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V REVISÃO CONSTITUCIONAL
Comissão Eventual para a Revisão Constitucional
Acta n.º 10
Reunião do dia 29 de Junho de 2001
SUMÁRIO
A reunião teve início às 15 horas e 40 minutos.
Relativamente aos projectos de revisão constitucional n.os 1/VIII (PSD) e 2/VIII (PS), foi ouvido pela Comissão o Sr. Comissário Europeu (Dr. António Vitorino), que respondeu a questões do Sr. Presidente (José Vera Jardim) e dos Srs. Deputados Jorge Lacão (PS), Luís Marques Guedes (PSD), Barbosa Oliveira (PS), Fernando Seara (PSD) e Pedro Roseta (PSD).
O Presidente encerrou a reunião eram 17 horas e 5 minutos.
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O Sr. Presidente (José Vera Jardim): - Srs. Deputados, temos quórum, pelo que declaro aberta a reunião.
Eram 15 horas e 40 minutos.
Srs. Deputados, vamos dar início à nossa ordem de trabalhos desta tarde, com a audição do Sr. Dr. António Vitorino, Comissário Europeu.
Quero começar por lhe agradecer, em meu nome e em nome de todos os Srs. Deputados membros desta Comissão, a disponibilidade que mostrou desde o início para vir prestar o seu depoimento e colaborar connosco nesta revisão constitucional. Penso que será muito importante ouvi-lo, designadamente em determinadas matérias.
Naturalmente que o Sr. Comissário vem prestar o seu depoimento fundamentalmente sobre o artigo respeitante ao espaço de liberdade, de justiça e de segurança, no entanto, tendo em conta as últimas posições tomadas em Junho pelo Conselho de Ministros da União Europeia sobre o TPI, se o Sr. Dr. António Vitorino nos quiser também dizer alguma coisa sobre essa matéria, certamente que o ouviremos com muita atenção e agrado.
Antes de dar a palavra ao Sr. Comissário, quero lembrar aos Srs. Deputados que, para terça-feira, temos audições marcadas: uma, às 10 horas e 30 minutos, ainda não confirmada, mas que procurarei confirmar durante esta reunião, com o Sr. Ministro da Justiça; outra, às 12 horas, já confirmada, com o Dr. Mário Soares; e outra, às 15 horas e 30 minutos, também já confirmada, com o Presidente do Fórum Justiça e Liberdades.
Quero ainda informar que alguns Srs. Deputados, atendendo ao fim dos trabalhos do Plenário - e já dirigi ao Sr. Presidente da Assembleia, espero que já esteja despachado, o pedido para continuarmos a trabalhar, que, certamente, não levantará qualquer obstáculo -, têm-me pedido que, se houver necessidade de a Comissão realizar mais reuniões, e eu penso que sim, elas sejam marcadas em dias seguidos para evitar, naturalmente, que os Deputados que residam fora de Lisboa tenham de se deslocar à Assembleia várias vezes na mesma semana, com tudo o que isso implica de incomodidade.
Assim, se estiverem todos de acordo, iremos fazer o seguinte: continuamos os nossos trabalhos, já de discussão em Comissão, na terça-feira depois da audição e marcamos uma nova reunião para continuação dos trabalhos para quarta-feira de manhã. É esta a minha proposta.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Dá-me licença, Sr. Presidente?
O Sr. Presidente: - Tem a palavra, Sr. Deputado.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, face a esta proposta, não chego a ter qualquer observação construtiva para fazer, mas, já agora, adiantando, se o Sr. Presidente quiser fazer o favor de tomar isso em nota, a 1.ª Comissão reunirá na quarta-feira, dia 4, na parte da tarde, e, depois, voltará a reunir na semana seguinte, da parte da tarde igualmente, nos dias 10 e 11 e, provavelmente, também a 12, da parte da manhã.
O Sr. Presidente: - Que dias da semana são 10 e 11?
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Os dias 10 e 11 são, respectivamente, terça e quarta-feira. A reunião do dia 12, da parte da manhã, depende dos trabalhos de especialidade dos diplomas que temos em mãos.
O Sr. Presidente: - Então, antes de terminarmos a nossa reunião de hoje, farei uma proposta para a segunda semana, para que as pessoas tenham já um calendário relativamente estabelecido. Mas, se não há objecções para a próxima semana, na terça-feira continuaremos a nossa reunião depois da audição, para aproveitarmos a presença de todos, pensando que a audição, naturalmente, não nos vai demorar a tarde inteira, como é óbvio, e haverá também reunião na quarta-feira de manhã.
Pausa.
Como não há objecções, terça-feira, na parte da tarde, depois da audição, continuaremos a nossa reunião com discussão na Comissão e, na quarta-feira, reuniremos novamente às 10 horas.
Sr. Dr. António Vitorino, meu caro amigo, a palavra é sua.
O Sr. Dr. António Vitorino (Comissário Europeu): - Sr. Presidente, Sr.as e Srs. Deputados: Em primeiro lugar, gostava de agradecer este honroso convite para estar aqui perante a Comissão Eventual de Revisão Constitucional da Assembleia da República num dia que, estou certo, foi escolhido perfeitamente ao acaso,…
Risos.
… não posso ter outro raciocínio que não esse, de certeza absoluta, sob pena de incriminar o meu amigo José Vera Jardim. Como se sabe, essas surpresas vêm sempre do nosso próprio partido!
Risos.
Também quero dizer que tenho muito gosto em expor perante VV. Ex.as aqueles aspectos do projecto de criação de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça que poderão ter relevância para a revisão constitucional em curso, que, contudo, é - tenho bem a consciência disso - uma revisão constitucional provocada pela necessidade de Portugal aderir ao Tribunal Penal Internacional.
Como o Sr. Deputado José Vera Jardim, Presidente da Comissão, acabou de referir, a posição dos órgãos da União Europeia, seja o Conselho, seja a Comissão, é uma posição de princípio favorável à participação dos Estados membros da União nesse Tribunal Penal Internacional, como foi recentemente reafirmado pelo Conselho dos Assuntos Gerais. E essa é também uma das matérias que tem sido objecto de discussão com os países candidatos da Europa Central e do Leste, no sentido de incentivar esses mesmos Estados a, no mais curto espaço de tempo, procederem à ratificação do Convénio de Roma.
Sobre o espaço de liberdade, de segurança e de justiça, basicamente, as matérias de que me ocupo na Comissão Europeia estão divididas entre dois distintos pilares da União: por um lado, as matérias que têm a ver com a liberdade de circulação das pessoas, isto é, a quarta liberdade constitutiva da União Europeia, a política de asilo e a política da migração e cooperação judiciária civil, que são matérias que, desde o Tratado de Amesterdão, integram o Primeiro Pilar da União Europeia, isto é, são matérias comunitarizadas, são matérias da responsabilidade das Comunidades Europeias. E, por outro lado, ocupo-me de matérias que estão integradas no que resta do Terceiro Pilar, isto é, um pilar puramente intergovernamental, que é a cooperação policial e a cooperação judiciária penal.
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Estou convencido de que as questões que podem ter mais interesse para VV. Ex.as no domínio da revisão constitucional são estas últimas, isto é, são aquelas que têm a ver com a agenda europeia da cooperação policial e da cooperação judiciária penal para os próximos anos e quais as suas implicações no ordenamento constitucional português.
Basicamente, o princípio que preside à cooperação judiciária penal e à cooperação policial é um princípio que foi enunciado no Conselho Europeu de Tampere, e que é o chamado princípio do reconhecimento mútuo das decisões judiciais. Na realidade, em Tampere, os Chefes de Estado e de Governo entenderam que este reconhecimento mútuo das decisões judiciais devia ser a pedra angular da cooperação judiciária - tanto da cooperação judiciária civil com da cooperação judiciária penal - e deveria ter como objectivo que as decisões de um órgão judicial de um Estado membro fossem aplicadas imediatamente no âmbito da ordem jurídica de outro Estado membro, sem necessidade de qualquer procedimento intercalar, seja um sistema de execuator, seja um sistema de revisão de sentença.
É evidente que este objectivo ambicioso tem dois pressupostos: o primeiro é que o grau de confiança mútua entre os sistemas jurídicos e os sistemas judiciais dos Quinze Estados membros atinja uma consolidação tal que permita este tipo de aplicação imediata das decisões judiciais; o segundo é que haja um grau equivalente de protecção dos direitos fundamentais e de garantias processuais nos ordenamentos jurídicos dos Quinze Estados membros.
A avaliação dos Chefes de Estado e de Governo foi que a filiação dos ordenamentos jurídicos dos Estados membros na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, reforçada pela Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, proclamada em Nice, além das inúmeras convenções internacionais sobre a matéria, com especial destaque para as convenções do Conselho da Europa, garantiam os pressupostos de confiança necessários para efectivar o princípio do reconhecimento mútuo das decisões judiciais.
Dentro desta lógica, a Comissão Europeia apresentou, em 26 de Julho do ano passado, uma comunicação sobre o reconhecimento mútuo das decisões penais no espaço europeu. Na base dessa comunicação foi aprovado um programa de acção sobre as medidas de reconhecimento mútuo em Novembro do ano 2000. Se quiserem, mais tarde, poderemos voltar a este tema com maior detalhe.
Naquilo que talvez tenha mais interesse imediato, creio que há duas questões que me parecem centrais: uma tem a ver com o que estamos a fazer em matéria de extradição; outra tem a ver com o que estamos a fazer em matéria de cooperação policial na luta contra a criminalidade.
Em relação ao primeiro aspecto, ao aspecto da extradição, gostava de ser muito claro perante os Srs. Deputados: o objectivo é abolir a extradição entre os Estados membros. Na realidade, este foi o compromisso dos Chefes de Estado e do Governo na Cimeira de Tampere: abolir a extradição para todos os casos onde haja uma condenação definitiva, substituindo os mecanismos de extradição por um mecanismo de entrega ou de transferência entre autoridades judiciais. Da mesma forma, em Tampere, os Chefes de Estado e de Governo disseram que seria necessário acelerar outros processos de extradição, desde que estivessem reunidos os requisitos nos ordenamentos em causa de um processo justo e equitativo.
A primeira conclusão desta decisão é a de que entre os Estados membros da União Europeia deixará de haver extradição e passará a haver um sistema de entrega de autoridade judicial a autoridade judicial exclusivamente, abolindo-se, assim, a fase da intervenção política. Em muitos Estados, mesmo depois de autorizadas as extradições por autoridade judicial, há uma revisão da decisão da autoridade judicial por parte de um órgão do poder político. Na realidade, o que se pretende é que o sistema funcione por uma ligação directa entre autoridades judiciais e abolir o princípio da revisão político-administrativa da decisão de extradição.
Alguns Estados membros da União Europeia, no plano bilateral, têm vindo a adoptar convénios com um alcance semelhante a este. Foi o caso, recentemente, entre a Itália e a Espanha e, ainda mais recentemente, o caso entre a Espanha e o Reino Unido.
É evidente que não é difícil de compreender que o que se pretende obter com a substituição do mecanismo da extradição pelo mecanismo da entrega judicial não é susceptível de ser alcançado apenas através da via da soma de acordos bilaterais entre Estados, porque a dimensão da luta contra a criminalidade no espaço europeu exige a multilateralização deste tipo de acordos e a solução será, portanto, a adopção de regras jurídicas que viabilizem estes mecanismos no espaço do conjunto da ordem europeia.
As iniciativas que temos em preparação sobre esta matéria estarão prontas durante o mês de Setembro. Portanto, aquilo que lhes vou dizer hoje é apenas uma antecipação das linhas de força do que está a ser trabalhado. Não tenho, neste momento, condições de vos apresentar um texto consolidado, mas apenas algumas das ideias-mestras com que estamos a trabalhar.
Em primeiro lugar, trata-se de adoptar um sistema horizontal de entrega judicial, que substitui o actual sistema de extradição, o que significa que é um sistema não confinado a algumas infracções mas, sim, um sistema generalizado a todo o tipo de infracções que sejam listadas por acordo dos Estados.
Em segundo lugar, trata-se de uma ideia essencial, que é esta: quando a autoridade judiciária de um Estado membro pede a entrega de uma pessoa, seja porque essa pessoa já foi objecto de uma condenação definitiva, seja porque sobre ela incide um processo criminal de investigação num Estado membro, essa decisão deve ser reconhecida e executada automaticamente em todo o território da União Europeia.
O sistema em que estamos a trabalhar prevê a possibilidade de recusa de execução de decisões num conjunto limitado de hipóteses a definir no próprio instrumento comunitário. O processo de entrega passa a ser, assim, um processo exclusivamente judicial, abolindo-se a fase política, bem como a fase de recurso administrativo que hoje existe em alguns Estados e que é subsequente à fase de decisão político-administrativa.
Três corolários decorrem deste princípio. O primeiro é o de que a execução deste mecanismo pressupõe a abolição do princípio da reserva de cidadania do Estado, isto é, a excepção que em alguns ordenamentos constitucionais existe, entre os quais o português, da proibição de extradição de nacionais, deveria ser abolida.
O critério pertinente não é o da nacionalidade mas, sim, o do local de residência. Este princípio tanto vale para efeitos da entrega judicial, ou seja, para efeitos da entrega do suspeito ou do condenado para julgamento ou execução da pena, mas também vale no sentido contrário, isto é, também vale na perspectiva da execução da pena. Um exemplo: o português condenado em França perante um tribunal francês também tem a possibilidade de cumprir a
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pena em Portugal, porque o critério será o de a pena ser executada também no Estado onde existam melhores condições para, subsequentemente, garantir a sua reintegração social. Este é o primeiro corolário.
O segundo corolário é o de que na lista de crimes que sejam incluídos como objecto destes mecanismos a que acabei de fazer referência é necessário abolir o princípio da dupla incriminação. Isto é, o princípio de que o mecanismo só opera quando a conduta delituosa for simultaneamente criminalizada no Estado requisitante e no Estado requerido. Basta verificar o pressuposto de que a conduta delituosa é criminalizada no Estado requisitante.
Em terceiro e último lugar, a ideia complementar deste mecanismo judicial é a adopção do chamado mandato de busca e captura europeu, que é o instrumento, no âmbito da cooperação judiciária e policial, que tem como objectivo garantir o princípio de reconhecimento mútuo das decisões judiciais quando se trata de pessoas ainda não condenadas, isto é, de pessoas indiciadas pela prática de determinado tipo de crimes.
O objectivo destes dois instrumentos jurídicos é o de substituir, no âmbito do espaço da União Europeia, a convenção sobre a extradição do Conselho do Europa de 1957, bem como os seus dois protocolos de 1975 e de 1978, e ainda as duas convenções da União Europeia de 1995 e de 1996 sobre a extradição, as quais, aliás, gostaria de recordar, só foram ratificadas a primeira por nove Estados membros e a segunda por oito Estados membros da União Europeia.
Traçados nestes termos os mecanismos sobre os quais estamos a trabalhar no âmbito da União Europeia, permitir-me-ia, se o Sr. Presidente estivesse de acordo, indicar quais são, na minha opinião, as questões que, no âmbito da Constituição portuguesa, se colocam à luz desta lógica que acabei de vos apresentar.
Creio que, basicamente, as questões giram em torno do disposto no artigo 33.º da Constituição. Em primeiro lugar, quanto ao seu n.º 3, na medida em que aí se estabelece um princípio de que a extradição de cidadãos portugueses do território nacional só pode ser concedida quando se trata de criminalidade organizada ou de terrorismo e, no quadro das propostas que preparam, a lista de crimes será mais alargada do que aqueles dois casos a que faz referência a Constituição. Embora alguns dos princípios que este n.º 3 consagra sejam acolhidos pelos instrumentos jurídicos comunitários, como sejam a garantia da reciprocidade, a exigência de que no Estado requisitante esteja salvaguardado o princípio de um processo justo e equitativo…
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Está por natureza!
O Sr. Dr. António Vitorino: - Está por natureza, por definição, embora essa questão possa suscitar a necessidade de reflectir sobre se a aplicação deste princípio não deverá sofrer algumas regras de definição de períodos de transição, sobretudo tendo em linha de conta o alargamento.
Na lógica deste sistema, ele só vigora entre os Estados membros da União Europeia, o que significa que sempre subsistirá no ordenamento jurídico de cada Estado da União Europeia um conjunto de regras sobre extradição para países terceiros. E, portanto, naturalmente, o artigo 33.º da Constituição portuguesa não ficaria esvaziado de conteúdo, tem e continua a ter o seu conteúdo, estamos a falar é do âmbito de aplicação territorial dos princípios constantes do n.º 3 do artigo 33.º.
A segunda questão que identifico como problemática tem a ver com o n.º 5 do mesmo artigo, na medida em que aí se estabelece o princípio de que o Estado português exige que o Estado requisitante deve oferecer garantias de que não será aplicada nenhuma pena de prisão perpétua, de duração ilimitada ou indeterminada.
Naturalmente, os Srs. Deputados perdoar-me-ão que eu diga que sempre tive as maiores dúvidas sobre o alcance da interpretação do n.º 5 do artigo 33.º da Constituição portuguesa.
Se me permitem, recordo as declarações feitas por mim, por acaso ao lado do Sr. Deputado Vera Jardim, na altura ambos na qualidade de "réus", porque estávamos ambos no Governo da República. Portanto, hoje, somos a prova de que a política da ressocialização funciona…
Risos.
…e de que as pessoas, uma vez postas em liberdade, até conseguem comportar-se com grande civilidade! Na altura, não seria forçosamente o caso.
Recordo que, no debate que travámos na anterior revisão constitucional, tive ocasião de explicitar as minhas distâncias em relação ao significado e ao alcance do n.º 5 do artigo 33.º da Constituição, porque a sua interpretação não me parece inequívoca.
A que garantias se refere o n.º 5 do artigo 33.º? Trata-se de garantias no caso ou de garantias em abstracto, no ordenamento jurídico? Em segundo lugar, que tipos de garantias? Garantias de redução da pena por via política, ou outras? Para ser sincero, se de outras se tratasse, como é que um Estado democrático pode dar garantias sobre a dimensão da pena aplicável por um tribunal que é, por definição, um órgão independente? Só Estados totalitários que controlassem os seus tribunais é que poderiam dar garantais dos respectivos tribunais de que não seria aplicada até ao limite um determinado tipo de pena, porque mesmo que a pronúncia seja confinada e não vise, no momento do início do processo, a aplicação da pena máxima, nada pode garantir que um juiz, na sua liberdade de julgamento, não possa aumentar a aplicação da pena no decurso do julgamento.
Quanto aos outros dois aspectos do artigo 33.º, no que diz respeito aos n.os 4.º e 6.º, não parece existir nenhum problema na precisa medida em que, como é evidente, tendo em conta as garantias da Constituição portuguesa nesses dois números - proibição ou de entrega ou de extradição para países onde haja pena de morte -, felizmente, nenhum país da União Europeia prevê no seu ordenamento jurídico a pena de morte. E, em segundo lugar, o princípio da execução por autoridade judicial é exactamente o que se pretende. A questão consistia quando muito em saber se o n.º 6 do artigo 33.º da Constituição é já hoje totalmente respeitado pelo ordenamento jurídico ordinário português.
Finalmente, uma última nota sobre um problema que creio que está suscitado, que é o de saber qual é o significado da cláusula geral de referência ao espaço de liberdade, de segurança e de justiça no âmbito de um texto constitucional.
Em meu entender, o valor acrescentado de uma tal cláusula seria o de constituir tipo habilitador para que nestes domínios o ordenamento jurídico comunitário, com estas características, pudesse constituir a excepção à aplicação das regras dos n.os 3.º e 5.º do artigo 33.º da Constituição.
Vou concluir com uma referência a um caso concreto. Devo dizer, com sinceridade, que uma das dificuldades que tive no exercício do meu mandato de comissário foi explicar, em França, o processo português sobre o serial killer
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francês de seu nome Rezala. Parece-me profundamente injusto o raciocínio feito por parte da opinião pública francesa e de alguns meios de comunicação social franceses de que o Estado português teria sido relutante na extradição do Sr. Rezala.
Aliás, devo dizer que o grande problema da extradição na União Europeia não é um problema com Portugal, onde o tempo médio de extradição nem sequer se pode considerar excessivo. Há estatísticas fiáveis que provam que as demoras, os atrasos, os obstáculos e os entorpecimentos nos processos de extradição têm muito mais a ver com o relacionamento entre outros Estados do que, propriamente, com o Estado português. Mas a ideia que existe em França é a de que Portugal é um país que se recusa a extraditar criminosos em função de uma leitura excessivamente rigorosa e exigente dos princípios do Estado de direito democrático.
Ora, na realidade, creio que o objectivo fundamental da construção da União Europeia como um espaço de liberdade, de segurança e de justiça é o de, reconhecendo a diversidade dos ordenamentos jurídicos de cada Estado e não pretendendo harmonizar os ordenamentos jurídico-penais de cada Estado, pelo menos tornar claro que as diferenças de ordenamentos não são oportunidades acrescidas para os criminosos se protegerem nas suas actividades criminosas. É esse o problema com que estamos confrontados. Isto é, não é o problema de construir uma Europa securitária ou uma Europa obcecada com a pequena criminalidade; é o problema de reconhecer que hoje as redes criminosas transnacionais, os que praticam os crimes mais graves conseguem utilizar as diferenças de ordenamento jurídico e judiciário em seu benefício e que os países que não estiverem disponíveis para encontrarem uma plataforma comum de entendimento de forma a garantir um nível harmonioso de combate a essa criminalidade correrão seriamente o risco de se tornarem "paraísos criminais", trate-se de paraísos de criminalidade comum, trate-se de países de criminalidade relacionada com o branqueamento de dinheiro ou com a fraude financeira em geral, trate-se de paraísos de criminalidade como o tráfico de droga ou de seres humanos.
Daí que o objectivo deste exercício seja o de retirar aos criminosos a vantagem comparativa que hoje lhes advém das diferenças entre ordenamentos jurídicos e ordenamentos judiciários e, portanto, de colocar as armas do Estado de direito democrático dos 15 Estados membros ao serviço de um objectivo comum, que é o de garantir o respeito dos direitos fundamentais dos cidadãos, que nada têm a temer com o reforço dos meios de cooperação judiciária e policial.
O Sr. Presidente: - Agradeço ao Sr. Dr. António Vitorino a sua exposição, já que lançou um conjunto de pistas muito importantes e deu-nos uma ideia dos caminhos próximos da União nesta matéria.
Já aqui disse, e repito, que, finalmente, a partir de Tampere e também devido à sua acção como comissário, estas matérias, felizmente, avançaram.
Ao longo de quatro anos em que tive ocasião de tomar parte nos Conselhos de Ministros da Justiça e da Administração Interna no quadro da União, a sensação era de uma grande impotência para avançar. E foi precisamente a partir de Tampere, como aliás referiu na sua exposição, que a situação começou a avançar, em muito também deve a União à sua acção como comissário neste difícil sector da criação de um espaço de justiça, de liberdade e de segurança na União Europeia.
Vamos entrar agora na fase das perguntas e aproveito para pedir, mais uma vez, aos Srs. Deputados que façam perguntas e não exposições para podermos conduzir os nosso trabalhos de uma forma eficaz.
Antes, porém, queria fazer aos Srs. Deputados a seguinte proposta de organização de trabalhos: na próxima terça-feira temos a audição do Fórum Justiça e Liberdades, pelo que só vamos começar a trabalhar cerca das 17 horas. Assim, na terça-feira, suscito a vossa adesão no sentido de prolongarmos os trabalhos para a noite. E, depois, na quarta-feira, dia 4, trabalharíamos também de manhã. Reuniremos ainda dia 12, às 15 horas, se houver consenso, dessa vez continuando os trabalhos para a noite, para aproveitarmos esse dia inteiramente. E reuniremos no dia 13, às 10 horas e 30 minutos. Aproveitávamos, portanto, um longo espaço de tempo para avançarmos com os trabalhos, nos dias 12 e 13 de Julho.
Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, sobre este aspecto, concordo com tudo o que disse até ao dia 12. No entanto, parece-me que, tendo em atenção a fase de trabalhos que vamos entrar a partir de terça-feira à tarde, o mais adequado não é tentarmos marcar uma grelha interminável de reuniões. Concordo que marquemos reuniões até quinta-feira, dia 12, mas devemos, a partir dessa fase, impormo-nos a nós próprios a disciplina de ir marcando reuniões se for tida pela Comissão a sensação inelutável de que é necessário discutir mais.
Parece-me, com toda a franqueza, Sr. Presidente, que, a partir do final das audições, e realizadas que sejam as duas reuniões - a de terça-feira à tarde será, como diz, um pouco curta - de quarta-feira de manhã e de quinta-feira, dia 12, ficarão, em princípio, lançadas as condições para que, rapidamente, se avance para um desenlace.
O Sr. Presidente: - Um desenlace feliz!
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Esperemos que sim.
Portanto, Sr. Presidente, preferiria que marcássemos reuniões até ao dia 12 de Julho e ficássemos todos cientes de que, quer na quarta-feira, dia 4, quer na quinta-feira, dia 12, porventura, temos de nos interrogar, a nós próprios, se vale a pena continuar a marcar reuniões ou se temos condições para ensaiar o fim dos nossos trabalhos.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, estou inteiramente de acordo com a sua intervenção.
Neste momento, a minha preocupação é dar aos Srs. Deputados uma agenda para programarem os seus trabalhos. Por isso, permitia-me insistir, marcando uma reunião, pelo menos, no dia 12 de Julho, às 15 e às 21 horas, e, sob reserva, como temos feito, também numa sexta-feira, de manhã. Pode acontecer que, já na próxima semana, possamos tomar o pulso à realidade e, até, cancelar essa reunião.
Portanto, se o Sr. Deputado Luís Marques Guedes estivesse de acordo, visto que por parte dos outros partidos não vi qualquer objecção, ficaria fixada a seguinte calendarização: nos dias 3 e 4 de Julho, de manhã, no dia 12 de Julho, às 15 horas e à noite, e no dia 13 de Julho, às 10 horas e 30 minutos, esta sob reserva. Logo veremos!
O Sr. Barbosa de Oliveira (PS): - Sr. Presidente, no dia 3 de Julho, está agendada uma reunião de manhã e de tarde?
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O Sr. Presidente: - Exactamente, Sr. Deputado.
No dia 3 de Julho haverá reunião às 10 horas e 30 minutos, com o Sr. Ministro da Justiça, às 12 horas com o Dr. Mário Soares, e às 15 horas e 30 minutos com o Fórum Justiça e Liberdades. Depois, continuaremos os nossos trabalhos na quarta-feira, às 10 horas e 30 minutos, e não à noite, porque há objecções de alguns Srs. Deputados. Por fim, marcamos o dia 12 de Julho, às 15 e às 21 horas, e, sob reserva, o dia 13 de Julho, às 10 horas e 30 minutos, de forma a termos ainda este espaço de manobra de que poderemos abrir mão, visto que também faço votos, acompanhando o Sr. Deputado Luís Marques Guedes, para que, anteriormente, tenhamos já condições para esse desenlace feliz.
Tem a palavra, para formular um pedido de esclarecimento ao Dr. António Vitorino, o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Comissário, Dr. António Vitorino, em primeiro lugar, quero dizer-lhe, com toda a franqueza, que a escolha ou, pelo menos, a insistência para a sua vinda aqui, hoje, não foi dos seus camaradas do Partido Socialista, mas do PSD. No entanto, confesso-lhe que foi uma "insistência de amigo", porque o telefone deve estar a tocar lá…, desde manhã!
Risos do Sr. Comissário António Vitorino.
Graças a Deus que o senhor veio, porque, senão, se calhar, não estava aqui! Portanto, acabou por ter sorte, mas a nossa insistência, repito, foi de amigo.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Já ouviu falar da existência de telemóveis?
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Nos aviões estão desligados…
Dr. António Vitorino, em primeiro lugar quero agradecer-lhe, vivamente, a exposição objectiva que nos fez quanto àqueles que são os passos que estão em preparação - talvez, até, em fase adiantada - com vista à criação do espaço de liberdade e de segurança.
Quando o Dr. Fernando Seara, o Dr. Pedro Roseta e eu próprio começámos a ouvir as suas palavras, tomámos logo nota daquilo que, mais à frente, o senhor veio a confirmar, ou seja, de que, inelutavelmente, o que está em preparação é algo que vai mexer com o nosso artigo 33.º da CRP: com o n.º 3, directamente, e com o n.º 5, possivelmente, dependendo daquela que venha a ser a decisão da própria União. A questão que se põe é a de saber se há, ou não, a possibilidade de, por um lado, se fazer uma harmonização das penas relativamente ao problema da pena perpétua e, por outro lado, fazer-se uma salvaguarda relativamente às situações de entrega de cidadãos em cujos sistemas penais a pena perpétua esteja proibida. Essa é, porém, uma matéria que não nos diz respeito, directamente. É evidente que quer o n.º 3 quer o n.º 5 bolem com esta matéria.
Percebi, também, a sua explicação - que já tinha sido equacionada aqui, na Comissão, noutras audições - quanto à distinção, que não é meramente terminológica, entre extradição e entrega. No entanto, convirá que, para efeitos daquilo que aqui estamos a tratar, que é a problemática da Constituição da República Portuguesa, acaba por ir dar ao mesmo. Ou seja, penso que todos poderemos concordar que, embora a Constituição da República Portuguesa utilize o termo densificado juridicamente na nossa ordem jurídica da extradição, quando fala na extradição de nacionais, no artigo 33.º, temos também de levar em conta as variantes desse instituto, através da criação de mecanismos ou de institutos de entrega ou de transferência de cidadãos, porque é, manifestamente, disso que o artigo 33.º pretende tratar.
Portanto, inelutavelmente, por aquilo que o Sr. Comissário aqui nos trouxe, o que estará em preparação na União Europeia é algo que vai levar Portugal a ter de se confrontar com a decisão - que terá de ser uma decisão soberana - de abandonar algumas reservas que, actualmente, tem quanto aos seus nacionais, mas não só, por causa do problema do n.º 5 do artigo 33.º.
O que gostava de saber é se o Sr. Comissário está, de facto, convencido que, mais tarde ou mais cedo - previsivelmente mais cedo, pelo que percebi das suas palavras, no sentido de que, eventualmente, até ao final deste ano, haverá já a possibilidade de haver decisões sobre a matéria -, vamos ter de nos confrontar com esta situação e vamos ter de, por exemplo, de hoje para amanhã, agarrar no n.º 3 do artigo 33.º para, onde se fala na extradição de cidadãos portugueses do território nacional, passar, porventura, a falar-se na extradição de cidadãos portugueses para fora do espaço da União Europeia.
Portanto, gostava de saber se está pessoalmente convencido de que, de facto, esse é um cenário que se nos vai colocar, provavelmente, no horizonte breve. Se assim é, não lhe parece que a habilitação (para utilizar a expressão que utilizou) em que poderia consistir a alteração ao n.º 6 do artigo 7.º da CRP, conforme está proposto pelo Partido Socialista - no sentido de se colocar aqui o inciso no artigo 7.º, da criação do espaço de liberdade, de segurança e de justiça - é manifestamente insuficiente para esse desidrato?
Ou seja, uma coisa é alterarmos o n.º 6 do artigo 7.º conforme é proposto, no sentido de dar um sinal claro de que está em desenvolvimento acelerado o aprofundamento do Terceiro Pilar da construção europeia e que isso irá provocar transformações em termos do envolvimento de Portugal na União Europeia e de alguns dos espaços de soberania, como o da justiça. No entanto, parece-me que uma habilitação deste tipo seria manifestamente insuficiente para, de hoje para amanhã, entendermos que isto, por si só, poderia ser entendido como uma derrogação expressa do n.º 3 do artigo 33.º, que é uma norma da Constituição perfeitamente expressa, não em termos de um princípio genérico mas relativamente a direitos concretos dos cidadãos nacionais protegidos pela ordem jurídica ou constitucional portuguesa. Esta é, portanto, a segunda questão que lhe quero colocar.
Por último, quero fazer-lhe uma observação relativamente ao n.º 5 do artigo 33.º da CRP: o problema das penas perpétuas. Devo confessar que, à primeira vista, me inclino a não concordar totalmente com as dúvidas que o Sr. Comissário aqui expressou e que, de alguma forma, já conhecia, em parte, quanto à aplicabilidade do n.º 5 do artigo 33.º, porque penso que, mesmo num Estado de direito, é perfeitamente possível a cabal aplicação do que aqui está.
Veja-se, no caso do Estado de direito português, por exemplo - o que penso ser a única solução possível, mas podem existir outras -, para se cumprir uma norma deste tipo, se estivesse em causa um Estado que admitisse a pena perpétua, bastava que estipulasse no seu Código Penal, aonde se refere a pena perpétua, que essa pena, como pena máxima, não seria aplicada em condições que o próprio Código Penal dirimia, em termos semelhantes ao que está previsto no artigo 5.º.
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Como o poder judicial se pauta pelo critério da legalidade, havendo essa formatação no próprio Código Penal, é evidente que, sem qualquer tipo de enviesamento ao Estado de direito, os tribunais tranquilamente aplicariam uma norma deste tipo. Como referi, isto é mais uma observação estritamente académica, no sentido de que o problema, porventura, não se coloca a Portugal, mas só aos outros países.
O Sr. Presidente: - Não percebi o sentido da sua intervenção, Sr. Deputado. Sugere que no Código Penal fosse introduzida uma norma que dissesse o quê? Não percebi, desculpe. Referiu os países que têm prisão perpétua…
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Vejamos o caso alemão.
O Sr. Presidente: - O caso alemão é um dos que tem prevista a pena de prisão perpétua. O Dr. António Vitorino falou da França. A Alemanha tem-nos levantado, porventura, em número de casos e em expressão pública desses casos, mais dificuldades do que a França. A França é mais recente.
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Quando se diz aqui que o Estado requisitante deve oferecer garantias, a dúvida do Dr. António Vitorino é a de saber até que ponto é que um Estado de direito pode oferecer garantias verdadeiras sobre uma matéria como esta!
O Sr. Presidente: - Exactamente!
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - O exemplo que dou é o caso do Estado alemão. O Estado alemão pode oferecer garantias a Portugal sobre esta matéria se, porventura, o seu Código Penal, onde refere que a pena máxima pode ir até à pena de prisão perpétua, acrescentar uma disposição excepcionando expressamente: "Pena, no entanto, que nunca é aplicável a cidadãos que sejam extraditados de países onde essa pena não vigore". A partir daí, os tribunais alemães, com todo o conforto e cumprimento do Estado de direito alemão, do meu ponto de vista, poderão contentar-se e executar uma norma deste tipo.
O Sr. Presidente: - Já entendi, Sr. Deputado. Muito obrigado pelo seu esclarecimento.
Sr. Comissário, habitualmente, fazemos uma ronda de questões para permitir, depois, à pessoa que nos está a prestar o seu depoimento responder a todas, em conjunto.
Tem a palavra, para formular um pedido de esclarecimento, o Sr. Deputado Jorge Lacão.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, Dr. António Vitorino, em primeiro lugar, quero saudá-lo e dizer-lhe, nessa saudação, que, embora institucionalmente o tenhamos aqui na sua veste de Comissário, Europeu, vai ser muito difícil de resistir - e, pela minha parte, confesso que não resistirei à óbvia tentação - a também dialogar com V. Ex.ª na sua condição de profundo conhecedor da ordem constitucional portuguesa. Como terei, certamente, dificuldade em fazer essa destrinça, peço antecipadamente desculpa pela circunstância.
Quero começar por sublinhar que a iniciativa que levou o grupo dos Deputados do Partido Socialista a apresentar esta densificação da cláusula do n.º 6 do artigo 7.º foi, de alguma maneira, também, a antevisão do eventual problema que, num futuro relativamente próximo, possamos vir a ter, tal como tivemos a propósito da aprovação da convenção relativa ao Estatuto do Tribunal Penal Internacional.
Seria porventura um pouco embaraçoso se, tendo nós sentido a necessidade de pontualmente recorrer a uma revisão extraordinária para poder permitir a adesão de Portugal ao Estatuto do Tribunal Penal Internacional, a breve trecho nos víssemos confrontados com outras dificuldades constitucionais a propósito do aprofundamento do espaço de liberdade, de segurança e de justiça no quadro europeu.
Por isso, quisemos introduzir esta problemática no âmbito desta revisão constitucional, justamente à procura de um grau de consenso que nos permita tomar consciência do trabalho de aprofundamento desse espaço de liberdade, de segurança e de justiça, que levará às medidas de cooperação judicial, nomeadamente em matéria penal, que implicarão que as ordens constitucionais - no caso que nos diz respeito, a nossa - tenham de estar preparadas para acompanhar esse processo de decisão.
Neste sentido, a questão que se me coloca é que, em todo o caso, a cláusula, tal como está proposta pelo PS, resolverá o problema, sendo que a minha dúvida se põe em termos de técnica constitucional.
Senão vejamos: quando ao nível do n.º 6 do artigo 7.º da CRP introduzimos o que introduzimos em vésperas da aprovação do Tratado de Maastricht e respectiva ratificação, a verdade é que estávamos a perspectivar isso relativamente à entrada em vigor de um tratado. Por outro lado, não deixámos de alterar outras disposições pontuais da Constituição. Estou a recordar-me, por exemplo, do artigo 102.º relativo às disposições sobre o Banco de Portugal, por se ter notado aí, justamente - tal como agora, eventualmente, no quadro do artigo 33.º, a propósito das questões específicas da extradição -, normas de especialidade que na Constituição podem entrar em conflito com normas do tratado e depois, em sede de direito europeu derivado, possam levantar dificuldades. Ou seja, provavelmente teremos de antecipar o problema para apurar se não teremos de ir mais longe.
O Dr. António Vitorino identificou os problemas em sede do artigo 33.º da Constituição e eu interrogo-me, numa visão um pouco mais ampla deste problema, se, no futuro, serão exclusivamente as questões do artigo 33.º que se levantam. Pergunto-me se, eventualmente, não poderão estar em causa matérias como as da própria jurisdição de soberania da ordem dos tribunais portugueses ou o papel do Ministério Público num quadro de cooperação judiciária no âmbito do EuroJus que poderão, aqui e ali, suscitar algumas dificuldades quanto ao âmbito do reconhecimento e aplicação imediata de processos de decisão das autoridades judiciárias do contexto europeu ou no contexto das ordens jurídicas dos Estados membros da União Europeia.
Concretamente, pergunto-me se em função deste grau de dificuldade e a propósito deste problema, que começa por ser óbvio no quadro do artigo 33.º mas, eventualmente, pode estar um pouco mais diluído na economia geral da CRP, não seria avisado que reflectíssemos se é ou não oportuno intentarmos uma cláusula mais geral que resolva o problema da recepção do direito europeu e os problemas de parametricidade que daí decorrem, não só na relação com o direito interno ordinário mas, igualmente, com o próprio Direito Constitucional. Sobretudo, sabendo nós que outras Constituições encararam este problema e o resolveram na sede constitucional respectiva num sentido mais inequívoco, ao admitir uma cláusula de recepção do direito europeu, sendo que, ao admiti-lo, o respectivo direito europeu derivado aceite na ordem interna
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dos Estados vigorará com prevalência nessa ordem interna, desde que, em todo o caso, respeite os princípios fundamentais dos regimes de direitos, liberdades e garantias e os próprios fundamentos do Estado de direito democrático.
Pergunto: será ir demasiado longe ou demasiado depressa se, num momento como este, admitirmos equacionar o problema nestes termos mais amplos? Podemos limitar-nos a uma cláusula mais restrita que supere os constrangimentos dos n.os 1 e 5 do artigo 33.º da CRP, exclusivamente em matéria de extradição, ou bastar-nos-á, em todo o caso, a fórmula tal como resulta do projecto inicial do Partido Socialista, o que, a meu ver (a mim próprio, que fui subscritor dela), levanta sérias dificuldades?
O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado Fernando Seara.
O Sr. Fernando Seara (PSD): - Sr. Presidente, começo por cumprimentar o Sr. Comissário, Dr. António Vitorino.
A minha reflexão vem na linha do que acabou de ser expresso pelo Dr. Jorge Lacão. Permito-me sentir a opinião do jurista e constitucionalista que V. Ex.ª continua a ser, mesmo que perdido, porventura, num andar superior de um edifício complexo em Bruxelas.
Estamos confrontados com uma iniciativa de revisão constitucional do Partido Socialista para o artigo 7.º da CRP. Permita-me a ousadia da reflexão, Dr. António Vitorino, sobre esta questão, mas será que é necessária a introdução deste inciso constitucional, para a concretização de alguns dos aspectos do Terceiro Pilar, sendo certo que, conhecendo nós os elementos constitutivos normativos do Terceiro Pilar, não podemos ignorar que eles exigem a unanimidade.
Avaliada a necessidade/desnecessidade como constituintes - e permita-me recorrer ao elemento semântico -, pergunto-me se será seguro para a ordem jurídica portuguesa acolher tão-só este inciso "e de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça"?
Ou seja, o que V. Ex.ª disse e o que situou nos vários elementos de concretização que nos anunciou para Setembro não têm que ver apenas com o artigo 33.º da CRP mas com um conjunto de princípios da Constituição, princípios esses relativos à consagração dos direitos e liberdades pessoais, mas também da estrutura do poder judiciário do Estado.
Aqui, dirijo-me ao constitucionalista: Dr. António Vitorino, que conselho nos dá? Estou a falar de um conselho profundo. Conhecendo nós a construção jurisprudencial do Luxemburgo; conhecendo nós o conjunto dos últimos acórdãos jurisprudenciais do Luxemburgo, no que respeita à hierarquia das normas, maxime a hierarquia constitucional; conhecendo nós as construções jurisprudenciais de um conjunto de tribunais, maxime o Bundesverfassungsgericht ou Tribunal Constitucional Federal Alemão, ou o Tribunal Constitucional Italiano, V. Ex.ª aconselha os seus colegas juristas constituintes portugueses a ter prudência na revisão, ou aconselha os seus colegas constituintes portugueses a fazer aquilo que se pode chamar "a pausa do reconhecimento dos elementos jurisprudenciais constantes", para avaliação a posteriori das consequências de desenvolvimento do Terceiro Pilar? Sendo certo que, nessa matéria, nós estaremos seguros, porque enquanto V. Ex.ª permanecer em Bruxelas - pela nossa parte, esperamos que por muito tempo -,…
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - A bem do País!
Risos do PS.
O Sr. Fernando Seara (PSD): - … temos a certeza de que a construção normativa será cuidadosa e ponderará os interesses dos direitos e liberdades dos cidadãos.
O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado Pedro Roseta.
O Sr. Pedro Roseta (PSD): - Sr. Presidente, não quero evidentemente repetir o que já foi dito pelos Srs. Deputados Marques Guedes e Fernando Seara, mas não posso deixar de começar por agradecer a vinda e a exposição do Sr. Comissário António Vitorino.
Lembro a já longínqua revisão de 1989 e os longos debates que então travámos (não nesta sala, mas um pouco mais acima) e que tiveram, como se lembram, um final bastante feliz.
Posto isto, gostaria de colocar duas questões em matérias complementares, que não aquelas que foram referidas pelos meus colegas.
Em primeiro lugar, uma vez que a Carta de Direitos Fundamentais tem, como todos sabem, um valor proclamatório, a propósito da criação do espaço de liberdade e de segurança, de que tanto se tem ocupado e do qual aqui falou, gostaria de colocar-lhe a seguinte questão: como chegar a um espaço dessa natureza sem uma afirmação do primado da pessoa humana e dos direitos fundamentais humanos? Por outras palavras, por que é que a União continua a não aderir à Convenção Europeia dos Direitos do Homem e aos seus protocolos, designadamente o n.º 6, relativo à abolição da pena de morte?
Esta é uma questão que me parece óbvia e gostaria de ouvir as suas reflexões sobre ela.
Com efeito, trata-se de uma situação incompreensível. Aliás, como sabe, a assembleia parlamentar do Conselho da Europa várias vezes se tem referido a esta verdadeira incongruência! Embora não em todos os órgãos, talvez não a Comissão, talvez não o Parlamento Europeu, mas o Conselho e outros órgãos continuam a opor-se a essa adesão - ou filiação, pouco importa (para não falar na palavra tabu que, neste caso, seria a ratificação) - ou outra forma qualquer para que este documento essencial fosse um pilar do pilar do espaço de liberdade e de segurança.
Ainda em relação a este assunto, gostaria de colocar uma questão complementar: o Sr. Comissário pensa que se deverá ficar por aí, ou deverá alargar-se a outras convenções já existentes, que não fazem muito sentido se forem adoptadas apenas por alguns países, mas que farão muito mais sentido no espaço europeu global dos 43 países membros do Conselho da Europa (que esperamos que um dia sejam 47). É o caso, por exemplo, da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina (já com o seu protocolo que proíbe a clonagem reprodutiva) ou da Carta Social Europeia.
Segunda e última questão: quero congratular-me vivamente com as afirmações que fez sobre a ratificação do Estatuto de Roma, sobre as posições favoráveis da Comissão e do Conselho e julgo que, também, do Parlamento Europeu, que veriam com agrado a ratificação por parte dos Estados membros.
Poderia ir um pouco mais longe, embora sabendo que a sua esfera de acção é o espaço interno, mas gostaria que nos pudesse dizer algo sobre as preocupações dos órgãos da União em matéria de protecção dos direitos do homem no mundo, fora da União: a prevenção das violações, o mecanismo do TPI como forma de prevenir crimes contra a humanidade, o genocídio, etc., etc.
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Gostaria de ouvir as suas reflexões nessa perspectiva, sendo certo que - não sei se é a sua opinião, muito menos sei se alguma vez isso foi ventilado nos órgãos da União -, sou (já aqui o tenho dito várias vezes) muito crítico em relação à experiência dos tribunais ad hoc actuais. Não estou a falar dos Tribunais de Nuremberga e de Tóquio, porque esses tiveram o seu papel histórico, que ninguém nega, e, entretanto, passaram-se décadas, mas sou muito crítico sobre os actuais tribunais.
Agradecia que, se quisesse, me desse a sua impressão sobre estes tribunais, que são tribunais de vencedores e, sobretudo, pior do que isso - já é uma banalidade dizê-lo -, são tribunais que não aplicam um dos princípios fundamentais, como o da igualdade de apreciação perante determinados círculos e o da não retroactividade. Pelo contrário, são retroactivos, e, para além disso, não são iguais, como é evidente!
Queria concluir dando apenas um exemplo que todos conhecem. O caso mais gritante é o do Tribunal do Ruanda, que só pune crimes de genocídio praticados entre 1 de Janeiro e 31 de Dezembro de 1994, portanto, todos os que forem praticados num país ao lado, ou mesmo no próprio Ruanda, em 1995, ou em 2001, não são punidos! Esta situação é, efectivamente, a meu ver, insustentável. Gostava de ouvir as suas reflexões sobre ela, bem como se a União não poderá, para além dos conselhos aos países membros, que talvez até nem sejam tão necessários como isso, fazer mais alguma coisa pelos direitos do homem fora do espaço da União, nos vastos continentes onde eles estão muito esquecidos, como sejam a África, a Ásia e outros.
O Sr. Presidente: - Antes de dar a palavra ao Sr. Dr. António Vitorino, quero confirmar que o Sr. Ministro da Justiça estará na Assembleia, na próxima terça-feira, às 10 horas e 30 minutos. Portanto, iniciaremos os nossos trabalhos a essa hora.
Sr. Dr. António Vitorino, os reptos que lhe foram lançados vão muito para além do convite que lhe foi endereçado mas, em todo o caso, penso que estas "provocações" não terão resistência da sua parte para ir mais além, quer nos aspectos que dizem respeito à própria revisão constitucional, nos vários pontos que aqui foram trazidos à liça, quer até neste aspecto final que vai também um pouco para além dos trabalhos da Comissão e do convite que lhe foi endereçado.
Mas, como digo, tem a palavra com toda a liberdade para se exprimir sobre os assuntos que entender, visto que as "provocações" estão aí! Portanto, está "absolvido" ou, pelo menos, tem atenuantes muito importantes.
O Sr. Dr. António Vitorino: - Sr. Presidente, em primeiro lugar, gostava de agradecer as palavras muito simpáticas que me dirigiram, mesmo naquela dimensão em que o desafio ultrapassa a minha capacidade de Comissário Europeu. Procurarei ser o mais disciplinado possível e manter-me, tanto quanto possível, nessa qualidade, porque sabem como as recaídas são perigosas! Olhem se eu tomo o gosto… É melhor manter-me nessa qualidade.
Estou basicamente de acordo com as considerações do Sr. Deputado Luís Marques Guedes. É evidente que estas são matérias do Terceiro Pilar, que só podem ser aprovadas pelo Conselho da União por unanimidade, e, naturalmente, é sempre possível defender a tese de que fiat gloria pereat mundus, isto é, mantenhamo-nos "imovíveis", porque a unanimidade é a nossa salvaguarda.
Mas também convém saber ler os "ventos" que andam à nossa volta. Por exemplo, podemos perguntar quantos mais países têm, na União Europeia, regras de bronze constitucionais sobre a proibição de extradição de nacionais. O último bastião é o português, porque o penúltimo acabou de cair: era a Alemanha, que acabou de concluir uma revisão constitucional exactamente para permitir a extradição de alemães, e o pretexto, por acaso, foi o da adesão da Alemanha ao Tribunal Penal Internacional, de Roma. Isto significa - e nesta matéria já não vou entrar, porque deixo isso à vossa jurisdição - que a opção política é a de ter Portugal isolado, a bloquear uma decisão por unanimidade.
Sobre esta matéria e sobre o que isso significa, não quero manifestamente falar, mas chamo a atenção de que, neste momento, não vejo em nenhum Estado membro obstáculo algum de ordem constitucional ao princípio da extradição de nacionais dentro do espaço da União que não seja a regra constitucional portuguesa.
Estou totalmente de acordo quando o Sr. Deputado diz que extradição e entrega vão dar ao mesmo. É evidente! Daí que os chefes de Estado e do Governo, em Tampere, tenham falado na abolição da extradição e sua substituição por um outro sistema, por um sistema de entrega.
Portanto, o que antevejo é que, no espaço da União Europeia, passarão a subsistir duas regras: uma, a da extradição clássica, que tem sobretudo a ver com a relação destes países com países terceiros; outra, a regra de entrega judicial com excepção dos casos que forem exceptuados no próprio instrumento comunitário. É este o modelo que, em princípio - espero, se tudo correr bem -, estará em cima da mesa do Conselho de Ministros da Justiça e dos Assuntos Internos e que, a partir de Setembro, começará a ser discutido sob a presidência belga. E a intenção é ter a sua aprovação no primeiro semestre do ano que vem, sob a presidência espanhola.
Escuso de sublinhar as razões que levam a que exista um enorme interesse da presidência espanhola em instrumentos deste género.
Permitam-me acrescentar, aliás, também um elemento adicional: uma das questões essenciais para o funcionamento da ordem de busca e captura europeia é estabelecer o princípio de que um suspeito da prática de crimes num Estado que, simultaneamente, tenha praticado outro tipo de crimes noutro Estado não se pode prevalecer dos crimes menores no segundo Estado para obstar a confrontar-se com a justiça no primeiro Estado.
Ponhamos o exemplo concreto que se verificou com o célebre caso Rezala. Este é um caso típico em que a pessoa em causa tentou desesperadamente infringir a lei penal portuguesa para ser confrontada com o ordenamento jurídico português por um delito menor, à luz do ordenamento português, para evitar ser extraditado para França e ser confrontado com o delito maior, que era o de ter praticado três assassinatos em França.
O exemplo mais comum que é dado, de facto, digo-o com todo o à-vontade, é o caso dos terroristas da ETA. Em Espanha praticam actos terroristas que envolvem a morte de pessoas e, depois, noutro país, são detidos pelas autoridades por porte de arma ilegal e por terem passaporte falso, e, uma vez que praticaram um crime à luz do ordenamento deste país, têm de ser submetidos à sua jurisdição por crimes manifestamente menores, antes sequer de poder ser desencadeado o processo de extradição para Espanha e de serem confrontados com o crime maior.
Se queremos um espaço de liberdade, de segurança e de justiça, se abolimos as fronteiras internas, não se
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percebe por que é que as fronteiras internas apenas subsistiriam para proteger os criminosos! Isto é que eu não sou capaz de perceber! Portanto, a lógica de que o criminoso deve responder perante a justiça do Estado onde praticou o delito mais grave é, em meu entender, uma lógica que é de consolidação do Estado de direito democrático, é a de dizer que o Estado de direito não está desarmado perante o facto de as diferenças de ordenamentos jurídicos beneficiarem o infractor! A regra (olho para o Dr. Fernando Seara) até pode ser inspirada do futebol.
Em relação à questão do artigo 33.º da CRP, concordo com a sua interpretação. Essa é uma interpretação possível, daí que eu tenha colocado, logo no princípio, a questão de saber o que é neste n.º 5 do artigo 33.º são garantias no caso ou garantias abstractas do ordenamento. É que a partir daí há um mundo de diferenças! Há um mundo de diferenças consoante a garantia seja dada por uma norma do Código Penal em todas as circunstâncias, ou consoante sejam exigidas garantias no caso. Devo dizer que a interpretação do Tribunal Constitucional português não vai muito no sentido da sua, vai mais no outro sentido, no sentido de exigir garantias no caso, o que me parece, aliás, ainda mais problemático de aplicar.
Desde logo, há um raciocínio ao qual, penso, não nos podemos furtar, que é o seguinte: podemos contentar-nos com a apreciação em abstracto do enunciado da prisão perpétua? Não deveremos ir mais fundo no raciocínio nesse caso? Dou-lhe um exemplo: há um país da União Europeia onde não há prisão perpétua, mas onde a pena máxima é de 40 anos! Naturalmente, pergunto se há uma diferença assim tão qualitativa entre o princípio da prisão perpétua e o princípio da aplicação de uma pena de 40 anos, na essência dos princípios!
Mas, depois, há um segundo raciocínio que pode e deve ser feito e que é interessante: uma coisa é a facti species legal; outra coisa são as regras do ordenamento jurídico sobre a possibilidade de libertação a certo percurso de execução da pena. Outra coisa ainda - e esta já é da sociologia jurídica, reconheço -, é a realidade da duração efectiva das penas, que é um terceiro raciocínio.
Se quisermos ter uma verdadeira visão humanista do que é a função ressocializadora da pena, então, Srs. Deputados, peço desculpa, não nos podemos quedar e ter a nossa consciência humanista tranquilizada apenas pela visão abstracta da previsão legal, temos de ver como é que essa previsão funciona no concreto.
Há realidades extremamente interessantes de analisar em termos de duração média de penas - isto é sociologia do direito, já não vou entrar aí, mas é interessante ver, sobretudo numa outra dimensão. Por exemplo, em que parte da duração da pena os ordenamentos jurídicos permitem a libertação condicional, ou a libertação provisória? Isto altera completamente a visão da lógica dos sistemas jurídicos dos 15 Estados membros e, se calhar, aquela visão que temos, apenas decantada das normas abstractas do códigos penais, e que é profundamente subvertida pela realidade da duração média das penas efectivamente aplicadas!
Há países onde estão previstas penas pesadíssimas mas onde, por exemplo, a duração média de uma pena efectiva é de 14 anos. Contudo, a pena é, teoricamente, pesadíssima.
Noutros países a pena nem sequer é tão pesada na sua descrição legal, mas não pode haver libertação, para certo tipo de crimes, antes de 26 anos de prisão efectiva.
Noutros países ainda as médias são muito oscilatórias. Por exemplo, quando eu digo que num Estado a libertação pode ocorrer entre 10 e 20 anos, em média - entre uma pena efectiva de 10 anos, ou uma pena efectiva de 20 anos -, há uma grande arbitrariedade na liberdade do juiz de fixar o momento em que ocorre a libertação provisória.
Portanto, isto significa que a lógica da norma do n.º 5 do artigo 33.º é bem intencionada - não tenho a menor dúvida sobre isso -, mas as subtilezas da sua aplicação prática parecem-me ser bastante mais complexas!
Em relação à questão que foi colocada pelos Srs. Deputados Luís Marques Guedes, Jorge Lacão e Fernando Seara, que é muito difícil e delicada sob o ponto de vista político - mais a mais, falando eu aqui sob o controle do Prof. Fernando Seara, que é professor de Direito Comunitário e, portanto, sabe melhor do que ninguém que este é um terreno melindroso, tanto sob o ponto de vista jurídico com sob o ponto de vista político -, diria o seguinte: quando Portugal se começou a preparar para aderir às Comunidades Europeias teve consciência de que tinha de consagrar no seu ordenamento jurídico uma regra sobre essa matéria.
Ora, na revisão constitucional de 1982, de que o Sr. Deputado Pedro Roseta e a Sr.ª Deputada Maria Manuela Aguiar de certo se lembram bem, tivemos um debate muito interessante sobre esta matéria e, na base de um texto fornecido pela Sr.ª Prof.ª Isabel Maria Magalhães Colaço, acabámos por adoptar aquela fórmula do n.º 3 do artigo 8.º da Constituição.
É uma fórmula muito curiosa de dissecar nas suas várias implicações.
Primeiro, nas suas implicações políticas.
Nessa altura, nunca se nos colocou a possibilidade de utilizar na Constituição Portuguesa uma norma inspirada, por exemplo, no artigo 10.º, salvo erro, da Constituição holandesa, o qual já existia e dizia claramente "partilha de soberania e restrições de soberania decorrentes da participação". Na realidade, concentrámos a questão num aspecto, que é um aspecto basilar da construção europeia, sem dúvida, que é o da identificação do valor das normas jurídicas comunitárias. E essa foi uma opção política!
Mesmo dentro dessa opção política, fez-se uma opção jurídica, a qual tem o que se lhe diga!
Se lermos hoje o n.º 3 do artigo 8.º da Constituição - penso que ainda subsiste inalterado, tal como saiu da revisão de 1982 -, veremos que nessa norma só fazemos referência explicitamente a uma das dimensões da eficácia do Direito Comunitário na ordem jurídica interna dos Estados membros, que é a aplicação directa. Quid do primado? Não está lá! Ou melhor, está de alguma forma implícito, na medida em que se reenvia para as condições de efectivação previstas nos tratados. Isto é, reconhecemos o efeito directo e dizemos "quanto ao primado, é o que resultar dos tratados". Há aqui, portanto, uma norma de alguma forma encapotada de reenvio para a questão do primado.
Lembro-me que, em 1989, discutimos a questão do primado na comissão de revisão constitucional e a minha tese perdeu. A minha tese era a de que isto é um absurdo jurídico, porque há normas jurídicas comunitárias que beneficiam de efeito directo e, consequentemente, do primado, mas isso não resulta de nenhuma previsão expressa dos tratados, que é o caso das chamadas "directivas de efeito directo". Isto é, as directivas, por definição, não têm efeito directo, só os regulamentos têm efeito directo. Mas há, de facto, directivas às quais o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias reconhece efeito directo e, consequentemente, primado. Portanto, essas seriam ilegais e inconstitucionais à luz de uma leitura
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muito estrita do nosso artigo 8.º, n.º 3. Como disse, na altura, perdi e o artigo lá ficou inalterado.
Daí para cá, que me recorde, o artigo não foi mudado. O que se fez foi o acrescento ao artigo 7.º, na revisão constitucional de 1992, com aquela lógica do princípio da reciprocidade de aceitar o exercício em comum de poderes de soberania no respeito do princípio da subsidiariedade para garantir a coesão económica e social. É um distinguo importante mas, em meu entender, redutor.
É que, Srs. Deputados, sejamos honestos. Para todos nós, a coesão económica e social é muito importante, é um elemento estruturante da União Europeia, mas essa é uma visão muito parcial do que é hoje a dimensão do exercício em comum de poderes de soberania no âmbito europeu, que está muito para além da mera coesão económica e social. O exercício da soberania tem a ver com outras coisas, tem a ver com a união política designadamente, tem a ver com a cidadania europeia e não é aí que se encontra o fundamento deste exercício em comum de poderes de soberania de que fala a Constituição.
Feito este percurso, percebo a lógica de uma cláusula geral. E aí, digo-vos que, então, a lógica de uma cláusula geral é para "atacar a questão no duro", perdoem-me a expressão. Então, não é apenas uma lógica de cláusula sobre regras de vigência na ordem jurídica interna do Direito Comunitário, é uma questão que tem a ver com o exercício partilhado de poderes soberanos ou, agora, com outras fórmulas jurídicas possíveis de serem adoptadas - e há para todos os gostos nas Constituições do Estados membros.
É evidente que, numa grande parte dos casos, essas normas gerais têm sido interpretadas como permitindo derrogações aos seus respectivos ordenamentos constitucionais.
Agora, é preciso ter um cuidado enorme na redacção dessa norma - e também vo-lo digo com toda a sinceridade -, por uma razão simples.
O Sr. Deputado Fernando Seara deu dois exemplos que são paradigmáticos, o alemão e o italiano.
É que, desde o final dos anos 80, princípio dos anos 90, tanto o Tribunal Constitucional alemão como o italiano disseram: "Bom, mas se não há um quadro jurídico explícito de garantia dos direitos fundamentais no ordenamento europeu, então, reservamos para a jurisdição na ordem interna, isto é, para os nossos poderes de tribunais constitucionais, a garantia desses mesmos direitos fundamentais e, consequentemente, podemos chegar à conclusão que, em recursos individuais e concretos, se o ordenamento jurídico comunitário não dispensar a protecção adequada e necessária a esses direitos fundamentais, nós recusaremos o efeito do primado". E esta foi uma jurisprudência que, de alguma forma, conduziu um pouco a um beco sem saída no relacionamento entre o Tribunal do Luxemburgo, o Tribunal Constitucional alemão e o italiano.
O Tribunal Constitucional português, eventualmente, poderia ter feito o mesmo percurso mas, sabiamente, não se encaminhou nesse sentido. Diga-se também, em bom abono da verdade, que os juristas portugueses não são particularmente useiros e vezeiros em colocar em sede de jurisdição constitucional portuguesa questões que têm a ver com o estatuto dos direitos fundamentais à luz da protecção que lhes é dispensada pelo ordenamento comunitário. Aliás, é interessante ver as estatísticas do Tribunal do Luxemburgo e quantos recursos são interpostos por cada Estado e pelos particulares de cada Estado.
Então, diria que não tenho conselhos a dar à Assembleia da República - longe de mim essa ideia! -, mas é preciso redigir essa cláusula de maneira a que ela permita a partilha de poderes soberanos, as limitações de soberania decorrentes do exercício em comum. Enfim, há várias modalidades mas, sobretudo, é necessário que essa cláusula não coloque o Tribunal Constitucional português na mesma situação dos seus congéneres alemão e italiano que, depois, dá origem a fazer "entrar pela janela" aquilo que não se quis "deixar entrar pela porta", isto é, dá origem a um deadlock, um beco sem saída em matéria de interpretação jurídico-constitucional numa área muito sensível que é a dos direitos fundamentais.
Aqui, entronco com a questão do Sr. Deputado Pedro Roseta: qual é o grau de protecção dos direitos fundamentais na União Europeia? Não posso estar mais de acordo consigo. Isto é, reconheço que, hoje em dia, o artigo 6.º do Tratado da União Europeia é a matriz aplicável nesta matéria.
E que diz o artigo 6.º? Diz que, para efeitos de definição do estatuto jurídico dos direitos fundamentais no ordenamento jurídico comunitário, o Tribunal de Justiça utilizará a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e a tradição constitucional comum dos Estados membros como princípios gerais do Direito Comunitário. E é isso que o Tribunal tem feito.
Mas temos de reconhecer que, hoje, no ordenamento jurídico comunitário, a protecção dos direitos fundamentais é uma construção pretoriana, isto é, uma pura construção jurisprudencial, daí o exercício da Carta dos Direitos Fundamentais. E daí, Sr. Deputado, a possibilidade de adesão da União Europeia à Convenção Europeia dos Direitos do Homem que, como sabe, tem sido sempre preconizada pela Comissão Europeia e pelo Parlamento Europeu, adesão essa que, em 1996, foi colocada à decisão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias e o Tribunal do Luxemburgo disse uma coisa muito clara. Disse que "é possível desde que, para o efeito, haja uma norma de Direito Constitucional primário a nível europeu", isto é, desde que haja uma norma dos tratados sobre a matéria. Sem norma habilitadora dos tratados é que não é possível.
Pequeno desiderato: aí também haveria que alterar a própria Convenção Europeia dos Direitos do Homem porque, como o Sr. Deputado sabe melhor do que ninguém, a própria Convenção só permite a adesão de Estados, questão que, aliás, me parece ultrapassável e menor.
Significa isto que quando a Conferência Intergovernamental de 2004 tiver de decidir o que é o estatuto jurídico da Carta dos Direitos Fundamentais, tal como ficou consignado na Declaração n.º 23 anexa ao Tratado de Nice, será a ocasião para pôr ordem nas fileiras e para clarificar não apenas o estatuto jurídico da Carta dos Direitos Fundamentais mas também a questão da adesão à Convenção Europeia dos Direitos do Homem e, assim, construir um corpo de normas de Direito Comunitário que tutela o exercício dos direitos fundamentais. Atenção: isto não impede que as Constituições dos Estados membros vão mais além.
Esse é um ponto que, para Portugal, é particularmente sensível, e tenho consciência disso. Peço desculpa por falar como português, mas devo dizer que nós não temos de aprender lições sobre protecção de direitos fundamentais, pelo menos sob o ponto de vista de ordenamento constitucional, vindas de outros Estados ou até de instrumentos de direito internacional como a Convenção Europeia de Direitos do Homem. Significa é que o nível de protecção conferido pelo Direito Comunitário deve ser um nível comum a todos os Estados membros.
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Naturalmente, esta é a resposta que posso dar à questão da cláusula geral: sim, acho que há vantagens; acho que essa cláusula geral permitiria mesmo este tipo de derrogações a que alguns teóricos mais exigentes chamariam "rupturas internas à Constituição", dentro de uma lógica de princípios gerais/princípios especiais, que me parece necessário salvaguardar - e permito-me chamar a atenção de que não é a única ruptura interna à Constituição que existe.
Em segundo lugar, devo dizer que há que ter cuidado com a redacção dessa norma porque há que evitar que a mesma dê caminho a que o Tribunal Constitucional seja obrigado a fazer uma interpretação e, depois, esteja colocado na mesma situação em que estiveram os seus congéneres alemão e italiano.
Finalmente, passo à questão das outras convenções.
Sr. Deputado Pedro Roseta, eu não poderia deixar de estar de acordo consigo. Penso que, neste momento, há três ou quatro convenções cuja adesão por parte da União Europeia estamos a equacionar como uma hipótese, mas há algumas que já "estão na calha", se me permite a expressão plebeia.
Assim, a partir do momento em que o Tratado de Amesterdão comunitarizou todas as matérias da cooperação judiciária civil, a Comunidade Europeia, portanto, o Primeiro Pilar, tem um exclusivo de representação externa dos Estados membros em matéria de cooperação judiciária civil. Significa isto que, hoje, todas as convenções da Conferência da Haia terão de contar não apenas com os 15 Estados membros mas também com as Comunidades Europeias como parte contratante na medida em que versem sobre matérias comunitarizadas.
Eu próprio, por exemplo, em Palermo, em Dezembro do ano passado, tive ocasião de subscrever, em nome das Comunidades Europeias, a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado, porque a mesma tem dois protocolos adicionais sobre o tráfico de seres humanos que, hoje, constituem matéria em larga medida comunitarizada, porque têm a ver com o controle das fronteiras externas da União que é matéria do Primeiro Pilar.
Isto é, já está a ser trilhado o caminho para que a União ou as Comunidades enquanto tal sejam parte de convenções internacionais - aqui há uma questão a ver, porque as Comunidades têm personalidade jurídica mas a União não tem; é uma questão jurídica muito delicada. O caminho está a ser trilhado com implicações jurídicas que têm de ser devidamente acauteladas.
Finalmente, quanto à protecção dos direitos humanos no mundo, Sr. Deputado Pedro Roseta, essa matéria não é da minha responsabilidade. Na Comissão Europeia temos uma divisão de responsabilidades. Eu próprio sou responsável, dentro de certos limites, enquanto responsável pela jurisdição interna, pelos direitos fundamentais dentro da União Europeia, enquanto o meu colega Chris Patten é o responsável pelos direitos fundamentais na relação com países terceiros.
O que posso dizer-lhe é que há um protagonismo activo da União Europeia no domínio do diálogo político, em alguns casos, com resultados positivos, noutros, sem resultados positivos. Recentemente, foi publicado um documento orientador muito interessante, no qual se indica como é que as outras políticas - política comercial, política de ajuda ao desenvolvimento, política de apoio à construção de Estados de direito democrático - podem ser instrumentos da protecção e da salvaguarda dos direitos fundamentais à escala planetária. Estamos longe? Estamos. O sistema que existe é imperfeito? É imperfeitíssimo. Mas tal como Churchill disse que "a democracia é o pior dos sistemas exceptuados todos os outros", também eu estou convencido de que o Tribunal Penal Internacional é o pior dos sistemas exceptuados todos os outros que têm como objectivo garantir os direitos fundamentais à escala planetária.
O Sr. Presidente: - Sr. Comissário, muito obrigado pela sua exposição muito enriquecedora em vários aspectos.
Não há mais inscrições.
Assim, permito-me agradecer mais uma vez a sua presença, como também o que quis transmitir-nos e que, certamente, vai ajudar muito à continuação dos trabalhos desta Comissão.
Está encerrada a reunião.
Eram 17 horas e 5 minutos.
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