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Quinta-feira, 13 de Janeiro de 2011 II Série-RC — Número 6
XI LEGISLATURA 2.ª SESSÃO LEGISLATIVA (2010-2011)
VIII REVISÃO CONSTITUCIONAL
COMISSÃO EVENTUAL PARA A REVISÃO CONSTITUCIONAL
Reunião do dia 12 de Janeiro de 2011
SUMÁRIO O Sr. Presidente (António Filipe) deu início à reunião às 16 horas e 52 minutos.
Concluiu-se a discussão do artigo 7.º (Relações internacionais), tendo usado da palavra, além do Sr.
Presidente, os Srs. Deputados Bernardino Soares (PCP) e Jorge Bacelar Gouveia (PSD).
Procedeu-se à apresentação dos projectos de revisão constitucional n.os 1/XI (2.ª) (PSD), 2/XI (2.ª) (PCP), 3/XI (2.ª) (Os Verdes) e 9/XI (2.ª) (PS), relativamente ao artigo 8.º (Direito internacional). Pronunciaram-se, além do Sr.
Presidente, os Srs. Deputados José de Matos Correia (PSD), Bernardino Soares (PCP), Vitalino Canas (PS), Luís Marques Guedes (PSD), Luís Fazenda (BE), Jorge Bacelar Gouveia (PSD), Telmo Correia (CDS-PP) e Guilherme Silva (PSD).
Foram ainda apresentados os projectos de revisão constitucional n.os 1/XI (2.ª) (PSD), 2/XI (2.ª) (PCP), 3/XI (2ª) (Os Verdes), 4/XI (2.ª) (BE) e 5/XI (2.ª) (CDS-PP), relativamente ao artigo 9.º (Tarefas fundamentais do Estado), tendo usado da palavra, além do Sr. Presidente, os Srs. Deputados Nuno Magalhães (CDS-PP), Vitalino Canas (PS), Bernardino Soares (PCP), Guilherme Silva e Luís Marques Guedes (PSD), Telmo Correia (CDS-PP), José Manuel Pureza (BE), Jorge Bacelar Gouveia (PSD) e José Ribeiro (PS).
O Sr. Presidente encerrou a reunião eram 19 horas e 18 minutos.
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O Sr. Presidente (António Filipe): — Srs. Deputados, temos quórum, pelo que declaro aberta a reunião.
Eram 16 horas e 52 minutos.
Srs. Deputados, vamos iniciar os nossos trabalhos, que se concluirão, previsivelmente, às 19 horas, segundo o que está acordado entre nós.
Retomamos a discussão no ponto em que ficámos na última reunião. Tinham sido apresentadas todas as iniciativas relativas ao artigo 7.º e estavam ainda inscritos para intervir no debate dois Srs. Deputados, os Srs. Deputados Marques Júnior e Bernardino Soares. O Sr. Deputado Marques Júnior não está presente, mas está o Sr. Deputado Bernardino Soares, a quem pergunto se se recorda de qual era o assunto e se ainda pretende intervir sobre o artigo 7.º.
O Sr. Bernardino Soares (PCP): — Sim, Sr. Presidente.
O Sr. Presidente: — Então, para concluirmos a discussão do artigo 7.º, tem a palavra o Sr. Deputado Bernardino Soares.
O Sr. Bernardino Soares (PCP): — Sr. Presidente, com esta intervenção procurarei responder à última intervenção do Sr. Deputado Jorge Bacelar Gouveia, em relação à proposta do PCP de eliminação do n.º 7 do artigo 7.º.
O Sr. Deputado Jorge Bacelar Gouveia recorreu aos argumentos que, à data da inserção deste número no artigo 7.º da Constituição, foram usados por aqueles que aprovaram esta alteração, designadamente o argumento, que já não ouvia há muitos anos e que agora regressou, de que não acolher a jurisprudência e o Estatuto do Tribunal Penal Internacional significaria tornar Portugal — foram estas as palavras do Sr. Deputado e dos que, antes dele, defenderam esta alteração — um «paraíso dos criminosos».
Todavia, isso não tem qualquer adesão com a realidade concreta, porque, em primeiro lugar, também temos um Código Penal onde se prevê e pune a maior parte dos crimes que está prevista no âmbito do Tribunal Penal Internacional e, em segundo lugar, tal como o próprio Sr. Deputado Jorge Bacelar Gouveia referiu, e bem, o Estatuto do Tribunal Penal Internacional deixa de fora — pelo menos, há muitas dúvidas quanto à sua aplicação — os crimes relacionados com o narcotráfico e com o terrorismo. Aliás, em razão disso, teremos de relembrar que, por exemplo, países como os Estados Unidos da América, a Rússia e a China não aderiram ao Tribunal Penal Internacional.
Portanto, isto só comprova que, de facto, essa não é uma jurisdição que regula os crimes, no plano internacional, de forma igual, mas, sim, de forma desigual e desequilibrada.
Por outro lado, não havendo qualquer carência ao nível da nossa legislação — se houvesse, podia ser complementada para punir crimes que também estão no Estatuto do Tribunal Penal Internacional — , nenhum criminoso podia albergar-se no nosso País para não ser julgado e condenado por determinados crimes. Daí que afastar a Constituição para acolher algo que se sobreporia a ela, que está errado e incompleto, que é desigual e desequilibrado não pode ser uma opção.
Esta é a razão por que propomos a eliminação do n.º 7 do artigo 7.º.
O Sr. Presidente: — Ainda para intervir sobre o artigo 7.º, tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Bacelar Gouveia.
O Sr. Jorge Bacelar Gouveia (PSD): — Sr. Presidente, apenas queria deixar duas breves notas em relação à intervenção do Sr. Deputado Bernardino Soares.
Como primeira nota, queria dizer que não sei se é exacta a afirmação de que todos os crimes que são cometidos no estrangeiro podem ser julgados por Portugal. O princípio geral é o de que os tribunais portugueses julgam os crimes cometidos no território português; os casos em que se invoca uma competência universal para julgar os crimes são casos excepcionais — são crimes muito graves e contra certos bens jurídicos. Portanto, não é exacto dizer que qualquer crime cometido em qualquer lugar do mundo pode ser julgado por tribunais portugueses.
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Por isso, mantém validade a nossa vinculação ao Tribunal Penal Internacional na medida em que, se essa vinculação não existisse, não seria possível punir certos crimes não cometidos em Portugal, mas cometidos noutras partes do mundo, uma vez que, nesse caso, só é possível punir esses criminosos através de uma jurisdição internacional.
A segunda nota é a seguinte: é evidente que o TPI não é uma estrutura perfeita — aliás, nem o poderia ser — , mas é um grande passo no sentido de se construir uma jurisdição penal supra-estadual. E creio que a melhor maneira de encarar o aperfeiçoamento das instituições não é boicotando e saindo delas, mas, sim, dentro das instituições, promover o seu aperfeiçoamento através de processos internos. Ora, o próprio TPI prevê a revisão do seu Estatuto ao fim de sete anos da sua entrada em vigor.
Se há dificuldades internas, do ponto de vista de ser necessário alargar a jurisdição no que respeita ao número de crimes a incluir, penso que a atitude não deve ser a de hostilizar essa estrutura e pretender aprovar artigos constitucionais que levem Portugal a ser obrigado a sair dela, mas, pelo contrário, promover activamente o seu aperfeiçoamento, corrigindo o que a experiência vai mostrando não estar a correr tão bem.
Portanto, a atitude deve ser positiva de, dentro das instituições, lutar pelo aperfeiçoamento do seu funcionamento.
O Sr. Presidente: — Não havendo mais oradores inscritos para intervir sobre o artigo 7.º, vamos virar a página, uma vez que as várias propostas serão votadas indiciariamente na segunda leitura.
Passamos, então, à apreciação das propostas referentes ao artigo 8.º (Direito internacional), constantes dos projectos de revisão constitucional n.os 1/XI (2.ª) (PSD), 2/XI (2.ª) (PCP), 3/XI (2.ª) (Os Verdes) e 9/XI (2.ª) (PS), todas elas relativas ao n.º 4.
Aguardo inscrições para a apresentação das propostas.
Pausa.
Para apresentar a proposta do PSD, tem a palavra o Sr. Deputado José de Matos Correia.
O Sr. José de Matos Correia (PSD): — Sr. Presidente, permita-me que faça uma pequeníssima correcção em relação ao que V. Ex.ª acabou de dizer, que é a seguinte: além das propostas de alteração ao n.º 4 do artigo 8.º, a proposta do PSD é de alteração da epígrafe do artigo.
O Sr. Presidente: — Tem toda a razão, Sr. Deputado.
O Sr. José de Matos Correia (PSD): — Sr. Presidente, farei uma intervenção muito breve e começaria, precisamente, por esse ponto.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Esta é uma questão que já abordámos aqui, embora muito perfunctoriamente, na reunião passada e que, no fundo, visa reconhecer que o direito da União Europeia é um direito que apresenta especificidades próprias e não é reconduzível, evidentemente, nem ao direito interno nem ao Direito Internacional, com as características que este vulgarmente apresenta.
Parece-nos, por isso, que, independentemente de estarmos abertos a discutir outras questões quanto ao posicionamento sistemático das normas sobre a União Europeia, a continuarem a situar-se neste artigo 8.º, como actualmente ocorre, essas questões devem motivar uma alteração da própria epígrafe do artigo, que, para tanto, na nossa perspectiva, deveria passar a designar-se por «Direito Internacional e da União Europeia» e não apenas por «Direito internacional», como hoje acontece, na medida em que o n.º 4, não tem, manifestamente, a ver com questões de Direito Internacional, mas apenas com as questões específicas do direito da União Europeia.
Este é o primeiro aspecto, que tem a ver com o esclarecimento do porquê da proposta de alteração da epígrafe do artigo 8.º.
Por outro lado, a proposta de alteração do n.º 4 visa substituir o segmento final da norma, que actualmente faz referência aos «princípios fundamentais do Estado de direito democrático», por um novo segmento que refere «com respeito pelos princípios fundamentais da ordem constitucional portuguesa». Porquê? Por duas razões que, de novo, brevemente resumo.
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Em primeiro lugar, porque nos parece que esta cláusula de salvaguarda — que foi introduzida, como todos estaremos recordados, por ocasião da revisão constitucional de 2004 e na perspectiva da aprovação da «Constituição europeia», ou do Tratado Constitucional Europeu, o que não veio a acontecer — , ao referir-se aos «princípios fundamentais do Estado de direito democrático», visa ressalvar, precisamente, aqueles que, porventura, são os que em menor risco de violação estão perante o direito da União Europeia, na medida em que, hoje em dia, a União Europeia, pela sua própria natureza e pelo que é o seu acquis nesta matéria, é uma construção que assenta nos mesmos princípios em que assenta o Estado de direito democrático.
Uma leitura dos tratados comunitários bem o demonstra e essa ideia é ainda mais reforçada com o Tratado de Lisboa e com a inserção da Carta dos Direitos Fundamentais.
Portanto, nessa perspectiva, parece-nos difícil que as disposições dos tratados que regem a União Europeia ponham em causa, precisamente, os princípios do Estado de direito democrático, porque esses são aqueles em que também assenta a própria construção europeia.
Em segundo lugar, parece-nos que a cláusula de salvaguarda deve ser mais alargada e deve abarcar os aspectos fundamentais que têm a ver com o núcleo da soberania do Estado português. Daí que propúnhamos que a alusão seja não apenas, repito, aos «princípios fundamentais do Estado de direito democrático», mas aos princípios fundamentais que definem o perímetro essencial da ordem constitucional portuguesa e que não se resumem, evidentemente, aos princípios do Estado de direito democrático, que são uma parte — porventura, a parte mais essencial — desses princípios fundamentais, mas não esgotam os princípios fundamentais da ordem constitucional portuguesa.
Em termos muito resumidos, são estas as razões que motivam a nossa proposta de alteração, quer da epígrafe quer do n.º 4 do artigo 8.º.
O Sr. Presidente: — Por ordem de numeração dos projectos de revisão constitucional, a próxima proposta a apresentar é a do PCP. Pergunto ao Sr. Deputado Bernardino Soares se pretende apresentar a proposta do PCP, de eliminação do n.º 4.
O Sr. Bernardino Soares (PCP): — Sim, Sr. Presidente.
O Sr. Presidente: — Então, tem a palavra.
O Sr. Bernardino Soares (PCP): — Sr. Presidente, Srs. Deputados: A nossa proposta é de eliminação do n.º 4 e, em boa parte, tal como referi a propósito do artigo anterior, do n.º 6 do artigo 7.º, o que procuramos é retirar da Constituição uma norma que procura consagrar a subordinação da Constituição Portuguesa ao direito proveniente da União Europeia e que tem, evidentemente, várias consequências. Aliás, é curioso seguir os argumentos que têm sido apresentados — na altura, para justificar a inclusão desta norma e, agora, para justificar a sua manutenção.
É curioso relembrar, por exemplo, o que o Partido Socialista dizia à altura da inclusão desta norma na Constituição, isto é, que não haveria um problema de conflito entre as normas constitucionais e as normas dos tratados europeus porque onde se aplicassem os tratados europeus já não se aplicava a Constituição, procurando consumar assim uma retirada da Constituição, uma «automutilação» constitucional, no sentido de dar prevalência ao direito da União Europeia sobre a própria Constituição.
Ora, «automutilar» a aplicação da Constituição é a mesma coisa que «mutilar» a soberania nacional. É isso, aliás, que tem sido praticado pelos sucessivos governos — e por este, também — em relação à União Europeia, à transferência de soberania e à abdicação de direitos próprios e soberanos dos Estados.
O PSD vem dizer, agora, que não há problema em aceitar esta subordinação, porque, no fundamental, os princípios são idênticos e, portanto, não há conflito. Ora, mesmo em relação ao exemplo da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, é certo e sabido que os direitos previstos na nossa Constituição são mais amplos do que os que estão previstos nessa Carta dos Direitos Fundamentais. Portanto, substituir uma por outra é recuar nas garantias, direitos e liberdades, o que não é aceitável nem tem qualquer tipo de justificação.
É evidente que há aqui um esforço para legitimar um conjunto de decisões ao nível da União Europeia, aceite pelos governos nacionais e, às vezes, também aprovado neste Parlamento, que se procura justificar através da invocação de uma espécie de «terceiro género», que seria o direito da União Europeia, não
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compaginável com a classificação de Direito Internacional. Ora, isto significa, também, uma certa concepção de soberania limitada que estes partidos procuram atribuir ao nosso País, ao nosso Estado em relação à União Europeia.
A justificação da nossa proposta é, portanto, a de retomar o princípio da primazia da nossa Constituição sobre quaisquer normas, incluindo normas de tratados internacionais e normas dos tratados da União Europeia e provindas da União Europeia.
No momento em que estamos a discutir, no Plenário, a imposição de regras no que se refere ao cerne da competência dos parlamentos, como é a elaboração do Orçamento do Estado, temos um bom exemplo de como não podemos aceitar que as regras da União Europeia se sobreponham à nossa Constituição.
O Sr. Presidente: — Como não está presente nenhum Sr. Deputado de Os Verdes, passamos à apresentação da proposta do PS, de arrumação sistemática deste n.º 4 do artigo 8.º — que é comum, aliás, com o n.º 6 do artigo 7.º.
Para apresentar as razões da proposta do PS, tem a palavra o Sr. Deputado Vitalino Canas.
O Sr. Vitalino Canas (PS): — Sr. Presidente, mais do que justificar a proposta de alteração do PS, gostaria de pronunciar-me sobre as propostas dos outros grupos parlamentares, porque a nossa, no fundo, altera sistematicamente mas não substantivamente.
Portanto, se o Sr. Presidente me permitir, também deixaria já essa tarefa executada.
O Sr. Presidente: — Faz muito bem, Sr. Deputado.
O Sr. Vitalino Canas (PS): — Sr. Presidente, Srs. Deputados: Embora esta matéria seja, porventura, pouco atraente para os cidadãos em geral, creio que ela é de grande importância e que devemos dedicar-lhe aqui algum tempo. Por isso, se me permitem, vou fazer uma intervenção com a duração de alguns minutos, porque me parece necessário fazer um enquadramento.
Na verdade, esta matéria foi discutida profundamente em 2004, embora o resultado dessa discussão, em meu entender, não tenha sido totalmente feliz. Aliás, eu próprio, em artigos que escrevi nessa ocasião, pronunciei-me — sobretudo, em relação ao n.º 2 do artigo 8.º — de forma algo descontente com o modo como tínhamos procurado resolver o problema. Qual era o problema que havia nessa altura e que ainda subsiste? Era o de procurar concretizar, ao nível da Constituição portuguesa, o princípio do primado.
O princípio do primado estava consagrado no projecto de Tratado Constitucional Europeu: no seu artigo I.6.º lia-se que «A Constituição e o direito adoptado pelas instituições da União, no exercício das competências que lhe são atribuídas, primam sobre o direito dos Estados-membros». Havia, portanto, que enfrentar o desafio que este preceito nos suscitava na altura e nós enfrentámo-lo da forma que ficou patente no n.º 4 do artigo 8.º.
Curiosamente, o primado foi uma das questões que «saltou» do Tratado Constitucional para o Tratado de Lisboa, não consta do Tratado de Lisboa, foi um dos aspectos que foi retirado, sem que isso signifique, obviamente, que a União Europeia tenha desistido do princípio do primado, mas entendeu-se que não era necessário consagrá-lo.
Há agora propostas de revisão que alteram o que está na Constituição e queria pronunciar-me, designadamente, em relação à proposta do PSD.
Sinceramente, penso que a proposta do PSD não resolve qualquer dos problemas — alguns sérios, eventualmente — do n.º 4 do artigo 8.º, porque esta disposição tem vários.
Em primeiro lugar, remete para a ordem constitucional europeia, para as normas emanadas das instituições da União Europeia de forma global, não tendo a sensibilidade para perceber que nem tudo é igual ao nível das normas emanadas da União Europeia: de um lado, está o direito primário, o direito dos tratados, que tem uma determinada dignidade de natureza formal e, do outro lado, há um conjunto enorme de fontes de direito da União Europeia que não tem a mesma dignidade, nem em relação ao direito primário nem entre si — embora isso seja algo confuso dentro do próprio tratamento na União Europeia.
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Ora, o n.º 4 do artigo 8.º remete, indiferenciadamente, para tudo, ou seja: tudo o que é produzido na União Europeia terá aplicação na ordem interna e, interpretam alguns, prima sobre as normas da ordem interna. Mas a proposta do PSD não resolve esse problema, nem nenhuma outra proposta, incluindo a do PS.
Em segundo lugar, a expressão da parte final do n.º 4, «princípios fundamentais do Estado de direito democrático», foi construída na altura, em 2004, depois de testarmos muitas — recordo-me que houve muitas alternativas — , mas é uma expressão que, garantidamente, é muito ambígua. Aliás, todo o artigo é altamente ambíguo, porque aqueles que sustentam que o n.º 4 do artigo 8.º consagra o princípio do primado do direito da União Europeia sobre todo o direito português, incluindo o Direito Constitucional português, não captam adequadamente a ambiguidade do artigo 8.º.
Eu não o interpreto dessa forma. Não creio que o artigo 8.º possa ser interpretado no sentido de todo o direito da União Europeia primar sobre todo o direito interno português, incluindo a Constituição portuguesa.
Entendo — aliás, o Sr. Deputado Bernardino Soares já o recordou — que terá de haver coordenação entre o Direito Constitucional português e o direito primário da União Europeia, designadamente o direito dos tratados, coordenação que pode ser feita porque têm âmbitos de aplicação normalmente diferenciados.
Portanto, pode haver essa articulação e, eventualmente, aqui e ali, poderá colocar-se um conflito entre normas de direito dos tratados da União Europeia e de Direito Constitucional, que terá de ser resolvido a favor do primado da União Europeia. Já não me parece que o mesmo se possa dizer em relação a todas as outras normas originárias da União Europeia em relação à Constituição portuguesa.
Não defendo, nem creio que se possa fazê-lo a partir deste preceito, que todas as normas da União Europeia, mesmo aquelas que são oriundas de fontes formais de menor dignidade, primam sobre a Constituição Portuguesa. Mas nenhuma das propostas apresentadas resolve essa ambiguidade e, sinceramente, não tenho a certeza de que a devamos resolver — é algo que deixo em aberto. Ou seja, nesta fase de desenvolvimento do direito da União Europeia e da sua relação com as ordens constitucionais internas, talvez se devesse manter ainda essa ambiguidade.
Vou pronunciar-me, também, em relação ao confronto entre a expressão que está hoje consagrada, «princípios fundamentais do Estado de direito democrático», e a expressão que é proposta pelo PSD, «princípios fundamentais da ordem constitucional portuguesa».
Não sei se, em 2004, esta proposta já tinha surgido, se alguém a sustentava, mas devo dizer que é uma proposta que não me deixa totalmente tranquilo — a explicação do Sr. Deputado José de Matos Correia não esclareceu algumas dúvidas que tenho.
Desde logo, «princípios fundamentais da ordem constitucional portuguesa» é o quê? É uma espécie de ordem pública constitucional? E quais são esses princípios fundamentais? São os dos artigos 1.º ao 11.º, ou são outros? Reparem: eu sei o que são «princípios fundamentais do Estado direito democrático», porque esse tema está muito desenvolvido pela doutrina, está estudado. Mas não sei o que são «princípios fundamentais da ordem constitucional portuguesa», sinceramente!? No fundo, a proposta do PSD visa alargar os limites do que não é sujeito ao primado do direito da União Europeia — penso que isso resultou da intervenção do Sr. Deputado José de Matos Correia — , só que não tenho a certeza para onde! Visa-se alargar para onde? É essa a dúvida que gostaria de ver esclarecida aqui, não manifestando uma posição totalmente fechada em relação a essa questão.
Rigorosamente, penso que a ideia de «princípios fundamentais da ordem constitucional portuguesa» não está tão estudada, nem está tão desenvolvida, tão densificada como a ideia de «princípios fundamentais do Estado de direito democrático».
O Sr. Presidente: — Para pedir esclarecimentos ao Sr. Deputado Vitalino Canas, tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): — Sr. Presidente, Sr. Deputado Vitalino Canas, sobre esta última questão que colocou, gostaria de recordar-lhe que, na prática, objectivamente, a questão que é suscitada agora pelo PSD já se colocou, e cito-lhe o caso do TPI.
Quando se colocou o problema da adesão de Portugal ao tratado que estatuiu o TPI, foi feita a leitura de que dificilmente, a não ser que houvesse um encarte constitucional específico e expresso, Portugal poderia
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aderir ao TPI, porque ele poria em causa princípios essenciais da ordem constitucional portuguesa. Foi exactamente por isso que se fez uma revisão extraordinária, colocando a norma que ainda há pouco abordámos — o n.º 7 do artigo 7.º — , para acomodar na ordem constitucional portuguesa, expressamente, a possibilidade de adesão ao TPI. Isto foi feito por haver, em princípio, questões da ordem constitucional portuguesa que poderiam ficar «beliscadas» pela aceitação, da parte de Portugal, da soberania daquele Tribunal.
Portanto, o problema não é novo, de facto. É certo que, em teoria, pode dizer-se o que o Dr. Vitalino Canas acabou de referir, ou seja, não existe, pelo menos de uma forma pacífica, uma densificação exacta do que são os princípios fundamentais, não da Constituição mas da ordem constitucional, porque em relação aos princípios fundamentais da Constituição poderia questionar-se, esses sim, se seriam os dos artigos que têm por título «Princípios Fundamentais» ou outros.
Sobre os princípios essenciais que enformam a ordem constitucional portuguesa, não há uma densificação exacta, rigorosa, pacífica na doutrina — é um facto — , o que não quer dizer que não exista uma percepção bastante alargada sobre o que são esses mesmos princípios. Prova disso foi o que aconteceu no caso expresso do TPI e, porventura, noutros casos.
Por exemplo, na questão do mandado de captura europeu, também se questionou e discutiu muito aqui, no Parlamento, como o Sr. Deputado estará recordado, se isso feria ou não a Constituição Portuguesa — a Constituição no sentido dos princípios da ordem constitucional portuguesa.
Não sei como, de outra forma, enunciar esse problema, mas é à luz da consciência desse problema que o PSD apresenta esta proposta.
Tal como o Sr. Deputado José de Matos Correia referiu, parece-nos, de algum modo, redundante a referência aos «princípios fundamentais do Estado de direito democrático», porque isso seria como que admitir que a própria União não está fundada e não pressupõe o respeito por esses princípios, o que não é verdade, como o Sr. Deputado sabe. Por isso optámos por encontrar uma forma mais alargada, porque também a ordem constitucional portuguesa se baseia nos princípios fundamentais do Estado de direito democrático, acrescentados de mais algumas especificidades.
Terminava esta reflexão, interpelando o Sr. Deputado Vitalino Canas neste sentido: é ou não verdade que, na prática, este problema já se colocou, nomeadamente nos casos que citei, do TPI, do mandado de captura europeu e, eventualmente, noutros de que não me recordo agora? Este é um problema real, que existe e que, porventura, justifica que haja uma formulação um pouco diferente relativamente a esta matéria do direito da União Europeia, porque, de facto, independentemente da outra questão que o Sr. Deputado enunciou e que agora não comento — a questão do primado — , este problema já foi levantado e resolvido, umas vezes de uma maneira, através de uma revisão constitucional cirúrgica, outras vezes de outra maneira, através de um entendimento comummente aceite pela maioria da doutrina e pela legislação nacional de que isso era acomodável à luz dos princípios da ordem constitucional portuguesa.
O problema poderá voltar a colocar-se e, portanto, é importante deixar aqui a nota de que, sempre que se coloque, é preciso que haja um olhar fundo sobre a ordem constitucional portuguesa para saber se, antes de qualquer aceitação de um princípio do direito da União Europeia que seja inovador ou diferente relativamente à ordem constitucional portuguesa, deve proceder-se, ou não — respeitando o princípio da hierarquia das normas — , a uma revisão constitucional para acomodar esse mesmo princípio, como já aconteceu no passado.
No fundo, mais do que uma dúvida, tratou-se de um esclarecimento em relação à dúvida do Sr. Deputado Vitalino Canas e de uma nova interpelação.
O Sr. Presidente: — Para responder, tem a palavra o Sr. Deputado Vitalino Canas.
O Sr. Vitalino Canas (PS): — Sr. Presidente, Sr. Deputado Luís Marques Guedes, agradeço a interpelação/dúvida/esclarecimento.
Gostaria de dizer o seguinte: com toda a certeza, apesar de podermos estar de acordo, nós os dois e as duas bancadas — PS e PSD — , sobre muitos princípios da Constituição como sendo princípios fundamentais, haverá alguns em relação aos quais esse acordo não existe.
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Por exemplo, no que se refere aos limites materiais da revisão, entendo que estes consagram o núcleo duro dos princípios fundamentais da ordem constitucional portuguesa. Ora, o Sr. Deputado concorda que um deles seja a «existência de planos económicos no âmbito de uma economia mista»? A verdade é que esse é um princípio fundamental da ordem constitucional portuguesa enquanto aí constar. Mas será que podemos obrigar ou fazer com que este princípio fundamental tenha de ser respeitado pelo direito da União Europeia, na relação que ele tem com o direito interno português? Tenho algumas dúvidas.
Com certeza, encontramos vários exemplos destes, em que a Constituição portuguesa aponta no sentido de determinado conjunto de princípios, que são princípios fundamentais — pelo menos, alguns de nós entenderão que o são — , mas que, com toda a certeza, se compatibilizariam mal com a União Europeia e seria muito difícil dizermos que o direito primário da União Europeia tem de os respeitar. Muito difícil!
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado José de Matos Correia.
O Sr. José de Matos Correia (PSD): — Sr. Presidente, uso da palavra para responder directamente à interpelação do Sr. Deputado Vitalino Canas e, também, comentar a intervenção do Sr. Deputado Bernardino Soares. Começarei precisamente por ela.
O Sr. Bernardino Soares (PCP): — Peço-lhe que fale um pouco mais perto do microfone, para o conseguir ouvir, Sr. Deputado.
O Sr. José de Matos Correia (PSD): — Falo, sim senhor! Faço questão que o Sr. Deputado Bernardino Soares ouça bem, naturalmente. Não que lucre ou aprenda alguma coisa com isso»
O Sr. Bernardino Soares (PCP): — Aprendo, de certeza!
O Sr. José de Matos Correia (PSD): — » mas, ao menos, por uma questão de deferência protocolar!
O Sr. Presidente: — Sr. Deputado, não seja excessivamente modesto!
O Sr. José de Matos Correia (PSD): — A intervenção do Sr. Deputado Bernardino Soares causou-me alguma perplexidade, uma vez que se escudou num conjunto de considerações sobre a concepção que o PSD terá das relações entre os Estados e a União Europeia — a questão da soberania limitada.
A talhe de foice, diria que não somos nós os especialistas nas doutrinas da soberania limitada, é uma ideia mais utilizada no tempo do Pacto de Varsóvia, conhecida como a «doutrina de Brejnev». Portanto, não somos especialistas nessa área, manifestamente.
Em todo o caso, é curioso e até paradoxal dizer isso a propósito da proposta do PSD, quando nós, precisamente, sem pôr em causa a concepção que temos sobre a natureza da União Europeia e sobre as relações entre os Estados e a União Europeia, visamos — com esta proposta — alargar a protecção da ordem constitucional portuguesa, defendendo que as normas de direito da União Europeia têm de respeitar não apenas os «princípios fundamentais do Estado de direito democrático» mas, também, os «princípios fundamentais da ordem constitucional portuguesa», ou seja, o núcleo fundamental da soberania do Estado português.
Portanto, parece-nos um pouco paradoxal que esse comentário seja feito, precisamente tendo em conta a natureza da proposta que fazemos.
Relativamente às questões colocadas pelo Sr. Deputado Vitalino Canas, há vários aspectos a ter em consideração. Aliás, como o Sr. Deputado disse, e muitíssimo bem, esta matéria levar-nos-ia a uma discussão da qual nunca mais sairíamos, porque também nenhum de nós ignora as questões que se têm colocado noutros Estados-membros a propósito da questão do primado, da natureza absoluta, ou não, do primado, da interpretação que tem o Tribunal de Justiça da União Europeia a este propósito, das decisões que já houve noutros Estados-membros, nomeadamente na Alemanha, sobre a questão da compatibilidade entre as normas constitucionais e as normas do direito da União Europeia, em particular as normas dos tratados. Portanto, isso levar-nos-ia a uma discussão da qual não sairíamos, pelo menos tão depressa!
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Estou de acordo com algumas considerações que o Sr. Deputado Vitalino Canas fez, designadamente quanto à necessidade — que, porventura, é difícil de satisfazer a nível constitucional — de separar as normas de direito primário das normas de direito derivado. Mas, enfim, a Constituição não é um tratado de direito europeu e, portanto, temos de encontrar uma solução minimamente equilibrada.
O que está aqui em causa, como julgo que decorre do que disse o Sr. Deputado Luís Marques Guedes, é saber em que termos a nossa Constituição tem de ser protegida, porque depois haverá uma dimensão política, que já tem sido objecto de avaliação noutros momentos, que responde ao seguinte problema: havendo contradição, mudamos ou não a Constituição para resolver essa contradição? Portanto, há aqui dois momentos distintos: um, é o de saber se a contradição existe e o que tem de ser preservado em função dessa contradição; outro, é o da decisão política sobre se deve, ou não, em função dessa contradição, alterar-se o texto constitucional para pôr fim à contradição, subordinando, no fundo, o texto constitucional às regras de direito europeu. Foi o que aconteceu em 1992, com o tratado da União Europeia, foi o que aconteceu, embora num contexto diferente, com o TPI, foi o que se visou acautelar, em larga medida, na revisão de 2004, com a inserção deste artigo 8.º, n.º 4, e foi o que aconteceu, embora de forma indirecta, com a revisão de 2005.
São dois aspectos diferentes. Primeiro, dizemos que há primado. Mas o primado abrange o quê? O que é que tem de ser protegido? Em função da contradição que daí surja, vamos ou não alterar a Constituição para resolver essa contradição? Este é um primeiro aspecto que, do nosso ponto de vista, não pode ser descurado.
Em segundo lugar, o Sr. Deputado Vitalino Canas diz, e com razão, que o grau de densidade interpretativa do que é o princípio do Estado de direito democrático e do que são os «princípios fundamentais da ordem constitucional portuguesa» é distinto. É verdade! Mas é verdade hoje, porque o princípio do Estado de direito democrático tem sido objecto de um tratamento jurisprudencial e doutrinal, nos últimos 30 e tal anos, que permitiu chegar ao grau de entendimento que hoje temos sobre o que ele representa.
Portanto, desculpar-me-á, mas esse argumento não colhe, do meu ponto de vista, até porque há sempre modos, nem que seja pela intervenção dos tribunais, de chegar à consideração ou à qualificação de um determinado princípio como princípio fundamental da ordem constitucional portuguesa, ou não.
Também não dou por adquirido que os limites materiais da revisão constitucional traduzam necessariamente, sobretudo tendo em conta as alterações que se registaram desde essa altura, princípios fundamentais da ordem constitucional portuguesa. Mas o facto de termos aqui um problema interpretativo não deve demover-nos de consagrar uma solução, se entendermos que é a mais adequada.
O princípio do Estado de direito democrático, como o Sr. Deputado Vitalino Canas sabe muito melhor do que eu, desdobra-se em dois princípios e em vários subprincípios. Ele é, por um lado, o princípio do Estado de direito e, por outro, o princípio democrático, e estes dois princípios têm, depois, várias concretizações, que levam a doutrina a falar em vários subprincípios. Mas isso não resolve todos os problemas.
Por exemplo, uma das questões fundamentais que se coloca na relação entre os Estados e a União Europeia tem a ver com a distribuição ou a repartição de atribuições entre a União Europeia e os Estados — o que é de cada um? A nossa Constituição estabelece um conjunto de tarefas fundamentais do Estado, de fins e funções do Estado e eu julgo que podemos estar de acordo que essas são questões que podem enquadrar-se nestes «princípios fundamentais da ordem constitucional portuguesa», não se reconduzindo, na íntegra, nem de longe nem de perto, à questão dos «princípios fundamentais do Estado de direito democrático».
Portanto, quando estão em causa as funções, os fins, as tarefas fundamentais que o Estado visa desenvolver, o problema que daí decorre é o de saber até onde devem ir os poderes da União Europeia, os poderes do Estado e a necessária relação que entre essas questões deve ocorrer e se não devemos considerar, por exemplo, que deve haver aí uma protecção que permita, por isso mesmo, estabelecer critérios que possam defender o Estado português de um esvaziamento das suas competências que possa decorrer das regras de direito europeu.
É claro que depois, se isso ocorrer, teremos o segundo momento, em que o Estado português poderá decidir — se estivermos perante o direito primário, evidentemente — se está ou não disponível para aceitar esse esvaziamento. Mas estas questões, que são fundamentais, de saber quem deve fazer o quê e quais os limites da intervenção da União Europeia no que diz respeito aos fins do Estado e às funções que deve desempenhar, do nosso ponto de vista, podem reconduzir-se aos «princípios fundamentais da ordem constitucional portuguesa», mas não se reconduzem seguramente, em exclusivo, à questão dos «princípios
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fundamentais do Estado de direito democrático». É um raciocínio, e podíamos desenvolvê-lo noutros domínios.
Esta é uma tentativa de explicitar ao Sr. Deputado Vitalino Canas por que é que achamos que a questão dos «princípios fundamentais da ordem constitucional portuguesa» pode ter uma justificação acrescida face aos «princípios fundamentais do Estado de direito democrático», tanto mais que — e aqui reconduzo-me ao argumento que, eu próprio, já utilizei — a Europa baseia-se nos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.
Essa é uma herança comum de todos os países que a integram e, portanto, é um pouco tautológico dizer que tem de haver respeito pelos «princípios fundamentais do Estado de direito democrático», quando é neles que se baseia a própria construção europeia.
O Sr. Presidente: — O Sr. Deputado Vitalino Canas inscreveu-se, mas a mesa, entretanto, registou uma série de inscrições.
O Sr. Vitalino Canas (PS): — Sr. Presidente, queria usar da palavra apenas por 10 segundos, para chamar a atenção do Sr. Deputado José de Matos Correia e, depois, nada mais terei a dizer.
O Sr. Presidente: — Não havendo objecções, tem a palavra, Sr. Deputado.
O Sr. Vitalino Canas (PS): — Sr. Presidente, é muito breve. Apenas pretendo dizer que a questão levantada na parte final da intervenção do Sr. Deputado José de Matos Correia está resolvida no n.º 6 do artigo 7.º, que passaria a ser o n.º 1 do artigo 8.º-A, se a proposta do PS fosse aceite. A repartição de atribuições e competências entre o Estado português e as instituições da União Europeia já está feita no n.º 6 do artigo 7.º.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Fazenda.
O Sr. Luís Fazenda (BE): — Sr. Presidente e Srs. Deputados, a minha intervenção é breve, até porque já se percebeu o destino da norma em questão e, portanto, talvez seja um pouco ocioso aprofundar teoricamente alterações que não vão existir. Em todo o caso, uso da palavra porque gostava de registar a intervenção do Sr. Deputado Vitalino Canas, que me pareceu muito interessante a título da autenticidade do que aqui disse.
Com efeito, acerca da célebre polémica sobre o primado do direito da União Europeia na ordem jurídica nacional, o Sr. Deputado Vitalino Canas disse-nos que o primado estava no Tratado Constitucional e que já não está no Tratado de Lisboa, mas que ficou lá na mesma — é uma norma branca. Devo sublinhar esse reconhecimento, porque parece-me politicamente importante.
Além de mais, pareceu-me interessante a argumentação do Sr. Deputado no que toca ao seguinte: dissenos que há uma enorme ambiguidade e uma enorme vagueza no que seja o respeito pelos «princípios fundamentais do Estado de direito democrático», mas que é óptimo que essa ambiguidade seja um vazio, ela própria!
O Sr. Vitalino Canas (PS): — Não foi isso que eu disse!
O Sr. Luís Fazenda (BE): — Portanto, o curso do direito da União Europeia não tem, objectivamente, qualquer obstáculo. É essa a consequência política que posso extrair da sua declaração, com o devido respeito.
Todavia, quando o PSD apresenta aqui mais algumas restrições, o curioso do argumentário do Sr. Deputado Vitalino Canas é a ambiguidade da proposta do PSD, que, apesar de tudo, é bastante menos ambígua do que aquela que o Partido Socialista perfilha, que é a que consta do texto constitucional — inserção que resultou do acordo anterior, entre PS e PSD.
Gostaria apenas de registar o valor dos argumentos porquanto ele mostra, exactamente, o propósito que se defendeu na revisão constitucional que adaptou esta norma. Mas este discurso é absolutamente contraditório com o que foi feito à época e, como tal, parece-me que esse sublinhado deve ser marcado.
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A expressão «princípios fundamentais da ordem constitucional portuguesa» tem, pelo menos, o mérito relativo de, por um lado, ter menos ambiguidade e, por outro, ser não só uma salvaguarda do direito nacional como uma referência directa à Constituição, e não uma referência etérea a uns princípios do Estado de direito absolutamente genéricos — podemos apelar a um conjunto de normas que tem vindo a consolidar tudo o que sejam os princípios do Estado de direito democrático, mas eles não deixam de ter essa vagueza, essa internacionalização e essa universalidade que lhes está ínsita. Pelo menos, os «princípios fundamentais da ordem constitucional portuguesa» têm esse mérito.
Não estou aqui a advogar a proposta do PSD nem sou procurador da interpretação que faz, mas achei verdadeiramente «peregrina», se me é permitida a expressão, a interpretação que o Sr. Deputado Vitalino Canas fez da norma.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Bacelar Gouveia.
O Sr. Jorge Bacelar Gouveia (PSD): — Sr. Presidente e Srs. Deputados, também gostaria de fazer alguns comentários sobre este ponto, sobretudo referir a importância deste n.º 4 do artigo 8.º, bem como a sua delicadeza.
Ora, a sua delicadeza reside no facto de a inserção deste artigo pretender resolver um problema difícil, o chamado «primado do direito da União Europeia» no que respeita aos direitos nacionais. Aliás, o problema do primado não se põe apenas em relação ao direito da União — às vezes não se fala disso, mas o próprio Direito Internacional Público, como nós sabemos (e a Constituição é muito explícita a esse propósito), também tem um primado sobre o direito português e, mesmo, sobre o Direito Constitucional.
Portanto, não devemos deixar-nos cair num discurso catastrofista de que, com esta cláusula, o Estado português vai desaparecer, porque esse primado já existe em relação a várias normas do Direito Internacional Público, por exemplo, em matéria de direitos humanos e em matéria de proibição do uso da força.
O primado do direito da União Europeia, ao contrário do que disse — e permita-me discordar — o Sr. Deputado Bernardino Soares, não é absoluto, nem sequer é um primado que leve a qualquer «mutilação» da soberania nacional. E, obviamente, Portugal não pertence à esfera dos Estados que eram de soberania limitada.
Na verdade, quando foi introduzido, este n.º 4 do artigo 8.º teve precisamente por missão suavizar esse primado (que tem sido formulado por várias decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia) ou, apenas, admitir um primado relativo até certo ponto, fazendo com que ele pudesse ser temperado, na esteira de várias decisões de diferentes tribunais constitucionais europeus — o caso do tribunal constitucional alemão, de 1993, é o mais significativo. No fundo, esta disposição visa estabelecer aqui um equilíbrio, que é um equilíbrio difícil, entre, por um lado, aceitar esse primado, visto que sem ele a União Europeia não pode subsistir, e, por outro lado, esse primado não ser absoluto a ponto de atropelar valores e princípios fundamentais de cada um dos Estados-membros dessa mesma União Europeia.
Portanto, o objectivo é o de aceitar o primado do direito da União até certo ponto, um primado que é relativo e não absoluto.
A afirmação do Sr. Deputado Bernardino Soares leva-me a perguntar se, na verdade, o lapso que se verificou no texto do projecto de revisão constitucional do PCP, de o n.º 6 do artigo 7.º não ser para eliminar, foi mesmo um lapso. Fico na dúvida se, afinal, esse número não seria mesmo para eliminar, porque, se a vossa proposta fizesse vencimento, Portugal ficaria numa situação de inconstitucionalidade na União Europeia na medida em que não poderia aceitar as regras da União, dado que parte dessas regras postula o primado do direito da União Europeia em relação aos direitos nacionais.
Portanto, pergunto se não terá havido um lapso no sentido de ter reconhecido essa eliminação como um lapso! Gostaria de acrescentar mais um ponto no que diz respeito à proposta do PSD, que me parece que traz uma vantagem enorme em relação ao que consta, neste momento, do texto constitucional. Na verdade, alguns autores têm admitido que a referência aos «princípios fundamentais do Estado de direito democrático» é restrita, que poderia ser alargada e com ganhos de causa no que respeita a esse alargamento.
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Até me permito referir alguns exemplos que têm a ver com casos em que esse alargamento pode ser útil, sendo certo que o Estado de direito democrático, apesar de ser algo móvel, não é inteiramente ambíguo. Mas, pelo sim pelo não, penso que esta proposta do PSD ajuda a compreender e a densificar melhor esse conceito.
É evidente que, se formos ver a letra do artigo 2.º, o que aí se designa por «Estado de direito democrático», para a doutrina portuguesa, é muito mais do que isso, porque no artigo 2.º não estão apenas princípios do Estado de direito democrático mas, também, por exemplo, princípios de justiça social, do Estado social.
De acordo com a proposta do PSD — penso que o PS devia ter isso em consideração e reconsiderar a sua posição — , o princípio do Estado social é um princípio fundamental da ordem constitucional portuguesa e, de acordo com o que propomos, esse princípio, que até agora não está protegido na cláusula de salvaguarda, passará a estar. Tal como o PSD, creio que o PS gosta do Estado social e, portanto, estou convencido de que vamos ganhar mais um partido a favor da aprovação desta proposta.
Evidentemente, quando se refere aos «princípios fundamentais da ordem constitucional portuguesa», a proposta do PSD também admite resolver alguns problemas de delimitação do que cabe dentro do princípio de Estado de direito democrático.
Se olharmos, por exemplo, para os artigos 1.º e 2.º, verificamos que o artigo 1.º refere a «dignidade da pessoa humana» e que o artigo 2.º, que fala em «Estado de direito democrático», não menciona a dignidade da pessoa humana. Ora, a proposta do PSD permite resolver dúvidas que, eventualmente, existam no sentido de também considerar o princípio da dignidade da pessoa humana como estando protegido por esta cláusula europeia alargada dos «princípios fundamentais da ordem constitucional portuguesa».
Permita-me também, Sr. Deputado Vitalino Canas, um comentário em relação a um exercício que fez, envolvendo os limites materiais de revisão. Não me leve a mal, mas o Sr. Deputado fez um exercício arriscado.
Com efeito, quando o Sr. Deputado refere que o artigo 288.º da Constituição, que engloba os limites materiais da revisão, estabelece que os planos económicos são princípios fundamentais da ordem constitucional portuguesa, eu discordo dessa conclusão, porque não só referiu uma alínea que já foi modificada em revisões constitucionais anteriores como, evidentemente, nem tudo o que está no artigo 288.º corresponde a princípios fundamentais da ordem constitucional portuguesa. Muitas das alíneas que estão nesse artigo estão aí mal colocadas, a meu ver, por um legislador constituinte hiperbólico que, em certas matérias, pretendeu levar longe demais o seu esforço de petrificação da própria ordem constitucional.
Os princípios fundamentais da ordem constitucional portuguesa não coincidem, a meu ver, com o que está consagrado no artigo 288.º.
São apenas estas as reflexões adicionais que quis referir em relação a este artigo, Sr. Presidente.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Telmo Correia.
O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — Sr. Presidente e Srs. Deputados, de uma forma breve, gostaria de comentar as propostas dos outros partidos, uma vez que o CDS discutiu esta matéria na elaboração do seu projecto constitucional, mas não apresentou qualquer proposta concreta. Preferimos, em matéria da União Europeia, seguir um outro caminho.
Mais à frente, apresentaremos as nossas propostas, que centralizamos muito na questão do acompanhamento dos assuntos da União Europeia e, designadamente, do ponto de vista legislativo, no cumprimento, por parte do Governo e das entidades portuguesas, das propostas em matérias que sejam, sobretudo, das reservas absoluta ou relativa da Assembleia da República, onde entendemos que a actuação da representação de Portugal deve ser consentânea com essa mesma reserva de soberania.
Portanto, é nesse domínio que se situa a nossa principal alteração em matéria da União Europeia, isto é, no artigo163.º, propondo a criação de um novo artigo 163.º-A (Acompanhamento dos assuntos da União Europeia).
No entanto, assistindo a esta discussão, reconhecendo a substância de muitas das posições que foram defendidas pelo Sr. Deputado Vitalino Canas e tomando nota da posição apresentada pelo PSD, diria que esta velha questão do primado do direito europeu não se resolve plenamente (ou não se resolve nunca!) com a mera expressão do texto deste mesmo artigo. Basta ver o que aconteceu noutros países, designadamente em
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França, onde existiram sérios conflitos relativos à aplicação, ou não, do primado do direito europeu, com resolução nos próprios tribunais constitucionais e sem solução definitiva.
Não obstante, diria que, do nosso ponto de vista, a expressão que é defendida pelo PSD — refiro-me ao «respeito pelos princípios fundamentais da ordem constitucional portuguesa» — parece-nos uma solução melhor do que a do actual texto constitucional, porque, de facto, a expressão «princípios fundamentais do Estado de direito democrático» não só é um conceito mais vago como não é muito lógico que uma norma proveniente da União Europeia não seja aplicável na ordem portuguesa por não respeitar os princípios do Estado de direito democrático. Eu sei que as coisas são o que são e que amanhã mudam! Mas, supostamente, as normas provenientes da União Europeia são respeitadoras do Estado de direito democrático, sendo por definição essa a natureza e a essência da própria União Europeia.
Portanto, esta parece-nos uma salvaguarda limitada e se, neste artigo, houver algum tipo de salvaguarda, penso que a referência à ordem constitucional portuguesa é uma opção melhor.
Em relação à proposta do Sr. Deputado Bernardino Soares, compreendendo a preocupação «soberanista» que até possa existir e que mereceria alguma simpatia da minha parte nesta eliminação, a minha dúvida é a de que não me parece que a ausência de norma resolva o problema. Quer dizer: que conclusão tiraríamos da ausência de norma, da ausência de disposição? Num conflito, numa matéria de primado do direito europeu, o que diz a Constituição portuguesa? Portanto, com a sua eliminação, não me parece que se pudesse resolver, de alguma forma, o problema.
Pelo menos, esta é a percepção que tenho, se entendi bem as propostas que estão em cima da mesa.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Bernardino Soares.
O Sr. Bernardino Soares (PCP): — Sr. Presidente e Srs. Deputados, queria lembrar o que, a propósito da introdução desta norma na Constituição, dizia o Professor Jorge Miranda: «O Estado português estará a aceitar a degradação da sua Lei Fundamental a um estatuto de segundo grau frente a um tratado internacional, implicando uma auto-ruptura comprometedora da sua função essencial».
Faço esta citação só para que fique registado que o PCP e outras forças políticas não estavam sós no alerta para a gravidade desta norma e da sua inserção na Constituição.
O Sr. Deputado Vitalino Canas fez bem em recordar que o processo de introdução desta norma na Constituição foi absolutamente extraordinário. Com efeito, esta norma foi incluída para acolher, previamente à sua conclusão mesmo a nível europeu, o que se supunha que viria a estar na mal chamada «Constituição Europeia». Portanto, à cautela, os legisladores constitucionais que incluíram esta norma quiseram, desde logo, arranjar aqui um aval para o que viesse, fosse lá o que fosse! Felizmente, acabou por não haver Tratado Constitucional Europeu e ficou ainda mais visível este excesso de zelo do PS e do PSD em Portugal, para corresponderem aos ditames dos poderes da União Europeia, denunciando bem como andaram e andam, tantas vezes, «a toque de caixa» destes poderes da União Europeia.
Hoje, a realidade é que temos uma norma na Lei Fundamental que visava acolher, a anteriori, um suposto tratado que existiria e que teria determinada formulação. Mas, afinal, o tratado não existiu e agora estamos aqui a discutir qual é, efectivamente, o âmbito da norma.
É verdade que há uma diferença entre tratados europeus e demais legislação, mas isso não pode significar uma sobreposição de qualquer um deles à nossa Constituição, do nosso ponto de vista.
Em relação à intervenção do Sr. Deputado José de Matos Correia, penso que vou surpreendê-lo — talvez — ao dizer que pensamos que a formulação que o PSD propõe para a parte final do n.º 4 tem interesse em relação á formulação que actualmente está na Constituição,»
O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — Claro!
O Sr. Jorge Bacelar Gouveia (PSD): — Estamos juntos!
O Sr. Bernardino Soares (PCP): — » porque uma coisa ç a doutrina — e a doutrina divide-se muitas vezes, e ainda bem — sobre o que são os «princípios fundamentais do Estado de direito democrático», outra
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coisa são os «princípios fundamentais da ordem constitucional portuguesa», que também podem ter a sua margem de interpretação, naturalmente, mas que, apesar de tudo, têm um texto concreto, que é a Constituição da República Portuguesa.
Por exemplo, no artigo 9.º, onde se definem as tarefas fundamentais do Estado, já lá encontramos os princípios do Estado de direito democrático como uma das tarefas fundamentais do Estado.
O problema, Srs. Deputados do PSD, é que esta parte final não apaga o que está antes, que continua a dizer que as «disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, (»), são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União«. É aqui que está o problema! Em suma, independentemente de a parte final proposta ser mais suave, a parte inicial continua a ser inaceitável.
De facto, à sombra desta norma, estamos perante um processo de progressiva retirada da soberania e da decisão dos Estados, um processo que não é de partilha, mas, sim, de centralização das decisões fundamentais em alguns poderes da União Europeia — todos os dias, a vida está a demonstrar que é assim! E isso acontece, especialmente, em matérias muito penalizantes para o nosso País e que continuam a ter, a coberto desta alienação chamada «partilha de soberania», a imposição de orientações a nível económico e a nível legislativo, a partir da União Europeia.
O que é que aconteceria — foi aqui perguntado — se eliminássemos este n.º 4, como o PCP propõe? É muito simples: os governos teriam de negociar na União Europeia de acordo com a orientação constitucional que têm e não aceitar derrogações dos nossos princípios constitucionais, como hoje estão a aceitar.
É uma consequência muito simples e teríamos apenas de fazer valer os direitos de um Estado soberano, de um Estado que tem o direito de defender os seus interesses legítimos junto da União Europeia, que é algo que não temos feito nas últimas décadas.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Vitalino Canas.
O Sr. Vitalino Canas (PS): — Sr. Presidente, começaria pela seguinte nota: quando os Srs. Deputados Luís Fazenda e Bernardino Soares, apesar de não muito entusiasticamente, parecem gostar mais da fórmula que o PSD propõe do que da que está na Constituição» Eu acharia suspeito»
O Sr. José de Matos Correia (PSD): — Eu também!
O Sr. Vitalino Canas (PS): — Mas, enfim, cabe ao PSD fazer essa avaliação!
Risos do PSD.
Por que é que, aos olhos do PCP e do BE, a fórmula que está na Constituição é pior do que a que o PSD propõe é algo que consideraria interessante avaliar.
Nesta intervenção, queria pronunciar-me sobre algumas questões que aqui foram levantadas e começaria por clarificar algumas a que o Sr. Deputado Luís Fazenda fez referência.
Em primeiro lugar, Sr. Deputado, é óbvio que o primado já era um acquis antes do Tratado Constitucional.
Do ponto de vista jurisprudencial, já estava definido o primado.
Protestos do Deputado do BE Luís Fazenda.
Se me permitir, Sr. Deputado, vou justamente dizer por que é que entendo que é importante o facto de ter havido a alteração que houve entre o Tratado Constitucional e o Tratado de Lisboa.
O Tratado Constitucional vinha, efectivamente, consagrar o primado sem a maleabilidade que ele tem de acordo com a criação jurisprudencial. Portanto, hoje em dia, continua a haver o primado, só que esse primado está definido jurisprudencialmente, com a maleabilidade que daí resulta, casuisticamente, e com a flexibilidade que aí está contida. Ora, o Tratado Constitucional consagrava o primado de uma forma bastante mais rígida.
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Há, de facto, diferença entre o Tratado Constitucional e o Tratado de Lisboa, Sr. Deputado Luís Fazenda, não tendo havido aí qualquer alteração de posição da nossa parte.
O Sr. Deputado também procurou fazer incidir na minha intervenção alguma ambiguidade e eu queria esclarecer que falei de ambiguidade, mas não queria que a intervenção fosse, ela própria, ambígua. De facto, não estava a falar de ambiguidade sobre o Estado de direito democrático e o que significa; estava a falar de ambiguidade sobre se o n.º 4 do artigo 8.º da Constituição portuguesa consagra, ou não, efectivamente, o princípio do primado na sua configuração mais absoluta, porque essa expressão não está lá.
Não se utiliza a expressão «primado» no n.º 4 do artigo 8.º, utiliza-se, sim, uma expressão de aplicabilidade: «são aplicáveis na ordem interna». E não se utiliza a expressão «primado» porque não se quis utilizar. Quando estávamos a tratar do tema, conhecíamos o que estava previsto ou projectado no Tratado Constitucional e não quisemos prever na Constituição portuguesa a adopção expressa do primado, adoptou-se outra expressão. É aí que reside a ambiguidade e, dessa ambiguidade, retiro o que disse inicialmente, ou seja, entendo que o princípio do primado deverá vigorar, porventura, no conflito que possa vir a existir entre normas constitucionais portuguesas e normas de direito primário da União Europeia, mas tenho muitas dúvidas e creio que não se aplica o princípio absoluto do primado no que diz respeito à relação entre Direito Constitucional português e direito derivado da União Europeia.
Para finalizar, Sr. Presidente, queria pronunciar-me sobre o seguinte: o Sr. Deputado Jorge Bacelar Gouveia referiu aqui o artigo 2.º, sobre o Estado de direito democrático, mas fê-lo procurando demonstrar que a expressão que o PSD sugere é melhor do que a que está na Constituição, e eu acho que utilizou um mau exemplo.
Dizer que a questão do Estado social será protegida com a expressão do PSD e que não é protegida com a expressão que consta hoje da Constituição parece-me um mau argumento, já que a Constituição, justamente, quando fala de Estado de direito democrático, abrange também a questão do Estado social. Portanto, já está protegida.
A expressão «Estado de direito democrático», que está na Constituição portuguesa, deve ser interpretada à luz do artigo 2.º, que tem uma concepção de Estado de direito democrático que abrange, também, a questão do Estado social. Portanto, essa é uma questão que já está protegida pela expressão constitucionalmente adoptada.
Chamo, contudo, a atenção para o seguinte: se essa é a posição do PSD, ou seja, a de que o Estado social não está protegido actualmente pela expressão «Estado de direito democrático«»
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): — Não, não!
O Sr. Vitalino Canas (PS): — Então, mais uma vez, temos aqui uma dissonância entre Deputados do PSD! Queria deixar uma última nota, regressando ao início, para dizer ao Sr. Deputado Luís Fazenda que este «presente» que quer aceitar do PSD, de adoptar uma outra expressão diferente da que está actualmente na Constituição, talvez seja um «presente envenenado», porque já verificámos qual é, afinal, a posição do PSD, por exemplo, em relação aos limites materiais de revisão, que, em meu entender, consagram, claramente, princípios fundamentais da Constituição portuguesa — não utilizo aqui a expressão «ordem constitucional portuguesa», porque não sei o que é.
Em todo o caso, Sr. Deputado Luís Fazenda, desiluda-se, porque, pelos vistos, o PSD não entende que esses princípios fundamentais passam a estar todos protegidos pela expressão que agora adopta.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Guilherme Silva.
O Sr. Guilherme Silva (PSD): — Sr. Presidente e Srs. Deputados, apenas queria salientar a aproximação do Sr. Deputado Bernardino Soares à proposta do PSD e, com todo o respeito, chamar-lhe a atenção para a seguinte circunstância: o PCP propõe a eliminação do n.º 4 do artigo 8.º e, na minha leitura, as preocupações do Sr. Deputado e do seu partido ficam menos protegidas com essa eliminação, porque os n.os 2 e 3 do artigo 8.º já prevêem, sem parâmetros, a vigência interna do direito originário e derivado da União Europeia.
Percebi que o Sr. Deputado Bernardino Soares criticava a proposta do PSD por manter tudo o mais que está no n.º 4, pensando que a sua eliminação seria uma «varinha de condão» para impedir a vigência do
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direito originário e derivado da União Europeia na ordem interna portuguesa. Mas, Sr. Deputado, desiluda-se completamente quanto a essa leitura! Aliás, seria uma situação inédita, porque V. Ex.ª estaria, num aspecto essencial da nossa permanência na União Europeia, a considerar-nos «meios participantes» na União Europeia.
Não sabemos como ç que isso seria conciliável» Penso que só com uma assunção da saída de Portugal da União Europeia, tout court! Portanto, não me parece que a questão ficasse resolvida desse modo.
Para terminar, quero dizer-lhe o seguinte: penso que tem de ser ainda mais expressivo nesta aderência e pedir ao PSD para subscrever a nossa proposta, porque, essa sim, resolve grande parte das suas preocupações, responde melhor do que a versão actual — e, diga-se, não se percebe quais as razões do Partido Socialista para não aderir a esta nossa proposta.
Para além de já ser um adquirido que, em princípio, os actos da União Europeia compreendem e respeitam os «princípios fundamentais do Estado de direito democrático», a verdade é que, como o Sr. Deputado Jorge Bacelar Gouveia demonstrou, esta fórmula que o PSD aqui adopta assegura não só os «princípios fundamentais do Estado de direito democrático» como todos os demais «princípios fundamentais da ordem constitucional portuguesa».
Portanto, a expressão que propomos é, realmente, ampliativa no sentido desta protecção no que diz respeito à problemática do primado. Tempera o princípio do primado e fá-lo na linha de alguma jurisprudência de outros tribunais constitucionais de outros Estados-membros da União Europeia. Nessa medida, é mais um elemento para a protecção da ordem jurídica portuguesa em relação a aspectos que se revelem essenciais por serem princípios fundamentais da Constituição.
O Sr. Bernardino Soares (PCP): — Sr. Presidente, peço a palavra para um pedido de esclarecimento ao Sr. Deputado Guilherme Silva.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra, Sr. Deputado.
O Sr. Guilherme Silva (PSD): — É, com certeza, para dizer que subscreve a proposta do PSD!
O Sr. Bernardino Soares (PCP): — Sr. Presidente, Sr. Deputado Guilherme Silva, não subscreveremos essa proposta, naturalmente. O que aqui procurámos expressar foi que ela mantém, neste n.º 4 do artigo 8.º, a parte negativa e inova na parte final, na parte secundária, que não é o fundamental do número.
O que pergunto é o seguinte: se é verdade o que o Sr. Deputado Guilherme Silva diz, que o n.º 4, a ser eliminado, não produziria qualquer efeito concreto no sentido que nós pretendemos, porque os n.os 2 e 3 do artigo já asseguram essa aplicação, então por que é que o PS e o PSD inseriram este n.º 4 na Constituição?
O Sr. Guilherme Silva (PSD): — Sr. Deputado Bernardino Soares, inserimos o n.º 4 para não haver o risco do primado absoluto e, agora, o que pretendemos é aperfeiçoar essa limitação ao carácter eventual absoluto do primado,»
O Sr. Bernardino Soares (PCP): — Deixe-me só terminar, Sr. Deputado!
O Sr. Guilherme Silva (PSD): — » para impedir a tentação que possa haver nesse sentido.
O Sr. Presidente: — Sr. Deputado Guilherme Silva, esse é um aparte demasiado extenso para poder ser registado. Portanto, peço-lhe que deixe concluir o Sr. Deputado Bernardino Soares.
O Sr. Bernardino Soares (PCP): — Concluo, Sr. Presidente, dizendo que, naturalmente, se o PS e o PSD entendessem que as regras gerais de aplicação do Direito Internacional na ordem jurídica interna seriam suficientes para a aplicação que querem fazer do direito da União Europeia, não teriam incluído este n.º 4 na Constituição. Ou não será assim, Sr. Deputado Guilherme Silva?
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O Sr. Presidente: — Para responder, agora sim, tem a palavra o Sr. Deputado Guilherme Silva.
O Sr. Guilherme Silva (PSD): — Sr. Presidente, Sr. Deputado Bernardino Soares, insisto na leitura que fiz, não tenho dúvidas sobre ela, de que o n.º 4 foi inserido para ter esta virtualidade de mitigar e de travar qualquer tendência de um primado absoluto, sem ser temperado com princípios que entendemos que são de soberania, princípios fundamentais da nossa ordem constitucional.
Agora, esta proposta do PSD traz um aperfeiçoamento e uma ampliação. Aliás, penso que é essa ampliação que gera um princípio de adesão do PCP, que espero que acabe numa total adesão!
O Sr. Bernardino Soares (PCP): — Bem pode esperar, Sr. Deputado!»
O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, concluímos a discussão do artigo 8.º. Não registo mais intervenções e, portanto, as propostas agora discutidas serão votadas na altura devida.
Recordo que existe uma proposta de aditamento de um novo artigo 8.º-A, constante do projecto de revisão constitucional n.º 9/XI (2.ª), do Partido Socialista, mas que se limita a reproduzir ou a renumerar dois números, um do artigo 7.º e outro do artigo 8.º. Portanto, creio que, com a anuência dos proponentes, esta proposta dispensa uma apresentação e uma discussão autónoma.
Vamos passar, então, à apreciação das propostas relativas ao artigo 9.º (Tarefas fundamentais do Estado), constantes dos projectos de revisão constitucional n.os 1/XI (2.ª) (PSD), 2/XI (2.ª) (PCP), 3/XI (2.ª) (Os Verdes), 4/XI (2.ª) (BE) e 5/XI (2.ª) (CDS-PP).
Srs. Deputados, o artigo 9.º tem diversas alíneas e creio que teríamos vantagem em fazer a sua discussão seguindo a ordem das alíneas. Ora, segundo esta metodologia, a primeira proposta a apresentar é a do CDSPP, que se refere à alínea b). Portanto, não há propostas de alteração da alínea a).
A proposta do CDS-PP visa aditar a garantia da «segurança de pessoas e bens» às tarefas fundamentais do Estado e, para fazer a sua apresentação, tem a palavra o Sr. Deputado Nuno Magalhães.
O Sr. Nuno Magalhães (CDS-PP): — Sr. Presidente, a nossa proposta visa, de alguma forma, preencher uma lacuna — pelo menos, essa poderá ser uma das interpretações, se calhar excessivamente benévola da minha parte — , porquanto não vislumbramos motivo algum para que não seja considerada uma tarefa fundamental do Estado «a segurança de pessoas e bens». Diria mesmo que deve ser considerada a principal e a primeira das tarefas do Estado, porque vivermos em segurança garante o exercício dos demais direitos e liberdades.
Portanto, o nosso contributo, com esta proposta, visa preencher o que entendemos ser, de alguma forma, uma lacuna na enumeração das tarefas consideradas pela Constituição como essenciais a serem desenvolvidas pelo Estado.
A nosso ver, esta necessidade torna-se mais premente tendo em atenção o contexto em que vivemos.
Como é evidente, a segurança de pessoas e bens sempre foi algo de essencial e tem, para nós, um valor fundamental. Não querendo estar agora a recuperar conceitos, alguns deles até em desuso, como a segurança interna ou a segurança externa, a verdade é que, no contexto em que vivemos, cada vez mais, a segurança de pessoas e bens é factor essencial e garantia do exercício das liberdades, muitas vezes do principal direito, que é o próprio direito à vida, e até, procurando aditar algo de mais actual, da procura e da necessidade de investimento externo que a economia portuguesa, neste momento, tanto carece, porque, obviamente, nenhum país investirá num país que não seja considerado seguro.
Por isso, Sr. Presidente, propomos o aditamento da expressão «e a segurança de pessoas e bens», para que fique claro que é tarefa fundamental do Estado esta garantia. Poderão alguns dizer que já está enquadrada no conceito «garantir os direitos e liberdades fundamentais» que consta desta mesma alínea.
Creio, contudo, que este argumento, para além de me parecer excessivamente formalista, não colhe, desde logo, se percebermos que outras alíneas que estão no artigo 9.º — e bem, não contestamos — , nomeadamente as alíneas d), e), f) e g), de alguma forma, também são subsumíveis a uma formulação que seria no sentido de «garantir os direitos e liberdades fundamentais».
Portanto, trata-se, a nosso ver, de dar um especial ênfase e sublinhado de que é tarefa fundamental do Estado garantir a segurança de pessoas e bens. Creio que obterá, do ponto de vista político ou filosófico, um
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amplo consenso — nem o mais liberal dos liberais alguma vez escreveu que a segurança não deve ser, em primeira e provavelmente em última instância, uma tarefa fundamental e quase exclusiva do Estado.
Nesse sentido, estamos bastante convictos de que esta proposta do CDS-PP merecerá, da parte dos grupos parlamentares, o maior acolhimento.
O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, está em discussão a proposta, do CDS-PP, para a alínea b) do artigo 9.º.
Tem a palavra o Sr. Deputado Vitalino Canas.
O Sr. Vitalino Canas (PS): — Sr. Presidente, creio que o Sr. Deputado Nuno Magalhães já respondeu a si próprio, quando adiantou alguma objecção que pudesse ser feita a este aditamento.
Tenho a concepção de que a Constituição portuguesa concilia e, aliás, agrega incondicionalmente liberdade e segurança. Portanto, quando se fala de «garantir os direitos e liberdades fundamentais» dos cidadãos, já se está a incluir, na verdade, a necessidade de proteger a liberdade e a segurança, que é, designadamente, objecto de um preceito próprio.
O Sr. Deputado chamou formalista ao argumento, mas, na verdade, sendo ou não formalista, penso que a protecção da segurança de pessoas e bens já está devidamente salvaguardada na actual alínea b) do artigo 9.º.
O Sr. Presidente: — O Sr. Deputado Nuno Magalhães pediu a palavra. Pretende replicar?
O Sr. Nuno Magalhães (CDS-PP): — Pretendo replicar ou responder, Sr. Presidente. Não sei se foi feita uma pergunta ou uma intervenção.
O Sr. Presidente: — Creio que foi uma intervenção, mas, como não há oradores inscritos, se o Sr. Deputado se inscrever agora, pode usar, de imediato, da palavra.
O Sr. Nuno Magalhães (CDS-PP): — Nesse caso, inscrevo-me, Sr. Presidente.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra, Sr. Deputado.
O Sr. Nuno Magalhães (CDS-PP): — Sr. Presidente, era previsível que o Sr. Deputado Vitalino Canas, para além de usar o argumento formalista, fosse sobretudo imobilista, dado o imobilismo que temos visto, de alguma forma, o Partido Socialista adoptar nesta revisão constitucional.
O Sr. Deputado diz que o que propomos está subsumido na alínea b). Nesse caso, permito-me fazer um desafio ao Sr. Deputado Vitalino Canas e ao Partido Socialista no sentido de que sejam consequentes, porque com certeza que o Sr. Deputado concordará comigo que também são direitos e liberdades fundamentais, por exemplo, «promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo«, «proteger (») o património cultural«, «defender a natureza e o ambiente», «preservar os recursos naturais», «assegurar um correcto ordenamento do território» ou «assegurar o ensino e a valorização permanente».
Portanto, consequentemente, o Partido Socialista defende que bastaria uma alínea b), diria mesmo que, para o Partido Socialista, bastaria dizer que «são tarefas fundamentais do Estado garantir os direitos e liberdades fundamentais», ao que eu acrescento — para que não fosse alguém poder dizer que não está devidamente assegurado! — «previstos na Constituição da República Portuguesa». Ponto final parágrafo. Não seria, pois, precisa mais nenhuma alínea.
O Sr. Deputado sabe tão bem quanto eu que aqui se trata de densificar as tarefas que, sendo direitos e liberdades fundamentais do Estado, o legislador Constituinte considera tarefas fundamentais do Estado. Por isso mesmo, de uma forma quase que redundante, exemplifica algumas, como as que acabei de referir das alíneas d), e) e f).
O que está verdadeiramente em causa, a nosso ver, é saber se esta Comissão e os grupos parlamentares aqui representados, isto é, as Sr.as e os Srs. Deputados, valorizam ou não, do ponto de vista simbólico, que a Constituição estabeleça, como tarefa fundamental do Estado, «a segurança de pessoas e bens». A nosso ver,
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desse ponto de vista simbólico, era essencial que assim fosse. Pelos vistos, a ver do Sr. Deputado e do Partido Socialista, não, ou seja, «a segurança de pessoas e bens» não é assim tão importante e não terá a dignidade que tem, por exemplo, «valorizar o património cultural do povo português», «defender a natureza e o ambiente» ou «preservar os recursos naturais». A segurança não estará a esse nível, não terá essa dignidade, pelo que não valerá a pena fazer esse sublinhado. Mas nós discordamos.
Anotamos que, para o Partido Socialista, não há rigorosamente problema nenhum nem qualquer tipo de repetição pelo facto de o texto constitucional falar em «defender a natureza e o ambiente», por exemplo, mas já há se referir «a segurança de pessoas e bens». É uma posição, Sr. Deputado. Por isso é que antecipei o argumento e apelidei de excesso de formalismo. Não pode dizer, contudo, que já está subsumível nos direitos e liberdades fundamentais, porque, se assim for e a sermos consequentes, eliminaremos todas as alíneas.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Bernardino Soares.
O Sr. Bernardino Soares (PCP): — Sr. Presidente, este é um daqueles artigos em que procuraremos sempre contribuir para encontrar um justo equilíbrio entre uma enumeração de princípios fundamentais e de aspectos mais relevantes com maior ou menor densificação, conscientes de que é verdade que os princípios basilares que aqui são referidos abrangem vários aspectos e nem todos precisam de ser explicitados.
Contudo, o facto de existirem estes princípios assim definidos, tal qual estão no artigo 9.º, também não tem de ser, em absoluto, impeditivo de alguma concretização e de alguma densificação. Nós próprios temos, mais à frente, uma proposta nesta matéria.
Penso que se pode dizer que o conteúdo da proposta do CDS-PP tem dignidade. Importa, agora, ponderar se, na organização deste artigo e no equilíbrio que previna um excesso de densificação, mas também não deixe de fora matérias que, a par de outras que estão previstas, têm a sua relevância, ela terá cabimento ou não. É uma matéria que estamos disponíveis para discutir e ponderar até ao final destes trabalhos.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Vitalino Canas.
O Sr. Vitalino Canas (PS): — Sr. Presidente, inscrevi-me quando percebi que o Sr. Deputado Nuno Magalhães, na sua argumentação, procurou imediatamente fazer um argumento menos de natureza jurídicoconstitucional e mais demagógico, com a ideia de que há alguns que se preocupam muito com a segurança e outros que não se preocupam nada e que, se calhar, esses que não se preocupam nada não querem incluir a segurança neste artigo.
Sr. Deputado, chamo a sua atenção para o facto de existir o artigo 27.º, n.º 1, que diz: «Todos têm direito à liberdade e à segurança». É um direito, liberdade e garantia que está devidamente acautelado na alínea b) do artigo 9.º, tal como está.
Nós, Partido Socialista — já fiz aqui essa declaração, a propósito de um preceito anterior — , não entendemos que a Constituição deva estar pejada de artigos que são uma espécie de «árvore de Natal», cheia de «fitas», de «bolas» e de mais umas coisas que se vão pendurando. Consideramos que o artigo 9.º, tal como outros preceitos anteriores, deve ser mantido ao nível da clareza e da modéstia que tem hoje em dia.
Não devemos exagerar no artigo 9.º e em outros no acrescento de novas «cores», novas «bolas» e novas «fitinhas» para ficar «enfeitado». O artigo, tal como está, cobre as preocupações que o Sr. Deputado aqui coloca e que também são as nossas.
É óbvio que é uma tarefa fundamental do Estado a protecção dos direitos e das liberdades fundamentais dos cidadãos e, dentro dos direitos e das liberdades fundamentais dos cidadãos que compete ao Estado garantir, está o direito à liberdade e à segurança, consagrado no artigo 27.º, n.º 1.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Guilherme Silva.
O Sr. Guilherme Silva (PSD): — Sr. Presidente, queria apenas referir que o Sr. Deputado Vitalino Canas tem razão, quando chama a atenção de que há já uma norma expressa sobre esta matéria. No entanto, também é verdade que, se analisarmos o artigo 27.º — onde a proposta do Sr. Deputado Nuno Magalhães, porventura, do ponto de vista sistemático, teria mais cabimento — , verificamos que o seu n.º 1 proclama que
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«todos têm direito à liberdade e à segurança» e os números seguintes tratam apenas da liberdade, havendo algumas alíneas que tratam aspectos que são o reverso de segurança, como é óbvio.
Penso que a preocupação do Sr. Deputado Nuno Magalhães podia, porventura, ser objecto de um n.º 6 desta disposição, completando, de certo modo, do ponto de vista meramente formal e não substantivo, uma referência mais expressa à segurança, em que poderia ficar a ideia de que o Estado garante a segurança de pessoas e bens.
Parecia-me ser esta uma forma mais conciliadora das objecções do Sr. Deputado Vitalino Canas e das pretensões do Sr. Deputado Nuno Magalhães.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Nuno Magalhães.
O Sr. Nuno Magalhães (CDS-PP): — Sr. Presidente, queria reagir à acusação do Sr. Deputado Vitalino Canas de não utilizar argumentos jurídico-constitucionais mas demagógicos.
Sr. Deputado, como reacção, digo-lhe que dificilmente me lembraria, em relação à segurança de pessoas e bens, de utilizar a metáfora de «fitinhas de Natal» ou «bolas de Natal». Considero que dificilmente poderíamos arranjar expressões mais infelizes para qualificar a segurança de pessoas e bens, o que, de alguma forma, é demonstrativo do valor que o Sr. Deputado lhe atribui.
Do ponto de vista da argumentação jurídico-constitucional, o Sr. Deputado é, mais uma vez, previsível.
Estava à espera que o Sr. Deputado, numa segunda intervenção, falasse no artigo 27.º. Permita-me que, também de uma forma algo repetitiva, lhe faça o mesmo desafio. O Sr. Deputado diz que não vale a pena colocar «a segurança de pessoas e bens» no artigo 9.º, porque o artigo 27.º já fala no «direito à liberdade e à segurança». Pois bem, assim sendo, desafio o Sr. Deputado e o Partido Socialista a, coerentemente, apresentarem aqui uma proposta no sentido de retirar a alínea e) do artigo 9.º, porque o artigo 42.º, por exemplo, também fala de «liberdade de criação cultural». Desafio-o a retirar a alínea f) que fala em «assegurar o ensino», porque o artigo 43.º — não sei se é mais uma «fitinha de Natal»?! — também fala de «liberdade de aprender».
Sr. Deputado, em relação a esse tipo de argumentação, no sentido de ser uma repetição ou não, de já estar no texto constitucional ou não, poderia dar mais exemplos como estes, mas não o vou fazer às Sr.as e aos Srs. Deputados a esta hora da tarde.
O que está aqui em causa — e aproveito para responder ao Sr. Deputado Guilherme Silva — é tão simples quanto isto: «a segurança de pessoas e bens» é ou não uma tarefa fundamental do Estado? A nossa ver, é! Sendo, merece ou não constar, expressamente, no artigo da Constituição que fala não de direitos e liberdades, mas de tarefas fundamentais do Estado? A nosso ver, faz! A nossa ver, «a segurança de pessoas e bens» é — permitam-me a expressão, Srs. Deputados — a tarefa fundamental do Estado dentro das tarefas fundamentais do Estado, pelo que não estar no artigo da Constituição que densifica, pormenoriza e enumera as tarefas fundamentais do Estado, como eu disse no início da minha primeira intervenção, é quase uma lacuna, é quase incompreensível.
O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — Ou é um lapso ou é um erro!
O Sr. Nuno Magalhães (CDS-PP): — Portanto, como diz o Sr. Deputado Telmo Correia, a nosso ver, ou é um lapso ou é um erro. Se é um lapso, corrija-se o lapso; se é um erro, corrija-se o erro. É simplesmente isso que pretendemos aqui fazer. Não se trata de discutir se há muita, pouca ou nenhuma insegurança, trata-se de dar dignidade constitucional a uma tarefa do Estado que consideramos — assim como, julgo, a maioria dos presentes — , no mínimo, uma das tarefas mais fundamentais do Estado e que não está expressamente prevista e identificada nem, sequer, do ponto de vista comparativo.
Não estou a dizer que, neste momento, o Estado pode invocar que a segurança não é uma tarefa fundamental sua. É evidente que qualquer interpretação minimamente aceitável consegue, através do conceito de direitos e liberdades fundamentais, dizer que ao Estado incumbe a segurança. Não estou a dizer o contrário nem a ser tremendista, Sr. Deputado.
No entanto, pergunto se estamos ou não disponíveis, tendo em atenção o contexto actual internacional em que vivemos, para valorizar «a segurança de pessoas e bens». Nós, CDS-PP, estamos disponíveis.
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Registamos que o Sr. Deputado Bernardino Soares está também disponível e reiteramos a nossa disponibilidade no sentido de arranjar a redacção mais adequada. Contudo, estranhamos que se considere demagógico querer incluir no artigo que fala nas tarefas fundamentais do Estado a expressão «a segurança de pessoas e bens» de forma individualizada, discriminada e expressa. Parece-nos que isso não é admissível.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Luís Marques Guedes.
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): — Sr. Presidente, eu não estava a pensar intervir, mas, face a esta intervenção do Sr. Deputado Nuno Magalhães, queria deixar expressa a visão que o PSD tem sobre esta matéria, para que não fiquem dúvidas.
Não quero fazer nenhuma pergunta ao Sr. Deputado Nuno Magalhães, mas dizer apenas que, do nosso ponto de vista, não nos podemos reconhecer na afirmação de que o princípio de «segurança de pessoas e bens» não está inscrito na Constituição — talvez tenha sido um excesso da sua parte, mas disse-o na sua última intervenção.
O Sr. Nuno Magalhães (CDS-PP): — Eu não disse isso!
O Sr. Luís Marques Guedes (PSD): — Consideramos que está e que é perigosíssimo defender-se uma tese contrária.
Do ponto de vista do PSD, poderá haver uma maior explicitação no artigo 27.º no que se refere ao direito à segurança ou o CDS-PP — como consideramos que, porventura, a sua proposta está mal elaborada — , no limite, poderia propor a seguinte redacção: «garantir os direitos e liberdades fundamentais, nomeadamente a segurança de pessoas e bens». Ou seja, temos de reconhecer que já está previsto, porque, senão, uma leitura simplista pode levar-nos a concluir que, de facto, havia uma lacuna — termo que o Sr. Deputado também já utilizou — e não há. Nunca a questão da «segurança de pessoas e bens» deixou de estar na Constituição portuguesa como uma tarefa fundamental do Estado. Sempre lemos assim e tenho a certeza de que o CDSPP também.
Coisa diferente é considerar que pode haver um enfatizar deste princípio através de uma explicitação expressa no texto constitucional. Nesse caso, ou se utiliza «nomeadamente» ou se faz uma densificação maior de um dos artigo mais à frente onde se desenvolvem os direitos e liberdades fundamentais.
Sr. Presidente, era só esta nota que queria deixar.
O Sr. Guilherme Silva (PSD): — Muito bem!
O Sr. Presidente: — O Sr. Deputado Nuno Magalhães pediu novamente a palavra. Peço-lhe alguma brevidade, porque já interveio várias vezes sobre este ponto.
Tem a palavra, Sr. Deputado.
O Sr. Nuno Magalhães (CDS-PP): — Sr. Presidente, serei brevíssimo.
Quero apenas dizer ao Sr. Deputado Luís Marques Guedes»
O Sr. Guilherme Silva (PSD): — Por uma questão de segurança!
O Sr. Nuno Magalhães (CDS-PP): — » que, exactamente por uma questão de segurança futura — como eu disse expressamente — , jamais o CDS-PP interpreta que, por força da ausência desta expressão no artigo 9.º, algum governo, alguma vez, poderá invocar que não é tarefa fundamental sua «a segurança de pessoas e bens» e privatizar toda a segurança.
O Sr. Guilherme Silva (PSD): — É logo derrubado!
O Sr. Nuno Magalhães (CDS-PP): — Eu disse exactamente o contrário, Sr. Deputado. Disse, e repito, que, a nosso ver, é necessário valorizar, sublinhar e densificar, do ponto de vista simbólico, esta tarefa enquanto
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uma tarefa fundamental do Estado. Quero, portanto, clarificar este ponto, em nome da verdade das coisas e da história, quando alguém puder ler o que aqui foi dito.
Do ponto de vista do CDS-PP, há quase uma lacuna — utilizei este termo do ponto de vista irónico, mas também do ponto de vista simbólico. Ou seja, o legislador permitiu-se elencar, neste artigo, um conjunto de matérias que são também direitos e liberdades fundamentais, mas não incluiu algo que, a nosso ver, do ponto de vista simbólico, deve estar, que é a segurança.
Também disse e repito, Sr. Presidente — e com isto termino — , que, do ponto de vista interpretativo, é evidente que ninguém de boa-fé poderá, sequer, alguma vez, por tentação académica, sustentar a tese de que «a segurança de pessoas e bens» não é uma tarefa fundamental do Estado.
Era esta a clarificação que queria fazer. Espero que tenha ficado clara.
O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, terminada a discussão da alínea b) e não havendo propostas para a alínea c), vamos passar à alínea d) do artigo 9.º, para a qual há também uma proposta do CDS-PP. Segundo julgo perceber, propõe-se trocar a expressão «igualdade real entre os portugueses» por «igualdade de oportunidades entre os portugueses» e eliminar a expressão final da alínea, que diz «mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais».
Para apresentar a proposta, tem a palavra o Sr. Deputado Telmo Correia.
O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — Sr. Presidente, tendo o CDS-PP um projecto de revisão constitucional minimalista, a concentração de propostas neste artigo poderia criar a ideia contrária de termos um projecto extenso e de alteração profunda da Constituição.
A mera leitura desta proposta pelo Sr. Presidente é explicativa do objectivo do CDS-PP.
O Sr. Presidente: — Sr. Deputado, não era essa a minha intenção, como compreende.
O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — A proposta é de tal forma eloquente por si mesma que a mera leitura da parte de V. Ex.ª torna facilmente perceptível o que está em causa.
Realmente, o que está em causa é o conceito de igualdade que queremos transpor na Constituição da República Portuguesa. Entendemos que uma «igualdade real», ou seja, uma igualdade como ponto de chegada, uma igualdade efectiva, não é concretizável e, porque defendemos um modelo de mérito, de exigência e de resultado em função do mérito, não é o conceito que consideramos que deva estar consagrado constitucionalmente e ser aplicável.
Por isso, propomos que a Constituição consagre uma ideia de igualdade, sim, mas a ideia de igualdade que nos parece justa, correcta e com a qual nos identificamos é a «igualdade de oportunidades». Ou seja, que todos os portugueses tenham, no acesso aos bens, no acesso à cultura, no acesso à educação, «igualdade de oportunidades» — que, depois, obviamente, consoante o mérito de cada um, conduzirá ou não a uma igualdade real (a que está consagrada agora na Constituição) — e não uma igualdade obrigatória como destino de chegada, que é basicamente a ideia que está no texto constitucional.
A nossa proposta de eliminação da parte final da alínea demonstra, como dirão alguns Srs. Deputados presentes, que não há nunca uma neutralidade absoluta do ponto de vista constitucional. No entanto, pensamos que, ao retirar a ideia de «transformação e modernização das estruturas económicas e sociais», a nossa proposta, ainda que não esteja nesta ideia o cerne da alteração, acaba por ser mais neutra do que o texto actual, porque estes objectivos são perseguidos da forma que os portugueses entenderem, em qualquer momento da sua história e de acordo com a vontade democraticamente expressa do povo português — que não tem de estar, como dissemos numa discussão profunda que aqui tivemos sobre o preâmbulo, a «abrir caminho para uma sociedade socialista» nem, forçosamente, a transformar realidades económicas e sociais, expressão que tem tambçm, como os mais conhecedores desta matçria sabem» O Sr. Deputado Josç Manuel Pureza, que olha para mim com ar irónico, sabe do que estou a falar»
O Sr. José Manuel Pureza (BE): — Irónico?!
O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — Divertido, pelo menos, ou bem disposto.
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O Sr. José Manuel Pureza (BE): — Ah! Bom»!
O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — Irónico do ponto de vista positivo, mas, pelo menos, bem disposto.
Mas, como estava a dizer, os mais conhecedores desta matéria e, em especial, o Sr. Deputado sabem, seguramente, do que estou a falar quando digo que à ideia de transformação das realidades económicas e sociais é assacável algum cunho ideológico. E não queria, com isto, provocar a inscrição para uso da palavra do Sr. Deputado José Manuel Pureza, que me parece, de resto, absolutamente lógica e necessária.
O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, apresentada a proposta, vamos passar ao debate.
Tem a palavra o Sr. Deputado Guilherme Silva.
O Sr. Guilherme Silva (PSD): — Sr. Presidente, queria pedir esclarecimentos ao Sr. Deputado Telmo Correia, que, apesar de os já ter dado, vou explicitar.
Sr. Deputado Telmo Correia, se o preâmbulo fosse eliminado e, portanto, «abrir caminho para uma sociedade socialista» deixasse de estar como marca introdutória da Constituição, V. Ex.ª prescindiria de retirar a expressão «transformação e modernização das estruturas económicas e sociais»?
O Sr. José Manuel Pureza (BE): — Isso é que é ironia!
O Sr. Guilherme Silva (PSD): — Ou uma coisa não tem a ver com a outra?
O Sr. Presidente: — Sr. Deputado, como interpreto a sua intervenção como um pedido de esclarecimento, vou dar a palavra ao Sr. Deputado Telmo Correia, para responder.
Tem a palavra, Sr. Deputado.
O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — Sr. Presidente, Sr. Deputado Guilherme Silva, o que eu disse e mantenho é que, na minha opinião, a expressão do preâmbulo «abrir caminho para uma sociedade socialista», para além de ser mais ou menos poética — e, ao que sei, redigida até por um poeta particularmente em voga nos dias de hoje, uma vez que, além de poeta e autor da expressão, é também candidato presidencial — , é absolutamente consentânea com a expressão «transformação e modernização das estruturas económicas e sociais». Ou seja, do meu ponto de vista, a matriz é exactamente a mesma.
Portanto, Sr. Deputado, aguardo apenas — e, de alguma forma, devolvo-lhe a questão — que o Partido Social Democrata clarifique a sua posição entre aqueles que, tanto quanto percebi, como o Sr. Deputado Jorge Bacelar Gouveia e eu, consideravam que o preâmbulo devia ser revogado, aqueles que, como o Sr. Deputado Mota Amaral, consideravam que o preâmbulo devia ser mantido e aqueles que, como V. Ex.ª, consideravam que tínhamos de ter um novo preâmbulo, de preferência redigido pelo Professor Marcelo Rebelo de Sousa.
Risos.
Portanto, clarificada esta posição, e aderindo o Partido Social Democrata à minha posição de não querer uma sociedade socialista, estaríamos, seguramente, num caminho mais tranquilo e mais sereno.
O Sr. Guilherme Silva (PSD): — Com esse preâmbulo redigido pelo Professor Marcelo Rebelo de Sousa, estava tudo resolvido!
O Sr. Presidente: — Sr. Deputado Guilherme Silva, tem de esperar que eu lhe dê a palavra, porque ainda não há a figura regimental da devolução do pedido de esclarecimento. Fica devolvido, mas terá de esperar um pouco mais pela resposta.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Manuel Pureza.
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O Sr. José Manuel Pureza (BE): — Sr. Presidente, sem qualquer ironia e com a maior seriedade que posso, creio que esta proposta do CDS-PP é tributária de tudo menos de neutralidade. Queria vincar este aspecto.
O CDS-PP, na proposta e na justificação que dela foi apresentada pelo Sr. Deputado Telmo Correia, pretende, claramente, uma modificação de dois aspectos essenciais desta alínea importante do artigo 9.º.
A primeira mudança — para não dizer «transformação», palavra que pode ser mal entendida — é a substituição de «igualdade real» por «igualdade de oportunidades». Diz o CDS-PP — e diz bem, porque é isso que, de facto, pretende — que devemos substituir uma igualdade tendencial ou uma igualdade de resultado por uma igualdade de partida.
Ora bem, do nosso ponto de vista, isso colide não apenas com a lógica do artigo 9.º, mas com a lógica de fundo da Constituição portuguesa, designadamente quando articula democracia económica e social com democracia política. Não é apenas igualdade de partida que a nossa Constituição, como lei fundamental, no seu todo, estabelece e garante. Por isso mesmo, parece-nos que indicar como tarefa fundamental do Estado apenas uma igualdade de oportunidades é, em si mesmo, uma descaracterização da lógica de conjunto do texto constitucional e teria, evidentemente, implicações, que, reconhecemos — justiça seja feita aos proponentes — , o CDS-PP pretende. Ou seja, o CDS-PP pretende, com esta alteração, justamente, sinalizar um início de caminho no sentido de modificar alguns dos preceitos e alguns dos regimes contidos na Constituição portuguesa, por exemplo, em matéria de serviços públicos. Portanto, nesse aspecto, a nossa oposição e discordância com o CDS-PP é programática, ideológica e também, do ponto de vista substantivo, jurídico-constitucional.
Por outro lado, é evidente que o CDS-PP sublinha, com clareza, que pretende eliminar a referência à «transformação e modernização das estruturas económicas e sociais».
No entanto, a verdade é que o texto constitucional estabelece hoje que a «efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais» se consumará não apenas num respeito por direitos individuais e de grupo, mas também pela criação de condições que têm a ver com dimensões que ultrapassam a natureza estritamente individual dos direitos. A isso a Constituição entendeu chamar «estruturas económicas e sociais».
E, em revisões anteriores, à «transformação» acrescentou a «modernização» dessas mesmas «estruturas económicas e sociais». Parece-nos, portanto, que há aqui uma defesa da natureza supra-individual destes direitos e a sua contextualização em condições económicas e sociais de exercício.
Do nosso ponto de vista, isto corresponde — uma vez mais, o digo — à lógica de fundo do texto constitucional. O CDS-PP entende que não deve ser assim e neste ponto separa-nos uma opinião manifesta, que afirmo com clareza.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Bernardino Soares.
O Sr. Bernardino Soares (PCP): — Sr. Presidente, de facto, não é a mesma coisa que o texto constitucional defina como objectivo «a igualdade real entre os portugueses» ou que passe a definir «a igualdade de oportunidades», porque é evidente que o conceito «igualdade de oportunidades» se aproxima muito mais de uma vertente formal. A Constituição, neste momento e na nossa interpretação, ao definir como objectivo «a igualdade real entre os portugueses», quer dizer que o Estado tem a obrigação de contribuir para que, para além de uma igualdade formal, que está garantida para todos os cidadãos, exista também uma igualdade real no acesso aos direitos e às condições económicas, sociais, culturais e ambientais. Isso faz toda a diferença, porque o problema não é tratar todos de forma idêntica, desvalorizando as suas diferentes capacidades e situações, mas garantir que não há limitações que impeçam o real acesso aos direitos que estão previstos na Constituição.
De facto, não há verdadeira igualdade de oportunidades — num sentido mais profundo e não naquele que, penso, o CDS-PP quer com a sua proposta de alteração — sem haver uma igualdade real, ou seja, uma igualdade garantida não apenas à partida, mas também à chegada, o que não quer dizer que todos tenham a mesma situação na sociedade.
Um exemplo muito claro é o acesso à educação. O Estado garante formalmente a todos o acesso à educação, pelo menos à educação básica, mas, na realidade, as condições para efectivar esse direito vão muito para além da garantia de acesso à escola pública ou à educação da forma como é definida. É preciso
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que haja condições sociais, de alimentação, de bem-estar, de acesso a bens culturais que permitam que, depois, o resultado final seja, de facto, uma igualdade real no acesso à educação e não apenas formal a partir do direito de frequentar a escola e de fazer a educação básica.
Por outro lado, complementa-se com esta ideia a questão da «transformação e modernização das estruturas económicas e sociais». De duas, uma: ou entendemos que, tal como estão hoje, as estruturas económicas e sociais já garantem a «efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais» ou, então, entendemos que, neste momento, elas não garantem para todos os portugueses uma real «efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais» e, por maioria de razão, teremos de defender, como diz a Constituição, a «transformação e modernização das estruturas económicas e sociais» até que elas garantam os direitos atrás definidos. Quando não, rejeitar este princípio constitucional é estar a dizer ou que, como estamos, estamos bem e que as estruturas económicas e sociais respondem à efectiva concretização destes direitos — e, penso, ninguém pode dizê-lo, com consciência tranquila, neste momento — ou que pretendemos que as estruturas económicas e sociais tenham um carácter rígido, imutável e alheio à modernização que sempre se deseja para uma sociedade.
Finalmente, esta ideia de transformação e modernização é, sem dúvida, um princípio que deve ser objectivo de toda a sociedade, mas não pode deixar de ser uma tarefa fundamental do Estado, embora não se esgote no Estado, ou seja, tem de estar nas prioridades do Estado, porque é assim que o Estado garante o efectivo acesso aos direitos que estão explicitados na Constituição.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Bacelar Gouveia.
O Sr. Jorge Bacelar Gouveia (PSD): — Sr. Presidente, queria apenas fazer um pedido de esclarecimento, em relação à discussão em torno desta proposta do CDS-PP.
O Sr. Presidente: — Sr. Deputado, a quem dirige o pedido de esclarecimento?
O Sr. Jorge Bacelar Gouveia (PSD): — Dirijo ao Deputado Telmo Correia, Sr. Presidente.
Curiosamente, este pedido de esclarecimento suscitou-se no meu espírito depois da intervenção do Deputado José Manuel Pureza, porque, pelo que percebi, fiquei um pouco preocupado.
O Deputado José Manuel Pureza referiu-se ao facto de o Estado português, no artigo 2.º, garantir «a democracia económica, social e cultural» e interpretou que esta proposta do CDS-PP, ao retirar a expressão «igualdade real», põe em causa essa mesma «democracia económica, social e cultural». Porém, como o CDS-PP não faz nenhuma proposta de eliminação dessa cláusula da «democracia económica, social e cultural» que consta do artigo 2.º, fiquei sem saber se a proposta em discussão poderá ter também o alcance oculto de pôr em causa essa cláusula.
Em relação à expressão «igualdade real» e à mudança que é proposta pelo CDS-PP, penso que é preciso ter um certo cuidado na interpretação deste artigo e, sobretudo, não ficar com a ideia — talvez uma ideia «epidérmica» — de que, quando olhamos para esta expressão, estamos a impor, entre todos os portugueses, uma igualdade biológica, em todos os pormenores ou em todos os sentidos. A meu ver, não é disso que se trata.
A igualdade é uma coisa mais complexa do que parece, porque hoje trabalhamos com muitos conceitos de igualdade: igualdade formal, igualdade material, igualdade na lei, igualdade através da lei, igualdade de partida, igualdade de chegada, igualdade nos resultados, igualdade nos vários âmbitos da vida. No entanto, é evidente que este preceito deve sempre manter-se do ponto de vista de incutir no Estado um dever de prestação de direitos no sentido de levar a cabo uma prática que possa concretizar um objectivo de igualdade — e não de igualitarismo, não é esse o sentido — , através de uma democracia económica e social.
Portanto, Deputado Telmo Correia, sendo verdadeira a acusação feita pelo Deputado José Manuel Pureza, gostaria de saber por que razão não propõem qualquer alteração no artigo 2.º da Constituição, em matéria de «democracia económica, social e cultural».
O Sr. Presidente: — Peço ao Sr. Vice-Presidente Ricardo Rodrigues que me substitua por uns minutos para me deslocar ao Plenário, a fim de fazer uma breve intervenção sobre uma petição.
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Tem a palavra o Sr. Deputado Telmo Correia.
O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — Sr. Presidente, responder à pergunta do Sr. Deputado Jorge Bacelar Gouveia é muito fácil. Parece-me muito óbvio que o CDS-PP não defende, em nenhuma circunstância, qualquer limitação ou diminuição da «democracia económica, social e cultural». Basta ler os vários projectos de revisão constitucional que estão em discussão para perceber que não é por parte do CDS-PP que temos algum tipo de limitação a direitos e garantias, à gratuitidade de direitos e garantias, à universalidade de direitos e garantias. Em todas as propostas do CDS-PP esses direitos se mantêm, assim como se mantém sempre o papel e a função social do Estado. Não é do CDS-PP que esse risco pode aparecer ou que, nalguma circunstância, pode ser assumido — tal não seria, de resto, aceitável como proveniente de um partido que, na sua matriz, é democrata-cristão. Portanto, esse problema não se põe, de maneira nenhuma.
Aparte inaudível na gravação.
Não. Na sua matriz, a expressão «popular» não existe. Como sabe, essa denominação é muito posterior à matriz do partido.
Portanto, como estava a dizer, não era sequer pensável que fosse de outra forma.
Tentei explicar a nossa preocupação e nalguma medida, pelo que ouvi das intervenções dos Srs. Deputados José Manuel Pureza e Bernardino Soares, ela foi entendida. Considero que a expressão «igualdade real», nos termos em que está colocada, no contexto de uma Constituição que pretende a transformação das estruturas sociais — expressão normal, usual e habitual de inúmeros autores marxistas — , é, nalguma medida, a tal igualdade de chegada. Ou seja, ao fazer referência expressa a uma «igualdade real», pretende-se uma transformação da sociedade que permita uma evolução para a sociedade socialista — corrijam-me os Srs. Deputados mais versados na matéria — , ou seja, para chegarmos ao estádio final do socialismo, ou seja, ao comunismo e à igualdade entre todos os cidadãos. Penso que esta minha interpretação está correcta.
Portanto, é esta a leitura que faço da utilização, no texto constitucional, da expressão «igualdade real» e só por isso me parece preferível a expressão «igualdade de oportunidades».
Diz o Sr. Deputado José Manuel Pureza que não há neutralidade. Eu próprio admiti isso. Como é evidente, o ponto de partida ideológico de cada um à volta desta mesa condiciona a leitura que fazemos da igualdade, o modelo que queremos de igualdade, o que entendemos desejável que seja a igualdade na própria sociedade, a valoração que fazemos do conceito de igualdade. Nalguma medida, todos perfilhamos a igualdade como um valor importante, mas não lhe damos o mesmo peso, a mesma importância ou até a mesma hierarquia dentro dos valores que defendemos.
Há pouco, referi neutralidade no sentido de que as grandes primeiras constituições, ou seja, as constituições liberais, são mais neutrais do que as constituições que têm uma preocupação mais socialista. O Sr. Deputado não tem de concordar, mas é essa a leitura que temos e que fazemos, ou seja, que com a nossa expressão há uma maior neutralidade de intervenção.
Para nós, no contexto português, no contexto da Constituição como texto que os portugueses, enquanto Nação e comunidade, têm de si próprios, valorizar, hoje em dia, a «igualdade de oportunidades» faz sentido, designadamente dentro do modelo que pretendemos. É evidente que esta proposta tem uma leitura política que não é neutra, pelo que não esperaríamos a concordância de todos os Srs. Deputados nem o apoio entusiástico do Sr. Deputado José Manuel Pureza ou do Sr. Deputado Bernardino Soares. Em bom rigor, não esperaria apoio nenhum, nem entusiástico nem sem ser entusiástico.
Penso, no entanto, que se percebe o sentido que queremos.
O Sr. Bernardino Soares (PCP): — Percebe-se, sim!»
O Sr. José Manuel Pureza (BE): — Percebe-se, percebe-se!»
Entretanto, assumiu a presidência o Sr. Vice-Presidente Ricardo Rodrigues.
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O Sr. Presidente: — Está, assim, concluída a discussão desta proposta.
Para a alínea e) do artigo 9.º temos uma proposta do Partido Ecologista «Os Verdes». No entanto, como não está presente nenhum Sr. Deputado para a apresentar, passamos à alínea g), para a qual também temos uma proposta do Partido Ecologista «Os Verdes» e outra do Bloco de Esquerda.
Para apresentar a proposta do Bloco de Esquerda, tem a palavra o Sr. Deputado José Manuel Pureza.
O Sr. José Manuel Pureza (BE): — Sr. Presidente, muito brevemente, creio que é claro o conteúdo do aditamento que fazemos à alínea g) do artigo 9.º.
O artigo 9.º tem uma componente de natureza mais programática, que consta das alíneas d), e), f), g) e h) e acreditamos que são, essencialmente, três os grandes objectivos programáticos que são assinalados ao Estado a título de tarefas fundamentais nessas alíneas. Por um lado, um princípio de justiça social — e escuso de enumerar os objectivos que aí cabem; por outro, um princípio de justiça inter-geracional, que tem vindo a ser acentuado ao longo dos últimos anos, designadamente em termos de revisão constitucional; e também um inciso de justiça territorial.
É neste domínio que cabem os aditamentos que propomos, porque nos parece que, para além da natureza diferenciada dos territórios que compõem o Estado português numa lógica de justiça territorial que já está estabelecida no artigo 9.º, deveríamos — é a nossa sugestão — incluir também uma menção explícita à diferença de desenvolvimento efectivo, constatável, entre a faixa litoral ou a metade litoral do continente e o interior que tem um dos maiores problemas de desenvolvimento do continente português, dando-lhe, assim, uma natureza de norma constitucional enquanto exigência para políticas públicas por parte do Estado.
É este o sentido da nossa proposta.
O Sr. Presidente (Ricardo Rodrigues): — Tem a palavra o Sr. Deputado Bernardino Soares.
O Sr. Bernardino Soares (PCP): — Sr. Presidente, tanto na proposta do Partido Ecologista «Os Verdes» — que não foi apresentada, mas à qual também me refiro — como na do Bloco de Esquerda se percebe, naturalmente, o objectivo e, em relação ao objectivo de fundo, não temos nenhuma discordância.
Contudo, importa ponderar — e estamos disponíveis para o fazer, mas pensamos que esta ponderação deve ser muito cuidada — se se justifica alterar o equilíbrio que actualmente tem o artigo, porque já refere «promover o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional» e faz uma referência (que, penso, deve ser colocada num patamar diferente, tendo em conta a estruturação do nosso Estado) às regiões dos Açores e da Madeira, não fazendo outras referências neste momento.
Para além de mais, Os Verdes utilizam a referência ao «carácter assimétrico das diversas regiões de Portugal continental» e o Bloco de Esquerda apresenta uma ideia um pouco diferente, que tem a ver com a questão do «menor desenvolvimento do interior do continente» e, sendo uma realidade o problema que aqui é colocado, também é verdade que, provavelmente, a questão não se pode simplificar assim tanto. Estou a pensar, por exemplo, no distrito de Viana do Castelo que não é do interior, mas cujas dificuldades estão ao nível de muitos dos distritos do interior.
Portanto, não rejeito estas propostas, estamos abertos a ponderá-las, mas queria chamar a atenção para o facto de haver um certo equilíbrio na formulação actual do artigo da Constituição que só em caso muito claro de vantagem deve ser, neste momento, alterado.
Entretanto, reassumiu a presidência o Sr. Presidente, António Filipe.
O Sr. Presidente: — Agradeço ao Sr. Vice-Presidente Ricardo Rodrigues por me ter substituído uns minutos.
Tem a palavra o Sr. Deputado José Ribeiro.
O Sr. José Ribeiro (PS): — Sr. Presidente, quanto a esta proposta do Bloco de Esquerda de acrescentar a expressão «menor desenvolvimento do interior do continente», parece-me que há uma confusão no carácter de fundamentação das tarefas do Estado. Os arquipélagos são ilhas e, portanto, «o carácter ultraperiférico dos arquipélagos» é imutável. Por outro lado, o «menor desenvolvimento do interior» é algo que é mutável, o que
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levanta outra questão, que é a de saber a partir de que nível se considera ou não um menor desenvolvimento.
Ou seja, saber se, no dia em que conseguíssemos um determinado nível de desenvolvimento, estaríamos numa situação de inconstitucionalidade. Portanto, esta proposta não faz muito sentido.
Nesta matéria, parece-me que o texto constitucional é equilibrado, sensato e faz todo o sentido, porque são naturezas diferentes: uma, é uma situação imutável; outra, é mutável e, no fundo, já está contemplada neste artigo, designadamente na alínea d), ou seja, está prevista nas tarefas fundamentais do Estado.
Queria apenas dar esta opinião.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Jorge Bacelar Gouveia.
O Sr. Jorge Bacelar Gouveia (PSD): — Sr. Presidente, quero também reforçar algo que já foi dito.
A meu ver, esta proposta, caso seja aprovada tal como se apresenta, introduz algum desequilíbrio na formulação deste artigo. Dentro do conceito «desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional», para diferenciarmos partes desse território nacional temos de diferenciar tudo o que não seja harmonioso e, portanto, cujo desenvolvimento harmonioso devamos atribuir ao próprio Estado.
Se é verdade que, quanto aos Açores e à Madeira, o carácter ultraperiférico é permanente, deve-se à geografia própria dos arquipélagos, também é verdade que, no respeita ao interior do continente, a questão não é propriamente estrutural ou geográfica, mas tem mais a ver com o desenvolvimento económico.
Assim, se esse critério fosse válido, deveríamos também introduzir um outro tipo de critério que tem que ver com as disparidades de desenvolvimento que existem entre o norte e o sul, por exemplo, ou entre as regiões, como é o caso do Algarve — círculo por que fui eleito — , que mais contribuem para o rendimento nacional e que são as mais atingidas pela ausência de investimento do Estado. Portanto, já que estamos a falar em «desenvolvimento harmonioso em todo o território», devíamos referir-nos também, por exemplo, à contraposição entre o norte e o sul.
Penso que é preciso ter cuidado neste tipo de textos, sobretudo porque são textos constitucionais, pelo seguinte: ao introduzirmos a expressão «menor desenvolvimento do interior do continente», estamos também a introduzir uma valoração negativa e, até, pejorativa sobre uma parte do território nacional. Devemos proteger o território nacional de não ter na Constituição uma expressão que possa ferir a dignidade de determinada parte do território nacional. E, a meu ver, introduzir uma expressão do género «menor desenvolvimento» é estarmos, à partida, a condenar, a punir e a desprestigiar essa parte do território nacional. Não creio que a Constituição deva ser usada para introduzir esse tipo de valorações.
O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, estamos praticamente na hora que combinámos que terminaríamos as reuniões, ou seja, às 19 horas. Proponho, no entanto, que fechemos esta alínea. Estão cinco Srs. Deputados inscritos, pelo que peço brevidade nas intervenções para podermos fechar esta alínea a uma hora razoável.
Tem a palavra o Sr. Deputado Vitalino Canas.
O Sr. Vitalino Canas (PS): — Sr. Presidente, para contribuir para terminarmos os nossos trabalhos cedo, quero dizer que, quando me inscrevi, o Sr. Deputado Bernardino Soares ainda não tinha terminado a sua intervenção e, porventura, eu não me teria inscrito, se a tivesse ouvido, porque, no fundo, revejo-me no que disse.
De facto, este preceito tem um equilíbrio muito delicado. Creio que não é possível, sequer, falar-se de «menor desenvolvimento do interior do continente» em contraposição com o litoral, porque, de facto, há regiões do interior que são mais desenvolvidas do que algumas regiões do litoral e vice-versa. Creio que nem sequer do ponto de vista factual isto é verdade.
Portanto, embora compreenda a intenção do Bloco de Esquerda e também a do Partido Ecologista «Os Verdes», penso que o equilíbrio deste artigo deve ser preservado tal como está.
Aliás, revejo-me também na intervenção feita pelo Deputado José Ribeiro, que focou aqui um aspecto importante.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Guilherme Silva.
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O Sr. Guilherme Silva (PSD): — Sr. Presidente, quero retribuir ao Sr. Deputado Bernardino Soares a sua adesão à nossa proposta para o artigo 8.º, subscrevendo a argumentação que apresentou em relação a esta proposta do Bloco de Esquerda.
É preciso perceber e saber um pouco da história deste preceito. Há aqui uma referência expressa ao «carácter ultraperiférico dos arquipélagos dos Açores e da Madeira» que é, efectivamente, uma realidade do conjunto do território nacional, que abrange o continente e estas regiões insulares e ultraperiféricas projectadas no Atlântico.
Contudo, não foi por acaso e apenas por isso que se introduziu esta referência no artigo da Constituição relativo às tarefas fundamentais do Estado. Foi também porque não faria muito sentido termo-nos empenhado que os tratados da União Europeia dessem um tratamento específico às regiões portuguesas — não apenas às do continente, mas também às regiões insulares — e não déssemos um sinal de preocupação interna de relevância constitucional a esta matéria.
Portanto, este preceito tem a sua história, os seus antecedentes, a sua razão de ser.
No entanto, esta proposta e a forma como o Bloco de Esquerda a apresenta faz também um desafio à geografia, pois torna, de certo modo, pelo menos nesta sequência, o interior mais ultraperiférico do que as regiões ultraperiféricas. Há aqui também esse desequilíbrio.
Permitam-me que acrescente, com toda a frontalidade, à argumentação do Deputado Bernardino Soares um outro receio, que é uma leitura que faço e que pode ser muito subjectiva. Esta referência ao interior, além de não ter sentido por todas as razões que já foram expendidas e que subscrevo, parece também trazer um certo intuito de diminuição ao sentido e alcance da referência às regiões ultraperiféricas, o que me parece menos bom nesta formulação do Bloco de Esquerda.
Se outras razões não existissem, essas são bastantes para não apoiarmos a vossa proposta.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado Telmo Correia.
O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — Sr. Presidente, quero também dar uma opinião sobre esta matéria, sendo certo que considero que este é um caso de relativo consenso, porque estamos todos de acordo na intenção do Bloco de Esquerda, que foi apresentada pelo Sr. Deputado José Manuel Pureza.
A intenção, em si, é correcta e é uma boa intenção, mas temos dúvidas quanto a conseguirmos traduzi-la, como foi explicado aqui por vários Srs. Deputados, logo à partida, pelo Sr. Deputado Bernardino Soares, num texto constitucional equilibrado, razoável e aceitável, pelas razões já explicitadas.
Como dizia o Sr. Deputado José Ribeiro — e, nesse aspecto, percebo onde quer chegar — , é evidente que o «menor desenvolvimento do interior» é uma realidade que se tem consolidado no nosso País, mas, de facto, não é imutável. Há uns anos, por exemplo, o norte do País era um motor de pujança económica e hoje em dia está a atravessar inúmeros problemas, com as mais altas taxas de desemprego, com as maiores dificuldades sociais, etc., mas tudo isso pode mudar e esperemos que mude no futuro. Portanto, o norte, que era visto, como tantos outros países europeus, como uma zona muito desenvolvida e, até, a mais rica do País, neste momento regista as maiores dificuldades a nível social e económico de todo o País.
O Sr. Jorge Bacelar Gouveia (PSD): — O Algarve também!
O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — O Algarve, mais recentemente, também entrou numa situação muito difícil.
Quando referimos a questão do interior versus litoral, também temos de ter em conta que não são realidades iguais em todo o País. Com efeito, a maior parte da população está numa faixa litoral que vai de Setúbal a Braga (ou talvez até Viana), porque, se formos mais para sul, o tal «litoral desenvolvido» também já não existe. Isto é, o Baixo Alentejo litoral não tem o grau de desenvolvimento que tem essa faixa litoral. Poderá vir a ter, no futuro, com o turismo, não sabemos, mas para já não tem e, ao olharmos para o modelo do Algarve, não sabemos sequer se é desejável, mas esta é outra discussão.
Penso que faz muito sentido, na preocupação do Bloco de Esquerda, a questão da ocupação do território.
De facto, o grande problema não é tão-só de desenvolvimento, mas de ocupação do território, isto é, do
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interior que se foi desertificando e de um País que «entornou para o mar»- expressão que é muito conhecida e usada no jargão dos debate políticos — , ou seja, de um País que ficou concentrado numa faixa litoral e que deixou de ter população no seu interior.
Por isso, como esta é uma primeira leitura, talvez devêssemos optar por uma expressão que referisse, além de um «desenvolvimento harmonioso», uma «ocupação harmoniosa do território».
Provavelmente, esta não é uma boa expressão, mas talvez devêssemos optar por uma expressão que aponte mais neste sentido. Pode dizer-se que já está referido ou pode ser-se mais explícito. Se já está, o facto é que ainda não se conseguiu, ou seja, é mais uma daquelas coisas que já está, mas que, de facto, não foi conseguida até hoje.
Portanto, talvez fosse melhor explicitar mais a ideia de que o território deve ter uma distribuição populacional mais harmoniosa ou que essa deve ser uma obrigação constitucional. Assim, evitaríamos também o tal estigma de distinguir regiões desenvolvidas e não desenvolvidas, porque estabeleceríamos uma disposição genérica para todo o território, no sentido de que o território devia ter um desenvolvimento harmonioso e também uma ocupação populacional harmoniosa.
Percebo que a minha expressão não seja feliz, estou a pensar sobre ela agora, mas penso que essa ideia seria mais aceitável, porque era genérica para todo o território e não colocava uma parte do território contra a outra.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr. Deputado José Manuel Pureza.
O Sr. José Manuel Pureza (BE): — Sr. Presidente, percebo e constato o largo consenso que existe entre as demais forças políticas no que diz respeito à apreciação crítica que é feita da nossa proposta. De toda a forma, não deixarei de procurar responder a algumas das dúvidas e das críticas que foram feitas, porque me parece que não vão ao encontro do propósito da nossa proposta.
Vou colocar apenas três pontos que foram aqui sublinhados.
Em primeiro lugar, diz o Sr. Deputado Guilherme Silva que este preceito tem uma história. Com certeza, e essa história está plenamente respeitada na proposta que fazemos, porquanto retomamos o preceito existente. Sabemos que há um «big-bang» desta alínea e, portanto, respeitamo-la, porque nos parece ser de essencial bom senso que a Constituição portuguesa defina como tarefa fundamental do Estado intervir tendo em conta a natureza ultraperiférica dos territórios das regiões autónomas. No entanto, o Sr. Deputado Guilherme Silva concordará, obviamente, que nenhum preceito, tendo as origens que tem, é imutável no seu espectro de previsão.
Nesse sentido, ao fazer esta proposta, entendemos que haveria lugar a uma ampliação das situações a cobrir por esta definição de tarefas fundamentais do Estado. Ou seja, que hoje em dia, cada vez mais, «promover o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional» supõe não apenas intervir tendo em conta o carácter ultraperiférico dos Açores e da Madeira, mas também incluir nessas tarefas para o Estado a correcção de desequilíbrios de desenvolvimento no âmbito do território continental.
Portanto, quanto a isto, creio que clarifico agora um pouco mais a nossa proposta.
A segunda observação é também de resposta muito rápida. Alegar que a maneira como expressamos esta preocupação pode ser entendida como uma classificação pejorativa do interior do País é algo que determina que sempre que a Constituição — e não raras vezes o faz — adopta uma regulação inspirada em discriminação positiva estará a caracterizar pejorativamente aqueles ou aquelas que são positivamente discriminados. Considero que essa é uma perspectiva totalmente errada.
De facto — e voltamos ao tema da igualdade, que não é apenas uma igualdade de oportunidades, mas uma igualdade mais densa — , em diversas ocasiões, a Constituição faz sua uma regulação de discriminação positiva. Significa isto classificar pejorativamente quem é positivamente discriminado? Entendo que não.
Portanto, não temos qualquer problema em colocar as questões como as colocamos.
O que é realmente pejorativo é a situação vivida em boa parte do interior do País. Isso é que é pejorativo! Portanto, não confundamos propostas de correcção como tendo um tratamento pejorativo com o tratamento que é dado, de facto, a essas regiões, que, esse sim, é muitas vezes pouco recomendável (para colocar as coisas da maneira mais suave que consigo).
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Finalmente, há uma terceira questão suscitada por várias observações — pelo Sr. Deputado José Ribeiro e pelo Sr. Deputado Jorge Bacelar Gouveia, se não me engano, mas posso estar equivocado — , que é a do receio de que, ao incluir uma previsão normativa constitucional desta natureza, possamos suscitar problemas de inconstitucionalidade, designadamente — imagino — de inconstitucionalidade por omissão.
Esse é um argumento que, de todo, não aceito, porque, desde logo, me parece que é absolutamente surpreendente que, face a esta proposta concreta, apareça o alerta contra os riscos de multiplicação de inconstitucionalidades e que, por exemplo, diante de uma alínea como «promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses», ninguém tenha sublinhado o risco de suscitar inconstitucionalidades. Srs. Deputados, se há inconstitucionalidades graves, é em matéria de promoção do bem-estar e da qualidade de vida do povo e de promoção da igualdade real entre os portugueses. Porém, também nesta matéria, constato o largo consenso sobre a não invocação do risco da inconstitucionalidade.
O artigo 9.º — e peço desculpa de dizer isto, porque estou a expressar-me para Deputados que conhecem melhor do que eu a lógica de fundo deste artigo — define tarefas fundamentais e, desse ponto de vista, assume como suas grandes preocupações, como a desertificação, o despovoamento, o envelhecimento do interior do País. Portanto,»
O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — Não é o desenvolvimento!
O Sr. José Manuel Pureza (BE): — Justamente. Essas situações ocorrem na exacta medida em que há grandes diferenças de desenvolvimento integrado entre a faixa litoral e o interior do País.
O Sr. Telmo Correia (CDS-PP): — Não só!
O Sr. José Manuel Pureza (BE): — Eu reconheço — todos reconhecemos — que há concelhos do interior que são mais desenvolvidos do que, por exemplo, Viana do Castelo. Com certeza! Mas, por favor, não constitua isso óbice a que seja tarefa fundamental do Estado a tendencial correcção do desequilíbrio entre o litoral e o interior.
Termino, Srs. Deputados, com a seguinte afirmação: de facto, «promover o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional» implica corrigir o desequilíbrio entre o litoral e o interior, mas, dada a importância e a gravidade da situação a que chegámos, entendemos como boa a assunção, por parte da Constituição, deste pressuposto como justificando essa tarefa fundamental do Estado.
Espero ter clarificado estas questões, era apenas esse o meu propósito.
O Sr. Presidente: — Está ainda inscrito o Sr. Deputado Bernardino Soares.
Tem a palavra, Sr. Deputado.
O Sr. Bernardino Soares (PCP): — Sr. Presidente, muito brevemente e para que não fique nenhuma dúvida, queria dizer que é evidente que subscrevemos a preocupação aqui expressa por esta proposta do Bloco de Esquerda.
É preciso, no entanto, olhar bem para o que é hoje o conceito que está no texto constitucional de «desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional», que é, penso, um conceito muito rico e, porventura, mais seguro, porque não permite excepcionar nenhuma parte deste desenvolvimento harmonioso, em vez de avançarmos com alguns desenvolvimentos nas normas constitucionais que podem levar a interpretações e discussões como as que estamos aqui a ter.
Valorizamos, evidentemente, o objectivo da proposta, pese embora as nossas dúvidas em relação a ela, porque, de facto, há aqui uma diferença. No caso das regiões autónomas, estamos perante a consagração de uma diferenciação cuja responsabilidade é vulcânica. A proposta do Bloco de Esquerda pretende atingir a responsabilidade política dos governos, que têm vindo a descaracterizar o nosso território nacional e a promover as assimetrias regionais. Entre o vulcânico e o político, podemos ainda ter aqui uma distinção.
O Sr. Presidente: — Srs. Deputados, não registo mais inscrições, pelo que concluímos, assim, a discussão das propostas relativas à alínea g) do artigo 9.º.
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A próxima reunião será na quarta-feira, dia 19, às 16 horas e 30 minutos, como está estabelecido entre nós, e terá como ordem de trabalhos as propostas de aditamento de novas alíneas ao artigo 9.º, por parte do PSD e do PCP, e a continuação da discussão até ao artigo 23.º.
Srs. Deputados, está encerrada a reunião.
Eram 19 horas e 18 minutos.
A DIVISÃO DE REDACÇÃO E APOIO AUDIOVISUAL.