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Discursos dos dignos pares os ex.mos Visconde de Fonte Arcada e Marquez de Ficalho, proferidos na sessão de 8 de maio, publicada no «Diário de Lisboa» de 11, e que não poderam entrar no logar competente, por não terem sido restituidos a tempo.
O sr. Visconde de Fonte Arcada: — Sr. presidente, em primeiro logar tenho que agradecer ao sr. presidente do conselho a urbanidade das palavras que me dirigiu, e posto que eu não concorde com a apreciação que s. ex.ª fez do que eu disse, sou obrigado, como já disse, agradecer-lhe a sua urbanidade.
Disse s. ex.ª, e disse bem, que ou queria que o governo apresentasse já um systema de administração que desse esperanças de que se fariam todas as economias convenientes; e de certo agora era occasião 'opportuna para que o governo assim procedesse; e continuou s. ex.ª dizendo que, logo que o governo conseguisse o bill de indemnidade, então apresentaria, o seu systema financeiro, fazendo economias que não prejudicassem o serviço publico; esta phrase e tão ambigua, que não sei o que quer significar, porque ella tem sido empregada milhares de vezes, e é tão lata, que dá occasião a significar tudo que se quizer. Portanto o que eu quero é que se defina o -sentido em que se emprega, e que se façam economias nos diversos ramos do serviço publico, dizendo-se-nos a rasão por que não se podem fazer mais; só assim é que se poderá fazer uma idéa verdadeira do que se pretende.
Disse s. ex.ª que depois de se approvar o bill de indemnidade, se apresentarão as medidas urgentes. Eu approvo o bill de indemnidade, e só sinto que não seja para legalisar muitas outras medidas necessarias que ss. ex.ªs não tomaram, e deviam tomar, e que eram urgentes. D'isto é que eu me queixo. Nós que temos presenciado tudo que se tem passado, não precisámos estar aqui a dar mais explicações a respeito do nosso estado, porque elle falla por si. Hão de fazer-se todas as economias, diz s. ex.ª; o que eu vejo, sr. presidente, é que já se não faz caso do programma do sr. ministro da fazenda.
Pois o sr. ministro da fazenda fez um programma de economias como deputado, juntou-se ás manifestações populares que se fizeram em janeiro n'esta capital, contra o estado de cousas que então existia, subiu aa poder, e agora depois de ser ministro já o seu programma é um papel velho que não serve senão para o barril do lixo (riso); isto não esperava
elle, e é inaudito. Eu acho que esse programma do sr. ministro da fazenda, tão desprezado até por s. ex.ª, é que devia ser a baseado programma economico do governo. O meu maior desejo, sr. presidente, é que se tomem medidas efficazes, a fim de se poder remediar o nosso estado, que é muito grave.
S. ex.ª o sr. presidente do conselho, que tem assistido desde 1834 até agora a todas as peripecias que têem acontecido n'este paiz, deve saber que á impopularidade do systema seguido então pelo governo se deveram as inquietações d'aquella epocha; e qual foi o resultado final? Foi em 1836 a revolução de setembro; eu já era então deputado, e estava na opposição contra o governo, e á minha opposição respondeu o paiz com a revolução; a revolução de setembro aconteceu porque os ministros se não demittiram a tempo, e enrolaram-se no manto real que a revolução rasgou.
Isto são factos sabidos por todos; e pôde acaso dizer-se que a opposição d'essa epocha era facciosa? Não.
Seguiram-se depois outros acontecimentos, vieram as côrtes constituintes, que a historia avaliará, e de que tive a honra de ser membro, e posteriormente a restauração da carta, ou nova revolução, porque ha quem diga que todas as restaurações são revoluções. Continuei a fazer opposição ao governo d'essa epocha, e qual foi o resultado da politica que eu combatia? As revoluções de 1846 e 1847.
Ao governo de então seguiu-se outro; eu continuei na opposição, e o resultado foi a inquietação do paiz, foram os tumultos de abril no Porto, aos quaes se succederam os de Lisboa, que se generalisaram pelo paiz, e todos os mais factos que presenciámos.
Disse mais s. ex.ª que = eu tenho sido sempre opposição =. É verdade; tenho sido muitas vezes opposição, mas a opposição que tenho feito tem sido sempre á politica seguida quando a reputo nociva ao paiz. Eu não me vinculo a ninguem, sigo e manifesto as opiniões que entendo se devem seguir no meu paiz, combatendo tudo que reputo mau e de encontro aos principios que professo; tenho pois rasão para ser o que sou, e os factos me têem justificado; e não podia ser outra cousa do que tenho sido (riso).
Eu, sr. presidente, não pretendo subir ao capitolio, estou em uma esphera muito chã, muito humilde; mas se tivesse essas pretensões, nunca havia de manifestar opiniões, que depois desprezasse. Eu não faço opposição para receber ovações, nem deixo de a fazer para que me dêem commendas. E assim que respondo ao sr. presidente do conselho, que nota ou censura que eu tenha estado sempre na opposição.
Disse s. ex.ª que = o governo já tem feito alguma cousa; É possivel que o tenha feito, e não duvido; comtudo o que posso asseverar á camara é que não tem feito o que era indispensavel. S. ex.ª disse que = se tinha feito uma economia consideravel levantando um capital com um modico juro para se pagar outro que pagava 17 1/2 por cento =. Isto é de certo uma economia importante, mas o que eu pretendo é que, pela economica administração do estado, se evitem estes emprestimos quanto for possivel.
Assegura-me s. ex.ª que ha de apresentar medidas proprias para remediar o nosso estado. Veremos.
O sr. Presidente do Conselho de Ministros: — Ha de querer ainda mais.
O Orador: — É possivel que queira mais, mas isso nada tem com a approvação das que se apresentarem; quando chegar o momento de poder avaliar taes medidas, então direi o que entender segundo a minha limitada intelligencia.
O sr. presidente do conselho tambem disse que = se tinham votado leis importantes, sendo a de desamortisação de iniciativa sua =, e alludiu igualmente á de desvinculação.
Este argumento não colhe para mim, porque eu fiz logo opposição á lei de desamortisação, considerando-a antes como uma medida financeira para que se averbassem muitas inscripções aos estabelecimentos de caridade e outros, tirando-as assim do mercado, para poder emittir outras, sem que o mercado se resentisse. Não quero porém dizer que até certo ponto não se devesse facilitar a desamortisação, mas não a queria na generalidade em que foi adoptada, porque os estabelecimentos de beneficencia, que tinham rendimentos proprios, agora, reduzidos ao rendimento das inscripções, ficam vivendo do imposto; e quando haja alguma crise financeira, que atraze o pagamento dos juros, ou mesmo que se não possam pagar, aquelles estabelecimentos ficam reduzidos á miseria. Logo que esta lei foi apresentada, combati-a, não só por estas rasões, mas por outras que é escusado repetir.
Fallou tambem s. ex.ª na lei de desvinculação, que prendia com a constituição d'esta camara, que não pôde subsistir sem certeza de rendimento. A lei que aboliu os vinculos, conservou, apesar d'isso, a camara dos pares, cuja essencia era a hereditariedade. Dentro em duas gerações acaba-se a camara dos pares, porque não ha nenhum successor, a não ser por excepção, que tenha o rendimento que a lei marca. Logo a camara dos pares, cuja essencia é a propriedade e a hereditariedade, acabou, e por isso é indispensavel a reforma parlamentar.
Ainda ha pouco eu vi na allocução que a deputação d'esta camara dirigiu a Sua Magestade El-Rei, por occasião do anniversario da outorga da carta constitucional, empregar expressões manifestando quanto convinha conservar a carta; ora conservar a carta é conservar a camara dos pares. Mas esta mesma camara que se quer conservar votou uma medida que importa a sua destruição! Isto é singular!
Quanto a mim rejeitei a lei de desvinculação, mas queria substitui-la pela liberdade de testar.
Sr. presidente, no meu discurso tambem me referi á parte
do programma do sr. ministro da fazenda, que diz respeito aos nossos agentes diplomaticos, propondo a sua diminuição. S. ex.ª quer, e quer bem, que haja só legações em París, Florença, Roma, Madrid, Londres e Rio de Janeiro, e que em todos os outros paizes sejam ps consules quem desempenhem as funcções diplomaticas. É claro que sendo esta medida geralmente seguida se faria grande economia, sem inconveniencia, porque os consules não precisam sustentar uma grande representação e hombrear com os diplomatas dos paizes mais ricos, que podem ter ordenados correspondentes ás suas graduações; e por isso me parece que não se podia diminuir o ordenado da legação da Russia, mas reduzir-lhe a categoria.
" Agora, respondendo ainda ao sr. presidente do conselho, que disse que muitas leis importantes têem sido de sua iniciativa, tenho a dizer-lhe que eu do que me queixo é do complexo da sua politica que tem dado os resultados que temos visto, e contra os quaes o paiz se tem manifestado.
«A agitação, disse o sr. Rebello da Silva, está acalmada, mas não consolidada». Bem, muito bem, penso da mesma maneira. «E que não é por meio de perseguições nem de processos que a tranquillidade se pôde firmar». Eu entendo igualmente, como s. ex.ª, que para acabar esta immensidade de processos, de que o paiz está cheio, é necessario dar uma amnistia.
E necessario, sr. presidente, alem d'isso que o governo faça raiar, no coração de todos, a esperança de que se pretendem evitar as causas, muitas das quaes são antigas, do estado a que o paiz está reduzido. Sem isto não ha tranquillidade, porque não é possivel estar indefinidamente dilatando as promessas, mostrando assim que não ha a decisão necessaria para se levar a effeito o que effectivamente se carece para a tranquillidade do paiz, e que elle reclama com toda a justiça e fundamento.
Sr. presidente, eu tambem ouvi queixar-se o digno par, o sr. Rebello da Silva, pelo muito que se tem abusado na camara electiva propondo despezas extraordinarias. Eu, que tenho seguido o modo de proceder d'aquella camara, apresentei n'esta uma estatistica de uns poucos de annos, em que mostrei que, excepto em dois, e eu direi a rasão por que os orçamentos saíam d'aquella camara sempre com augmento de despeza muito consideravel, 100:000$000 ou 150:000$000 réis, mais do que o orçamento original apresentado pelo governo, apesar de existir uma lei que estabelecia que nenhuma despeza se proporia sem se lhe consignar uma correspondente verba de receita. (O sr. Presidente do Conselho: — Apoiado.) Ora effectivamente uns poucos de annos a fio se verificou que o orçamento vinha sempre para esta casa muito mais augmentado do que tinha entrado na outra (apoiados). E só em dois annos não cresceu a despeza, porque não se discutiu o orçamento.
Mas o caso era, sr. presidente, que o governo condescendia sempre no augmento de despeza para contar com os votos dos deputados!
E pois na realidade bem notavel, e muito para sentir, que emquanto se entende que a discussão do orçamento na ca mara dos eleitos do povo é uma garantia para diminuir a despeza, entretanto os factos tenham vindo dar provas em contrario! Claro está que isto nada tem com a camara actual, que ainda se não sabe qual será a sua marcha, mas antes é de crer que ella tenha muito em vista os maus resultados dos precedentes que lhe foram legados, e sobretudo o estado do paiz, que pensa todos os dias nas circumstancias em que está a fazenda publica.
A pratica da Inglaterra é o que mais convem, porque ali a camara dos communs não pôde votar despeza alguma sem que seja proposta pelo governo, porque se entende, e com rasão, que o governo é que sabe o que é necessario para o serviço. Aqui é pelo contrario, em vez de se dizer ao deputado que não pôde propor augmento de despeza, aceita-se o que elle propõe, porque se acha que para ter seguro o voto deve haver a condescendencia! O caso é que o exemplo para um, obriga a dar a mesma attenção a outro, e por isso os resultados têem sido taes como temos infelizmente visto, e estamos hoje deplorando!
E preciso pois que o governo tome o seu logar, que não queira por um apoio ephemero, por uma pequena prolongação de vida, ter condescendencias com que se compromette, não só a entidade governo, mas o proprio paiz, que é o peior!
O governo que souber manter o seu logar com aquelle rigor justo que deve sempre observar, pôde ter a certeza, ainda que se veja obrigado a retirar-se, que ha de ser outra vez chamado, porque as nações precisam conservar a sua existencia, e hão de fazer tudo o que seja possivel para este fim.
Em resposta a um digno par, que na sessão antecedente disse que = era necessario tomar medidas para evitar os tumultos, e que o paiz praticou actos revolucionarios, destruindo tumultuariamente as leis votadas, que só deviam ser revogadas pelos meios constitucionaes = como dizendo que, sem desconhecer alguma irregularidade que se desse nas demonstrações contra as leis votadas, vejo que o povo se acha n'um terrivel dilemma; se não se move, não se faz caso do que elle soffre nem das suas reclamações; e quando tumultua, responde-se-lhe que deve ficar tranquillo, para que se possa attender o que pede, empregando-se contra elle medidas repressivas.
Por ora nada mais tenho a acrescentar.
O sr. Marquez de Ficalho: — Poucas vezes abuso da bondade com que os dignos pares me escutam. Tencionava votar silencioso a resposta ao discurso do throno, mas uma grande tentação me levou a pedir a palavra, e quando a tenho não costumo ceder d'ella.
Sr. presidente, sabe V. ex.ª qual é a minha grande ten-
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tacão? É dizer bem de tudo. E sabe porque? É porque me parece que sou mais justo do que os que dizem mal: em todo o caso é uma reacção do meu espirito, e tenho um tal ou qual direito em suppor que a justiça está da minha parte, porque, ainda que estou fóra da politica activa, posso estar em erro, mas é de entendimento, e não porque esteja apaixonado e sem a frialdade necessaria para bem apreciar os acontecimentos.
Fui soldado; ha muito o não sou, mas conservo os habitos que adquiri na vida das armas. Todas as comparações que faço se resentem da minha antiga profissão. Sabe V. ex.ª com que eu comparo o estado actual? É com o de um exercito que, depois de muitas fadigas, despezas e derramamento de sangue, tem tomado todas as posições vantajosas para ganhar a ultima batalha. E é então que essas palavras tão condemnadas pelos artigos de guerra se ouvem: « Perdidos, cortados, quem poder escapar, escape »: desastre certo, que perde sem remedio o exercito mais disciplinado; terror panico desconhecido de todos os que o não experimentaram. Não, dignos pares, a camara dos pares não dará esse grito tão condemnado pelos artigos de guerra.
É vicio nos homens velhos contar historias, e a camara permitia que eu lhe conte a historia dos nossos acontecimentos. Bem sei que ella a sabe; é historia velha: mas, repito, é vicio de homens velhos contar velhas historias. O que prometto á camara é conta-la com o maior laconismo.
Em 1807 o exercito victorioso do maior imperio conhecido nos nossos tempos invadiu este paiz abandonado pela corte. Sem ordem e sem armas retirou-se para a capital, servindo-se da unica defeza possivel, que era a completa ruina de seus teres e haveres. N'essas memoraveis linhas de Torres Vedras pararam os primeiros soldados do inundo. Disciplinaram-se e armaram-se 100:000 homens, que em sete annos de combates levaram de vencida para alem dos Piryneus os primeiros generaes do exercito francez.
Em 1814 começaram os soffrimentos de outra ordem. Ruínas, e só ruinas se viam por toda a parte. O trigo tinha-se comido e não se tinha semeado; as oliveiras tinham servido de abatizes por todas estas estradas. Soffria-se, soffria-se horrivelmente; ninguem se queixava. O que hoje se chama miseria era n'esse tempo abundancia. Este bom povo portuguez sustentava-se só de duas cousas: religião e gloria.
Mas os homens intelligentes e amigos da humanidade compadeciam-se e procuravam remedio. Já em 1816 se conspirava para dar remedio, e julgava-se acha-lo na mudança das instituições. Uma imprensa livre para as queixas, um parlamento para as attender, era o desideratum dos homens bons.
Em sobresalto se viveu até 1820, não sem victimas. Gomes Freire e seus companheiros derramaram o primeiro sangue que regou a arvore da liberdade. Em 1820 4.000:000 pessoas acclamaram a constituição. Quem não viu o enthusiasmo de então não sabe o que é enthusiasmo de uma nação inteira. Mas em 1822 já se conspirava, e em 1823 começava a guerra civil.
Restabelecia-se o que se chamam os inauferíveis direitos. Em 1826 acclamava-se a carta, e em 1826 se sublevava a guarnição do Algarve e parto da de Traz os Montes, e tornava esta terra portugueza a ser assolada pelos differentes corpos do exercito. Saía o marquez de Chaves, entrava o marquez de Angeja; saía o Magessi, entrava o conde de Villa Flor; e os trabalhos uteis, que só se fazem em paz, não eram conhecidos; os braços robustos só se empregavam em brigar. Em 1828 o exercito dividido em combates, a emigração até 1834; guerra, ruina, 100:000 homens de um lado e 20 ou 30:000 do outro.
E depois d'isto sou portuguez, vivo em Portugal! Oh grande e admiravel nação, oh homens illustres que nos conduziram, eu vos saúdo, eu vos admiro, eu vos louvo! E não separo do meu louvor os que de 1834 até hoje se têem encarregado de cumprir os legados que lhes ficaram de tão grandes calamidades.
Sr. presidente, estou ouvindo já os que dizem: e a divida, e o deficit? A divida e o deficit é o preço da minha historia. Acham caro? Pois eu acho barato. O que temos a fazer é pagar.
Eu preciso uma certa coragem para pronunciar as minhas ultimas palavras, mas não me falta. Tenho coragem, porque Deus m'a deu, e maldito o homem que não confessa o dom que Deus lhe dá. Economia é a palavra do dia: para uns a salvação, para mim a perdição. Eu me explico. A economia faz-se, a palavra não se diz; a economia fazem-na os srs. ministros no seu gabinete com sangue frio, intelligencia e energia, e não sáe das nossas algibeiras em projectos apaixonados, sem harmonia, sem conhecimento dos serviços publicos, condemnando-se uns aos outros, a marinha contra o exercito, o exercito contra a marinha, os tribunaes a denunciarem o de contas contra o ultramarino, e vice-versa.
Sr. presidente, quem ha de resolver a questão financeira ha de ser o imposto, e não a economia. Para mim o effeito que me faz o imposto, sendo administrado com honra e intelligencia, é que dou com uma mão e recebo com a outra; e a economia é — deixo de dar, e deixo de receber. Esta minha opinião pôde estar em desharmonia com a opinião do. governo, com a maioria, com a nação: o que sei é que está de accordo com a minha intelligencia e com a minha consciencia. Ordem, quer dizer paz; paz quer dizer trabalho; trabalho quer dizer riqueza; riqueza quer dizer imposto.