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N.º 59

SESSÃO DE 14 DE ABRIL DE 1880

Presidencia do exmo. sr. João Baptista da Silva Ferrão de Carvalho Mártens, vice-presidente

Secretarios - os dignos pares

Antonio Maria do Couto Monteiro
Francisco Simões Margiochi

SUMMARIO

Leitura e approvação da acta da antecedente sessão. - A correspondencia é enviada ao seu destino. - O digno par Camara Leme propõe que se levante a sessão, para que os dignos pares que quizerem assistir ao funeral do fallecido digno par, visconde da Silva Carvalho, possam prestar essa homenagem a tão brioso e valente official da nossa marinha. - O digno par Sequeira Pinto apresenta o parecer da commissão de fazenda sobre o projecto de lei n.º 44.- Consultada a camara sobre a proposta do digno par Camara Leme, resolve affirmativamente.

Ás duas horas e um quarto da tarde, sendo presentes 28 dignos pares, o sr. presidente declarou aberta a sessão.

Lida a acta da sessão precedente, julgou-se approvada, na conformidade do regimento, por não haver reclamação em contrario.

Mencionou-se a seguinte:

Correspondencia

Um officio do exmo sr. viscondessa da Silva Carvalho, participando o fallecimento de seu marido o digno par visconde da Silva Carvalho.

Ficou a camara inteirada.

(Estava presente o sr. ministro da fazenda.)

O sr. Presidente: - A camara de certo quererá se lance na acta um voto do seu profundo sentimento pela perda do digno par, o sr. visconde da Silva Carvalho, que foi representante de um dos homens que maiores serviços prestou á causa constitucional e á dynastia. (Muitos apoiados.)

O sr. Camara Leme: - Associando-me ás expressões de profundo sentimento que v. exa. acaba de apresentar á consideração da camara, tomo a liberdade de fazer uma proposta, a fim de que os nossos collegas que desejem prestar homenagem á memoria d'aquelle valente official da nossa marinha de guerra, e filho de um dos homens que maiores serviços prestou a este paiz o possam fazer, sem ter que saír da camara durante a sessão.

A minha proposta é, pois, para que seja consultada a camara, se quer levantar a sessão, a fim de que, alem da deputação que creio está nomeada para assistir ao funeral d'aquelle nosso chorado collega, que ha de ter logar hoje ás quatro horas da tarde, possam tomar parte n'aquelle acto funebre todos os membros d'esta camara, que a elle desejem concorrer.

O sr. Sequeira Pinto: - Mando para a mesa um parecer da commissão de fazenda sobre o projecto de lei n.° 44, vindo da camara dos senhores deputados.

Leu-se na mesa e mandou se imprimir.

O sr. Presidente: - A camara ouviu a proposta que acaba de fazer o digno par o sr. Camara Leme, para que se levante a sessão, a fim de que os dignos pares possam comparecer no funeral do nosso chorado collega visconde da Silva Carvalho. Os dignos pares que approvam esta proposta tenham a bondade de se levantar.

Foi approvada.

O sr. Presidente: - A primeira sessão será na sexta feira, 16 do corrente, e a ordem do dia a que estava dada para hoje e mais o parecer n.° 52.

Está levantada a sessão.

Eram duas horas e quarenta minutos da tarde.

Dignos pares presentes na sessão de 14 de abril de 1880

Exmos. srs.: João Baptista da Silva Ferrão de Carvalho Mártens; Marquez de Fronteira; Condes, de Cabral, de Castro, de Linhares, de Samodães; Bispo eleito do Algarve: Viscondes, de Alves de Sá, de S. Januario, de Ovar, de Villa Maior, Ornellas, Mello e Carvalho, Quaresma, D. Antonio de Mello, Couto Monteiro, Rodrigues Sampaio, Serpa Pimentel, Xavier da Silva, Palmeirim, Carlos Bento, Sequeira Pinto, Fortunato Barreiros, Margiochi, Andrade Corvo, Braamcamp, Lourenço da Luz, Luiz de Campos, Camara Leme, Vaz Preto, Franzini, Mathias de Carvalho, Placido de Abreu, Calheiros, Thomás de Carvalho, Ferreira Novaes, Fontes Pereira de Mello.

Discurso proferido pelo digno par Antonio Maria de Fontes Pereira de Mello na sessão de 2 de março, e que devia ler-se a pag. 161, col. 1.ª -

O sr. Fontes Pereira de Mello: - Sr. presidente, tencionava pedir a palavra para fundamentar o meu voto, porque não costumo, em- questões de certa importancia, deixar de dizer á camara quaes são os motivos que actuam no meu espirito para approvar ou rejeitar o que se propõe; mas não era minha intenção fazel-o n'esta altura do debate, porque queria primeiro ouvir alguns dos distinctos oradores que se acham inscriptos. Todavia, como na peroração do discurso do sr. ministro da fazenda, na sessão de hontem, ouvi palavras que me pareceram uma allusão á minha pessoa, entendi que devia inscrever-me immediatamente para responder a s. exa., e fazer algumas considerações.

Sr. presidente, não posso nem quero entrar na questão de familia, que se ventila entre um digno membro d'esta casa, e meu amigo, que não vejo presente agora, e o sr. ministro da fazenda, sobre quem representa melhor o partido progressista. É questão que não me compete a mim decidil-a. Aos illustres oradores, que têem combatido n'este terreno, fica o direito de ajustarem as contas pelo modo que entenderem mais conveniente.

Eu, que não tenho a honra de pertencer ao partido progressista, que o tenho combatido como membro do parlamento, e nos conselhos da corôa, não posso entrar n'essa questão, que me é inteiramente, estranha; porém, como o sr. ministro da fazenda, ao terminar o seu discurso, fazendo o elogio do programma do seu partido, se referiu a uma phrase, que eu tinha proferido n'esta casa, preciso dar algumas explicações.

Sr. presidente, fui eu que, estando n'aquellas cadeiras, (apontando para o logar dos srs. ministros) disse que detestava o programma dos partidos que se fusionaram na Granja, sem comtudo detestar os homens que o assignaram.

A manifestação de um sentimento, que imperava tanto no meu animo n'aquella occasião, não podia ser motivo de reparo, e muito menos de censura.

Entendia então, como entendo ainda hoje, que aquelle programma atacava as prerogativas do augusto chefe do estado,(Apoiados.) e eu, sem renegar todas as minhas tradições politicas, não podia impedir-me de manifestar a má-

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gua que me acompanhava ao ver publicado um tal documento. (Apoiados.) Disse, pois, que detestava aquelle programma, mas não disse uma palavra contra os homens que o assignaram.

Sr. presidente, o programma que o nobre ministro veiu hontem aqui elogiar mais uma vez, o programma que faz a base da sua politica, que é a norma do seu proceder, e que deve ser a estrella que ha de guiar o governo ao caminho da governação publica, a frente da qual se acha actualmente, é uma das mais importantes rasões por que eu não posso dar o meu voto ao gabinete.

É uma questão de principios; é uma questão em que divergimos profundamente; é uma questão em que duas escolas politicas se acham em frente uma da outra, ácerca das reformas premeditadas, que têem de ser propostas e referendadas pelos mesmos homens que, fazendo hoje parte do governo e do parlamento, são ao mesmo tempo os principaes representantes d'esse partido.

O programma a que me refiro, baseado em doutrinas que tendem a subverter a actual ordem de cousas, e no qual se diz que é necessario investir com o rei, não podia ser menos do que detestado politicamente por mim, que sou fiel ao soberano de quem era ministro, e que por essa, e por outras rasões d'estado, era levado a protestar contra tão perigosas doutrinas. (Muitos apoiados.)

Sr. presidente, respeito todas as opiniões, por mais oppostas que ellas sejam ás minhas; respeito todos os homens que, fieis ás bandeiras dos partidos a que pertencem, as defendem valorosamente no seu campo; respeito os miguelistas e os republicanos convictos, mas entendo que aquelles que professam essas idéas não podem, nem devem, ir sentar-se nos conselhos da corôa. (Apoiados.)

Eu, sr. presidente, que sou sempre dos primeiros a testemunhar a minha consideração pelas convicções dos homens que defendem as diversas escolas politicas, porque admiro a firmeza de principios de cada um, não posso imaginar que hoje, no poder, elles vão pôr em pratica idéas contrarias ás que hontem advogavam. Por outro lado, não posso admittir que homens que se sentam n'aquellas cadeiras, deixem de ir para ali com a consciencia dos seus deveres, e compenetrados das obrigações que lhes impõe um poder que não conquistaram, e que receberam das mãos do augusto chefe do estado.

Não podia eu, portanto, acreditar que o partido da Granja viesse ao poder com o proposito de fazer vingar as aspirações do seu programma, aspirações que eu não quizera ver postas em pratica, porque trariam talvez á nossa patria commoções funestas. Sem renegar as suas idéas, julguei que tinham adiado a sua execução. Ao ver, porém, que se pretende destruir a auctoridade da camara, na propria occasião em que se lhe vem pedir o voto, não póde deixar de me occorrer, que se pretenderá todos os dias querer destruir alguma cousa mais.

Ora, sr. presidente, eu não posso negar ao governo o direito de empregar os meios legitimos para que prevaleçam as suas idéas sobre administração; mas usem d'elle sem ameaças, que aliás não intimidam ninguem; usem d'elle sem nos vir recordar um programma que tende a reformar tudo ao mesmo tempo, e cuja execução seria o transtorno de muitos serviços e a subversão das instituições politicas da monarchia.

Sr. presidente, quem quer reformar tudo não reforma nada, e levanta contra si tantas opiniões que se julgam affrontadas, e tantos interesses que se julgam feridos, que formam uma atmosphera de resistencia diante da qual ficam quasi sempre compromettidos os reformadores e as reformas.

Um dos homens mais distinctos d'esta epocha, que é um dos primeiros da Inglaterra, mr. Gladstone, viu compromettida a sua administração na opinião dos seus proprios admiradores, por ter pretendido reformar tudo ao mesmo tempo.

E se é licito a um homem publico fazer a critica dos seus proprios actos, permitta v. exa. que eu lhe diga que eu e os meus collegas commettemos em 1867 o mesmo erro quando pretendemos fazer muitas reformas simultaneas.

Ferimos interesses, e levantamos susceptibilidades; e maior que fosse o nosso amor de gloria, a de bem servir o paiz, unico estimulo que nos impellia, é forçoso confessar que creámos difficuldades que tornaram embaraçosa a nossa situação.

Sr. presidente, peço licença ao illustre ministro, cujo caracter respeito e cujo talento admiro, mas com cujas opiniões não concordo, para lhe dizer que não fui eu que vim fallar no programma, mas que, uma vez que s. exa. fallou n'elle, eu ouso recordar os auctorisado commentarios que o precedem.

Não vinha, nem venho, fallar no programma no momento de discussão de um projecto, que para mim tem pouca importancia, mas que para outros tem muita, a avaliar pelos largos discursos a que tem dado logar. Sinto, porém, que o sr. ministro n'aquella allusão formulasse uma ameaça a esta camara, que está constituida, segundo o systema que nos rege, que é filha da prerogativa real, é certo, mas que é independente, e não significa a representação de nenhum partido exclusivo. (Apoiados repetidos.)

E para que não fique duvida, nos espiritos mais desconfiados, permitta-me v. exa., sr. presidente, que eu leia os commentarios feitos a esse programma na parte que diz respeito a esta assembléa legislativa:

«A camara dos pares, nascida da prerogativa real, dirigida e aconselhada pelos ministros, ou da cega designação de hereditariedade, não representa nenhum elevado interesse nacional, nem póde ter, em principio, a independecia e a auctoridade necessarias para conter as demasias ou reprimir as funestas tendencias do governo.»

Sr. presidente, quando se escreve isto, quando alguns dos membros mais importantes d'este gabinete tem commentado por tal modo a parte do programma politico que diz respeito á camara dos pares; quando se diz que ella não tem auctoridade, nem independencia, embora ainda hontem a tenham acrescentado com vinte e seis dos seus melhores amigos, a allusão a esse documento constitue uma affronta; que não póde passar sem protesto. (Apoiados repetidos.)

Se foi para reforçar a auctoridade da camara que o governo metteu aqui vinte e seis pares, nada tenho que dizer, porque os respeito a todos, e nunca são de mais n'esta casa as capacidades e talentos, que em muitos reconheço. Se houve, porém, intenção de occorrer á falta de independencia, de que nos accusam, permitta me v. exa. que eu assegure ao nobre ministro que por mais elevados que sejam os caracteres d'aquelles cavalheiros, esta camara ficou tão independente como d'antes era. (Apoiados.}

Sr. presidente, estou fallando n'este assumpto de passagem, porque elle não faz objecto da discussão que nos occupa. O meu discurso devia ter por fim sómente fundamentar o meu voto. Mas a fallar a verdade, eu não podia deixar passar em silencio a ultima par e do discurso do nobre ministro da fazenda, que realmente foi sobre posse, permitta-me que o diga, porque a provocação veiu do seu lado, e o que se discutia não era nem o programma chamado Granja, nem o nome proprio de cavalheiros que não têem assento n'esta assembléa.

O sr. ministro da fazenda, sem precedentes que a isso o obrigassem, sem rasão conhecida que o impellisse, veiu aqui fallar no programma do seu partido, e tecer elogios a pessoas que se associaram ás ameaças que n'esse programma se faziam a esta camara.

Esses nomes podem representar caracteres que na sua vida privada sejam dignos de consideração, e que possuam até qualidades, como particulares, que eu não contesto, nem discuto, mas debaixo do ponto de vista politico, unico em que nos é licito tratar das cousas e dos ho-

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mens n'esta casa, os precedentes politicos que se referem a algum d'esses nomes, não são de tal natureza que permittam a um ministro da corôa vir aqui fazer a sua apotheose.

Sr. presidente, agora fallo desassombradamente. Quando estava nos bancos do poder tinha rasões especiaes, motivos de ordem publica, e de alto interesse do estado, que me obrigavam a medir as palavras e a pronuncial-as no sentido mais restricto; hoje, porém, que respondo por mim, só por mim, e que não tenho outra medida para a expressão do meu pensamento que não seja o respeito que devo a v. exa., á camara, e a mim proprio, posso saír dos estreitos limites em que era obrigado a conter-me, quando ministro, e apresentar as minhas idéas com a liberdade de que disponho e com a isenção que me é propria.

Sr. presidente, tenho bem presente na memoria que quando estava occupando aquellas cadeiras se levantaram vozes severas, auctorisadas e catonianas, accusando-me de não mandar perseguir, perante os tribunaes, os periodicos que publicavam certos artigos escriptos por alguem que hoje merece os elogios do sr. ministro da fazenda...

O sr. Conde de Rio Maior: - Peço a palavra.

O Orador: - Artigos em que se offendiam as mais elevadas instituições, em que se atacava a corôa. (Apoiados.)

Eu era accusado, e quasi declarado cumplice dos auctores d'esses artigos, porque não usava contra elles dos meios que as leis facultam para os fazer processar nos tribunaes competentes.

Eu defendia o meu procedimento fundando-me na estima e no respeito publico para com o chefe do estado, o qual estava muito acima das injurias que lhe eram dirigidas. (Muitos apoiados.)

Eu não podia querer que um nome augusto se discutisse nos tribunaes. Vedavam m'o altas rasões de interesse politico de ordem publica.

Assim respondia eu aos meus illustres adversarios, que se não conformavam com este meu procedimento, e me invectivavam por causa d'elle.

Na presença d'estes factos recentes, como não me surprehenderia o silencio com que foram hontem recebidos na camara os elogios do sr. ministro da fazenda á pessoa que, em logar de penna escrevia com um estylete para ferir o
mesmo rei de quem s. exa. é ministro!

Sei dizer tudo, e hei de dizer tudo que entendo, porque tudo se póde dizer n'esta casa, uma vez que não offenda ninguem, e que guarde o respeito devido á assembléa e ás conveniencias parlamentares.

O facto a que alludo deixou-me profunda impressão, e não pude resistir ao desejo de levantar as palavras do nobre ministro da fazenda. Se não o fizesse faltava ao que devo a mim, e ao respeito que tenho pelas instituições e pela liberdade, porque a liberdade não póde ser nunca a licença. (Apoiados.)

Declaro que não sou pelo abuso, mas sim pela liberdade da manifestação do pensamento. Essa manifestação póde n'uma ou n'outra vez dar logar a injustiças e perigos, mas ainda é mais injusto e perigoso supprimil-a ou manietal-a.

Não costumo discutir a imprensa. Sabem-no todos os homens publicos que me conhecem ha longos annos. Abstenho-me de responder a ella no parlamento, não porque deixe de respeitar a instituição, mas porque entendo que ás suas demasias, aos seus erros e ás suas inconveniencias só se responde na mesma tribuna. Ahi tenho sido gravemente offendido e atacado por alguns dos meus adversarios, que desde muito tempo têem tomado a seu cargo ferir-me no mais profundo da minha consciencia, da minha dignidade e da minha honra!

Nunca vim á camara levantar essas offensas, nem repellir as phrases de que fôra victima.

Mas não se trata d'isso agora, trata-se de uma questão havida n'esta casa, trata-se de uma accusação de que fui objecto, não na imprensa, mas aqui; e n'este caso, nem a camara, nem o governo, nem o sr. ministro da fazenda deverão estranhar que eu levantasse as palavras de s. exa. e procurasse explicar a triste impressão que me fizeram.

Este incidente está findo; e ainda que eu pareça um pouco apaixonado, no negocio que se discute, não tenho senão o sentimento da rasão que me anima.

Estou a sangue frio, e as questões que nos occupam devem ser tratadas friamente.

Ás vezes um incidente politico, da ordem d'este, póde obrigar o orador a levantar um pouco mais a voz do que levantaria em qualquer outra occasião, em quaesquer outras circumstancias; porém a rasão serena que deve esclarecer-nos, e presidir aos debates parlamentares, é a que eu procurarei que me seja inspiradora nas poucas palavras que tenho de dizer á camara sobre o assumpto que propriamente se ventila.

E foi talvez bom que me coubesse a palavra, tendo passado vinte e quatro horas depois do discurso do nobre ministro da fazenda.

Se eu hontem tivesse fallado em seguida a s. exa., que, como orador parlamentar experimentado, costuma, se assim lhe convem, esperar que dê a hora para terminar o seu discurso, é provavel que me mostrasse mais severo do que fui hoje. Depois talvez me arrependesse no remanso do meu gabinete.

A violencia não convence, e a paixão é má conselheira. Assim foi melhor.

Nós estamos discutindo o projecto de lei que tem por fim auctorisar o governo a proceder á arrematação do imposto do real de agua por concelhos, por grupos de concelhos ou como se entender mais conveniente; mas, digamos a verdade, esta discussão tem ficado um pouco eclipsada no meio da questão geral de fazenda, que, embora não viesse muito apropriadamente para o assumpto que se discute, não póde, comtudo, entender-se que lhe seja estranha, porque, emfim, trata-se de impostos e da administração d'elles.

Ainda a proposito, peço licença para observar que me pareceu que o nobre ministro da fazenda se tinha referido á iniciativa especial da camara dos senhores deputados em materia de imposto, não dizendo que negava á camara dos pares o direito de examinar questões d'esta natureza, mas fazendo-lhe sentir como é que na constituição do estado se achavam descriminadas as attribuições das duas casas do parlamento.

Na verdade é assim. Todos sabem que a iniciativa sobre impostos e recrutamento compete exclusivamente á camara dos senhores deputados; ninguem o contesta.

Mas não se póde negar, creio mesmo que ninguem tentou negar jamais, que a camara dos pares tenha direito de examinar as propostas que vem aqui, sobre taes assumptos, de as discutir, e de as approvar ou rejeitar, como melhor o entender.

Se assim não fosse, esta camara seria unicamente uma chancella dos srs. ministros e da camara dos senhores deputados; e por mais respeitaveis que sejam os homens que estão á frente do poder, e os que compõem a outra casa do parlamento, a camara dos pares não póde, sem abdicar a sua dignidade politica, prescindir das attribuições que lhe confere a constituição do estado, que fez d'ella um ramo do poder legislativo.

O objecto d'este debate é puramente de administração. Trata-se de um imposto já estabelecido, e simplesmente do systema preferivel da sua arrecadação, de modo que não pude perceber o alcance da allusão do sr. ministro da fazenda á iniciativa especial da camara electiva, quando effectivamente se não tratava de propor aqui um imposto, mas de discutir um projecto de lei vindo da outra camara, em que se consigna o methodo de fazer a arrecadação d'esse imposto.

A proposito devo declarar á camara que tenho por cos-

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tume sustentar na opposição as idéas que sustentaria no governo, e dizer a amigos e adversarios, como penso a respeito das diversas questões de administração e fazenda. Tenho sempre procedido assim, e todas as vezes que por uma circumstancia politica, ou por um incidente parlamentar, tenho tido a honra de tomar parte nos conselhos da corôa, nunca ahi reneguei as idéas que anteriormente sustentava. Posso affirmar isto em abono da minha coherencia de homem publico, de que ninguem póde duvidar, porque está consignada nos factos.

Não venho pois combater o principio do imposto, nem a necessidade d'elle, não venho proclamar que o governo póde passar sem se lhe votarem impostos, que a situação da fazenda não exige que se peça novos sacrificios ao contribuinte, ou que a questão financeira se póde resolver unicamente por meio de economias; nada d'isto venho dizer porque seria absurdo, e para mim sobretudo uma falta de coherencia insustentavel. Tenho desde longos annos pugnado quanto posso para que cheguemos ao equilibrio tão desejado da receita com a despeza, como attestam os meus discursos e os meus relatorios, a que o sr. ministro da fazenda me fez a honra de se referir. Os meus amigos politicos e eu, todas as vezes que temos estado á frente da administração, temo-nos empenhado constantemente em elevar a receita, e em diminuir a despeza.

Isto é uma verdade, apesar de tudo que se terá dito em contrario. Os factos fallam mais alto do que todos aquelles que os contestam, e demonstram-no com uma eloquencia irresistivel.

Quando em 1867, eu tinha a honra de gerir a pasta da fazenda, vim ao parlamento pedir que votasse impostos, mas pedi-o depois de termos eu e os meus collegas no gabinete apresentado na despeza uma reducção de mais de 600:000$000 réis.

Essa redacção não era uma verdadeira economia, em toda a sua extensão, mas affectava o orçamento como se o fosse, e representava em todo o caso diminuição na despeza publica.

Em 1851 e 1852, e no ultimo ministerio a que tive a honra de pertencer na qualidade de ministro da fazenda, procedi de igual maneira.

Foi depois d'estas reducções em 1867, em que só no ministerio da fazenda propus a suppressão de cento e quarenta empregos, que eu vim pedir ao parlamento a votação do imposto; foi só então que appellei para o contribuinte.

Mas ha homens para os quaes se fabrica uma certa reputação, procurando indispor a opinião publica contra elles. Eu sou esbanjador. Já toda a gente o sabe. É este o meu crime, e alguma vez terá sido tambem a minha gloria.

E por que sou eu esbanjador, sr. presidente? Porque tenho trabalhado quasi toda a minha vida, conjunctamente com os meus amigos, para dotar o paiz com os melhoramentos de que elle carece. Posso ter excedido as auctorisações concedidas, posso ter gasto mais do que as sommas que estavam votadas, posso ser increpado por não ter adiado para mais tarde esses melhoramentos; serei condemnado diante da stricta legalidade, porém a minha consciencia absolve-me, e a consciencia publica absolver-me-ha tambem ao contemplar a transformação economica, e a satisfação de necessidades imperiosas, que o paiz ha tanto tempo reclamava.

Eu que conheço, como v. exa., e como muitos outros, as exigencias da civilisação em todos os povos da Europa, não podia resignar-me a ver o meu paiz, que caminhou outr'ora na vanguarda de todas as conquistas, atrazado e decaído a tal ponto, que nos fizesse envergonhar á face do mundo.

Os esbanjadores têem gasto muito, mas o que têem gasto tem sido em proveito publico, e no intuito de dotar o paiz com caminhos de ferro, com estradas, com telegraphos electricos, com marinha de guerra, com armamento do exercito; com todos os elementos em fim de civilisação e progresso, á altura da epocha em que vivemos.

Sr. presidente, li com toda a attenção o relatorio do sr. ministro da fazenda, e a justiça, que é devida a todos, e que no meu animo tem um imperio irresistivel, manda que eu diga que é um trabalho que muito honra s. exa. Não posso dizer mais.

Vê-se que o nobre ministro tem os melhores desejos de acertar e de ser util ao paiz. Sustentam-se ali doutrinas, com algumas das quaes não concordo, mas que revelam aturado estudo, digno, sem duvida, de ser apreciado pelo parlamento. Mas com toda a franqueza direi á camara, que a minha admiração pelo relatorio não é extensiva ás propostas apresentadas pelo nobre ministro, e não me parece que, em geral, possam ellas devidamente merecer a approvação d'esta assembléa.

Reconheço que o sr. ministro da fazenda, alem dos seus elevados talentos e da sua palavra fluente, tem perfeito conhecimento dos estudos economicos de que dá prova incontestavel nos seus discursos e no seu relatorio; como é pois, sr. presidente, e por que inexplicavel fatalidade s. exa. com tantos dotes e qualidades, foi escolher, para trazer ao seio do parlamento, os impostos mais onerosos, mais vexatorios, mais reprovados por todos os economistas, e até mais em contradicção com as constantes affirmações de liberalismo do partido politico de que s. exa. faz parte!

O sr. ministro da fazenda é progressista; não sei até se é radical; mas o que sei, o que é verdade, o que maravilha a todos, é como s. exa. julga servir as idéas do seu partido, propondo a arrematação de rendimentos publicos! É a restauração do antigo regimen, ha muito banido da nossa legislação fiscal, resuscitado agora á voz do sr. ministro em nome das aspirações progressistas, e á sombra da influencia de um gabinete representante d'aquelle partido.

Progresso para traz, progresso que nos faz retrogradar dez ou vinte annos, e que vae desenterrar processos obsoletos e condemnados em nome da liberdade.

Não é nova a arrematação entre nós; não é uma experiencia, porque está experimentada, e todos sabem que deu mau resultado.

O nobre ministro, porém, não se contentou com esta medida; recorreu tambem ao imposto de exportação. Tributou a exportação do gado e da cortiça, que são duas fontes da riqueza do paiz.

S. exa. não encontrou nas suas largas faculdades, e no conhecimento que tem do que se passa na Europa, desde Lisboa até Constantinopla, outros impostos que podessem substituir os da cortiça e do gado; nem se lembrou que tributar a exportação dos generos de que o paiz não tem o monopolio, é contrario a todas as regras economicas.

O sr. ministro foi ainda mais longe. Apresentou uma proposta de lei tributando a importação do carvão de pedra, que não só é materia prima de todas as industrias, mas que tambem é materia prima da navegação transatlantica, de que o porto de Lisboa é escala forçada.

S. exa., tratando do imposto sobre o carvão de pedra, referiu-se a informações de pessoas muito auctorisadas.

Não contesto essas informações, não as vi, não posso fazer juizo sobre ellas, mas o que eu vi em um jornal que se publica em Vigo, e que se chama O Pharol de Vigo, é o seguinte, que peço licença para ler á camara.

(Leu.)

Ora, sr. presidente, este artigo deve chamar a attenção do governo, porque o que n'elle se lê é noticia corrente n'aquella praça, aonde os vapores das companhias transatlanticas naturalmente hão de ir metter carvão. Mas, ainda que não se encontrasse este artigo no jornal de Vigo, nem por isso deixariam todos de comprehender que os vapores hão de procurar os portos aonde tiverem menos encargos, e que o de Lisboa ha de ficar privado das vantagens que até agora tem auferido.

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Lamento, pois, a posição fatal em que s. exa. se acha collocado...

O sr. Ministro da Fazenda (Barros Gomes): - Peço a palavra.

O Orador: - Posição que o leva a tributar o carvão de pedra, que é materia prima de todas as industrias e um elemento essencial da navegação transatlantica, que tanto anima o porto de Lisboa.

Resta ainda o imposto de rendimento, que me parece que está condemnado pelo proprio sr. ministro.

S. exa., que nos seus arredondados discursos (oxalá que eu os podesse fazer assim), tem por mais de uma vez dito ao parlamento que consente em que nas suas propostas se introduzam, modificações, emendas ou additamentos, mostra, comtudo, o maior empenho em que todas ellas sejam acceites, embora por este modo transformadas, ou substituidas, prestando-se para o conseguir a ir ao seio das commissões para discutir com ellas.

O desejo do sr. ministro de ver as suas propostas approvadas é perfeitamente natural: porém, eu, sr. presidente, ao ver a disposição em que s. exa. está, ao que parece, de acceitar todas as emendas, atrevo-me a dizer que o systema fazendario do governo está de antemão condemnado até pelo proprio sr. ministro da fazenda.

E em vista das manifestações pacificas que apparecem todos os dias no paiz, e que se têem traduzido em representações dirigidas ao parlamento, e em artigos em que quasi toda a imprensa tem procurado demonstrar que a maior parte das propostas do governo não devem ser approvadas, estou convencido de que o governo melhor avisado andaria se reconhecesse a conveniencia de retirar, pelo menos, aquellas das suas propostas que mais têem sido combatidas, como, por exemplo, a do imposto sobre o carvão e a do imposto do rendimento; não para ficar sem o imposto, uma vez que se julga necessario pedir esse sacrificio ao contribuinte, mas para o ir buscar a outra parte.

Alem d'isso tem agora sobre os seus antecessores a grande vantagem de que nós não excitamos o paiz, não vamos aos comicios, nem aos meetings das praças publicas, discorrer contra os impostos; mas o que nós não podemos é evitar que a imprensa diga a sua opinião, quando vê tantas classes ameaçadas, e, por consequencia, ameaçados tambem os interesses do paiz; porque é esse um direito seu, e até um dever.

Tenho, sr. presidente, por mais de uma vez, sido combatido por agitações, que me têem obrigado a saír dos conselhos da corôa.

Sabe-se que em 1856 o ministerio, de que eu tinha a honra de fazer parte, teve de pedir a demissão por se ter visto na necessidade de recorrer ao imposto, e note-se que havia já annos que se não appellava para esse recurso.

Mais tarde n'um outro ministerio a que pertenci, sendo n'essa occasião ministro da fazenda um homem illustre, que então, e por muitos annos, militou na politica ao meu lado, tambem os ataques dos nossos adversarios, e as manifestações da opinião, excitada por elles crearam ao governo uma situação difficil; o gabinete pediu a demissão; n'esta conjunctura, (ainda que não foi precisamente essa a causa que nos fez saír do ministerio), e foi v. exa., sr. presidente, que succedendo-nos no poder, teve o alto bom senso e a illustrada politica de acceitar algumas das propostas d'aquelle distincto homem d'estado a que me refiro, o sr. conde do Casal Ribeiro.

Mais tarde, sr. presidente, sendo eu ministro da fazenda, vim pedir ao parlamento que me votasse as leis que julguei necessarias para habilitar o thesouro a satisfazer os seus encargos, e n'esse tempo prepararam-se agitações em differentes pontos do paiz, com o fim de derrubar o governo, e impedir a cobrança dos impostos, insinuando-se ao povo que não devia pagar nem mais um real.

Podia o governo ter combatido essa agitação; mas as resistencias que se esmagam levantam-se algumas vezes mais tarde e mais fortes, sobretudo quando têem por ponto de apoio o interesse immediato do contribuinte.

O governo retirou-se então do poder, e todavia a verdade exige que se diga que foi uma causa altamente constitucional, mas estranha á agitação, que determinou precisamente o nosso procedimento, como por mais de uma vez o tenho declarado n'esta camara.

Não se póde negar que os srs. ministros gosam de uma grande ventura, que eu não peço que me agradeçam, mas o facto é, sr. presidente, que nós não promovemos meetings, não assistimos a elles, não fazemos agitação, nem proclamâmos ao povo dizendo-lhe que não pague.

Em confirmação d'isto invoco o testemunho de todos os dignos pares que me escutam. Eu combato aqui no meu logar, onde tenho o direito e o dever, de fallar ao paiz, e não escrevi uma linha, nem disse uma palavra ainda fóra d'este recinto que tendesse a excitar as paixões populares. Não me aconteceu outro tanto, como ha pouco demonstrei com a narração de alguns factos, porém não quero seguir os exemplos que me deixaram.

Sr. presidente, ha vinte e oito annos escrevia eu n'um documento que ficou notavel, não, por ser escripto por mim, mas por ter ficado como bandeira de guerra, a seguinte phrase, que ha muito está justificada: «O povo póde e deve pagar mais». Que fez então a opposição? Procurou tornar-me odioso ao paiz, e paraphraseando o que eu escrevêra, proclamava-se o contrario, dizendo «o povo não póde, nem deve pagar mais um real». E isto repetia-se em todos os tons a um governo que tinha reduzido desapiedadamente as despezas publicas, que dera um golpe mortal no deficit, e que afrontava as iras dos mais poderosos interesses nas pessoas ou corporações que os representavam. Esse governo, comtudo, era forte pela opinião que nos bafejou durante muitos annos, embora os nossos adversarios procurassem tornal-o odioso, dizendo que queria tirar a pelle ao povo!

Quem me havia de dizer, sr. presidente, que no fim de vinte e oito annos eu estaria n'esta tribuna, encontrando em frente as reliquias do partido que então me combatêra, pregando hoje a necessidade dos impostos, e empenhando todas as suas forças para que sejam votados!

Sr. presidente, ainda ha pouco tempo se escrevia, e dizia publicamente, até nas casas do parlamento, que o paiz estava é beira de um abysmo, e que ou se havia de pedir ao paiz 4.000:000$000 réis de impostos, ou decretar a bancarota.

D'este dilemma não se podia saír. Isto dito por um homem auctorisado entre as phalanges ministeriaes, e repetido pelos membros de um partido, que se acha representado no poder, impunha aos srs. ministros obrigações indeclinaveis.

A final o que aconteceu? Não veiu a bancarota, nem se pediram os 4.000:000$000 réis nem cousa que se pareça com isso.

Depois mostrarei o pouco valor effectivo do que se propõe, ainda que a camara o sabe perfeitamente.

Ora, quando se diz que é preciso pedir ao imposto 4.000:000$500 réis, ou caír na bancarota; quando se tem esgotado, e n'essa parte faço justiça ao sr. ministro da fazenda, todos os meios de fazer economias, porque fazer economias não é atrophiar os serviços publicos, nem destruil-os; quando se tem chegado ás regiões do poder com o fim determinado de fazer as maiores reducções nas despezas, tendo empenhado n'isso os maiores esforços, diga-se a verdade: depois de tudo isto, é muito difficil ao sr. ministro da fazenda saír da posição em que se encontra. S. exa. declarou que ía dizer a verdade, e toda a verdade, como se nunca se tivesse dito até hoje; mas que verdade é essa que se diz?

Não basta declarar que se quer dizer a verdade, quando atrás d'ella, debaixo e ao lado d'ella, está alguma cousa, que tambem é verdade, e se não diz. E não se diz porque

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O sr. ministro da fazenda, apertado no leito de Procusto, onde o têem preso os compromissos temerarios no seu partido, não póde saír d'elle.

Sr. presidente, as economias que se apresentam não têem influencia alguma apreciavel sobre o deficit, que continuará a viver perfeitamente com ellas, e tanto mais, que me parece que já se não realisa uma certa economia de que muito se fallou, e em que eu cheguei a acreditar por um momento.

Refiro-me á reducção de despeza no ministerio da guerra, reducção que seria importante se fosse levada a effeito de accordo com as idéas e com as palavras auctorisadas do sr. ministro da justiça, que propoz, antes de ser governo, que se reduzisse o effectivo do exercito a 13:000 homens. Pensava eu que este ministerio, em vista de taes precedentes, aproveitaria o ensejo de dar um grande golpe na despeza publica, fazendo aquella reducção. Não o fez, porém, nem o faz, nem tem força para o fazer, nem era justo nem conveniente que se fizesse; porém os compromissos politicos devem valer alguma cousa para os homens publicos.

E quando digo que não tem força, não fallo senão da força moral que é precisa a um governo para que possa adoptar estas medidas radicaes. Para que uma situação tenha essa força é necessario que esteja consubstanciada com o sentimento popular, e que tenha um grande apoio, um apoio que não póde ser substituido pelas maiorias parlamentares.

Quantas vezes ouvi eu dizer aos cavalheiros, que se sentam nos bancos do poder, e aos que estão ao lado do governo, quando eu estava á frente dos negocios publicos dirigindo o gabinete a que presidia: «Enganae-vos, tendes maioria, mas isso não basta, porque é necessario o apoio do paiz»! É verdade, respondia eu, mas «emquanto tiver maioria em ambas as casas do parlamento, a confiança da corôa, e a convicção de que a opinião publica me não desampara, hei de conservar-me n'este logar». Reconhecia então, e reconheço ainda hoje, que essa entidade impalpavel que ninguem póde desprezar, e á qual todos curvam a cabeça, essa entidade que se chama a opinião publica, precisam os ministros tel-a de seu lado para poder governar constitucionalmente; mas tambem penso que é um meio de perder a força politica moral, praticar no governo o contrario do que se proclamou na opposição, dizendo, por exemplo, quando se combatiam os adversarios - é necessario reduzir a força do exercito a 13:000 homens - e quando se está no poder deixar ficar tudo como d'antes.

Que economias se têem feito no ministerio da guerra?

Os 150:000$000 réis, pouco mais ou menos, a que poderá montar a reducção do numero de 3:000 praças effectivas do exercito, ouço dizer - n'esta parte nada posso assegurar - ouço dizer, repito, que serão convertidos em melhoramentos d'aquelle ministerio. E ainda bem.

As profundas economias ali effectuadas, segundo o elogio que o sr. ministro da fazenda, na sessão de hontem, dirigiu ao seu collega, consistem em não gastar nem mais um real do que está no orçamento. Excellente resultado!

«Mas o orador gastou mais». Gastou e confessa esse peccado, mas fez alguma cousa de bom.

E quando se espalha por ahi que o nosso exercito está desarmado, que não temos artilheria, que não ha elementos de resistencia, falta-se á verdade, abusa-se da credulidade publica; o que tambem não quer dizer que tenhamos um exercito que possa equiparar-se aos melhores de entre as nações da Europa. Ainda nos resta muito que fazer, e nada conseguiremos n'esse sentido, se não despendermos valiosas quantias. Convençam-se d'isto.

Eu gastei em armamentos, gastei em fortificações, n'essas obras de defeza do paiz, cujo pensamento é originariamente de um homem dos mais benemeritos de Portugal, o sr. marquez de Sá da Bandeira, que muitas vezes n'esta instou pela sua realisação com todos os ministros que se achavam dirigindo a pasta da guerra. Fui eu o primeiro que secundei os desejos d'aquelle valente general; foi no tempo da minha gerencia que começaram as obras das fortificações, com certo desenvolvimento, chegando a um tal estado que o proprio sr. ministro da guerra não quiz obtemperar á idéa de suspendel-as, porque, se o tivesse feito, inutilisaria uma grande parte dos trabalhos, perdendo-se importantes sommas n'elles despendidas.

É falsa a idéa de que na occasião de perigo o paiz se ha de levantar como um só homem, e que nada mais se precisa.

Os paizes levantam-se como milhares de homens, e entram em campanha; mas, para que assim procedam, necessitam estar providos de grandes e poderosos armamentos e solidos meios de defeza; não é com 150:000$000 réis, destinados a melhoramentos no ministerio da guerra, que se ha de fazer cousa de verdadeira e effectiva importancia.

D'este modo, senhores, não tereis nem melhoramentos, nem economias, porque quando essas economias se reduzem a não gastar mais do que está determinado no orçamento, de certo que o deficit tripudia com ellas.

Mas que quereis vós que vos aconteça, se lançastes á terra estas sementes que tendem naturalmente a fructicar, e hão de produzir fatalmente os seus resultados inevitaveis?

Que quereis vós que vos aconteça, se na opposição proclamastes que era necessario fazer economias profundas, quando é certo que com ellas não podereis resolver a questão financeira?

Que quereis que vos aconteça quando passastes annos a combater todos os impostos?

Contae bem e vede quantos tendes a vosso lado que, n'esse empenho de tributar, vos acompanham levados por uma convicção profunda!

Com o meu voto, com o dos meus amigos, podeis contar, é certo, comtanto que os impostos que propozerdes sejam acceitaveis.

Estariamos ao vosso lado se assim o fizesseis; mas desde que se restaura em principio a arrematação, que não dá nem mais um real ao thesouro, em nome de um deficit que se está todos os dias avolumando, para levar a consciencia publica a acceitar os encargos, ah! n'esse caso não podemos seguir-vos em tal caminho, nem me parece possivel por similhante modo levar facilmente o contribuinte a reconhecer agradecido o serviço que lhe fazem os homens que estão hoje á frente dos negocios publicos, lançando impostos d'esta natureza.

É um systema de governo que não comprehendo bem.

Devo dizer á camara, unicamente para mostrar a minha imparcialidade e a rasão do meu procedimento, e provar que a minha convicção ácerca do assumpto de que trata o projecto, não é de hoje, que em 1867, n'um relatorio que apresentei ao parlamento, e que o actual sr. ministro da fazenda por vezes tem mostrado que me fez a honra de o ler atentamente, o que aliás não esperava, porque conheço a insufficiencia do que escrevo, devo dizer, repito, que n'esse relatorio comprometti eu o meu voto n'esta questão, como todos podem reconhecer examinando aquelle trabalho.

Pelas palavras que ali se lêem é facil conhecer qual é a minha opinião com respeito á arrematação d'este imposto, opinião que não renego, porque é filha do estudo e do exame dos negocios.

Lê-se no relatorio de 1867, a que me refiro, o seguinte:

«O producto do real de agua é de cêrca de 150:000$000 réis annualmente. O modo da percepção d'este imposto tem sido, por via de regra, a arrematação. Apenas nos ultimos annos, em alguns poucos districtos, foi arrecadado directamente pela fazenda. Este expediente não deu mau resultado, e deve animar-nos a empregar o mesmo systema, unico admissivel n'um paiz constitucional, na cobrança do

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imposto do consumo que deve substituir os impostos existentes.»

Aqui está o que eu escrevi em 1867.

Declarava que na minha opinião a fiscalisação por conta do estado em relação ao imposto de consumo era o unico meio de arrecadação que se podia estabelecer n'um paiz constitucional.

Esta era a minha opinião n'aquelle tempo, e conservando-a e mantendo-a, não posso evidentemente dar o meu voto ao projecto em discussão. O abuso que a auctoridade póde fazer da faculdade de arrematar, ou não arrematar este imposto, n'um ou n'outro concelho, ou em dois concelhos reunidos, como lhe convier, é de simples intuição.

Esta faculdade nas mãos de um governo que queira abusar d'ella, e devo dizer que não me refiro n'estas palavras precisamente ao governo actual, é uma arma terrivel, sobretudo n'uma epocha de eleições. (Apoiados.)

O que não póde um governo fazer com essa arma? Póde arrematar quando entender, e dar a arrematação quando lhe convier, e até certo ponto a quem lhe convier; póde deixar de arrematar se isso for mais vantajoso á sua politica.

Todos sabem que isto é possivel. E o que farão estes mandões locaes que a arrematação do real de agua tiver creado? Que uso e que funesto abuso poderão elles fazer da influencia que a arrematação lhes confere!

É este poder, esta influencia immensa, que eu não desejo ver nas mãos de um governo pouco escrupuloso.

N'um paiz regido por instituições representativas, o systema de arrecadação por conta do estado é o unico adoptavel. E ainda digo mais, sr. presidente, digo que ou o imposto ha de render o mesmo que hoje rende, e por consequencia não vale a pena approvar o projecto, ou ha de render menos se o projecto for approvado.

Pois o que é o arrematante senão um intermediario entre o estado e o contribuinte? O arrematante ha de necessariamente ter um lucro que lhe convenha, aliás não arremata. Em negocios d'esta natureza, em que ha risco, em que se grangeia certa animadversão, em que se adquirem malquerenças, e em que alguns têem sido victimas, o lucro de 10 por cento é modesto para o que o arremantante ha de querer ganhar.

Alem d'isto, sr. presidente, o arrematante precisa ter uma fiscalisação, ou adoptar o systema de avenças; em ambos os casos, no preço da arrematação irá esta despeza ou o seu equivalente, e, por pequena que ella seja, nunca poderá subir a menos de 6 ou 8 por cento.

Este imposto já rendeu em annos anteriores 800 e tantos contos, e se ultimamente tem baixado é em consequencia, principalmente, das más colheitas. É necessario, portanto, que o imposto renda, proximamente, 1.000:000$000 réis para o estado poder receber não mais, mas o mesmo que recebia até agora, visto que temos a deduzir do producto do imposto o lucro do arrematante.

É isto o que se deprehende dos factos conhecidos, dos documentos officiaes e das experiencias já feitas.

Quando o sr. conde de Valbom dirigiu os negocios da fazenda em 1863, mandou, como já disse, proceder á arrecadação por conta do estado em cinco districtos, que foram Lisboa, Leiria, Santarem, Vianna do Castello e Castello Branco. O que aconteceu? Foi que essa fiscalisação deu mais resultado do que por arrematação se cobrava. O imposto era o mesmo do real de agua, como na actualidade, era da mesma natureza, recaía quasi nos mesmos generos, embora muito menor, e o que succedeu? Reconheceu-se que a arrematação dava resultados inferiores á fiscalisação por conta do estado.

Se nós temos a experiencia, que nos faz conhecer a priori o resultado que se poderá obter, se sabemos que o arrematante ha de embolsar um lucro certo, e ha de gastar na fiscalisação uma determinada quantia; é claro que não sou temerario em dizer que o imposto, ainda que chegue a render 1.000:000$000 réis, não produzirá para o estado quantia superior á que tem produzido até hoje.

N'este caso pergunto: Vale a pena ir sobrecarregar o contribuinte com os vexames resultantes da arrematação sem que o thesouro obtenha rendimento superior ao actual?

Peço francamente ao sr. ministro da fazenda, por que não tenho empenho em contrariar as suas idéas financeiras, nem mesmo os seus expedientes, que não faça politica d'esta questão, que eu tambem a não faço.

Tenho dito mais de uma vez n'esta camara, que não é possivel organisar as finanças emquanto com ellas se fizer politica.

E não se diga que a estou aqui fazendo agora, quando não faço mais do que emittir singelamente a minha opinião. O desejo de não fazer politica não me póde levar tão longe que me obrigue a dar o meu voto a medidas que eu julgo prejudiciaes aos interesses do meu paiz.

Eu sou, sr. presidente, dos que julgam indispensavel que o contribuinte pague mais para attenuar ou extinguir o deficit, mas quando vejo um vexame que não produz nada para o thesouro, não o posso approvar, nem conformar-me com elle.

Prescindir de uma proposta qualquer não é desaire para ninguem, e o proprio sr. ministro já declarou que estava prompto a acceitar todas as emendas, modificações ou additamentos, que podessem aperfeiçoar os seus projectos tributarios. Então, porque não ha de este negocio voltar novamente á commissão?

Não faço nenhuma proposta n'este sentido, mas desejava que o projecto ali voltasse, porque queria approvar uma medida que fosse devidamente estudada, (Apoiados.) embora ficasse para mais tarde a resolução d'este assumpto. (Apoiados.)

Se o governo viesse aqui e dissesse: «Estas são as tábuas da lei, aqui não ha senão o crê ou morre, como se diz em Constantinopla», o caso era outro; porém o sr. ministro mostra-se docil, e nós devemos aproveitar tão feliz disposição. É por isso que se me afigura que s. exa., sem quebra da sua dignidade, podia acceitar a revisão d'este assumpto, a fim de chegarmos a um accordo plausivel que resolvesse a questão vantajosamente.

Sr. presidente, eu entendo que é um erro, que é uma inconveniencia, estabelecer escolas politicas absolutas e intransigentes, em finanças, e sobre tudo em materia de impostos.

Eu conheço a economia politica dos economistas, que é doutrinaria, e a dos governos e dos parlamentos, que é essencialmente pratica. Não vou para uma nem para outra cegamente, mas applico-lhe um coefficiente de correcção, que as torne acceitaveis, e applicaveis, conforme as circumstancias, que variam infinitamente.

E uma vez que estou faltando de impostos, direi que algumas vezes é necessario adoptar até aquelles que menos aconselhados são pelos economistas mais auctorisados. Aqui está porque eu em 1872 apresentei ás côrtes uma proposta de imposto sobre o sal. Pois eu não sou muito partidario d'aquelle imposto; conheço que elle póde ser vantajosamente atacado; mas ainda assim não pude impedir-me de querer tentar a experiencia d'esse imposto, que me parecia mais acceitavel e mais productivo do que o imposto sobre o rendimento.

Tenho tratado, em resposta ao sr. ministro da fazenda, unicamente de apresentar ao paiz a verdade, como ella se representa aos meus olhos, e julgo que é isto que se deve fazer.

Ora, eu não creio, nem o podem crer, nem o crêem, de certo, os homens que têem pratica dos negocios publicos, que a nossa situação economica e financeira seja tão má como s. exa. a descreve.

Propuz-me dizer poucas palavras, e comtudo as minhas reflexões já vão longas; entretanto espero que a camara

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me relevará o tempo que agora lhe tomo, attendendo a que raras vezes fallo. (Apoiados.)

Disse, pois, que ao imposto sobre o rendimento achava eu preferivel o imposto sobre o sal, imposto que eu não estou agora defendendo, nem propondo, porque eu sou francamente opposição, e ás opposições não compete fazerem propostas d'esta natureza.

Insisto porém, sr. presidente em que o imposto sobre o rendimento se presta ás mais serias objecções, sobretudo sendo rodeado de vexames, que são inseperaveis d'elle, e não indo produzir senão um pequeno recurso, que está muito longe de supprir as necessidades publicas. E tudo isto se póde provar ao governo.

Quanto ao projecto de arrematação do real de agua, note-se que n'este ponto nem fallo em nome da opposição, nem de meu partido, fallo em meu proprio nome; quanto á arrematação do real de agua, repito, estou convencido que não vae augmentar nada a receita do estado, antes renderá menos. Entretanto se o nobre ministro me provasse que produziria para a fazenda uma quantia avultada, a maior do que actualmente produz, eu, apesar de toda a repugnancia que tenho pelo systema de arrematação e como prova do que n'estes assumptos a todas as regras se póde applicar uma excepção em nome de um grande interesse publico, votava este projecto ao governo; o que eu não posso porém, é apoiar com o meu voto um projecto que auctorisa grandes vexames, e que deixa estacionaria a receita do thesouro! (Apoiados.)

Isso não se defende, nem se justifica. Eu não proponho, sr. presidente, o adiamento do projecto, porque não quero fazer propostas, mas desejava que todos se convencessem de que elle não contribue cousa alguma para melhorar as condições da fazenda publica. Só para conseguir este fim poderei eu votar quaesquer projectos, mas é necessario que d'elles resulte um acrescimo apreciavel de rendimento. Esses projectos votaria eu, reservando-me, já se sabe. o exame d'elles.

Ha um facto, sr. presidente, que se deve registar, que é muito satisfactorio, e de incontestavel importancia, e que consiste em ter diminuido no espirito do paiz o desfavor com que tem sido recebida sempre a questão do imposto. Não é para agora alargar-me em considerações a este respeito, porém folgo de notar este facto, devido sem duvida á insistencia com que todos os governos têem proclamado a necessidade de organisar a fazenda publica.

Essa necessidade comprovada e reconhecida por administrações de diversas proveniencias politicas, tem mostrado que o recurso ao contribuinte é inevitavel. D'ahi resulta que as representações que actualmente estão sendo apresentadas em ambas as casas do parlamento, o que se imprimem e publicam quotidianamente nos jornaes, representações de bastante importancia, porque partem de corporações respeitaveis, e porque representam muitas industrias e muitos interesses legitimos, essas representações, repito, quasi sempre concluem, não por negar a necessidade do imposto, mas pelo pedido de que sejam substituidos os projectos do governo por outros que não tenham iguaes inconvenientes, nem produzam vexames tão intoleraveis.

Esta consideração, que podia passar desapercebida, é pora mim de grande alcance, e considero-a como um passo dado no caminho da reorganização das finanças.

E eu celebro essa conquista da opinião, applaudo-a pela minha parte e não desejaria que perdessemos terreno n'este ponto; mas para isso é necessario não vexar o contribuinte, nem tão pouco proclamar-lhe que estamos á borda de um abysmo, quando assim não é, quando isto se diz unicamente para ferir, note bem a camara, os adversarios politicos, e fazer acreditar que elles deixaram um legado temivel, que colloca os srs. ministros nas maiores difficuldades, e os obriga a pedir sacrificios ao paiz.

Sr. presidente, se o legado era terrivel, podiam não o ter acceitado; ninguem os obrigou a isso. S. exas. estavam no seu direito em recusal o, e declarar que não podiam, ou não queriam, tomar sobre os seus hombros tão pesada cruz; mas uma vez que o acceitaram, para que vem agora dizer que são victimas das difficuldades da situação que deixámos?

Permitta-me o sr. ministro que lhe diga que um tal procedimento não me parece proprio de homens de governo.

Eu tenho muita consideração pelo sr. ministro da fazenda e admiração pelo seu talento, mas, a dizer a verdade, não comprehendo como s. exa. entende que póde haver solução de continuidade na entidade governo, que nunca morre, a ponto de vir assegurar ao parlamento e ao paiz, que a necessidade de recorrer ao imposto é devida á situação transacta! Onde iriamos buscar a responsabilidade primitiva, se cada uma das administrações a lançasse á conta dos seus antecessores?

Isto nunca se viu n'este paiz. (Muitos apoiados.)

Se vamos a fazer a historia retrospectiva, se vamos a examinar quaes os governos que tiveram de arcar com difficuldades ao tomar entregue da direcção dos negocios publicos, onde pararemos, ou qual será o ponto de partida para a discriminação de taes responsabilidades?

Está presente o sr. Anselmo Braamcamp, cavalheiro que muito prezo, e que considero sempre como amigo, apesar das nossas opiniões politicas nos separarem quasi sempre. Quando s. exa. foi ministro da fazenda de 1869 a 1870, tinha herdado uma situação extremamente difficil e desastrosa, a ponto de ser o governo interpellado pelos proprios ministros demissionarios no dia immediato á organisação do novo gabinete, sobre o modo por que havia de pagar certas letras que tinham vencimento proximo. Pois bem, o sr. Braamcamp n'um relatorio, que lhe faz honra, e que elle apresentou durante essa administração, como ministro da fazenda que então era, não lançou o odioso sobre os seus antecessores, sem embargo de luctar com um deficit muito maior do que o actual; disse, pelo contrario, que a culpa não era de certos e determinados individuos, ou de certos e determinados ministerios, mas da lei inexoravel dos factos, superiores aos melhores desejos.

Assim é que faz um homem da tempera e do caracter do sr. Anselmo Braamcamp. Quando é que não houve deficit? Desde quando? Pois, porventura, fomos nós que o inventámos? O deficit existe em Portugal, como em quasi todas as nações da Europa, e as nações vivem com elle como podem, e recorrem ao credito, e por fim ao contribuinte, que é quem, em definitivo, paga tudo.

Não ha nada mais commodo do que vir dizer ao paiz: «Nós não careciamos de impostos, mas os nossos antecessores de tal modo augmentaram as despezas publicas, que nos vimos forçados a recorrer ao imposto». E, de resto, querem v. exas. saber qual é o deficit accusado no orçamento? É de 3.400:000$000 réis. E não se diga que o reduziram já os srs. ministros, porque ainda se não votou uma unica lei que augmentasse a receita, nem diminuisse a despeza; os elementos são os mesmos que eram os do ministerio anterior.

Creio que é um erro gravissimo exagerar a situação da fazenda publica, que não é assustadora.

Esta é que é a verdade, e a verdade não consiste em representar como grande o que é pequeno, nem pequeno o que é grande. Para que havemos de estar a dizer cousas como ellas não são? Mas se o fim é ferir os antecessores! Ora isto é mesquinho, permitta-se-me a phrase, que me saíu involuntariamente, mas que traduz aliás muito bem a minha idéa; é mesquinho, mas é fatal.

Sr. presidente, os governos vivem do apoio de forças positivas ou de forças negativas, e o governo actual está no segundo caso. A sua força consiste na má vontade contra os adversarios. Todas as vezes que é preciso reunir as phalanges da maioria, e dar-lhes maior cohesão, accusam-se os antecessores, cessam as divergencias, e a situação

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fica momentaneamente mais forte. É por isso que eu chamo fatal ao expediente adoptado.

Eu respeito e considero muito a maioria da camara dos senhores deputados, porque entendo que, desde o momento em que os diplomas são approvados pelo corpo legislativo, são legaes, e estão ali os representantes do paiz. As eleições, porém, fizeram-se por tal fórma, sr. presidente, que os filhos da urna, em muitos casos, são mais representantes do interesses locaes, do que geraes, e não estão por isso ainda bem identificados com a politica da situação, nem afeitos á disciplina partidaria. Aos primeiros symptomas de hesitação, ou duvida, o governo atira-se á opposição como S. Thiago aos mouros, e tudo entra na ordem.

Nós somos victimas d'esta politica, que vive, como disse ha pouco, de uma força negativa, porque a força positiva só a podem dar as adhesões francas, desassombradas, cheias de convicção profunda, que se reunem á volta de um governo, e vivem e morrem com elle. Esta força só a póde dar a unidade politica, e os interesses locaes, por muito respeitaveis que sejam, nem sempre estão de accordo com ella.

O sr. Miguel Osorio: - Peço a palavra.

O sr. Presidente: - O digno par deseja que eu o inscreva a favor ou contra?

O sr. Miguel Osorio: - A favor.

O sr. Conde de Rio Maior: - Tambem peço a v. exa. que me inscreva a favor do projecto.

O Orador: - Examinemos agora a divida consolidada. Esta divida é o repositorio de todos os deficits accumulados durante longos annos, de todos os excessos de despeza não auctorisada, e representa, por um lado, o pagamento dos serviços do paiz, e por outro, os seus melhoramentos. Vem descripta nos encargos do orçamento da junta como attingindo a somma de 11.797:000$000 réis.

O sr. Marquez de Ficalho: - Peço a palavra.

O sr. Presidente: - A favor ou contra?

O sr. Marquez de Ficalho: - Contra.

O Orador: - O sr. ministro da fazenda depois de ter, em relação á divida fluctuante, feito diversas conciderações, achou que o encargo era de 2.889:000$000 réis.

Acceito os algarismos do orçamento. Não faço calculos meus. Bastam-me os elementos officiaes.

Mas d'estes encargos da junta hão de deduzir-se necessariamente 738:000$000 réis, que são os juros dos titulos de divida interna na posse da fazenda. Tem de se deduzir mais 28:000$000 réis, que procedem de bonds da divida externa, igualmente pertencentes ao thesouro.

Se deduzirmos ainda 70:000$000 réis de juros dos bonds da amortisação de 1845, cancellados e depositados no banco de Inglaterra, e a importancia das amortisações, teremos encargo effectivo da junta, 10:853:000$000 réis, que juntos a 2.889:000$000 em que o sr. ministro computa os juros da divida fluctuante, elevam a 13.742:000$000 réis o encargo da divida publica consolidada, interna e externa.

Quando o sr. ministro, no seu relatorio, querendo discriminar da receita publica o que fica disponivel para o pagamento dos differentes serviços, diz que os juros e encargos da divida absorvem 14.603:000$000 réis, não é rigorosamente exacto, e induz o leitor em erro, que não é inferior a 861:000$000 réis annuaes.

E comtudo, s. exa. insiste constantemente em que diz a verdade ao paiz.

Ora, a verdade não é precisamente essa, e por melhor que se explique o que lá está escripto, ainda é melhor não lançar no espirito publico a exageração que prejudica o credito.

Eu não me refiro nem ás observações feitas pelo sr. ministro, nem por pessoa alguma; retiro-me, para não caír em erro, ao que se lê no relatorio de s. exa., com relação ás despezas provenientes da divida publica. Diz-se ali que são 14.603:000$000 réis, mas n'estas despezas se comprehendem, como fica dito, 861:000$000 réis, que não podem ser computados para o effeito de aggravar a situação do thesouro, e esta somma corresponde ao capital de réis 28.700:000$000 réis, que não devemos, e que, portanto, é preciso abater do nominal da nossa divida. Já vê a camara que isto não póde ser indifferente, para apreciar com exactidão o estado da fazenda publica.

Aqui está a rasão por que eu disse que era necessario dizer a verdade toda ao paiz, mas não só meia verdade, e vendo as cousas por um unico lado.

Quando examinâmos um negocio, para conhecer a verdade, é como se vissemos uma estatua, ou um monumento, que é preciso ser observado por todos os lados, para que seja devidamente apreciado.

Na presença d'estes resultados, eu creio, sr. presidente, que o interesse do governo consiste mais em attenuar quanto possivel as difficuldades financeiras do que em exageral-as.

Não lhe aconselho, por certo, que falte á verdade dos factos, porém as mesmas, cousas ditas por diversa maneira produzem diversa impressão, e não se deve incutir a desconfiança na opinião publica, sobretudo quando não ha motivo justificado para isso.

Embora se diga que a nossa lingua é pouco conhecida na Europa, e que os nossos jornaes não são lidos lá fóra, isso não é rigorosamente exacto. Quem tem interesse nos nossos negocios examina o que se diz no parlamento e nos jornaes portuguezes, e principalmente o que traz o cunho auctorisado do governo, e é destinado a ver a luz publica. Por isso, repito, é conveniente, sem faltar á verdade, ter em consideração todas estas circumstancias, e fallar e escrever de modo que o publico não seja induzido em erro.

Eu creio sr. presidente, que nós teremos de recorrer ao credito ainda por muito tempo, não porque o deficit se conserve indefinidamente, porque elle póde extinguir-se, se o governo, ajudado pela opinião publica, levar por diante a promulgação de leis que produzam, pelo imposto, os meios necessarios para isso, mas no dia em que elle for extincto, o governo tornará a recorrer ao credito, porque não podemos parar no caminho encetado, e a pressão dos interesses nacionaes ha de ser bastante efficaz para obrigar os poderes publicos a continuar no desenvolvimento dos melhoramentos materiaes que o paiz reclama.

Ao principio fazia-se muita guerra a estas idéas, era preciso uma campanha para conquistar a opinião a favor dos melhoramentos materiaes, para convencer o publico da necessidade de fazer caminhos de ferro, por exemplo, e para que o paiz acreditasse na utilidade d'elles como um grande elemento de prosperidade. Foi preciso caírem ministerios, luctar-se constantemente na imprensa e na tribuna parlamentar, para levar a convicção aos espiritos de que Portugal não devia, nem podia ficar n'esta parte occupando um dos ultimos logares na escala das nações civilisadas.

Hoje não é preciso nada d'isso, pelo contrario, ha necessidade de temperar, de limitar as exigencias dos povos a este respeito, porque todos querem que a via ferrea passe proximo da sua terra, que a estrada venha até á sua porta, que a estação telegraphica não fique longe, emfim que se façam todos aquelles melhoramentos que são uma necessidade impreterivel da civilisação moderna. Ora se isto é assim, se todos exigem esses melhoramentos, se as colonias querem tambem que se lhes acuda com elles, se o paiz inteiro nutre estas idéas e não quer dispensar esses instrumentos de progresso, que elle sabe hoje perfeitamente serem um meio efficaz do seu desenvolvimento; se por outro lado a iniciativa particular não está ainda entre nós convertida n'um facto com relação a essas grandes obras de utilidade geral, como ha de o estado deixar de recorrer ao credito, se não tem outro meio de satisfazer, pelo menos em grande parte, as exigencias instantes dos povos?

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É por isso que não devemos prejudicar o credito, que é, como v. exa. sabe muito bem, uma riqueza nacional. É por elle que os fundos que representam a honra nacional, sobem de preço, o que é de grande vantagem para essa riqueza, porquanto aquelles que têem a felicidade de possuir uma somma qualquer representada em titulos de divida publica, seja qual for a sua denominação, vêem immediatamente augmentar a sua fortuna na rasão directa da elevação do preço d'esses titulos.

Se eu quizesse argumentar com os melhoramentos que devemos ao credito, muito podia dizer com referencia ás epochas em que eu e os meus amigos estivemos á frente da administração publica; mas não pretendo fazer a historia retrospectiva, não quero inflammar o debate, nem saír do assumpto que se discute, sobretudo quando do meu procedimento podia resultar uma discussão irritante, visto que, no dizer dos nossos adversarios, as administrações a que tenho tido a honra de pertencer, têem sido de tal modo nefastas, tão esbanjadoras, que pozeram o paiz á beira de um abysmo.

É notavel, porém, que apesar de tudo quanto nos imputam com respeito ao modo porque temos dirigido os negocios do estado, não obstante attribuirem nos uma desastrosa gerencia financeira, todas as vezes que tem sido necessario appellar para o credito os capitalistas tanto nacionaes como estrangeiros, têem corrido a offerecer ao governo os recursos necessarios para emprehender melhoramentos, ou solver difficuldades de qualquer natureza.

E porque é que assim tem succedido? É porque temos tido credito.

Somos esbanjadores, dizem, pozemos o paiz á borda do abysmo, e o credito publico protesta contra uma tal asserção, e não se resente d'esta nossa má politica! É singular, sr. presidente!

Ainda em 1876, n'aquella crise dos bancos, que tão deploravel foi para os interesses economicos, e que teve consequencias que ainda hoje se estão fazendo sentir, ainda n'essa occasião, repito, o governo a que eu tinha a honra de presidir, elevando-se á altura das difficuldades que então existiam, arcando frente a frente com ellas, pôde recorrer ás praças estrangeiras para acudir n'aquella afflictiva situação, não só aos bancos, mas ao paiz, que clamava por auxilio.

Todos os bancos se aproveitaram então d'esse credito que o governo tinha, e amigos e adversarios todos applaudiram n'essa occasião o seu procedimento.

Até os mais decididos contra a situação, escreviam aos membros do gabinete, dizendo-lhes que o governo se honrava n'aquella triste conjunctura, usando do credito de que dispunha para occorrer á crise, que podia ser de bem funestas consequencias. Foi um facto notavel. Todos nos lembrâmos ainda que houve tempo em que o governo portuguez era quem no paiz tinha menos credito, e tanto que qualquer banco, e mesmo particulares, levantavam capitaes por um preço inferior áquelle por que o governo os obtinha.

Felizmente esses tempos passaram, e succederam outros em que se viu com satisfação do paiz inteiro que em logar de ser o governo quem tinha menos credito, era pelo contrario quem de mais recursos dispunha. E porque foi isto? Foi porque a politica que representavamos era má e nefasta, porque era esbanjadora?

Se o sentimento publico fosse esse, os capitaes nacionaes e estrangeiros teriam recusado ao governo o seu concurso, no momento supremo em que todos os estabelecimentos de credito periclitavam mais ou menos dentro do paiz.

Sr. presidente, quando em 1851 eu tive a honra de entrar pela primeira vez nos concelhos da corôa, a nossa receita mal chegava a 10.000$000 réis.

Mais tarde o sr. Braamcamp, no seu excellente relatorio de 1870, e na sua qualidade de ministro da fazenda, declarava que o orçamento da receita para o anno economico de 1870-1871, era de pouco mais de 16.000:000$000 réis; para o anno economico futuro, o sr. ministro da fazenda calcula a receita em mais alguma cousa do que réis 26.000:000$000.

Mas diz-se que n'estes periodos, tambem as despezas publicas têem augmentado avultadamente, e isto principalmente porque temos abusado do credito. Ora, os empresmos têem sido contrahidos para satisfazer compromissos antigos, que tambem nos foram legados, e que vão ficando successivamente de administração em administração, sem solução de continuidade, bem como para dotar o paiz com os melhoramentos materiaes que tanto têem contribuido já para o seu adiantamento.

Dizendo isto, não pretendo fazer o meu proprio elogio, nem attribuir estes factos unicamente ao meu partido; mas refiro-me aos diversos governos que se têem seguido uns aos outros, e aos differentes partidos politicos a que pertencem.

Portanto, um augmento de 10.000:000$000 réis, em dez annos, um augmento de receita de 16.000:000$000 réis em vinte annos, provam, apesar de termos ainda um deficit relativamente grande, que se não recorreu ao credito sem vantagem para o paiz, e que os principios que têem presidido ultimamente á administração publica, nem são nefastos, nem nos tem levado á borda de um abysmo de que estamos longe.

Eu estou prompto a acompanhar o nobre ministro da fazenda, ou os governos de qualquer côr politica, em todas as medidas que tendam ao aperfeiçoamento das nossas finanças; porque estou convencido que é justo esse empenho, e que todos os ministros são animados das melhores intenções.

Não obstante, sr. presidente, entendo que a politica que se tem adoptado nos ultimos annos, não póde ser condemnada sem mais exame, e não me posso convencer de que ella não tenha dado resultados satisfactorios.

Pensa alguem que nas outras nações a receita tem crescrido n'uma proporção mais forte que entre nós? Eu não posso fazer comparação com a Franca, que teve de augmentar extraordinariamente os seus impostos, em consequencia da lucta gigante e sem exemplo na historia moderna, em que esteve ultimamente empenhada.

Tambem a Allemanha me não serve de termo de comparação, porque teve de armar grandes exercitos, fazendo enormes despezas, e recebendo uma espantosa contribuição de guerra, o que tudo pertuba os calculos d'esta natureza.

Mas a vizinha Hespanha, que está em circumstancias mais analogas ás nossas, não augmentou proporcionalmente a sua receita mais do que nós.

A Hespanha, ha trinta annos, tinha quasi tudo para fazer, como nós tinhamos, e sendo a sua receita de então 1.149:000:000 de reales, ou 287.000:000 de pesetas, hoje é de 750.000:000 de pesetas, o que quer dizer que teve um augmento de 261 por cento, emquanto nós tivemos no mesmo periodo um augmento de 270 por cento.

Mas, sr. presidente, permitta v. exa. que eu ainda faça outras considerações, referindo-me a documentos que não são da minha responsabilidade, que não são feitos nem mandados fazer por mim, e aproveito este meio para justificar diante da camara e do paiz a imparcialidade das bases da minha argumentação.

Quando v. exa. dignamente presidiu ao ministerio de 1877, e era ministro das obras publicas um cavalheiro que não era meu amigo politico, publicou-se por aquella secretaria d'estado um documento no qual se lê que, desde que se organisou o ministerio das obras publicas, se têem gasto em obras publicas 98.000:000$000 réis effectivos.

Ora todos sabem que antes de se ter creado aquelle ministerio, a despeza com aquelle ramo de serviço publico era tão diminuta, era tão exigua a verba que lhe era destinada, que não tem comparação possivel com o que se

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gasta actualmente. Foi v. exa. que, em virtude da lei de 22 de julho de 1850, fez inscrever no orçamento a verba respectiva destinada á construcção de estradas. Antes de 1851 reduzia-se a despeza de obras publicas a uma repartição no ministerio do reino, com dois empregados, á intendencia de Lisboa, e a uma verba para obras de todo o reino que orçava por l00.000$000 réis, entrando n'isso ainda as despezas do carrilhão de Mafra, e a capella de S. João Baptista, na igreja de S. Roque. A creação d'aquelle ministerio deu o resultado que se deprehende da nota mandada publicar pelo sr. Barros e Cunha, que não deve ser suspeito, e por ella se vê que se tem gasto de então para cá, como fica dito, a somma de 98.000:000$000 réis.

É evidente que n'esta verba entram as despezas do serviço technico e do funccionalismo administrativo; porém tudo isto é indispensavel para a execução de trabalhos em ponto grande, e por isso podemos dizer que a despeza que se fez foi toda convertida em melhoramentos publicos.

O nobre ministro da fazenda diz no seu bem elaborado relatorio que nos ultimos seis annos, isto é, no periodo decorrido de 1873 a 1878, o governo gastou em despezas extraordinarias de obras publicas e armamentos a somma redonda de 40.000:000$000 réis. S. exa. faz depois uma deducção, e eu acceito-a, em virtude da qual entende que para obras publicas de interesse geral só se poderiam ter gasto 35.000:000$000 réis n'aquelle periodo.

Ora esta somma dividida por seis annos dá pouco menos de 6.000:000$000 réis para cada anno. Tendo decorrido dois annos depois do relatorio apresentado pelo sr. ministro das obras publicas, a quem me referi ha pouco, e calculando em 6.000:000$000 réis cada anno o que se gastaria n'essas obras, temos gasto 110.000:000$000 réis effectivos desde 1852 para cá, isto é, desde a creação do ministerio das obras publicas, tudo calculado por documentos mandados colligir e publicar pelos meus adversarios politicos.

Qual é, porém, o encargo proveniente d'estes réis 110.000:000$000? Não o posso dizer com exactidão, mas devo suppor que a media não seja inferior a 8 1/2 por cento. Este calculo sem base fixa, que não a posso ter, é unicamente firmado no conhecimento que todos temos das circumstancias graves e difficeis em que nos tem sido necessario por vezes appellar para o credito.

Se eu quizesse cingir-me ao que diz um jornal inglez n'um artigo publicado ha pouco tempo, com o fim de socegar os animos dos capitalistas que estavam receiosos do futuro de Portugal, pelos emprestimos successivos que eramos obrigados a levantar, a media d'esse encargo seria de 13 por cento, que assim o calcula a dita folha. Eu, porém, não vou tão longe, e creio que é exagerada essa percentagem.

Calculando-a, pois, em 8 1/2 por cento temos uma somma de 9.350:000$000 réis que faz parte dos juros que pagâmos pela divida publica fundada.

A esta despeza temos que addicionar os encargos já existentes na epocha a que me referi da creação do ministerio das obras publicas, e tudo isto junto se formula pelo modo seguinte:

Juros de 110.000:000$000 réis gastos em
obras publicas, desde 1852, segundo os
relatorios dos srs. ministros Barros e
Cunha, e Barros Gomes, suppondo as
operações a 8 1/2 por cento (termo medio) 9.350:000$000

Encargos da junta do credito publico no
anno de 1851-1852.............. 3.565:000$000

A cargo do thesouro n'esta ultima epocha 362:000$000

13.277:000$000

Encargo actual, como já mostrei.... 13.742:000$000
Restam............... 465:000$000

Que representariam o encargo de todos os deficits accumulados ha perto de trinta annos, se o juro medio não tivesse sido mais caro, como provavelmente foi, de que S 1/2 por cento.

N'estes termos, sr. presidente, tenho a profunda convicção de que posso afoutamente dizer á camara que toda a despeza publica que se faz, e que é traduzida e representada pelos encargos da divida consolidada, interna e externa, e pela divida fluctuante, provém das despezas realisadas em virtude dos melhoramentos que a civilisação requer, e das luctas para a conquista da liberdade.

As despezas anteriores a 1852 são quasi todas devidas aos emprestimos que se levantaram para que podessem vir a este reino os portuguezes expatriados, que valorosamente hastearam nas praias do Mindello o estandarte da liberdade. Algumas são devidas ás discordias civis, aos abalos profundos que o reino soffreu. O resto deriva dos gastos da civilisação.

Um paiz, que está n'estas circumstancias; um paiz cuja divida publica fundada interna e externa representa os seus melhoramentos, e á conquista das suas instituições, prova que tem tido constantemente em media o necessario para remunerar os serviços publicos.

Creio que não se póde exigir outra cousa de uma nação qualquer, senão que pelo seu orçamento ordinario satisfaça a sua despeza ordinaria.

Orçamento em que se apresentem de tal modo repletas as arcas do thesouro, que possam não só occorrer aos serviços publicos, mas ao mesmo tempo aos que resultam do emprehendimento de qualquer grande trabalho proprio da civilisação moderna, é cousa que não apparece em parte alguma.

Relativamente ao periodo de que estou tratando, se compararmos os orçamentos de outras nações, ahi veremos que as difficuldades provenientes do desequilibrio entre a receita e a despeza não procedem geralmente dos melhoramentos publicos, porquanto lá fóra, em regra, anteciparam-se a nós, e já os tinham concluido, quando tratámos de os começar. As difficuldades n'esses paizes provém das despezas resultantes de diversas guerras em que, na sua maioria, têem estado empenhados.

Na Inglaterra sabe v. exa. perfeitamente que não é á iniciativa governamental, não é ao poder central do estado que se deve a parte mais consideravel dos seus melhoramentos, que assombram o mundo. Lá deve-se tudo isso á iniciativa particular, que, empregando n'esses melhoramentos os seus capitaes, e procurando obter d'elles a maior somma de rendimento, assim contribue para o desenvolvimento da civilisação.

Mas quem póde haver entre nós que pretenda para esse fim confiar unicamente na iniciativa individual? Se o fizermos, nada teremos, porque o espirito publico não está ainda preparado para similhante descentralisação; ainda não se póde deixar a cargo da iniciativa de particulares o que até agora tem sido producto quasi exclusivo da iniciativa dos governos.

Quando, ha poucos annos, alguns capitalistas dedicados e corajosos se empenharam na construcção de um caminho de ferro de via reduzida, mas com todo o seu material circulante e fixo, com todas as suas estações e accessorios, applaudi como portuguez que se empregasse pela primeira vez entre nós a iniciativa individual n'um grande melhoramento publico. Fallo no caminho de ferro do Porto á Povoa de Varzim.

Á excepção d'este exemplo, unico na nossa historia contemporanea, nunca vi que emprezas de certa importancia se tenham organisado para levar a effeito por este modo grandes melhoramentos publicos.

Não estamos habituados a isto, espera-se tudo dos governos.

Tenho ouvido fallar muito em descentralisação, e tenho visto que aquelles que mais advogavam essa idéa são os

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primeiros a contrarial-a quando se trata de a converter em facto.

A descentralisação administrativa tambem eu a quero, mas quero-a dentro de certos limites. Outro tanto não digo com relação á descentralisação individual, se posso applicar este termo para manifestar o meu pensamento a respeito da iniciativa particular.

Essa descentralisação, se assim se póde chamar, quero a eu larga, que se estenda por todo o paiz, que possa reunir capacidades, juntar forças, provocar adhesões, procurar emfim todos os elementos de acção e de energia, proprios para realisar os grandes emprehendimentos que têem até agora sido exclusivamente devidos á iniciativa do poder central.

E aqui vem a proposito fallar no caminho de ferro do Douro e Minho.

Disse o sr. ministro da fazenda que essas linhas tinham custado muito mais do que se calculava. É verdade que custaram mais, como têem custado todos os caminhos de ferro que se têem feito, nos quaes as sommas despendidas excederam sempre as que haviam sido orçadas, e como está succedendo no caminho de ferro da Beira Alta, onde se está gastando mais do que se calculara no respectivo orçamento.

É este um facto trivial n'esta ordem de construcções. Veja-se o que succedeu com o caminho de ferro do norte, onde as despezas de construcção se elevaram exageradamente, passando muito alem do que se havia previsto, facto este de que a empreza d'aquella linha ainda hoje se resente.

Não é pois uma cousa pouco vulgar o que succedeu no caminho de ferro a que o sr. ministro se referiu, tem-se dado sempre, e ha de dar-se mais ou menos em todas as construcções de vias ferreas, quer sejam feitas por conta do estado, quer por emprezas nacionaes ou estrangeiras.

Notou s. exa. que o caminho de ferro do Douro e Minho trouxe ao paiz um encargo de mais de 1.000:000$000 réis, e que rende apenas 700:000$000 réis de receita bruta. Por consequencia deduzidas as despezas de exploração e administração, que vem descriptos no capitulo respectivo do orçamento das obras publicas, o rendimento d'aquella linha não chega a produzir 400:000$000 réis, do que resulta um encargo effectivo para o thesouro de uma somma igual á differença entre aquelle rendimento e a importancia das annuidades correspondentes ás quantias levantadas para a referida construcção. Imaginava porém o nobre ministro ou alguem podia esperar que o estado fizesse caminhos de ferro que rendessem, sobre tudo nos primeiros tempos, o juro do capital empregado n'elles? Isso é geralmente impossivel.

E quando assim digo, refiro-me a linhas de certa extensão e importancia, construidas em determinadas condições technicas que trazem fatalmente grandes despezas, e não a pequenas linhas, que apenas têem de extensão algumas dezenas de kilometros, que são de via reduzida, que se fazem em condições technicas pouco rigorosas, com pequenos raios de curva e com grandes inclinações. Todos sabem que em paizes montanhosos, ou mesmo em terrenos pouco accidentados, mas entre pontos de secundaria importancia, se têem feito caminhos de ferro n'estas condições, e que por isso saíram mais baratos; porém linhas como aquella a que o sr. ministro alludiu, e que foi construida como se construem em França, na Inglaterra, na Allemanha, na Belgica, e outros paizes, as grandes vias de com-municação accelerada, debaixo de um ponto de vista mais rigoroso, no que respeita ás condições technicas, é inteiramente impossivel fazel-as com pequeno dispendio.

Os povos contentam-se muitas vezes com linhas de via reduzida, porque reconhecem que ainda assim ganham muito com esses meios de communicação rapida, que á falta de melhores, tem grande vantagem sobre as estradas ordinarias.

Mas uma nação que deseja estar ligado com os povos vizinhos por meio das grandes arterias da civilisação, não se satisfaz com um caminho de ferro de via estreita, que não lhe póde produzir as vantagens das linhas internacionaes.

Os caminhos de ferro do Douro e Minho foram construidos nas melhores condições que a sciencia ensina...

Vejo que o sr. ministro olha para o relogio. Se tem pressa em responder, calo me já. Sou generoso.

Mas, se me é licito continuar, direi que, quando das cadeiras do governo, um homem tão auctorisado como é o sr. ministro da fazenda, diz que aquelles caminhos de ferro rendem menos de 400:000$000 réis para o estado, trazendo aliás o encargo de 1.000:000$000 réis, julgo do meu dever accentuar por modo bem claro que os caminhos de ferro não se inventaram para constituir emprezas industriaes para os governos.

Que diriamos nós das estradas, e de outros melhoramentos, que não rendem nada, e que antes pelo contrario só trazem encargos?

O nobre ministro da fazenda, que é um distincto economista, sabe isto perfeitamente, mas precisava dizer alguma cousa contra os seus antecessores, e por isso disse que os caminhos de ferro do Minho e Douro custavam muito dinheiro.

Isto é que se precisa fazer notar bem, para se inculcar ao mesmo tempo que estão aqui es esbanjadores, que o fizeram.

Ora, que culpa temos nós que os engenheiros, bem ou mal, feliz ou infelizmente, exagerassem para menos os seus calculos, de certo na melhor boa fé, mas por fórma que aquella construcção não podesse ser feita tão economicamente como se esperava que o fosse?

Se o sr. ministro da fazenda tivesse mandado fazer aquelle caminho de ferro, o visse que as sommas calculadas para a sua construcção não chegavam, mandava-o concluir, pedindo ás côrtes auctorisação para emittir mais uma serie de obrigações no mercado, ou deixava de proceder á sua conclusão?

Todos sabem que os povos do Douro e Minho reclamariam com instancia para que se concluissem aquellas vias ferreas, que têem um futuro e uma importancia que não é licito desconhecer.

A linha do Douro é destinada a entroncar com as linhas das provincias centraes de Hespanha, o que ha de necessariamente trazer ao nosso paiz grandes riquezas e movimento commercial.

Alem d'isso, o caminho de ferro do Douro ha de lançar ramaes com o tempo pelo valle do Tua para Mirandella, e pelo valle do Sabor para Bragança.

É necessario, pois, desconhecer as vantagens incalculaveis que da construcção d'este caminho de ferro resultam para os interesses d'aquella provincia tão desherdada, e que ha tantos annos apenas tem obtido algumas estradas no immenso territorio que possue.

Quando ha proximamente dois annos fui á provincia de Traz os Montes, que quasi não conhecia, porque tinha só chegado até á Regua e Villa Real, e vi as riquezas incalculaveis que encerra, os rios, os grandes e ferteis valles, os frondosos arvoredos, e por fim os terrenos menos accidentados onde se podem construir linhas ferreas de via estreita, que são as mais economicas e as mais adequadas áquelle paiz; quando vi tudo isto, lastimei não ter ha mais tempo, durante a minha longa administração, emprehendido melhoramento tão importante, que póde, no futuro, levar a sua benefica influencia até aos pontos mais afastados, e fazer com que aquella provincia entre, como as outras, no goso das vantagens indisputaveis da viação accelerada.

Sr. presidente, tenho-me afastado um pouco do assumpto que mais particularmente nos occupa; mas que hei de eu fazer com tão bons exemplos? O proprio sr. ministro da fazenda não discutiu tudo quanto quiz? Não discutiu até

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individualidades, que são estranhas a esta camara, as questões de fazenda, os caminhos de ferro do Minho e Douro, o deficit, e o mais que julgou opportuno e conveniente para aproveitar a sua argumentação em favor da situação politica que atravessâmos?

Mas eu bem sei que tudo que é permittido ao governo, se estranha nos que o combatem.

Não ha muitos dias que eu ouvi uma phrase, que achei conceituosa e engraçada; é ella attribuida ao sr. Anselmo Braamcamp, e eu peço licença para a repetir.

Estavamos no ministerio eu e os meus amigos politicos, e a proposito não me lembra de que assumpto, alguem quiz convencer s. exa. de que as idéas do governo eram melhores do que as da opposição; e s. exa. respondeu: então que querem, a opposição nunca tem rasão!

Sr. presidente, afastei-me eu tambem, como o nobre ministro, do assumpto principal da discussão, o que deu em resultado fatigar-me e cansar a paciencia da camara. Entretanto, embora de certo não tenha tido a fortuna de apresentar as cousas de maneira que convençam a todos, procurei dizer a verdade; e acrescentarei que, se acaso nos meus actos ou nas minhas idéas me tenho enganado, é porque o engano é dos homens. E não direi isto em latim. (Riso.)

Mas, sr. presidente, agora, e já não é sem tempo, vou cingir-me precisamente á questão do real de agua.

Diz-se que este meio de cobrar o imposto por arrematação vae facilitar ás camaras municipaes as avenças, e que d'esse facto deve provir um grande melhoramento, contribuindo para a descentralisação. Citou o sr. ministro da fazenda uma proposta minha, pela qual as povoações que quizessem poderiam avençar-se com o estado. Eu devo dizer a s. exa. que a avença que eu pretendia auctorisar era com referencia ao imposto de barreira; porque toda a gente sabe que as barreiras são mal vistas, em geral, e parecia-me que, para as evitar por conta do estado, as camaras procurariam substituil-as por outros meios.

Mas agora não se trata de barreiras; pelo contrario, as barreiras estão condemnadas em principio pelo nobre ministro da fazenda. E se a mim me perguntarem tambem se eu gosto do imposto de barreira, direi francamente que não, só não gosto d'elle, mas que não gosto de nenhum imposto; entretanto reconheço que a necessidade de recorrer ao imposto é impreterivel para satisfazer as exigencias da administração e da civilisação.

A existencia de um paiz como nação independente, a defeza do seu territorio, a segurança dos cidadãos, e todos, os commodos que resultam da vida social, não podem existir sem impostos; o problema consiste em adoptar os menos vexatorios e os mais productivos.

Os selvagens, esses é que não têem impostos, não pagam nada, porque de nada precisam; elles não carecem de estradas, nem de caminhos de ferro, nem telegraphos. Basta-lhes a natureza.

O imposto é condição inseparavel da civilisação.

O systema de barreiras, desde que existe o imposto de consumo, é o mais igual e o mais essencialmente democratico, dentro das cidades e outras povoações. Não é contra o povo, como se lhes faz acreditar, mas contra os ricos, que se querem eximir do pagamento a que são obrigados.

Quer haja barreiras, quer não, o pobre paga sempre, porque compra a retalho nas tendas e tabernas, emquanto que o rico manda vir o genero por grosso, e escapa se ao imposto, que é de consumo, quando a barreira não existe. Entretanto procura-se illudir o povo para gritar contra as barreiras, fazendo-o adoptar uma causa que não é sua, para produzir effeito.

Pois em Lisboa, por exemplo, não paga o rico e o pobre? Pois aqui não pagam todos em geral, desde o mais alto personagem até ao mais modesto cidadão?

Condemna-se o imposto de barreira, condemna-se o imposto de circulação, condemna-se o imposto sobre o sal, condemnam-se todos os impostos successivamente, e em detalhe. Que resta?

Eu não me cansarei em dizer á camara que é necessario que não commettamos o erro, que é um perigo para todos, de incitar o espirito publico á resistencia contra o pagamento dos impostos, que são fatalmente necessarios.

Fallou-se nas contribuições directas, e eu não quero agora fazer uma dissertação ácerca de impostos directos e indirectos, porque a illustração da camara me dispensa d'isso, e é negocio largamente discutido em diversas epochas nas duas casas do parlamento; mas quero fazer uma prophecia, embora se diga que ninguem é propheta na sua terra.

Quero eu ser propheta na minha terra, e digo a v. exa. que pelo imposto predial as finanças em Portugal nunca se hão de regularisar. Esta prophecia já mais de uma vez a tenho feito, e agora a repito desassombradamente, porque a minha convicção n'este ponto é o resultado do meu aturado estudo sobre este assumpto. Se alguem pensa que pelo imposto predial se póde resolver a questão financeira, engana-se; (Apoiados.) não vejo que nação nenhuma siga este exemplo. O nobre ministro da fazenda gosta muito, e tem rasão para isso, de se inspirar no que praticam as nações estrangeiras, e vae procurar n'ellas exemplos e regras que possam applicar-se ao nosso paiz.

A camara sabe, e já aqui se tem dito por mais de uma vez, que nem em França, no momento em que esta nação luctava com um deficit enorme, proveniente de uma guerra como não ha exemplo de outra similhante na historia; nem na Inglaterra, quando houve necessidade de recorrer ao income tax, nem em outro paiz qualquer, que me lembre, se tem podido resolver a questão financeira por meio do imposto predial.

Todos os dias ouvimos dizer que se não podem lançar mais impostos emquanto a propriedade não pagar o que deve; porém, o certo é que ao passo que em algumas provincias do reino ha concelhos que pagam pouco, outros ha bastante sobrecarregados com impostos. Esta desigualdade é que se deve corrigir. A repartição dos tributos com igualdade proporcional é uma das primeiras condições de todos os governos, qualquer que seja a sua natureza, mas sobretudo no systema representativo.

O que é necessario é fazer com que todos paguem na proporção do que devem, organisando-se as matrizes devidamente.

Mas agora pergunto eu: pode-se chegar a esse estado de perfeição na repartição do imposto?

Seria muito para desejar, mas creio que não, porque ninguem tem força para isso, nem se conseguiu ainda em parte alguma. A propria França, apesar da sua administração financeira, que é um modelo, e do seu cadastro, que custou mais de 150 milhões, e levou quarenta annos para se concluir, a propria França, repito, não tem a contribuição predial distribuida com proporção e equidade.

Todos os economistas o attestam, e os mais notaveis d'aquelle paiz accusam a differença de um para tres approximadamente no imposto sobre rendimentos collectaveis iguaes nos diversos departamentos e communas. Depois de tantas despezas, de tantos trabalhos o cadastro deu este resultado!

Esta questão é muito complicada, e nunca poderá ter uma solução perfeita. O rendimento para o estado nunca chegará a augmentar muito por via da contribuição predial, más lá estão as localidades que com os centesimos addicionaes vão buscar áquelle imposto o que o estado recebe de menos.

Na Inglaterra, com o decurso do tempo, a contribuição predial tende a diminuir, e não a augmentar.

Quando vejo economistas portuguezes, e oradores distinctos, apreciarem a percentagem que paga de contribuição cada cidadão portuguez para a comparar com o que

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358 DIARIO DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

pagam os de outros paizes, reconheço logo que não ha base para estes argumentos, porquanto não são verdadeiros os elementos com que se entra no calculo, visto que se põem de parte os impostos locaes.

É verdade que entre nós se pagam effectivamente essas taxas n'uma certa importancia, mas ficam, todavia, muito abaixo do que se paga na Inglaterra, em França e n'outros paizes, o que não admira, porque lá, em geral, é muito superior á nossa a riqueza da propriedade.

Portanto, sr. presidente, insisto em que não ha de ser do imposto predial que ha de vir a salvação das nossas finanças.

E comtudo o que vê v. exa.?

Toda a gente indignada contra as contribuições que se propõem, e a opinião illudida clamando que é preciso fazer pagar os proprietarios ricos das povoações ruraes, e não ruraes, antes de recorrer a outras fontes de receita, como se ali estivesse o remedio!

E por que não satisfazem os governos a esta exigencia publica?

Por uma rasão muito simples: porque é impossivel.

E digo isto aqui n'esta tribuna, alto e bom som, porque não quero usar da arma de que em geral se servem as opposições, e de que tanto se tem usado contra mim, e contra os meus amigos, aliás diria tambem: «Por que não ides á contribuição predial? Pois não vêdes que o rendimento d'esse imposto não póde ser apenas o que actualmente produz? Pois não se sabe, por todas as manifestações de riqueza do paiz, que a propriedade ha de valer muito mais do que as matrizes revelam?»

Não fallo assim, porque reconheço que d'esse modo é impossivel obter resultado satisfactorio para o thesouro.

Entretanto assim se tem feito muitas vezes, e d'isso tenho sido victima.

Registre-se, porém, a verdade.

Quando ha motivo para fazer justiça a alguem, não serei eu nunca que me exima ao cumprimento d'esse dever.

Foi o sr. Anselmo Braamcamp quem realisou a unica tentativa séria no sentido de melhorar a distribuição do imposto predial.

Qual foi, porém, o resultado que obteve?

Quasi que se insurgiu o paiz contra elle; foi necessario empregar a força armada, e suspender os trabalhos que s. exa. ordenára.

Nada se conseguiu; e não aconteceu isto por falta de vontade ou de intelligencia do sr. presidente do conselho. Sou o primeiro a prestar testemunho do empenho que s. exa. tomou n'este negocio.

Sabe v. exa. quem se revolta, quem se indigna, quem se levanta em occasiões similhantes?

São as massas populares, que em verdade nada têem a perder com os arrolamentos da propriedade; mas os ricos insinuam-lhes que esses arrolamentos as prejudicam nos seus interesses, e ellas naturalmente insurgem-se, recalcitram.

Emfim, fallemos ao paiz a verdade toda inteira, considerando-a em cada uma das suas faces, e não por uma só, como quer o sr. ministro da fazenda. Convençâmos o paiz de que a necessidade do imposto é fatalmente creada pela imperiosa lei das circumstancias.

Em questões de finanças abstenho-me de fazer politica. É este o caminho que sempre tenho seguido.

Agora terminarei as minhas reflexões com uma declaração.

Não sou candidato ao poder; não entro no concurso, e por isso estou muito mais á minha vontade. Não sei se o governo se sustenta ou se retira; desejo que viva, e estou prompto a acompanhal-o em tudo que me parecer justo e rasoavel, e em que eu não seja obrigado a mentir á minha consciencia e ás tradições da minha carreira publica.

Já votei alguns projectos, ainda que de pouca importancia, e votarei outros de maior alcance. Não venho aqui fazer interpellações, nem crear embaraços ao gabinete.

Saberia fazel-o, se quizesse; creio que me farão a justiça de o acreditar, se tal fosse o meu intuito, se tivesse em vista levantar difficuldades ao gabinete empregando para esse fim todos esses meios parlamentares de que muitas vezes se tem lançado mão.

Não é esse, porém, o meu fito, nem costumo praticar assim. Prometto não incommodar mais a camara sobre esta questão, porque não sou obstructor, e não quero impedir que os meus collegas, que ainda têem a palavra, usem d'ella. Sómente, e por ultimo, pedirei aos srs. ministros que governem no interesse do paiz, que governem, e não se deixem governar pelos clubs, pelos centros, ou seja por quem quer que for; que tenham enfim auctoridade propria. É isto o que lhes peço, e já vêem que lhes não peço cousa alguma contraria aos seus interesses, nem á sua dignidade. Não quero entrar em largas considerações a este respeito. Todos me comprehendem, e os srs. ministros melhor do que ninguem.

Os governos devem gerir os negocios do estado livres de toda a pressão estranha, devem fazer o que julguem melhor ao interesse da causa publica, sem se importarem que os seus actos agradem ou desagradem áquelles que pertendem dominar as situações, nem se preoccuparem com as exigencias das auctoridades locaes, nem com as difficuldades que lhes apresentem os seus amigos, uma vez que tenham a convicção de que procedem em beneficio do paiz, e que estão de accordo com a verdadeira opinião publica. Bem sei que os governos precisam ter adhesões, que não podem emancipar-se completamente da influencia d'ellas; porém, ha limites em tudo e para tudo que não é licito transpor.

Sr. presidente, sou opposição franca ao gabinete, não sou, porém, concorrente ao poder. Desejo que o governo governe, peço-lh'o em nome dos interesses do paiz, e em nome do seu proprio interesse, da sua dignidade, que de certo todos os seus membros sabem prezar.

Não quero ver o ministerio assoberbado por influencias estranhas; o que desejo, o que lhe peço unicamente, é que governe, que governe, que governe.

Vozes: - Muito bem, muito bem.

(O orador foi comprimentado por muitos dignos pares de todos os lados da camara, e varios srs. deputados que estavam na sala.)

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