. Professor.
Tem a palavra.
O Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda: - Sr. Presidente e Srs. Deputados, tenho muito gosto em estar aqui. É uma grande honra ser chamado a intervir nos trabalhos da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional.
Congratulo-me por a Assembleia da República, na sequência do que já aconteceu em anteriores revisões, ter promovido este conjunto de audições com personalidades extra-parlamentares (ainda que no meu caso sempre com uma grande ligação à Assembleia da República). Julgo que a Assembleia da República, por um lado, e as próprias universidades, por outro lado, só têm a ganhar nesta comunicação, nesta troca de experiências e de reflexões acerca dos problemas do País.
Vou procurar ser breve tanto quanto possível, até porque sei que houve já, há pouco, uma intervenção bastante longa e exaustiva acerca de muitas das questões que estão em cima da mesa nesta revisão constitucional.
Se me for permitido, começarei por fazer uma reflexão acerca de um problema que me preocupa muito e que tem algo que ver com esta revisão, mas também com ulteriores revisões que venham a ser feitas. Num segundo momento, tomando como ponto de referência o quadro elaborado pelos serviços da Assembleia acerca das alterações propostas à nossa Constituição, irei emitir a minha opinião acerca das alterações propostas à Constituição.
Começando pelo primeiro ponto. Até agora, em 25 anos de vigência da Constituição, tivemos quatro revisões constitucionais e encontramo-nos na quinta. Uma dessas revisões constitucionais, a de 1992, provocada pelo Tratado de Maastricht, foi relativamente curta, embora a mais profunda de todas, por poder vir a pôr em causa o princípio da soberania do Estado. As outras três revisões foram extremamente vastas e largas, e também extremamente longas: a primeira revisão durou cerca de 20 meses, entre o início de 1981 e o segundo semestre de 1982; a segunda demorou dois anos; e a terceira quase dois anos.
A primeira revisão foi naturalmente justificada pela necessidade de extinguir o Conselho da Revolução. A segunda apareceu ligada a transformações de carácter económico, acerca das quais também se tinha feito um consenso largamente maioritário na sociedade portuguesa. Já a quarta, feita em nome da reforma do sistema político, sempre me suscitou dúvidas acerca da sua necessidade. Mas para além dos pontos em que pudesse ter havido necessidade de alterações, houve claramente alterações voluptuárias ou mesmo alterações sem justificação e de alcance negativo.
Isto conduz-me à seguinte ponderação. Tem-se entendido - apesar de a letra e de o espírito da Constituição serem claramente em sentido diferente - que a chamada revisão constitucional ordinária é obrigatória; tem-se entendido que, de cinco em cinco anos, a Assembleia da República tem o dever de fazer revisões
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constitucionais, quando não tem! Mas, mais grave do que isso, tendo em conta a experiência da primeira, da segunda e da quarta revisões, a Assembleia, os Deputados ou os grupos parlamentares têm-se sentido na necessidade, ou na liberdade, de propor alterações vastíssimas, que mexem com a estabilidade da ordem jurídico-constitucional, que podem ter efeitos negativos no direito ordinário e que paralisam ou vêm a ter consequências muito negativas no funcionamento das instituições políticas. É que enquanto decorre a revisão constitucional outras questões políticas fundamentais, e algumas até bem mais importantes do que a alteração de um ou outro artigo, não são decididas nem equacionadas.
Isto leva-me a pensar que, à semelhança do que acontece na generalidade dos países europeus, não deveria haver o sistema de revisão constitucional que temos desde 1976. Em 1976, ele foi adoptado com a distinção entre revisões possíveis de cinco em cinco anos e revisões levadas a cabo por assunção de poderes de revisão. Foi adoptado, por um lado, tendo em conta a tradição das Constituições de 1911 e de 1933 e, por outro lado, como uma "válvula de segurança", por causa das circunstâncias em que a Constituição havia sido feita e por causa da necessidade que o legislador constituinte sentiu, logo em 1976, da eminente possibilidade de flexibilizar a Constituição com vista à adaptação à evolução da vida política, social e económica do País.
Podemos dizer que essa adaptação, hoje, no essencial, está feita. Se virmos o caminho percorrido, desde 1976 até hoje, podemos notar que, por um lado, a Constituição, no seu cerne essencial, foi capaz de resistir e de se sedimentar e, por outro lado, naquelas partes mais polémicas e controversas, fez-se a adaptação necessária e, particularmente, a adaptação ligada à integração na União Europeia.
Tendo em conta isto e também os resultados muito negativos de largas e longas revisões constitucionais, aquilo em que tenho pensado e o que sugiro - não agora, naturalmente, mas para o futuro - é que acabe a regra da revisão possível de cinco em cinco anos e que, pura e simplesmente, a revisão passe a ser feita a todo o tempo, por assunção de poderes de revisão por maioria de dois terços de Deputados efectividade de funções (a mesma maioria que pode votar alterações à Constituição).
Quer dizer: em vez destas revisões, tidas por obrigatórias, quinquenais, generalistas, que alteram até, como aconteceu em 1997, a numeração dos artigos da Constituição, passaríamos a ter, sem limites temporais, revisões sobre pontos específicos quando uma maioria parlamentar substancial de dois terços o considerasse necessário. É algo de parecido, diria, que se verifica na generalidade dos países europeus.
Por que digo isto agora? Não só por uma consideração de carácter geral mas, também, para, por esta via, justificar que se agora se entende que é possível, necessário e consensual alterar mais artigos, para além dos respeitantes ao Tribunal Penal Internacional, então que se faça hoje essa revisão em vez de termos de esperar por uma revisão ordinária, que iria desencadear-se a partir de 2002.
Se é possível formar acordo a respeito desta ou daquela matéria, mesmo para além da questão pertinente ao Tribunal Penal Internacional, então, que se faça hoje essa revisão, sem estar a diferir o tratamento dessa matéria para 2002 ou 2003, ou para uma qualquer larga, longa e generalista revisão constitucional tida por obrigatória.
Portanto, para além das considerações de carácter geral a respeito do sistema de revisão, o que pretendo dizer é que, embora esta revisão tenha sido desencadeada a pretexto do Tribunal Penal Internacional, não há nenhuma razão para não se fazerem agora, nesta revisão, as alterações que se considerarem necessárias a respeito de outros pontos, para além daquelas que dizem respeito àquela matéria. Não há necessidade de perder tempo, até porque, repito, não há, na Constituição, nenhuma obrigação de fazer revisões de cinco em cinco anos ou ao fim de cinco anos.
Feitas estas observações preliminares, permitam-me que faça os meus comentários a respeito das alterações propostas à Constituição, provenientes de Deputados de três dos partidos representados na Assembleia.
O primeiro ponto tem a ver com o Tribunal Penal Internacional. Aquilo que venho defendendo há já bastante tempo, seguindo, de resto, o que se verificou em França, aquando da revisão por causa do Tribunal Penal Internacional, é que uma cláusula geral de recepção - chamemo-lhe assim, embora impropriamente - do Tribunal Penal Internacional é necessária e resolve quase todos os problemas. O lugar próprio para ela ser inserida parece-me ser o artigo 7.º, respeitante às relações internacionais do Estado português.
A colocação, no artigo 7.º, em sede de princípios fundamentais da Constituição tem até um valor emblemático e liga-se directamente ao compromisso consignado no n.º 1 de defesa pelo Estado português dos Direitos do Homem. A consagração do Tribunal Penal Internacional é um corolário desse compromisso de Portugal com a defesa e a promoção dos Direitos do Homem.
Diversamente, a colocação em "Disposições finais e transitórias", como preconizam os Deputados do Partido Socialista, secundizaria e até degradaria a matéria. Portanto, parece-me que o lugar mais adequado é o artigo 7.º. De resto, logo a seguir, há uma norma, a do n.º 6, em que Portugal também aceita restrições ao exercício da sua soberania por causa de outra exigência, que é a integração europeia. A meu ver, não é menos importante esta participação numa justiça penal internacional em nome de altos valores, como são os Direitos do Homem, do que a exigência derivada da integração comunitária.
Portanto, é no artigo 7.º que estará melhor uma referência ao Tribunal Penal Internacional. O que já alvitrei várias vezes é uma fórmula semelhante àquela que consta da Constituição Francesa. Vejo que a norma proposta, quer pelos Deputados do PSD quer pelos Deputados do PS, neste caso em disposição transitória, é talvez mais limitativa do que aquela que eu sugeriria. Mas, de todo o modo, essa é uma questão de redacção que, neste momento, não me parece particularmente importante. Certamente, os Srs. Deputados encontrarão a fórmula mais satisfatória.
Mas há ainda um aspecto importante desta questão que urge também considerar neste momento.
Durante muito tempo pensei que bastaria essa cláusula de carácter geral, essa fórmula de carácter geral, mas devo dizer que, depois de ter lido o importante parecer que foi elaborado na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, pelo Deputado Alberto Costa, tenho entendido que não é suficiente para se resolverem todos os problemas que têm sido colocados ou que podem ser colocados a propósito do Tribunal Penal Internacional. Efectivamente, há o problema das imunidades de jurisdição de titulares de cargos políticos e, portanto, terá de ser encontrada uma solução relativamente a essa questão.
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Não basta dizer que Portugal reconhece ou pode reconhecer a jurisdição do Tribunal Penal Internacional; é preciso resolver o problema relativo ao processo, particularmente grave em relação ao Presidente da República mas também importante em relação aos Deputados e aos membros do Governo. E, a meu ver, sem me poder agora alongar muito, talvez seja possível encontrar uma solução. Vou sugerir uma fórmula, mas admito que ela também ainda tenha, aliás, certamente, ainda tem de ser trabalhada.
Entendo que o caminho mais adequado seria através do artigo 117.º, que é o artigo respeitante ao estatuto dos titulares de cargos políticos, onde se estabelece que os titulares de cargos políticos respondem criminalmente por acções e omissões que pratiquem no exercício das suas funções. A meu ver, seria talvez possível ou conveniente acrescentar um n.º 4 a este artigo, onde se estabelecesse o seguinte: "No caso de crimes previstos também no Estatuto do Tribunal Penal Internacional, a iniciativa do processo cabe ao Procurador-Geral da República e determina a suspensão imediata do exercício do cargo do titular do órgão".
Como VV. Ex.as sabem, em relação ao Presidente da República, a iniciativa do processo depende de uma deliberação por uma maioria qualificada da Assembleia da República; em relação aos Deputados e aos membros do Governo, também se prevê, e bem, uma intervenção da Assembleia da República relativamente a crimes do foro interno, e é correcto que seja assim. Mas se em relação ao Presidente da República, aos Deputados e aos membros do Governo se exige já hoje uma intervenção da Assembleia da República, relativamente a crimes também previstos no Estatuto do Tribunal Penal Internacional não me parece que seja satisfatório a decisão caber à Assembleia da República, até porque - e pensemos, por exemplo, no que aconteceu, ainda recentemente, na Jugoslávia - pode, eventualmente, haver uma Assembleia identificada com os presumíveis autores desses crimes e que, num caso destes, nunca tomará a iniciativa do processo.
Portanto, entendo que a iniciativa do processo não pode caber a um órgão político; deve caber ao Procurador-Geral da República e deverá determinar a suspensão imediata do exercício do cargo.
Aquilo que sugiro, na linha do parecer ou relatório da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias que referi, é um aditamento ao artigo 117.º de um preceito específico relativamente aos crimes previstos também no Estatuto do Tribunal Penal Internacional. Não me parece que baste uma cláusula de carácter geral, ela pode bastar no plano substantivo mas não é suficiente no plano adjectivo.
Também no projecto apresentado por Deputados do Partido Socialista se refere ainda o aditamento, no n.º 6 do artigo 7.º, de uma referência a um espaço de liberdade, de segurança e de justiça. Percebo aquilo que se quer dizer, não tenho objecções, embora tenha algumas reservas. Admito que se possa entender necessário avançar nesta linha, ainda que deva sempre ressalvar-se todo um conjunto de garantias dos cidadãos portugueses, no âmbito do artigo 33.º da Constituição.
Já quanto a qualquer alteração, no sentido de se criar um artigo autónomo sobre as Comunidades e a União Europeia, como, há pouco, foi sugerido pelo Prof. Fausto de Quadros - eu ouvi, estava aqui, ouvi e ele até me desafiou a dar a minha opinião -, devo dizer que estou em total desacordo. Poderia ter sido feito assim em 1992, mas não há nenhuma razão para agora se fazer. E muito menos estaria de acordo com a adopção de fórmulas que consideraria extremamente perigosas de subalternização do direito português ou de uma maior subalternização do direito português relativamente ao Direito Comunitário.
Neste domínio, como VV. Ex.as sabem, há grandes divergências entre o meu pensamento e o pensamento do Prof. Fausto de Quadros. Aquilo que está na Constituição, no artigo 7.º, eventualmente com o aditamento dessa referência proposta pelo Partido Socialista, e no n.º 3 do artigo 8.º, é mais do que suficiente. Não tem havido problemas até agora e, certamente, não haverá mais problemas para o futuro.
Passo agora a outro ponto que é objecto de propostas de alteração, que é o que diz respeito ao artigo 15.º, no tocante à condição jurídica dos cidadãos de países de língua portuguesa. Há muito tempo que defendo uma fórmula mais generosa do que aquela que consta do n.º 3 do artigo 15.º.
A fórmula que consta desse artigo, permitam-me a imodéstia, foi proposta por mim, em 1976, já no âmbito da Comissão de Redacção da Assembleia Constituinte, considerando a Convenção de Brasília e pensando em futuras convenções com outros países de língua portuguesa. Na altura foi considerada satisfatória, mas tudo aconselha um alargamento em face dos desenvolvimentos verificados no Brasil e a que importa dar resposta urgente.
Aquilo que consta do artigo 12.º, § 3.º, da Constituição Federal brasileira é que "São privativos de brasileiro nato os cargos: I - de Presidente e Vice-Presidente da República; II - de Presidente da Câmara dos Deputados; III - de Presidente do Senado Federal; IV - de Ministro do Supremo Tribunal Federal; V - da carreira diplomática; VI - de oficial das Forças Armadas (…)".
Relativamente a nós, à situação portuguesa, a assunção destes cargos está vedada aos portugueses, tendo em conta a conjugação com o § 1.º do referido artigo 12.º.
Aquilo que me parece que poderia estabelecer-se na nossa Constituição, tendo em conta a diferente natureza de alguns destes cargos em face da Constituição portuguesa, seria que aos cidadãos de países de língua portuguesa poderiam ser atribuídos, mediante convenção internacional e em condições de reciprocidade, direitos não conferidos a estrangeiros, salvo os cargos de Presidente da República, de Presidente da Assembleia da República, assim como de membros do Governo e de juiz do Tribunal Constitucional, como a carreira diplomática e o oficial das Forças Armadas. Julgo que seriam estes os cargos e as funções que deveriam ficar reservados a portugueses.
No Brasil não estão previstos os ministros de Estado, membros do Governo, mas no Brasil, como é sabido, os ministros de Estado têm um estatuto inferior ao estatuto que têm, entre nós, os membros do Governo, tendo em conta o sistema presidencial. O Supremo Tribunal Federal do Brasil corresponde ao nosso Tribunal Constitucional.
Não vejo razão para se incluírem, aqui, o Supremo Tribunal de Justiça ou os Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Administrativo, uma vez que esses são tribunais ordinários que são preenchidos por juízes, na base, essencialmente, de carreira.
Portanto, concordaria com uma modificação do n.º 3 do artigo 15.º da Constituição, mas não adoptaria a fórmula proposta pelos Deputados do Partido Social Democrata, até
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porque é algo redundante estar a falar dos cidadãos da República Federativa do Brasil e dos demais Estados de língua oficial portuguesa, pois basta falar em Estados de língua portuguesa.
Por outro lado, também entendo que não interessaria estar agora a falar em residência permanente ou não, porque o sentido do n.º 3 do artigo 15.º, em conjugação, já hoje, com a Convenção do Brasil e com outras convenções que venham, eventualmente, a ser celebradas com outros países de língua portuguesa, naturalmente, pressupõe a residência. Não é necessário uma fórmula pela positiva, bastará manter a fórmula adoptada no n.º 3 actual.
Portanto, deve estabelecer-se o princípio de que podem ser atribuídos determinados direitos e, depois, exceptuar o acesso a certos cargos, que seriam, a meu ver, repito, os de Presidente da República, Presidente da Assembleia da República, membros do Governo, juízes do Tribunal Constitucional e mais nenhum. Naturalmente, como sucede no Brasil, deve exceptuar-se também a carreira diplomática e o serviço nas Forças Armadas.
Os Deputados do Partido do Centro Democrático Social - Partido Popular propõem uma modificação do artigo 34.º, no tocante à entrada no domicílio dos cidadãos durante a noite. Não tenho grande simpatia por esta alteração. Embora admita que a previsão da "Ordem de autoridade judicial (…)" já seja uma garantia, receio uma utilização desta faculdade em termos arbitrais.
Em relação aos direitos das associações sindicais e contratação colectiva, entendo que já hoje, mesmo sem revisão constitucional, seria possível admitir a liberdade sindical nas forças de segurança, tendo em conta a ratio desse artigo 270.º. Mas, se se entender que é necessário especificar a referência à greve, então, o lugar próprio será esse mesmo artigo 270.º. segundo este preceito, "a lei pode estabelecer restrições ao exercício dos direitos de expressão, reunião, manifestação, associação e petição colectiva e à capacidade eleitoral passiva dos militares e agentes militarizados dos quadros permanentes em serviço efectivo, bem como por agentes dos serviços e forças de segurança (…)", pelo que bastaria acrescentar a expressão "e do direito à greve". Bastaria acrescentar, a seguir à expressão "capacidade eleitoral passiva", a expressão "direito à greve".
Não vejo, pois, qualquer razão para se acrescentar mais outro número, particularmente no artigo 56.º, engordando ainda mais, desculpem-me a expressão, a Constituição. Aliás, não me parece que seja o lugar próprio; o lugar próprio seria justamente o artigo sobre restrições ao exercício de direitos. E seria uma deficiente técnica legislativa colocar essa restrição no artigo 56.º, quando já há um artigo genérico sobre restrições ao exercício de direitos.
Portanto, quer em relação ao projecto de Deputados do Partido Social Democrata, quer em relação ao projecto de Deputados do Centro Democrático Social, a minha posição é contrária. Se se entende que se deve constitucionalizar ou especificar constitucionalmente uma restrição quanto ao direito à greve, então, que se coloque no artigo 270.º e não aqui, no artigo 56.º.
Finalmente, chego a um ponto que me é particularmente caro, que é o respeitante ao princípio da renovação. Já na Assembleia Constituinte, quando foi votado o que é hoje o artigo 118.º (e que era, inicialmente, o artigo 121.º), tinha preconizado - e, curiosamente, ficaria na epígrafe - a consagração desse princípio com todas as suas consequências. A Assembleia apenas aprovou a primeira parte daquilo que propus: "Ninguém pode exercer a título vitalício qualquer cargo político de âmbito nacional, regional ou local"; e aquilo que eu tinha proposto era ainda "nem por períodos sucessivos indefinidamente renováveis". A fórmula toda era a seguinte: "Ninguém pode exercer a título vitalício qualquer cargo (…) nem por períodos sucessivos indefinidamente renováveis". Ora, continuo a entender que essa seria a solução mais adequada, e a mais adequada por obrigar a lei, salvo inconstitucionalidade por omissão, a estabelecer limites à renovação dos cargos políticos. Nessa altura, isso não foi aprovado, talvez porque, em 1976, se pensasse que era prematuro aprová-lo, mas hoje, 25 anos depois, ainda se torna mais necessário aprová-lo, a meu ver.
Devo dizer que a minha intenção era a de não só abranger o Presidente da República mas também todos e quaisquer cargos políticos, incluindo Deputados à Assembleia da República e às assembleias legislativas regionais, às assembleias municipais ou membros do Governo, etc., em consonância com o princípio republicano da limitação temporal e da renovação periódica no tocante ao exercício de cargos políticos.
Como VV. Ex.as sabem, a questão tem sido muito discutida a respeito dos presidentes de câmara municipal. Tem-se entendido que não é possível resolver a questão neste domínio sem a revisão constitucional. O Tribunal Constitucional também já assim entendeu uma vez - a meu ver mal, com o devido respeito. E entendeu mal porque só em relação ao estatuto de titulares de cargos políticos que esteja completamente definido na Constituição é que teria de haver revisão constitucional; e, pelo contrário, no respeitante ao estatuto dos titulares de cargos do poder local seria possível a alteração, pois este não é um estatuto todo constitucional, ao contrário do que acontece com o estatuto dos titulares dos órgãos de soberania. Mas agora, e bem, retoma-se o problema, ainda que em termos não tão satisfatórios quanto eu desejaria.
É que, quer no projecto de Deputados do Partido Social Democrata quer no de Deputados do Partido do Centro Democrático Social, apenas se dá uma faculdade à lei e não uma obrigação.
Além disso, no projecto do Partido Social Democrata, apenas se abrangem cargos de natureza executiva e de duração certa. Portanto, não se abrangeria, por exemplo, os Deputados à Assembleia da República. Ora, permitam-me que o diga, acho que também neste último caso deve haver limitação de mandatos, tal como no caso de deputados às assembleias municipais e às assembleias legislativas regionais. Por outro lado, no projecto do Partido Social Democrata, faz-se referência a cargos designados por sufrágio directo e universal. Ora, se no futuro, por exemplo, o presidente de uma câmara municipal passar a ser eleito pela assembleia municipal, já não estará abrangido, de acordo com o que é assim proposto. Deverá haver aqui uma correcção, permitam-me que diga.
Naturalmente, a alteração constitucional a aprovar agora só valerá para o futuro, nunca para o passado. Portanto, os que estão há 25 anos no exercício de funções podem estar tranquilos, pois ainda têm mais 8, 10 ou 12 anos pela frente. Podem estar tranquilos, pois poderão até envelhecer no exercício desses cargos…
Terminaria aqui, reiterando a minha forte convicção, em nome dos princípios constitucionais e da experiência das últimas duas décadas, de que seria altamente vantajoso e
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necessário que, no mínimo, se fosse para uma fórmula em que se explicitasse que a lei poderia estabelecer limites à sucessão indefinida de mandatos.
Sr. Presidente, Srs. Deputados, era isto que tinha a dizer. Acabei por demorar mais do que pretendia, mas todas estas matérias são vastas e aliciantes.
O Sr. Presidente: - Sr. Professor, muito obrigado pela sua exposição.
Vamos passar à fase de perguntas. Peço desde já aos Srs. Deputados que façam perguntas e não intervenções, dado que o Sr. Professor comunicou-nos que tem problemas de tempo pois tem de comparecer noutro local.
Tem a palavra o Sr. Deputado António Filipe.
O Sr. António Filipe (PCP): - Sr. Presidente, Sr. Professor Jorge Miranda, far-lhe-ei mesmo uma pergunta, e muito breve, não sem antes agradecer a contribuição que nos trouxe.
A pergunta que vou colocar-lhe diz respeito a matéria do artigo 270.º.
Registei a opinião que o Sr. Professor nos transmitiu acerca da proposta que é feita.
Assim, relativamente a uma categoria de cidadãos de entre os previstos no artigo 270.º - militares, agentes militarizados dos quadros permanentes em serviço efectivo ou agentes das forças e serviços de segurança -, no caso concreto, agentes de serviços e forças de segurança, e no que diz respeito a uma lei que lhes atribua um determinado tipo de direitos, designadamente o direito à constituição de uma associação sindical, ainda que com limitações decorrentes do seu estatuto, gostaria de saber se o Sr. Professor considera que tal lei pode ser considerada restritiva de direitos nesta acepção do artigo 270.º.
O Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda: - Sr. Deputado, a questão é que o direito de associação sindical é um direito geral dos trabalhadores. Portanto, esse direito decorre do artigo 55.º. Faz parte da liberdade sindical o direito de constituição de associações sindicais.
Embora o artigo 55.º não o diga directamente, tem-se entendido que faz parte do núcleo de direitos das associações sindicais o direito de promover a greve. Portanto, uma norma que estabeleça restrições ao direito à greve é uma norma restritiva. O princípio geral é o princípio da liberdade, aliás, também em relação a outros direitos, como a liberdade de expressão e o direito de petição, que já constam do artigo 270.º.
Para haver restrições, de duas uma: ou se estabelecem as restrições artigo a artigo ou, então, faz-se apelo - como a Constituição faz, e parece-me bem - a uma cláusula de carácter geral, como a do artigo 270.º, no âmbito da Administração Pública, salientando que essas pessoas são funcionários ou agentes da Administração Pública - do Estado ou de entidades públicas.
Portanto, parece-me que a solução mais natural será a de inserir no artigo 270.º uma referência ao direito à greve para resolver esse problema que tem sido posto.
Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Secretário Narana Coissoró.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, começo por cumprimentar o Sr. Prof. Jorge Miranda.
Embora tenha sido feito um apelo para não fazermos outras considerações, apesar de tudo não resisto a fazer a consideração de que estou inteiramente de acordo com o que o Sr. Professor acaba de referir relativamente à reflexão sobre o âmbito de aplicação do artigo 270.º e creio firmemente que é nessa sede que deve ser feita alguma clarificação, se é que há que fazê-la.
A questão que gostaria de colocar-lhe gira em torno da problemática do TPI e da cláusula geral e da reflexão que o Sr. Professor nos fez relativamente ao problema das imunidades dos titulares de cargos políticos.
Creio que, tendo em vista a irrelevância da qualidade oficial que está colocada no âmbito do Estatuto do TPI, provavelmente, o problema que temos não é, talvez, o de harmonizar em especial a nossa Constituição para permitir, em princípio, que um titular de um órgão de soberania portuguesa fosse demandado pelo TPI, porque, tal como estamos a propô-la, a cláusula geral já diz que o Estatuto do TPI é aceite nas condições e nos termos previstos nesse mesmo Estatuto, logo, aceitando a irrelevância da qualidade oficial dos titulares de cargos políticos e de soberania.
A meu ver, o problema que existirá, para o qual abriremos ou não uma solução, é o de nos perguntarmos a nós próprios se, um dia, um titular de um órgão de soberania português estivesse na circunstância de poder ser demandado pelo TPI e a jurisdição penal portuguesa quisesse actuar em primeira mão, aí, sim, apareceria uma desconexão de solução para a possibilidade de o julgamento interno prevalecer no regime das imunidades tal como a Constituição as define e, entretanto, para a entrega ao TPI, esse regime de imunidades não prevaleceria.
Creio que é neste ponto que reside a nossa dificuldade, ainda não suficientemente encarada de frente, pelo que gostaria de conhecer o ponto de vista do Sr. Professor com um pouco mais de pormenor.
O Sr. Presidente (Narana Coissoró): - Sr. Professor Jorge Miranda, faça favor.
O Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda: - Julgo que o Sr. Deputado Jorge Lacão coloca muito bem o problema. Realmente, a questão tem muito que ver com isso.
Na verdade, se há, pura e simplesmente, o Tribunal Penal Internacional, funcionarão os mecanismos do mesmo e, eventualmente, todo o sistema desse Estatuto resolverá as questões. Isto, se o nosso Código Penal for revisto, como parece que vai ser.
De facto, já há pouco se falou em que, de acordo com o princípio da universalidade de aplicação da lei penal no espaço, o nosso Código Penal terá de ser revisto para abranger também os crimes previstos e punidos no Estatuto de Roma. Assim, para um tribunal português, eventualmente, vir a julgar e a punir um titular de um cargo político, tendo em conta as cláusulas específicas que aparecem, por exemplo, a respeito dos Deputados e dos membros do Governo, pode haver aí uma grave dificuldade. Também nos estatutos das regiões autónomas algo de semelhante aparece quanto aos titulares de cargos do poder regional.
Por outro lado, nós temos algo que, de certa maneira, é uma singularidade em direito comparado: uma lei de responsabilidade criminal dos titulares dos cargos políticos, a Lei n.º 34/87, de 16 de Julho.
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Portanto, julgo que, como bem sugeriu o Deputado Alberto Costa, é necessário tomar consciência do problema e, para tirar qualquer dúvida, encontrar uma fórmula no género da que preconizei, ou outra.
No entanto, neste momento, penso que não é suficiente a cláusula geral, no artigo 7.º ou noutro qualquer artigo.
Entretanto, reassumiu a presidência o Sr. Presidente José Vera Jardim.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado Matos Correia, peço-lhe desculpa, porque estava inscrito primeiro, mas tive de sair e esqueci-me de deixar essa indicação à Mesa.
Tem a palavra, Sr. Deputado.
O Sr. José de Matos Correia (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Professor Jorge Miranda, muito obrigado pela sua exposição e pela clareza com que nos transmitiu os seus pontos de vista relativamente a estas diversas questões.
Para ser sintético e corresponder ao pedido do Sr. Presidente, apenas lhe formularei brevíssimas interrogações.
Em primeiro lugar, a propósito da questão do artigo 7.º.
O Sr. Professor diz-nos que prefere a inserção do ponto relativo ao Tribunal Penal Internacional no artigo 7.º justamente porque este é, digamos, o artigo director da acção do Estado na área das relações internacionais. Como sabe, essa é também a nossa própria predilecção.
A questão que gostaria de deixar-lhe é a de saber, face a essa inserção sistemática da nossa proposta, se entende que uma formulação um pouco mais seca, que diga apenas que aceitamos a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, é adequada face à inserção sistemática que tem no artigo 7.º, repito.
É que o artigo 7.º é em grande medida programático, de direcção da acção externa do Estado, pelo que pergunto se entende que será suficiente uma fórmula seca que apenas diga que Portugal reconhece ou aceita a jurisdição prevista no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional.
Em segundo lugar, relativamente a esta questão, também gostava de ouvir a opinião do Sr. Professor sobre o ponto que se prende com a proposta apresentada pelo Partido Socialista e que tem sido tratada noutras ordens constitucionais. Gostaria, pois, de saber se considera que vale a pena referir expressamente a formulação, esta ou outra, "nas condições previstas no Estatuto". E explico por que é que surge esta minha dúvida.
O Estatuto de Roma prevê revisões. No momento em que dizemos que aceitamos a jurisdição do Tribunal "nas condições previstas no Estatuto" pergunto-lhe se, porventura, uma futura revisão do Estatuto, que pode entrar em vigor em Portugal por uma aprovação neste Parlamento por uma qualquer maioria parlamentar, não poderá vir a introduzir na ordem jurídica portuguesa, por causa deste segmento autorizativo da norma, coisas que, em princípio, não estamos interessados em que entrem em vigor em Portugal.
Por último, uma questão ainda relativa ao artigo 7.º mas, neste caso, ao seu n.º 6.
Já que estava a falar numa lógica de titulação ou de autorização para vigorarem em Portugal normas vindas do espaço internacional ou europeu, vou pegar um pouco no que o Sr. Professor dizia há pouco a propósito do artigo 33.º.
Pergunto-lhe se não considera excessivo uma cláusula como a prevista no artigo 7.º, n.º 6, do projecto do Partido Socialista, que diga, sem mais, que Portugal pode convencionar o exercício comum de poderes necessários, ainda que em condições de reciprocidade e com respeito por certos princípios, de poderes visando a construção de um espaço de liberdade, segurança e justiça.
É que não é a mesma coisa fazer esta referência a propósito da coesão económica e social ou de um espaço de liberdade, segurança e justiça, sobretudo, julgo eu, em função da dimensão subjectiva que se prende necessariamente com as garantias e com os direitos fundamentais dos cidadãos que são tocados pelo espaço de liberdade, de segurança e de justiça e que, mais mediatamente, serão atingidos pela coesão económica e social.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra, Sr. Prof. Jorge Miranda.
O Sr. Prof. Doutor Jorge Miranda: - Sr. Presidente, Sr. Deputado Matos Correia, quanto à primeira pergunta, o artigo 7.º não é um artigo programático, a meu ver. Tem algumas normas programáticas, como as dos n.os 2 e 5, mas possui também normas preceptivas. O n.º 1, com a consagração dos grandes princípios de jus cogens, é claramente uma norma preceptiva; e da mesma maneira, quando no n.º 3 se refere que "Portugal reconhece o direito dos povos à autodeterminação (…)", essa é também uma norma preceptiva e não programática. Portanto, o artigo 7.º é muito heterogéneo.
De qualquer modo, uma fórmula seca não me parece que tivesse grande mal. A única coisa que talvez possa dizer é que, tendo em conta que no n.º 6 se estabelece que "Portugal pode (…)", talvez fosse conveniente dizer-se "Portugal aceita", ou "Portugal reconhece", ou "Portugal pode aceitar (ou pode reconhecer)", por uma questão de homogeneização da terminologia. Agora, não me parece que o artigo 7.º seja tão seco como isso, já que tem um conteúdo que pode ser - e tem sido -densificado.
Relativamente à segunda pergunta, com o devido respeito, a meu ver não há diferença entre aquilo que os Deputados do Partido Social Democrata e os Deputados do Partido Socialista preconizam, porque os Deputados do Partido Socialista dizem, no que seria o artigo 298º-A, que "Portugal pode reconhecer (…)" "(…), nas condições nele previstas." e os do Partido Social Democrata dizem "(…) conforme estabelecido no Estatuto de Roma.", isto é, se o Estatuto de Roma for modificado é também o "estabelecido". Quer num caso quer no outro, está a admitir-se… De resto, em relação ao direito internacional, o princípio é de recepção formal e, se Portugal celebra um tratado e esse tratado amanhã é modificado, automaticamente as modificações do tratado, desde que Portugal as aceite, vão também vigorar na ordem interna portuguesa.
Portanto, a meu ver, não há nenhuma diferença substantiva entre aquilo que os Deputados do Partido Social Democrata e os Deputados do Partido Socialista preconizam. É exactamente igual!… As formas são algo diferentes mas as consequências são totalmente iguais.
Quanto à última questão, aí concordo com o Sr. Deputado José de Matos Correia. No artigo 33.º, já hoje, depois da revisão de 1997, se estabelecem condições em que é admitida a extradição de cidadãos portugueses e também a extradição em relação a crimes previstos com a pena privativa de liberdade com carácter perpétuo. Eventualmente, essas normas já seriam suficientes para resolverem problemas de cooperação judiciária a nível europeu, mas talvez não sejam. De todo o modo, penso
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que esta referência geral a um espaço de liberdade, de segurança e de justiça nunca poderia ser interpretada como traduzindo uma diminuição de direitos fundamentais dos cidadãos portugueses ou até de outros cidadãos, tal como se encontra consignado no artigo 33.º. Aí é que "um espaço de liberdade, de segurança e de justiça" é claramente uma norma programática.
Portanto, a consagração de direitos fundamentais ou de direitos ligados a um princípio de garantia dos acusados ou de respeito da dignidade da pessoa humana haveria sempre de prevalecer sobre a referência muito genérica a um espaço de liberdade, de segurança e de justiça.
O Sr. Presidente: - Muito obrigado, Sr. Professor.
Não havendo mais inscrições, apresento, mais uma vez, Sr. Professor, os nosso agradecimentos pela sua cooperação muito frutuosa para esta Comissão Eventual para a Revisão Constitucional e as nossas desculpas pelo atraso dos nossos trabalhos, que espero não lhe tenham causado problemas.
Pausa.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, antes de iniciar a audição do Sr. Prof. Doutor Adelino Maltez, gostaria de fazer convosco um ponto da situação dos trabalhos.
Relativamente à reunião nocturna que, inicialmente, tínhamos marcado, penso haver consenso no sentido de não a realizarmos. De qualquer modo, está marcada para o próximo dia 29, de manhã, apenas às 11 horas e 15 minutos, a reunião com os representantes da Secção Portuguesa da Amnistia Internacional. Da parte da tarde, às 15 horas e 30 minutos - e marquei às 15 horas e 30 minutos visto que é um dia que, tudo leva a crer, o Plenário poderá acabar tardiamente -, teremos aqui o Sr. Comissário Europeu, António Vitorino. Finalmente, no dia 3 de Julho terminaremos as audições.
Estamos aguardando a confirmação, mas espero que ela venha uma vez que mantive contactos com os respectivos gabinetes, da presença do Sr. Ministro da Justiça e da do Dr. Mário Soares, de manhã, para audições com início às 10 horas.
Também aguardam confirmação as últimas três audições, ou seja, a do Prof. Vital Moreira, a do Prof. Gomes Canotilho e a do Fórum Justiça e Liberdades. Destas ainda não temos confirmação alguma.
Infelizmente, como o Prof. Marcelo Rebelo de Sousa nos comunicou que não estaria disponível durante o mês de Julho, naturalmente não teremos o prazer de o ouvir.
É tudo, Sr. Deputados. Se houver alguma questão a colocar, agradeço que o façam.
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - E o Dr. Mário Soares?
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, o Dr. Mário Soares será ouvido no próximo dia 3. Nesse dia ouviremos o Sr. Ministro da Justiça e o Dr. Mário Soares, da parte da manhã. Quanto à parte da tarde, aguardamos ainda as confirmações do Prof. Vital Moreira, do Prof. Gomes Canotilho e do Fórum Justiça e Liberdades.
Srs. Deputados, vamos, então, iniciar a audição do Prof. Doutor Adelino Maltez.
Sr. Professor, os meus agradecimentos, em meu nome e em nome de todos os Srs. Deputados, por se ter disponibilizado para esta audição. Tivemos ocasião de enviar-lhe os diversos projectos existentes de revisão constitucional e, naturalmente, o Sr. Professor é livre de se pronunciar sobre as matérias que entender. De qualquer modo, a ideia inicial foi fazer incidir esta audição, muito particularmente, sobre os aspectos relacionados com o Tribunal Penal Internacional, com a União Europeia e com a igualdade de direitos entre cidadãos de países de língua oficial portuguesa. Mas, como é evidente, V. Ex.ª poderá pronunciar-se, se assim entender, sobre outros aspectos presentes nesta Comissão Eventual para a Revisão Constitucional, através de projectos apresentados pelos vários partidos.
Começaremos com uma intervenção de V. Ex.ª e, embora não querendo marcar tempo, como os trabalhos se atrasaram um pouco, penso que cerca de 15 minutos seria o tempo adequado para tal, a que se seguiria uma fase de perguntas.
Tem a palavra.
O Sr. Prof. Doutor Adelino Maltez: - Sr. Presidente e Srs. Deputados, é com muita honra - e isto não é por retórica - que venho a esta Casa dos representantes do povo da República Portuguesa dar o meu testemunho sobre o processo de revisão constitucional em curso. E vou ter sobretudo em conta os efeitos da criação do Tribunal Penal Internacional.
Desde já aviso - e estão aqui alguns antigos alunos meus e também alguns professores - que não venho aqui invocar os meus pergaminhos de estudante de Direito Constitucional, já que ilustres mestres dessa corrente científica aqui estão - e estarão - presentes.
Apenas me congratulo pelo facto de se ter dado voz, não a uma pessoa mas, sobretudo, talvez, a um método científico - e tenho aqui alguns aliados entre os Srs. Deputados -, o da escola politológica a que me honro de pertencer (uma subescola dentro da escola): a perspectiva um pouco neoclássica ou tradicionalista da ciência política, aquilo a que agora é moda dar-se o nome de teoria política - eu não digo political theory, digo teoria política - ou, como alguns mais antigos conhecem, filosofia do direito e do Estado, que é o nome português que dávamos a estas coisas. E quero falar um pouco em nome daquilo que é algum jusnaturalismo praticado, desde o Século XVI - e peço desculpa por alguns dos vossos ouvidos não estarem, certamente, habituados a isso -, pela Escola Peninsular de Direito Natural.
Invocando esta minha posição institucional, vou tentar dizer alguma coisa, mas antes disso vou "meter uma cunha".
Ilustres Deputados, deixem-me "meter esta cunha": Portugal é uma centenária democracia, o nosso Parlamento é herdeiro, como se pode ver na Sala do Senado, de um dos primeiros parlamentos europeus, iniciado em Dezembro de 1253; VV. Ex.as são herdeiros dos senhores representantes do povo que, em 1640, iniciaram talvez a primeira revolução atlântica do mundo ocidental e considero inadmissível que, no ano 2001, textos fundamentais da teoria da democracia ocidental continuem não publicados, sobretudo o texto de um nosso ancestral, Francisco Velasco Gouveia, que foi publicado apenas em 1641 e que continua a ser ocultado.
Por que é que todos nós continuamos a obedecer ao Sr. Marquês de Pombal e ao despotismo esclarecido que baniu do ensino e que baniu da publicação, em Portugal, o texto fundacional daquilo que eu considero a democracia portuguesa? A República dos portugueses de 1640, tal como a República dos Países Baixos, foram duas únicas formas que iniciaram aquilo que eu considero a "revolução atlântica", que precedeu a Revolução Francesa, que
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precedeu a Revolução Americana, que precedeu a Revolução Inglesa. É uma pequena "cunha": por que é que o Parlamento português não copia um pouco o parlamento brasileiro? Textos fundamentais do "demoliberalismo" português, como o de Silvestre Pinheiro Ferreira, são editados no Brasil e desconhecidos entre os portugueses!
Dito isto, acrescento mais duas coisas.
Recuso-me, evidentemente, a alinhar na tenaz binária dos que em qualquer polémica visionam uma luta da direita contra a esquerda ou dos reaccionários contra os progressistas, invocando a soberba superioridade do sítio onde estão.
Julgo que um dos mais graves pecados que os homens cometeram no século XX foi o de, à direita e à esquerda, terem justificado totalitarismos e autoritarismos, invocando as boas intenções utópicas dos realizadores destes processos.
O que está aqui em causa, nesta revisão constitucional, julgo eu, é precisamente saber qual é o remédio eficaz que a Humanidade pode ter contra sementes de totalitarismo e autoritarismo. E, muito humildemente, temos de reconhecer que tanto à direita como à esquerda temos as mãos sujas. Todos pecámos e todos temos o dever do arrependimento, muito especialmente nesta pequena Casa lusitana, onde apesar das belíssimas leis de 1867, que aboliram a pena de morte, e das de 1884, que baniram a prisão perpétua, eis que, em nome do Estado, da legalidade, da soberania, da Humanidade ou da Nação, à esquerda e à direita, todas as famílias portuguesas pecaram por acção e por omissão.
As manifestações opinativas sobre a questão do Tribunal Penal Internacional foram, até agora, na minha opinião, emotivamente epidérmicas. As dúvidas e as oposições de personalidades como Pacheco Pereira, Garcia Pereira, D. Manuel Gonçalves Martins ou do Bastonário da Ordem dos Advogados, António Pires de Lima, invocando a nossa cultura humanista, a independência nacional ou o desencanto neomaquiavélico do realismo político, foram suficientemente compensadas, a meu ver, por posições públicas de constitucionalistas como os Professores Jorge Miranda ou Vital Moreira, de sociólogos como o Professor Boaventura Sousa Santos, ou do "bom senso" de alguns ilustres parlamentares que aqui estão presentes.
Curiosamente - e é isso o que eu queria fazer -, poucos compararam a situação constitucional portuguesa com o modelo brasileiro, também preso às mesmas restrições da prisão perpétua, até porque temos vindo a influenciar-nos mutuamente.
O universo do pensamento jurídico e político brasileiro, desde logo, teve como opinião comum, isto é, a opinião dos que pensam de forma racional e justa, a distinção entre princípios e regras constitucionais, admitindo-se a prioridade dos valores da dignidade da pessoa humana e do respeito pelos Direitos do Homem. Os princípios são superiores às regras - há uma hierarquia constitucional.
Enumerei no depoimento que fiz para esta audição - e não vou agora invocar a buchenschaft, a ciência livresca - uma série de autores brasileiros que recentemente vieram alinhar com os argumentos da Amnistia Internacional, da Cruz Vermelha Internacional, de antigos intervenientes no processo de Nuremberga, isolando vozes como a de Jess Helms, presidente da comissão de relações externas do senado norte-americano.
Não venho aqui alinhar nos argumentos de grupos de pressão, como os da Sovereignty International, para recuperarmos para o debate os grandes princípios dos restauradores da ideia de res publica christiana, que agora está laicizada desde S. Tomás de Aquino, ou do jus gentium, como o fizeram os espanhóis e os portugueses da Escola Peninsular de Direito Natural, que estiveram na base, como já disse, dos nossos juristas da Restauração e da gloriosa "revolução atlântica", bem como do actual modelo de Estado de direito.
Srs. Parlamentares, a nossa tradição parlamentar do século XIX deu-nos nomes que continuam esquecidos, como o vintista José Máximo Pinto da Fonseca Rangel, que logo em 1821 edita um Projecto de Guerra contra as Guerras, ou da Paz Permanente oferecido ao Chefes das Nações Europeias, onde isto estava resolvido através do sonho kantiano.
Salientemos o papel pioneiro de Vicente Ferrer de Neto Paiva que, como professor de direito, logo em 1857, na sua Philosophia do Direito, resolvia esta questão.
Assinalemos, para os republicanos não ficarem tristes, o papel de um Bernardino Pinheiro que, com o seu Ensaio sobre a Organização da Sociedade Universal, de 1859-1860, o qual continua esquecido, liminarmente oferecia esta solução.
Em Portugal, todos estes cultores da ideia que agora pretende constitucionalizar-se, sem equívocos, sabiam que a justiça era a mãe do direito (isto não é retórica), que o direito era superior à lei, que a soberania não poderia ser endeusada (isso é uma coisa lá dos franceses, de 1576, do Jean Bodin - quatro anos antes de desaparecermos, foi a soberania que nos matou e foi Miguel de Vasconcelos o primeiro teórico português de soberania), que o Estado também era uma coisa de outro tempo: a primeira vez que o Estado foi "baptizado" foi em 1532, com a publicação da obra de Maquiavel. E, em 1531, onde é que nós já estávamos com os velhos princípios que agora querem regressar!
Seguindo o mote de Fernando Pessoa, a Nação é apenas um meio de criarmos uma civilização superior. Apenas isso, não é o fim, é o ponto de partida. O Estado não é uma coisa, é um processo. E deixem-me que mais uma vez cite Pessoa, num velho texto que eles escreveu contra os prussianos durante a guerra de 1914/1918: o Estado está acima do cidadão - sem dúvida! -; mas o Homem está acima do Estado. Logo, em nome destes princípios, é evidente que me congratulo com a clareza e a coragem de alguns parlamentares portugueses que assumiram sem reservas a adesão ao princípio que considero a semente do verdadeiro direito universal.
A velha ordem internacional, nascida em Yalta, Bretton Woods, São Francisco e Potsdam, essa que fez os julgamentos de Nuremberga, mas que teve de esquecer-se do massacre de Katyn, a tal ordem que se consolidou pela chamada Guerra Fria, se foi simbolicamente derrubada em 1989, ainda não lançou suficientes sementes de esperança para a nova orgânica internacional. Porquê? Porque se mantém em vigor um modelo de Direito Internacional Público que talvez não tenha suficiente justiça para ser efectivo direito, que não tem um mínimo de autodeterminação para se dizer "inter-nacional", nem uma altura adequada de fins para ser público.
Por outras palavras, a nova ordem ainda não pode ter um mínimo de justiça mundial porque o direito que a rege ainda não é suficientemente válido, faltando-lhe os adequados requisitos da vigência e da eficácia, as três dimensões do jurídico indispensáveis para que a justiça não seja impotente.
Infelizmente, temos de concluir que, por enquanto, continuamos a viver em regime de vazio de justiça mundial já que os Estados ainda se assumem como superiores à pessoa humana e as soberanias não querem submeter-se a algo muito simples: à moral e ao direito.
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Primeiro, invocamos o Estado de direito e esquecemos que, cá, entre nós, houve Estados que não eram democráticos nem de direito mas que sempre se assumiram como Estados de legalidade - estou a falar do Estado Novo -, acirrando o normativismo positivista na formação dos juristas e inscrevendo no portal dos tribunais o lema do dura lex, sed lex.
Em segundo lugar, houve Estados democráticos que começaram por não ser Estados de direito, que é o nosso caso, na Constituição originária de 1976 - e não vou agora invocar os inimigos da consagração do princípio do Estado de direito na redacção inicial de 1976.
Em terceiro lugar, há Estados de direito que ainda não assumiram a plenitude do Estado de justiça.
O Estado de direito não é uma mera palavra, é alguma coisa mais.
Srs. Deputados, fiz um trabalho de casa, por isso não vou desenvolver muito mais esta minha intervenção inicial. Digo apenas que há uma hierarquia de normas constitucionais e qualquer leitura do nosso texto constitucional que seja marcada por esta postura pode concluir que num Estado de direito como o nosso há uma hierarquia de normas, dado que os princípios prevalecem sobre as regras. Não sou original, dado que foi assim que no Brasil se resolveu a questão exactamente igual à nossa.
Os princípios da dignidade da pessoa humana e da prevalência dos Direitos do Homem não são, no âmbito da nossa Constituição, realidades metajurídicas, dado que, através de cláusulas gerais, positivámos o que de essencial havia nas reivindicações do jusnaturalismo e do jusracionacionalismo, naquilo que hoje deveria dar-se o nome de direito da razão ou de direito universal. E é em nome destes princípios fundamentais que saúdo o desbloquear do texto constitucional português e a sua abertura ao mecanismo do Tribunal Penal Internacional.
Vou concluir, para depois fazer uma eventual troca de impressões, dizendo o seguinte: é evidente que não sou parvo, que tenho os pés assentes no chão. O que está aqui em causa, nesta adesão, é o facto de se se tratar de uma adesão civilizacional. Não vamos resolver nada, porque é evidente que ninguém vai pôr o Sr. Kissinger em tribunal, nem ninguém vai pôr o Sr. Putin em tribunal, mas esta é uma luta pela civilização!
É evidente, e citando Carl Smith, que se houver uma situação excepcional, as decisões prevalecerão sobre a razão, mas este é um elemento subversivo da ordem mundial instalada, esta é uma luta pela civilização, uma luta educativa. Não vamos chegar ao fim dos tempos e à gloriosa vitória da justiça sobre a força, mas podemos dar um bocado de força à justiça se nos soubermos colocar no devido lugar. E o devido lugar é esta técnica - não entro nesta, não sou constitucionalista, não percebo… Até tenho escrito coisas contra este modelo de "código constitucional", pois gosto mais dos actos adicionais. Um qualquer acto adicional que abrisse a porta, a nível de regras, àquilo que a nossa Constituição já tem consagrado nos princípios, resolveria a situação.
Portugal não pode fugir a este combate, a esta luta pela Constituição, a esta luta pela justiça.
Não venho ensinar nada aos Srs. Deputados, porque subscreveria grande parte dos discursos dos que, com coragem, no momento em que a opinião pública portuguesa foi confundida, souberam colocar no devido lugar a hierarquia deste belo princípio, desta bela luta que a Amnistia Internacional, a Cruz Vermelha Internacional e as forças fundamentais fizeram, sobretudo contra a hegemonia e a relutância da actual superpotência, que não quis, numa primeira fase, alinhar com este belíssimo texto.
Em nome da filosofia dos pequenos Estados, em nome do futuro da justiça mundial, tenho crença, esperança e penso que devo saudar os Srs. Deputados por terem, na maior parte dos casos, assumido este princípio da luta da justiça contra a força.
O Sr. Presidente: - Muito obrigado, Sr. Professor, pela sua exposição, pelo seu depoimento.
Para pedir esclarecimentos, inscreveram-se os Srs. Deputados Fernando Seara e Jorge Lacão.
Tem a palavra o Sr. Deputado Fernando Seara.
O Sr. Fernando Seara (PSD): - Sr. Presidente, começo por cumprimentar o Professor Adelino Maltez. Permita-me saudá-lo porque penso que é importante, no âmbito de uma reflexão prévia da revisão constitucional, termos todas as perspectivas da realidade do pensamento político.
A reflexão que nos trouxe, e que já pude ler, é, como sempre, estimulante. Queria saudá-lo por isso, até porque as duas intervenções da manhã, uma muito comunitarista e outra excessivamente constitucionalista, deixam-me sempre com a angústia do positivismo. Partilho das suas perspectivas, como é público e notório, e permitia-me colocar-lhe duas questões concretas, que são questões normativas e que obrigarão V. Ex.ª a descer ao normativo.
A primeira questão, ou reflexão, tem a ver com o artigo 15.º e a proposta formulada neste âmbito, principalmente com a noção de nova comunidade e de necessidade de concretização daquilo a que se pode chamar - e a que o Sr. Professor chamou - a "revolução atlântica".
V. Ex.ª entende ser constitucionalmente urgente a consagração dos princípios constantes do projecto de revisão constitucional do PSD acerca do artigo 15.º, sem entrar, aqui, nas questões delimitadas há pouco pelo Professor Jorge Miranda sobre a não necessidade de discriminação entre os cidadãos da República Federativa do Brasil e dos demais cidadãos de língua oficial portuguesa ou sem entrar nas questões do alargamento dos mecanismos de excepção aos membros do Governo à totalidade dos juizes do Tribunal Constitucional e não apenas ao Presidente do Tribunal Constitucional. Ou seja, esta nova comunidade que o globalismo suscita deve ou não ser entendida como uma urgência para os constituintes no sentido da inserção no espaço normativo português de uma cláusula deste tipo? E sendo certo que essa realidade da "revolução atlântica"… Não há "revolução atlântica" sem que o direito acompanhe os factos, sob pena de a disfuncionalidade ser real. Este é o primeiro aspecto e a primeira reflexão normativa (permita-me a ousadia) que suscito.
A segunda reflexão tem que ver necessariamente com essa lógica da justiça versus força, que o Professor delimitou e que, no fundo, está subjacente na consagração do Estatuto de Roma do TPI.
Gostaria agora de fazer uma pergunta concreta, Professor Adelino Maltez. Para além da querela das personalidades que suscitou e do facto de ignorarem, por exemplo, que Portugal está vinculado por uma recepção automática das resoluções do Conselho de Segurança ou dos tribunais ad hoc da Jugoslávia, do Burundi e Ruanda, a questão do TPI não implicará, por exemplo, a necessidade daquilo a que se pode chamar a recepção no direito ordinário penal e da cooperação penal portuguesa do conjunto dos crimes que o Estatuto de Roma suscita? Ou seja, o TPI também não implicará, com
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urgência simultânea, a "nacionalização" dos crimes consagrados no Estatuto de Roma?
Lá voltamos nós à nossa questão: se no artigo 15.º suscitamos o globalismo, no artigo 7.º, ou no artigo 298.º-A - não interessa aqui a inserção sistemática - suscitamos o localismo. Perante o seu ponto de chegada, queria que nos ajudasse, se fosse possível, nesta reflexão de concretização normativa.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, em primeiro lugar, gostaria de saudar a presença do Sr. Professor Doutor Adelino Maltez, que há muito tempo conheço e admiro, e de aproveitar a circunstância para procurar continuar esta reflexão, que diríamos, talvez não seja tão imediatamente útil à função mais mesquinha do legislador, mas que pode ser, naturalmente, estimulante para a reflexão que podemos ter o privilégio de fazer consigo.
Nesse sentido, vou colocar-lhe uma primeira questão, que é esta: do ponto de vista civilizacional, tem uma leitura actual do momento internacional pós-guerra fria, em que, aparentemente, a condução desse mundo internacional vai dando sinais contraditórios: de um lado há alguém que se arvora como "polícia do mundo", do outro lado há a tentativa de estruturar uma verdadeira comunidade internacional. A leitura que faz destes sinais contraditórios leva-o a ter uma perspectiva basicamente preocupada ou céptica relativamente à avaliação que faz dessa situação, ou mais confiante e mais optimista quanto aos sinais da possibilidade de configurar uma verdadeira relação internacional fundada nessa ideia dominante da justiça?
Uma segunda questão, de natureza diferente, prende-se com o artigo 15.º e os projectos de revisão constitucional em seu torno.
A possibilidade de construir uma comunidade lusófona identificada por uma igualdade de direitos políticos com base no princípio da reciprocidade, do seu ponto de vista, poderá significar mais uma continuação daquilo que há pouco invocou como a "revolução atlântica", com uma perspectiva de afirmação civilizacional de uma identidade lusófona, ou lusitana, se preferirmos, ou, pelo contrário, representa mais um sentido de abertura ecuménica a uma lógica multiculturalista, em nome de uma herança reconciliada da história portuguesa?
O Sr. Presidente: - Não havendo mais inscrições, tem a palavra o Sr. Professor Dr. Adelino Maltez.
O Sr. Professor Doutor Adelino Maltez: - Sr. Presidente e Ilustres Deputados, alguns conhecem o meu pensamento, permitam-me que diga esta heresia: eu advogo, e até defendi isso na minha dissertação de doutoramento, no final dos anos 80, que não há, não pode haver, um Estado só sobre o mesmo território e as mesmas pessoas. Isto é uma ficção.
Nós caminhamos para um mundo que foi aquele que já tivemos, que é o político como uma pluralidade de pertenças. A única realidade política é o indivíduo, é a pessoa. E a pessoa participa em vários círculos políticos. Cada um de nós é, ao mesmo tempo, cidadão da República dos portugueses (eu também gostava de ser da minha pequena pátria-chica, mas votaram contra a regionalização; também gostava de ter o meu espaço de pequena província…), cidadão europeu, também deveria ser cidadão de uma comunidade lusófona e, ao mesmo tempo, cidadão daquilo a que João Pinto Ribeiro, em 1640, chamava "república maior", a república universal (aquilo de que falava Kant).
Os nossos constitucionalistas ainda não se puseram de acordo sobre a forma como vão conciliar estes diversos círculos. É facílimo! Na Idade Média isso já acontecia e Portugal foi independente neste contexto: cada uma das repúblicas maiores tinha apenas competência para aquelas atribuições que lhe são cometidas.
O Tribunal Penal Internacional é um Estado mundial para aqueles efeitos! E para aqueles belos efeitos que o nosso Professor Eduardo Correia e o bom idealismo dos primeiros tempos da democracia portuguesa consagraram com tipificações que já estão no nosso código penal internacional. O TPI não nos ensina nada! Em termos de crime de genocídio, de crimes contra a humanidade, o nosso direito interno já os consagrou nos primeiros códigos penais da democracia portuguesa. O que há é grandes confusões teóricas!
Respondo, ou tento responder, dizendo o seguinte: nesta fase da globalização, ditada pelo pensamento único de escolas de Ciência Política e de Teoria das Relações Internacionais anglo-saxónicas, nomeadamente americanas, que são 90% da produção científica mundial, infelizmente, há uma confusão entre estes belos ideais kantianos, do Rangel e do Neto Paiva, com a tradicional hegemonia. Essa ideia considera que todos os centros políticos particulares devem ceder perante um deles para um eventual governo mundial! Ora bem, estou contra essa ideia, por isso é que disse, há pouco, que desconfiei muito da Sovereignty International e de alguns ideólogos da globalização que obedecem a um modelo destes! Isto gera incompreensões, como aquela que todos VV. Ex.as conhecem da confusão entre unitarismo e federalismo.
No discurso actual sobre a Europa, os mais federalistas de nome são os mais unitaristas. Eu, que sou claramente, sem medo, federalista, revolto-me contra o discurso federal do pensamento único europeu! Os que mais falam em federalismo acabam por ser tão ou mais centralistas que os unitaristas, ao advogarem, por exemplo, o imediatismo de um novo contrato, ou ao invocaram o federalismo funcionalista e gradualista que prevê, sem dor, a eliminação das autonomias anteriores! Nunca o Proudhon disse isto! Nunca o Kant disse isto!
A república universal não é um governo mundial, é a forma de os pequenos Estados poderem ter uma norma de direito que os ponha em pé de igualdade com os grandes Estados! Isto é que é a res publica universal; isto é que é a civitas humana; isto é que é o belo princípio do Wilson; isto é que é o falhado Pacto Briand-Kellog, dos finais do anos 20! E nós estamos a recuperar esta velha tradição.
Não sei se fui muito abstracto, mas quase dou uma resposta ao Professor Fernando Seara.
É evidente que eu concebo que o direito é igual à política. O Estado de direito é tão normativo quanto a democracia. Não há democracia em nenhum lado, nunca houve, nem na utopia, nem num paraíso terrestre!
Na educação da minha geração andámos todos à procura da democracia num sítio exótico, mas já chegámos à conclusão que nenhum outro país é mais democrático do que Portugal, porque também aqui não há democracia, e não há democracia como não há justiça. Mas ai de nós se não tivéssemos a exigência da democracia e da justiça para conformar todos os dias os actos do homem, uma
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espécie de anti-razão ao serviço da razão. Isso é que é um normativo!
A política é uma normativo tal como o jurídico. Estou aqui como politólogo a tratar de uma normativo tão normativo quanto o normativo codificado.
Não resisto a citar um grande professor de Filosofia de Direito, Gustav Radbruch. É que nós estamos a tentar ser médicos contra o totalitarismo que está dentro de cada um de nós. O que está aqui em causa é o totalitarismo e o seu disfarce autoritarista que pode vir de um momento para o outro. Nós temos de ter formas de resistir ao totalitarismo, e o totalitarismo começa na cabeça de cada um do nós - não é nos filmes de Hollywood que nós arranjaremos as sementes, é na educação cívica e democrática.
Gustav Radbruch, em 1945, dirigindo-se aos seus estudantes de Heidelberg, numa circular intitulada Cinco Minutos de filosofia do Direito, criticando a ordem totalitária nazi (que, por acaso, até teve como um dos próceres um dos grandes nomes da jurisprudência dos interesses que continua a ser citado em Portugal e que muito sociologismo português considera magnífico), num quinto minuto, assinalava que "há também princípios fundamentais de direito que são mais fortes que todo e qualquer preceito jurídico positivo, de tal modo que toda a lei que os contrarie não poderá deixar de ser privada de validade. Há quem lhes chame direito natural e quem lhes chame direito racional. Sem dúvida, tais princípios acham-se, no seu pormenor, envoltos em grandes dúvidas. Contudo, o esforço dos séculos conseguiu extrair deles esse núcleo seguro e fixo, que reuniu nas declarações dos direitos do homem e do cidadão, e fê-lo com um consentimento de tal modo universal que, com relação a muitos deles, só um sistemático cepticismo poderá ainda levantar quaisquer dúvidas".
É em nome deste núcleo sagrado normativo (de "pôr o carro à frente dos bois", de sabermos que este Tribunal Penal Internacional não vai ser aplicado no próximo conflito internacional, porque a força será superior ao direito), é em nome destes vencidos da história que devemos estar ao lado destes normativos. A História, até agora, é uma história dos vencedores!
Deixem-me ser profeta: os vencidos vão ganhar, o tempo futuro há-de ser dos vencidos da história, porque são a maioria! Nós temos uma tradição de vencidos da história e temos de estar ao lado destes belíssimos princípios, porque foram sempre os "palermas" dos juristas, dos sonhadores políticos, dos constitucionalistas que "puseram o carro à frente dos bois"!
Meus Amigos, nestes últimos dois séculos, foi sempre com estes "malucos", que somos nós, que "põem o carro à frente dos bois", que a Humanidade venceu! Se acreditássemos nos realistas, ainda hoje tínhamos escravatura, ainda hoje a mulher não era igual ao homem, ainda hoje não havia aquelas conquistas fundamentais da Humanidade. São estes "poetas" da Constituição, que são VV. Ex.as, que têm a mania de reduzir isto a artigos e a códigos - não sabem a técnica dos actos adicionais, ou não querem saber…
Desculpem que vos diga, não resisto a dizer isto, e escrevi-o há pouco tempo: valia mais entregar a feitura da Constituição a um ou dois poetas que temos aí, até entre os parlamentares. Seria muito mais interessante, porque a Constituição é um elemento simbólico! O que nós estamos aqui a fazer é a lutar pelo símbolo do lado certo, do lado do humanismo! E, desculpem, só quem não assiste ao debate do Tribunal Penal Internacional é que não percebe onde é que está o lado certo e o lado errado! O lado certo é onde nós queremos estar, não é invocando o "tricô" - desculpem - do velho positivismo, em nome da consciência nacional e de outras coisas, que estaríamos do lado certo. Era uma vergonha nós, que demos os primeiros passos fundamentais nesta luta pela civilização, podermos ser ridicularizados e não acompanharmos o Brasil.
Quanto à última pergunta relativa ao Brasil, eu acredito que há várias pluralidades de pertenças, acredito e concordo plenamente com o pragmatismo de inserirmos esta cláusula constitucional para evitarmos que a bela semente da comunidade - chamemos-lhe o que quisermos, o António Ferro chamava-lhe "os Estados unidos da saudade" - possa entrar em cacafonia e, em nome de um princípio abstracto que ainda não existe, nós deitarmos pela janela fora aquilo que já existe, que é a igualdade de direitos cívicos e políticos entre portugueses e brasileiros!
Como é que se faz isso em termos tácticos? Não sei, pode ser com um artigo, pode ser através de outra coisa qualquer. Mas por que é que vamos andar para trás naquilo que já temos em nome de uma coisa que ainda não há, que é uma comunidade que eu gostaria muito que existisse, uma comunidade que tem um nome esquisito, a CPLP, onde, com toda a franqueza, ainda não estamos na fase - ainda no outro dia o disse - de Estado de direito mas, sim, na fase do direito ao Estado, na maior parte deste países?! E deitamos fora aquilo que é uma tradição de comunidade de dois séculos entre o Estado de direito brasileiro e o Estado de direito português? Até podemos repelir nesta jogada aquilo que é já um projecto concretizador.
Os Srs. Deputados gostam muito da abstracção imediatista, e por isso é que muitas conquistas não funcionam, porque dizem: "Tem de ser já e para todos". Portanto, em nome deste "já e para todos" cometemos o erro dos franceses, com as boas intenções revolucionárias, que pegavam nos direitos do homem, martelavam-nos na porta de um fortim da Indochina ou de África e diziam: "Estão declarados os Direitos do Homem em África e na Indochina". Isto é gradualista, e não devemos deitar pela porta fora aquilo que já temos, em nome de uma coisa que talvez venha a existir.
De qualquer modo, não sei se deve aparecer como artigo. Como disse, sou favorável a actos adicionais e considero que quanto mais incrustarmos coisas anexas ao texto constitucional… Por exemplo, acho inadmissível termos revogado o texto original da Constituição de 1976. Porque é que não utilizamos as técnicas do acto adicional, que acrescentávamos a cada texto? O texto histórico de um determinado momento devia aparecer incólume.
Penso que o Professor Jorge Miranda e todos os constitucionalistas gostarão muito desta técnica e os autores de constituições anotadas de andarem sempre a fazer um edifício codificante de todos os artigos. Será que não repararam que a realidade é superior ao código e que há um grande ciclo de revisões extraordinárias da Constituição porque as circunstâncias ultrapassam as nossas previsões!?
Julgo que quanto mais humildes formos em técnica de actos adicionais e quanto mais o texto constitucional permitir a arquitectura do artigo sobre relações internacionais… Quer dizer, acho interessante, é um esforço curioso, mas não conseguirão dar unidade, porque o artigo 7.º já teve tanta coisa! É um artigo histórico que se prende a um determinado momento genético da democracia portuguesa.
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Devemos abrir, em termos de artigos a posteriori, determinado número de coisas e não resisto a dizer a última: não façam - não façamos, porque vocês são eu, o Estado somos nós e vocês são os meus representantes, cada um de vocês sou eu e, portanto, são os meus representantes, estão presentes em vez de mim -, não cometam o erro dos primeiros tempos da nossa democracia, aquando da aprovação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, em que arranjámos umas "reservazitas" para uso interno que nos envergonharam e, depois, não tiveram eficácia.
Devemos, sem medo, enfrentar aquilo onde nós até fomos pioneiros. As tipificações do Tribunal Penal Internacional, de Roma, em grande parte até são inferiores àquelas que temos no nosso Código Penal. Já temos isto proibido, já temos isto perseguido!
Compreendo e admito todas as interpretações, nomeadamente da Amnistia Internacional e de algumas intervenções da Procuradoria-Geral da República, e percebo o que está aqui de complementaridade e de subsidiariedade. Nós não abdicamos dos nossos princípios para aderirmos a esta conquista da universalidade.
O futuro - deixem-me ser profeta - vai acabar com o Estado único. O Estado único sobre o mesmo território e as mesmas pessoas conduz a genocídio. Não demos lições aos outros, em nome de oito séculos da nossa História, porque nós também praticámos genocídios, só que prescreveram. Nós, nos séculos XVI e XVII, também fizemos perseguições e unificações brutais, mas agora, fazemos o discurso disso. Porquê? Porque somos o resultado de uma longa prescrição secular.
O Estado único é perigoso. Nós só podemos viver com pluralidades de políticos, e pluralidades de políticos são pluralidades de pertenças individuais. Saúdo isto com uma forma de reforço da tal república maior do João Pinto Ribeiro ou dos sonhos que, ainda há pouco tempo, um dos maiores teóricos políticos do mundo de hoje, um João Rosa, um Jürgen Habermas, têm glosado este tema.
E quem pensa de forma racional e justa está, evidentemente, na linha da frente desta luta pela Constituição, ou desta luta pelo direito, ou desta luta pela democracia, ou desta luta pela política, porque não há política sem democracia, ou, então, arranjem-lhe outro nome. Esta luta pela democracia, esta luta pelo direito, esta luta pelo humanismo exige que os Estados abdiquem, em nome de um bem maior, da protecção daquilo que está acima dos Estado, que é a dignidade da pessoa humana, que não é um papel qualquer, é um princípio! Nós o recebemos da lei fundamental da Alemanha: é o princípio fundamental da luta contra o totalitarismo. Muitas vezes esta expressão e este princípio constitucional português é tratado como se fosse qualquer outra coisa.
Como o Estado de direito não é o Estado de legalidade. Toda a gente lê muitas vezes de uma forma desleixada a noção de Estado de direito. O Estado de direito não é o Estado de legalidade. O Estado de legalidade era aquele que, no autoritarismo salazarista, levava a que um agente da polícia política torturasse em legalidade, e até faziam relatórios óptimos e estavam todos de acordo com a lei; o Estado de legalidade é perigosíssimo, porque permite, através da legalidade, torturar! O Estado de direito é a superação da legalidade e a colocação da verdadeira hierarquia: o direito está debaixo da justiça; o direito está acima da lei. E este é o ponto central.
Deificarmos abstracções, contrariando os princípios fundamentais e o que está antes de qualquer desenvolvimento regrativo, é um erro histórico de uma determinada concepção do jurídico e do político, que, felizmente, hoje está reduzida à sua verdadeira dimensão de minoria entre os que pensam de forma racional e justa.
O Sr. Presidente: - Muito obrigado, Sr. Professor, pela sua exposição e pelas respostas que deu às interpelações que lhe foram feitas pelos Srs. Deputados. E, mais uma vez, obrigado pela sua presença e pela sua colaboração com esta Comissão.
Srs. Deputados, como há pouco disse, a próxima reunião realiza-se na sexta-feira, dia 29, às 11 horas e 15 minutos, com a audição dos representantes da Secção Portuguesa da Amnistia Internacional, e às 15 horas e 30 minutos, com a audição do Sr. Comissário Europeu, António Vitorino.
Srs. Deputados, está encerrada a reunião.
Eram 12 horas e 55 minutos.
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