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V REVISÃO CONSTITUCIONAL
Comissão Eventual para a Revisão Constitucional
Acta n.º 17
Reunião do dia 18 de Setembro de 2001
SUMÁRIO
A reunião teve início às 15 horas e 25 minutos.
Continuação da apreciação das diferentes propostas pelos grupos parlamentares, tendo usado da palavra para o efeito, além do Sr. Presidente (José Vera Jardim), os Srs. Deputados Jorge Lacão (PS), Luís Marques Guedes (PSD), António Filipe (PCP), Fernando Rosas (BE), Narana Coissoró (CDS-PP), Guilherme Silva (PSD), Alberto Costa (PS), Fernando Seara (PSD) e Maria Manuela Aguiar (PSD).
Deu ainda entrada na Mesa uma proposta de alteração ao n.º 3 do artigo 34.º, apresentada pelo CDS-PP.
O Presidente encerrou a reunião eram 17 horas e 25 minutos.
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O Sr. Presidente (José Vera Jardim): - Srs. Deputados, temos quórum, pelo que declaro aberta a reunião.
Eram 15 horas e 25 minutos.
Srs. Deputados, antes de mais, queria informá-los de que recebi algum expediente, designadamente correspondência, num dos casos assinada pelo Sr. Coordenador do Conselho das Comunidades Portuguesas do Brasil com várias assinaturas e noutro assinada pelo Sr. Dr. Rui Moura Ramos, juiz do Tribunal Europeu de 1.ª Instância, missivas que estão à disposição dos Srs. Deputados.
Também foram recebidos pelo secretariado das comissões vários pedidos para acesso a propostas alternativas que tivessem sido já apresentadas nesta Comissão - que eu saiba, há apenas uma proposta alternativa apresentada pelo Grupo Parlamentar do PSD e relativa a um dos artigos em discussão. Pela minha parte, tendo em conta o entendimento de que os trabalhos são públicos, não vejo qualquer problema em fornecer a entidades externas cópia dessas propostas, mas não queria deixar de consultar os Srs. Deputados sobre esta matéria, antes de, caso não haja oposição, fornecer cópia dessa proposta.
Pausa.
Muito bem! Entendo o vosso silêncio como uma manifestação de assentimento a que seja fornecida cópia da referida proposta, segundo julgo, ao Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, que terá pedido a formulação apresentada alternativamente pelo PSD para o artigo 34.º.
Vamos, então, dar início aos nossos trabalhos propriamente ditos, tendo em vista que tínhamos agendado para hoje, se possível, o entrar na redacção ou, pelo menos, numa certa tentativa de concretização de algumas propostas a fazer pelos vários grupos parlamentares e pelos vários Srs. Deputados em relação aos pontos que estão sobre a mesa.
Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Lacão.
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, Srs. Deputados, na nossa última reunião tive oportunidade, a exemplo do que fizeram Deputados de outras bancadas, de procurar dar um contributo no sentido de uma aproximação ou, pelo menos, de uma tentativa de elaborar a síntese que os nossos trabalhos até ao momento tinham prometido. Isto, bem entendido, na perspectiva de procurar orientar essa intervenção para a criação das condições do consenso desejável e possível em torno das matérias que o possam vir a obter e que estejam presentes nesta revisão.
Procurarei, com a intervenção que agora me proponho fazer, de alguma maneira na linha dessa intervenção a que acabei de aludir, expor aos Srs. Deputados, ponto a ponto, aquele que é o resultado da nossa reflexão e o que procuramos que seja o nosso contributo para densificar essa reflexão, aproximando-a de soluções tanto quanto possível próximas da precisão final que temos de encontrar. Assim, situando essa…
O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Não pode distribuir um exemplar?
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Não estou ainda em condições de o fazer, Sr. Deputado, pelo que lhe peço desculpa. De todo o modo, contando com a benevolência da sua atenção, procurarei identificar ponto a ponto as linhas do nosso contributo.
Em primeiro lugar, em sede de artigo 7.º, que trata dos princípios fundamentais das relações internacionais, e, mais concretamente, em relação ao n.º 6 deste artigo, têm todos os Srs. Deputados presente aquela que foi a proposta do PS bem como a sua razão de ser. Como sabemos, este n.º 6 do artigo 7.º foi especialmente introduzido na Constituição em vésperas da aprovação do Tratado de Maastricht, justamente para que o processo de aprovação e de ratificação desse Tratado pudesse ser feito em condições de aceitação pela Constituição Portuguesa.
Toda a redacção deste n.º 6 foi, por isso, elaborada em sede constitucional com os olhos postos no articulado do Tratado de Maastricht. É por isso que encontramos hoje neste número um requisito fundamental ao exercício em comum dos poderes necessários à construção da União Europeia, requisito que está identificado com a realização da coesão económica e social.
Temos, no entanto, de convir que a evolução jurídica e institucional da União Europeia não parou com o Tratado de Maastricht, já que estamos em véspera de aprovação de uma nova versão dos tratados com o Tratado de Nice e que, entretanto, mediou o Tratado de Amesterdão. Ora, um contributo relevante que o Tratado de Amesterdão nos trouxe, como sabemos, foi o de clarificar melhor as regras da construção do espaço de liberdade, de segurança e de justiça, quer na parte em que comunitarizou competências nos órgãos da União, quer na parte em que essas competências têm o seu lugar no espaço das atribuições governamentalizadas, mas onde, todavia, o Tratado de Amesterdão passou a prever novas modalidades institucionais de cooperação, particularmente no que diz respeito à cooperação judiciária em matéria penal.
Como tal, se o n.º 6 do artigo 7.º, como tenho vindo a procurar sublinhar, foi originariamente redigido com os olhos postos no Tratado de Maastricht, a nosso ver faz todo o sentido que este n.º 6 possa ser actualizado em vista da nova realidade jurídico-institucional da União, designadamente, como referi, do Tratado de Amesterdão, e por isso se faça alusão ao requisito do aprofundamento da União Europeia, não apenas no domínio da coesão económica e social, mas também, como começámos por propor, na própria realização do espaço de liberdade, de segurança e de justiça.
Ora, ocorre que esse espaço de liberdade, de segurança e de justiça, nos termos do Tratado, pode ser alcançado através de modalidades de cooperação. Recordo, por exemplo, o que é o valor das convenções-quadro no domínio da chamada cooperação reforçada. E é, portanto, esta realidade jurídico-institucional da União que, de uma forma actualizada, deve ser inteiramente vertida para o artigo 7.º. Por isto, recuperando a nossa formulação originária, queremos propor aos Srs. Deputados que ela venha a ser complementada por uma referência não só ao requisito do espaço de liberdade, de segurança e de justiça, como a que o poder de convencionar para o exercício em comum seja também alargado para "o exercício em comum ou em cooperação dos poderes necessários à construção da União Europeia".
Posta esta explicação, oportunamente apresentaremos aos Srs. Deputados o texto que traduz esta minha justificação.
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Depois, ainda no quadro do artigo 7.º, há que fazer referência a uma norma que signifique cláusula formal de recepção do Estatuto de Roma relativo ao Tribunal Penal Internacional. Já tive ocasião de admitir em intervenção anterior a disponibilidade do PS para dar o seu contributo para a inserção, em sede do artigo 7.º, dessa cláusula de recepção e também admiti uma disponibilidade para que o texto justificativo dessa cláusula de recepção pudesse ser formulado de modo a que dele pudesse resultar uma síntese entre os vários contributos apresentados nesta Comissão. Um desses contributos foi o de fundamentar a própria cláusula de recepção, com o propósito constitucionalmente proclamado de que se trata de um contributo para a realização do domínio da justiça internacional e da promoção internacional do respeito pelos direitos da pessoa humana e dos povos, com o que estamos, obviamente, de acordo. Não temos, portanto, qualquer dúvida em incorporar na formulação final este contributo originariamente apresentado pelo PSD.
Sempre apresentámos reservas, todavia, relativamente a uma referência quanto à natureza da complementaridade que se estabelecesse entre a jurisdição do TPI e a jurisdição interna. Penso que é possível encontrar uma solução que, de alguma maneira, corresponda às preocupações que o PSD inicialmente apresentou neste domínio com a nossa regra de cautela - a de não definir uma regra vinculante em sede constitucional quanto ao comportamento da jurisdição portuguesa em face da jurisdição do TPI.
Nesse sentido, admitimos que se a referência às condições da complementaridade for feita por remissão para o próprio Estatuto de Roma, tal como ele está já estabelecido, esta solução corresponde a uma preocupação originariamente formulada pelo PSD e não deixa de corresponder à nossa própria preocupação de não fazer da invocação da complementaridade uma regra autónoma de vinculação. Penso que assim encontraremos uma solução de texto compromissória e que corresponderá ao conjunto das preocupações aqui referidas.
Feita esta explicação, declaro que também oportunamente apresentaremos um texto conforme.
Sobre o artigo 15.º, aquele que se reporta à definição da igualdade de direitos em condições de reciprocidade dos cidadãos portugueses com os cidadãos dos Estados de língua portuguesa, temos aqui já declarado a nossa concordância em permitir rever as excepções a esta regra de igualdade no sentido de retirar alguns cargos do elenco das excepções referidas e, portanto, no sentido de criar uma solução que se aproxime das preocupações constantes da formulação do artigo 15.º apresentado pelo PSD.
No entanto, subjaz-nos aqui uma preocupação que queremos partilhar convosco. Na formulação apresentada pelo PSD para o artigo 15.º, entre os outros aspectos técnicos que certamente serão resolvidos a contento de todos, começa por se enunciar uma referência expressa aos cidadãos da República Federativa do Brasil, deixando depois uma referência genérica para os demais Estados de língua oficial portuguesa. Suponho que esta fórmula que o PSD apresenta é inspirada na própria construção constitucional brasileira. Compreendemos que aquilo que preocupa o Estado brasileiro é a relação privilegiada com Portugal, faz sentido na matriz das nossas relações históricas.
Todavia, vendo a mesma questão do lado português, pergunto-me e pergunto aos Srs. Deputados se nós temos de regular uma distinção relativamente a um dos Estados do espaço lusófono ou se, tal como a Constituição já exprime no artigo 15.º, a construção que entendermos reformular deve ser feita tratando sem distinção protocolar o conjunto dos cidadãos membros dos Estados de língua portuguesa. Esta é já a escolha feita pela nossa Constituição e, por isso, propendemos a admitir que a fórmula constitucional actual neste ponto deve manter-se, ou seja, Portugal deve procurar incrementar condições para o reconhecimento da igualdade de direitos com o conjunto dos cidadãos dos Estados de língua portuguesa e o que resultar em termos de maior aproximação à concretização deste princípio depende mais das relações políticas entre os Estados, dos instrumentos convencionais que estabelecerem entre si, do princípio da reciprocidade que mutuamente adoptarem e não, propriamente, de uma distinção protocolar feita em sede constitucional.
Em conclusão: assumimos a proposta útil, do ponto de vista das consequências jurídicas, que o PSD aqui formulou no sentido de restringir aquelas limitações ao plano da igualdade de direitos. Temos, todavia, o entendimento de que não deve haver distinções protocolares em sede constitucional relativamente ao conjunto dos cidadãos dos Estados de língua portuguesa e é neste sentido, portanto, que apresentaremos uma formulação para o artigo 15.º.
Neste artigo há outros aspectos de tecnicidade que temos de ter em conta mas que já foram referidos em troca de impressões anteriores e que, por isso, me permito agora dispensar de voltar a reconsiderar.
O artigo 34.º também já foi objecto de reflexão pelo Grupo Parlamentar do PS. Trata-se de levantar um princípio de proibição absoluta com sede constitucional quanto às buscas domiciliárias nocturnas e, neste domínio, põe-se a questão de saber se, no momento em que a Constituição admitir superar este princípio restritivo, deve fazê-lo na base de uma cláusula genérica, remetendo uma credencial autorizativa para o legislador ordinário regular quais são os tipos legais de crime que devem admitir as buscas domiciliárias nocturnas, ou se deveremos procurar uma delimitação material em sede constitucional para a tipologia dos crimes que permita essa excepção ao princípio geral da proibição.
Como sabem, a proposta inicial apresentada pelo CDS-PP fazia uma delimitação material extremamente restritiva, no sentido em que a admitia tão-só para o tráfico de droga. Do conjunto de impressões aqui trocadas em Comissão, e também nas audições que tiveram lugar, de alguma maneira foi-se criando entre nós um consenso no sentido de alargar o seu âmbito de aplicação. O problema põe-se agora em termos de tecnicidade jurídico-constitucional: ou alargar o âmbito de aplicação segundo uma cláusula aberta, de tal maneira que o legislador ordinário possa conformá-la como entender, segundo o seu critério, ou, em todo o caso, tentar uma delimitação material um pouco mais trabalhada em sede constitucional. É neste sentido que mais nos inclinamos.
Portanto, sem embargo de estarmos disponíveis para considerar uma formulação definitiva, entendemos que devem ser aqui ressalvados, pela natureza dos crimes em causa e como critério material, aqueles casos que envolvam criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada, incluindo como tipos materiais, necessariamente, o terrorismo, o tráfico de pessoas, de armas e de estupefacientes.
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Pensamos que esta delimitação material quanto à natureza dos crimes que permita excepcionar a regra da proibição das buscas domiciliárias nocturnas corresponde ao conjunto de todas as preocupações formuladas no nosso debate, dá uma credencial ao legislador ordinário mas, em todo o caso, estabelece a delimitação do âmbito material em que essa credencial pode ser utilizada.
Passava agora adiante, Srs. Deputados, à questão final que me ocupa, que é a de equacionar a regulamentação do exercício do direito de associação sindical por parte das forças de segurança.
Sempre fomos manifestando a nossa disponibilidade - deixando agora de lado outras considerações de oportunidade política - para equacionar uma clarificação deste ponto em sede que nos parece adequada, a do artigo 270.º, que trata da restrição de direitos, tanto para as forças militares, por um lado, como para o bloco dos agentes dos serviços e das forças de segurança, por outro lado. E, neste sentido, pensamos que enquadrar a solução no âmbito do artigo 270.º tem, realmente, razão de ser. Proporemos, por isso, aos Srs. Deputados que seja equacionada uma fórmula no quadro do artigo 270.º, uma fórmula que se reporte exclusivamente às forças de segurança na parte que diz respeito à credencial ao legislador ordinário para poder reconhecer o direito de associação sindical a essas mesmas forças de segurança e, quando o fizer, restringindo o exercício do direito à greve.
Fica assim claramente delimitado que esta matéria não co-envolve os membros das Forças Armadas, se circunscreve numa credencial ao legislador ordinário para a possibilidade do reconhecimento do direito de associação sindical e, neste caso, com a cominação constitucional expressa da restrição do direito à greve.
É, portanto, este o conjunto de pontos cujo enunciado pensamos que clarificará as posições com que o Partido Socialista deseja contribuir para aquilo que auguramos ser a fase final dos nossos debates e, nesse sentido, fico, naturalmente, na expectativa de, por um lado, ouvir as posições dos demais Srs. Deputados e, por outro lado, se for caso disso, conhecer a vossa reacção a este enunciado que acabei de vos formular.
Obrigado por me terem escutado.
O Sr. Presidente: - O Sr. Deputado não se referiu, não sei se propositadamente, se por lapso -se por um acto freudiano ou de raiz freudiana -, ao princípio da renovação dos mandatos…
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Sr. Presidente, era caso para dizer que o silêncio em si mesmo é eloquente.
O Sr. Presidente: - Também me pareceu, mas em todo caso…
O Sr. Jorge Lacão (PS): - Na reunião anterior já foi feita uma declaração sobre a matéria no sentido de que o PS entende que esse é um tema cujo mérito merece uma séria discussão na sociedade portuguesa, discussão essa que está em curso de se iniciar e não de terminar, daí considerarmos - e aqui reitero o que já está dito - que tal matéria deve transitar para uma revisão constitucional ordinária e não ser tratada nesta revisão extraordinária.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, apenas quis ajudar a clarificar o seu pensamento, com os meus agradecimentos.
Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Sr. Presidente, pegando nas palavras de V. Ex.ª e, talvez por isso, começando pelo fim (que não pelo menos importante), acrescentaria o seguinte: há cerca de 15 dias, ouvimos o Sr. Presidente da República fazer um discurso na Região Autónoma dos Açores, no qual, lembrando que há reformas do sistema político que devem ser empreendidas, apontava como um dos principais problemas o facto de haver reformas que já completaram o seu curso e começam a ter grande apoio da sociedade portuguesa mas que, apesar serem colocadas sistematicamente sobre a mesa, continuam a ser deixadas na "gaveta". E, aparentemente, estamos aqui perante mais um comportamento típico, mas nem por isso menos grave, da parte do Partido Socialista.
De facto, é inquestionável que o problema da limitação ou da renovação sucessiva de mandatos é matéria que se integra de uma forma muito marcada nas reformas a empreender no sistema político - até há quem diga que é a principal das reformas ou, pelo menos, a primeira das reformas a ser tomada, sob pena de todas as outras poderem perder grande parte do seu alcance e significado -, no entanto constatamos que o Partido Socialista, primeiro, esquece-se e, depois, diz que ainda não é altura de falar no assunto. Ou seja, pegando nas palavras do Sr. Presidente da República, mais uma vez temos a reforma do sistema político a ser "chutada para canto", a ser atirada para as calendas por parte do partido de que o Sr. Presidente da República é militante, o que não deixa de ser caricato.
Enfim, nesta fase dos trabalhos, fica registada esta posição do PS.
Pela nossa parte, continuaremos a bater-nos por esta reforma - nós e, estou seguro, todos os outros Deputados desta Câmara (entre eles o Sr. Deputado Jorge Coelho) que, de uma forma ou de outra, já manifestaram o seu apoio expresso à introdução desta alteração na Constituição.
Sendo este um problema de oportunidade ou de amadurecimento do timing adequado para a aprovação desta alteração, lembro ao Partido Socialista que esta consagração constitucional que o PSD propõe continuará a permitir ao Partido Socialista que a lei que, efectivamente, irá condicionar a dois, três ou quatro o número de mandatos sucessivos só será aprovada, com a actual aritmética parlamentar, no momento em que o Partido Socialista tiver entendido que já "digeriu" suficientemente a medida e que já existem condições para que essa alteração do sistema político se torne plenamente eficaz.
Portanto, o que se pretende é dar um primeiro passo, e nisso estamos todos de acordo. Aliás, nas audições que realizámos com as entidades que quiseram connosco partilhar das suas opiniões sobre a Constituição da República, apenas com a excepção do Professor Jorge Miranda (embora sem se querer colocar de fora mas dizendo que, do seu ponto de vista, talvez não fosse necessário alterar a Constituição), a doutrina predominante vai no sentido de que, em primeiro lugar, é preciso consagrar esta alteração na Constituição para, com isso, libertar o legislador ordinário para a realização dessa reforma do sistema político - a tal que, para mentes bastante avisadas, talvez seja senão a mais importante pelo menos a primeira a ser tomada sob pena de todas as outras ficarem diminuídas no seu alcance.
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Era bom que o Partido Socialista pudesse continuar a reflectir sobre essa questão e, eventualmente, o amadurecimento e a ponderação que legitimamente pretende dar a este assunto pudessem ser feitos neste momento, em vez de serem deixados para segundas núpcias. É agora que estamos a trabalhar sobre a Constituição da República e foi para agora que o Sr. Presidente da República pediu que todos olhássemos e encarássemos as reformas necessárias a empreender no sistema político.
Quanto às outras questões que o Sr. Deputado Jorge Lacão aqui nos explicitou, devo dizer que é evidente que consideramos que estamos a avançar no bom sentido, basicamente, nos trabalhos desta revisão constitucional, desde logo no que diz respeito aos dados mais concretos que o Sr. Deputado hoje aqui nos trouxe quanto à posição de princípio sobre o artigo 7.º, em matéria de adesão ao TPI.
Se bem entendi, o Partido Socialista estará já em condições de subscrever ou aceitar posições que vão bastante ao encontro daquele que é o entendimento do Partido Social-Democrata sobre esta matéria. Se não me falhou a compreensão do exacto alcance das palavras do Sr. Deputado Jorge Lacão, entendi que relativamente à questão da complementaridade o Partido Socialista acaba por ser sensível à ideia de que esse é um princípio fundamental, nomeadamente para o Partido Social-Democrata mas não só, também para muitos que, tendo algumas dúvidas sobre a adesão ao Tribunal Penal Internacional por causa do problema da prisão perpétua, apenas ficaram "reconfortados" na adesão de Portugal a este órgão por causa, exactamente, do princípio da complementaridade, que mais não é do que dizer que sempre que os tribunais portugueses estiverem confrontados com uma situação à qual possa, porventura, vir a corresponder pena de prisão perpétua se julgados pelo TPI, eles terão à sua disposição a faculdade de proverem, eles próprios, ao julgamento para, desse modo, evitarem o que, de acordo com a Constituição Portuguesa - penso que também de acordo com o sentimento esmagadoramente maioritário da comunidade nacional - jamais deve suceder. Refiro-me exactamente à não aceitação deste tipo de moldura penal seja qual for o tipo de crime, e é evidente que os crimes que aqui estão em causa são, porventura, os de maior gravidade ou de maior desumanidade.
Quanto à questão do espaço de liberdade, de segurança e de justiça na Europa, há um dado novo que é colocado agora pelo Partido Socialista relativamente à cooperação no exercício de poderes necessários à construção da União Europeia. Tudo aquilo que o Sr. Deputado Jorge Lacão disse é estritamente verdade. Ou seja, o processo de construção europeia, que é um processo evolutivo, consagrou já no Tratado de Amesterdão e desenvolverá, presumivelmente, nos trabalhos de aprofundamento da União Europeia, quer o conceito de espaço de liberdade, de segurança e de justiça, quer a ideia jurídica, relativamente à construção deste espaço e ao Terceiro Pilar genericamente, do exercício de determinado tipo de poderes em cooperação com os Estados. É verdade que assim é, só que, com toda a franqueza, à semelhança do que o PSD, desde o princípio, tem vindo a dizer relativamente a esta matéria do espaço de liberdade, de segurança e de justiça - sendo certo que nada há de errado com essa alteração -, não vemos utilidade nem necessidade na sua inserção na Constituição.
Quanto a este dado novo que agora é adiantado relativamente ao problema do exercício em cooperação de determinado tipo de poderes de soberania na União Europeia, parece-me que o conceito ou a fórmula que actualmente consta da Constituição, desde a revisão de 1992 -"o exercício em comum dos poderes necessários à construção da união europeia" -, de algum modo, já abarca essa ideia do exercício em cooperação. Ou seja, seria diferente se a Constituição se referisse ao "exercício conjunto de poderes", porque o conceito "exercício conjunto" tem uma densificação jurídica. Por exemplo, todos sabemos o que significa o exercício de uma competência em conjunto por dois membros do Governo! Quer dizer que ambos têm de assinar o despacho, a portaria ou o que venha a ser a decisão; o exercício desse poder tem de ser sempre suportado por uma assinatura conjunta, conjugada, dos dois titulares.
Não é esse o termo que está na Constituição. A nossa Constituição (sabiamente, do meu ponto de vista, e talvez face ao leque alargado de possibilidades que o processo de construção europeia sempre tem dado e sempre tem vindo a dar mostras de querer ter para o seu aprofundamento) utilizou a expressão "exercício em comum", que, do nosso ponto de vista, abarca quer o conceito jurídico de exercício conjunto quer, porventura, este outro a que se refere o Tratado de Amesterdão, que é o exercício em cooperação.
O "exercício em comum" não é um conceito jurídico stricto sensu, é um conceito que está na Constituição, visando abarcar todas estas formas, quer conjuntas quer em cooperação ou em colaboração que possam vir a ser consagradas pelos vários tratados sobre esta matéria.
Relativamente ao artigo 15.º, também nos congratulamos com o que o Dr. Jorge Lacão enunciou acerca da evolução da posição do Partido Socialista, à excepção do problema da referência expressa aos cidadãos da República Federativa do Brasil. É que essa referência expressa tem uma razão de ser: a Constituição brasileira também se refere explicitamente, e de uma forma destacada, aos portugueses; a Constituição brasileira prevê expressamente: "aos portugueses com residência permanente no país, se houver reciprocidade em favor dos brasileiros (…)".
Como o Sr. Deputado bem sabe e não ignora - o PSD afirma-o desde o início - a razão pela qual, já pela terceira vez, apresentamos em revisões constitucionais esta proposta, sucessivamente ganhando o apoio de várias outras bancadas e, porventura, desta vez, suscitando o apoio unânime da Câmara, tem que ver, como causa próxima, com o facto da Constituição brasileira de 1988 ter consagrado expressamente - com bastante generosidade, diga-se - esta referência explícita aos portugueses, a Portugal.
O simbolismo também tem o seu valor em política e, por isso mesmo - independentemente de ser inquestionável que tudo isto se deve, do ponto de vista de posicionamento nacional, estender aos demais Estados de língua portuguesa -, devemos retribuir a referência expressa que a Constituição brasileira faz a Portugal com uma referência expressa ao povo brasileiro, porque há razões que estão por trás desta situação, e que são exactamente as mesmas que levaram os brasileiros a colocar Portugal na sua Constituição. Suscitamos aos outros partidos que reflictam sobre essa matéria e entendemos que outro tanto deve ser feito relativamente ao Brasil.
A questão dos tribunais supremos é algo que já aqui tínhamos analisado, bem como a substituição do termo
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"direitos próprios", que é outra questão que, nas várias audições que aqui realizámos, foi colocada sobre a mesa. Da parte do PSD, obviamente, a nossa adesão não oferece qualquer tipo de dificuldade.
Quanto ao artigo 34.º, em primeiro lugar, queria saudar o novo texto, a nova proposta de alteração que o Sr. Presidente já fez distribuir, apresentada pelos proponentes iniciais - o Partido Popular. Com efeito, com o desenvolvimento dos trabalhos nesta Comissão, o Partido Popular, considerou, tal como nós, que em termos de texto constitucional, porventura, é mais útil não desvalorar em termos comparativos outro tipo de criminalidade relativamente ao tráfico de estupefacientes, sendo certo que, seguramente, o legislador ordinário não deixará - pelo menos contará sempre com o voto do PSD nesse sentido -, nas actuais circunstâncias, no que se refere ao tráfico de estupefacientes, de consagrar esta situação de excepção relativamente às buscas domiciliárias no período nocturno.
No entanto, esta proposta do Partido Popular continua a ignorar uma questão que nos parece essencial em termos de coerência da própria figura jurídica. Refiro-me ao problema do flagrante delito, pois dificilmente se compreenderá que este tipo de situações não possa ser atacado ou atalhado. Falo de situações em que a perplexidade e a revolta das pessoas face à ordem jurídica e à legislação estabelecida é mais gritante, isto é, situações em que "entra pelos olhos adentro" das pessoas aquilo que se está a passar e, ainda assim, as autoridades se vêm inibidas de tomar uma posição.
Feita esta referência à proposta nova que nos é apresentada pelo Partido Popular, relativamente às considerações que o Partido Socialista teceu sobre o assunto, devo dizer que compreendo as dúvidas manifestadas pelo Partido Socialista. De resto, quando o PSD apresentou, ainda no mês de Julho, a sua proposta para alargar este conceito para uma previsão mais genérica na Constituição, também internamente se colocou uma de duas hipóteses alternativas.
A primeira alternativa seria a da enunciação taxativa dos crimes para os quais esta abertura de excepção para as buscas nocturnas passaria a ser possível, mas optámos por não o fazer por entendermos que o enunciado taxativo tem sempre um risco tremendo, que é o de ficar alguma coisa de fora (ou porque no momento em que se faz esse enunciado alguma coisa passa e não se nos coloca - embora esse seja o caso menos provável - ou porque a realidade, amanhã, nos ultrapassa). E, se a realidade, amanhã, nos apresenta uma situação de criminalidade terrível colocada sobre o terreno, para a qual o legislador não estava previamente preparado porque não a previra, porque não a equacionara, porque a lei não existia ou não estava regulamentada à data da alteração do texto constitucional, lá se vai ter de rever a Constituição, mais uma vez, por ter surgido um novo tipo de crime hediondo, uma situação nova de criminalidade à qual devem ser dados instrumentos excepcionais de combate.
A segunda alternativa que equacionámos, mas que também abandonámos, foi a de enunciar taxativamente o tipo de crimes, apresentar uma estratégia, tal como já acontece no Código Penal relativamente a várias matérias, mediante a delimitação de uma moldura penal (crimes a que correspondam x anos de prisão), acima da qual estas normas de excepção seriam possíveis.
Todavia, surgiu o mesmo tipo de preocupações, isto é, de podermos estar a deixar alguma coisa de fora, aqui acrescido pelo facto de a equidade com que o nosso Código Penal trata os vários tipos de criminalidade ter alguns altos e baixos em termos gráficos e, portanto, poderia haver aqui alguma dissonância em função da natureza dos crimes e da sua gravidade, dentro de determinado tipo de capítulos de crimes (crimes contra as pessoas, crimes contra o património, etc.), pelo que não aconselhamos muito essa modalidade.
Foram duas alternativas que equacionámos mas que abandonámos, porque encontrámos dificuldades relativamente a cada uma delas. Todavia, elas são válidas, como é evidente, se o Partido Socialista conseguir encontrar um enunciado de crimes, desde que não seja - e faço este apelo ao Partido Socialista - um enunciado de tipos de crimes, mas um apontar de um determinado tipo de criminalidade. Isto porque ao fazer-se um enunciado de tipos de crimes, por referência à tipologia que está nos vários artigos do Código Penal, corremos acrescidamente o tal risco de cair numa situação que não foi expressamente prevista, o que faz com que, de hoje a amanhã, sejamos confrontados com dificuldades acrescidas.
Se fosse possível, deveríamos ir por aí, mas em termos genéricos, porque a Constituição tem essa prerrogativa, como sabe. A Constituição não é o Código Penal, não precisa de tipificar, de esmiuçar exactamente o crime A, o crime B ou o crime C; pode referir-se genericamente à criminalidade organizada, ao terrorismo, ao tráfico de pessoas, de crianças. Isto é, se optarmos por uma tipologia mais genérica talvez consigamos preencher aquele que era o desiderato inicial do Partido Popular (por excesso) mas que, neste momento, com a nova proposta do Partido Popular, se tornou num desiderato comum, pelo menos aparentemente, destas três bancadas (PS, PSD e CDS-PP).
Gostaria ainda de colocar ao Partido Socialista a questão que coloquei ao Sr. Deputado Narana Coissoró relativamente ao problema do flagrante delito, porque nos parece - e não vale a pena repetir os argumentos - uma situação complicada.
Por último - no meu caso, por último, Sr. Presidente, porque comecei por me referir ao tema da limitação de mandatos -, gostaria de falar sobre o problema do direito à greve nos eventuais sindicatos integrados por elementos da polícia.
Já aqui deixámos claro que a questão essencial que, desde o princípio, nos levou a optar pelo tratamento desta matéria em sede do artigo 56.º, e não do artigo 270.º, prendia-se com o facto de se poder "contaminar" este problema às Forças Armadas. O Partido Socialista já deixou claro, e o Sr. Deputado Jorge Lacão repetiu-o hoje, que é sensível a essa preocupação e também deseja afastar qualquer hipótese ou qualquer leitura que permita a "contaminação" - para nós indesejável - deste problema às Forças Armadas.
Como já referi, continuamos a aguardar para conhecer os contornos que possa ter uma proposta nesse sentido, desde que respeitando esses princípios, não deixando de dizer, no entanto, que quando apresentámos o nosso projecto de revisão constitucional, começámos por equacionar o problema do artigo 270.º. Ora, apenas porque nos pareceu que havia dificuldades mais facilmente superáveis na sua inserção sistemática no artigo 56.º do que no artigo 270.º, optámos por apresentar a proposta que está sobre a mesa, sendo certo que, à partida, não temos qualquer parti- pris contra uma reponderação da sua inserção sistemática, desde que salvaguardado este
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problema, que começou por não ser entendido mas que, felizmente, neste momento, já está interiorizado - penso - por todos os Deputados desta Comissão, que o PSD, de todo em todo, deseja sequer que possa ser colocado, da eventual leitura que possa "contaminar" um sinal de sentido contrário àquele que desejamos dar para as Forças Armadas e para as forças paramilitares.
Continuamos, portanto, a aguardar, sendo certo que é um caminho que já percorremos no passado mas, obviamente, reequacioná-lo-emos quando formos confrontados com uma proposta mais concreta.
É tudo, para já, Sr. Presidente.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Filipe.
O Sr. António Filipe (PCP): - Sr. Presidente, a minha intervenção é um misto de intervenção e de interpelação à mesa, na medida em que coloca uma questão metodológica quanto ao andamento dos trabalhos.
Nós iniciámos os trabalhos em Maio, com a apresentação de cada uma das propostas, feita pelos respectivos proponentes, à qual se seguiu não propriamente um debate aprofundado mas, sim, a colocação de questões aos proponentes para melhor clarificação das suas propostas.
Seguidamente, fizemos um conjunto de audições a várias entidades sobre as diferentes propostas e, a partir daí, entrámos numa fase de troca de correspondência oral e de tentativas de aproximação entre o PS e o PSD relativamente ao conjunto das suas propostas, fazendo-o em bloco, isto é, com intervenções em que cada um dos Srs. Deputados intervinha sobre as posições dos respectivos partidos em relação às várias propostas.
Esta é uma metodologia que, em relação a revisões constitucionais anteriores, tem a vantagem de ser mais transparente, porque houve situações em que o PS e o PSD faziam estas conversas à porta fechada, celebrando com um abraço entre os respectivos presidentes, e, depois, informavam-nos sobre o conteúdo das negociações.
Aqui, de facto, é mais transparente, porque o PS e o PSD têm negociado à frente de toda a gente, pelo menos tanto quanto parece, e, portanto, neste aspecto há uma diferença para melhor em relação a situações anteriores, mas há também uma semelhança com revisões anteriores, que é o facto de o PSD levar sistematicamente vantagem nesta negociação.
Temos de reconhecer que, se para o Partido Socialista, no início, o que estava em causa era o TPI e o espaço judiciário europeu, neste momento a situação já não é só essa, também já é - e, neste ponto, ainda bem! - a reciprocidade de direitos entre portugueses e brasileiros e - e, neste caso, ainda mal - a desnecessária previsão da proibição de direito à greve por parte dos profissionais das forças de segurança, como condição sine qua non para a existência do sindicato, e a quebra do princípio constitucional da inviolabilidade absoluta do domicílio à noite, indo de encontro às posições do PSD, bem como às do PP, porque a proposta inicialmente até era do PP e não do PSD. Verificamos, portanto, que, relativamente ao que se está a passar, há uma semelhança com revisões constitucionais anteriores, que é o facto de o Partido Socialista ir decaindo sucessivamente das posições que havia manifestado até há pouco tempo antes.
Mas a questão que quero colocar é esta: naturalmente, queremos pronunciar-nos sobre todas e cada uma das questões, e estávamos a pensar fazê-lo quando cada um dos pontos fosse discutido em concreto. Naturalmente que temos uma posição a manifestar relativamente a todas as questões, começando pela do TPI e acabando, enfim, na proposta relativa ao artigo 270.º, que tem a ver com os sindicatos de polícia, mas estávamos a pensar fazê-lo quando cada uma das questões fosse posta em discussão e de acordo com as propostas concretas que estivessem apresentadas. Existe, no entanto, outra alternativa, que é pronunciarmo-nos numa única intervenção sobre todos os temas que estão sobre a mesa nesta revisão.
Devo dizer que prefiro a primeira metodologia, que é a de, relativamente a cada uma das questões, irmos fazendo a discussão, mas, se a metodologia adoptada for outra, enfim, faremos uma única intervenção sobre todos os pontos. Só que, neste caso, coloco a seguinte questão ao Sr. Presidente, que tem a ver com a forma como os trabalhos vão continuar: se o PS e o PSD continuarem nas suas aproximações recíprocas, nós, enfim, naturalmente poderemos aguardar e ouvir com toda a atenção,…
O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Está a ver como comunga das nossas vantagens!
O Sr. António Filipe (PCP): - … mas gostaríamos de saber qual é, de facto, de acordo com a metodologia que for seguida, a melhor altura para nos podermos pronunciar sobre todas e cada uma das questões.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, no fim das intervenções, eu próprio poderei dar a minha opinião sobre a questão que o Sr. Deputado acaba de pôr.
Tem a palavra o Sr. Deputado Fernando Rosas.
O Sr. Fernando Rosas (BE): - Sr. Presidente, a questão de método levantada pelo Sr. Deputado António Filipe parece-me pertinente.
De qualquer maneira, uma vez que todos os demais partidos têm dado um ponto de vista global sobre as questões que estão em cima da mesa, gostaria também de apresentar o ponto de vista do meu partido sobre essas questões.
Em primeiro lugar, quero dizer que não me parece que a revisão constitucional seja uma questão de erudição jurídica, da qual eu também não seria capaz, mas penso que, em torno da erudição jurídica, tem-se estado a tentar encobrir um debate político, que convém assumir enquanto tal.
Do meu ponto de vista, haveria duas razões de objecto suficientes para justificar a revisão constitucional.
A primeira, de um ponto de vista lógico e da lógica constitucional, é a que respeita ao TPI e ao espaço europeu de liberdade e de segurança; a segunda é a limitação dos mandatos, que constituiria uma importante reforma do sistema político. O resto vem por acréscimo ou por oportunidade mais ou menos sentida por cada partido.
Para encurtar razões, no que respeita ao TPI e ao espaço de liberdade e de segurança, o Bloco de Esquerda tem uma posição conhecida de reserva política em relação ao Tribunal Penal Internacional, que me dispenso agora de estar aqui a enunciar novamente e que oportunamente voltaremos e insistir nela, e também uma reserva respeitante a problemas que serão alterados na nossa legislação
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respeitantes a medidas de penas, à extradição obrigatória, que é o nome que se deve dar a este sistema de entrega que está previsto, ao próprio regime de imprescritibilidade das penas. E as reservas políticas e de direito que temos em relação ao Tribunal Penal Internacional levam-nos a votar contra esta mudança e esta alteração constitucional, o que se estenderá, na mesma lógica, ao problema do espaço europeu de liberdade e de segurança, que, por razões idênticas, vemos com reservas.
Há, no entanto, um aspecto positivo nisto, que seria o mútuo reconhecimento das decisões judiciais, que é um progresso. Mas o problema da abolição da extradição entre Estados e a substituição deste procedimento pelo sistema de entrega merece-nos as maiores reservas políticas e jurídicas, que são suficientes para, com as de política geral, nos opormos à revisão deste aspecto.
No que respeita ao limite dos mandatos, constata-se que o Partido Socialista veta a possibilidade de se mudar este aspecto. Acho extraordinário para um partido que tem retoricamente investido na necessidade de se rever o sistema político, mas o que é facto é que, aparentemente, o lobby dos "dinossauros" autárquicos pesa mais do que o da racionalidade política. Nesse sentido, lamentamos, porque veríamos essa mudança como uma mudança positiva.
Quanto às demais questões, e para um pronunciamento que gostaria muito breve, existe ainda o problema da inviolabilidade do domicílio durante a noite, à qual nos opomos com a maior firmeza. Não me parece que a conquista da Revolução de Abril de colocar na Constituição esta garantia fundamental tenha impedido, até agora, o combate à criminalidade, seja ela qual for. Não conheço qualquer documento das forças de segurança que invoque o respeito constitucional por esta garantia para não actuar criminalmente contra as formas da criminalidade.
Acho, portanto, que é uma cedência da parte do Partido Socialista a esta nova lógica securitária que se está a impor abrir mão desta garantia constitucional. Acompanho os vários juristas que têm entendido publicamente que não é necessário mexer nesta garantia constitucional para que se possa actuar em caso de estado de necessidade ou de extrema urgência, violando o domicílio nocturno. Penso que é muito grave retirar esta garantia constitucional. Acho que as pessoas já não se lembram, mas quero dizer que a polícia política prendia as pessoas à noite em casa, e nem que fosse por esse simbolismo cabia ao Partido Socialista não deixar cair esta garantia constitucional da Constituição. Lamentamos que o faça e vamos opor-nos a ela com muita clareza e com muita firmeza.
Quanto à questão das associações sindicais dos agentes das forças de segurança, também nos opomos. Em primeiro lugar, porque o Bloco de Esquerda acha que as forças policiais, tal como em França, deviam ter direito à greve, por isso não concordamos com a limitação em termos políticos, porque se trata de uma questão política; em segundo lugar, porque, mesmo que assim não fosse, a situação é actualmente regulada pelo artigo 270.º da Constituição, que estipula que podem ser estabelecidas restrições ao exercício desses direitos na lei. Ora, consagrar limitações ao direito à greve no texto constitucional pensamos que é grave, pensamos que não se devia fazer.
No entanto, e apesar de tudo, a quererem-se introduzir as tais limitações ao direito à greve nas forças policiais, com as quais politicamente não concordamos, talvez valesse a pena, então, manter o regime que está, em que essa possibilidade já está prevista constitucionalmente, sem necessidade de, no próprio texto constitucional, se estar a consagrar limitações do direito à greve, a que nos opomos.
Finalmente, sobra ainda o problema da reciprocidade de direitos. Estamos de acordo; aliás, aqui inclinamo-nos para a posição de até alargar essa reciprocidade. Quer dizer, pessoalmente também preferia que a redacção não fizesse qualquer menção especial à República Federativa do Brasil, ou seja, era mais partidário que pudéssemos utilizar expressões como "Estados de língua oficial portuguesa", enfim, irmos para uma solução mais desse tipo.
Agora, não vale a pena rever extraordinariamente a Constituição só por causa da reciprocidade de direitos, acho que isso se pode fazer ordinariamente no ano que vem. Vale a pena rever a Constituição por esse facto, mas não extraordinariamente.
Uma revisão extraordinária justificava-se por duas razões, sendo que a uma delas nos opomos do ponto de vista político e a outra não é aceite pelo partido que as pode fazer. Quanto às restantes, opomo-nos à maioria e as outras podiam passar para a revisão ordinária.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Narana Coissoró.
O Sr. Narana Coissoró (CDS-PP): - Sr. Presidente, a nossa posição aqui é paralela à do PSD, até porque algumas das nossas disposições são comuns às propostas apresentadas pelo PSD, tendo o PSD adoptado imediatamente a nossa proposta sobre as buscas nocturnas no caso de ser necessária a entrada no domicílio em casos muito graves.
Sobre o problema do TPI, mantemos a nossa hesitação, na medida em que, efectivamente, aqui não se avança muito sobre a aplicação da pena de prisão perpétua, que ainda está por discutir.
Portanto, embora sabendo que pode haver uma declaração interpretativa, que pode haver pressões sobre o Tribunal Penal Internacional para que esta pena não seja aplicada, para que os nossos juízes, efectivamente, não concedam a extradição no caso de se saber que vai ser aplicada necessariamente a prisão perpétua, etc. Nesta revisão constitucional ainda não fica completamente afastada a ideia de não aplicação da prisão perpétua e é isto que, por enquanto e como princípio fundamental da nossa opção constitucional, nos leva a ainda manter alguma reserva quanto ao TPI.
Em relação ao espaço penal internacional, o espaço penal da Europa, estamos de acordo na medida em que, uma vez resolvido o problema da extradição que é o fundamental, o resto não é nada que mexa com a ordem política portuguesa, até pelo contrário, é recomendável.
Mas, tal como dizemos em relação ao TPI, o problema da extradição, para a aplicação de prisão perpétua e de outras penas graves não previstas na nossa Constituição, leva-nos ainda a pensar melhor o caso concreto, conforme a votação que se verificar sobre esses artigos.
Quanto aos cidadãos da República Federal do Brasil, entendemos que deve fazer-se uma distinção, como é feita pelo Brasil, em regime de reciprocidade - e isto não ofende os outros países de língua oficial portuguesa. Toda a gente compreende que o Brasil tem laços especiais com Portugal e que Portugal deve ter laços especiais com o Brasil, o que não tira nem põe em relação a outros países lusófonos e, por isso mesmo, não nos parece que advenha algum dano por uma referência especial aos cidadãos do Brasil.
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Quanto à questão das buscas domiciliárias, entendemos que, como disse o Sr. Deputado Marques Guedes, qualquer enunciação constitucional dos crimes seria sempre uma espécie de numerus clausus. A ser assim, a vida mostra que há sempre crimes que não ficam previstos e, depois, seria preciso proceder-se a uma nova revisão constitucional e estar sempre a alterar esse artigo.
Por isso, desde que tenhamos confiança no legislador ordinário, desde que consideremos que este não é atrabiliário, que tem respeito pela Constituição e pelos seus princípios informadores, entendemos que esta deve ser uma norma aberta, naturalmente da responsabilidade do legislador ordinário, que é esta Casa, no fundo. Pois, tratando-se de matéria penal, o legislador ordinário é a Assembleia da República. Ora, não podemos desconfiar da Assembleia da República e pensar que esta retire aos cidadãos direitos que deve consagrar.
Por isso mesmo, esta deve ser uma norma flexível no sentido de incorporar crimes realmente graves. Por outro lado, também não se deve facilitar, digamos, a violação do domicílio, não por uma razão de memória histórica da PIDE, etc. mas porque, efectivamente, a não violação do domicílio à noite é uma norma de protecção porque pode haver abusos (não é porque a noite tenha aspectos diferentes do dia). Assim, desde que estejam completamente afastados os perigos de abuso de poder e de abuso de má interpretação das leis, pensamos que o legislador ordinário pode complementar a Constituição, desde que tenha autorização para tal e é essa autorização que propomos.
Quanto à questão do flagrante delito, realmente, à primeira vista, pode parecer que é um conceito muito bem estruturado mas não é. Em Direito, toda a gente sabe que a própria expressão "flagrante delito" não tem coordenadas absolutamente fixadas. Muitas vezes, depende da interpretação da polícia, das forças de segurança estabelecer o que é ou não flagrante delito.
Apesar destas considerações, estamos abertos a considerar a posição do PSD. Isto é, a nossa proposta permite que o legislador ordinário introduza a possibilidade de entrada no domicílio durante a noite em caso de flagrante delito.
Mas, como digo, não vejo na legislação portuguesa uma noção exacta, clara, fundamentada, consolidada de "flagrante delito. Portanto, ficaria uma brecha, digamos, para quem quer uma forma de rigorosa de delimitar o conceito para efeitos de entrada no domicílio durante a noite.
Lamentamos que o Partido Socialista declare que não está preparado para discutir, neste momento, o problema da não renovação dos mandatos em certos casos.
Pareceu-nos, pela responsabilidade das pessoas do Partido Socialista que se pronunciaram sobre este caso, que o problema estaria maduro, na medida em que as pessoas colocadas em determinados lugares de responsabilidade dentro dos partidos não podem, não devem, não costumavam falar taxativamente sobre determinados pontos não adquiridos dentro do partido. Ficámos, por isso, surpresos ao ouvir algumas figuras gradas do Partido Socialista admitirem claramente que esta não renovação dos mandatos seria uma posição já estudada e amadurecida dentro do partido mas, pelos vistos, as pessoas falaram antes de tempo.
Aliás, é o próprio porta-voz do Grupo Parlamentar do Partido Socialista quem diz que a ideia está em maturação mas, repito, lamentamos que, nesta revisão constitucional, ainda que extraordinária, este problema não possa ser colocado desde já porque, adiando a questão para uma revisão ordinária, mesmo que então passe a haver a não renovação de mandatos, ela demorará mais de 10 anos a ser implementada porque, depois, hão-de dizer que as regras não se aplicam a meio do jogo.
Portanto, hão-de passar, pelo menos, mais dois mandatos depois desta data, pelo que a norma só entrará em vigor daqui a mais de 10 anos. Isso é algo que gostaria que o Partido Socialista ponderasse, em vez de "chutar" - para usar uma palavra já empregue à volta desta mesa - para a próxima década ou para o próximo vinténio o tratamento desta matéria.
Finalmente, quanto ao Tribunal Penal Internacional, o problema da sua inserção sistemática é uma questão técnica sobre a qual os partidos que, efectivamente, já negociaram este assunto estarão mais bem preparados para tomar essa decisão.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado Guilherme Silva.
O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Sr. Presidente e Srs. Deputados, uso da palavra apenas para complementar a intervenção do Sr. Deputado Marques Guedes relativamente a algumas das matérias em debate.
Antes de mais, queria dizer ao Sr. Deputado António Filipe que a circunstância de se registar, com eventual vantagem - e o juízo é seu -, a convergência do Partido Socialista com o Partido Social-Democrata em algumas destas matérias, não é por nós tomada como uma vitória do Partido Social-Democrata mas, sim, como uma vitória do País em termos de que tal significa que as boas soluções para o País estão a ser aqui gizadas em sede de revisão constitucional.
Em primeiro lugar, queria congratular-me pelo facto de o Partido Socialista ter evoluído no que diz respeito à fórmula, quer em termos sistemáticos quer em termos de conteúdo, da cláusula de aceitação constitucional do Tribunal Penal Internacional.
A fórmula inicial era, de certo modo, hesitante, pois entendíamos que o facto de o Partido Socialista a relegar para uma disposição transitória, e com o conteúdo que lhe dava, significava que não aceitava de corpo inteiro o Tribunal Penal Internacional em sede constitucional portuguesa como um órgão a que Portugal aderia sem restrições.
Todos sabemos que esta é uma questão delicada, que é equacionada e decidida através do apuramento de um saldo positivo da solução que é a implementação do Tribunal Penal Internacional. Portugal bateu-se no sentido de o Estatuto do TPI não prever a aplicação de prisão perpétua; não conseguimos ultrapassar essa limitação mas creio que, apesar de tudo - e não fomos o único país a fazer uma revisão constitucional para essa aceitação -, as vantagens da criação do Tribunal Penal Internacional permanente, sem os inconvenientes sobejamente conhecidos dos tribunais penais ad hoc, levam-nos a dizer que vale a pena Portugal estar dentro desta organização. E valerá a pena que Portugal, no momento próprio, porque o Estatuto não será imutável, se bata pela sua alteração, designadamente neste particular. Tal como foi possível que o Tribunal não aceitasse a aplicação da pena de morte, também é possível que, no futuro, venha a pôr de lado a aplicação da pena de prisão perpétua.
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Portanto, deixo o registo de que a solução agora aceite pelo Partido Socialista é, efectivamente, a melhor.
Como referiu o Sr. Deputado Marques Guedes, também nos parece importante que fique mencionada a referência à complementaridade em sede constitucional, até porque um dos aspectos relevantes em termos de opinião pública, designadamente daqueles que discordam da nossa adesão ao Tribunal Penal Internacional pela circunstância de poderem ser aplicadas penas de prisão perpétua, é significativamente atenuada em função da complementaridade da intervenção do Tribunal Penal Internacional. Ou seja, só quando os tribunais portugueses não apreciarem ou não julgarem as situações concretas em causa - obviamente, os tribunais portugueses não vão aplicar penas que a Constituição não permite - é que o Tribunal Penal Internacional, supletiva ou complementarmente, intervirá. Daí a relevância que tem para nós a manutenção, na redacção da disposição que faça esta recepção, dessa referência à complementaridade.
Em relação ao problema do espaço de justiça e de segurança na União Europeia, eu próprio já referi - está em acta - que se o PSD for convencido da indispensabilidade da alteração da Constituição para que funcionem as medidas que, nesse âmbito, a União Europeia pretende implementar, naturalmente ponderaríamos a alteração que se mostrasse necessária e indispensável.
Não nos parece, no entanto, nesta ocasião, que seja de todo indispensável essa alteração face à redacção actual dos artigos 7.º e 33.º da Constituição. Designadamente, com as medidas suscitadas pelos acontecimentos recentes e graves nos Estados Unidos, medidas que amanhã irão ser apresentadas pelo Comissário português António Vitorino (e relendo o que os jornais publicam a esse respeito), parece-nos que o que agora se quer uniformizar em termos de uma intervenção no âmbito da União Europeia no combate a este tipo de criminalidade já está, efectivamente, previsto na nossa Constituição. Constato, aliás, que se pretende implementar estas medidas no âmbito do terrorismo e nas formas de criminalidade organizada.
Lembro que o artigo 33.º prevê exactamente a possibilidade de extradição de cidadãos portugueses em matérias relacionadas com o terrorismo e criminalidade internacional organizada, obviamente desde que haja garantias, garantias essas que, no âmbito da União Europeia, estão sobejamente asseguradas -um processo justo e equitativo.
Sendo este o elenco que, de imediato, parece estar em causa no âmbito deste espaço de segurança e de justiça na União Europeia, não nos parece que sejam necessárias, nesta ocasião - e ver-se-á a evolução que a matéria terá em sede eventual de revisão ordinária -, essas alterações.
Também existe aqui uma lógica negocial dos vários Estados no âmbito da União Europeia que não se pode perder de vista, e desde que não haja, efectivamente - e parece que não há para já -, um comprometimento na adopção dessas medidas em virtude de uma posição intransigente de Portugal, ainda coberto pela sua Constituição, também é verdade que os problemas que se colocam na "entrega" (sucedânea da tradicional "extradição"), figura que se quer consagrar no âmbito da União, prendem-se com o facto de alguns países da União manterem a aplicação de penas que a nossa Constituição não consente. Em todo o caso, é importante que os nossos representantes, nessas reuniões, possam invocar a nossa Constituição e fazer pressão para que sejam outros Estados a introduzirem as alterações, tanto mais que, neste caso concreto, as alterações que gostaríamos de ver consagradas na ordem jurídica desses países vão no bom sentido, isto é, são avanços ou conquistas de civilização os passos que a nossa Constituição reclamaria que fossem consagrados no âmbito de uma organização internacional, do espaço internacional em que estamos integrados.
Portanto, de momento esta é a nossa posição, sem prejuízo de querermos estar de corpo inteiro na União Europeia, sem prejuízo de querermos estar de corpo inteiro neste Terceiro Pilar e na adopção de medidas cada vez mais necessárias em matéria de combate da criminalidade internacionalmente organizada e do terrorismo.
Em relação à questão da introdução no domicílio durante a noite, Sr. Deputado Fernando Rosas, obviamente que todos nós temos presente essa noite fascista, esses atropelos e esses abusos completamente condenáveis que eram praticados pela PIDE. Só que a PIDE prendia gente que não era terrorista, gente que não era traficante de droga; prendia-as porque pensavam de forma diferente da do regime estabelecido. Estamos, portanto, em domínios completamente diversos.
O Sr. Fernando Rosas (BE): - Isso é o que vamos ver…!
O Sr. Guilherme Silva (PSD): - Completamente diversos! E, por outro lado, essas intervenções eram, a maior parte das vezes, meramente administrativas e, quando não o eram, vinham de um tribunal que não devia ter esse nome, porque funcionava praticamente como um órgão da administração (o tribunal plenário). Portanto, quanto a isso, estamos perfeitamente entendidos.
Temos agora de ter a noção da gravidade de alguma criminalidade com que estamos confrontados, que tem organização sofisticada e internacional relevante (que é conhecida) e relativamente à qual é preciso actuar com algum cuidado, obviamente. Nesse sentido, exigimos que essas medidas tenham sempre a intervenção de um juiz, que só possam ser feitas por mandato judicial e que tenham um carácter excepcional. É essa problemática da excepcionalidade que se lhe quer atribuir que leva a esta hesitação relativamente à fórmula a adoptar.
O próprio CDS-PP começou por apresentar uma proposta com um elenco restrito de crimes. Todavia, percebeu-se que essa fórmula deixava de fora crimes de igual ou maior gravidade e, portanto, havia aqui um contra-senso constitucional nesta opção. Parece-me que a opção agora adoptada pelo CDS-PP, na nova proposta, passou "do 8 para o 80"! Não me parece prudente que se deixe ao legislador ordinário a catalogação, em sede de lei comum, dos casos em que esta medida pode ser adoptada, mas pode ser encontrada, do meu ponto de vista - aliás, o Deputado Marques Guedes já o adiantou - uma fórmula intermédia: não a da catalogação específica de cada tipo de crime mas a da definição de áreas de criminalidade através de conceitos que estão consagrados na ciência penal. É, pois, possível fazer na Constituição uma menção dessas áreas de criminalidade mais grave e mais relevante que possam justificar a excepcionalidade dessa medida como um passo mais no apetrechamento do Estado e da máquina judiciária e para-judiciária no combate à criminalidade.
Em matéria de sindicato da polícia e do direito à greve, as questões que nos levaram à inserção sistemática desta
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solução no artigo 56.º, e não no artigo 270.º, foram claramente expostas pelo Sr. Deputado Luís Marques Guedes. Com efeito, o que se pretendeu foi deixar, à partida, completamente estanque e sem a menor susceptibilidade de confusões a noção de que estávamos no domínio exclusivo de eventuais organizações sindicais no âmbito das forças de segurança e que não se poderia atribuir à norma uma interpretação perversa: a admissão da constituição de sindicatos nas Forças Armadas ou nas forças militarizadas. Esta foi a nossa preocupação fundamental.
O Partido Socialista evoluiu em relação a esta matéria desde a posição da desnecessidade da norma até, segundo as palavras do Sr. Deputado Jorge Lacão, à posição de optar por uma explicitação desta nossa preocupação, de forma clara e precisa, na redacção que agora propõe. E, adquirido que está que esta confusão não é admissível, não vamos insistir numa questão sistemática relativamente à localização desta norma.
Portanto, pela nossa parte, não levantaremos obstáculo algum a que se encontre uma redacção a inserir no artigo 270.º da Constituição. O que pretendíamos prevenir está prevenido por força das nossas intervenções e do que consta das actas, e melhor prevenido ficará com a redacção explícita e clara que me parece ter sido adiantada pelo Sr. Deputado Jorge Lacão, redacção essa que vem totalmente ao encontro das nossas preocupações.
Por último, ainda sobre esta matéria, e respondendo ao Sr. Deputado Fernando Rosas, é costume dizer-se que "cautelas e caldos de galinha nunca são a mais"! É que, nesta problemática, a questão que se põe é esta: por explicitação constitucional, o reconhecimento do direito de associação sindical e de constituição de um sindicato traz implicitamente, no estado actual do nosso texto constitucional, o reconhecimento do direito à greve. E nós não queríamos nem aceitávamos, numa matéria desta delicadeza, entrar num processo de discussão constitucional, uma vez aceite a constituição do sindicato da polícia, sobre a admissibilidade ou a inconstitucionalidade da lei que, sem uma alteração constitucional, explicitasse que o sindicato não envolvia o reconhecimento do direito à greve. Era essa a questão que nós não podíamos deixar que se colocasse no âmbito do funcionamento das associações sindicais de polícia.
É com base nessa preocupação, que é uma preocupação comum e geral dos portugueses, que entendemos que a Constituição devia clarificar e explicitar essa questão. Não chega, nem chegava, do nosso ponto de vista, a redacção actual do artigo 270.º e, para quem teoricamente defenda - há quem o faça - que já assim era, ficamos nós com a consciência tranquila de não deixar essa dúvida, porque uma matéria desta natureza não se deixa na dúvida.
O Sr. Presidente: - Tem agora a palavra o Sr. Deputado Alberto Costa. Antes, porém, faço um pedido, que não lhe é dirigido em particular mas, sim, a todos os Srs. Deputados, no sentido de abreviarem as intervenções, sempre que possível, visto que me informaram que está marcada uma reunião da 1.ª Comissão para as 17 horas e 30 minutos.
Faça favor, Sr. Deputado.
O Sr. Alberto Costa (PS): - Sr. Presidente, gostava de colocar duas questões a respeito das matérias espaço europeu de liberdade, de segurança e de justiça e Tribunal Penal Internacional. As duas questões parecem-me ter alcance político e prático.
A primeira é a seguinte: queremos nós que Portugal fique constitucionalmente preparado para poder ser parte numa convenção ou noutro instrumento que reconheça a validade de uma mandato europeu de captura, por exemplo, em matéria de terrorismo, ou queremos que Portugal fique em condições tais que tenha de dizer que não está preparado constitucionalmente, colocando-se na situação de ter de vir a alterar a Constituição ex post facto para poder tornar-se parte dessa convenção?
Queremos nós que Portugal esteja constitucionalmente preparado para aceitar formas de entrega simplificadas entre Estados-membros da União Europeia, que não obedeçam em todos os pontos ao conjunto de requisitos previstos no actual artigo 33.º, ou queremos que Portugal se coloque, também aqui, no dilema de dizer: "Não posso constitucionalmente" ou "faço primeiro e revejo a Constituição depois"?
Em relação ao Tribunal Penal Internacional, a questão coloca-se em termos algo diferentes mas com análogas consequências.
A questão é saber - e não captei bem a posição do Partido Social-Democrata nesta matéria - se nós excluímos constitucionalmente que alguma vez alguma pessoa possa ser, pelas autoridades portuguesas, entregue ao Tribunal Penal Internacional para ser por ele julgada, ou se o admitimos. Se o admitimos, como me parece que deverá ser, então temos de encontrar uma solução técnica, quer aqui quer para o espaço europeu de justiça, que nos assegure esse resultado. Pode mexer-se mais no artigo A ou no artigo B, o que é preciso é que a consequência fique alcançada!
Julgo que seria extremamente negativo do ponto de vista político, para mais nos dias trágicos que vivemos, se desta revisão que estamos a fazer, em nome do Tribunal Penal Internacional e do espaço europeu de justiça, de liberdade e de segurança, saísse um texto constitucional que nos deixasse novamente incapacitados para estar na luta antiterrorista, desde logo no teatro europeu. Qual seria a nossa cara na cena europeia, na cena internacional se, concluída esta revisão extraordinária, tivéssemos de continuar a dizer que a nossa Constituição nos inabilitaria para acompanhar, nos próximos meses e nos próximos anos, a Europa e o mundo?
Esta questão não se põe muito longe, porque há uma aceleração de calendários que todos conhecemos e porque está próxima a presidência espanhola que sabemos que irá, por todas as razões conhecidas, activar o tratamento desta matéria - até já celebrou convenções bilaterais com outros Estados-membros da União Europeia que prevêem, justamente, aquelas soluções que nós aqui continuaremos a impedir, do ponto de vista constitucional.
Abreviando muito, para corresponder ao pedido do Sr. Presidente, e uma vez que esta me parece ser a questão central, a questão que coloco é a de saber se saímos deste processo capazes ou incapazes de acompanhar o movimento jurídico antiterrorista. Vamos incluir-nos ou não no movimento europeu para combater o terrorismo através do alargamento dos meios da justiça? Ou será que nos vamos guardar para que tenham de ser os meios militares, e outros fora do direito, a prosseguirem esse combate? Esta é a questão que se coloca nesta revisão.
Reparem no resultado prático que se adquiriria se nos furtássemos a encarar estes problemas: se Portugal não reconhecesse o mandato europeu de captura em matéria
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de terrorismo e se fosse o único ou um dos poucos Estados europeus que assim procedesse; se Portugal não extraditasse ou não entregasse ninguém por causa da prisão perpétua vigorar, teoricamente, em vários países da Europa, Portugal tornar-se-ia uma zona de baixa punibilidade.
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): - Um "paraíso"!
O Sr. Fernando Rosas (BE): - Ou uma zona de mais direitos!
O Sr. Alberto Costa (PS): - Não emprego as expressões "refúgio" nem "paraíso". Disse uma zona de baixa punibilidade porque seria mais difícil prender aqui do que em Espanha ou em França, e o crime seria punido de maneira menos severa do ponto de vista do arguido, do criminoso; não é o nosso ponto de vista que interessa, é o ponto de vista dele porque aí é que funciona uma prevenção e uma dissuasão.
Do ponto de vista do Tribunal Penal Internacional, teríamos o paradoxo de se poder verificar aquele caso já mencionado, de um criminoso que, no Ruanda, está sujeito à pena de morte ganhar, com a submissão ao TPI, com a sua fuga para um país onde não houvesse extradição por não haver prisão perpétua; onde não existissem provas nem vítimas; onde não houvesse um contexto material adequado para a efectividade da justiça. Isto é, a zona de baixa punibilidade seria assegurada pela dificuldade na execução de mandatos de captura, pela menor severidade das penas a aplicar e, por outro lado, pelo facto de o princípio da justiça passar a ser assistido de menor efectividade do que seria noutras circunstâncias, como por exemplo as do TPI, para assegurarem o julgamento de um crime que se tivesse passado, por exemplo, nos antípodas de Portugal.
Eram estes os argumentos que gostava de pôr em cima da mesa.
O Sr. Presidente: - Para pedir esclarecimentos, tem a palavra o Sr. Deputado Fernando Seara.
O Sr. Fernando Seara (PSD): - Sr. Presidente, Sr. Deputado Alberto Costa, considera que o problema que suscitou poderá ficar resolvido com a interpretação decorrente de um acórdão recente do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, que enquadra toda a problemática da relação entre a ordem jurídica europeia e as Constituições nacionais, definindo que, num conjunto de princípios in casu relacionados com as competências exclusivas dos parlamentos, não se pode invocar o Direito Constitucional e, portanto, que os tratados e os princípios da ordem jurídica comunitária são superiores às Constituições dos Estados-membros, harmonizando e caracterizando os princípios fundamentais do direito internacional?
O Sr. Presidente: - Para responder, tem a palavra o Sr. Deputado Alberto Costa.
O Sr. Alberto Costa (PS): - Sr. Presidente, Sr. Deputado, desde que fique claro o entendimento, a aquisição de que Portugal pode participar nesse movimento "a corpo inteiro", qualquer solução me parece aceitável e digna de exame.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Deputado António Filipe.
O Sr. António Filipe (PCP): - Sr. Presidente, entendendo o silêncio de V. Ex.ª perante a questão metodológica que coloquei como liberdade metodológica, irei pronunciar-me sobre as várias questões que estão colocadas em cima da mesa nesta revisão constitucional.
O Sr. Presidente: - Sr. Deputado, se me dá licença, estava a guardar-me para o fim das intervenções e das inscrições para o esclarecer. Todavia, se me permite até o esclareço já.
Em primeiro lugar, gostaria de salientar a comparação que V. Ex.ª fez, positiva para esta Comissão - não é exactamente a minha, mas é a sua -, no que diz respeito à transparência de processos que temos usado. Registo-o com prazer e ficou registado em acta. Repito, não é a minha posição exactamente, mas registo.
Em segundo lugar, gostaria de dizer que penso que a metodologia que adoptada tem sido uma metodologia, de certo modo, consensual. Todavia, não tem sido sistematicamente adoptada. As últimas intervenções, por exemplo do Sr. Deputado Alberto Costa, denotam que há Srs. Deputados que fazem intervenções apenas sobre um ou dois artigos. A verdade é que a maior parte das intervenções tem sido feita de forma genérica sobre os vários articulado e, penso, por uma razão muito simples: trata-se de matéria tão restrita a quatro ou cinco pontos que a maior parte dos Srs. Deputados pretendem nas suas intervenções, até por economia de tempo e de processos, fazê-lo assim. Não tenho visto qualquer inconveniente e vou dar-lhe a palavra para fazer a sua intervenção exactamente nesses termos.
Naturalmente - e como parêntesis acrescento -, penso que quando houver propostas escritas de alteração, então aí, sim, os trabalhos ganharão com a discussão dessas propostas uma a uma.
Faça favor, Sr. Deputado.
O Sr. António Filipe (PCP): - Sr. Presidente, vou pronunciar-me sobre várias questões, anotando a discordância do Sr. Presidente relativamente ao que eu disse quanto às vantagens da transparência deste processo. Pode representar que o Sr. Presidente sabe mais do que eu relativamente ao que está em discussão entre o PS e o PSD, o que me deixa um tanto preocupado.
O Sr. Presidente: - Dá-me licença que o interrompa?
A minha discordância é quanto à apreciação que V. Ex.ª fez dos anteriores processos de revisão. É só quanto a isso e não quanto à transparência de processos nesta revisão constitucional.
O Sr. António Filipe (PCP): - Ah! Muito bem.
Sr. Presidente, vou pronunciar-me sobre várias questões, começando pela questão do TPI, que é a magna questão desta revisão constitucional.
Ouvi longas intervenções aqui produzidas sobre essa matéria e queria dizer que há questões de princípio que são apresentadas por alguns Srs. Deputados para defender a existência de um tribunal internacional que não tem a nossa discordância de princípio. Isto é, quando se diz que era desejável que existisse uma instância judicial internacional que não fosse uma emanação da justiça dos
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vencedores, que é o que tem prevalecido no direito internacional, naturalmente que esse é um princípio que compartilhamos e consideraríamos desejável que assim fosse e que pudesse existir uma instância dessa natureza.
Quando se diz, também, que era desejável que existisse uma instância judicial internacional que acabasse com os tribunais ad hoc, de que tem havido exemplos não muito prestigiantes para a justiça internacional, naturalmente que também consideraríamos que era desejável que assim pudesse ser.
Não são, portanto, essas considerações de princípio que têm a nossa discordância; e até saúdo intervenções que aqui foram feitas, propósitos que aqui foram manifestados por vários Srs. Deputados quando defenderam a existência de um tribunal internacional. A nossa discordância está na concretização que é dada a esses propósitos no Tratado de Roma que aprovou o Estatuto do Tribunal Penal Internacional. Aí, a questão que se coloca é a seguinte: poderá este TPI, tal como foi concebido, tal como consta do Tratado de Roma, não ser uma emanação da justiça dos vencedores? Poderá este TPI contrariar a forma como as decisões da chamada comunidade internacional têm sido tomadas? É duvidoso que pudesse não o ser - aliás, creio que ninguém tem manifestado grandes ilusões de que o pudesse ser.
Ainda assim, este Estatuto do TPI poderia ter sido melhor defendido quanto à jurisdicionalização e quanto à imparcialidade deste Tribunal. Infelizmente, não o foi. Isto é, quando dizemos que este TPI pode vir a ser - porque ele ainda não é nada -, com toda a probabilidade, mais uma forma de consolidação da actual ordem internacional e que poderá ser, mais uma vez, um instrumento das grandes potências que acentuará a injustiça que existe já hoje nas relações internacionais e na aplicação unilateral do direito internacional, não o fazemos apenas como um processo de intenções; fazêmo-lo - e podemos afirmá-lo - porque este Estatuto do TPI dá-nos, infelizmente, argumentos para o poder afirmar.
Refiro-me à existência, como se sabe, de um mecanismo que pode determinar a suspensão dos processos por decisão do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Há, portanto uma interferência directa, evidente, do Conselho de Segurança, onde estão representadas exclusivamente as grandes potências; ou melhor, na qual as grandes potências têm direito de veto. Não são apenas as grandes potências que estão representadas, mas são as únicas que têm direito de veto e, portanto há aqui uma "contaminação" do funcionamento do TPI pelas Nações Unidas. O facto de não ter sido feita a qualificação jurídica do crime de agressão, o facto de ter ficado para momento posterior a definição dos elementos constitutivos dos crimes… Isto é, houve uma série de elementos fundamentais que foram deixados para negociações posteriores, nas quais, mais uma vez, as grandes potências poderão ditar a sua lei.
Estamos perante um instrumento (o TPI) que, do nosso ponto de vista, não deixará de ser um instrumento político que actuará segundo dois pesos e duas medidas.
Dir-se-á que este TPI poderá ter esses defeitos, mas que é um passo e, portanto, há quem considere que ainda assim é vantajoso consagrá-lo. Entendemos que esse primeiro passo, sendo um mau passo - como entendemos que é -, não pode ser aceite em nome de hipotéticas melhorias no futuro e, portanto, pensamos que não é uma boa medida para a justiça internacional consagrar um tribunal penal como este que está proposto e que consta do Tratado de Roma.
Há, depois, relativamente a Portugal, uma questão que não é menor. Refiro-me à prisão perpétua. A Constituição da República, como se sabe, rejeitou essa sanção penal, não porque quando foi aprovada a Constituição não existissem crimes graves; a Constituição não foi feita apenas para regular bagatelas penais, mas para regular todo o tipo de crimes, inclusivamente crimes como o de genocídio, que é um crime que está previsto no Código Penal português e que, naturalmente, a Constituição da República Portuguesa quando foi feita não ignorava a sua existência.
O que podemos dizer é que a Constituição da República adoptou uma outra filosofia penal que não é a do TPI. Assim, quando se coloca a questão de rever a Constituição temos de saber qual é a filosofia que nós adoptamos, qual é que nós pensamos adequada, se é a que consta da Constituição da República ou se é a que presidiu à elaboração do Estatuto do TPI. Pelo nosso lado, preferimos, decididamente, a da Constituição da República Portuguesa. Entendemos que a filosofia da Constituição é a melhor e, portanto, deve ser defendida a sua vigência, sem excepções, na ordem jurídica portuguesa.
Assim, creio que não somos nós que temos de nos envergonhar por não termos a prisão perpétua na nossa ordem jurídica, e não deve ser a Constituição da República a ceder nessa questão de princípio. Se o Estatuto do TPI admitisse reservas, esta poderia ser uma. Mas não admite e, portanto, entendemos que numa posição "entre a espada e a parede", isto é, neste caso, entre os princípios da nossa Constituição que rejeitam a prisão perpétua e a "parede", preferimos os princípios. Nesse sentido, entendemos que não deve ser permitida a reintrodução, embora indirecta, da prisão perpétua na ordem jurídica portuguesa.
Também já ouvi dizer muitas vezes que não é isso que está em causa, de que não se trata de reintroduzir a prisão perpétua. Enfim, entendamo-nos: não seria necessário estar a rever a Constituição se não houvesse um problema de desconformidade com a Constituição relativamente à consagração da prisão perpétua. Ora, dizer que não se trata de reintroduzir a prisão perpétua na ordem jurídica interna é um puro eufemismo.
É evidente que não são os tribunais portugueses que vão aplicar o Estatuto do TPI de forma a aplicar a prisão perpétua a alguém. Nunca ninguém disse isso; mas há, de facto, uma recepção, ainda que indirecta, da prisão perpétua na ordem jurídica portuguesa, porque, caso contrário, não era preciso haver revisão constitucional.
Um argumento que tem sido aduzido é o de que Portugal não pode ser um refúgio de criminosos. Enfim, creio que não é preciso que assim seja, bastava que fosse acolhida no Código Penal a previsão de todos os crimes que estão previstos e punidos pelo Estatuto do Tribunal Penal Internacional. Aliás, fizemos uma proposta nesse sentido, que apresentámos sob a forma de projecto de lei, na Mesa da Assembleia da República.
Gostaria de dizer ainda algo sobre a proposta que é feita pelo Partido Socialista relativamente ao espaço de liberdade, de segurança e de justiça.
Desde logo, há concretizações deste espaço de liberdade, de segurança e de justiça com os quais discordamos manifestamente quanto às questões de fundo em que ele se traduz. Discordamos daquela que tem sido a política europeia, designadamente em matéria de direito de
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asilo, que se tem traduzido numa drástica restrição dos direitos e das garantias dos requerentes de asilo em todos os países da União Europeia; discordamos, designadamente, da política comum de vistos que está a ser seguida pela União Europeia, que não tem em conta a especificidade de cada Estado, designadamente a nossa; discordamos profundamente da operação que está em curso relativamente à extradição no sentido de, através de um eufemismo, considerar que não há extradição entre os países da União Europeia. Ou seja, há uma entrega que não tem minimamente em consideração que estamos a falar de pessoas e não de coisas; não estamos a falar de exportação de produtos, estamos a falar de pessoas que têm direitos que devem ser salvaguardados.
Ora, quanto à questão de princípio, temos profundas discordâncias relativamente ao chamado "espaço judiciário europeu", mas, naturalmente, não recusamos formas de cooperação judiciária que tenham como objectivo, realmente, o combate à criminalidade internacional no espaço da União Europeia. Simplesmente, este tem sido apresentado como argumento, como o "pai" de todos os argumentos, mas, depois, nas suas concretizações, há desenvolvimentos que não têm rigorosamente nada que ver com essa situação.
Quanto à solução que é proposta, entendemos que, mesmo do ponto de vista dos proponentes, a alteração do artigo 7.º não resolve os problemas que são suscitados pelos desenvolvimentos do espaço judiciário europeu e que têm que ver, designadamente, com o artigo 33.º, da extradição. Isto é, a recepção deste exercício proposto pelo Partido Socialista, artigo 7.º n.º 6, de que Portugal pode, em condições de reciprocidade, convencionar o exercício em comum dos poderes necessários à construção da União Europeia, designadamente tendo em conta a construção do espaço de liberdade, de segurança e de justiça, não legitima a preterição do que dispõe o artigo 33.º relativamente à extradição. Assim como, quando da rectificação do Tratado de Maastricht, não foi o artigo 7.º que, só por si, viabilizou a possibilidade da moeda única - foi necessário alterar o artigo 105.º, retirando ao Banco de Portugal o exclusivo da emissão de moeda. É evidente que só esta norma que é aqui proposta não teria o condão de legitimar constitucionalmente todos os desenvolvimentos que estão em curso no âmbito da construção de um espaço judiciário europeu.
Relativamente à reciprocidade, queria dizer que concordamos com o princípio. Também nos parecia mais adequado não haver uma referência individualizada à República Federativa do Brasil, embora compreendamos por que é que esta situação aparece - também por razões de reciprocidade. Agora, o que nos parece é que esta individualização poderia ser um pouco desagradável para os outros países. Isto é, não nos preocupa a deferência para com o Brasil, o que nos preocupa é se essa deferência pode ser entendida com menos deferência relativamente aos outros Estados. O problema é esse, embora esta não seja uma questão de princípio.
O que nos parece é que há alguns desequilíbrios na forma como a norma está proposta, porque, de acordo com este texto, um cidadão de outro país pode ser Ministro dos Negócio Estrangeiros, mas não pode ter acesso à carreira diplomática, o que parece um contra senso; pode ser Ministro da Defesa, mas não pode fazer serviço nas Forças Armadas. Digamos que esta norma precisaria de ser calibrada para não provocar aqui alguns desacertos desnecessários. Todavia, dado que já há um grande consenso relativamente ao princípio, não será difícil haver um consenso relativamente aos termos finais.
Vou colocar ainda duas questões, sobre as quais ainda gostaria de me pronunciar nesta fase.
Uma, relativamente à questão da inviolabilidade do domicílio à noite, por discordar frontalmente da aprovação de qualquer uma das formulações que estão propostas, até agora, relativamente a esta matéria. Entendemos que esta questão não pode ser discutida apenas do ponto de vista da eficácia da investigação criminal como se fosse esse o único valor que estivesse aqui em presença, embora ainda ninguém tenha demonstrado que seja assim tão essencial para a eficácia da investigação criminal que seja quebrada a inviolabilidade absoluta do domicílio à noite.
Compreendemos a origem histórica desta norma e atribuímo-lhe o seu devido valor. Tem sido dito muitas vezes que hoje estamos em democracia e que os problemas que levaram, fundamentalmente, a que esta norma fosse consagrada, hoje em dia, poderão não fazer tanto sentido. Entendemos, porém, que continua a fazer sentido, na medida em que as garantias constitucionais relativamente ao processo criminal não têm como objectivo proteger criminosos, mas proteger todos os cidadãos. São garantias de todos os cidadãos perante a investigação criminal.
Entendemos que, de facto, há garantias gerais dos cidadãos que não devem ser preteridas a pretexto da eficácia da investigação criminal, pois, caso contrário, por este raciocínio, seríamos levados a chegar à conclusão que o melhor para a eficácia da investigação era não haver direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Então, aí não haveria qualquer peia para a eficácia da investigação criminal.
Entendemos que em democracia os valores da segurança têm de ser equilibrados com os valores da liberdade e dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. A irmos por este caminho securitário, entendendo-se sempre que o valor da segurança e o valor da eficácia da investigação criminal deve sobrepor-se a todos os outros, iremos pelo mau caminho, destruindo pedra por pedra, no fundo, um conjunto de princípios nos quais se baseia a própria democracia política. Entendemos que este passo, este patamar, não deve ser transposto e deve manter-se esta proibição de entrada durante a noite no domicílio tal como ela está, desde 1976, consagrada na nossa Constituição.
Termino com uma referência à proposta de consagração na Constituição da possibilidade de limitações ao direito à greve por parte dos profissionais da forças de segurança. Queria dizer, em primeiro lugar, que não entendemos que o direito à greve, a exercer por estes cidadãos, seja um "demónio". O direito à greve é um direito constitucionalmente consagrado e é exercido segundo regras previstas na Constituição e na lei. Por esse motivo, não "anatomizamos", de maneira nenhuma, o exercício do direito à greve por parte de quaisquer cidadãos que desempenhem uma actividade profissional, seja ela qual for.
Está, aliás, demonstrado não apenas por outros países onde este direito existe sem que haja sobressaltos relativamente a esta matéria, mas também pelo facto de profissões muito sensíveis em Portugal terem direito à greve e exercerem-no sem que daí decorra problema algum. Toda a gente sabe que quando há greve dos guardas prisionais não é por isso que os presos fogem. Sabe-se que há profissões cujo exercício do direito à greve poderá acarretar problemas difíceis de resolver - estou a falar, por exemplo, dos médicos -, mas esses problemas são resolvidos porque o exercício do direito à greve está
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regulado e há serviços mínimos que são assegurados. Não há aqui, portanto, problema algum.
Ainda assim, entendemos como legítimo, até compreensível e perfeitamente aceitável que os próprios profissionais de uma determinada categoria (neste caso, os polícias) se confrontem com a possibilidade de constituírem legalmente um sindicato, ainda que aceitando limitações de determinados direitos e, designadamente, do direito à greve. Compreendemo-lo e até já chegámos a apresentar aqui projectos de lei relativos ao sindicato policial onde prevíamos, precisamente, essa limitação.
Não somos só nós que entendemos - e, pelos vistos, só o PSD é que não entende - que não é necessária nenhuma revisão constitucional para que uma limitação dessas possa ser inscrita na lei ordinária. Só o PSD é que entendia que assim era. Pelo menos quando iniciámos os nossos trabalhos em Maio, pelas intervenções que ouvi do Partido Socialista, ainda nessa altura só o PSD é que considerava que era preciso uma revisão constitucional para possibilitar essa limitação. O que nos parece é que esta proposta do PSD, apresentada aqui na revisão constitucional, no fundo, é a "porta" que o PSD pretende para sair do "labirinto" onde se meteu com esta sua obstinação em não querer aceitar os sindicatos de polícia tal como existem em todos os países da Europa. O PSD precisava de sair por algum lado e o argumento que encontrou foi o de dizer: "Não, só quando houver uma revisão constitucional que inscreva na Constituição esta limitação."
Pelos vistos, o PSD, segundo o que ouvi nas últimas intervenções do Partido Socialista, poderá ver expressamente consagrada na Constituição esta limitação de direitos dos profissionais das forças de segurança - da qual discordamos. O PSD não precisava que esta situação se verificasse, porque, em 1997, já obteve o direito de veto sobre qualquer lei que preveja a criação de sindicatos da polícia. Este é, portanto, mais um argumento a favor desta minha tese de que esta questão foi uma "porta" que o PSD arranjou para sair de um problema que criou a si próprio. E vai ter a colaboração do Partido Socialista para poder encontrar a "porta da saída".
Não vemos, no entanto, razão alguma para que esta limitação de direitos seja introduzida no texto constitucional e, nesse sentido, iremos opor-nos às propostas que estão aqui apresentadas.
A Sr.ª Maria Manuela Aguiar (PSD): - Sr. Presidente, peço a palavra.
O Sr. Presidente: - Sr.ª Deputada Manuela Aguiar, vou inscrevê-la também, só que fui informado que haverá, às 17 horas e 30, minutos uma reunião da 1.ª Comissão com o Sr. Ministro da Justiça, e já o tinha comunicado.
Também está inscrito o Sr. Deputado Jorge Lacão.
A Sr.ª Maria Manuela Aguiar (PSD): - Sr. Presidente, posso só fazer uma pergunta?
O Sr. Presidente: - Se for rápida e se o Sr. Deputado Jorge Lacão autorizar, porque estava inscrito primeiro…
O Sr. Jorge Lacão (PSD): - Sr. Presidente, recolhi, das várias intervenções que ouvi com toda a atenção, um conjunto de comentários a fazer. Tenho consciência de que, face ao calendário, e por razões institucionais, sou o principal interessado em que a reunião acabe à hora que o Sr. Presidente acabou de referir. Vou, por isso, prescindir da minha intervenção, reservando para a próxima reunião algumas respostas que julgo dever dar a considerações que aqui foram feitas.
Assim, com esta declaração, levanto a inscrição que fiz.
O Sr. Presidente: - Tem a palavra a Sr.ª Deputada Maria Manuela Aguiar.
A Sr.ª Maria Manuela Aguiar (PSD): - Sr. Presidente, em relação aos desequilíbrios que o Sr. Deputado António Filipe apontou no artigo 15.º, gostaria de lhe perguntar em que sentido é que os resolve.
O Sr. Presidente: - Para responder, tem a palavra o Sr. Deputado António Filipe.
António Filipe (PCP): - Sr. Presidente, Sr.ª Deputada Maria Manuela Aguiar, para nós essa não é uma questão fechada, mas há aqui algumas situações que não nos parecem muito lógicas.
Há aqui, neste artigo 15.º, duas soluções possíveis: ou se restringe a reciprocidade relativamente a determinados cargos ministeriais - é uma solução - e, nesse caso, não seria apenas excepcionado o cargo de Primeiro-Ministro mas o de Primeiro-Ministro e, eventualmente, mais alguns Ministérios, como o da Defesa Nacional ou o dos Negócios Estrangeiros; ou então, não indo por esse caminho, que não se seja tão restritivo relativamente ao serviço nas Forças Formadas e à carreira diplomática. Também aceitamos como boa essa solução, isto é, aceitamos que o problema não esteja tanto na permissividade quanto aos órgãos de soberania mas, eventualmente, nas disposições que regulam o acesso à carreira diplomática ou ao serviço das Forças Armadas. Talvez elas sejam demasiado restritas e possam ser alargadas.
Em todo o caso, como disse, nós estamos de acordo com o princípio e inteiramente receptivos para discutir uma solução que se julgue equilibrada.
O Sr. Presidente: - Srs. Deputados, não havendo mais oradores inscritos, dou por encerrado o debate.
Cabe-nos agora agendar a continuação dos nossos trabalhos. Gostaria da vossa colaboração nesse sentido, visto que hesito (dado que neste momento é preciso um certo tempo para que as ideias e os textos eventuais possam amadurecer) entre marcar uma reunião ainda para esta semana ou na terça-feira da próxima semana. Inclino-me mais para esta segunda hipótese, porque a abertura da sessão legislativa será na quarta-feira, dia 19, e, naturalmente, as demais comissões já estarão a funcionar em pleno.
Tudo me leva a apontar para uma reunião no dia 25, terça-feira, caso haja consenso e se, designadamente, a 1.ª Comissão, que é a que nos coloca mais problemas, não tiver nenhuma reunião agendada para esse dia.
Pausa.
Visto haver consenso nesse sentido, marcaríamos a próxima reunião para dia 25, terça-feira, às 15 horas.
Está encerrada a reunião.
Eram 17 horas e 25 minutos.
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A DIVISÃO DE REDACÇÃO E APOIO AUDIOVISUAL
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