SESSÃO N.° 12 DE 29 DE JANEIRO DE 1904 127
savel pelo conselho que, em tão momentoso assumpto, der ao Chefe do Estado.
A amnistia impõe perpetuo silencio aos processos. Mas, a seu juizo, o artigo 74.° da Carta não pode interpretar-se isoladamente, porque aliás pela applicação de amnistia seria violada a Carta Constitucional nos artigos que garantem os direitos civis e politicos dos cidadãos.
O artigo 74.° da Carta não vale mais do que o artigo 145.° da mesma Carta. N'este artigo, § 2.°, se consigna a garantia, eminentemente constitucional, de que a lei não póde ter effeito retroactivo, e no § 11.° se consigna tambem que nenhuma auctoridade póde avocar as causas pendentes, sustai-as, ou fazer reviver os processos findos.
Todas as leis eleitoraes, desde 1852, reconhecem ao cidadão eleitor, inscripto como tal no recenseamento, o direito de ser parte em juizo contra os malfeitores eleitoraes.
O cidadão pois que está em juizo, no exercicio do seu direito eleitoral, e que foi como tal reconhecido pelo poder judicial, por despacho que fez transito em julgado, realizou um direito, adquiriu o direito de proseguir até final nos termos do processo. Não ha aqui uma espectativa de direito, ha um verdadeiro direito adquirido. O decreto de amnistia de 28 de setembro não póde pois retrotrahir se sem contrariar o terminante preceito da Carta — de que a lei não tem effeito retroactivo.
A parte com direito adquirido, anteriormente áquelle decreto, não póde ser attingida por elle, sem violação dos preceitos constitucionaes. Mas, se o decreto pelas suas disposições amplas e genericas não faz excepção, e abrange nas suas disposições violentas os processos com partes em juizo, a consquencia é que elle é attentatorio da propria Carta Constitucional, em face da qual foi publicado.
Os preceitos da Carta estão em harmonia com as leis ordinarias.
A lei, que garante ao cidadão eleitor o direito de perseguir em juizo as contravenções e delictos eleitoraes, e que este adquiriu por despachos judiciaes, na sua letra e no espirito não permitte a interpretação odiosa de que um decreto do poder executivo lhe possa extorquir esse direito, em nome da clemencia regia falsamente invocada. A lei eleitoral é tambem uma lei de garantias; uma lei de defesa individual e de defesa social para garantia da pureza do suffragio popular, que interessa á sociedade e ao prestigio das instituições. O Codigo Penal tambem limita te restringe o direito de amnistiar. E um reforço ás leis eleitoraes. Tudo se harmonisa, e combina.
A amnistia não prejudica a acção civil pelos damnos e perdas causados, não tem effeito retroactivo pelo que respeita aos direitos adquiridos por terceiros. Não haverá audacia sufficiente para negar que não é direito adquirido áquelle que se realisa e se exercita, requerendo e promovendo nos processos. De modo que o preceito generico da Carta Constitucional, de que a lei em geral não tem effeito retroactivo, está aqui reforçado por uma lei especial, e que em especial affirma que a amnistia não tem effeito retroactivo pelo que respeita aos direitos adquiridos, e é claro que entre esses direitos adquiridos figuram os reconhecidos pelas auctoridades judiciaes nos respectivos processos, como partes legitimas para litigar. Por outro lado, declarando o Codigo Penal que a amnistia não prejudica a acção civil por perdas e damnos, e como neste caso se trata da responsabilidade civil connexa com a responsabilidade criminal, é visto que não póde pedir-se perdas e damnos porque o decreto da amnistia manda pôr perpetuo silencio aos processos findos, e portanto não podem reviver por força da Carta Constitucional.
Como a Camara vê, reproduz, até quasi pelas mesmas palavras, o que na ultima sessão teve a honra de expor á Camara, e admira a audacia do Sr. Presidente do Conselho, affirmando que esboçou apenas a sua interpellação.
Podia, é certo, dizer que demonstrara insufficientemente o assumpto d'ella, mas isso não se faz com uma affirmação banal; demonstra-se. Essa demonstração não a fez o illustre Presidente do Conselho.
O estudo comparado da Carta Constitucional, das leis eleitoraes e do Codigo Penal, e as razões historicas e politicas d'estas leis, convencem a quem queira convencer-se de que o decreto de 28 de setembro, abrangendo os processos em que havia parte queixosa, foi um attentado contra todas essas leis, independentemente dos intuitos de uma politica perturbadora, eleitoralmente iniqua e deshonesta.
O decreto de 30 de setembro de 1852 é uma consagração honrada da revolução de 1851. O paiz, cansado de soffrer todos os despotismos cabralinos, e os partidos não podendo luctar contra os latrocinios eleitoraes systematicos, fizeram a revolução, fizeram bem.
A revolução triunfante honradamente consignou no decreto alludido todas as garantias, e entre ellas aquella que dá ao eleitor inscripto no recenseamento o direito de perseguir em juizo os auctores ou cumplices contra as contravenções e crimes eleitoraes. É uma garantia individual, e tambem uma garantia social, porque a defesa da pureza do suffragio popular e a punição dos trabuqueiros eleitoraes interessa á sociedade em geral. Ao lado d'esta garantia está outra. Para se perseguirem os crimes eleitoraes não é necessaria licença do Governo, qualquer que seja a categoria do funccionario, auctor ou cumplice. N'esse montão de leis e decretos eleitoraes desde 1852, n'este largo periodo de cincoenta e dois annos nenhum Governo tocou n'estas garantias, todas se reproduzem nos diplomas eleitoraes successivamente publicados.
O que significa este accordo em todos os partidos, ou grupos politicos? Significa que o regimen eleitoral tem garantias especiaes, e que essas garantias especiaes recebem reforço do codigo politico e de outras leis especiaes, tudo no fim commum de armar o cidadão contra os trabuqueiros e malfeitores eleitoraes, contra os corruptos e contra os corruptores do suffragio popular. Sendo assim, que garantias são essas, se os Governos tumultuaria e successivamente, indecorosamente, podem amnistiar os criminosos, os corruptos e os corruptores, abrangendo os processos com parte queixosa em juizo?
Como é pois que um direito tão caracterisado em leis especiaes pode ser vilipendiado por um Governo dominado pela paixão, que o obceca, trocando o rancor pela serenidade, somente para satisfação de clientelas gananciosas?
Pede á Camara que attenda ao que disse na ultima sessão, e ao que hoje repete quasi pelas mesmas palavras.
A Carta Constitucional, as leis especiaes, que são aqui as leis eleitoraes, e o Codigo Penal, todos se conspiram para o fim commum. A amnistia não pode atacar os direitos adquiridos; e, por outro lado, o Codigo Penal legisla que não pode ter effeito retroactivo — o que era escusado dizer, porque é preceito constitucional. É disposição expressa do artigo 125.°, § 1.°
Ha direitos adquiridos?
Esta é que é a questão.
Pede desculpa á Camara, mas é preciso dizer o que são direitos adquiridos. Parece incrivel que isso se discuta ainda, e para resumir copiará as palavras do illustre annotador do Codigo Civil, como podia copial-as do auctor do Codigo Civil, A. L. de Seabra, ou de qualquer livro elementar.
Ora attenda a Camara:
Direitos adquiridos são todos aquelles de que o sujeito se acha definitivamente investido, de que tem já a posse, ou realização effectiva. O direito póde traduzir-se, ou pela faculdade de acção, ou pela acção já exercida. Emquanto faculdade, sem se exercer, póde ser ferido pela lei nova; desde que se exerce, o seu producto constitue um direito adquirido, que a lei posterior deve respeitar.